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    Desumanizao

    da populao negra:genocdio como princpiotcito do capitalismo

    Dehumanization of the black population:genocide as tacit principle of capitalism

    Magali da Silva Almeida*

    ResumoEste artigo apresenta algumas reflexes acerca do genocdioda populao negra, expresso da violncia racial institucionalizadano Brasil. Privilegiou-se a anlise de indicadores sociorraciais paracompreender a desigualdade racial na Dispora Negra e perceberque a experincia da populao negra marcada por mltiplos econtraditrios processos antinegros. Os estudos crticos e contempo-rneos da Dispora so os fundamentos para uma interpretao do

    racismo antinegro. As razes deste remontam emergncia do Es-tado moderno e colonial, e suas ideologias e prticas discriminatriasreconfiguradas ao longo do desenvolvimento do capitalismo. O estudoadota o conceito de Dispora Negra como genocdio, mas abre aspossibilidades de mltiplas resistncias e lutas pela materializao eemancipao humana.Palavras chave: raa; genocdio; terror racial; resistncias; emanci-pao humana.

    AbstractThis paper presents some reflections about the genocide ofthe black population, expression of institutionalized racial violencein Brazil. We focused on the analysis of socio-racial indicators for un-derstanding racial inequality in the African Diaspora and the expe-rience of the black population is characterized by multiple and con-tradictory anti-black processes. The critical and contemporary studiesof the Diaspora are the basis for an interpretation of anti-black racism.The roots for this go back to the emergence of the modern colonialstate and its ideologies and discriminatory practices reconfiguredalong capitalist development. The study adopts the concept of AfricanDiaspora as genocide, but opens up the possibilities of multiple resis-tances and struggles for human emancipation and materialization.Keywords: race; genocide; racial terror; resistances; human emanci-pation

    ..............................................................................*Doutora em Servio Social. Professora da Universidade Federal da Bahia (Ufba). Pesquisadora sobre Relaes t-nico-Raciais e de Gnero da Ufba/Proafro/Uerj. Representante do Cfess na Comisso Interssetorial de Sade da Popu-lao Negra (CISPN) do Ministrio da Sade (MS). Correspondncia: Instituto de Psicologia: Rua Aristides Novis, 197,Federao. CEP: 40.210- 630, Salvador-BA. E-mail: .

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    Durante minha trajetria de vida, tenho experimentado a sen-sao de estar comeando sempre do zero. Refiro-me luta histrica,mais singular, de milhes de trabalhadoras e trabalhadores negros e brasi-

    leiros pelo reconhecimento de suas necessidades humanas, se que o capita-lismo nos permite esta possibilidade. Estamos (implico-me nesse contexto)sempre sobressaltadas(os) diante da violncia estrutural perpetrada contrans, desde o nascimento, com a qual convivemos durante toda vida. O ra-cismo tem apartado do acesso aos direitos humanos, em todo planeta, multi-des de africanos e seus descendentes, dentro e fora da frica.

    No Brasil, resistimos cotidianamente morte anunciada pela dis-criminao racial. No entanto, na maioria das vezes rendemo-nos dianteda fora da mdia que, maciamente, naturaliza a violncia racial contra apopulao negra em seus programas sensacionalistas, ridicularizando e infe-

    riorizando a imagem desse grupo tnico-racial no trabalho, na educao,na religiosidade, no noticirio policial e at no exerccio da sexualidade eorientao sexual. A mdia apenas um dentre os muitos dispositivos depoder hegemnicos.

    O pano de fundo que se movimenta e se transmuta historicamenteso as ideologias raciais que estruturam as relaes sociais no Brasil, sobreas quais se reafirmam os preconceitos e as prticas discriminatrias quedo materialidade ao racismo brasileira. Este racismo, cuja existnciamaterial reconhecida pela populao, dialeticamente nega a existnciados agentes, pois, no Brasil, ningum racista. Desconhecidos esses agen-tes, nutre-se a impunidade, a invisibilidade, o silncio e, consequentemente,maiores so as dificuldades para seu enfrentamento atravs de polticas p-blicas.

    Prevalecem, no Brasil, de maneira densa, as ideias de mestiageme democracia racial, em contraposio s ideias de identidade negra forjadapelos movimentos negros, cujos projetos em disputa tm permeado as arenasde luta no campo social e poltico. Neste cenrio, algumas conquistas dosmovimentos negros so garantidas atravs da implantao de polticas deaes afirmativas para a populao negra na educao (educao bsica,ensino fundamental, mdio e superior), no mercado de trabalho, na polticade sade etc., em consonncia aos preceitos constitucionais e dentro doslimites jurdicos normativos do Estado de Direito. Longe da garantia de

    Introduo

    No lavarei minha mo/ Com gua doce ou salgada./ Tenho as mos para outras

    coisas,/ No as desejo lavadas./ Minhas mos podem estar sujas/ De terra, barroe azeite:/ So vestgios das aes/ Num mundo de boca amarga./ No sou Pilatos./Prefiro Errar, porm do meu erro/ Mostrar que penso na ao./ As mos so fiosnervosos,/ Condutos do corao./ So antenas dirigidas/ Ao sol que brilha no cu./As mos sujas e calosas/ Mancham juntas, so milhes./ Milhes de mos que de-sejam/ Se irmanam ao corao./ No lavarei minhas mos em bacia de platina:/Quero-as sujas, mas presentes/ Na hora que se aproxima. (CLOVIS MOURA,1977).

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    atendimento s suas necessidades mnimas, a populao negra o segmentopopulacional que ocupa, maciamente, a base da pirmide social, e sua

    presena no topo quase inexistente.Como afirma Ricardo Henriques (2001, p.9), a pobreza e a indi-gncia no Brasil no agem democraticamente, pois no atingem igualmenteos distintos grupos raciais pertencentes ao contingente de 53 milhes depobres e 22 milhes de indigentes.

    Os negros em 1999 representam 45% da populao brasileira, mascorrespondem a 64% da populao pobre e 69% da populao indi-gente. Os brancos, por sua vez, so 54% da populao total, mas so-mente 36% dos pobres e31% dos indigentes. Ocorre que, dos 53 mi-lhes de brasileiros pobres, 19 milhes so brancos, 30,1 milhes

    pardos e 3,6 milhes, pretos. Entre os 22 milhes de indigentes temos6,8 milhes brancos, 13,6 milhes pardos e 1,5 milho, pretos.

    Este artigo apresenta algumas reflexes sobre a desumanizaoda populao negra e sua experincia na Dispora Negra como expressoda violncia racial institucionalizada no Brasil, fazendo parte de um amploprocesso de dominao/opresso capitalista na consolidao dos Estados-nao e do colonialismo.

    Privilegiei, primeiramente, a apresentao de alguns indicadoressociais para demonstrar o racismo como fator relevante para as desigual-

    dades sociais, bem como o modo como ele opera na produo das ini-quidades, entre negros e brancos, no acesso ao conjunto dos direitos.Em seguida, retomo alguns estudos crticos sobre a Dispora Ne-

    gra, cuja noo concebida, neste estudo, como marcada por mltiplos econtraditrios processos genocidas antinegros (VARGAS, 2010). A expe-rincia comum de abusos perpetrados por processos antinegros na DisporaNegra, sobretudo nos pases em desenvolvimento, no somente do-minante, mas inerente ao sistema capitalista em sua fase contempornea eao Estado-nao imperial (VARGAS, 2010).

