17356618 O Falcao Maltes Dashiell Hammett

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    O Falco Malts [Dashiell Hammett]

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    Dashiell Hammett

    O falco malts

    CRCULO DO LIVRO S.A.Caixa postal 7413 01051 So Paulo, BrasilEdio integral

    Ttulo do original: "The maltese falcon"Copyright 1929,1930, Alfred A. Knopf, Inc., renovadoem 1957 por Dashiell Hammett

    Traduo: Cndida Villalva Capa: layout de Natanael Longo de Oliveira e foto do filme "Relquia maca-

    bra", da Warner

    Licena editorial para o Crculo do Livro por cortesia da Editora Brasiliense S.A. e Abril S.A. Cultural

    Venda permitida apenas aos scios do CrculoComposto pela Linoart Ltda. Impresso e encadernado pelo Crculo do Livro S.A.2468 10 97531 87 89 90 88 86

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    1 SPADE & ARCHER

    O maxilar de Samuel Spade era longo e ossudo, e seu queixo, um V proeminentesob o V mais flexvel da boca. As narinas curvavam-se para trs, formando um outroV menor. Os olhos, amarelo-pardos, eram horizontais. O motivo V era retomado por

    espessas sobrancelhas, que saam de duas rugas gmeas sobre o nariz adunco e seerguiam na parte externa, e o cabelo, castanho-claro, descia das tmporas altas eachatadas, em ponta sobre a testa. Dava a impresso um tanto divertida de um de-mnio loiro.

    Ento, meu bem? disse ele, dirigindo-se a Effie Perine.Effie Perine era uma moa esbelta, morena de sol, cujo vestido de l escura e

    leve a envolvia produzindo um efeito melanclico. Tinha olhos castanhos e traves-sos, num rosto vivo e juvenil.

    Acabou de fechar a porta, encostou-se a ela, e disse: Est a uma moa sua procura. Chama-se Wonderly. Uma cliente? Acho que sim. De todo jeito, ter que v-la: ela uma graa. Faa-a entrar, meu bem disse Spade. Faa-a entrar.Effie Perine abriu de novo a porta, recuando para a sala externa sem tirar a mo

    do trinco, enquanto dizia: Faa o favor de entrar, srta. Wonderly.Uma voz respondeu "Muito obrigada", to suavemente que apenas a clara pro-

    nncia tornava as palavras inteligveis, e uma jovem transps a porta. Caminhavadevagar, com passos hesitantes, fixando em Spade uns olhos azul-cobalto que semostravam ao mesmo tempo tmidos e perscrutadores. Era alta e de uma esbeltezflexvel, sem angulosidades. Tinha o talhe ereto e o colo alteado, pernas longas,mos e ps estreitos. Usava dois tons de azul, escolhidos de acordo com os olhos. Ocabelo, caindo em anis sob o chapu azul, era de um vermelho sombrio, e os lbioscheios, de um vermelho mais vivo. Dentes alvos brilhavam na meia-lua formada pe-lo seu sorriso tmido.

    Spade levantou-se, cumprimentando-a e indicando com a mo de dedos grossosa cadeira de braos feita de carvalho, ao lado da sua secretria. Ele tinha bem ummetro e noventa de altura. A pronunciada curvatura dos ombros fazia seu corpo, delargura igual tanto na frente como dos lados, parecer quase cmico e impedia o pa-let cinzento, bem passado, de cair direito.

    A srta. Wonderly murmurou suavemente: Muito obrigada e sentou-se nabeirada do assento de madeira. Spade afundou na cadeira giratria, deu uma voltapara colocar-se frente moa e sorriu com polidez, quase sem abrir os lbios. Todosos VV do seu rosto se alongaram. Atravs da porta fechada, veio o tip-tap das teclase o leve som da campainha, acompanhando o rudo abafado da mquina de Effie Pe-rine. Num escritrio prximo, um motor eltrico vibrou surdamente. Na secretriade Spade, um cigarro amassado fumegava num cinzeiro de lato, cheio de pontas de

    cigarros. Montculos de cinza salpicavam a superfcie amarela da secretria, o mata-borro verde e os papis ali existentes. Uma janela de cortinas amarelo-claras, a-berta uns trinta centmetros, deixava penetrar, vinda do ptio, uma corrente de arque recendia levemente a amonaco. Sobre a secretria, as cinzas se agitaram e fo-ram arrastadas pela corrente.

    A srta. Wonderly observava as partculas de cinza se agitarem e serem levadaspelo vento. Seus olhos mostravam-se inquietos. Ela estava sentada bem na beiradada cadeira, com os ps apoiados no cho, como se estivesse prestes a se levantar.As mos, caladas com luvas escuras, apertavam sobre o colo uma bolsa em forma-to de carteira, tambm escura. Spade recostou-se na cadeira, e perguntou: Emque lhe posso ser til, srta. Wonderly? Ela reteve a respirao e dirigiu-lhe o olhar.Depois tomou flego e disse precipitadamente: O senhor poderia . . . ? Eu pen-

    sei... eu... isto . . . Mordeu ento o lbio inferior com os dentes brilhantes, e ficoucalada. Apenas os olhos escuros falavam agora, suplicando.

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    Spade sorriu e fez um gesto de aquiescncia com a cabea, como se a tivessecompreendido, mas com ar satisfeito, como se no fosse nada de importante, e dis-se:

    Se a senhora me contar o que h, desde o comeo,saberemos o que preciso fazer. melhor comear. Bem do incio. Foi em Nova York. Sim. No sei onde ela o encontrou. Quero dizer, no sei em que lugar de Nova

    York. Ela cinco anos mais moa que eu tem apenas dezessete anos , e nossasamizades no eram as mesmas. Como irms acho que nunca fomos unidas comodevamos ser. Mame e papai esto na Europa. Isso os matar. preciso que eu afaa voltar, antes que eles venham.

    Sim disse ele. Eles voltam dia 1. do prximo ms.Os olhos de Spade brilharam. Temos ento duas semanas. Eu no sabia o que ela tinha feito, at chegar a sua carta. Fiquei louca.

    Seus lbios tremeram. As mos amassavam a bolsa sobre o colo. Receava muitoque ela tivesse feito qualquer coisa assim, para procurar a polcia, mas o medo deque lhe tivesse sucedido algum mal me impedia de ir dar parte. No havia ningum

    a quem eu pudesse recorrer, para pedir conselho. No sabia o que fazer. O que eupodia fazer?

    Nada, realmente disse Spade. Mas ento chegou a carta dela? Chegou, e eu lhe mandei um telegrama pedindo-lhe que voltasse. Enviei-o pa-

    ra a posta restante daqui. Foi o nico endereo que ela me deu. Esperei uma sema-na inteira, mas no veio resposta, nem outra notcia. E a volta de mame e papaicada vez mais prxima. Ento vim a San Francisco para busc-la. Escrevi-lhe dizen-do que vinha. No devia ter feito isso, no?

    Talvez no. Nem sempre fcil saber como proceder. E encontrou-a? No. Escrevi-lhe dizendo que iria para o St. Mark, e pedi-lhe que viesse falar

    comigo, mesmo que no tivesse a inteno de voltar em minha companhia. Mas elano veio. Esperei trs dias, e ela nem veio nem me mandou nenhum recado.

    Spade inclinou a loira cabea satnica em sinal de assentimento, franziu as so-brancelhas, demonstrando simpatia, e apertou os lbios. Era horrvel disse a srta. Wonderly, tentando sorrir. Eu no podia ficar

    parada assim, esperando, sem saber o que lhe tinha acontecido, o que podia estarlhe acontecendo. Abandonou o esforo de sorrir. Depois teve um estremecimento. O nico endereo que tinha era o da posta restante. Escrevi-lhe outra carta, e on-tem tarde fui ao correio. Esperei l at depois de escurecer, mas no a vi. Volteiesta manh e tambm no vi Corina, mas vi Floyd Thursby.

    Spade aquiesceu de novo. Suas sobrancelhas se descerraram, dando lugar a umolhar atento e penetrante.

    Ele no quis me dizer onde Corina estava continuou ela, desanimada. No quis me contar nada, exceto que ela estava bem, e se sentia feliz. Mas como

    posso acreditar nele? Ele me diria isso de qualquer jeito, no verdade? Decerto concordou Spade. Mas podia ser verdade. Espero que seja. Espero que assim seja! exclamou. Mas no posso voltar

    para casa desse jeito, sem t-la visto, sem ter-lhe falado, nem mesmo pelo telefone.Ele no quis me levar aonde Corina est. Disse que ela no quer me ver. No possoacreditar nisso. Prometeu contar-lhe que tinha me visto, e traz-la para encontrar-se comigo (se ela quiser vir) esta noite, no hotel. Disse que sabia que ela no haviade querer. Prometeu vir ele mesmo, se ela no quisesse. Ele...

    Interrompeu-se, levando, assustada, a mo boca, ao se abrir a porta.O homem que abrira a porta deu um passo para dentro e disse: Oh, desculpe-

    me! Tirou apressadamente o chapu da cabea e retrocedeu. No faz mal, Miles disse Spade. Entre. Srta. Wonderly, este o meu s-

    cio, sr. Archer.Miles Archer entrou de novo no escritrio, fechando a porta atrs de si. Inclinou

    a cabea e sorriu para a srta. Wonderly, fazendo um vago gesto de polidez com ochapu na mo. Era um homem de estatura mediana, de slida compleio, ombros

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    largos, pescoo grosso, com um rosto jovial e vermelho, de queixo forte, e algunsfios brancos no cabelo cortado rente. Aparentemente, havia passado tanto dos qua-renta quanto Spade dos trinta.

    Spade informou: A irm da srta. Wonderly fugiu de Nova York com um rapazchamado Floyd Thursby. Eles esto aqui. A srta. Wonderly viu Thursby e tem umaentrevista marcada com ele para esta noite. Talvez ele traga a irm dela. As proba-bilidades so em contrrio. A srta. Wonderly quer que encontremos sua irm e aafastemos dele, e que a levemos para casa. Olhou para a srta. Wonderly.

    isso? disse ela com voz indistinta. Seu embarao, que fora gradualmente afas-

    tado pelos insinuantes sorrisos, acenos de cabea e encorajamento de Spade, dei-xava-a vermelha de novo. Tinha os olhos fixos na bolsa sobre o colo, e espetava ne-la, nervosamente, o dedo enluvado.

    Spade piscou para o scio. Miles Archer adiantou-se e ficou de p a um canto dasecretria. Enquanto a moa fitava a bolsa, ele a observava. Seus olhinhos casta-nhos correram sobre ela o olhar audacioso e avaliador, desde o rosto inclinado atos ps, e voltaram de novo ao rosto. Ele olhou ento para Spade e fez com a bocaum trejeito de quem d um silencioso assobio de apreciao.

    Spade levantou dois dedos do brao da cadeira num breve gesto de advertncia

    e disse: No teramos com isso nenhum aborrecimento. simplesmente questode ter um homem no hotel esta noite para segui-lo quando ele sair, e continuar se-guindo-o at que ele nos conduza a sua irm. Se ela vier com ele, e a senhorita con-seguir convenc-la a voltar para casa, tanto melhor. Caso contrrio, se ela no qui-ser deix-lo depois de a termos encontrado, bem, acharemos um jeito de o conse-guir.

    Archer disse: . Sua voz era pesada, rude.A srta. Wonderly levantou rapidamente o olhar para Spade, enrugando a testa,

    entre as sobrancelhas. Oh, mas precisam ter cuidado! Sua voz tremia um pou-co, e os lbios formulavam as palavras em arrancos nervosos. Tenho um medohorrvel dele, do que ele poderia fazer. Ela to moa, e t-la trazido de Nova Yorkpara c to grave... Ele no poderia. . . No poderia fazer. .. fazer-lhe qualquer

    coisa?Spade sorriu, dando palmadinhas nos braos da cadeira. Deixe isso conosco. Ns saberemos lidar com ele. Mas poderia? insistiu ela. H sempre alguma probabilidade concordou Spade judiciosamente. Mas

    pode ter confiana em ns: tomaremos conta desse assunto. Eu confio nos senhores disse ela com veemncia , mas quero que saibam

    que ele um homem perigoso. Acredito seriamente que nada o faria retroceder. Nocreio que hesitasse... em matar Corina, se achasse que isso podia salv-lo. No a-cha?

