17.08- PSICOLOGIA SOCIAL, SABER, COMUNIDADE E CULTURA (1)

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    Jovchelovitch, S. Psicologia Social, saber, comunidade e cultura

    PSICOLOGIA SOCIAL, SABER, COMUNIDADE E CULTURA

    Sandra Jovchelovitch

    London School of Economics and Political Science

    RESUMO Este trabalho apresenta uma reflexo sobre as relaes entre saber, comunidade e culturadesde uma perspectiva psicossocial. Eu parto do conceito de representao e discuto a relao funda-mental entre processo representacional e contexto, entendido como o lugar histrico, social, simblico ecultural de uma comunidade humana. Entender o processo representacional importante porque eleocupa um lugar central no processo de constituio dos saberes: no h saber que no deseje represen-

    tar. Ao mesmo tempo, a anlise da forma representacional enquanto estrutura dialgica permite aelucidao das relaes scio-culturais que se encontram na base da formao dos saberes. A forma darepresentao tanto forma do saber como forma de constituio de um contexto scio-cultural.

    PALAVRAS-CHAVE: Processo Representacional; Relaes scio-culturais; Polifasia

    SOCIAL PSYCHOLOGY: KNOWLEDGE, COMMUNITY AND CULTURE

    ABSTRACT: This article discusses the relations between knowledge, community and culture from apsychosocial perspective. Departing from the concept of representation, I discuss the fundamental relationbetween representational process and context, understood as the historical, social, symbolic and cultu-ral place of a human community. It is important to understand the representational process because itoccupies a central place in the process of knowledge constitution: theres no knowledge that doesntdesire to represent. At the same time, the analysis of the representational form as a dialogical structureallows for the understanding of the socio-cultural relations that are to be found at the base of knowledgeformation. The form of representation is as much the form of knowledge as the form of constitution of asocial-cultural context.

    KEYWORDS: Representational process, Social-cultural relations, Polyphasia

    INTRODUONeste trabalho a anlise da forma represen-

    tacional construir as premissas para discutir oproblema da variabilidade do saber e de como estavariabilidade se expressa scio-historicamente. Parafazer esta discusso, vou introduzir o conceito depolifasia cognitiva (MOSCOVICI, 1976), traar asorigens do conceito e apontar sua fecundidade paraexplicar tanto a variao como a relao entre sa-beres. A polifasia cognitiva refere-se a um estadoem que registros lgicos diferenciados inseridos emmodalidades diferentes de saber coexistem em ummesmo indivduo, grupo social ou comunidade.

    Ligar o saber ao seu contexto e reafirmar

    sua relao com a representao tarefa necess-ria, mas no fcil. Toda base do pensamento mo-derno est definida em termos de uma razo pro-gressiva e da capacidade do sujeito do conheci-mento colocar a si prprio como objeto e aprendersuas prprias condies de possibilidade. Cogitoergo sum: se possvel apontar um comeo paramundo moderno ele est l, nesta frase. A nova

    conscincia da modernidade nasce desta convic-o fundamental de que o domnio da natureza eda histria por uma racionalidade destinada a sa-ber e compreender era desprovido de mistrios; eleera prometido ao sujeito do conhecimento comointeligibilidade plena. A Idade da Razo destro-nou o poder da autoridade e da religio e conde-nou a si mesma a livrar-se de sua conexo comsujeito, comunidade e cultura. O desenvolvimentoe o progresso do saber torna-se um processo atra- vs do qual as estruturas internas do conhecimen-to libertam-se da emoo, do habituse da autori-dade impostos pela cultura, para atingir sua formaplenamente racional, verdadeira, desculturada

    e deslocalizada.Ora, ns sabemos que este programa nose desenvolveu sem antinomias. Mas o paradoxode fundo continua marcando nossa relao comos saberes, qual seja, para ser saber, o saber devedescolar-se do contexto de sua produo, livrar-sedas impurezas de quem o produz, dos interesses,paixes e motivos que esto ligados a uma pessoa

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    humana, a uma polis humana, a uma cultura hu-mana, e buscar a certeza da perfeita descrio doobjeto do saber. Assim definem-se as condies dosaber, de tarefa humana a tarefa humanamenteimpossvel.

    Gostaria de justapor a esta tendncia umargumento que recupera a representao enquan-to processo psicossocial e teoriza todo saber comorepresentacional. Trata-se ento de entender a for-ma que o saber assume enquanto representao eaquilo que expressa enquanto sistema psicossocialfirmemente radicado em um contexto social. Tra-

    ta-se tambm de entender como a variabilidadedas formas do saber se realiza em esferas pblicase como ela tratada. Isso porque enquanto algunssaberes gozam de credenciais epistemolgicas ple-nas, reconhecimento e legitimidade, outros so vis-tos como distoro, superstio e erro. Resta saberse esta distino parte de uma caracterstica inter-na dos saberes ou de determinantes sociais maisamplos que conferem poder a alguns saberes e pelomesmo movimento desapropriam outros de qual-quer reconhecimento.

    REPRESENTAO, MEDIAO E SABER - A CONTRIBUIO DA PSICOLOGIA SOCIAL

    A psicologia social , no meu entendimen-to, a cincia do entre. Isso significa dizer que o

    lugar privilegiado do inqurito psicossocial no nem o indivduo nem a sociedade, mas precisa-mente aquela zona nebulosa e hbrida que com-porta as relaes entre os dois. O foco no entre ,obviamente, um dispositivo terico, j queempiricamente nos deparamos sempre com instan-ciaes objetivadas produzidas pelo espaorelacional que constitui o entre. Estas objetivaesse apresentam como unidades, como todos, comorealidades acabadas e fechadas. Mas, to logo co-meamos a escavar sua superfcie a realidade, queaparece como um todo contido e fechado, seesvanece. Surgem ento redes mveis e extrema-mente complexas de relaes, cuja natureza ne-cessita ser investigada, descrita e se possvelexplicada. nesta zona mais subterrnea de me-diaes, profundamente relacionada, contudo, coma superfcie que ao mesmo tempo ela cobre e reve-

    la, que reside o psicossocial. Categorias como aidentidade, o eu, o discurso, a representao e aao, para citar apenas algumas, so todas produ-zidas l, no espao do entre. minha convicoque este espao constitui o objeto especfico doinqurito psicossocial e o entendimento detalha-do deste espao que a psicologia social pode ofere-cer a um dilogo interdisciplinar.

