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Naturalismo na filosofia da mente

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  • Veritas Porto Alegre v. 58 n. 3 set./dez. 2013 p. 545-566

    6 Os contedos deste peridico de acesso aberto esto licenciados sob os termos da LicenaCreative Commons Atribuio-UsoNoComercial-ObrasDerivadasProibidas 3.0 Unported.

    Naturalismo na filosofia da mente*Naturalism in the Philosophy of Mind

    ** John H. McDowell

    Abstract: The contrast between the space of reasons and the realm of law to which Sellars implicitly appeals was not available before modern times. Ancient philosophers didnt feel a tension between the idea that knowledge is a normative status and the idea of an exercise of natural powers. Therefore the contrast Sellars draws can set an agenda for philosophy nowadays. I want to distinguish two ways of undertaking such a project. The idea is that the organization of the space of reasons is not, as Sellars suggests, alien to the kind of structure natural science discovers in the world. Thinking and knowing are part of our way of being animals. To show that, I will distinguish between two kinds of naturalism: a restrictive naturalism and liberal naturalism. I want to suggest that Millikans argument in favor of a restrictive naturalism when criticizing Freges semantic is vitiated by adherence to a residual Cartesianism. This is the result of a familiar trade-off; the price of discarding Cartesian immaterialism, while staying within restrictive naturalism, is that ones singled-out part of nature is no longer special enough to be credited with powers of thought. I will argue that the proper home of the idea of grasping senses is in describing patterns in our lives our mental lives in this case that are intelligible only in terms of the relations that structure the space of reasons. This patterning involves genuine rationality, not just mechanical rationality (so called). Liberal naturalism needs no more, to make the idea of grasping senses unproblematic, than a perfectly reasonable insistence that such patterns really do shape our lives. Keywords: Space of reasons. Restrictive naturalism. Liberal naturalism. Wilfrid Sellars. Ruth Garrett Millikan.

    Resumo: O contraste entre o espao das razes e o reino da lei ao qual Sellars implicitamente apela no estava disponvel antes dos tempos modernos. Os filsofos modernos no sentiram uma tenso entre a ideia de que o conhecimento tem um status normativo e a ideia de um

    * Traduo portuguesa de Sofia Ins Albornoz Stein ([email protected]; PPGFil-UNISINOS/PQ-CNPq/Bolsa de Estgio Ps-doutoral CAPES). Referncia original: McDOWELL, John. Naturalism in the Philosophy of Mind, Neue Rundschau, 100 (1999), p. 48-69. Republicado in: McDOWELL, John. The Engaged Intellect: Philosophical Essays. Cambridge; London: Harvard University Press, 2009, p. 257-275.

    ** Professor de Filosofia no Departamento de Filosofia da University of Pittsburgh.

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    exerccio de poderes naturais. Porm, a ascenso da cincia moderna tornou disponvel uma concepo de natureza que faz a advertncia de uma falcia naturalista na epistemologia inteligvel. Por isso o contraste que Sellars traa pode estabelecer uma agenda para a filosofia hoje. Eu quero distinguir duas maneiras de empreender tal projeto. A ideia a de que a organizao do espao das razes no , como Sellars sugere, estranha ao tipo de estrutura que a cincia natural descobre no mundo. Pensar e conhecer so parte de nossa maneira de ser animais. Para mostrar isso, vou distinguir entre dois tipos de naturalismo: um naturalismo restritivo e um naturalismo liberal. Quero sugerir que o argumento de Millikan em favor de um naturalismo restritivo ao criticar a semntica fregiana est contaminado pela adeso a um cartesianismo residual. Esse o resultado de uma troca familiar; o preo de descartar o imaterialismo cartesiano, enquanto se permanece no interior do naturalismo restritivo, o de que a parte que se escolheu da natureza no mais especial o suficiente para ser creditada com poderes de pensamento. Vou argumentar que o lugar prprio ideia de apreender sentidos est em descrever padres em nossas vidas nossas vidas mentais, nesse caso que so inteligveis somente em termos das relaes que estruturam o espao das razes. Essa padronizao envolve racionalidade genuna, no apenas racionalidade mecnica (assim chamada). O naturalismo liberal no precisa nada mais, para fazer a ideia de apreender sentidos no-problemtica, do que uma insistncia perfeitamente razovel em que tais padres realmente moldam as nossas vidas.Palavras-chave: Espao das razes. Naturalismo restritivo. Naturalismo liberal. Wilfrid Sellars. Ruth Garrett Millikan.

    1. A epistemologia moderna cercada por ansiedades peculiares. Podemos basear uma compreenso delas em um comentrio de Wilfrid Sellars: Ao caracterizar um episdio ou um estado como o de conhecer, no estamos dando uma descrio emprica desse episdio ou estado; ns o estamos localizando no espao lgico das razes, ou justificando e sendo capazes de justificar o que se diz1.

    Sellars insinua que dizer como um episdio ou estado est situado no espao das razes no dar uma descrio emprica dele, e eu acho que isso inapropriado. Uma melhor forma de apresentar o pensamento poderia ser dizer, como Sellars quase o faz em outro lugar, que a epistemologia vulnervel a uma falcia naturalista2. Segundo uma 1 Cf. SELLARS, Wilfrid. Empiricism and the Philosophy of Mind. Introduction by Richard

    Rorty and Study Guide by Robert Brandom. Cambridge, Mass.:Harvard University Press, 1997, 36. Richard Rorty cita o comentrio duas vezes in: RORTY, Richard. Philosophy and the Mirror of Nature. Princeton: Princeton University Press, 1979, p. 141, 389.

    2 Cf. SELLARS, Wilfrid. Empiricism and the Philosophy of Mind, 5, para uma formulao nessa direo.

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    compreenso familiar moderna de natureza, um contraste emerge entre dizer como algo est situado no espao das razes um espao lgico que est organizado por relaes justificatrias entre os seus habitantes e dizer como algo est situado na natureza. O contraste tal que sugere que o contedo de conceitos que pertencem ao espao das razes, tal como o conceito de conhecimento, no pode ser capturado em termos de conceitos que pertencem ao espao lgico contrastante, o espao de localizao na natureza.

    A concepo de natureza que gera esse contraste uma cujas origens jazem no desenvolvimento da cincia moderna. O contraste ao qual Sellars implicitamente apela no estava disponvel antes dos tempos modernos. Isso pode nos auxiliar a entender por que a modernidade traz consigo um novo tom, caracteristicamente apavorado e obsessivo, para a reflexo filosfica sobre o conhecimento.

    Considere como Aristteles ou um aristotlico medieval teria concebido a relao entre a ideia de conhecimento e a ideia do natural. Para tal pensador, as capacidades que equipam seres humanos a adquirir conhecimento poderiam ser, enquanto tais, poderes naturais, e o resultado de seus exerccios poderiam ser estados de coisas naturais. No que tais pensadores pr-modernos fossem ignorantes da conexo na qual Sellars insiste, entre a ideia de conhecer e ideias de justificao como se pessoas pr-modernas no pudessem entreter o pensamento, que se torna to frutfero na epistemologia moderna, de que o conhecimento tem um status normativo. Porm, elas no sentiram uma tenso entre a ideia de que o conhecimento tem um status normativo e a ideia de um exerccio de poderes naturais. Antes da era moderna, no teria sido inteligvel temer uma falcia naturalista na epistemologia.