    A senhorita no o ameaou, no? Disse-lhe que s queria t-la de novo em casa antes que mame e papai vol-

    tassem, a fim de que no soubessem o que ela tinha feito. Prometi nunca dizer-lhesuma palavra sobre isso se ele me ajudasse; mas, se ele no o fizesse, papai sem d-vida providenciaria para que fosse punido. Eu... acho, entretanto, que ele no acre-ditou em mim.

    Ele poderia remediar o mal casando-se com ela? perguntou Archer.A moa corou, e respondeu com voz confusa: Ele tem mulher e trs filhos na Inglaterra. Corina escreveu-me dizendo isso,

    para explicar por que fugira em sua companhia. Eles costumam ter mesmo disse Spade , s que nem sempre na Inglater-

    ra. Inclinou-se para a frente, a fim de alcanar o lpis e o bloco de papel. Qual a aparncia dele?

    Ah, tem uns trinta e cinco anos, talvez, to alto como o senhor, e, ou more-no de natureza, ou queimado de sol. Seu cabelo tambm escuro e as sobrancelhas,espessas. Tem um modo de falar mais ou menos alto, agressivo, e um gnio nervo-so, irritvel. D a impresso de ser. . . violento.

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    Spade, rabiscando sobre o bloco, perguntou, sem levantar a vista: E a cor dosolhos?

    So azul-cinzentos e midos, mas cruis. E. . . ah, sim, tem uma profunda ci-catriz no queixo.

    Magro, regular, ou corpulento? Muito forte. Tem ombros largos e conserva-se ereto, no que se poderia cha-

    mar um porte decididamente militar. Usava um terno cinzento e chapu da mesmacor, quando o vi esta manh.

    Qual o seu meio de vida? perguntou Spade, enquanto descansava o lpis. No sei. No tenho a mnima idia. A que horas ele deve ir v-la? Depois das oito. Muito bem, srta. Wonderly, teremos um homeml. Facilitaria se Sr. Spade, poderia ser o senhor ou o sr. Archer? Fez um gesto de splica com ambas as mos. Um dos senhores poderia cuidar

    desse assunto pessoalmente? No quero dizer que o homem que os senhores man-dassem no fosse capaz, mas... oh! Tenho tanto medo do que poderia acontecer aCorina! Tenho medo dele. Seria possvel? Eu estaria... Eu me sentiria mais em segu-

    rana, realmente. Abriu a bolsa com dedos nervosos e ps duas notas de cem d-lares sobre a secretria de Spade. Isto chega?

    Sim disse Archer , e eu mesmo me encarregarei disso.A srta. Wonderly ps-se em p, estendendo impulsivamente a mo. Muito o-

    brigada! Muito obrigada! exclamou, e ento deu a mo a Spade, repetindo: O-brigada!

    No por isso disse Spade. Tambm estou satisfeito. A senhorita pode nosajudar, se puder se encontrar com Thursby embaixo, ou ento se se mostrar no sa-guo em sua companhia por algum tempo.

    Farei isso prometeu ela, e agradeceu-lhe de novo. E no me procure advertiu Archer. Eu a estarei vendo.Spade acompanhou a srta. Wonderly at a porta do corredor. Quando voltou

    secretria, Archer inclinou a cabea em direo s notas de cem dlares e rosnou,complacentemente: Elas so bem boas. Pegou uma, dobrou-a e enfiou-a numdos bolsos. E tm irms naquela bolsa.

    Spade embolsou a outra nota antes de se sentar. Ento disse: Bem, no d emcima. O que pensa dela?

    Deliciosa! E logo voc vem me dizer para no dar em cima dela? Archer deuuma gargalhada forada. Talvez voc a tenha visto antes, Sam, mas eu falei pri-meiro. Ps as mos nos bolsos das calas e balanou-se nos calcanhares.

    Voc vai fazer o diabo com ela, sem dvida sorriu Spade com arrogncia,mostrando a extremidade dos dentes posteriores. Voc esperto, sim, se . Ecomeou a fazer um cigarro.

    2 MORTE NO NEVOEIRO

    A campainha do telefone tocou na escurido. Depois de tocar trs vezes, as mo-las da cama rangeram, uns dedos tatearam na madeira, alguma coisa pequena edura caiu no cho atapetado, as molas rangeram de novo, e uma voz de homem dis-se: Al. . . Sim, ele mesmo. . . Morto? . .. Sim. . . Quinze minutos. Obrigado.

    Ouviu-se o estalido de uma chave, e um lustre branco, pendurado ao centro doteto por trs correntes douradas, encheu de luz o quarto. Spade, descalo, vestidocom um pijama listado de verde e branco, sentou-se na borda da cama. Olhou, car-rancudo, o telefone sobre a mesa, enquanto pegava ao lado dele um mao de papelpardo e uma bolsa de Buli Durham. Um vento frio e mido soprou atravs das duas

    janelas abertas, trazendo consigo uma meia dzia de vezes por minuto o lamentomelanclico da sereia de Alcatraz. Os ponteiros de um despertador de metal, mal

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    equilibrado sobre um canto dos Cleb re s c aso s c r im i n a i s da Am r i ca , de Duke, mar-cavam duas horas e cinco minutos.

    Os dedos grossos de Spade fizeram um cigarro com deliberado cuidado, penei-rando uma quantidade certa de flocos escuros sobre o papel curvo e espalhando-os,para que ficassem iguais nas pontas, fazendo uma pequena presso no meio. Comos polegares, enrolou a margem interna para baixo e para cima, levantou-a sob amargem externa, enquanto os indicadores a prendiam por cima, e fez os polegares eos outros dedos escorregarem para as pontas cilndricas do papel a fim de mant-loplano. Enquanto lambia a extremidade com a lngua, apertou a ponta com o indica-dor e o polegar esquerdo e alisou a beira mida com o polegar e indicador direitos.Depois, ainda com a mo direita, torceu uma ponta e levou a outra at a boca. Apa-nhou o isqueiro niquelado e forrado de couro de porco que tinha cado no cho, a-cendeu-o e, com o cigarro aceso no canto da boca, levantou-se. Tirou o pijama. Alisa espessura dos braos, das pernas e do corpo, e a curvatura dos seus grandesombros arredondados, tornaram seu corpo semelhante ao de um urso. Parecia umurso sem plo: o peito no tinha plos, e a pele era macia e rosada como a de umacriana. Cocou a nuca e comeou a se vestir. Ps uma camiseta branca, meias cinza,ligas pretas e sapatos marrom-escuros. Quando acabou de amarrar os sapatos, pe-gou o telefone, chamou Graystone 4500 e pediu um txi. Vestiu ento uma camisa

    branca de listas verdes, ps um colarinho branco, mole, gravata verde, o terno cin-zento que usara nesse dia, um sobretudo folgado de t w e e d e chapu cinza-escuro. Acampainha da porta tocou quando ele punha o fumo, as chaves e o dinheiro nos bol-sos.

    Onde a Bush Street atravessa a Stockton, antes de descer em ladeira para oChinatown, Spade pagou a corrida e deixou o txi.' O nevoeiro de San Francisco, fi-no, pegajoso e penetrante, nublava a rua. Alguns metros alm do ponto em queSpade despachou o txi, um pequeno grupo de homens olhava em direo a um be-co. Duas mulheres e um homem estavam do lado oposto da Bush Street, olhandotambm para a viela. Viam-se rostos nas janelas.

    Spade atravessou o passeio entre balaustradas guarnecidas de grades de ferroque abriam sobre horrveis degraus vazios, chegou ao parapeito e, descansando as

    mos na muralha mida, olhou para a Stockton Street, embaixo. Um automvel ir-rompeu do tnel abaixo dele com um ronco sibilante, como se tivesse sido impelidopara fora, e desapareceu. Prximo boca do tnel, um homem estava acocoradosobre os calcanhares, diante de um c a r t a z com anncios de um filme e de uma mar-ca de gasolina que cobria o espao entre duas casas de negcios. A cabea do ho-mem estava inclinada quase at o passeio, de maneira a permitir que ele olhassepor baixo do cartaz. Uma das mos aberta sobre a calada, a outra, agarrada mol-dura verde do cartaz, mantinham-no nessa grotesca posio. Outros dois homensconservavam-se a um canto do cartaz, espreitando desajeitadamente atravs dospoucos centmetros de espao entre este e o prdio dessa ponta. O edifcio do ladooposto tinha uma parede cinza-clara que dominava de cima todo o conjunto atrs docartaz. Tremulavam clares na parede lateral, e sombras de homens moviam-se en-

    tre o piscar das luzes.Spade deixou o parapeito e subiu a Bush Street em direo ao beco onde os ho-mens estavam agrupados. Um guarda uniformizado, mascando chiclete, sob umaplaca esmaltada que ostentava a inscrio "Burritt St." em branco sobre azul-escuro, avanou um brao e perguntou:

    Que quer aqui? Sou Sam Spade. Tom Polhaus me telefonou. Ah, sim. O brao do policial foi baixado. No o reconheci, a princpio. Bem, eles esto ali atrs. Apontou um polegar

    por sobre o ombro. Que droga, hem? concordou Spade, e subiu o beco. A meio caminho, no longe da entrada,

    estava postada uma ambulncia escura. Atrs da ambulncia, do lado esquerdo, obeco estava impedido por uma cerca que dava pela cintura, restos de um soalhorstico pregado em sentido horizontal. Da cerca, o solo escuro caa numa descidangreme at o cartaz da Stockton Street, embaixo. A travessa superior da cerca,numa extenso de trs metros, tinha sido arrancada do mouro em uma das extre-

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    midades, e balanava-se, pendente, da outra. Uns cinco metros ladeira abaixo, esta-va fincada uma pedra chata. Na depresso entre a pedra e a ladeira, Miles Archer

    jazia de costas. Dois homens estavam junto dele. Um mantinha sobre o morto a luzde uma lanterna eltrica. Outros homens, munidos de lanternas, subiam desciam aladeira.

    Um deles saudou Spade: Ol, Sam! e subiu para o beco, e sua sombra iapercorrendo a ladeira sua frente. Era alto e barrigudo, de olhos pequenos e argu-tos, lbios grossos e faces morenas e mal barbeadas. Seus sapatos, joelhos, mos equeixo estavam sujos de lama escura. Achei que voc havia de querer v-lo antesde o levarmos disse,.. enquanto pulava a cerca.

    Obrigado, Tom respondeu Spade. Que foi que aconteceu? Ps um coto-velo num mouro da cerca e olhou para os homens, embaixo, respondendo aoscumprimentos que lhe dirigiam.

    Tom Polhaus apontou para o lado esquerdo do peito com o dedo sujo. Foi a-certado. . . com isto. Tirou um revlver grosso do bolso do palet e estendeu-o aSpade. Havia lama entranhada nas depresses da superfcie. Um Webley. Ingls,no ?

    Spade tirou o cotovelo do mouro da cerca e inclinou-;e para olhar a arma, massem toc-la. Sim, revlver automtico Webley-Fosbery. isso. Um 38, de oito ti-

    ros. No os fabricam mais. Quantos tiros foram deflagrados? Uma bala. Tom apontou de novo para o peito. Deve ter morrido quando

    quebrou a cerca. Levantou o revlver enlameado. J viu isto antes?Spade fez que sim. Tenho visto alguns Webley-Fosberys disse, sem interes-

    se, e em seguida falou rapidamente: Ele foi alvejado aqui, no foi? Em p, ondevoc est, de costas para a cerca. O homem que atirou nele estava aqui. Deu avolta em frente de Tom e levantou a mo altura do peito, com o indicador estendi-do. Ele atira e Miles cai para trs, arrancando o alto da cerca, passando e rolandoat ficar preso pela pedra. isso?

    replicou Tom vagarosamente, cerrando as sobrancelhas. A detonaoqueimou-lhe o palet.

    Quem o achou?

    O ronda, Shilling. Vinha descendo a Bush, e, exatamente quando chegou aqui,um carro que dava a volta virou a luz dos faris para c e ele viu a cerca quebrada.Veio ento examin-la e achou-o.