    A Dispora Negra, enquanto um conceito histrico , por essncia,

    dinmico e ao mesmo tempo poltico. Assim, enfoca o terror racial comouma de suas dimenses e possui o genocdio antinegro como sua carac-terstica fundamental. Nestes termos, que desafios so colocados como sadapara os negros da Dispora Negra?

    1. Indicadores sociais ou expresses do genocdio antinegro?A realidade que no quer calar

    Os estudos estatsticos tm constatado que h um fosso entre apopulao negra e a populao branca, em termos de acesso e oportu-nidades. A ausncia de negros nas profisses de prestgio, na poltica, em

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    algumas expresses artsticas, na mdia etc., resultado de uma longa histriade excluso, na qual o racismo e o sexismo atuam definindo para homens

    e mulheres negras lugares desprivilegiados na sociedade, quase intrans-ponveis. preciso que falemos do nosso lugar, a partir de nossa perspectivae crena.

    Gonzalez (1984) afirma que devemos romper com a domes-ticao, confirmando nossa fala justamente pelo motivo de sempre termossido tratados como objetos e infantilizados (infans aquele que no temfala prpria; a criana que fala sobre si em terceira pessoa, porque fa-lada pelos adultos).

    Beatriz Nascimento, intelectual dotada de qualidades mpares,teve a sua obra revisitada por Ratts (2007). Sua produo nutre a nossa me-

    mria de informaes histricas imprescindveis para vermos o Brasil soboutro ngulo. Obra essa que libertou a negritude do aprisionamento aca-dmico do passado escravista ao cunhar o conceito de quilombo urbano,conceito com o qual ela ressignifica o territrio/favela como espao decontinuidade de uma experincia histrica que sobrepe a escravido marginalizao social, segregao e resistncia dos negros no Brasil.(RATTS, 2007, p. 11).

    As reflexes trazidas baila por Lelia Gonzalez (1984) e BeatrizNascimento apud Ratts (2007) retratam a violncia do racismo e do sexismoa que historicamente submetida a populao negra em geral e, em par-

    ticular, as mulheres negras. Tal fato demonstra como o mito da democraciaracial brasileira encobriu os efeitos do racismo, retificando-o e criando apossibilidade da reproduo das desigualdades entre os grupos raciais noBrasil. Contudo, isso tambm mostrou toda competncia terica e polticacom que as mulheres negras brasileiras formularam anlises da realidade,demonstrando sua capacidade de reagir ao lugar social imposto pela clas-se dominante.

    Esse prembulo serve para atualizar o reconhecido papel das mu-lheres negras guerreiras no cenrio da luta contra o racismo e o sexismonos anos de 1970. Ressalto a importncia dos estudos quantitativos escritos

    por Hasenbalg e Silva(1979) e Hasenbalg (1988), que indubitavelmente spuderam ser materializados devido contribuio crtica do MovimentoNegro brasileiro ao mito da democracia racial.

    Essa presso exercida pelos movimentos sociais, naquela ocasio,fez com que a academia voltasse seu olhar para o racismo. Se os estudossobre indicadores ganham o cenrio acadmico, afirmando o carter estru-tural da raa na produo da desigualdade, inegvel a contribuio deLlia Gonzalez (1984), Beatriz Nascimento apud Ratts 2007 (e outros mili-tantes na democratizao e no enegrecimento da academia brasileira.

    Inicio minha reflexo concordando com o professor e pesquisadorda Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Dr. Marcelo Paixo(PAIXO, 2003; PAIXO et al, 2010). Estamos de acordo quanto ao fato

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    de que o aumento das demandas dos negros, no Brasil, resulta das infinitasdenncias de racismo e as proposies para seu combate, realizadas pelos

    movimentos negros. Resultam, tambm, da ampliao de pesquisas e estudosdedicados a mostrar, empiricamente, os fundamentos raciais de nossoquadro de desigualdades sociais.

    Na Academia, a desconstruo da ideia de que, no Brasil, as re-laes raciais so democrticas, definida corretamente como mito, foi rea-lizada nos anos 1950 por Florestan Fernandes e outros pesquisadores daUniversidade de So Paulo (USP). Ainda assim, foram as contribuies deCarlos Hasenbalg (1979), e de Carlos Hasenbalg e Nelson do Vale Silva(1988) que efetivamente abriram um novo momento, marcado pelo usosistemtico de estatsticas e indicadores.

    Deste modo, a realidade das desigualdades raciais brasileiras passoua ser vista de forma mais objetiva, favorecendo uma ampliao dograu de legitimidade do movimento negro; concomitantemente, tor-nando incompreensveis os motivos pelo quais os afro-descendentespassam um sculo margem de quaisquer polticas ativas de inte-grao social, por parte do Estado e, o que pior, com anuncia daquase totalidade das organizaes da sociedade civil brasileira. (PAI-XO, 2003, p. 11-12).

    Mercado de trabalho

    Marcelo Paixo (2003) parte do pressuposto de que os constran-gimentos externos sofridos pela economia brasileira, o modelo econmicoadotado e a subordinao do pas s diretrizes dos bancos multilaterais edos credores externos, produziram um aprofundamento da crise social.Percebe-se que, embora o autor tenha buscado trabalhar com vrios indi-cadores sociais, ele se deteve no estudo do negro no mercado de trabalho.Concluiu, ento, que a qualidade da insero dos negros no mercado detrabalho brasileiro substancialmente inferior da populao branca.

    Segundo Paixo (2003, p.108-109), nas seis regies metropoli-tanas cobertas pela Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED), em 1998 osnegros encontravam-se com maior frequncia nos ramos e setores tradi-cionais da economia, trabalhando em ocupaes manuais e de menor pres-tgio social. Eles estavam mais representados na Populao EconomicamenteAtiva (PEA) das regies menos desenvolvidas do pas, permanecendo menostempo no emprego e tendendo a se sujeitar com mais intensidade a vnculosempregatcios instveis e precrios.

    Nos anos de 1987 e 1998, a anlise comparativa teve sua base dedados restrita regio metropolitana de So Paulo. Paixo (2003, 124-

    127) percebeu que houve uma deteriorao do mercado de trabalho parabrancos e negros. Segundo o autor, a base de dados estudada permitiu in-

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    ferir que a perda da qualidade do mercado de trabalho incidiu de modo maisforte sobre os afrodescendentes. Isso pode ser comprovado da seguinte forma:

    Entre os negros, as formas de ocupao pioraram proporcionalmentemais do que para os brancos. Entre os afrodescendentes, aumentaramas modalidades de empregos autnomos, informais e servios do-msticos;Entre os negros, fundamentalmente entre as mulheres trabalhadorascom mais de 24 anos, o desemprego cresceu com uma intensidademaior do que entre brancos. Desta forma, ampliou-se o abismo na re-munerao entre brancos e negros na regio metropolitana de SoPaulo (PAIXO, 2003, p. 132).