    Porm, a ascenso da cincia moderna tornou disponvel uma concepo de natureza que faz a advertncia inteligvel. As cincias naturais, como agora ns as concebemos, no procuram por uma organizao para os seus objetos na qual um item mostrado como, digamos, justificado luz de um outro item. (Essa uma interpretao do slogan de que a cincia natural livre de valores [value-free]). tentador identificar a natureza com o objeto das cincias naturais concebido dessa forma. E assim o contraste que Sellars traa pode estabelecer uma agenda para a filosofia.

    Alguns seguidores de Sellars, especialmente Richard Rorty, apresen- tam o contraste como um entre o espao das razes e o espao das causas3.

    3 Cf. RORTY, Richard. Philosophy and the Mirror of Nature, p. 157, em que Rorty sagazmente separa o que Sellars chama de o espao lgico das razes daquele das relaes causais com objetos.

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    Porm, eu acho que melhor colocar o espao das razes no contra o espao das causas, mas contra o espao de subsuno , como diramos, lei natural. Diferente da construo de Rorty do contraste, essa verso no descarta a possibilidade de que razes poderiam ser causas. No precisamos ver a ideia de elos causais como uma propriedade exclusiva do pensamento cientfico-natural4.

    Se concebemos a natureza de tal modo que delinear o carter natural de algo contraste com situar algo no espao das razes, no podemos mais utilizar sem dificuldade a ideia de que poderes para adquirir conhecimento so parte de nossos talentos naturais. Conhecer, como um caso de ocupar um status normativo, no pode mais ser visto como um fenmeno natural. E agora fcil que o conhecimento parea misterioso. No adianta expandir a nossa concepo do que seja real para alm do que natural, se o efeito for fazer parecer que adquirir conhecimento tenha de ser uma faanha sobrenatural. Assim, com a nova concepo de natureza, o sujeito cognoscente ameaa retirar-se do mundo natural. Dessa forma comea a parecer como se a epistemologia filosfica precisasse reconectar o sujeito cognoscente com o resto da realidade.

    2. Iniciei com a epistemologia, porm consideraes similares estendem-se filosofia da mente em geral. No apenas o conhecer que ameaa ser expelido da natureza tendo por base o contraste entre a natureza e o espao das razes.

    Sellars diz que caracterizar algo como um caso de conhecimento situ-lo no espao lgico de razes. Compare a afirmao de Donald Davidson que a nossa fala de atitudes proposicionais somente inteligvel no contexto do ideal constitutivo da racionalidade5. Poderamos reformular a tese de Davidson em termos sellarsianos: os conceitos de crer, desejar e assim por diante so compreendidos somente na estrutura de um espao de razes.

    E a tese de Davidson no idiossincrtica. Ela tem, por exemplo, uma afinidade bvia com a assertiva de Daniel Dennett de que a 4 Estou sugerindo que apelemos ideia de leis da natureza para expressar o contraste no

    qual Sellars insiste, mesmo que exorte que o contraste seja essencialmente moderno. No estou com isso contrapondo-me ao fato bvio de que o conceito de uma lei da natureza precede a modernidade, tal como o conceito de natureza. A prpria expresso obviamente remonta a um tempo quando a ideia de leis da natureza no estava em contraste com a ideia de uma organizao normativa de um objeto [subject matter]. Isso no solapa o ponto que estou explorando, que sobre o que a ideia de uma lei da natureza se tornou.

    5 Cf. especialmente DAVIDSON, Donald. Mental Events. In: DAVIDSON, D. Essays on Actions and Events. Oxford: Clarendon Press, 1984, p. 207-227. A expresso que citei da p. 223.

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    intencionalidade entra em considerao apenas desde uma atitude intencional, que organiza o seu objeto dentro de uma estrutura estabelecida por um postulado de racionalidade6. Poderamos reformular a posio de Dennett usando a expresso de Sellars o espao lgico das razes ou a expresso de Davidson o ideal constitutivo da racionalidade7. H uma correspondncia evidente com a tradio na qual o Verstehen distinguido do Erklren.

    Assim, o pensamento de Sellars sobre o conhecimento generaliza-se em um pensamento sobre atitudes proposicionais. Nesse caso, podemos esperar que as implicaes epistemolgicas do contraste de Sellars entre natureza e espao das razes sejam espelhadas em implicaes para o nosso pensamento sobre toda a vida mental sapiente, no apenas sobre o conhecimento8. A epistemologia moderna v a si prpria como submetida a uma obrigao de reconectar o sujeito cognoscente com um mundo natural do qual parece ter-se retirado. Muita da filosofia da mente moderna v a si prpria como submetida a uma obrigao paralela de reintegrar o sujeito pensante em um mundo natural em relao ao qual passou a parecer um estranho.

    famosa a advertncia de Rorty de que a suposta obrigao da epistemologia de criar uma ponte reflete uma iluso. Qualquer um simptico a essa convico de Rorty deveria ter uma suspeita similar em relao a muitas filosofias modernas da mente.

    3. Sugeri que conhecimento e intencionalidade podem entrar em considerao somente na estrutura do espao das razes9. Quando Sellars alerta para a falcia naturalista, ele est sugerindo que a estrutura do espao das razes sui generis, em comparao com o tipo de estrutura que as cincias naturais encontram na natureza. inteligvel que o sentido resultante de que conhecimento e pensamento so sui generis, 6 Cf. DENNETT, Daniel. The Intentional Stance. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1987.7 Cf. in id. ibid., p. 342-343, a discusso do Princpio Normativo.8 Algumas pessoas pensam que senciente um assunto bem diferente, porm no

    acredito que seja correto (apesar de no poder discutir este assunto aqui). Para algumas pistas, cf. meu McDOWELL, John. One Strand in the Private Language Argument. In: McDOWELL, John. Mind, Value and Reality. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1998, p. 279-296. De qualquer modo, sapincia suficiente para meu atual propsito.

    9 Tenho explorado o paralelo sugestivo entre o discurso de Sellars sobre o espao lgico das razes e o discurso de Davidson do ideal constitutivo da racionalidade. Porm deveramos notar a diferena entre o ponto de Sellars sobre o conhecimento e sua generalizao. Um estado ou episdio conta como um de conhecer somente se atende a requisitos luz de normas de justificao. Se extrapolamos mecanicamente disso, devemos supor, de forma bastante errada, que a compreenso de pensamento e ao no espao das razes no est disponvel onde a racionalidade menos do que perfeita.

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    por comparao com o que pode se apresentar como uma concepo forte do natural, deva gerar ansiedades metafsicas acerca deles, que se cristalizam em uma ameaa sentida de supernaturalismo.

    Agora, podemos evitar essas ansiedades, se pudermos imaginar um modo que permita que pensar e conhecer sejam fenmenos naturais apesar de tudo, mesmo que a sugesto de Sellars suscite a questo sobre como eles possam ser. Eu quero distinguir duas maneiras de empreender tal projeto.

    A primeira no desafia a igualdade da natureza com o reino da lei. A ideia que a organizao do espao das razes no , como Sellars sugere, estranha ao tipo de estrutura que a cincia natural descobre no mundo. Sem dvida relaes de garantia ou justificao no esto visivelmente presentes, enquanto tais, na natureza, tal como as cincias naturais paradigmticas a representam. Porm, de acordo com esse enfoque, podemos apresentar os conceitos de garantia e justificao como, apesar de tudo, no estranhos ao natural naquela concepo. Assim, pensar e conhecer podem, apesar de tudo, ser revelados como fenmenos naturais, mesmo segundo aquela concepo do que para um fenmeno ser natural.