    E quanto ao carro que estava dando a volta? Absolutamente nada, Sam. Shilling no lhe deu ateno, pois ainda no sabia

    de nenhuma irregularidade. Diz que ningum saiu daqui enquanto ele desceu daPowell, seno ele teria visto. O nico caminho afora esse seria sob o cartaz, naStockton. Ningum veio por l. O nevoeiro deixou o cho mido, e as nicas marcasesto onde Miles escorregou e onde esta arma rolou.

    Ningum ouviu o tiro? Pelo amor de Deus, Sam, ns acabamos de chegar h pouco! Algum deve t-

    lo ouvido, mas ainda no encontramos esse algum. Voltou-se e ps uma perna

    sobre a cerca. Quer vir dar-lhe uma olhada, antes que ele seja removido? No respondeu Spade.Tom parou com uma perna de cada lado da cerca e olhou para trs, para Spade,

    com os olhos pequenos cheios de surpresa.Spade: Voc o viu. Voc viu tudo o que eu poderia ter visto.Tom, olhando ainda para Spade, assentiu com a cabea como se estivesse em

    dvida, e recolheu a perna de sobre a cerca. A arma estava oculta no quadril disse. No fora usada. O palet estava abotoado. Tinha cento e sessenta e tantosmangos nos bolsos. Ele estava trabalhando,

    Spade, aps um momento de hesitao, concordou.Tom perguntou: Que mais? Ele devia estar seguindo um homem chamado FloydThursby disse Spade, e descreveu Thursby de acordo com o que ouvira da sr-

    ta. Wonderly. Para qu?

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    Spade ps as mos nos bolsos do sobretudo e piscou os olhos sonolentos paraTom, que repetiu, impaciente:

    Para qu? Talvez fosse um ingls. No sei ao certo qual o seu jogo. Estvamos tentando

    descobrir-lhe a moradia. Spade sorriu vagamente, com ironia, e retirou a mo dobolso para bater de leve no ombro de Tom. No me aperte

    disse, e ps de novo a mo no bolso. Vou andando, para levar a notcia mulher de Miles. Voltou-se.

    Tom franziu a testa, abriu a boca, fechou-a sem dizer nada, pigarreou, desman-chou a carranca e comentou com uma seca delicadeza: duro, ser morto assim.Miles tinha seus defeitos, como todos ns, mas suponho que devesse ter tambmsuas qualidades.

    Acho que sim concordou Spade num tom totalmente inexpressivo, e saiu dobeco.

    Em uma farmcia que ficava aberta durante a noite, na esquina da Bush Streetcom a Taylor, Spade telefonou. Meu bem disse, um pouco depois de ter dado onmero , Miles recebeu um tiro. . . Sim, est morto. .. No, no fique nervosa. . .Sim. . . Voc ter de comunicar a Iva . . . No, de jeito nenhum. Voc que tem queir. . . Voc boazinha. . . E faa com que ela no v ao escritrio. Diga-lhe que irei

    v-la.. . hum.. . a qualquer hora. . . Sim, mas no me deixe amarrado a nenhumapromessa. . . isso a. Voc um anjo. At logo.

    O despertador de metal marcava trs e quarenta quando Spade acendeu de no-vo a luz do lustre. Deixou cair o chapu e o sobretudo no leito e dirigiu-se cozinha,voltando ao quarto com um copo e uma garrafa alta de Bacardi. Despejou uma dosee bebeu-a de p. Ps a garrafa e o copo sobre a mesa, sentou-se na beirada da ca-ma, de frente para eles, e enrolou um cigarro. Tinha bebido o terceiro copo de Ba-cardi e estava acendendo o quinto cigarro, quando a campainha da porta tocou. Osponteiros do despertador marcavam quatro e meia. Spade suspirou, levantou-se edirigiu-se ao telefone, junto porta do banheiro, onde apertou o boto que soltava

    o fecho da porta da rua. Ento resmungou: Diabos a levem e conservou-se car-rancudo junto ao telefone, com a respirao desigual, enquanto uma vermelhidoopaca lhe subia s faces.

    Veio do corredor o rudo raspante da porta do elevador, abrindo-se e fechando-se. Spade suspirou de novo e dirigiu-se porta. Passos silenciosos e pesados fize-ram-se ouvir fora, no cho atapetado, passos de dois homens. A fisionomia de Spa-de iluminou-se. Seus olhos perderam o aspecto cansado. Abriu a porta rapidamente. Al, Tom disse ao detetive alto e barrigudo, com quem estivera conversando naBurritt Street, e Al, tenente ao homem que estava ao lado de Tom. Entrem.

    Eles o cumprimentaram ao mesmo tempo, sem dizer nada, e entraram. Spadefechou a porta e introduziu-os no quarto. Tom sentou-se num canto do sof, juntos janelas. O tenente sentou-se em uma cadeira, ao lado da mesa. O tenente era um

    homem de compleio slida, com uma cabea redonda sob o cabelo grisalho, cor-tado curto, e um rosto quadrado atrs de um bigode tambm grisalho e curto. Tinhapregado na gravata um alfinete feito de uma moeda de ouro de cinco dlares, e, nalapela, o emblema de uma sociedade secreta, um pequeno naipe de ouros trabalha-do. Spade trouxe dois copos da cozinha e encheu-os, assim como o seu, de Bacardi,deu um a cada um dos visitantes, e sentou-se com o seu ao lado da cama. Sua fisio-nomia estava serena e indiferente. Levantou o copo e disse: Ao crime e bebeu-o.

    Tom esvaziou o copo, colocou-o no cho, ao lado dos ps, e limpou a boca com oindicador sujo de lama. Depois ficou de olhos fixos no p da cama, como se esta lherecordasse vagamente alguma coisa de que estivesse tentando se lembrar. O tenen-te olhou para o copo durante uns doze segundos, tomou um gole insignificante doseu contedo, e o ps sobre a mesa, junto ao cotovelo. Examinou o quarto com oolhar muito atento e voltou depois os olhos para Tom. Tom mexeu-se, indisposto, nosof, e perguntou sem levantar os olhos: Voc comunicou o que aconteceu mu-lher de Miles, Sam?

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    Spade fez: Hum-hum. Como ela recebeu a notcia?Spade sacudiu a cabea: No entendo de mulheres.Tom disse a meia voz: Aposto que no entende . . .O tenente ps as mos sobre os joelhos e inclinou-se a afrente. Seus olhos es-

    verdeados estavam cravados em Spade com uma fixidez particular, como se o seufoco fosse uma questo de mecnica, que pudesse ser mudado somente puxandouma alavanca ou apertando um boto. Que espcie de arma voc carrega? per-guntou.

    Nenhuma. No gosto de armas. Naturalmente, tenho algumas no escritrio. Gostaria de ver uma delas disse o tenente. Voc no ter por acaso alguma aqui? No. Tem certeza disso? Procure. Spade sorriu e fez um pequeno aceno com o copo vazio. Vire es-

    te negcio de cima para baixo, se quiser. No me importo... se tiverem uma ordemde busca.

    Tom protestou: Ora, v merda, Sam!Spade colocou o copo sobre a mesa e ficou em p, fitando o tenente. O que

    quer voc, Dundy? perguntou, numa voz dura e fria como o seu olhar.Os olhos do tenente Dundy tinham se movido de forma a conservar o seu foco

    sobre os de Spade. Apenas seus olhos tinham se movido. Tom mudou de posiooutra vez no sof, deu um profundo suspiro e resmungou em tom de queixa: Nsno estamos procurando encrenca, Sam.

    Spade, ignorando Tom, disse a Dundy: Bem, que quer voc? Fale claro. Quemvoc pensa que , para vir aqui tentar me espionar?

    Muito bem disse Dundy em tom grave , sente-se e oua. Eu me sento, ou fico de p, como me der na telha retrucou Spade sem se

    mover. Pelo amor de Deus, seja razovel pediu Tom. Qual a vantagem de termos

    uma rixa? Se voc quer saber por que no falamos claro, porque, quando lhe per-

    guntei quem era esse Thursby, voc quase me disse que no era da minha conta.Voc no pode nos tratar dessa forma, Sam. No direito, e isso no lhe trar ne-nhuma vantagem. Ns temos que fazer a nossa obrigao.

    O tenente Dundy ps-se em p, chegou bem perto de Spade e aproximou o rostoquadrado do rosto do seu interlocutor: Eu o preveni de que voc escorregariaqualquer dia destes disse.

    Spade fez um muxoxo de pouco-caso, erguendo as sobrancelhas. Todo mundoescorrega um dia replicou, com amabilidade zombeteira.

    E esse o seu caso.Spade sorriu e sacudiu a cabea. No, eu me sairei bem, obrigado. Parou de

    sorrir. Seu lbio superior, do lado direito, contraiu-se sobre o canino. Os olhos con-tinuaram apertados e injetados. A voz saiu profunda como a do tenente. No es-

    tou gostando disto. O que que vocs esto xeretando? Digam-me, ou saiam e medeixem ir para a cama. Quem Thursby? perguntou Dundy. Eu disse a Tom o que sabia a respeito dele. Voc disse muito pouco a Tom. Eu sabia muito pouco. Por que vocs o estavam seguindo? Eu no estava. Miles que estava, pela tima razo de termos um cliente que

    estava pagando bom dinheiro para que ele fosse seguido. Quem o cliente?A calma voltou de novo ao rosto e voz de Spade. Ele disse, em tom de censura:

    Vocs sabem que no posso lhes contar isso antes de ter falado a esse respeitocom o cliente.

    Ou voc conta agora, ou vai contar no tribunal disse Dundy com violncia. No se esquea de que isso um assassinato.

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    Ta l v e z . E aqui est uma coisa que voc no deve esquecer, meu amor. Conta-rei ou no, como me agradar. J vai longe o tempo em que eu chorava porque ospoliciais no gostavam de mim.

    Tom deixou o sof e sentou-se no p da cama. Seu rosto mal barbeado e besun-tado de lama mostrava-se cansado e enrugado. Seja razovel, Sam implorou. D-nos uma colher de ch. Como podemos ter qualquer indcio sobre o assassinatode Miles se voc se recusa a dizer o que descobriu ?

    No precisa torturar os miolos a esse respeito disse Spade. Eu enterrareios meus mortos:

    O tenente Dundy sentou-se e ps de novo as mos nos joelhos. Seus olhos eramardentes discos verdes. Pensei isso disse, e sorriu com satisfao maldosa.

    Foi exatamente por isso que viemos v-lo, no verdade, Tom?Tom gemeu, mas no articulou nenhuma palavra. Spade observava Dundy cau-

    telosamente. Foi exatamente o que eu disse a Tom continuou o tenente. Eu disse:

    "Tom, tenho um palpite de que Sam Spade um homem que lava a roupa suja emcasa". Foi isso exatamente o que eu lhe disse.

    A expresso de cautela abandonou os olhos de Spade, que se tornaram pesadosde tdio. Ele voltou o rosto para Tom e perguntou, com ar de pouco-caso: Que

    bicho mordeu o seu amigo agora?Dundy ps-se em p e bateu no peito de Spade com a ponta de dois dedos cur-

    vos: Apenas isto disse, esforando-se para tornar distintas todas as palavras,sublinhando-as com as pancadinhas dos dedos: Thursby foi alvejado em frente aoseu hotel, trinta e cinco minutos depois que voc deixou a Burritt Street.

    Spade falou, empregando o mesmo esforo nas palavras: Tire as suas maldi-tas patas de cima de mim.

    Dundy recolheu os dedos, mas no mudou o tom de voz: Tom disse que voc estava com tanta pressa que nem pde se demorar para

    dar uma vista d'olhos no seu companheiro.Tom rosnou, desculpando-se: Bem, com os diabos, Sam, foi assim que voc

    escapuliu.

    E no foi casa de Archer comunicar esposa disse o tenente. Ns aprocuramos, e encontramos l aquela moa do seu escritrio, que disse que voc atinha mandado em seu lugar.

    Spade inclinou a cabea, assentindo. Seu rosto parecia apatetado, na sua imobi-lidade.