    Cabe ressaltar, ainda, que, reconhecendo o limite da anlisedesses indicadores, podemos dizer que a desigualdade sociorracial deordem poltica. Ou seja, a escolha de modelos econmicos no neutra e,de acordo com a sua teleologia, ela incluir ou no os grupos raciais, garan-tir ou no, democraticamente, direitos sociais. Se hoje, no Brasil, a socie-dade civil luta pela real democracia racial, atravs do protagonismo dosmovimentos negros, a materializao desse princpio ser, de fato, na inclu-so real dos segmentos negros no acesso aos bens e servios, sobretudo riqueza produzida.

    Ao longo da histria republicana, os sucessivos modelos de desen-

    volvimento sugeridos pelos governos no conseguiram contemplar os negrosnem reduzir as disparidades sociorraciais. Sobre isso, diz Paixo (2003, p. 133):

    absolutamente razovel imaginarmos que, dentro de um contextode franco desenvolvimento da economia de meado do sculo XX, edada as barreiras integrao social dos afro-descendentes, os abis-mos das condies sociais de brancos e negros tenham se ampliadoneste perodo. Ou seja, o modelo paternalista de relaes raciais eas estratgias pessoais de ascenso social individual no permitiramque o processo de mobilidade social positiva dos afro-descendentesse desse de forma massiva, ou que as desigualdades raciais se reduzissem.

    Nesse sentido, tambm o modelo econmico baseado na presenado Estado na economia tambm no serviu para a reduo das dispa-ridades sociais no Brasil. Assim se relacionarmos a este cenrio comas concluses a que chegamos quando estudamos os anos neoliberais,verificamos que os afro-descendentes potencialmente se veem natriste situao de que, quando a economia cresce, eles ganham menos,quando a economia se retrai, eles perdem mais.

    Analfabetismo

    Os estudos dos indicadores revelaram um quadro desanimadorem relao condio de vida da populao negra, em particular das mu-

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    lheres negras. Tomemos como referncia o ndice de DesenvolvimentoHumano (IDH). Esse ndice calculado pela Organizao das Naes Uni-

    das (ONU) para investigar a qualidade de vida nos pases, em escala global,com base na distribuio de renda, educao e condies de sade. Segundoesse estudo, em 2007 o Brasil estava em 70 lugar no ranking mundial,sendo considerado um pas de desenvolvimento humano elevado. No en-tanto, quando os dados so observados segundo a raa/cor, a realidademuda radicalmente. Assim, ao relacionar o IDH do Brasil com o quesitoraa/cor dos brasileiros, constata-se que a qualidade de vida da populaonegra pior que a da populao branca (PAIXO, 2003).

    A importante pesquisa realizada por Paixo (apud SANTOS, 2009,p. 19, sobre as taxas de analfabetismo com base nos dados do Censo Demo-

    grfico de 2000, revela que:Entre a populao brasileira maior de 15 anos havia 15,3 milhes deanalfabetos e 32,8 de analfabetos funcionais (pessoas com menos dequatro anos de estudos). [...] Dos 15,3 milhes de analfabetos bra-sileiros, 9,7 milhes eram negros. Entre os 32,7 milhes de analfabetosfuncionais, os negros totalizavam 18,8 milhes de pessoas. Assim,segundo os indicadores do Censo Demogrfico de 2000, a taxa deanalfabetismo dos negros maiores de 15 anos, em todo Brasil, era de18,7%, e a taxa de analfabetismo funcional da populao negramaior de 15 anos era de 36,1%. Estes percentuais eram substancial-

    mente maiores do que o verificado entre a populao branca, cujospercentuais de analfabetismo e de analfabetismo funcional eram de,respectivamente, 8,3% e 20,8%. Ou seja, em relao ao indicadorde analfabetismo funcional, a taxa verificada entre os negros era73% maior do que a observada entre os brancos; no caso da taxa deanalfabetismo, este valor relativo, era 125% maior.

    Sade

    O Sistema nico de Sade (SUS) foi consagrado na Constituio

    de 1988 como um dos pilares da Seguridade Social, com o objetivo de ga-rantir o acesso universal e gratuito de todos os cidados brasileiros, indepen-dente de sexo, raa, cor etc. Segundo pesquisa realizada pelo Ipea (RETRA-TO, 2011) com a participao da ONU Mulheres, da Secretaria de Polticaspara as Mulheres (SPM) e da Secretaria de Polticas de Promoo da Igual-dade Racial (Unifem/SPM/SEPPIR), o SUS foi responsvel por 63, 5% dosatendimentos e 69, 3% das internaes ocorridas no pas. Quando a anlise realizada desagregando os dados por raa/cor, percebe-se uma diferenasignificativa entre a populao branca e negra: para os brancos, 54% dosatendimentos e 59% das internaes foram cobertos pelo SUS; para osnegros, as propores foram de 76% e 81, 3%, respectivamente. Este re-sultado indica o quanto a populao negra depende do SUS.

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    No entanto, apesar da importncia da atuao do SUS na sadede nossa populao, um estudo indito realizado por pesquisadores do

    Ipea (MARINHO; CARDOSO; ALMEIDA 2011, p. 26-38) dados fornecidospela Associao Brasileira de Transplantes de rgos (ABTO) sobre osefeitos das desigualdades sociais brasileiras, no perodo de 1995 a 2004,indicam que, nas cirurgias de transplantes de rgos como corao, fgado,rim, pncreas e pulmo, a maioria dos transplantados so homens da corbranca. De acordo com esse estudo, a cada quatro receptores de corao,trs so homens; 56% dos transplantados tm a cor da pele branca. Notransplante de fgado, 63% dos receptores so homens e 37% mulheres. Acada dez transplantes de fgado, oito so para pessoas brancas.

    Segundo a anlise do Ipea, do estudo acima citado (MARINHO;

    CARDOSO; ALMEIDA, 2011, p. 30- 36), homens e mulheres so igualmenteatendidos nos transplantes de pncreas, mas 93% dos atendidos so brancos.A maioria absoluta de receptores de pulmo tambm so homens (65%) e pes-soas brancas (77%). O mesmo fenmeno ocorre com o transplante de rim:61% dos receptores so homens; 69% das pessoas atendidas tm pele clara.

    O sistema desigual na ponta cirurgia de alta complexidade porque desigual na entrada, assinala o economista, ao dizer que quandoo SUS tem excelncia no atendimento o acesso no para todos:Na hora que funciona, quem se apropria so as pessoas mais bemposicionadas socialmente. (MARINHO, 2011, s.p.).

    Isto posto, fica claro que as desigualdades sociais e as clivagensde raa e gnero afetam a populao negra em seu conjunto, no que tangeao acesso aos transplantes de rgos.

    Homicdio

    Mais uma expresso da violncia racial no Brasil diz respeito aonmero exorbitante de mortes decorrente de homicdio, afetando drasti-camente o jovem negro e, consequentemente, a constituio da famlianegra. Os ndices de homicdio, apresentados no Mapa da Violncia de2011, da populao total por raa/cor, expressam diferenas regionais alar-mantes (WAISELFISZ, 2011).

    Para o ano de 2005, o ndice nacional era de 67, 1. Ou seja, oestudo indica que, nesse ano, morreram proporcionalmente 67, 1% maisnegros do que brancos. Verifica-se que as taxas de homicdio de brancoscaram de 20, 6 para 15, 9 a cada 100 mil. Houve uma queda de 22, 7%entre 2002 e 2008. J na populao negra, as taxas passaram de 30, 0, em

    2002, para 33, 6 homicdios a cada 100 mil negros em 2008, o que re-presenta um aumento de 12, 1% (WAISELFISZ, 2011).