    Em uma verso desse enfoque, a ideia a de que a estrutura do espao das razes pode ser reduzida a algo outro, que j no-problematicamente natural na concepo moderna. Em uma outra verso, poder-se-ia almejar revelar conceitos que trabalham no espao das razes como, eles prprios, apesar de tudo, diretamente servindo para situar coisas no reino da lei. Os detalhes no importam. O ponto essencial que esse enfoque, se levado a cabo de forma redutiva ou no, considera que o ponto de partida de Sellars seja um engano. Sellars contrasta o espao lgico de subsuno lei com o espao lgico no qual o conceito de conhecimento opera. Esse um contraste entre o reino da lei e o reino da liberdade, para apresent-lo de uma forma que torna a razes kantianas de Sellars explcitas. Contra isso, esse primeiro tipo de naturalismo sustenta que podemos continuar a equiparar a natureza com o reino da lei, porm podemos rejeitar a sugesto sellarsiana de que a natureza, assim concebida, no possa ser a casa para sujeitos cognoscentes e pensantes.

    Esse tipo de naturalismo seria bem intencionado, se fosse o nico caminho para evitar o supernaturalismo acerca do conhecer e do pensar. Porm, h uma alternativa, ainda dentro do projeto de representar o conhecer e o pensar como fenmenos naturais. Em um esprito kantiano, podemos recusar aceitar que a estrutura do reino da liberdade possa ser naturalizada no sentido do primeiro enfoque isto , insistir em que o contraste de Sellars slido , porm rechaar um compromisso com o supernaturalismo sustentando que naquilo que a revoluo cientfica

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    moderna resultou foi na clareza sobre o reino da lei, e que no o mesmo que a clareza sobre a natureza. O contraste de Sellars entre o espao das razes e o reino da lei, e no precisa implicar que o espao das razes seja estranho ao natural.

    Para evitar conceber o pensar e o conhecer como sobrenaturais, deveramos enfatizar que pensar e conhecer so aspectos de nossas vidas. O conceito de uma vida o conceito do progresso de uma coisa viva e, portanto, obviamente, o conceito de algo natural. Porm, h aspectos de nossas vidas cuja descrio requer conceitos que funcionem no espao das razes. Ns somos animais racionais. As nossas vidas so forjadas de maneiras que so recognoscveis somente em uma investigao moldada no espao das razes. Nessas linhas, podemos considerar o pensar e o conhecer como pertencendo ao nosso modo de viver, mesmo se os concebermos como fenmenos que podem ser considerados somente em um espao das razes sui generis. Pensar e conhecer so parte de nossa maneira de ser animais. Logo, o fato de que somos conhecedores e pensadores no nos revela como estranhamente bifurcados, com um p no reino animal certamente parte da natureza e uma pertena misteriosa distinta de um reino extra-natural de conexes racionais.

    O primeiro enfoque um naturalismo restritivo almeja naturalizar os conceitos de pensar e conhecer forando a estrutura conceitual qual pertencem para dentro da estrutura do reino da lei. O segundo enfoque o naturalismo liberal no aceita que, para revelar pensar e conhecer como naturais, precisemos integrar ao reino da lei a armao na qual os conceitos de pensar e conhecer funcionam. Tudo que precisamos enfatizar que eles so conceitos de ocorrncias e estados em nossas vidas.

    Este naturalismo liberal nos habilita, como aristotlicos medievais, a desenvolver facilmente a ideia de que as nossas capacidades para adquirir conhecimento so poderes naturais. Porm, de forma diferente dos aristotlicos medievais, podemos associar aquela ideia com uma clara apreciao do carter sui generis da estrutura conceitual dentro da qual o conceito de uma capacidade para adquirir conhecimento opera. Similarmente, quando generalizamos o ponto de Sellars para os conceitos de atitudes proposicionais e ocorrncias. Podemos reconhecer uma realizao genuna da moderna revoluo cientfica separando firmemente o entendimento cientfico-natural daquele tipo de entendimento alcanado por situar o que compreendido no espao das razes. Podemos aceitar que conceitos que servem ltima espcie de entendimento, tal como os conceitos de conhecimento e de atitudes proposicionais, no podem ser capturados em termos que pertencem ao espao lgico do entendimento cientfico-natural. Porm, quando ele

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    sugere que o que arriscamos uma falcia naturalista, ele insinua que o espao lgico do entendimento cientfico-natural pode ser equiparado com o espao lgico da natureza. E podemos evitar a ameaa de super-naturalismo rejeitando tal equao.

    Para o naturalismo liberal, a importncia de colocar a ideia do reino da lei nitidamente em foco simplesmente a de isolar o modo associado de inteligibilidade. No implicado que conceitos do natural so restritos a conceitos que servem quele modo de inteligibilidade. Rejeitar essa implicao nos habilita a ver as ansiedades filosficas que tenho considerado como sem fundamento, um tanto como Rorty exorta. Porm, esse exorcismo da filosofia vem combinado ao reconhecimento do carter sui generis dos conceitos de pensar e conhecer. Se virmos quo fcil supor que colocar a ideia de reino da lei nitidamente em foco colocar a ideia de natureza nitidamente em foco, podemos ter uma vvida apreciao de como aquelas ansiedades filosficas surgem, mesmo que associadas a uma imunidade a elas.

    4. Ambos, o naturalismo restritivo e o liberal, pretendem evitar o supernaturalismo descobrindo uma maneira de considerar o conhecer e o pensar como fenmenos naturais. Isso os separa de um estilo diferente de resposta ao contraste de Sellars, exemplificado pela atitude de Rorty em relao epistemologia.

    A leitura de Rorty da epistemologia tradicional se baseia no contraste de Sellars. O conceito de conhecimento trabalha apenas no espao das razes, e o espao das razes sui generis em comparao com a natureza na concepo restritiva. Assim, um naturalismo restritivo sobre o conhecimento descartado. Porm, para Rorty, o natural o que figura no outro lado do contraste de Sellars, e que oblitera, para ele, a possibilidade mesma de um naturalismo liberal sobre o conhecimento10.

    Com ambos os tipos de naturalismo indisponveis, Rorty no tem opo a no ser negar que o conhecer seja um fenmeno natural. Como Rorty o entende, tentar modelar o conhecer como um fenmeno natural , precisamente, o defeito difundido da epistemologia tradicional. O resultado da tentativa o de que filsofos tentam fazer com que o tipo bem diferentes de relaes que organiza o objeto da investigao cientfico-natural cumpra a tarefa das relaes de justificao e garantia 10 Isso est associado ao fato que mencionei antes: Rorty mantm a causao, enquanto

    tal, no lado oposto ao do sellarsiano, separada das consideraes sobre justificao ou garantia que so o ambiente prprio para classificar estados ou episdios como casos de conhecimento. Isso significa que a Rorty falta um recurso que certamente seria preciso, se tentssemos esmiuar o pensamento de que capacidades para adquirir conhecimento so poderes naturais.