    O tenente Dundy levantou os dois dedos curvos em direo ao peito de Spade,baixou-os de novo com rapidez e disse: Voc teve dez minutos para arranjar umtelefone e falar com a moa. Teve dez minutos para alcanar o esconderijo deThursby, em Geary, perto de Leavenworth; voc poderia fazer isso facilmente nessetempo, ou em quinze minutos no mximo. E isso lhe d dez ou quinze minutos defolga, antes de ele aparecer.

    Por acaso eu sabia onde ele morava? perguntou Spade. E sabia que ele

    no tinha ido direto para casa depois de matar Miles? Sabia o que sabia replicou Dundy, teimoso. A que horas chegou em casa? s vinte para as quatro. Estive andando por a, meditando.O tenente meneou a cabea redonda, de cima para baixo. Sabamos que voc

    no estava em casa s trs e meia. Tentamos ligar para c. Por onde esteve andan-do?

    Sa da Bush Street a certa altura e depois voltei. Viu algum que.. . No, sem testemunhas disse Spade, e riu jovialmente. Sente-se, Dundy.

    Voc no acabou de beber. Pegue o seu copo, Tom.Tom disse: No, obrigado, Sam. Dundy sentou-se, mas no olhou para o

    copo de rum.Spade encheu o seu copo, bebeu, ps o copo vazio na mesa e voltou a sentar-se

    na beira da cama. Agora sei onde estou disse, olhando com olhos amistosos deum detetive para o outro. Sinto ter ficado bravo, mas isso de uns caras como vo-cs virem aqui querendo me acusar me deixou nervoso. Eu j estava aborrecido com

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    o fato de Miles estar fora de combate, e ainda por cima vm vocs, bancando os sa-bidos para o meu lado. Mas agora est bem, agora que sei o que vocs esto que-rendo.

    Tom disse: Esquea-se disso. O tenente ficou calado. Spade perguntou: Thursby morreu?

    Enquanto o tenente hesitava, Tom respondeu: Sim.Ento o tenente disse, raivoso: E voc bem pode ficar sabendo tambm, se j

    no sabe, que ele morreu antes de poder contar qualquer coisa a algum.Spade estava enrolando um cigarro. Sem levantar os olhos, perguntou: Que

    quer dizer com isso? Pensa que eu sabia? Quis dizer o que disse replicou rudemente Dundy.Spade ergueu os olhos para ele e sorriu, segurando o cigarro enrolado em uma

    das mos e o isqueiro na outra. Voc ainda no est em condies de me prender,est, Dundy? Dundy volveu um olhar duro para Spade, e no respondeu.

    Ento, no h nenhuma razo especial para que eu d a mnima importnciaao que voc pensa, no , Dundy?

    Ora, seja razovel, Sam! pediu Tom.Spade ps o cigarro na boca, acendeu-o e soltou a fumaa por entre uma risada.

    Serei razovel, Tom prometeu. Como foi que matei esse Thursby? J me es-

    queci. Tom grunhiu, descontente. O tenente Dundy disse: Ele foi alvejado quatro vezes pelas costas, com um44 ou 45, do lado oposto da rua, quando ia entrar no hotel. Ningum viu, mas

    parece ter sido assim. E trazia uma Luger num coldre a tiracolo, que nofoi usada acrescentou Tom. O que que o pessoal do hotel sabe a respeito dele perguntou Spade. Nada, a no ser que estava l havia uma semana. Sozinho? Sozinho. O que vocs acharam com ele? Ou no quarto? Dundy apertou os lbios e per-

    guntou: O que voc imagina que deveramos ter achado?

    Spade descreveu um crculo negligente com o cigarro. Alguma coisa que nosdissesse quem era ele, e o que fazia. Achou? Pensvamos que voc nos pudesse informar quanto a isso.Spade olhou para o tenente com os olhos amarelo-pardos cheios de exagerada

    candura. Nunca vi Thursby, nem morto nem vivo.O tenente Dundy ps-se em p com ar descontente. Tom levantou-se, bocejando

    e espreguiando-se. J perguntamos o que tnhamos a perguntar disse Dundy,franzindo as sobrancelhas sobre os olhos verdes, duros como pedras. Mordeu o l-bio superior, coberto pelo bigode, deixando o lbio inferior expelir as palavras. Ns lhe contamos mais do que voc nos contou. Fomos leais. Voc me conhece,Spade. Seja voc ou no, serei legal com voc, e voc ter todas as chances. Noposso censur-lo pelo que est fazendo... mas isso no me impedir de prend-lo.

    justo replicou Spade da mesma forma. Mas eu ficaria mais sossegadose voc tivesse bebido o rum.O tenente Dundy voltou-se para a mesa, pegou o copo e esvaziou-o lentamente.

    Em seguida disse: Boa noite e estendeu a mo. Apertaram-se as mos cerimo-niosamente. Tom e Spade despediram-se tambm cerimoniosamente, e Spade con-duziu-os at a porta. Ento se despiu, apagou as luzes e deitou-se.

    3 TRS MULHERES

    Quando Spade chegou ao escritrio, na manh seguinte, s dez horas, Effie Pe-rine estava abrindo a correspondncia na sua escrivaninha. Seu rosto infantil mos-trava-se plido sob o queimado do sol. Ps sobre a mesa o punhado de envelopes ea esptula de lato, e preveniu-o em voz baixa: Ela est a dentro.

    Pedi-lhe que a conservasse afastada protestou Spade, tambm em voz bai-xa.

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    Os olhos de Effie Perine arregalaram-se, e sua voz tornou-se to irritada quantoa dele: Sim, mas no me disse como fazer isso. Suas sobrancelhas se aperta-ram um pouco, e os ombros descaram. No seja rabugento, Sam disse, com arabatido. Aturei-a a noite inteira.

    Spade aproximou-se da moa, ps-lhe uma das mos sobre a cabea e alisou-lhe o cabelo. Sinto muito, meu anjo. Eu no. . . interrompeu-se, ao abrir-se aporta interna. Al, Iva disse mulher que a abrira.

    Oh, Sam! fez ela. Era uma mulher loura, de pouco mais de trinta anos. Suabeleza devia ter atingido o auge uns cinco anos antes. O corpo, apesar da robustez,era bem-modelado e elegante. Estava vestida de preto, desde o chapu at os sapa-tos, o que lhe dava um ar de luto improvisado. Tendo falado, retrocedeu um passo eficou esperando Spade.

    Ele retirou a mo da cabea de Effie Perine e entrou na sala interna, fechando aporta. Iva aproximou-se rapidamente, levantando o rosto triste para o seu beijo.Seus braos envolveram-no, antes que os dele a estreitassem. Depois de se beija-rem, ele fez um pequeno movimento para libertar-se, mas ela apertou o rosto deencontro ao seu peito e comeou a soluar.

    Ele bateu-lhe de leve nas costas, dizendo: Pobrezinha. Sua voz era terna.Seus olhos, dirigindo-se de lado para a escrivaninha que pertencera ao scio, adian-

    te da sua, estavam irritados. Apertou os lbios nos dentes, num trejeito de impaci-ncia, e virou o queixo para evitar o contato da copa do chapu dela. Voc man-dou chamar o irmo de Miles? perguntou.

    Mandei; chegou esta manh. As palavras saam indistintas por causa dossoluos e do casaco que lhe tapava a boca.

    Ele fez novo trejeito e curvou a cabea para olhar furtivamente o relgio, nopulso. Seu brao esquerdo envolvia-a, descansando a mo sobre o ombro dela. Opunho estava afastado o suficiente para deixar descoberto o relgio. Este marcavadez horas e dez minutos.

    A mulher estremeceu nos seus braos e levantou novamente o rosto. Tinha osolhos azuis molhados, redondos, e orlados de branco. A boca estava mida. Oh,Sam gemeu , voc o matou?

    Spade olhou-a com os olhos arregalados, e seu queixo ossudo caiu. Retirou de-pois os braos que o prendiam e afastou-se dela. Franziu ento as sobrancelhas elimpou a garganta. Ela conservou os braos levantados, como ele os tinha deixado.A angstia ensombrava-lhe os olhos, semicerrados sob as sobrancelhas erguidas.Seus lbios vermelhos e midos estavam trmulos.

    Spade riu uma slaba spera Ah! e dirigiu-se janela de cortinas amarelo-claras. Conservou-se a, de costas para ela, olhando para o ptio atravs da cortina,at que ela se encaminhou para ele. Ento voltou-se rapidamente e dirigiu-se suaescrivaninha. Sentou-se, apoiou os cotovelos na mesa, com o queixo entre os pu-nhos, e olhou para a mulher. Seus olhos amarelados faiscaram por entre as pes-tanas semicerradas. Quem ps essa brilhante idia na sua cabea? perguntoufriamente.

    Eu pensei. . . Ela levou a mo boca, e novas lgrimas lhe vieram aos o-lhos. Veio colocar-se ao lado da escrivaninha, movendo-se com uma graa fcil esegura, sobre os sapatinhos minsculos e de salto muito alto. Tenha pacinciacomigo, Sam disse com humildade.

    Ele sorriu-lhe, com os olhos ainda em chispas. Voc matou meu marido, Sam,tenha pacincia comigo.

    Puta que o pariu disse ele, batendo as palmas das mos.Ela comeou a chorar alto, escondendo o rosto num leno branco. Spade er-

    gueu-se e aproximou-se dela; ps-lhe os braos em volta e beijou-lhe o pescoo,entre a orelha e a gola do casaco. No, Iva, no chore assim. Seu rosto estavainexpressivo. Quando ela parou de chorar, ele aproximou-lhe a boca do ouvido emurmurou: Voc no devia ter vindo aqui hoje, amor. Foi imprudncia. Voc nopode continuar aqui. Devia estar em sua casa.

    Ela voltou-se nos seus braos para olh-lo de frente, e perguntou: Voc vemhoje noite?

    Ele sacudiu a cabea com brandura: Hoje, no.

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    Logo? Sim. Quando? Logo que puder.Ento beijou-lhe a boca, conduziu-a at a porta, abriu-a e disse: At logo, Iva.

    Inclinou-se, fazendo-a sair, fechou a porta e voltou sua escrivaninha. Tirou fu-mo e papis de cigarro do bolso, mas no enrolou nenhum cigarro. Conservou-sesentado, segurando os papis numa das mos e o fumo na outra, e ficou olhando,absorto, para a escrivaninha do seu companheiro assassinado.

    Effie Perine abriu a porta e entrou. Seus olhos castanhos mostravam-se inquie-tos, mas ela perguntou, em tom despreocupado: Ento? Spade no respondeu.O olhar absorto no se afastou da escrivaninha do scio. A moa franziu as sobran-celhas, e, dando a volta, aproximou-se dele. Ento? perguntou em voz mais alta como se entenderam, voc e a viva?

    Ela pensa que eu matei Miles disse ele, movendo apenas os lbios. A fim de poder se casar com ela?Spade no respondeu. A moa tirou-lhe o chapu da cabea, colocando-o sobre

    a sua escrivaninha. Depois inclinou-se e tirou-lhe de entre os dedos inertes a bolsade fumo e os papis. A polcia pensa que eu matei Thursby disse ele.

    Quem ele? perguntou ela, separando do mao um papel de cigarro e der-ramando fumo nele.

    Quem voc pensa que eu matei? perguntou. Vendo que ela desprezava apergunta, disse: Thursby o sujeito que Miles devia estar seguindo para aquelamoa chamada Wonderly.

    Seus dedos delgados acabaram de dar forma ao cigarro. Lambeu-o, alisou-o,dobrou-lhe as pontas e colocou-o entre os lbios de Spade. Obrigado, meu bem disse ele; ps um brao em volta da cintura delgada da moa e, num gesto cansado,encostou o rosto contra o seu quadril, fechando os olhos.

    Voc vai se casar com Iva? perguntou a moa, baixando o olhar para o ca-belo castanho-claro.

    No seja boba resmungou ele. O cigarro, apagado, balanava para cima e

    para baixo, com o movimento dos seus lbios. Ela no acha que seja bobagem. Como poderia achar. . . uma vez que voc aassedia daquela forma?