    H uma longa tradio, tanto dentro comofora da psicologia, que milita contra o entre. Noh aqui tempo ou espao para elaborar o impactoe poder constitutivo da filosofia cartesiana sobre odesenvolvimento da psicologia enquanto discipli-na. Basta dizer que tanto o behaviorismo como ocognitivismo, ambos se construram sobre a hip-tese cartesiana (MARKOV, 1983) e nenhuma dasduas abordagens deve ser minimizada enquantoforas que deram forma abrangncia, aos objeti- vos, aos arranjos institucionais, aos cdigos e pr-ticas da psicologia. O cartesianismo imps a lgi-

    ca do ou isso, ou aquilo no modo como pensa-mos sobre o psicolgico e sua constituio. Trata-se ou do indivduo (representando o psquico) oudo social, ou do corpo ou da mente, ou do discur-so ou da representao, ou da atitude ou do com-portamento e assim por diante. A lista de dicotomias infindvel, como ns todos sabemos bem. Seriainjusto, entretanto, culpar apenas a psicologia porpensar atravs destas dicotomias e seria certamen-te injusto culpar apenas a Descartes; como pode-mos esquecer a lgica aristotlica e a lei da no-contradio? As dicotomias esto to profundamen-te arraigadas no pensamento e auto-interpretaoocidental que at hoje elas continuam influenci-ando o conjunto das cincias sociais (MARKOV,1983).

    Se eu coloco nfase nesta concepo de

    psicologia social porque a noo de representaoe polifasia cognitiva que vou apresentar, dependemdesta viso de nossa disciplina como a cincia doentre. Uma vez que ns tomamos a srio o entre,concepes mentalistas sobre a representao caempor terra e a representao j no mais definidaatravs de processos intra-psquicos e isolados queencontramos na forma dominante da cinciacognitiva. Ao mesmo tempo uma clarificao do en-tre permite a integrao tanto do objeto quantodo outro na conceituao da representao. Comoa nova psicologia social da coisa mostra (Bauer,2000), a representao no pode prescindir de su- jeitos em relao e de objetos. Nesse sentido, arepresentao tanto social como est enredadana materialidade do mundo (LATOUR, 1996).

    Da que a especificidade da Psicologia So-cial teorizar espaos de mediao que residem

    na contradio e coexistncia de opostos. A Psico-logia Social se fizer a devida justia ao seu objetode estudo pode dar uma contribuio incisiva aosdebates mais amplos sobre representao, identi-dades, discursos e linguagem, estudando comoestas categorias se relacionam e ao mesmo tempoconstituem a vida e o contexto cotidiano de comu-nidades humanas.

    ora diz sobre RS e discorre sobre algumasactersticas da mesma.

    A influncia da dictomia cartesia no pensamen-to atual, separar as coisas dicotomicamente,"a lgica do isso ou aquilo"

    Citao indireta no artigo

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    REPRESENTAO:MEDIAO ENTRE SUJEITO, OBJETO E OUTRO

    A noo de representao central parauma teoria dos saberes sociais e para qual-quer epistemologia. Ela obviamente um dosconceitos-chave da teoria das representaessociais. A noo tem sido cercada de contro- vrsias desde sua concepo e no minhainteno aqui traar sua trajetria filosfica,ou como ela usada em diferentes discipli-nas das cincias sociais. Em Psicologia, a re-

    presentao teve uma histria turbulenta e seupapel crucial, de fato constitutivo, na forma-o do sujeito psicolgico nem sempre foi vis-ta de forma consensual.

    O problema da representao se iniciacom a no-imediaticidade do mundo existen-te para os humanos. Quando me refiro aomundo existente, note, no estou me referin-do a alguma realidade externa que indepen-dente do saber humano. Estou me referindo atudo aquilo que existe para as pessoas, inclu-indo o prprio Eu, o Outro, objetos fsicos eartefatos culturais, saberes acumulados, en-fim, a tudo que constitui o existente. Seguin-do a Psicologia do Desenvolvimento de Piaget(1969, 1975, 977) e Winnicott (1971, 1988),eu chamo este tudo de objeto-mundo. O ob-

    jeto-mundo no se entrega aos humanos per-feitamente e ns tambm no estamos equi-pados para nos colar perfeitamente a ele.Em suma, no h uma relao direta, umacorrespondncia perfeita entre o ser humanoe o mundo. O objeto-mundo somente se tornanosso conhecido se ns nos dermos o traba-lho de represent-lo. Faz parte, tanto de nos-sa histria ontogentica como filogentica,nos darmos a este trabalho: um trabalho queleva tempo e um trabalho duro, que envolveum processo intenso e apaixonado de co-cons-truo entre infante, aquele que lhe prestacuidados e o objeto-mundo (DUVEEN, 1997,2001; VALSINER, 2000) .

    Esta no correspondncia entre os se-res humanos e o objeto-mundo est inscritaem nossa constituio biolgica e seria uma

    bobagem ignor-la. Qualquer Psicologia hu-mana deve enfrentar o corporificao das es-truturas psquicas, at porque a gnese dopensamento e do saber se encontra na aodo corpo. Se nossa constituio biolgica nofosse importante, qualquer organismo serviriapara produzir um ser humano. Ns sabemos,contudo, que tentativas de ao comunicati-

    va com alguns de nossos parentes genticosmais prximos, os bononos, fracassaram emproduzir uma forma distintamente humana decomunicao (SAVAGE,RUMBAUGH ANDFIRLEDS, 2000; STRAYER, 2000). Ora, o bio-lgico importa, e a chave para entender ano-correspondncia entre os seres humanose o objeto-mundo. Mas a Psicologia deve avan-ar e dar conta daquilo que a Biologia sozi-nha no consegue explicar. Quando as fun-daes biolgicas se complexificam pelo de-senvolvimento de um sujeito que tanto psi-

    colgico como social, a abrangncia da expli-cao cientfica tambm dever ser levada adi-ante. A representao, enquanto fenmenopsicolgico e social, um conceito centralnesta tarefa.