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    Em 2002, o ndice nacional de vitimizao negra foi de 45, 6.Isto , nesse ano, morreram proporcionalmente 45, 6% mais negros do

    que brancos. Apenas trs anos mais tarde, em 2005, esse ndice pulou para80,7, (morreram proporcionalmente 67, 1% mais negros que brancos). Jem 2008, um novo patamar: morreram proporcionalmente 111,2% maisnegros que brancos, ou seja, mais do que o dobro! (WAISELFISZ, 2011, p. 57).

    O Mapa da Violncia de 2013, relativo ao tema Homicdios e Ju-ventude no Brasil, apresenta, entre as concluses, um quadro desoladoracerca da ao genocida permanente perpetrada contra a juventude negra.Segundo os estudos existentes, coincide a afirmao de que a vitimizaohomicida no pas fundamentalmente masculina (WAISELFISZ, 2013, p. 73),dado apontado pelo autor no relatrio de 2011. (WAISELFISZ, 2011, p. 64).

    O Sistema de Informaes de Mortalidade do Ministrio da Sadeinicia a divulgao de seus dados em 1979, mas somente em 1996 comeaa oferecer informaes acerca do quesito raa/cor com um grau elevadode notificao. O relatrio informa que, at 2002, a cobertura desses dadosfoi deficitria, motivo pelo qual se julgou procedente comear a analisaressas informaes a partir de 2002, quando a cobertura alcanou um pata-mar considerado razovel: acima de 90% dos registros de homicdio comidentificao da raa/cor da vtima. (WAISELFISZ, 2013, p. 83).

    O relatrio aponta uma acentuada tendncia de queda no nmeroabsoluto de homicdios entre a populao branca, e de aumento nos nmeros

    de vtimas entre a populao negra. Essa tendncia pode ser observada no con-junto da populao, e de forma bem mais pronunciada na populao jovem.Podemos verificar que, no conjunto da populao (WAISELFISZ,

    2013, p. 87-88):

    O nmero de vtimas brancas caiu de 18.867, em 2002, para 13.895em 2011, o que representou um significativo decrscimo: 26, 4%;As vtimas negras cresceram de 26.952 para 35.297, no mesmo pero-do; isto , houve um aumento de 30, 6%;Assim, a participao branca no total de homicdios do pas caiu de41%, em 2002, para 28, 2% em 2011. A participao negra, j elevadaem 2002, com 58, 6%, cresce mais ainda: vai para 71.4%;Com esse diferencial, a vitimizao negra passa de 42, 9%, em2002 nesse ano, morreram proporcionalmente 42, 9% mais vtimasnegras do que brancas para 153, 4% em 2011, num crescimentocontnuo anual dessa vitimizao.

    Em relao populao jovem, entre 15 e 24 anos de idade, aevoluo semelhante, mas acontece de forma bem mais intensa(WAISELFISZ, 2013, p.88):

    O nmero de homicdios de jovens brancos cai de 6.596, em 2002,para 3.973 em 2011: queda de 39,8%, bem maior que a do conjuntoda populao, de 26,4%;

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    J as vtimas negras, entre os jovens, cresceram de 11.321 para 13.405,ou seja, um aumento de 24, 1%;Assim, a participao dos jovens brancos no total de homicdios ju-venis do pas caiu de 36,7%, em 2002, para 22,8% em 2011. Por suavez, a participao dos jovens negros, que era de 63%, uma por-centagem muito elevada j em 2002, cresceu ainda mais, indo para76,9%;Com esse diferencial de ritmos, a vitimizao de jovens negros passoude 71, 6% em 2002 nesse ano morreram proporcionalmente 71,6% mais jovens negros que brancos para 237, 4% em 2011, por-centagem maior ainda que a pesada vitimizao da populao totalque, nesse ano, foi de 153, 4%.

    Para finalizar, apresento uma breve anlise de Alves (2006, p. 2)

    sobre o projeto de segurana pblica. Expressando a forma como o Estadoe seus agentes, que operam cotidianamente, tm sido objeto de crticas dasociedade civil e das organizaes do Movimento Negro. Alia-se a isto omovimento de mulheres negras que perderam seus filhos, seja pela aodo trfico ou de seus agentes, e sua dor pouco ou nada visvel na sociedadebrasileira, apesar das denncias.

    Alves (2006, p. 2) afirma que a crise do sistema de segurana p-blica no Brasil e a crise de legitimidade da ao policial expem:

    as fraturas de uma sociedade marcadamente desigual no acessode brancos e negros justia e aos bens sociais. Aqui a segurana pblicasempre foi vista sob a rubrica da militarizao, da brutalidade contra osnegros e do combate aos inimigos internos sob o eco da ordem. As prisesso concebidas como depsito de seres humanos inviveis. Os maus-tratose a tortura foram institucionalizados no imaginrio autoritrio da polcia[...]. Assim se arranca de jovens negros confisso de crimes, se forja flagrantesbaseados na cor da pele, se criminaliza os pobres.

    3. Dispora e genocdio: uma primeira aproximao

    Sobre o projeto de colonialidade, breves consideraes.Para Clovis Moura (1994, p. 125), a aventura colonial dos eu-

    ropeus no sculo XV no foi exclusivamente um ato de expansionismogeogrfico, com o objetivo de conseguir novas reas de dominao e rotascomerciais martimas. Estes foram os objetivos visveis desse processo vio-lento. Foi um processo vertical, tratado pelo autor como complicador tnico,mutilador e estrangulador cultural. Para ele,

    complicador tnico porque introduziu compulsoriamente nas reascolonizadas - Amrica do Norte, Caribe e Amrica do Sul - o com-ponente africano que veio no apenas dinamizar demograficamenteessas reas, mas, tambm, involuntariamente consolidar, com seu

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    trabalho o escravismo nessas colnias. Mutilador e estrangulador cul-tural Poe que imps pela violncia, direta dou indireta, os seus padresculturais e valores sociais usando para isso desde a morte e a torturaat a catequese refinada chamada de evangelizao para dominaros povos escravizados

    Se, no plano cultural, processos assimiladores foram engendradospara encobrir o outro, nos termos de Dussel (1993, p.8), no plano socialos povos autctones e negros africanos escravizados eram alocados nos ex-tratos inferiorizados de trabalho. A diviso racial do trabalho, segundo Mou-ra (1994, p. 125), ir expressar

    uma diviso do trabalho rigidamente hierarquizada [e] colocava as

    populaes autctones ou africanas importadas nos ltimos patamaresda escala social, impondo como critrio extremo de controle o esta-belecimento da escravido e da servido.

    Contudo, mesmo em uma realidade adversa, os negros africanose seus descendentes no tiveram outra opo seno lutar para sobreviveraos abusos a que foram submetidos. Na dinmica colonial, a imposiodos padres civilizatrios eurocntricos pelos grupos dominantes no foiimpingida sem que houvesse resistncia dos grupos dominados. Muito pelocontrrio, a memria da Dispora Negra no s traz a marca da escravido,

    como tambm das lutas de negao desse padro de sociabilidade. A es-cravido negra no pode ser esquecida porque, contra ela, houve muitasresistncias: no Brasil. Isto se deu atravs de fugas, assassinatos, levantes econstruo de quilombos, sendo o mais conhecido o Quilombo dePalmares.