    Ele suspirou: Queria no t-la visto nunca. Talvez voc queira isso, agora. Um trao de rancor transpareceu na voz da

    moa. Mas j houve tempo... No sei o que fazer ou dizer s mulheres, a no ser dessa forma resmungou

    , e depois, eu no gostava de Miles. Isso mentira, Sam disse a moa. Voc sabe que eu a acho uma sem-

    vergonha, mas eu tambm o seria, se isso me desse um corpo igual ao dela.Spade esfregou o rosto com impacincia contra ela, mas no disse nada. Effie

    Perine mordeu os lbios, enrugou a testa e, curvando-se para ver-lhe melhor o ros-

    to, perguntou: Voc acha que ela poderia t-lo assassinado?Spade endireitou-se e tirou o brao da cintura da moa. Depois sorriu-lhe, comum sorriso divertido. Tirou o isqueiro, acendeu-o e chegou-o ponta do cigarro. Voc um anjo disse com ternura, por entre a fumaa , um anjo bem bobinho.

    Ela deu um sorriso um pouco forado. Ah, sou? E se eu lhe contar que no fa-zia muitos minutos que a sua Iva tinha chegado em casa quando eu cheguei tam-bm para lhe comunicar a notcia, s trs horas desta madrugada?

    Que que voc est me contando? Seu olhar tinha se tornado atento, ape-sar de a boca continuar a sorrir.

    Ela me deixou esperando na porta enquanto se despia, ou acabava de se des-pir. Eu vi as roupas em uma cadeira, para onde as tinha atirado. O chapu e o casa-co estavam por baixo. Sua combinao, em cima, ainda estava quente. Ela disse queestava dormindo, mas no estava. As roupas da cama estavam simplesmente enru-gadas, mas no amassadas.

    Spade pegou a mo da moa e acariciou-a, batendo-lhe de leve: Voc um de-tetive, meu bem, mas sacudiu a cabea ela no o matou.

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    Effie Perine puxou a mo com fora. Essa sem-vergonha quer se casar comvoc, Sam disse com amargura. Ele fez um gesto de impacincia com a cabea ecom uma das mos. Ela franziu os sobrolhos e perguntou: Voc a viu a noite pas-sada?

    No. Sinceramente? Sinceramente. No imite Dundy, meu amor. No lhe fica bem. Dundy procurou-o? Hum-hum. Ele e Tom Polhaus foram tomar um trago, s quatro da manh. Pensam realmente que voc assassinou esse . . . como mesmo o nome? Thursby. Ps o resto do cigarro no cinzeiro e comeou a enrolar outro. Pensam? insistiu ela. S Deus sabe. Seus olhos estavam fixos no cigarro que estava fazendo.

    Eles tinham uma idia parecida. No sei at que ponto consegui afast-los dela. Olhe para mim, Sam. Ele olhou-a e riu, pois uma expresso de alegria mis-

    turava-se ansiedade, no rosto da moa. Voc me assusta disse ela, tornando-se sria de novo. ' Sempre acha que sabe o que est fazendo, mas prejudicadopela sua prpria esperteza, e um dia descobrir isso.

    Ele soltou um suspiro zombeteiro e esfregou o rosto no brao da moa. Isso

    o que Dundy diz, mas conserve Iva afastada de mim, meu bem, e agirei de forma avencer o resto das minhas dificuldades. Ergueu-se e ps o chapu. Tire da portao "Spade & Archer" e ponha "Samuel Spade". Estarei de volta dentro de uma hora,ou ento telefonarei.

    Spade atravessou o longo saguo violeta do St. Mark em direo recepo eperguntou a um almofadinha de cabelo vermelho se a srta. Wonderly estava. O al-mofadinha de cabelo vermelho afastou-se, depois voltou, sacudindo a cabea.

    Ela foi embora esta manh, sr. Spade. Obrigado.Spade passou pela recepo em direo a um compartimento fora do h a l l , onde

    um homem gordo, de meia-idade, vestido de escuro, estava sentado em frente auma escrivaninha de mogno, de superfcie lisa. Na beira da escrivaninha, de frente

    para o saguo, havia uma prisma triangular, de mogno e lato, com a inscrio: "Sr.Freed".O homem gordo levantou-se e deu a volta escrivaninha, com a mo estendida.

    Senti imensamente o que aconteceu com Archer, Spade disse, no tom de umapessoa acostumada a mostrar-se solidria na tristeza, sem ser indiscreta. Acabeide ler no Ca l l . Ele esteve aqui na noite passada, voc sabe.

    Obrigado, Freed. Voc falou com ele? No. Ele estava sentado no saguo quando eu cheguei, noite, cedo ainda.

    No o procurei. Pensei que estivesse trabalhando, e sei que vocs gostam de ficarss quando esto ocupados. Isso tem alguma relao com o seu...?

    Acho que no, mas ainda no sabemos. De qualquer forma, no envolveremosnisso o hotel, se pudermos evit-lo.

    Obrigado. Est bem. Pode me dar algumas informaes a respeito de um ex-hspede e,depois, esquecer que as pedi?

    Sem dvida. Uma certa srta. Wonderly foi embora esta manh. Gostaria de conhecer os

    detalhes. Venha comigo disse Freed , e vejamos o que podemos descobrir.Spade conservou-se imvel, sacudindo a cabea. No quero aparecer nisso.Freed meneou a cabea, aquiescendo, e saiu do compartimento. No saguo, pa-

    rou de repente e voltou at Spade. Harriman era o detetive do hotel que estava deservio na noite passada disse. Ele viu Archer, sem dvida. Devo preveni-lo deque silencie sobre isso?

    Spade olhou de soslaio para Freed. melhor no dizer nada. Isso no temimportncia, desde que no haja relao aparente com essa tal de Wonderly. Harri-

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    man muito bom, mas gosta de falar, e prefiro que ele no pense que h algumacoisa a ocultar.

    Freed meneou de novo a cabea e afastou-se, voltando quinze minutos maistarde. Ela chegou na ltima tera-feira, registrando-se como tendo vindo de NovaYork. No tinha malas, apenas algumas maletas. No houve chamadas telefnicasdebitadas na sua conta, e parece que ela no recebeu muitas cartas, talvez nenhu-ma. A nica pessoa vista em sua companhia foi um homem alto, moreno, de unstrinta e seis anos. Ela saiu s nove e meia esta manh, voltou uma hora mais tarde,pagou a conta e mandou levar as maletas para um carro. O rapaz que as levou dizque era um Nash de turismo, provavelmente alugado. Ela deixou este endereo:"Ambassador", Los Angeles.

    Obrigado, Freed disse Spade, e deixou o St.Quando o detetive voltou ao seu escritrio, Effie Perine parou de escrever uma

    carta mquina para dizer-lhe: Seu amigo Dundy esteve aqui. Queria ver as suasarmas.

    _ E...? Disse-lhe que voltasse quando voc estivesse presente. Boa menina. Se ele voltar, deixe-o v-las. E a srta. Wonderly telefonou.

    No era sem tempo. O que ela disse? Quer v-lo. A moa pegou uma folha de papel de cima da escrivaninha e leu

    o memorando escrito a lpis: Ela est no Coronet, na Califrnia Street, apartamento 1001. Deve perguntar

    por srta. Leblanc. D-me isso a disse Spade, e estendeu a mo. Quando a moa lhe deu o

    memorando, tirou o isqueiro, acendeu-o, chegou-o folha de papel e ficou seguran-do-o at que todo ele, exceto um canto, no fosse mais do que um rolo de cinza pre-ta; deixou-o cair no cho de linleo e amassou-o sob a sola do sapato. A moa ob-servava-o com um olhar de censura. Ele sorriu: isso mesmo, querida

    e saiu de novo.

    4 O PSSARO PRETO

    A srta. Wonderly, num vestido justo de crepe de seda verde, abriu a porta doapartamento 1001 do Coronet. Seu rosto estava corado. O cabelo vermelho-escuro,dividido do lado esquerdo, penteado para trs em ondas suaves sobre a fronte, dolado direito, estava um pouco desarrumado. Spade tirou o chapu, dizendo: Bomdia.

    O sorriso dele trouxe ao rosto da moa um reflexo de sorriso, mas os olhos dela,de um azul quase violeta, no perderam a expresso perturbada. Ela abaixou a ca-bea e disse, numa voz tmida, sussurrante: Entre, sr. Spade.

    A moa conduziu-o a uma sala de estar vermelha e creme, passando pelas por-

    tas abertas da cozinha, do banheiro e do quarto, e pedindo desculpas pela desor-dem: Est tudo remexido. Nem acabei de desarrumar as malas.Ps o chapu dele sobre uma mesa e sentou-se em um grande sof de nogueira.

    Ele sentou-se numa cadeira de brocado de encosto oval, na sua frente. A moa o-lhou para os dedos, tranando-os, e disse: Sr. Spade, tenho uma terrvel confissoa lhe fazer. Spade sorriu de modo educado (ela no levantou os olhos para ele) eno disse nada.

    Essa. . . essa histria que lhe contei ontem era s. .. uma histria gaguejou,e ento levantou o olhar para ele com uma expresso angustiada, amedrontada.

    Oh, quanto a isso. . . disse Spade, despreocupado. Ns no acreditamosmuito na sua histria.

    Ento. . . ? A perplexidade juntava-se agora angstia e ao receio nos seusolhos.

    Ns acreditamos nos seus duzentos dlares. O senhor quer dizer. . . ? Ela parecia no saber o que ele queria exprimir.

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    Quero dizer que a senhora nos pagou mais do que pagaria se estivesse dizen-do a verdade explicou com brandura e o suficiente para nos fazer aceitar tudo.

    Seus olhos subitamente se iluminaram. Ela se ergueu alguns centmetros sobreo sof, sentou-se de novo, alisou a saia, inclinou-se para a frente e falou impetuo-samente: E mesmo agora, o senhor querer. . . ?

    Spade interrompeu-a, levantando a palma da mo. A parte superior de seu rostomostrava-se carrancuda. A parte inferior sorria. Isso depende disse ele. Odiabo , srta. . . Seu nome Wonderly ou Leblanc?

    Ela corou e murmurou: O verdadeiro O'Shaughnessy... Brigid O'Shaugh-nessy.

    O diabo, srta. O'Shaughnessy, que dois assassinatos ela estremeceu deuma vez, como estes, deixam todo mundo excitado, fazem a polcia pensar que podeultrapassar os limites, tornam todos difceis de tratar, e isso sai caro. No .. . eleparou de falar porque ela tinha parado de ouvir, e estava apenas esperando que eleterminasse.

    Sr. Spade, diga-me a verdade. Sua voz tremia, quase histrica. O rosto to-mara uma expresso perturbada, emoldurando os olhos angustiados. Serei culpa-da pelo que... pelo que aconteceu a noite passada?

    Spade sacudiu a cabea. No, a no ser que existam coisas das quais eu no

    tenha conhecimento. A senhorita nos preveniu de que Thursby era perigoso. ver-dade que nos mentiu a respeito da sua irm e do resto, mas isso no importa: nsno acreditamos nisso. Encolheu os ombros curvos. Eu no a julgaria culpada.

    Obrigada disse ela suavemente, e depois moveu a cabea de um lado parao outro. Mas sempre me censurarei por isso. Ento ps a mo sobre o peito. O sr. Archer estava to. . . cheio de vida ontem, to robusto e to vigoroso, e...

    Pare ordenou Spade. Ele sabia o que estava fazendo. Temos que correros riscos.

    Ele era... era casado? Sim, com dez mil dlares de seguro, sem filhos, e uma mulher que no o a-

    mava. Oh, por favor, no fale! murmurou ela. Spade sacudiu de novo os ombros.

    Essa a verdade. Olhou o relgio e mudou da cadeira para o sof, ao lado da moa. No htempo para nos afligirmos agora com essas coisas. Sua voz, embora afvel, mos-trava-se firme.

    A fora, h um bando de policiais, auxiliares de comissrios e reprteres emagitao, farejando uma pista. Que pretende fazer?

    Quero que o senhor me salve de... disso tudo replicou numa voz trmula edbil, pondo-lhe a mo tmida sobre a manga. Sr. Spade, eles sabem alguma coisaa meu respeito?

    Ainda no. Eu quis v-la primeiro. O que. . . o que pensariam se soubessem a forma como o procurei. . . com a-

    quelas mentiras?

    Ficariam desconfiados. por isso que eu os estive despistando at poder v-la. Pensei que talvez no precisssemos deix-los tomar conhecimento de tudo. De-vemos estar aptos a forjar uma histria que dissipe as desconfianas deles, se fornecessrio.