    A representao uma estrutura demediao entre o sujeito-outro, sujeito-obje-to. Ela se constitui enquanto trabalho, ou seja,a representao se estrutura atravs de umtrabalho de ao comunicativa que liga sujei-tos a outros sujeitos e ao objeto-mundo. Nes-te sentido pode-se dizer que a representaoest imersa na ao comunicativa: a aocomunicativa que a forma, ao mesmo tempoque forma em um mesmo e nico processo, osparticipantes da ao comunicativa. A aocomunicativa envolve a linguagem assim como

    envolve ao de tipo no-discursivo; estas semanifestam nas prticas do cotidiano, nasinstituies sociais e nas estruturas informaisdo mundo vivido (HABERMAS, 1988).

    O trabalho comunicativo da represen-tao produz smbolos cuja fora reside emsua capacidade de dar sentido, de significar. A representao trabalha colocando algo nolugar de algo, seu trabalho um trabalho dedeslocamento simblico. Este deslocamentode objetos e pessoas que d a cada um e atodos uma nova configurao a essncia daordem simblica. Ele mostra claramente quea criao e a construo esto na base do re-gistro simblico, j que suas operaes estoontogeneticamente ligadas e envolvem resdu-os da capacidade de fazer-de-conta desenvol-vida na primeira infncia. Ele t ambm demons-

    tra a concepo entre a construo do simb-lico, a arte e a cultura, j que esta ltima um acmulo de significados e smbolos quese solidificam ao longo do tempo.

    Esta concepo de representao en-quanto estrutura de mediao pertencendo aoespao do entre pode ser vista na Figura 1:(ilustrao na pgina seguinte)

    Neste pargrafo a autora faz o link entre arepresentao at a polifasia, considerandoque o representar um movimento simblicoque movido pelos novos sentido dados aosnovos objetos e fenmenos que surgem duran-te nossas vivncias.

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    Figura 1: Os Elementos Constituintes e o Modode Produo da Representao

    Este modelo representa uma fatia do pro-cesso representacional vista no tempo e em con-texto. Bauer e Gaskell (1999) projetam a figuraacima no tempo e prope o Modelo Tobleroneque adiciona a dimenso fundamental de projetoao processo representacional. Como eles observama este tringulo bsico uma dimenso temporal,tanto de passado como de futuro, adicionadapara denotar o projeto explcito ou implcito ligan-do os sujeitos e o objeto (1999: 170). O problemado tempo, que corresponde ao problema fundante

    da histria, portanto claramente integrado aoprocesso representacional. Temos, portanto, os vn-culos sujeito-sujeito-objeto- projeto- tempo- contex-to- ao comunicativa como fenmenos constitu-intes do processo total do fenmenorepresentacional.

    Da que o estatuto da representao polivalente. A representao uma construoontolgica, epistemolgica, psicolgica, social,cultural e histrica. Ela todas estas dimensesao mesmo tempo e cada um destes atributos spode ser entendido em relao a todos os outros, j que do ponto de vista fenomnico eles so di-menses simultneas do sistema representacional.Quando as pessoas se engajam em processos decomunicao que as situa em relaes concretasligadas a uma especfica configurao cultural,social e histrica que elas ativamente (re)produzem elas ao mesmo tempo produzem os meios simb-licos que constroem uma representao particularde um objeto seja ele concreto, fsico ou abstrato que entra na rede de outras representaes deum quadro social, cultural e histrico. Este proces-so ontolgico na medida em que tem um papelconstitutivo na emergncia do sujeito humanocomo um ser que representa a si mesmo e, portan-

    to, possui uma identidade. epistemolgico namedida em que permite o (re)conhecimento: o sa-ber sobre o objeto tanto o Eu como um objetopara si mesmo como o objeto-mundo. Ele umprocesso psicolgico na medida em que se estrutu-ra e se manifesta como processo psquico suscet-vel aos estratagemas da paixo, da iluso e do de-sejo. um processo social porque o intersubjetivo sua condio de possibilidade e sua matriaadvm da inteligibilidade da histria e da cultura.Este status polivalente reafirma a sua estruturamediadora. A representao no est localizada

    em nenhum dos cantos do tringulo de mediao;seu espao o entre do tringulo e os elementosconstituintes que o formam.

    Dentro de tal concepo de representao, vises intra-mentais da representao se tornamobviamente redundantes: a representao perten-ce ao entre da comunicao humana e da aosocial; no produto de uma ao humana fecha-da em si mesma. Esta viso tambm descarta aque-las concepes que negam o papel dos objetos noprocesso de formao da representao. Aqui a re-presentao no o ato nico de um sujeito cujaao d forma representao. A materialidadedo objeto-mundo integral ao processorepresentacional e interage com o sujeito dandoforma tanto quanto ele d ao resultadorepresentacional.

    Finalmente, esta concepo de representa-o no d ao processo representacional o poderde definir completamente o objeto. No nos esque-amos dos perigos envolvidos na hiper-representa-o, o termo que eu uso para descrever aquelassituaes onde as representaes so produzidassem considerao alguma com a realidade do ob- jeto. A representao tambm distorce, mente, ilu-de e confunde. A hiper-representao , natural-mente, parte do poder da representao, j que osimblico uma esfera onde a lei do faz-de-con-ta se aplica. Esta a faceta do processorepresentacional que tem um papel decisivo tantona dimenso criativa e positiva da sua construocomo na dimenso negativa e nas possibilidadesde subjugao que esto presentes noconstrucionismo exagerado. Dentro de relaes depoder mais amplas que operam em qualquer socie-

    dade, estes efeitos podem, e certamente so, usa-dos por vrios grupos sociais em vrios momentospara produzir efeitos ligados a interesses e proje-tos. Da que a distino entre representao e seuobjeto crucial e precisa ser preservada como ni-ca possibilidade de sustentar a idia de crtica epreciso na cognio. A no ser que queiramos nosrelativizar at a morte, por assim dizer, impor-

    Essa parte os Bixoooo !!!!