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    que, somente elas, provm o contexto prprio para falar de conhecimento. A epistemologia tradicional, assim, comete exatamente a falcia contra a qual Sellars alerta. Essa concebe o conhecer como uma sndrome na psicologia do entendimento11. Para evitar isso, Rorty sugere que no devemos conceber conhecimento como um fenmeno natural. Claro que isso no quer dizer que devamos conceb-lo como um fenmeno sobrenatural. Em vez disto, Rorty exorta que no pensemos de modo algum no conhecimento como um fenmeno uma caracterstica da realidade , e comecemos a falar sobre o papel social das atribuies de conhecimento.

    Eu insisti em um paralelo entre o pensamento de Sellars sobre o conhecimento e um pensamento sobre a intencionalidade expresso de formas diferentes por Davidson e Dennett. Assim, h espao para uma viso sobre a intencionalidade tal como a viso de Rorty acerca do conhecimento uma negao de que o discurso sobre a intencionalidade trate do fenmeno natural. De forma bastante curiosa, o prprio Rorty no assume essa posio. Para Rorty, pensamentos e mesmo significados so, se alguma coisa, postulaes em uma psicologia naturalista, na qual naturalista marca o contraste com a normatividade importada do discurso no espao das razes12. Eu hesito em identificar um ocupante da posio que reflete a viso de Rorty do conhecimento com a negao de que h fenmenos naturais de intencionalidade13. Talvez haja um sopro dela no aspecto do pensamento de Dennett que atrai a acusao de instrumentalismo14.

    Penso que a leitura de Rorty da epistemologia tradicional acrescenta muito a isso. Rorty muito convincente sobre como intil tentar fazer com que relaes dos tipos que organizam o reino da lei exeram funes de relaes de garantia. Dado isso, ele faz parecer compulsrio no pensar no conhecimento como um fenmeno natural. Porm, isso meramente reflete o fato de que ele no leva em considerao um naturalismo liberal. O naturalismo liberal est imune ao ataque de Rorty s confuses da

    11 Compare o comentrio de Kant sobre Locke, Critique of Pure Reason A ix, citado por RORTY, Richard. Philosophy and the Mirror of Nature, p. 126.

    12 Cf. o Captulo 5 de RORTY, Richard. Philosophy and the Mirror of Nature.13 O Wittgenstein de Kripke seria um caso; cf. KRIPKE, Saul A. Wittgenstein on Rules

    and Private Language. Oxford: Blackwell, 1982. Porm, eu estava procurando por um ocupante real da posio, no por um carter ficcional.

    14 Considere, por exemplo, tais asseres como a de que crenas [] so atribudas em enunciados que so verdadeiros somente se os eximirmos de um certo padro familiar de literalidade; cf. DENNETT, Daniel. The Intencional Stance, p. 72. Compare a sugesto de que o sujeito para o qual coisas so ditas parecerem assim ou assado apenas a fico de um terico, in: DENNETT, Daniel. Consciousness Explained. Boston: Little Brown, 1991, p. 128.

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    epistemologia tradicional. E o mesmo erro da compulsoriedade infectaria um anlogo estrutural da linha de pensamento de Rorty, se qualquer um quisesse produzir um, resultando na concluso anloga de que a intencionalidade no um fenmeno natural.

    5. Enfatizei que uma ntida concepo do reino da lei foi uma conquista moderna. O que subjaz a uma ansiedade filosfica familiar sobre o conhecer e o pensar a facilidade com que essa concepo pode ser equiparada com a concepo do natural. Isso ameaa excluir conhecer e pensar da natureza, dado que os conceitos de conhecer e pensar pertencem ao espao lgico que contrasta com o espao de subsuno lei.

    Considere, agora, um estgio inicial no desenvolvimento da cincia moderna. Imagine um sentido inicial no qual os conceitos de conhecer e pensar so especiais, por comparao com os conceitos que figuram nas cincias naturais emergentes. Tal sentido teria influenciado a reflexo sobre o mental antes que houvesse uma clara apreciao do que h nos conceitos do mental que os torna especiais antes que houvesse uma apreciao clara do que enfocado em Sellars como um contraste entre o espao das razes e o espao do entendimento cientfico-natural.

    Essa intuio de especialidade reflete a concepo, supostamente do natural, que, quando totalmente em foco, opera para excluir o mental. Mas, a intuio teria estado operante antes que esse fato estivesse claro. E antes que esse fato estivesse claro seria inteligvel que se tentasse responder concebendo o mental como uma poro especialmente destacada da natureza, com a natureza entendida de acordo com a forma rudimentar da prpria concepo que de fato exclui o mental.

    Isso resulta em uma maneira de compreender a filosofia cartesiana da mente, pelo menos segundo a leitura ryliana na qual Descartes aparece dentro de uma representao contempornea comum de como a filosofia moderna da mente evoluiu15. Segunda essa leitura, Descartes queria que as relaes que organizam o mental fossem casos especiais dos tipos de relaes que organizam o objeto das cincias naturais. Porm, a especificidade do mental, qual, segundo essa leitura, Descartes estava respondendo sem uma compreenso apropriada de sua base, requer que essas relaes, supostamente adequadas para o tratamento cientfico-natural exeram as funes das relaes que constituem o espao das razes. por isso que o pensamento cartesiano toma a forma qual o termo crtico de Ryle para-mecnico apropriado. O imaterialismo 15 A qualificao importa. Eu no fao afirmaes sobre o Descartes histrico, neste ensaio.

    A leitura a vigente in: RYLE, Gilbert. The Concept of Mind. London: Hutchinson, 1949.

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    cartesiano inteligvel dentro da estrutura que estou descrevendo; nenhuma parte da natureza material poderia ser suficientemente especial para servir aos propsitos essencialmente confusos dessa forma de pensar. Se algum tenta fazer com que conexes do tipo que figuram em descries de processos governados por leis exeram funes de relaes de justificao ou garantia, inevitavelmente decair no apelo magia, mascarado como a cincia de um objeto peculiar; o que se intenciona postular como mecanismos de um tipo especial degenerar naquilo que Ryle satiriza como para-mecanismos.

    Nessa leitura, a filosofia da mente cartesiana uma verso confusa da primeira das duas espcies de naturalismo que distingui, uma tentativa de integrar pensamento e conhecimento natureza conforme a concepo moderna que o segundo tipo de naturalismo rejeita.

    O que eu disse sobre para-mecanismos coincide com um elemento na leitura de Rorty da epistemologia moderna. Porm, Rorty descreve uma linha de pensamento que comea com uma obsesso com a fragilidade da certeza e colapsa no para-mecanismo por causa de um desejo de livrar-se do peso da responsabilidade sobre o seu pretenso conhe- cimento, que aparece como um desejo de representar o seu pretenso conhecimento como o resultado do mundo que se lhe impe. Considero essa leitura menos satisfatria do que aquela que esbocei, pelo menos por duas razes. Primeiro, o incio da obsesso com a certeza que certamente acaba caracterizando a epistemologia com Descartes ainda parece merecer explicao. Na minha leitura, a obsesso com a certeza pode fazer sentido, no como um comeo para uma linha de pensamento que resulta na concepo caracteristicamente cartesiana do mental, porm como manifestando uma explicvel ansiedade pela ameaa sentida de que o sujeito cognoscente se retire do resto do mundo. Em segundo lugar, as peculiaridades do sujeito cartesiano no esto restritas ao seu papel como conhecedor; esse o ponto sobre a generalizabilidade do contraste de Sellars que eu j comentei que Rorty perde16.