    Konrad (2007, p. 116) afirma que uma das poucas refernciassobre a Repblica de Palmares chegou at ns atravs do estudo intituladoRelao das guerras feitas aos Palmares de Pernambuco no tempo do gover-nador D. Pedro de Almeida, de 1675-1678.Diz o autor que a denominaoRepblica de Palmares refere-se reunio de vrios quilombos, durando

    aproximadamente um sculo (1597-1697) na Serra da Barriga, em Alagoas.Outra experincia importante foi o levante dos negros escravizados noHaiti, iniciado em 1791 sob a conduo de Toussaint LOuverture.

    Ressalta-se que o trfico transatlntico, que perdurou por maisde trezentos anos no Brasil (o ltimo pas a abolir a escravido no Planeta),s foi considerado crime contra a humanidade em 2001, na Confernciade Durban (frica do Sul). Embora o regime escravo tenha findado formal-mente em 1888, o Estado brasileiro no apresentou nenhuma poltica repa-ratria para a populao negra e sequer garantiu direitos de cidadania noregime republicano vindouro.

    De maneira lmpida, a memria da escravido est viva nas ma-zelas experimentadas pela populao negra at os dias de hoje. As refraes

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    da questo social que incidem sobre esta populao tm suas razes na es-cravido e foram reconfiguradas no trabalho livre. Assim, o trfico de afri-

    canos, no sculo XV, concebido, neste trabalho, como um rentvel inves-timento comercial que envolveu elites lusitanas, africanas e brasileiras. Essaeconomia garantiu o enriquecimento de uma aristocracia que acumulougrandes fortunas, alicerada em terras e escravos, retirando benefcios dotrabalho escravizado.

    O trfico de negros africanos era um investimento to lucrativoque, mesmo na clandestinidade, aps a sua proibio oficial em setembrode 1850 (a primeira tentativa de proibio do trfico se deu em 7 de novem-bro de 1831), perdurou auferindo lucro e prestgio social.

    Estudos demonstram que, aps a represso inglesa, a dinmica do

    trfico mudou nas duas margens do Atlntico: na frica, houve um deslo-camento do embarque de africanos de Luanda para o norte de Angola ou paraa Costa Oriental, sobretudo aps a proibio do trfico nas colnias por-tuguesas, em 1836. No Brasil, os desembarques tambm foram reordenadospara fugir represso. As praias litorneas mais afastadas do controle do Estadopassaram a acomodar os novos fluxos de africanos escravizados, e novasedificaes foram construdas para receber esse contingente, aps a quartadcada dos anos de 1800. Essa reordenao da economia ilegal traria novasimplicaes econmicas, polticas e culturais Pessoa (2013, p.46) chama aateno para outras formas de deslocamento do trfico de negros africanos,

    demandadas pela proibio. Segundo o autor, outro deslocamento demogrficode escravos observado para reas economicamente mais desenvolvidas,situadas na Regio Sudeste, sugerindo o trfico interprovincial para atender aonovo ciclo econmico em evidncia: o ciclo do caf.

    O trfico negreiro, portanto, consistiu no sequestro forado demilhes de vidas, e foi, indubitavelmente, a maior extradio no consen-tida de um incomensurvel contingente de pessoas na histria da huma-nidade, inaugurando o pioneirismo lusitano nesse tipo de comrcio. Estudossobre a escravido afirmam que o Brasil recebeu em torno de cinco milhesde africanos, tornando-se o maior pas com populao negra fora do con-

    tinente africano (PRANDI, 2000, p. 52).Onde quer que a escravido tenha sido uma realidade, lanou

    mo de mtodos violentos, torturantes, agindo contra a integridade fsica epsicolgica dos grupos escravizados. O racismo contemporneo guardaem sua memria marcas desse passado. Portanto, no existiu escravidomais ou menos agressiva.

    Florentino (2007) destaca uma passagem do livro Portugal e aescravatura, de autoria de Joo Pedro Marques, no qual este autor nosapresenta uma observao do historiador norte-americano Joseph Miller:

    a cada 100 escravos apanhados em Angola, 36 morriam entre a cap-tura e o transporte at a costa, 7 espera de embarque nos negreiros,

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    6 pereciam durante a travessia ocenica e 23 feneciam nos primeirosanos de Brasil, ou seja, em 4 anos, 72% de mortalidade acumulada.(FLORENTINO, 2007, p. 1141).

    Do mesmo modo, Jacob Gorender situa a forma cruel de gestoda fora de trabalho negra escravizada nos anos de 1800, na ilha de SoDomingos, atual Haiti, apresentada no livroJacobinos negros, do marxistaC.L. R. James. Este autor assevera que

    O tratamento dado pelos escravistas aos seus servidores era terri-velmente cruel. A par do trabalho, que esgotava rapidamente asenergias, pesavam sobre os escravos a alimentao escassa, a moradiasrdida e a inexistncia de assistncia mdica. A labuta diria se

    processava durante longas jornadas, sob acionamento freqente doaoite dos feitores. Qualquer expresso recalcitrante era logo du-ramente castigada. Os mais indisciplinados sofriam o castigo de serementerrados de p, apenas com a cabea de fora. Assim imobilizados,acabavam mortos depois de sofrer a horrvel tortura de ter o rostolentamente devorados pelos insetos e abutres. (GORENDER, 2004,p. 297).

    A Repblica de modo algum trouxe melhoria para a populaonegra. O modus operandi,atravs do qual o Estado autuou e atua no aten-dimento s necessidades dos negros e negras, tem demonstrado que seus

    problemas na Dispora Negra, na grande maioria, esto sem respostas con-cretas s principais necessidades. O Estado tem entregado os negros suaprpria sorte.

    Somente aps anos de denncia do racismo e de suas mazelas que o movimento negro tem feito algumas alianas com outros setoresprogressistas no Brasil, na luta pelo combate ao racismo. No entanto, asaes construdas ainda no so suficientes para mobilizar outros segmentossociais ou mesmo a prpria populao negra. A conscincia do processode sujeio e explorao no tem sido suficientemente criticada para der-rubar o projeto hegemnico em curso.

    Hoje, na prtica, o Estado neoliberal, sobretudo na Era Lula e nogoverno da Presidenta Dilma Rousseff, tem apoiado as polticas afirmativaspara a populao negra. Outro fato importante foi a aprovao das aesafirmativas para o ensino superior pelo Supremo Tribunal Federal.

    Todos esses ganhos, sem dvida, foram conquistas dos movimentosnegros que, mediante vrias estratgias de presso, apostaram na manu-teno das polticas compensatrias para a populao negra, como alter-nativa possvel para sua insero em sistemas de proteo social, garantindoo acesso aos bens e servios em ateno a suas necessidades.