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    tante reconhecer que o objeto-mundo vai alm denossos esforos para represent-lo. Este o casono apenas porque a pluralidade humana abre esteobjeto para os esforos de representao de outrosdiferentes e diferentes contextos, mas tambm por-que a representao humana uma forma de me-diao que nunca consegue capturar plenamentea totalidade de um objeto. Tendo ento discutido,o problema da representao e seu statuspolivalente, na prxima seco discutirei o concei-to de polifasia cognitiva. Como se ver, a polifasiacognitiva um conceito que expande o lao entre

    representao e contexto e, ao mesmo tempo, per-mite uma concepo malevel e plural de sabersocial.

    O CONCEITO DE POLIFASIA COGNITIVA:SABER, COMUNIDADE E CULTURA

    O conceito de polifasia cognitiva foi intro-duzido por Serge Moscovici em seu estudo clssi-co sobre representaes e psicanlise na Frana(MOSCOVICI, 1961/1976). Ele foi cuidadoso emapresent-lo como uma hiptese, mas os dadoseram claros: havia evidncia suficiente no materi-al para sugerir que tipos diferentes de racionalidadeestavam envolvidos na construo de representa-es sobre psicanlise. Estas racionalidades diver-sas dependiam de seu contexto de produo e pro-

    curavam responder a objetivos diferentes. O queera interessante notar, contudo, era que ao con-trrio de interpretaes estabelecidas de fenme-nos cognitivos, estas racionalidades diversas noapareciam em grupos diferentes, ou em contextosdiferentes; ao contrrio, elas eram capazes de existirlado a lado em um mesmo contexto, mesmo gruposocial e, mutatis mutandis, no mesmo sujeito in-dividual. As pessoas lanariam mo de um ou ou-tro saber dependendo das circunstncias particu-lares em que se encontravam e dos interesses par-ticulares que sustentavam em um dado espao etempo.

    Moscovici props este conceito no contex-to de debates ligados a diversidade do saber e comodar conta das diferenas entre a lgica e aracionalidade embebida em formas de saber comoa crena, a cincia, a representao social, etc.

    Para que possamos entender o conceito e sua con-tribuio especfica investigao do lao entresaber social e contexto necessrio traar as ori-gens do debate sobre a diversidade dos saberes eos temas centrais que nele esto presentes. Issotambm nos permitir ligar o problema da diferen-a na forma do saber com a conceituao de repre-sentao que foi proposta no incio deste texto.

    SABER EM CONTEXTO:RE-VISITANDO OS PIONEIROS

    Ao desenvolver a noo de polifasiacognitiva e us-la para dar sentido aos dadosempricos de seu estudo sobre a psicanlise,Moscovici estava se posicionando em uma tradi-o particular. De fato, a teoria das representaessociais como um todo se desenvolveu em relaodireta com os debates clssicos sobre aracionalidade do saber conduzida por psiclogos,socilogos e antroplogos europeus no incio do

    sculo XX. Estes debates, profundamente influen-ciados por tradies fenomenolgicas, buscavamexplicar como a racionalidade do conhecimentose intersecciona com a condies sociais concretasde sua formao1 . Na psicologia em particular esteproblema sempre foi constante; Piaget e Vygotsky,para no mencionar James e Freud lutaram com oproblema da conscincia, sua formao, desenvol- vimento e a racionalidade que ela produz.

    A tentativa de estabelecer que para cadaforma de saber corresponde um conjunto funda-mental de relaes sociais foi central para o pensa-mento que se desenvolveu sob a influncia dafenomenologia e da hermenutica. Foi tambm cen-tral para as psicologias de Piaget e Vygotsky, quetinham um entendimento claro da natureza socialda lgica e se propuseram a demonstrar em deta-

    lhe a maneira atravs da qual a sociedade d for-ma ao desenvolvimento das estruturas lgicas nacriana. Os dois mostraram que relaes sociaisdiferentes levam a modos de saber diferentes.Piaget, em As Operaes Lgicas e a Vida Social(1967), discutiu o problema extensivamente. L eleafirma que uma vez reconhecido o papel dainterao social na formao da lgica, o proble-ma no mais o impacto do social, mas qual otipo de interao social que prevalente e qual algica que produz. A anlise da constrio e dacooperao - os dois tipos de relao social quePiaget estudou forneceram mais evidncia pro-posio de que formas diferentes de interao pro-duzem lgicas diferenciadas.

    A psicologia de Vygotsky no estava me-nos preocupada com o problema. Studies in theHistory of Behaviour: Ape, primitive and child, es-

    crito por Vygotsky e Luria (1993) constitui umatentativa de estabelecer as trs linhas de desenvol-vimento que produzem aquilo que chamamos ohomem cultural. Ao analisar o uso de instrumen-tos por macacos antropides, as formas do pensarde povos ditos primitivos e o desenvolvimentoontogentico da criana, eles se propem a cons-truir uma noo de desenvolvimento que une o

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    evolucionrio, o histrico e o ontogentico. ComoWertsch nota em seu prefcio, o livro um dosmais importantes documentos que temos para en-tender o que Vygotsky entendeu por desenvolvi-mento. Como ele escreve:

    o termo psicologia do desenvolvimen-to se aplica quase exclusivamente aodomnio gentico da ontognese, e ti-picamente de forma ainda mais estrei-ta aos perodos da infncia eadolecncia. Em contraste a esta len-te estreita, Vygotsky e Luria argumen-

    tam que uma verdadeira anlise ge-ntica deve dirigir-se aos modos comoo conhecimento sobre todos os trsdomnios genticos contribui paranosso entendimento do comportamen-to e do funcionamento mental. Daque, alm de considerar como umaforma particular do funcionamentomental reflete as transiesontogenticas que levam at ele, tam-bm necessrio levar em conta asforas da filognese e da histriasociocultural que lhe formou.(WERTSCH, 1993:x, minha tradu-o).