    6. Na perspectiva que venho exortando, o engano fundamental da filosofia da mente cartesiana o seu fracasso em levar em considerao o contraste de Sellars. O que especial nos conceitos do mental que eles somente fazem sentido na estrutura do espao das razes. O

    16 No pretendo sugerir que um desejo de livrar-se da responsabilidade no seja algo essencial ao entendimento apropriado da gnese da filosofia moderna. Mas, no acredito que uma obsesso supostamente autnoma com a certeza seja o contexto certo no qual compreender tal desejo.

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    pensamento cartesiano intui uma especificidade dos conceitos do mental, porm a compreende mal, considerando que reflete um modo peculiar de pertencer natureza, com a natureza compreendida de acordo com a concepo que, quando entra nitidamente em foco, de fato fica em oposio ao espao lgico somente dentro do qual conceitos do mental so inteligveis.

    A ideia de para-mecanismos, realizados em uma substncia imaterial, figura nessa leitura como um mero resultado de tentar forar a especificidade do mental naquele molde inadequado. O equvoco fundamental no a noo de um mecanismo fantasmagrico, mas a ideia de que o mental possa ser observado desde um ponto de vista que organiza o seu objeto na maneira das cincias naturais.

    Mas, essa ideia ainda difundida na filosofia da mente contempornea. De um ponto de vista ordinrio, pelo menos parte da verdade sobre o mental a verdade sobre a regio demarcada da natureza, concebida como o reino da lei: especialmente, a verdade sobre a maquinaria interna que controla o comportamento em resposta a impactos do meio ambiente. Essa no a verdade integral sobre o mental, de acordo com esse estilo de pensamento, porque por si s esse corpo de verdade no pode incorporar o efeito de estados mentais na realidade objetiva. Mas, a totalidade de parte da verdade sobre o mental17.

    Eu quero sugerir que essa concepo da mente como maquinaria interna no , em um aspecto, nenhum avano em relao concepo cartesiana. Claro que esse estilo de pensamento perdeu os embaraos ontolgicos familiares do cartesianismo. Ele no leva em considerao as substncias imateriais, e no precisa do papel que Descartes atribui glndula pineal, como o lugar de uma interao misteriosa entre uma substncia imaterial e o resto da natureza. Porm, esse estilo de pensamento ainda faz o que sugeri ser o engano fundamental do cartesianismo. Supe que a verdade sobre o mental possa estar em foco quando o objeto da investigao concebido como estruturado no reino da lei, e no como estruturado em um espao de razes sui generis. Em relao a isso, que separvel do benefcio de descartar aqueles embaraos ontolgicos, procurar por mecanismos regulares no melhor do que postular para-mecanismos.

    De fato, em um sentido, a mudana para pior. Pelo menos o pensamento cartesiano antigo registra, em sua maneira confusa, a intuio de que pensamento e discurso sobre o mental so especiais. A verso moderna evita o imaterialismo e o mistrio da glndula-pineal por 17 Para uma formulao nessas linhas, cf. McGINN, Colin. The Structure of Content. In:

    WOODFIELD, Andrew (ed.). Thought and Object. Oxford: Clarendon Press, 1982, p. 232.

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    Veritas, v. 58, n. 3, set./dez. 2013, p. 545-566 557

    tomar como seu objeto algo que no em absoluto especial, mas apenas uma parte mais ou menos ordinria da natureza.

    Certamente, no h nada de errado em ter a maquinaria interna que controla o comportamento como objeto de estudo. O cartesianismo requentado que estou descrevendo no consiste apenas em interessar-se por aquela poro de natureza, mas em pensar que a verdade sobre ela a verdade sobre o mental.

    7. Quero ilustrar isso em conexo com uma atitude contempornea comum em relao a uma concepo fregiana de intencionalidade. A ideia a de que consideraes externalistas demoliram o aparato de Frege sobre sentido e referencia. Verses dessa viso tm sido expressas por muitas pessoas18. Porm, eu considerarei uma expresso particularmente clara desta, apresentada por Ruth Garrett Millikan, quando dirige contra Frege a sua campanha contra o que chama de racionalismo do significado19. Quero sugerir que o argumento de Millikan est contaminado pela adeso ao cartesianismo residual que identifiquei, e que refletir sobre o seu pensamento uma boa maneira de ver quo pequeno o progresso por ela descartar o imaterialismo cartesiano.

    A tese fundamental do racionalismo do significado que Millikan ataca a de que igualdades e diferenas em elementos de contedo-de-pensamento esto transparentemente disponveis a um sujeito racional20. A verso mais forte acrescenta que trasparentemente disponvel a um sujeito racional se ou no um suposto elemento-de-contedo realmente um elemento-de-contedo, assim no podemos dar sentido ideia de que um sujeito pensante pode supor a si mesmo estar entretendo um pensamento, quando no h pensamento a ser entretido.

    Agora, a noo fregeana de sentido fixada pelo princpio de que temos de distinguir sentidos sempre que o preo de no faz-lo seria deixar uma possibilidade aberta de que um sujeito racional pudesse, ao mesmo tempo, assumir racionalmente atitudes conflitantes por 18 Exemplos incluem PERRY, John. Frege on Demonstratives, Philosophical Review, 86

    (1977), p. 474-497, e McGINN, Colin. The Structure of Content.19 Cf., em particular, MILLIKAN, Ruth Garrett. Perceptual Content and Fregean Myth,

    Mind, 100 (1991), p. 439-459, e MILLIKAN, Ruth Garrett. White Queen Psychology. In: MILLIKAN, R. G. White Queen Psychology and Other Essays for Alice. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1993, p. 279-363. Suposies similares parecem-me contaminar BRANDOM, Robert B. Making it Explicit. Reasoning, Representing and Discursive Commitment. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1994, p. 570-571.

    20 Cf. MILLIKAN, Ruth Garrett. White Queen Psychology, p. 286-287, especialmente p. 287: Dessas [] afirmaes, a da dadidade da identidade do significado a mais central.

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    558 Veritas, v. 58, n. 3, set./dez. 2013, p. 545-566

    exemplo, crena e descrena em relao a um pensamento nico (onde pensamentos so os sentidos expressveis, talvez em contextos apropriados, por enunciaes de frases inteiras). Essa de fato uma forma de racionalismo do significado. O requisito de Frege o de que sentidos tm de ser suficientemente detalhados para assegurar que no precisemos descrever sujeitos racionais como, digamos, acreditando e desacreditando a mesma coisa. E, se a diferena entre duas vezes o mesmo sentido e dois sentidos diferentes deve corresponder ao fechamento ou abertura, para uma mente racional, de possibilidades de associar atitudes, a diferena tem de estar disponvel mente racional em questo.