    Concordo plenamente com as medidas de reparao histrica,mas essas polticas no tm sido suficientes para impedir o quadro da vio-lncia sobre a populao negra. Este quadro est se materializa no desem-

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    prego estrutural, no subemprego, no analfabetismo, na mortalidade maternada mulher negra, na ausncia de uma poltica de reduo de danos para os

    usurios de lcool e outras drogas, que sejam condizentes com o aten-dimento sade de qualidade e no acesso justia. expresso dessa vio-lncia, tambm, o genocdio da juventude negra, no qual expressiva massade jovens negros abatida pelo trfico ou pela ao truculenta da polciae dos demais agentes da segurana pblica.

    Vargas (2010) considera importante que a anlise acadmica dosproblemas da Dispora Negra seja acompanhada de sua dimenso poltica.No h anlise neutra nem poltica de Estado que no opte por um projetode sociedade.

    A ascenso de Barack Obama presidncia da repblica traz

    questes importantes acerca do destino da populao negra norte-americana,sobretudo no que diz respeito ao investimento (ou no) em polticas sociaisque atendam os negros nos Estados Unidos da Amrica (EUA).

    Os EUA tm um grande contingente de negros em situao deprivao de liberdade, variando em torno de um milho de pessoas. SegundoAngela Davis (2014), nos EUA existem mais homens negros em prises doque em universidades. Para ela, o racismo de hoje mais perigoso. Pessoasque esto encarceradas dizem que um homem negro na Casa Branca no suficiente para anular um milho de homens negros na casa-grande, ouseja, no sistema carcerrio. (DAVIS, 2013). Sem polticas sociais, o crcere

    se torna a alternativa possvel para o homem negro norte-americano, diz aautora.A contribuio de Almeida (2011, p. 87) no emprego do conceito

    de dispora, nos estudos sobre polticas de ao afirmativa no Brasil, deve-se possibilidade de o termo iluminar a experincia negra da dispersoforada dos africanos pelo trfico, como mencionado anteriormente.Segundo a autora, essa concepo foi empregada inicialmente para explicara experincia do povo judeu, evocando o seu traumtico exlio de umaprtica histrica e sua disperso por vrios pases. (CASHIMORE apudALMEIDA, 2011, p. 87).

    Segundo essa perspectiva, o conceito de dispora tem uma cono-tao negativa ligada disperso forada, vitimizao, alienao etc.Todavia, estudos contemporneos politizam a categoria de dispora comoum termo utilizado para descrever comunidades transnacionais, cujas redessociais, econmicas e polticas atravessam fronteiras das Naes-Estados.Processos mundiais no plano tnico-racial (migraes, refugiados de guerra,xenofobia, racismo, resistncias etc.) trazem cena pblica novas questes,desenhando as novas faces da questo social e suas refraes na experinciade vida da populao negra.

    Baseada em Vargas (2010), proponho uma nova concepo dedispora que amplie as possibilidades de libertao do povo negro dosprocessos antinegros que incidem sobre ele.

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    A Dispora Negra, assim concebida, marcada por vrios pro-cessos genocidas antinegros, no apenas predominantes, mas fundantes do

    Estado-Nao. Talvez uma concepo alargada de Dispora Negra, querelativize as particularidades de cada realidade social (e suas nacionalidades),permita identificar os processos de genocdio vividos pela populao negra,bem como as alternativas polticas que se abrem no confronto e na luta pordireitos com vistas libertao dessa populao.

    Vargas (2010, p. 34) adota o conceito complementar de disporaque, mesmo reconhecendo suas mltiplas expresses performticas e po-lticas inerentes, foca as anlises no terror racial e no genocdio antinegrocomo caracterstica fundante. Diz o autor que

    Nega-se aos membros das comunidades negras na dispora o direitode sobreviver plenamente como cidados ou seres humanos- o ge-nocdio como um fato constitui o sustentculo a base de onde as v-rias manifestaes da negritude que definem a dispora so cons-trudas.

    Vargas (2010, p. 34) ainda nos informa que o conceito de disporadeve

    localizar as experincias comuns de estado onde h subjugao racial(obviamente no estrita a hostilidade policial), desemprego despropor-

    cional e encarceramento em massa, morte prematura e doenas pre-venveis entre outros fatos bastante compartilhados entre negros coma base de onde a dispora existe luta e perece. Como um processo euma condio [...], a dispora negra necessariamente se apoia, desafiae sobrevive a tais fenmenos transnacionais.

    Essa abordagem traz como imperativo o engajamento na luta po-ltica, na materializao da prxisnegra como condio de sobrevivnciae como devir do processo libertrio imanente da Dispora Negra. Este deveser pensado pelos negros e negras e, a meu ver, dialogado com os aliados

    polticos igualmente subjugados e explorados na sociedade burguesa, parasuperao da ordem capitalista, cujo horizonte a emancipao humana.Nestes termos, Vargas (2010, p. 34) questiona os limites que o Es-

    tado-Nao impe condio negra. Ou seja, a impossibilidade decidadania plena, a possibilidade de uma humanidade integralmente re-conhecida e vivida, a impossibilidade de no magnetizar balas.

    Assim, quais as possibilidades polticas reais para os membros daDispora Negra? Quais as alternativas terico-prticas, culturais e sociaisdos membros da Dispora Negra, elaboradas permanentemente contra asviolncias do Estado, contra o racismo institucional e a sociedade que no

    est em seu favor? Decerto, se tomamos teoricamente a Dispora Negracomo genocdio, imputamos seu estado permanente de resistncia e rebe-lio.

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    Evidentemente, para o autor, o foco e o horizonte de conheci-mento so as prticas e estratgias de luta dos grupos de resistncia que se

    desenvolvem de forma coletiva, com base em esforos transnacionais. Paraesta concepo, a Dispora Negra no apenas uma geografia da morte(VARGAS, 2010), mas um conjunto de conhecimentos polticos, ontolgicos,imanentes e insurgentes.

    Neste sentido, as alternativas emancipatrias so possveis na his-tria, uma vez que a condio de genocdio um princpio tcito do capita-lismo, dada a impossibilidade de a condio negra ser plenamente experi-mentada pela comunidade. Por esse motivo, adensa contraditoriamenteessa fora motora transformadora, possvel de ser potencializada pela lutapoltica organizada pela comunidade negra na Dispora Negra.

    O autor apresenta uma nova abordagem que implica em umaprxisnegra. Opta por utilizar a categoria negro e no africano. Compreen-de a importncia horizontal e constitutiva do papel do continente nas atuaisexperincias multidimensionais de processos relacionados dispora(VARGAS, 2010, p. 35), mas chama ateno para processos e fatos articu-lados que produzem o genocdio fora do continente.

    Para Vargas (2010, p. 35), a luta da comunidade negra, como es-tratgia de sobrevivncia, relaciona-se mais com a experincia concretadessas populaes contra o genocdio em suas naes, base sobre a qual asidentidades e polticas negras so experimentadas na dispora. Portanto,

    a Dispora Negra nas Amricas, incluindo os Estados Unidos, emboras vezes reconhecida por engendrar vrios desafios para seus mem-bros, muito raramente criticada por constitutivamente criar e mantercondies sob as quais a sobrevivncia da comunidade constan-temente desafiada. A nfase sobre a dispora visa colocar os processose condies genocidas no centro e frente do que constitui as basessobre as quais as identidades e polticas negras so experimentadasatravs da dispora, especialmente nas Amricas. Naes africanase americana tem em comum os desafios de sobrevivncia de suascomunidades negras como constitutiva de suas experincias. Assim

    sendo, sua ligao dispora tem menos relao com a localizaogeogrfico-nacional ou com questes de origem do que com a ex-perincia transnacional dividida na luta contra o genocdio.