    Este livro tambm fornece um panoramaextremamente interessante da extenso dos dilo-

    gos que se travavam entre os psiclogos russos epsiclogos, antroplogos e socilogos ocidentais.Khler, Lvy-Bhrul, Mauss, Durkheim, Rivers,Wertheimer, Kofka, Kurt Lewin para citar somentealguns, esto presentes na discusso. Khler, Lvy-Bhrul e Piaget, em particular, fornecem a base paratrs captulos do livro. Isso no um acidente.Talvez nenhum outro problema tenha sido to cen-tral para este perodo histrico como o debate so-bre o que constitui a unidade e a evoluo da ra-zo. As expedies antropolgicas que estavamcolocando intelectuais ocidentais face a face commodalidades de pensar de outras culturas eramempurradas no apenas pelo poder e fora do Im-prio, mas tambm pelo desejo de dar apoio oudescartar a ideia central de uma racionalidade una.

    neste contexto que Vygotsky e Luriaconduzem seu estudo sobre as diferentes

    modalidades de saber no Uzbekisto e na Khirgizia.Como j foi dito antes, eles foram claramenteinfluenciados pelas idias de Durkheim de que opsicolgico se origina no social e tinham umconhecimento detalhado dos debates entre Lvy-Bhrul e W.H.Rivers. Seu estudo foi importante noapenas porque comparou como culturas diferenteslevam a processos diferentes de pensar e de saber;

    ele era, de fato, nico, porque foi conduzido sobcondies de extrema mudana socialpossibilitadas pela Revoluo Russa. Este estudo relatado nas memrias de Luria (LURIA, 1979) econstitui um exemplo fascinante de combinaode metodologias vindas da psicologia e daantropologia. Ao invs de pesquisar remotos vilarejos russos, eles optaram por vilarejos ecampos nmades do Uzbekisto e da Kirgizia naAsia Central onde grande discrepncia entre formasculturais prometia maximizar a possibilidade dedetectar mudanas tanto nas formas bsicas como

    no contedo do pensar (LURIA, 1979: 60). L elesbuscaram determinar se as novas relaes sociaise o acesso escola possibilitados pelo novo regimesocialista poderiam produzir mudanas nocontedo e na forma de pensar das comunidadesexperienciando estas mudanas. Os resultadosforam inequvocos: encontraram-se transformaesclaras na organizao do pensamento ligadas adiferentes tipos de atividades e a estrutura socialespecfica dos grupos envolvidos. Alm disso, elesverificaram que estas mudanas ocorriam em umperodo de tempo relativamente curto. Graas aestes estudos hoje ns podemos afirmar que tantoo conhecimento como a mentalidade do sujeito dosaber que lhe corresponde so organicamentevinculados ao contexto social da comunidade emque eles so produzidos.

    A VARIABILIDADE DOS SABERES: HIERARQUIA,EXCLUSO OU CO-EXISTNCIA DA DIFERENA?

    Da proposio que o saber amarrado auma comunidade e seu contexto, segue-se aderivao quase bvia que os saberes variam. Hum nmero infinito de formaes sociais queproduzem um nmero infinito de formas diferentesde saber. E aqui que comea o problema. Se h variao nas formas do saber, como eles socomparados? Reconhecer variao e diferenaentre, saberes no o fim de nossa histria. Na verdade, apenas o comeo. O problema, diria,no tanto o de entender que as estruturaspsquicas e cognitivas mudam na medida quecondies sociais mudam. O problema o velhoproblema da modernidade, o centro mesmo de uma

    racionalidade iluminada: como formas inferioresdesenvolvem-se at formas superiores e como estasformas superiores, uma vez estabelecidas, deslocamo inferior para sempre.

    Variao na forma do saber ento coloca oproblema crucial de como conceber esta variao ede que quadros explicativos ns vamos utilizar afim de dar sentido diferena contida nesta

    Importantssimo!!

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    variao. Mais uma vez, o problema no novo enos leva de volta a concepes sobre odesenvolvimento e a transformao do saber. Comomuda o saber de uma forma a outra? Haveria umaescala progressiva cujo enquadre geral explicariao desenvolvimento de todo saber desde as formasbaixas/primitivas/simples at as formas altas/civilizadas/complexas? Colocando-se em outraspalavras: seria o saber de uma criana uma formaprimitiva do saber adulto? Ou seria o saber deoutras culturas (primitivas ou inferiores como aschamava a literatura do sculo XIX e incio do

    sculo XX) uma forma rudimentar da lgicaencontrada em sociedades ocidentais, ditascivilizadas? Estas questes, espero, sejam suficientespara demonstrar porque estes temas continuam aser nossos contemporneos. A idia de uma escalaprogressiva que leva a uma forma de saber, maisdesenvolvida e melhor, que serve de norma a todosos outros saberes invasiva. No apenas este ocaso na tradio acadmica que constituiu ascincias sociais e a Psicologia. A idia tambm sefundou em reas de aplicao que vo desde apromoo a sade, a intervenes desenvol- vimentistas em sociedades no-ocidentais, at osembates entre cincia e saber cotidiano em esferaspblicas contemporneas (veja, por exemplo,debates sobre biotecnologia, vacinao, meio-ambiente, etc.).