    Esse racionalismo do significado mais fraco do que a tese fundamental de Millikan, com a sua transparncia geral de igualdade e diferena em elementos-de-contedo. (E mais fraco ainda do que a tese ulterior que exclui iluses de existncia para elementos-de-contedo). O princpio de Frege fora uma diferena de sentido somente se as atitudes racionalmente conflitantes, em relao quilo que de outra maneira teria de ser considerado o mesmo pensamento, esto presentes em uma mente racional ao mesmo tempo. Frege no diz nada que exclua que um sujeito perca a linha de um pensamento no tempo, o que daria lugar para sustentar atitudes conflitantes em relao ao mesmo pensamento em tempos diferentes, sem que a racionalidade do sujeito fosse impugnada21. O princpio de Frege tampouco exclui algum considerar que o que seja de fato um pensamento distinto seja o mesmo que ela teve antes, de forma que ela erradamente suponha estar j comprometida com uma atitude em relao a ele22. Porm, eu posso ignorar isso; o argumento de Millikan 21 Cf. EVANS, Gareth. Understanding Demonstratives. In: EVANS, Gareth. Collected

    Papers. Oxford: Clarendon Press, 1985, p. 291-321. Millikan obscurece esse ponto por meio de uma estranha leitura do princpio que Evans chama de Princpio de Russell (cf. o Captulo 4 de EVANS, Gareth. The Varieties of Reference. Oxford: Clarendon Press, 1982, p. 65), isto , o princpio de que de forma a pensar sobre um objeto [] precisa-se saber qual objeto est em questo precisa-se saber qual o objeto sobre o qual se est pensando. Evans mostra como este princpio se ajusta na estrutura fregiana, e Millikan (White Queen Psychology, p. 287-288) l esse princpio como requerendo que o pensador seja capaz de dizer quando o objeto figura ulteriormente em seus pensamentos, sob o mesmo modo de apresentao. Porm, contra o que as citaes de Millikan sugerem, o requisito de que o pensador seja capaz de dizer quando est pensando acerca do mesmo objeto novamente no parte do que Evans quer dizer com Princpio de Russell. E mesmo a verso mais fraca, em termos de modos de apresentao, vai muito alm do princpio de Frege, com sua restrio ao mesmo tempo.

    22 notvel quantos filsofos supem que Frege tenha um problema com pensamentos tais como o que Rip Van Winkle poderia expressar, ao acordar depois de seu sono de vinte anos, dizendo Hoje o dia em que eu ca no sono.

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    Veritas, v. 58, n. 3, set./dez. 2013, p. 545-566 559

    contra Frege no depende de creditarmos a ele um racionalismo mais forte daquele que ele aceita23.

    O argumento de Millikan se desenvolve dessa forma. Apreender um sentido necessitaria ser uma realizao peculiar de uma mente intacta. Porm, Frege quer que apreender um sentido do tipo relevante seja ter um objeto a Bedeutung associada em mente. Para isso ser assim, a racionalidade que figura na tentativa de Frege em situar a noo de sentido teria que ser racionalidade semntica, uma questo de, por exemplo, o que pode ou no pode ser verdadeiro conjuntamente. Assim, a representao, por Frege, de sentido e referncia requer a pressuposio de que a mente intacta , enquanto tal, semanticamente racional24. Millikan argumenta que essa pressuposio substantiva, indefensvel.

    Ela v a pressuposio como substantiva, porque ela considera que uma mente ser intacta ter-se uma cabea [] intacta, em boa ordem mecnica, no doente, no quebrada25. Ela pensa que o nico tipo de racionalidade (assim chamada) que est legitimamente disponvel para Frege recorrer, como um contexto para o seu discurso sobre o sentido, a racionalidade mecnica a cabea estar em boa ordem mecnica. Assim, a pressuposio substantiva a de que a maquinaria interna poderia ser de tal forma organizada que os seus estados e as suas 23 A transparncia realmente um Red Herring [uma falcia]. In: DENNETT, Daniel. The

    Intentional Stance, p. 121-130, o autor repete o caso comum contra uma construo supostamente fregiana de atitudes proposicionais. (Apesar do Gedanke de Frege no figurar realmente no seu catlogo de coisas possveis a serem significadas por proposies (p. 121)). Dennett apresenta o argumento como um problema para a ideia de apreender sentidos ou, como poder-se-ia dizer, saber o que se pensa , estabelecido pelo fato de que se pode perder de vista, ser enganado por ssias, e assim por diante. Dennett argumentaria que a minha alegao de saber, em uma ocasio apropriada, que o Dennett que vejo ante mim solapada, se eu pudesse ser enganado por um ssia (como eu certamente poderia)? Por que o conhecimento do que se pensa mantido em um patamar superior? In: ibid., p. 129, Dennett escreve: Poder-se-ia resumir o caso [] assim: proposies no so apreensveis porque elas podem nos evadir. No so galinhas vivas apreensveis? Elas certamente podem nos evadir. No mesmo esprito, in: ibid., p. 200, Dennett oferece outra estranha leitura do Princpio de Russell, como expressando a ideia de que ns podemos definir uma espcie de acerca-de que ambos, uma relao real com algo no mundo e algo ao qual o acesso do crente perfeito. Por que o acesso tem de ser perfeito (isto , prova de ssias, de perder de vista, e coisas semelhantes)? Esse no o Princpio de Russell como Evans o utiliza, que do qual Dennett alega estar falando a respeito. Seria um exerccio interessante explorar como a concepo impressionantemente cartesiana de autoconhecimento que Dennett impinge aos fregianos est conectada com a concepo psicologista de Dennett (mesmo que certamente no dualista) do que seria para algo ser diferente de psicologicamente inerte; cf. ibid., p. 130.

    24 Cf. MILLIKAN, Ruth Garrett. White Queen Psychology, p. 290.25 Ibid., p. 289.

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    560 Veritas, v. 58, n. 3, set./dez. 2013, p. 545-566

    mudanas de estado acompanhassem os requisitos da racionalidade semntica.

    E Millikan parece correta ao dizer que essa pressuposio indefensvel. Ns no podemos nos engajar nesse tipo de avaliao da racionalidade semntica que Frege quer explorar em sua viso do sentido, digamos, em conexo com possveis e impossveis combinaes de pensamentos predicativos singulares, at termos assegurado que os itens que so permitidos ou no permitidos serem combinados esto direcionados a determinados objetos. E h modos de direcionamento a determinados objetos por exemplo, aqueles exprimveis por demonstrativos perceptualmente embasados que no podemos inserir em nossa representao sem apelar s circunstncias do meio circunstncias externas maquinaria intra-organsmica que Millikan pensa que teria de ser significada por a mente intacta26.

    8. O argumento de Millikan, ento, este: a pressuposio de que a mente intacta , enquanto tal, semanticamente racional substantiva e indefensvel; portanto, sentido e referncia no podem manter-se unidos como Frege supe. O passo inferencial aqui est bem. Porm, certamente, a linha de raciocnio de Frege contraposta. Sentido e referncia mantm-se unidos, tal como ele supe; tanto pior para a tese de que o ser-intacto da mente seja independente da racionalidade semntica. A pressuposio no substantiva. Millikan faz parecer que seja, por insistir que a mente intacta tenha de ser maquinaria saudvel na cabea; tanto pior para aquela interpretao do ser-intacto da mente. Ao contrrio, ter uma mente intacta justamente ser semanticamente racional27.

    26 Mudei do foco na transparncia das igualdades e das diferenas de sentido para o foco na capacidade de um conceito de sentido fornecer o direcionamento a objetos (o que parte da semanticidade de pensamentos singulares). O ponto bsico de Millikan contra Frege ainda formulvel nesse contexto: apreender sentidos teria de ser um exerccio de racionalidade mecnica, e sentido e referncia poderiam se manter unidos maneira de Frege somente se racionalidade mecnica fosse suficiente para a semanticidade, o que no . A vantagem da mudana que ela torna bvia qualquer necessidade de pisar no pntano de casos como o do Pierre de Kripke (que Millikan explora, cf. MILLIKAN, Ruth Garrett. White Queen Psychology, p. 290-291). Apenas para registro, deixe-me dizer que o Pierre de Kripke no apresenta nenhum problema para uma viso fregiana; como o princpio de Frege requer que digamos, ele tem dois diferentes modos de apresentao para Londres. um equvoco supor que isso envolva segregar uma suposta noo de racionalidade do direcionamento ao mundo objetivo (uma mudana da racionalidade para um reino mais interno, mais puro, mais seguro; cf. ibid., p. 348).