    A novidade dessa abordagem que ela desloca a anlise para ascircunstncias polticas e econmicas de base. Nestes termos, circunstnciasaparentemente distintas tornam-se significativas se articuladas buscandounidade supranacional e social, que atinge desproporcionalmente as co-munidades negras na Dispora.

    Em outras palavras, precisamos nos aproximar daquilo que foi

    considerado descontnuo, dado como separado, desestabilizado.

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    Desestabilizamos o que a hegemonia deu como coerente ou fixo;tornar semelhante o que parece distinto, difuso ou idiossincrtico;trazer ao primeiro plano o que latente e, portanto, poderoso em suaaparente ausncia; e analisar o que aparentemente autoevidente,o que a hegemonia d como senso comum e natural, mas que deve-mos ler como gestos do poder que empregam a violncia para norma-tizar e disciplinar. (ALEXANDER apud VARGAS, 2010, p. 36).

    Se precisamos identificar as refraes da questo social, devemoscotejar suas dimenses ocultadas ou invisibilizadas pela lente do impe-rialismo e do colonialismo, nas quais so privilegiadas as relaes sociaishierrquicas estruturadas pelo racismo patriarcal e pela dominao de classe.Segundo Vargas (2010), a dimenso oculta e desprivilegiada se articulada

    com outros fatos aparentemente irrelevantes, tornando-se significativos comouma constelao supranacional que atinge de forma desigual e despro-porcional as populaes negras na dispora.

    Contudo, faz-se mister a compreenso e documentao das ex-perincias da populao negra na dispora e como ela lida com a violaode suas necessidades humanas. Requer uma prxiscomprometida com asexperincias da populao negra. Ou seja, um engajamento como es-tratgias e teorias polticas que permitam desvelar os processos ocultos deinvisibilizao, atravs dos quais pode-se desafiar a experincia de genocdiona Dispora Negra.

    No que se refere noo de genocdio, a concepo modernado termo atribuda ao jurista polons Raphael Lemkin, que migrou dacolnia para os Estados Unidos em 1939, em decorrncia do holocaustojudeu. Sua contribuio apareceu em 1944 noAxis rule in occupied Europe,compreendendo uma perspectiva multifacetada. No se restringia s aesde assassinatos simplesmente, mas s aes que infringiam a liberdade, adignidade e a segurana de um grupo.

    Vargas (2010) adota a definio de genocdio pautada e aprovadana Conveno sobre a Preveno e a Represso do Crime de Genocdio,aprovada pela Resoluo 260 A (III) do Conselho Geral das Naes Unidas

    de 9 de dezembro de 1848, efetivada em 1951.De acordo com o artigo II da Conveno (VARGAS, 2010, p. 38),

    genocdio entendido como:

    Os atos abaixo indicados, cometidos com inteno de destruir, notodo ou em parte, um grupo nacional, racial ou religioso, tais como:a) Assassinato de membros do grupo;b) Atentado grave integridade fsica e mental de membros do grupo;c) Submisso deliberada do grupo a condies de existncia queacarretaro a sua destruio fsica, total ou parcial;d) Medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo;e) Transferncia forada de crianas de um grupo para outro grupo.

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    O racismo, o preconceito e a discriminao racial so relaessociais antagnicas ontologia do ser social, fundante da teoria social crtica.

    Nesse sentido, a totalidade social da situao de discriminao racial e aviolncia contra a populao da Dispora Negra, com seus sujeitos concretos(crianas negras, mulheres negras, homens negros, jovens negros/as, idosos/as negros/as), deve ser compreendida a partir da contribuio terico-crtica.O foco dado nos processos de genocdio intrnsecos s relaes sociaiscapitalistas nas dimenses econmicas, mas no desprivilegiando a luta declasse.

    Nesse terreno contraditrio, torna-se fundamental a compreensodos elementos ideolgicos, como o racismo e o sexismo, que incidem nasrelaes sociais, engendrando polticas de branquidade que no atendem

    s necessidades humanas da populao negra. Essas polticas alimentam asdesvantagens da populao negra porque no vislumbram as experinciasdela na Dispora Negra como sendo genocdio. So vislumbradas, porm,como respostas suficientes ao enquadramento, disciplinamento do grupopopulacional dominado/oprimido ao projeto de sociabilidade burguesasob a gide do capital.

    Cabe destacar trs pontos que considero importantes nessa re-flexo, mas que, dados os limites deste estudo, sero aprofundados em fu-turas investigaes.

    O primeiro diz respeito s conquistas no plano poltico e social,

    aladas pelo Movimento Negro Brasileiro nos ltimos vinte anos. So asexperincias da comunidade negra, registradas nos limites permitidos daexperincia diasprica, em 1990 - restrita experincia isolada de algunsativistas negros/as ou de instituies dos movimentos negros.

    Na poca, a presena de negros e negras na universidade brasileiraera inferior a 2% da populao negra do pas. O Censo de 2000 j apontavaa porcentagem de 47% da populao autodeclarando-se preta e parda. Aproduo e circulao de textos e pesquisas so ampliadas a partir de 1996,num incremento vertiginoso. Isso deve-se ao fato de o perodo apresentaras condies objetivas de grande vitalidade das lutas do Movimento Negro

    (ALMEIDA, 2011).Nessa conjuntura, marcada pelas mobilizaes antirracistas de-

    correntes da Marcha Zumbi dos Palmares - Contra o Racismo, pela Cidadaniapela vida, em 1995, em Braslia (DF), os rumos da luta antirracista no Brasilapontaram para a defesa das polticas de aes afirmativas, uma vez quefoi constatada a ineficcia das polticas universais na educao imple-mentadas na ditadura. Elas no atendiam, de fato, grande massa da popu-lao negra, alm de no se comprometerem com as propostas de combateao racismo formuladas pelos movimentos negros. (ALMEIDA, 2011, p. 126).

    Todavia, o cenrio expressa profundas contradies materia-lizadas na violncia policial militarizada, na segregao espacial, no de-semprego, na morte prematura de mulheres e adolescentes negras, no exter-

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    mnio da juventude negra, na defesa emocionada dos setores reacionriosem defesa da reduo da maioridade penal, no encarceramento macio

    no sistema prisional e no acesso desigual justia. Isto pouco tem ajudadoos movimentos contra o genocdio da populao negra, ao terem seus di-reitos humanos preservados quando assumem uma atitude de denncia aoracismo institucional perpetrado pelos agentes policiais ou militares.

    O segundo ponto a defesa da categoria de raa como socio-lgica de anlise, ou seja, a raa como construo social. A experinciabrasileira mostrou que uma das estratgias para desmontar o conceito racistade democracia racial foi a afirmao da identidade social negra como con-traponto legtimo forjado pelos movimentos negros, em resposta ao projetode branqueamento. Por outro lado, longe de afastar qualquer tentativa de

    hierarquizao entre os grupos raciais e as desvantagens da populao negrano acesso s polticas sociais e econmicas do pas, o conceito de mis-cigenao ir difundir, ideologicamente, as concepes positivas do bran-queamento e trar valores negativos aos atributos da raa negra.