    Em Durkheim e Piaget era claro que formassuperiores de saber, encontradas em adultos epopulaes civilizadas, deslocariam formasprimitivas, encontradas em crianas e povosprimitivos. Para eles, o saber progride em direoao domnio total do mundo objetivo baseado emoperaes lgicas que deixam para trs os mitos,as supersties e as crenas. O artigo de Piagetsobre as operaes lgicas e a vida social argumentaque a socializao, ou a internalizao das regrassociais pela criana, a condio sine qua nonpara a emergncia da lgica e da educao darazo. Contudo, como nota ele, nem toda asocializao conduz ao pensamento lgico. Povosprimitivos, cujo sociocentrismo analogo aoegocentrismo da primeira infncia, no produzemo tipo de lao social que requerido para o alcancedo saber racional. somente em sociedades onde

    a individuao e a argumentao preponderam quea razo propriamente dita pode ser alcanada.

    Ainda que Lvy-Bhrul e Vygotsky tenhamproblematizado esta viso, eles no escaparamtotalmente da idia de progresso. Lvy-Bhrul que,como veremos, virou essa viso hierrquica decabea para baixo, tambm no estevecompletamente imune noo de progresso. Ao

    examinar o funcionamento da mentalidade pr-lgica no captulo trs de How Natives Think,ele declarou que a lgica a condio necessriapara a liberdade do pensamento e o instrumentoindispensvel para seu progresso. O programa deVygotsky, ainda que no to explcito como o dePiaget, possua uma preocupao muito similar. Osocialismo, esperava-se, produziria uma sociedadebaseada na cincia, capaz de deixar para trs omito, a superstio, a crena e o senso comum.Comparar o saber dos camponeses da sia Central, vistos como detentores de crenas atrasadas e

    irracionais e o novo sujeito racional produzidopelas condies sociais novas do socialismo, tinhacomo objetivo mostrar como um tipo especfico decondies sociais podia produzir racionalidade.

    Intrnseco ao trabalho destes pioneirosestava a premissa implcita de que esferas pblicasdes-tradicionalizadas, baseadas na argumentao,na cincia e no enfraquecimento da tradio so olugar por excelncia de toda racionalidade possvel.So estas sociedades que produzem saber, um saberque descarta a irracionalidade da crena, dasuperstio e do mito e busca o controle lgico domundo objetivo. A questo bvia perguntarmo-nos ento sobre outras formas de organizaosocial. Ser que elas podem produzir lgica e saberracional?

    Ainda que Lvy-Bhrul e Vygotsky tenham

    valorizado muito o desenvolvimento da lgica e oprogresso da razo, o trabalho deles contmelementos para produzir uma crtica radical destasidias e recoloc-las de forma completamentediferente. O trabalho de Lvy-Bhrul sobre amentalidade primitiva constitui, no meu modode ver, um dos movimentos mais importantes emdireo decentrao das cosmovises e, no hdvida, que foi mais dele do que de Durkheim,que Moscovici buscou inspirao para propor oestado de polifasia cognitiva (MOSCOVICI, 2001).

    Lvy-Bhrul desmantelou a concepodominante de seu tempo, que sustentava que hapenas um tipo de racionalidade, e qualquerevidncia contrria nada mais era que um conjuntode estgios sub-desenvolvidos destinados aprogredir at chegar a este tipo ideal. Ele mostrouque a lgica , ela prpria, uma categoria malevel

    e que lgicas diferentes no so menos lgicas quenossa prpria lgica. De fato, todas as tentativasde enquadrar lgicas diferentes em categoriaslgicas que so nossas, mostram apenas aslimitaes de nossa prpria lgica. Ele tambmdemonstrou que lgicas diferentes no somutuamente excludentes e no operam sob oimperativo da substituio. Ao comparar a

    arei aqui !

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    chamada mentalidade pr-lgica dos povosprimitivos com a mentalidade lgica dos povosdesenvolvidos ele enfatizou que o pensamentolgico no ir superar inteiramente a mentalidadepr-lgica. Este a razo pela qual o pensamentolgico no consegue preencher as funes que eleexclui e pela qual certa poro de pensamento pr-lgico subsistir. Os insights de Lvy-Bhrul sobre arelao entre padres culturais e modalidades dosaber ajudaram a iluminar a gnese e variao doscdigos semiticos que do forma ao modo comocomunidades humanas do sentido ao mundo e

    se comportam em relao a ele.H muitos paralelismos entre a noo de

    desenvolvimento de Vygotsky e as idias de Lvy-Bhrul. Mesmo sendo crtico de Lvy-Bhrul em vriosaspectos de seu trabalho, Vygotsky coincidia nanoo mais fundamental de que a transformaodo saber descontnua e no h substituio nasformas do saber, mas co-existncia. Ao invs deconceber o desenvolvimento e transformao dosaber dentro de uma escala progressiva e linearque substituem formas primitivas por formassuperiores, eles viram cada forma de saber comouma entidade prpria. As formas de saber serelacionam uma a outra, mas no necessariamentesucedem uma a outra linearmente. Elas necessitamser entendidas em relao ao contexto em que sousadas e em relao s funes que preenchem. As

    formas do saber coexistem e podem sercontraditrias, mas isso no um problema se nsabandonamos a lgica formal e sua dualidade aoconceb-las como opostas e abraamos umaperspectiva dialtica.

    Moscovici foi muito influenciado por estesinsights (MOSCOVICI, 1998; 2000). A descobertada polifasia cognitiva em seu estudo sobre apsicanlise corresponde a uma continuao, destavez dentro da Psicologia Social, de um debate que j havia iniciado h muito tempo e do qual Lvy-Bhrul provou ser uma das mais importantes fontesde inspirao. EmA Psicanlise, sua Imagem e seuPblico, Moscovici recupera o debate sobre ossistemas cognitivos e a racionalidade que elespossuem luz dos dados empricos de seu estudo.Estes mostravam a presena de estilos de raciocnioprximos s operaes concretas da criana. Mas

    o raciocnio estudado era o de toda uma sociedadee os participantes eram adultos. Como explicar apresena de uma modalidade do pensar relacionada infncia que, de acordo com as concepesdominantes sobre a transformao doconhecimento, deveriam ter sido superadas? Aresposta de Moscovici mais a la Lvy-Bhrul e Vygotsky do que a la Durkheim e Piaget. A

    coexistncia de sistemas cognitivos deveria ser maisregra do que exceo, ele escreveu. (MOSCOVICI,1976:286, minha traduo). E mais adiante: omesmo grupo e, mutatis mutandis, o mesmoindivduo so capazes de utilizar registros lgicosdiferentes nos domnios em que se relacionam comperspectivas, informao e valores que so distintos.(...) De modo geral, pode-se dizer que a coexistnciadinmica interferncia e especializao dediferentes modalidades de saber correspondendoa relaes especficas entre o homem e seu contextodeterminam um estado de polifasia cognitiva.