    27 Isto , suficientemente racional para ser considerado um pensador (e seria tolo perguntar Quo racional isso?). Formulaes tais como aquela no texto no implicam que o aparato conceitual do qual estou falando torne-se inacessvel se um sujeito mostra menos do que uma racionalidade perfeita.

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    Veritas, v. 58, n. 3, set./dez. 2013, p. 545-566 561

    Frege famoso por queixar-se do psicologismo na lgica. O seu ponto que o conceito de, digamos, inferncia dedutiva est disponvel somente dentro de uma estrutura normativa e uma investigao que se restrinja a transies que mentes fazem regularmente, sem a estrutura normativa da lgica, corretamente concebida, no vai to longe ao ponto de tornar a inferncia dedutiva visvel. Porm, o pensamento no est limitado lgica. O ataque de Frege ao psicologismo uma maneira de expressar a verso generalizada do ponto de Sellars, com o qual tenho trabalhado neste ensaio. (A correspondncia no de surpreender, tendo em vista o quo importante Kant para ambos). J no caso lgico, no s a ideia de inferncia dedutiva que est disponvel apenas dentro de uma investigao normativamente estruturada; a ideia mesma do em que inferncias dedutivas comeam e resultam crenas somente faz sentido dentro do contexto normativo que lgicos psicologistas negam a si prprios.

    Agora, a concepo de Millikan de uma mente intacta psicologista no sentido generalizado; sustenta ter estados mentais e operaes como o seu tpico, apesar do tpico no ser concebido como estruturado dentro de um espao de razes sui generis. No deveramos ser enganados, aqui, pela sua expresso racionalidade mecnica. Quando a maquinaria na cabea est em boa ordem de trabalho, isto no significa que os seus estados e as suas mudanas de estado esto relacionados pelo tipo de relao que constitui o espao das razes, assim como no o esto estados e mudanas de estado em, digamos, um rim saudvel. Essa apenas uma maneira de apresentar o prprio ponto de Millikan. A racionalidade mecnica (assim chamada) no pode assegurar a racionalidade semntica, porm a racionalidade semntica que estrutura o espao das razes28.

    Uma concepo psicologista do mental no um contexto promissor no qual procurar por aquilo que Frege, mais do que ningum, pode ter desejado da noo de sentido. No surpreende que o seu pensamento

    28 O ponto o mesmo que aquele que Dennett apresenta ao dizer que o crebro [] apenas um motor sinttico; cf. DENNETT, Daniel. The Intentional Stance, p. 61. porque isso uma maneira de apresentar o prprio pensamento de Millikan que eu posso classificar o seu naturalismo sobre a mente intacta como um caso de naturalismo restritivo em vez de liberal. Ela argumenta que as cincias biolgicas, incluindo a fisiologia e a psicologia, so distinguidas das cincias fsicas por seu interesse no em ocorrncias legalides [], mas em ocorrncias propriamente biolgicas; cf. MILLIKAN, Ruth Garrett. White Queen Psychology, p. 362. Porm, isso no remove o biolgico, como ela o concebe, daquilo que introduzi como sendo o reino da lei: simplesmente as leis relevantes so subscritas por consideraes sobre funes apropriadas, ao invs de indutivamente baseadas naquilo que de fato ocorre. Ns ainda temos o contraste com o espao das razes.

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    562 Veritas, v. 58, n. 3, set./dez. 2013, p. 545-566

    se mostre to insatisfatrio. Para Frege, apreender um sentido (singular) deveria ser simplesmente o estar tendo uma Bedeutung em mente (sob um modo de apresentao) uma noo que funciona apenas na estrutura da racionalidade semntica. Millikan considera a introduo do sentido como uma ferramenta para caracterizar os mecanismos internos de ter a mente em objetos29. Ela corretamente conclui que apreender um sentido, assim interpretado, no pode ser o que Frege quer que seja, mas ela no v que isso pode depor contra a interpretao.

    Esse um ponto cego. Penso que equivale a no ver a possibilidade de um naturalismo liberal. O lugar prprio ideia de apreender sentidos est em descrever padres em nossas vidas nossas vidas mentais, nesse caso , que so inteligveis somente em termos das relaes que estruturam o espao das razes. Essa padronizao envolve racionalidade genuna, no apenas racionalidade mecnica (assim chamada). O naturalismo liberal no precisa nada mais, para fazer a ideia de apreender sentidos no-problemtica, do que uma insistncia perfeitamente razovel em que tais padres realmente moldam as nossas vidas.

    Se algum recusa tomar a noo de sentido como uma ferramenta para caracterizar o mecanismo interno que subjaz ao ato de ter a mente em objetos30, Millikan identifica nisto um compromisso com a ideia de que, como ela o expressa, significados movem a mente diretamente31. O aspecto assustador disso aquele dos para-mecanismos cartesianos. Ela recua a uma busca neocartesiana por mecanismos regulares e supe que Frege tenha estado atrs deles tambm, embora considere a sua tentativa ineficaz com razo, dada a sua interpretao do pensamento de Frege. Porm, o pensamento de Frege bem diferente. Ele envolve, caso se queira insistir, o pensamento de que significados movem a mente diretamente, mas de uma forma que no de modo algum assustadora. A ideia de uma mente sendo movida por significados envolve uma metfora do espao lgico do entendimento mecnico, mas uma ideia cujo funcionamento precisa ser compreendido no contrastante espao das razes. Tentar tomar a metfora literalmente uma forma do equvoco cartesiano bsico.

    29 Cf. uma passagem extraordinria in: MILLIKAN, Ruth Garrett. Perceptual Content and Fregean Myth, Mind, 100 (1991), p. 442, na qual ela considera a ideia de apreender sentidos como um caso de postular intermedirios, com a pretenso de teorizar sobre a natureza subjacente do veculo do pensamento.

    30 Talvez expressando ceticismo sobre se deve haver qualquer tal mecanismo interno. Considere, por exemplo, os comentrios notrios de Wittgenstein sobre o preconceito do paralelismo psicolgico; cf. WITTGENSTEIN, Ludwig. Zettel. Oxford: Blackwell, 1967, 611, bem como 608 e seguintes.

    31 Cf. MILLIKAN, Ruth Garrett. Perceptual Content and Fregean Myth, p. 442.

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    Veritas, v. 58, n. 3, set./dez. 2013, p. 545-566 563

    9. Qual motivo h para aceitar que seja um equvoco? A posio de Millikan bastante sugestiva aqui. Como o cartesianismo ordinrio, ela apresenta uma ameaa a uma concepo do senso-comum de como pensar as coisas.

    O que aquilo que pensa? Pode-se supor que deveria ser aquilo que Millikan chama a mente intacta. Porm, as atividades da mente intacta como Millikan a concebe no equivalem ao pensar. Digo isso apenas para reafirmar o seu prprio ponto de que as atividades dessa mente exemplificam somente a racionalidade mecnica, e no a racionalidade semntica.