    O senhor no est pensando que eu tive alguma coisa a ver com os. . . assas-sinatos, no?

    Spade sorriu, dizendo: Esqueci-me de lhe perguntar isso. Teve? No. timo. Agora, o que contaremos polcia?Ela se remexeu no canto do sof, e seus olhos vacilaram por entre as pesadas

    pestanas, como se tentassem se desprender do olhar dele, sem o conseguir. Pareciamenor, e muito jovem e abatida. Eles precisam mesmo saber que eu existo? perguntou. Acho que eu preferiria morrer, sr. Spade. No posso lhe explicar ain-da, mas o senhor no poderia proceder de forma a me esconder deles, para que euno tenha de responder a perguntas? Acho que eu no suportaria ser interrogadaagora. Preferiria morrer. O senhor no pode, sr. Spade?

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    Talvez, mas terei que saber do que se trata.Ela se ajoelhou na sua frente e ergueu para ele o rosto plido, tenso e atemori-

    zado, sobre as mos apertadas. A minha vida no tem sido nada irrepreensvel! exclamou. Tenho sido m. . . pior do que o senhor possa imaginar. . . mas no soude todo ruim. Olhe para mim, sr. Spade. O senhor sabe que no sou de todo ruim,no verdade? Pode ver isso, no pode? No pode ento confiar um pouco em mim?Oh, estou to sozinha e tenho tanto medo, e no tenho ningum, se o senhor noquiser me ajudar! Sei que no tenho o direito de lhe pedir que confie em mim, se euno confiar no senhor. Eu confio no senhor, no posso lhe contar nada. No agora.Mais tarde contarei, quando puder. Tenho medo, sr. Spade. Tenho medo de confiarno senhor. No isso o que quero dizer. Eu confio no senhor, mas. . . confiei emFloyd e. .. no tenho ningum mais, ningum mais, sr. Spade. O senhor pode me a-

    judar. O senhor disse que podia me ajudar. Se eu no tivesse acreditado que o se-nhor poderia me salvar, teria fugido hoje, em vez de mandar procur-lo. Se julgasseque algum mais poderia me salvar, estaria assim de joelhos? Sei que no estousendo correta. Mas seja generoso, sr. Spade, no me pea para ser correta. O se-nhor forte, tem recursos, corajoso. Pode me conceder um pouco dessa fora,desses recursos e dessa coragem, sem dvida. Ajude-me, sr. Spade. Ajude-me, por-que preciso muito de ajuda, e porque, se no quiser faz-lo, onde encontrarei al-

    gum que possa fazer alguma coisa, mesmo que queira? Ajude-me. No tenho direi-to de lhe pedir que me ajude assim s cegas, mas peo. Seja generoso, sr. Spade. Osenhor pode me ajudar. Ajude-me.

    Spade, que prendera a respirao durante a maior parte desse discurso, esvazi-ou ento os pulmes com um longo suspiro, exalado por entre os lbios cerrados, edisse: Voc no tem muita necessidade de auxlio alheio. Voc auto-suficiente.Muito auto-suficiente. So principalmente os seus olhos, acho, e esse soluo quepe na voz, quando diz coisas como "Seja generoso, sr. Spade".

    Ela se ergueu de um salto. Seu rosto tornou-se cor de carmim, mas ela conser-vava a cabea erguida, e olhou Spade bem nos olhos. Mereo isso disse. Me-reo, mas . . . oh!... eu queria tanto o seu auxlio! Quero-o, necessito-o tanto! E amentira estava na forma como eu o disse, e no no que disse. Voltou-se, abando-

    nando a atitude altiva. minha a culpa, se no pode acreditar em mim agora.O rosto de Spade tornou-se vermelho, e ele olhou para o cho, murmurando: Agora est ficando perigosa.

    Brigid O'Shaughnessy dirigiu-se mesa e pegou o chapu dele. Voltou ento eficou na sua frente, segurando o chapu sem oferec-lo, mas segurando-o para queele o pegasse, se quisesse. Estava com o rosto branco e fino. Spade olhou para ochapu e perguntou: Que aconteceu a noite passada?

    Floyd veio ao hotel s nove horas, e samos para dar um passeio. Sugeri isso,a fim de que o sr. Archer pudesse v-lo. Paramos em um restaurante na Geary Stre-et, penso, para jantar e danar, e voltamos ao hotel mais ou menos meia hora de-pois da meia-noite. Floyd deixou-me naporta, e fiquei do lado de dentro, observandoo sr. Archer segui-lo ao descer a rua, do outro lado.

    Descer? Voc quer dizer em direo MarketStreet? . . Sabe o que eles estiveram fazendo na vizinhanada Bush e da Stockton, onde Archer foi alvejado? No era perto de onde Floyd morava? No. Seriam uns doze quarteires fora do seu caminho, se ele estivesse indo

    do seu hotel para o dele. Bem, que fez depois que eles se foram? Deitei-me. E esta manh, quando sa para almoar, vi as manchetes nos jor-

    nais e li sobre. . . o senhor sabe. Ento dirigi-me Union Square, onde tinha vistoautomveis para alugar, arranjei um e voltei ao hotel para buscar minha bagagem.Depois que descobri que meu quarto fora revistado ontem, vi que tinha de me mu-dar, e encontrei este apartamento ontem tarde. Assim, vim para c, e ento tele-fonei para o seu escritrio.

    Seu quarto no St. Mark foi revistado? perguntou ele.

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    Sim, enquanto eu estava no seu escritrio. Ela mordeu o lbio. Eu notencionava contar-lhe isso.

    Quer dizer que no devo interrog-la a esse respeito?Ela aquiesceu, embaraada, vendo-o franzir as sobrancelhas. Mexeu um pouco o

    chapu entre as mos. Ele, rindo com impacincia, disse: Pare de me acenar ochapu na cara. J no me ofereci para fazer o que puder?

    Ela sorriu, tensa, reps o chapu na mesa e sentou-se de novo no sof, ao ladodele. Spade disse: No consegui nada em troca da minha confiana cega em voc,exceto que no estarei em condies de ajud-la muito, se no tiver alguma idiasobre o assunto. Por exemplo, preciso de algum esclarecimento sobre o seu FloydThursby.

    Conheci-o no Oriente. Ela falava devagar, olhando para um dedo cuja pontatraava oitos no sof, entre os dois. Chegamos aqui na ltima semana, vindos deHong Kong. Ele estava. . . ele tinha prometido ajudar-me. Aproveitou-se do meu de-samparo e de eu estar na sua dependncia, para me trair.

    Tra-la, como? Ela sacudiu a cabea e no respondeu. Spade, franzindo ossobrolhos com impacincia, perguntou: Por que voc queria que ele fosse segui-do?

    Queria saber at onde tinha chegado. Ele no queria nem mesmo que eu sou-

    besse onde estava hospedado. Eu queria descobrir o que ele estava fazendo, comquem estava se encontrando, coisas assim.

    Ele matou Miles Archer?Ela olhou-o, surpresa. Sim, sem dvida disse. Ele tinha uma Luger em um coldre a tiracolo. Mas Archer no foi alvejado com

    uma Luger. Ele tinha um revlver no bolso do sobretudo disse ela. Voc o viu? Ah, vi-o muitas vezes! Sei que ele sempre trazia um a. No o vi a noite pas-

    sada, mas sei que nunca usava o sobretudo sem ele. Por que tantas armas? Era o seu meio de vida. Contava-se em Hong Kong que ele fora para l, para o

    Oriente, como guarda-costas de um jogador profissional que fora obrigado a deixaros Estados Unidos, e que desde ento o jogador desaparecera. Diziam que Floyd sa-bia como ele desaparecera. No sei se verdade. S sei que andava sempre bemarmado, e que nunca ia dormir sem cobrir o cho em volta da cama com um jornalamarrotado, a fim de que ningum pudesse entrar no seu quarto sem ser pressenti-do.

    Voc escolheu uma bela espcie de parceiro. Apenas essa espcie poderia ter-me ajudado disse ela simplesmente , se

    tivesse sido leal. Sim, se tivesse. Spade apertou o lbio inferior entre o indicador e o pole-

    gar, e olhou-a melancolicamente. As rugas verticais sobre o seu nariz se aprofunda-ram, aproximando as sobrancelhas. Em que buraco voc est metida agora!

    No pior possvel. Perigo fsico? No sou valente. Acho que no existe nada pior que a morte. Ento isso? isso, to certo como estarmos sentados aqui ela estremeceu , a no ser

    que o senhor me auxilie.Spade tirou os dedos dos lbios e correu-os pelo cabelo. Quem voc pensa

    que eu sou? disse, irritado. No posso fabricar milagres. Olhou o relgio. :O dia est acabando, e voc,no me deu nada com que trabalhar. Quem matouThursby?

    Ela levou boca um leno amarrotado e disse atravs dele: No sei. Foram inimigos seus ou dele? No sei. Dele, espero, mas receio. . . no sei. Como ele devia ajud-la? Por que o trouxe de Hong Kong para c?Ela o olhou assustada e sacudiu a cabea em silncio. Tinha uma expresso per-

    turbada e tristemente obstinada. Spade ps-se em p, enfiou as mos nos bolsos do

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    palet e olhou-a carrancudo. Tempo perdido disse asperamente. No possofazer nada por voc. No sei o que voc quer. Nem mesmo se voc sabe o que quer.

    Ela baixou a cabea e chorou. Spade fez com a garganta uma espcie de grunhi-do abafado e dirigiu-se mesa em busca do chapu. O senhor no ir implorouela, em uma vozinha sufocada, sem levantar os olhos procurar a polcia?

    Procur-los! exclamou ele, quase gritando de raiva. Eles estiveram meatormentando desde as quatro da madrugada. S Deus sabe o mal que fiz a mimmesmo, contemporizando. Para qu? Por uma idia tola de que podia ajud-la. Masno posso. Nem vou tentar. Ps o chapu na cabea e enterrou-o com fora. Procur-los? Mesmo que eu fique na minha, quieto, eles cairo todos sobre mim.Ento eu lhes direi o que sei, e voc ter que correr os riscos.

    Ela levantou-se do sof e ficou frente dele, apesar de seus joelhos tremerem,e manteve erguido o rosto lvido de terror, no obstante no poder imobilizar osmsculos trmulos da boca e do queixo. Ento disse: Voc tem sido paciente etem tentado me ajudar. intil, e sem remdio, suponho. Estendeu a mo direita. Agradeo-lhe por tudo o que fez. Eu. . . eu terei que correr os riscos.

    Spade deu de novo o grunhido abafado e sentou-se no sof. Quanto voc temem dinheiro? interrogou.

    A pergunta assustou-a. Ela mordeu o lbio inferior e respondeu com relutncia:

    Tenho s mais uns quinhentos dlares. Passe-os para mim.A moa hesitou, olhando-o timidamente. Ele fez trejeitos irritados com a boca,

    as sobrancelhas, mos e ombros. Wa dirigiu-se ao quarto, voltando quase imedia-tamente com

    um mao de notas na mo. Ele pegou o dinheiro, contou-o e disse: Aqui estos quatrocentos.

    Tenho que guardar algum para minha manuteno explicou humildemente,levando uma das mos ao peito.

    No pode arranjar mais nenhum? No. Voc deve ter alguma coisa com que possa obter dinheiro insistiu.

    Tenho uns anis, algumas jias. Ter que penhor-los disse ele, e estendeu a mo. O Remedial melhor. .. Mission e Fifth.

    Ela olhou-o suplicante. Os olhos amarelo-pardos mostravam-se duros e impla-cveis. Lentamente, ela ps a mo dentro do decote de vestido, retirou dali um pe-queno rolo de notas e colocou-as na mo que as esperava. Spade alisou as notas econtou-as: quatro de vinte, quatro de dez, uma de cinco, e devolveu-lhe duas de deze a de cinco, pondo as outras no bolso. Ento levantou-se e disse: Vou ver o queposso fazer por voc. Voltarei assim que puder, com as melhores notcias que con-seguir. Tocarei quatro vezes um toque longo, um curto, um longo, um curto ,assim voc saber que sou eu. No precisa me acompanhar at a porta. Posso sairsozinho.