    (MOSCOVICI, 1976: 286, minha traduo).A hiptese da polifasia cognitiva, argumen-

    tou Moscovici, poderia abrir novas perspectivas naPsicologia Social, j que nos levava a estudar noapenas as correspondncias entre situaes soci-ais e modalidades de saber, mas tambm as trans-formaes e intercmbios entre as diferentes mo-dalidades. Isso, notou ele, sobretudo importanteporque nos permite relacionar o movimento dasformas do saber e sua ordem com o problema dainterao social e da cultura. Ligar a dinmica dossaberes Psicologia Social dos contextos e da cul-tura era uma das proposies tericas centraisque substancia o conceito de polifasia cognitiva.Este conceito permite recolocar o problema dos sa-beres em um outro patamar: saber uma atividadeque s pode ser entendida em relao ao contexto

    do qual ela deriva sua lgica e a racionalidadeque contm. Os saberes, portanto, devem ser vistoscomo uma forma dinmica que emerge continua-mente. A dinmica da forma representacional lhepermite a variao e a capacidade de conter tan-tas racionalidades quantas necessrias varieda-de infinita de situaes socioculturais que carac-terizam a experincia humana. Alm dos estudosclssicos no campo das representaes sociais, apesquisa recente em Psicologia Social corroborousolidamente a hiptese da polifasia cogntiva(WAGNER ET AL, 1999, WAGNER ET AL, 2000;GERVAIS AND JOVCHELOVITCH, 1998;JOVCHELOVITCH AND GERVAIS, 1999).

    A DIVERSIDADE EA COMUNICAO ENTRE SABERES

    A concepo de representao apresentadanas pginas iniciais deste trabalho e a discusso doconceito de polifasia cognitiva mostram que todosaber produzido em uma relao entre sujeito-su-jeito-objeto, no tempo e no espao. O entendimentodos saberes e de suas mltiplas lgicas envolve oentendimento da representao, enquanto um siste-ma de relaes psicossociais que envolvem:

    Conceito de Polifasia Cognitiva

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    1) Os produtores/sujeitos do saber, oque abrange a considerao de iden-tidades, interesses, acesso a recursose poder.2) Os meios de produo do saber, quecorrespondem sempre aos tipos de re-laes sociais estabelecidas entre aspessoas e seu ambiente tanto social,como natural.3) Os produtos/objetos do saber, quese referem tanto aos objetos fsicoscomo aos objetos abstratos que formam

    o meio-ambiente simblico e materialde uma comunidade humana. Estespodem ser, por exemplo, tecnologiasde todos os tipos, mas tambm as ope-raes simblicas e abstratas que dosentido ordem fsico-material e quese tornam objetivadas em monumen-tos, mquinas, livros, documentos, le-gislao, na mdia, etc.

    Neste sentido, o saber um sistema de re-presentaes simblicas organicamente ligado Psicologia Social dos contextos e enredado produ-tivamente com um modo de vida e com sua cultu-ra. Fica claro aqui que o saber sempre obra deuma comunidade humana e, portanto, deve ser en-tendido no plural. No h uma forma de saber ape-nas, mas muitas. Essa variao corresponde vari-

    ao nas formas de relao social que constituemtanto o saber como a comunidade. Da que o saber uma forma plstica e heterognea, cujaracionalidade e lgica no se definem por umanorma transcendental, mas devem ser avaliadasem relao ao contexto psicossocial e cultural deuma comunidade. Empiricamente, o inqurito so-bre os saberes desloca-se de um produto aparente-mente fechado e acabado, para a investigaodas relaes fundamentais que constituem o en-tre da formao dos saberes. Estas relaes e suarealizao emprica tornam-se o foco do esforoinvestigativo.

    Reconhecer a pluralidade do saber signifi-ca reconhecer a localizao fundamental de todosaber e o que essa localizao expressa em termosde ecologias humanas, culturas humanas, psicolo-gias humanas2 . Proposies epistmicas so tam-

    bm proposies ontolgicas elas no apenas pro-pem leituras do objeto-mundo mas declaram es-tados do ser. Permanece, entretanto, o problemade como formas diferentes de saber se encontram ese relacionam. preciso, em outras palavras,indagarmo-nos sobre as possibilidades comunica-tivas entre formas diferentes de saber, se elas exis-tem, se so possveis, ou se o encontro entre sabe-

    res no mundo contemporneo est destinado ex-cluso e opresso. aqui que nos deparamos comquestes ligadas aos embates e direitos de sobrevi- vncia de formas diferentes de saber. Reconhecerpluralidade no basta: preciso perguntar comoesta pluralidade foi historicamente tratada e so-cialmente realizada. Este o problema central li-gado ao estudo e discusso sobre os saberes hojee constitui o dilema central que psiclogos sociaisprecisam enfrentar quando trabalham com saberesdo cotidiano e com o mapeamento de saberes lo-cais vis vis formas dominantes de saber.

    A proliferao dos meios de comunicaode massa e o impacto de prticas globalizadas emarenas locais intensifica os embates entre formasdiferentes de saber e levanta questes sobre comocomunidades locais apropriam e do sentido aossaberes que chegam de lugares dominantes(JOVCHELOVITCH, 1997). Estas questes se rela-cionam diretamente ao problema das assimetriasno status e na valorao de diferentes saberes ecomo atores sociais com acesso desigual a recur-sos apropriam os saberes que penetram seus hori-zontes. As relaes entre saberes so, na maior partedas vezes, assimtricas: assimetria no status e navalorao de formas diferentes de saber impingediretamente na forma como o saber comunicado,estabelece sua veracidade e constri autoridade.