    O que que exercita a racionalidade semntica? A resposta de Millikan a essa questo empurra os limites relevantes para alm daquele ao redor da mente intacta, fora da fronteira que cerca o animal cujo comportamento controla, para abranger um sistema que combina a mente intacta com condies no meio-ambiente do animal. A racionalidade [] uma norma biolgica produzida em um sistema cabea-mundo, integrado sob condies biologicamente ideais32. Porm, o externalismo grotesco, se implicar que exercitar a racionalidade semntica for uma atividade de um sistema cabea-mundo como se o meio-ambiente daquilo que ns ordinariamente concebemos como pensadores fosse parcialmente responsvel por executar o pensamento que executado. O meio-ambiente parcialmente responsvel por existir uma possibilidade de realizar um pensamento. Porm, o pensamento realizado por algo que vive no meio-ambiente, o que inclui o pensar sobre ele. Esse pedao de genuna sanidade obscurecido pela preocupao de Millikan com os mecanismos do pensamento (com o como a racionalidade produzida). Se concebermos o animal como um mecanismo complexo, o que temos em vista no uma realizao da racionalidade semntica, assim como tambm no o a sua maquinaria interna de controle, e agora parece como se nada menos do que um sistema cabea-mundo fosse suficiente33. Se a nica orientao intelectual respeitvel em relao racionalidade for a investigao sobre como essa produzida em um mecanismo, perdemos o controle da racionalidade como algo exercido em atividades de um animal.

    32 Cf. MILLIKAN, Ruth Garrett. White Queen Psychology, p. 280.33 uma dificuldade que o sistema cabea-mundo seja, ele prprio, somente um motor

    sinttico? Millikan tem de esperar que, se ns o descrevermos de uma maneira que seja adequadamente organizada em termos de funes biolgicas, ns o estaremos descrevendo de tal maneira que o revele como racionalidade genuinamente instanciada como um motor semntico. Isso me soa como uma fantasia, mas no preciso substanciar tal impresso: o meu ponto presente o de que mesmo que ns concedamos Millikan o que ela tem de desejar, isso no produz uma resposta satisfatria para a questo O que que pensa (o que que exercita a racionalidade semntica)?.

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    A mente intacta de Millikan a contraparte res cogitans cartesiana. H uma diferena; Millikan d-se conta de que a sua contraparte no pode realmente ser uma res cogitans, embora ela ainda a chame de a mente perversamente, pode-se pensar, j que no faz o que mentes supostamente fazem, a saber, pensar (exercitar a racionalidade semntica). Esse o resultado de uma troca familiar; o preo de descartar o imaterialismo cartesiano, enquanto se permanece no interior do naturalismo restritivo, o de que a parte que se escolheu da natureza no mais especial o suficiente para ser creditada com poderes de pensamento34. Porm, a concepo de Millikan, apesar de toda a sua imunidade ao imaterialismo, como a concepo cartesiana original, ao ameaar a crena s em que a res cogitans tambm uma res dormiens, uma res ambulans, e assim por diante. A mente intacta de Millikan no exercita racionalidade, e o sistema cabea-mundo, que supostamente exercita a racionalidade, no a coisa que dorme e caminha. O animal racional no encontra lugar no quadro.

    Devidamente compreendida, a afirmao de que as operaes da mente intacta incluem direcionarem-se a objetos, para o qual Millikan no consegue espao, perfeitamente aceitvel; uma maneira de dizer que o animal racional que pensa. De forma alguma denegrimos a realidade do mental, se dissermos que a palavra mente rotula uma coleo de capacidades e propenses possudas por um ser com mente. uma receita para um desastre intelectual assumir que o que queremos dizer com a mente tem de ser algo mais substancial do que isso, porm menos do que o animal racional ele prprio: um rgo no qual o pensamento que creditamos ao animal, frouxa ou derivativamente segundo essa viso, ocorre35. Esse o pecado original da filosofia cartesiana, no uma redeno substituir o para-rgo postulado pelo prprio Descartes por um rgo regular, algo que uma biologia contempornea mais sofisticada possa conter36. Certamente, h um rgo relevante, o crebro, e nada do

    34 John Searle nico entre os neocartesianos contemporneos em pensar que pode tanto des-imaterializar a res cogitans cartesiana quanto manter os seus poderes extraordinrios.

    35 Cf. McDOWELL, John. Putnam on Mind and Meaning. In McDOWELL, J. Meaning, Knowledge and Reality. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1998, p. 275-291.

    36 O pensamento de Dennett mostra essa mcula parcialmente. Ele endossa o ataque de Millikan a Frege. Considere-se a passagem de DENNETT, Daniel. Consciousness Explained, p. 41: O dualismo, a ideia de que, se o crebro no pode ser uma coisa pensante, ento uma coisa pensante no pode ser um crebro, tentadora por uma variedade de razes, mas devemos resistir tentao []. De alguma forma, o crebro tem de ser a mente []. Porm, um crebro no pode ser uma coisa pensante (, como o prprio Dennett comenta, apenas um motor sinttico). O dualismo no reside no pensamento perfeitamente correto de que o crebro no uma coisa pensante, mas

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    Veritas, v. 58, n. 3, set./dez. 2013, p. 545-566 565

    que eu disse lana dvida sobre a investigao de como funciona. Porm, sob pena de perder o controle de ns prprios como coisas pensantes, temos de distinguir o investigar a mecnica de, digamos, ter a mente em um objeto do investigar o que seja ter a mente em um objeto.

    10. O meu tpico neste ensaio foi um efeito cultural da maturao da cincia moderna. A clarificao associada do modo correspondente de inteligibilidade, que o separou do modo de inteligibilidade manifestado por situar coisas em um espao de razes, era, em si mesma, um avano intelectual inadequado. Porm, tenho insistido que h uma corrente na filosofia da mente, exemplificada tanto por Descartes como por escritos de contemporneos que pensam que esto totalmente emancipados de confuses cartesianas, que deveria ser vista como um subproduto txico de um estado de esprito o cientismo , tornada possvel somente por aquele avano intelectual.

    Referncias

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    em postular que algo imaterial seja a coisa pensante que o crebro no , em vez de perceber que a coisa pensante o animal racional. Dennett pode ficar confortvel com o pensamento de que o crebro tem de ser a mente, em associao com a sua prpria conscincia de que o crebro apenas um motor sinttico, apenas porque ele pensa que, no sentido em que o crebro no realmente uma coisa pensante, nada o : o status de possuidor de estados intencionais conferido por adoo da postura intencional a ele, e isso no mais correto para animais do que para crebros, ou mesmo termostatos. Mas, essa uma adio desnecessria ao insight real incorporado na invocao da postura intencional. Animais racionais genuinamente so motores semnticos. ( irrelevante afirmar que a intencionalidade de animais racionais seja um produto da evoluo, um resultado causal da intencionalidade por parte da Me Natureza; cf. DENNETT, Daniel. The Intentional Stance, p. 287-321). A mcula detectvel: muito do material em digamos, Consciousness Explained, esclarecedor independentemente do pensamento neocartesiano de Dennett de que o crebro tem de ser a mente. Este faz uma contribuio ao estudo dos mecanismos da conscincia em um sentido aceitvel, no similar ao sentido em que Millikan supe que Frege tenha estado preocupado com os mecanismos da intencionalidade.

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    566 Veritas, v. 58, n. 3, set./dez. 2013, p. 545-566

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    Data de recebimento: 19/06/2013Data de aceite: 10/07/2013