    Portanto, raa, como concebida hoje, nada tem de biolgico. um conceito poltico que expressa relaes de poder e dominao. umacategoria de hierarquizao social e opera na produo de desigualdadessociais. A utilizao do conceito de raa abriga um histrico de dominaodos homens brancos ocidentais sobre o resto do mundo. Classe e patriarcadoso atributos da sociedade patriarcal, e esto na origem da supremacia

    branca. Assim, o conceito de raa implica igualmente no conceito de racis-mo com os processos de interiorizao resultantes.A sociedade brasileira, desde o incio do sculo XXI, tem assistido a

    uma disputa severa entre aqueles que defendem o critrio tnico-racial comomarcador de acesso a direitos historicamente negados populao negra, eaqueles que admitem que a questo meramente de classe. Movimentos emdefesa ou contrrios s cotas para a populao negra nas universidades, e atmesmo a judicializao do tema no Supremo Tribunal Federal, demonstram aarena de luta no campo dos direitos. H, portanto, dificuldade em trabalharcom argumentos que situam negros e negras como sujeitos de direitos.

    O que est em jogo a dificuldade da supremacia branca e deseus agentes de aceitarem a humanidade negra e sua capacidade de disputa(o que no esperado nem desejado em sociedades hierarquizadas a partirdo critrio racial). A supremacia branca e o terror racial impingem processosde sujeio/explorao contnuos, sem trguas para os grupos dominadoscontrrios sujeio supostamente intocvel das populaes negras.

    Estes fatos sinalizam o quanto est em disputa a garantia das aesafirmativas, cujo direito pode ser extinto se a sua manuteno contrariar osinteresses econmicos e polticos da classe dominante.

    Observou-se, por exemplo, no ingresso nas universidades p-blicas, processos fraudulentos de alunos brancos na reserva de vagas paranegros, conforme foram noticiados pela mdia televisiva e escrita.

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    O terceiro ponto diz respeito necessidade de aprofundamentodos estudos e pesquisas sobre o alcance das polticas econmicas do Governo

    Lula, continuadas nos governos Dilma Rousseff, no que diz respeito aocombate a processos de genocdio, tal como entendido neste trabalho.Concluo que, mais uma vez, o Governo Dilma caminha para

    no tocar nas questes centrais concernentes ao enfrentamento das desi-gualdades sociorraciais. Em tempos neoliberais, parece-me que as sadasda crise encontram-se envoltas em uma cortina de fumaa. No que diz res-peito integrao massiva da populao negra e da reduo das dispa-ridades sociorraciais, a mudana simples da gesto da economia, aindaque necessria, insuficiente. A soluo no se reduz interveno do Es-tado, conforme se comportou o Estado brasileiro at a chamada Era Collor.

    Tambm no basta produzir o Estado mnimo, como desejam os neoliberais.Para Vargas (2010, p.41), as desigualdades estruturais e histricasno so confrontadas e combatidas fortemente; o sistema racial de hierar-quias continua estabilizado. Para o autor, o que est em jogo vai alm doreconhecimento formal de direitos e acesso a recursos:

    To urgente quanto esta batalha pragmtica do presente, a guerramais ampla a combater a que trata do reconhecimento pleno e ga-rantido da humanidade do povo negro. Na verdade uma guerra porsobrevivncia.

    Consideraes finais

    O processo de domesticao exige que o racismo seja naturalizadoe a discriminao racial e de gnero legitimadas, com base em uma lgicaconservadora e hierrquica. Na medida em que, culturalmente, a sociedadebrasileira e o Estado no romperem com os preconceitos e os esteretiposcristalizados na memria coletiva, nem tampouco criarem uma poltica dedesenvolvimento redistributiva, o Brasil no estar socialmente preparado

    para experimentar, efetivamente, a democracia em sua plenitude.Em uma sociedade racializada e fortemente marcada pela tra-dio colonial, o racismo opera, dentre outras formas, para destituir suavtima da condio humana. Esse exerccio dirio transforma as pessoasem seres incapazes de reconhecer a dor do outro. O negro inferior pelasua condio de ex-escravo, cabendo-lhe as migalhas do produto do tra-balho, embora tenha, por mais de 300 anos, trabalhado foradamente semreceber nada por isso. Assim operou a ideologia dominante na colonizao,que ainda est presente no imaginrio social.

    Para o historiador Caio Prado Jr (apud SANTOS, 2009), a iden-

    tidade nacional marcada pelo sistema colonial e escravista, em cuja socie-dade desenvolveu-se o sistema patriarcal e escravocrata.

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    Trazendo novamente as ideias de para o debate, Rocha (2013)analisa a lgica do racismo pela dinmica de dominao, hoje globalizada,

    responsvel pelo genocdio de um nmero significativo de seres humanos.A humanidade deles no , ento, reconhecida por haver o pensamentode que fora subtrada sua capacidade de pensar, propor e sublevar, poisnem tudo que slido desmancha no ar.

    Para Moura (apud ROCHA, 2014, p. 23)

    o racismo, o mito de superioridade racial de um povo sobre o outro,encobre os interesses de povos que se julgam eleitos e desejamconseguir hegemonia econmica, social e cultural sobre os povosconsiderados mais fracos. Esta racionalizao do preconceito atravsdo racismo exerce papel e funo de importncia em diversos blocos

    de poder de naes que disputam a hegemonia no mundo capitalista

    Ainda corroborando com a ideia de Dispora Negra como ge-nocdio, o projeto capitalista, ao racializar a populao negra, produzsimbolicamente noes de inferioridade nas quais raa e cultura so indisso-civeis, criando barreiras para a mobilidade social. O eurocentrismo, nestecaso, funcionaria como estratgia para impedir o deslocamento social dogrupo subjugado, ou seja, a prioridefine-se o lugar social do negro.

    Assim, Rocha (2014) dialoga mais uma vez com Moura (1990, p.215-216), que nos sinaliza que

    o etnocentrismo do branco em relao ao negro e ao no-branco emgeral teve e tem como funo exatamente estabelecer fronteirashierrquicas do ponto de vista tnico para que os grupos consideradosinferiores no pudessem transp-las atravs da mobilidade social.Fecha-se, assim, o leque de oportunidades para os membros con-siderados inferiores. Ressalta ainda, que isto aconteceu desde o Brasilcolnia e durante todo o perodo imperial, prosseguindo, com modifi-caes modernizadoras, at os nossos dias.

    Por essas razes, uma prxiscomprometida com a emancipao

    humana deve, sobretudo, tratar o racismo na perspectiva de totalidadesocial, segundo a experincia concreta da populao negra na DisporaNegra. No se trata de um imperativo tico-poltico, tampouco pre-ponderante. No entanto, reivindicamos igualmente o mtodo dialtico deanlise como mediao fundamental da funcionalidade do racismo nasociabilidade burguesa, a partir de uma prxisnegra.

    Trata-se de recuperar os abusos e violaes sofridas pela popu-lao negra, os processos genocidas que fazem parte de suas vidas e queinterrompem seus objetivos. Principalmente, trata-se de interrogar suas na-turalizadas subordinaes de gnero, raa, identidade de gnero e orientao

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    Recebido em 18 de novembro de 2014.Aprovado para publicao em 08 de dezembro de 2014.

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