    Ao estudarmos representaes em uma di-

    versidade de esferas pblicas ns, psiclogos soci-ais, queremos revelar como contextos e comunida-des diferentes produzem saber sobre si mesmos esobre outros, bem como sobre questes que so re-levantes para seu modo de vida. A preocupaocentral entender como o saber local produzido,sustentado e defendido por comunidades bem comode que maneira estes processos esto enredadoscom categorias psicossociais centrais como a iden-tidade, a memria social e a participao na esferapblica. Estou convicta que o reconhecimento darelao fundamental entre saber e lugar foi um dosresultados mais importantes deste tipo de Psicolo-gia Social. Isso se deu com o esforo para reabili-tar os chamados saberes locais de um lado e, deoutro, questionar porque alguns saberes so loca-lizados enquanto outros recebem o estatuto e alegitimidade da universalidade. Da a necessidadede avaliar as formas dominantes de produo dosaber de forma a produzir uma crtica das aesestratgicas que, tanto na cincia, como em proje-tos scio-polticos, legitimaram uma forma de sa-ber como superior a todas as outras.

    importante ento reter, acreditar e lutarpela possibilidade de reconhecer no apenas a di-versidade dos saberes, mas tambm a legitimidade

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    e o status de suas diferentes formas. Esta diversi-dade precisa ser entendida para mais alm das pr-ticas que localizam o saber em termos de exclu-so, segregao e, nos casos mais extremos, des-truio. O dilogo entre formas diferentes do saberno apenas possvel como desejvel; se o quetodo saber deseja , de algum modo, dar sentidoao estranho, isso significa dizer que todo saber capaz de encontrar a estranheza do outro desco-nhecido e mediar as diferenas que encontra. Aoestudarmos a transformao dos saberes e os po-tenciais e os perigos inseridos na comunicao en-

    tre formas diferentes do saber, a Psicologia Socialpode fazer uma contribuio ao entendimento dosdilemas enfrentados por comunidadesmulticulturais bem como a todas aquelas outrascomunidades cujos saberes e modos de vida estoexpostos a contnua ameaa e destruio.

    CONCLUSO

    A pesquisa clssica sobre a construo dosaber em psicologia demonstrou com clareza quetodo saber localizado, isto , ligado a um lugare, portanto, plural. O saber enquanto sistemarepresentacional emerge de um contexto de rela-es socioculturais. Entretanto, houve uma fortetendncia a entender a variao do saber em ter-mos de uma escala progressiva. A construo de

    um padro contra o qual o sujeito do saber pode-ria ser avaliado levou a um processo scio-polticode colocar saberes e as pessoas que o produzemem uma escala hierrquica onde formas inferiorese formas superiores de saber (e ser, j que todosaber possui uma dimenso ontolgica) so com-paradas.

    Atravs do conceito de representao epolifasia cognitiva, propus que a Psicologia Socialdos saberes deve recuperar espaos de mediaocomo o lugar central de seu inqurito. Isso envol-ve:

    1) Uma mudana na conceituao dosaber que o desloca de uma relaodualista e dicotmica entre indivduoe sociedade para a intersubjetividadee interobjetividade da forma represen-tacional.

    2) Aceitar a diversidade das formasdo saber e das racionalidades que es-tas formas contm, bem como reco-nhecer a legitimidade de diferentesformas e seu potencial comunicativo.3) Repensar a evoluo e transforma-o do saber a fim de descartar a idiade uma evoluo ou progresso linear

    de formas inferiores para formas su-periores.

    Quando as tentativas de explicao domundo partem de uma razo que v a si mesmacomo o parmetro de todo o fenmeno humano, aexplicao ser necessariamente parcial e limita-da. O reconhecimento da diversidade de lgicasimplicadas no saber e, sobretudo, o reconhecimen-to da coexistncia de racionalidades diferentes nomesmo grupo ou pessoa apagam boa parte das de-formaes impostas por construes eurocntricase nos fornece um conceito mais sbio de razo,

    uma razo capaz de entender sua diferena inter-na e estabelecer um dilogo com o seu outro. LerLvy-Bhrul nos faz lembrar que preciso entendera luta da razo consigo mesma e aquilo que realem suas antinomias. Somente assim poderemos cor-rigir as limitaes de perspectivas cntricas e criaruma abordagem conceitual mais compreensiva edecentrada, capaz de explicar no apenas a posi-o do outro, mas tambm a posio do centroque fala como nada mais do que aquilo que : uma,entra as tantas variaes, que constituem as possi-bilidades de realizao do fenmeno humano.

    NOTAS

    1 importante observar que este tipo de discusso possuiuma longa histria que pode ser lida como uma, entre astantas formas, com que a racionalidade moderna produziuuma crtica de si mesma. No comeo do sculo XIX Hegeldemonstrou o carter social e histrico das estruturas daconscincia, enquanto Marx foi alm para demonstrar queela tambm prtica e incorporada. Darwin ligou ainteligncia adaptao, enquanto Freud mostrou aexistncia do inconsciente no corao da conscincia.2 Aqui importante notar que, especialmente em esferaspblicas contemporneas, todo local est dialeticamenteligado ao global. O aqui e agora de uma situao estsempre ligado a uma histria e a um conjunto amplo deredes que explode as fronteiras do presente e do local. Parauma discusso excelente da dinmica global/local vejaLatour (1993). Ainda que o local e o global estejamprofundamente conectados, eles no so inseparveisenquanto termos analticos e empricos. importante sercapaz de delimitar a especificidade do local.

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    Sandra JovchelovitchPsicologia Social, Saber,Comunidade e Cultura.

    Recebido: 20/01/20041 reviso: 18/6/2004

    Aceite final: 5/7/2004