    Ele a deixou em p no centro da sala, acompanhando-o com os olhos azuis,cheios de pasmo.

    Spade entrou numa sala de espera cuja porta exibia a inscrio, "Wise, Merican& Wise". A moa de cabelos vermelhos, sentada mesa telefnica, disse:

    Ah, al, sr. Spade! Al, meu bem. Sid est?Ele esperou ao lado, com a mo em seu ombro rolio, enquanto a moa maneja-

    va o aparelho e falava no bocal. O sr. Spade quer v-lo, sr. Wise. Olhou paraSpade. Pode entrar.

    Ele apertou-lhe o ombro guisa de agradecimento, atravessou a sala em dire-o a um corredor mal-iluminado e seguiu por ele at uma porta de vidro fosco, quese encontrava no fim. Abriu a porta e entrou num escritrio onde um homenzinhocor de azeitona, com uma expresso cansada no rosto oval, sob o cabelo escuro eralo, salpicado de caspa, estava sentado atrs de uma imensa escrivaninha onde se

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    amontoavam maos de papel. O homenzinho acenou para Spade com o toco do cha-ruto apagado e disse: Puxe uma cadeira. Ento Miles sifu a noite passada? Nemo seu rosto cansado nem a sua voz aguda demonstravam qualquer emoo.

    Hum-hum, por isso que estou aqui. Spade franziu as sobrancelhas e lim-pou a garganta. Acho que terei de mandar um investigador s favas, Sid. Possome abrigar atrs da inviolabilidade dos segredos e da identidade e de no sei quemais, dos meus clientes, da mesma forma que o padre ou o advogado?

    Sid Wise levantou os ombros e abaixou os cantos da boca Ppr que no? Um in-qurito no um processo. De qualquer forma, pode tentar. Voc j se livrou de coi-sas piores. . .

    Eu sei, mas Dundy est ficando chato, e talvez esteja um pouquinho obtusono caso presente. Pegue o chapu, Sid, e vamos ver a quem de direito. Quero estarlimpo.

    Sid Wise olhou para os papis amontoados sobre a escrivaninha e suspirou, maslevantou-se e dirigiu-se ao armrio junto janela. Voc um patife, Sammy disse, enquanto tirava o chapu do cabide.

    Spade voltou ao seu escritrio dez minutos depois das cinco, nessa tarde. Effie

    Perine estava sentada escrivaninha dele, lendo o T im e . Spade sentou-se sobre amesa e perguntou: Alguma notcia palpitante?

    Nada. Parece que voc viu passarinho verde.Ele sorriu, contente. Acho que vamos ter futuro. Sempre me pareceu que, se

    Miles sumisse e morresse por a, ns teramos mais probabilidades de prosperar.Quer tomar a incumbncia de lhe mandar flores" em meu nome?

    J mandei. Voc um anjo. Como est a sua intuio feminina, hoje? Por qu? Que pensa da srta. Wonderly? Gosto dela replicou a moa, sem hesitao. Ela arranjou nomes demais. Spade concentrou-se: Wonderly, Leblanc, e diz

    que o verdadeiro O'Shaughnessy. No me importa que ela tenha todos os nomes da lista telefnica. Essa moa sria, e voc sabe disso.

    Imagino. Spade piscou sonolentamente para Effie Perine e caoou: Dequalquer forma, ela escorregou setecentos mangos em dois dias, e isso timo.

    Effie Perine endireitou-se na cadeira, dizendo: Sam, se essa moa est em di-ficuldades e voc no a auxiliar, ou tirar vantagem disso para explor-la, eu nunca operdoarei, e no terei mais respeito algum por voc, enquanto viver. Spade deu umsorriso forado. Depois franziu os sobrolhos. A carranca tambm era forada. Abriua boca para falar, mas o rudo de algum entrando pela porta do corredor interrom-peu-o. Effie Perine levantou-se e entrou na sala externa. Spade tirou o chapu esentou-se na sua cadeira. A moa voltou com um carto onde estava impresso "Sr.

    Joel Cairo". um sujeito estranho disse ela. Ento faa-o entrar, meu bem disse Spade. Joel Cairo era um homem moreno, de ossos midos e estatura media-na. Tinha o cabelo escuro e liso, e muito lustroso. Seus traos eram orientais. Umrubi quadrado, ladeado por quatro barrinhas de brilhantes, brilhavam contra o ver-de-escuro da sua gravata. O palet preto, cortado de acordo com os ombros estrei-tos, alargava-se um pouco sobre os quadris meio desenvolvidos. As calas, mais es-treitas do que mandava a moda, ajustavam-se s pernas rolias. A parte superiordos sapatos de couro envernizado estava oculta por polainas caquis. Ele seguravaum chapu preto, duro, na mo enluvada de camura, e veio ao encontro de Spadecom passinhos curtos, midos, balanceados. Um aroma de sndalo entrou com ele.

    Spade inclinou a cabea para o visitante, e em seguida em direo a uma cadei-ra, dizendo: Sente-se, sr. Cairo. Cairo inclinou-se cerimoniosamente sobre o cha-pu, disse "Muito obrigado", em uma voz fina e aguda, e sentou-se. Sentou-se comafetao, cruzando as pernas, colocando o chapu sobre os joelhos, e comeou atirar as luvas amarelas.

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    Spade recostou-se na cadeira e perguntou: Em que posso ajud-lo, sr. Cairo? A amvel displicncia da sua voz, seu movimento na cadeira, denotavam uma ati-tude exatamente igual que tivera quando endereara a mesma pergunta a BrigidO'Shaughnessy, no dia anterior.

    Cairo virou o chapu para cima, deixando cair as luvas ali dentro, e colocou-oassim virado no canto da escrivaninha que lhe ficava prximo. Fulguravam brilhan-tes no segundo e no quarto dedos de sua mo esquerda, e no terceiro da mo direitahavia um rubi que fazia par com o da gravata, at mesmo nos brilhantes que o cir-cundavam. Tinha as mos macias e bem-cuidadas. Apesar de no serem grandes,sua flcida rotundidade fazia-as parecerem mal conformadas. Esfregou as palmasuma na outra, e disse encobrindo o leve rudo que produziram: Permite que umestranho apresente condolncias pela desgraada morte de seu scio?

    Obrigado. Posso perguntar, sr. Spade, se havia, como os jornais deduziram, uma certa...

    h. . . relao entre esse infeliz acontecimento e a morte, um pouco mais tarde, des-se Thursby?

    Spade no respondeu, mantendo o rosto inexpressivo.Cairo levantou-se e se inclinou. Peo desculpas. Sentou-se de novo e colo-

    cou as mos lado a lado, com as palmas para baixo, no canto da escrivaninha.

    Mais do que simples curiosidade levou-me a perguntar-lhe isso, sr. Spade. Estoutentando recuperar um. . . h. . . ornamento que foi. . . como diremos?. ., extravia-do. Julguei, e esperava, que o senhor pudesse me auxiliar.

    Spade aquiesceu, com as sobrancelhas levantadas, para demonstrar ateno. O ornamento uma estatueta continuou Cairo, escolhendo e mastigando cuidado-samente as palavras , a figura de um pssaro preto.

    Spade aquiesceu de novo, com interesse corts. Estou pronto a pagar, em nome do legtimo proprietrio da pea, a soma de

    cinco mil dlares para recuper-lo. Cairo levantou uma das mos de sobre a es-crivaninha e tocou um ponto no ar com a ponta do indicador disforme, coberto poruma unha chata. Estou pronto a prometer que. . . como que se diz?. . . no serofeitas perguntas. Ps a mo sobre a escrivaninha de novo, ao lado da outra, e sor-

    riu afavelmente por cima delas, para o detetive particular. Cinco mil uma boa quantia de dinheiro comentou Spade, olhando pensati-vamente para Cairo. . . . Ouviu-se uma batida leve na porta. Quando Spadeordenou "Entre", a porta abriu-se o suficiente para dar passagem cabea e aosombros de Effie Perine. Ela pusera um chapeuzinho de feltro escuro e um casacotambm escuro, com gola de pele cinzenta.

    Precisa de mais alguma coisa? perguntou. No. Boa noite. Tranque a porta quando sair, por favor. Boa noite disse ela, e desapareceu atrs da porta, que se fechou.Spade voltou-se na cadeira para encarar Cairo de novo, dizendo: uma quan-

    tia interessante. O rudo da porta do corredor, fechando-se atrs de Effie Perine,chegou at eles.

    Cairo sorriu e tirou uma pistola preta, curta, chata e compacta, de dentro de umbolso interno. Faa o favor disse ele , junte as mos sobre a nuca.

    1 O ORIENTAL

    Spade no olhou para a pistola. Levantou os braos e, encostando-se na cadeira,tranou os dedos atrs da cabea. Seus olhos, imperturbveis, conservavam-se fi-xos no rosto moreno de Cairo. Este tossiu uma tossezinha justificativa e sorriu ner-vosamente, com os lbios meio descorados. Seus olhos escuros estavam midos ehumildes, e muito atentos. Pretendo revistar seu escritrio, sr. Spade. Previno-ode que, se tentar me impedir, atirarei.

    Continue. A voz de Spade estava inexpressiva como seu rosto. Levante-se, por favor ordenou o homem armado de pistola quele cujo pei-

    to robusto ameaava. Preciso me certificar de que no est armado.

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    Spade levantou-se, empurrando para trs a cadeira com a barriga das pernas,ao se endireitar. Cairo deu a volta por trs dele, mudou a pistola da mo direita paraa esquerda, levantou a aba do palet de Spade e olhou por baixo dela. Conservandoa pistola encostada s costas de Spade, ps a mo direita sua volta e apalpou-lheo peito. Seu rosto ficou ento uns vinte centmetros, no mximo, abaixo e atrs docotovelo direito de Spade.

    O cotovelo de Spade desceu enquanto ele girava para a direita. O rosto de Cairorecuou violentamente, mas no para muito longe: o calcanhar direito de Spade, cal-cado sobre os dedos cobertos de couro envernizado de seu antagonista, manteve-ono caminho do seu cotovelo, que o atingiu por baixo do molar, abalando-o de talforma que ele teria cado se no estivesse seguro pelo p de Spade, apoiado sobre oseu. O cotovelo de Spade passou alm do rosto moreno e pasmado, e endireitou-sequando a mo de Spade se abateu sobre a pistola. Cairo largou a arma assim que osdedos de Spade a tocaram. Na mo deste, a pistola ficou pequena.

    Spade tirou o p de cima dos de Cairo, para completar a sua virada. Com a moesquerda juntou as duas lapelas do adversrio a gravata verde com alfinete derubi formou um emaranhado sobre os ns dos seus dedos , enquanto com a modireita guardava a arma apreendida num bolso do palet. Seus olhos amarelo-pardos estavam sombrios e o rosto, imvel, com uma expresso obstinada em torno

    da boca.O rosto de Cairo estava contrado pela dor e pela angstia. Havia lgrimas nos

    seus olhos escuros. Sua pele tinha a cor do chumbo polido, exceto onde o cotovelolhe avermelhara a face. Spade, agarrando ainda as lapelas do oriental, virou-o de-vagar e empurrou-o at junto da cadeira onde estivera sentado. Um olhar perplexosubstituiu o olhar de dor no rosto cor de chumbo. Ento Spade sorriu. Um sorrisosuave, quase sonhador. Seu ombro direito levantou-se alguns centmetros, e o bra-o direito, dobrado, foi levado pelo ombro, ao se erguer. O punho, o pulso, o ante-brao, a curva do cotovelo e o brao pareciam uma s pea rgida, movida apenaspelo ombro flexvel. O punho abateu-se sobre o rosto de Cairo, cobrindo por ummomento um lado do seu queixo, um canto da boca, e a maior parte da face, entre omolar e o maxilar. Cairo fechou os olhos e perdeu os sentidos.

    Spade largou ento o corpo frouxo na cadeira, onde ele ficou, com os braos eas pernas esparramados, a cabea descada para trs, contra as costas da cadeira, aboca aberta. Esvaziou-lhe os bolsos um por um, procedendo metodicamente, mo-vendo o corpo flcido quando necessrio, formando uma pilha de objetos sobre aescrivaninha. Depois voltou para a cadeira, enrolou e acendeu um cigarro, e come-ou a examinar os despojos. Examinou-os com grave e lenta meticulosidade.

    Havia uma grande carteira de couro escuro e macio, contendo trezentos e ses-senta e cinco dlares em notas dos Estados Unidos, de diversos tamanhos; trs no-tas de cinco libras; um passaporte grego muito visado, contendo o nome de Cairo eo seu retrato; cinco folhas dobradas de papel de seda cor-de-rosa, cobertas de umaescrita que parecia rabe; um recorte rasgado de jornal com a notcia do encontrodos corpos de Archer e Thursby; uma fotografia em carto-postal de uma mulher

    morena, de olhos atrevidos e cruis, e boca arqueada e terna; um grande leno deseda, amarelado pelo tempo e um pouco rasgado nas bordas; um pequeno mao decartes impressos do sr. Joel Cairo; e uma entrada para a platia do Geary Theatrepara aquela noite. Alm da carteira e do seu contedo, havia mais trs lenos s sedade cores alegres, cheirando a sndalo; um relgio Longines de platina com correntede platina e ouro avermelhado, preso a um pendente em forma de pra, de metalbranco; um punhado de moedas americanas, inglesas, francesas e chinesas; umaargola com meia dzia de chaves; uma caneta-tinteiro de prata e nix; um pente demetal, num estojo imitando couro; uma lima para unhas, num estojo imitando cou-ro; um pequeno guia das ruas de San Francisco; um registro de bagagem da Sou-thern Pacific; um pacote de pastilhas de violeta, meio vazio; um carto comercial deum corretor de seguros de Xangai; e quatro folhas de papel de correspondncia doHotel Belvedere, numa das quais estava escrito, em letras midas e claras, o nomede Samuel Spade e os endereos do seu escritrio e do seu apartamento.

    Tendo examinado cuidadosamente esses objetos ele chegou at a abrir a capado relgio para ver se no havia nada escondido ali , Spade inclinou-se e pegou o

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    pulso do homem entre o indicador e o polegar, para tomar-lhe a pulsao. Depoislargou-o, tornou a sentar-se, enrolou e acendeu outro cigarro. Enquanto fumava,seu rosto, excetuando-se leves movimentos acidentais e indeterminados do lbioinferior, estava to imvel e pensativo que parecia apatetado; mas, quando Cairogemeu e moveu as plpebras, ele tomou uma expresso branda e esboou, com osolhos e a boca, um sorriso amistoso.

    Joel Cairo acordou devagar. Seus olhos se abriram, mas passou-se um longominuto antes de pararem num ponto fixo do teto. Depois fechou a boca e respirou,exalando pesadamente atravs do nariz. Encolheu um p e virou uma das mos so-bre a coxa. Ento levantou a cabea das costas da cadeira, lanou um olhar confusoem volta da sala, viu Spade e sentou-se direito. Abriu a boca para falar, comeou adizer alguma coisa e levou a mo ao rosto, onde o punho de Spade tinha batido ehavia agora uma contuso vermelha. Enfim, Cairo disse penosamente, por entre osdentes: Eu podia t-lo alvejado, sr. Spade.

    Podia ter tentado admitiu este. Mas no tentei. Eu sei. Ento por que me agrediu depois de eu estar desarmado? Sinto muito sorriu Spade com arrogncia, mostrando os molares mas i-

    magine o meu embarao quando descobri que essa oferta de cinco mil dlares eraapenas um engodo...

    Est enganado, sr. Spade. Era, e , uma oferta real. Como assim? A surpresa de Spade e r a real. Estou pronto a pagar cinco mil dlares pela restituio da estatueta. Cairo

    tirou a mo da face contundida e sentou-se, novamente afetado e parecendo umhomem de negcios. Est em seu poder?

    No. Se ela no est aqui Cairo mostrava-se polidamente ctico por que teria

    o senhor corrido um srio risco para impedir que eu a procurasse? Devia ficar quieto e deixar que entrasse gente aqui para me roubar? Spade

    indicou com o dedo os objetos pertencentes a Cairo, sobre a escrivaninha. Voc

    arranjou o endereo do meu apartamento. J esteve l? J, sr. Spade. Estou pronto a pagar cinco mil dlares pela devoluo da esta-tueta, mas sem dvida bastante natural que eu tentasse primeiro poupar ao seuproprietrio essa despesa, se possvel.

    Quem ele?Cairo sacudiu a cabea e sorriu. Ter que me perdoar por no responder a es-

    sa pergunta. Terei? Spade inclinou-se, sorrindo com os lbios cerrados. Eu o apanhei

    pelo pescoo, Cairo. Voc entrou aqui por sua prpria vontade e se enredou o sufici-ente para ter que se ajustar com a polcia, por causa dos assassinatos da noite pas-sada. Bem, agora ter que se divertir comigo, ou com eles.

    O sorriso de Cairo era afetado e bastante despreocupado. Tirei informaes

    mais ou menos amplas a seu respeito antes de iniciar qualquer ao disse , easseguraram-me que bastante sensato para permitir que outras consideraesinterfiram em lucrativas relaes comerciais.

    Spade encolheu os ombros. Onde esto elas? perguntou. Ofereci-lhe cinco mil dlares por. . .Spade bateu com as costas dos dedos na carteira de Cairo: No h nada pare-

    cido com cinco mil dlares aqui. Voc est apostando seus olhos. Podia chegar e di-zer que me pagaria um milho por um elefante vermelho, mas, porra, que importa-ria isso?

    Percebo, percebo disse Cairo pensativamente, apertando os olhos. O se-nhor quer uma garantia da minha sinceridade. Esfregou o lbio inferior com aponta do jecj0 Um adiantamento poderia servir?

    Poderia.Avanou ento a mo em direo carteira, hesitou, puxou a mo e disse: O

    senhor tira, digamos, cem dlares.

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    Spade pegou a carteira e tirou cem dlares. Depois franziu as sobrancelhas, di-zendo: Melhor inteirar duzentos e inteirou. Cairo no disse nada. Sua primei-ra conjetura foi que o pssaro estava comigo disse Spade evasivamente, depoisde pr os duzentos dlares no bolso e a carteira sobre a escrivaninha. No ver-dade? Qual a segunda?

    Que o senhor sabe onde ele est, ou, se isso no exato, que o senhor sabeonde encontr-lo.

    Spade no negou nem confirmou: mal parecia ter ouvido. Que provas podedar-me de que o seu homem o proprietrio? perguntou.

    Muito poucas, infelizmente. H esta, entretanto: ningum mais pode dar-lhenenhuma prova autntica de propriedade. E se o senhor est to a par do caso, co-mo suponho ou eu no estaria aqui , sabe que os meios pelos quais lhe foi arre-batado mostram que o seu direito a ele era maior que o de qualquer outro, sem d-vida maior que o de Thursby.

    E quanto filha dele? perguntou Spade.A excitao fez os olhos e a boca de Cairo se abrirem, avermelhou-lhe o rosto,

    tornou-lhe a voz estridente. No e l e o proprietrio!Spade fez "Ah!" de um modo suave e ambguo. Ele est aqui agora, em San Francisco? perguntou Cairo numa voz menos

    estridente, mas ainda excitada.Spade piscou os olhos sonolentos e sugeriu: Seria melhor se pusssemos as

    cartas na mesa.Cairo recuperou a compostura com uma pequena contrao. No acho que se-

    ja melhor. Sua voz mostrava-se afvel agora. Se o senhor sabe mais do que eu,aproveitarei os seus conhecimentos, e assim tambm o senhor, at aimportncia decinco mil dlares. Se no sabe, ento cometi um erro procurando-o, e proceder daforma como sugere seria simplesmente agravar esse erro.

    Spade aquiesceu com indiferena e mostrou com a mo os objetos sobre a me-sa, dizendo: A esto as suas coisas: , e logo, quando Cairo as repunha nos bol-sos: Est entendido que deve pagar minhas despesas enquanto eu estiver rea-vendo o pssaro preto para o senhor, e cinco mil dlares quando o tiver conseguido?

    Sim, sr. Spade; isto , cinco mil dlares, menos o dinheiro que lhe tenha sidoadiantado: cinco mil no total. Certo. E uma proposta legtima. O rosto de Spade mostrava-se solene,

    com exceo das rugas nos cantos dos olhos. O senhor no est me contratandopara cometer assassinatos ou roubos, mas simplesmente para reaver o objeto rou-bado, se possvel de um modo honesto e legal.

    Se possvel concordou Cairo. Seu rosto tambm estava solene, com exceodos olhos. E, em qualquer eventualidade, com discrio. Levantou-se e pegou ochapu. Estou no Hotel Belvedere, quando quiser comunicar-se comigo: quarto635. Espero com confiana o maior benefcio mtuo da nossa associao, sr. Spade. Hesitou um pouco. Posso reaver minha pistola?

    Pois no. Tinha me esquecido dela. Spade tirou a pistola do bolso do palet

    e estendeu-a a Cairo.Cairo apontou a arma para o peito de Spade. Por favor, conserve as suasmos sobre a escrivaninha mandou com gravidade. Pretendo revistar seus es-critrios.

    Essa no disse Spade. Depois riu. Muito bem. Continue. No o interrom-perei.

    6 O PEQUENO ESPIO

    Durante meia hora, aps a partida de Joel Cairo; Spade se conservou sentado escrivaninha, imvel e carrancudo. Depois disse alto, no tom de quem afasta umproblema: Bem, eles esto pagando para isso , e tirou uma garrafa de coquetelManhattan e um copo de papel de uma gaveta do armrio. Encheu dois teros docopo, bebeu, tornou a colocar a garrafa no armrio, atirou o copo no cesto de pa-

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    pis, ps o chapu e o sobretudo, apagou as luzes e desceu para a rua iluminada.Um rapaz de pequena estatura, de uns vinte, vinte e um anos, com sobretudo e boncinza, muito limpos, estava parado ociosamente na esquina, abaixo do prdio deSpade.

    Spade subiu a Sutter Street em direo Kearny, onde entrou num bar, paracomprar dois pacotes de Buli Durham. Quando saiu, o rapaz fazia parte das quatropessoas que estavam esperando um bonde, na esquina fronteira. Spade jantou noGrill Herbert, na Powell Street. Quando deixou o Grill, s quinze para as oito, o rapazestava olhando a vitrina de uma loja de armarinhos prxima. Spade dirigiu-se aoHotel Belvedere, perguntando pelo sr. Cairo na portaria. Disseram-lhe que Cairo noestava. O rapaz sentou-se em uma cadeira num canto afastado do saguo. Spade foiao Geary Theatre, no viu Cairo no saguo, e postou-se na beira da calada oposta,de frente para o teatro. O rapaz misturou-se aos vadios em frente ao restauranteMarquard, mais abaixo.

    Dez minutos depois das oito, Joel Cairo apareceu, subindo a Geary Street compassinhos midos e cadenciados. Aparentemente, no enxergou Spade seno quan-do este lhe tocou no ombro. Pareceu um pouco surpreso, por um instante) depoisdisse: Ah, sim, naturalmente o senhor viu o bilhete de entrada.

    Hum-hum. Tenho uma coisa para lhe mostrar. Spade fez Cairo recuar em

    direo beira da calada, um pouco distante dos espectadores que estavam es-pera. O garoto de bon, embaixo, junto ao Marquard.

    Cairo murmurou: Vou ver , e olhou o relgio. Depois olhou para o lado decima da Geary Street e em seguida para um cartaz na sua frente, no qual GeorgeArliss estava vestido de Shylock, e ento seus olhos escuros deslizaram para o lado,nas rbitas, at encontrarem o garoto de bon e o seu rosto plido e sereno, de so-brancelhas curvas que encobriam os olhos baixos.

    Quem ? perguntou Spade.Cairo olhou-o e sorriu. No o conheo. Anda me seguindo pela cidade.Cairo molhou o lbio inferior e perguntou: Acha que prudente deixar que

    nos veja juntos?

    Como posso saber? De qualquer forma, j viu. Cairo tirou o chapu e alisou ocabelo com a mo enluvada, colocou de novo o chapu cuidadosamente, e disse comtodas as mostras de inocncia: Dou-lhe minha palavra de que no o conheo, sr.Spade. Dou-