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    FILOSOFIAELITERATURANOILUMINISMOALEMO:AQUESTODATOLERNCIARELIGIOSA

    NONATHANDERWEISE, DELESSING

    Mario Videira1

    RESUMO: O presente artigo aborda a questo da tolerncia religiosa no Iluminismo alemo,por meio da anlise e interpretao de trechos selecionados da peaNathan der Weise(1779), deLessing. Pretende-se mostrar que essa obra tem sua origem intimamente ligada ao debate teolgico(Fragmentenstreit) entre Lessing e o pastor Johann Melchior Goeze, de Hamburgo, podendo serlida como uma reao e uma resposta s crticas e objees deste ltimo.

    PALAVRAS-CHAVE:Lessing (1729-1781).Nathan. Tolerncia Religiosa. Iluminismo.Fragmentenstreit.

    1. INTRODUO

    O presente artigo pretende abordar a relao entrefilosofia e literaturano Iluminismo e, mais especificamente, a questo da tolerncia religiosa naAlemanha, por meio de uma anlise do trecho central conhecido como aparbola dos trs anis do terceiro ato deNathan der Weise(Nathan, o sbio),a ltima pea escrita por Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781), publicadaem 1779 e estreada somente em 1783, dois anos aps sua morte. Trata-se, semdvida, de uma das mais importantes obras do teatro alemo, tendo influenciadoautores como Goethe e Schiller, e cuja atualidade atestada pela sua presenaconstante nos palcos. Como bem observou o crtico Anatol Rosenfeld, essapea, [...] com seu translcido jogo intelectual e sua linguagem clara, sagaz e

    1 Mrio Videira doutor em Filosofia pela Universidade de So Paulo e mestre em Musicologia pelaUniversidade Estadual Paulista. Atualmente, professor e pesquisador do Departamento de Msicada Escola de Comunicaes e Artes da USP. autor de O RomantismoeoBeloMusical(Ed. Unesp,2006) e tradutor deBerg: omestreda transiomnima, de T. W. Adorno (Ed. Unesp, 2010). Alm disso,publicou diversos artigos sobre Esttica e Filosofia da Msica em revistas especializadas, tanto noBrasil como no exterior

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    astuta, um dos mais preciosos legados que o humanismo da Ilustrao alemdeixou aos psteros (ROSENFELD, 1993, p. 211).

    Quanto ao gnero, Lessing classifica essa obra como ein dramatischesGedicht(um poema dramtico). Essa designao de gnero aponta para aimpossibilidade de se referir pea segundo as nomenclaturas usuais:Nathanno se deixa classificar inteiramente nem como uma comdia, nemcomo uma tragdia, embora contenha elementos de ambas.2Quanto s suascaractersticas formais, a pea chama a ateno por estar escrita em versos

    brancos3

    , bastante empregados por Shakespeare, e que Lessing introduz noteatro alemo. Alm disso, ele emprega frequentemente a alternncia das falasde personagens diferentes no interior do mesmo verso, tornando mais intensaa dinmica da pea. Tambm o uso das pausas usado de maneira a enfatizara hesitao e a reflexo das personagens.

    A obra est articulada em cinco atos, e sua trama se passa na cidade deJerusalm, na poca das Cruzadas (1192): ou seja, ela se insere num contextode guerras religiosas e est ambientada numa cidade em que as trs religiesabramicas se encontravam reunidas.

    A pea se inicia com o rico mercador judeu Nathan retornando de umaviagem de negcios. Ele recebido pela criada Daja, que lhe conta que sua casa

    havia se incendiado e que Recha, suafilha de criao, fora salva da morte por umjovem Cavaleiro cristo, que, por sua vez e devido ao fato de suafisionomialembrar muito um irmo do Sulto (desaparecido h muitos anos) , haviasido poupado da pena de morte. Embora o cavaleiro se mostre extremamenteantissemita4, Nathan o convence por meio de hbeis argumentos a visitarsuafilha Recha, afim de receber pessoalmente sua gratido. Enquanto isso, oSulto Saladin, preocupado com suas dificuldades econmicas decorrentes daguerra, convoca Nathan sob o pretexto de pr prova sua sabedoria. Saladin

    2Por exemplo, o papel de Al-Haficomo tesoureiro do sulto ou os comentrios irnicos de Nathanem relao superstio de Daja so claramente cmicos, ao passo que o comportamento intolerantedo Patriarca e o assassinato da esposa e dosfilhos de Nathan so de carter trgico.3Lessing utiliza versos imbicos de cinco ps (pentmetro imbico), ao invs dos alexandrinos (12versos, tnica na 6 e na 12 slabas), tpicos da tragdia clssica francesa. A opo pelo verso imbicovisa a dar maior naturalidade s falas, ao passo que o alexandrino francs se caracterizava por suanatureza empolada e mais retrica.4O antissemitismo do Cavaleiro se evidencia j a partir do fato de que ele, inicialmente, no trataNathan pelo nome, mas o chama simplesmente de judeu (LESSING, 1993, II 5, p. 529 e 531). Aesse respeito, ver tambm, p. ex., a fala do Cavaleiro nofinal da sexta cena do Primeiro Ato (LESSING,1993, I 6, p. 513).

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    lhe pergunta qual das religies judaica, islmica ou crist ele acredita ser averdadeira, esperando que afidelidade de Nathan ao judasmo lhe desse umpretexto para sequestrar seus bens. Mas Nathan percebe a armadilha e lhe duma resposta sob a forma de parbola.5Surpreso e satisfeito com a respostadada por Nathan questo que lhe fora proposta, o Sulto pede que eles setornem amigos. E ele fica ainda mais satisfeito, quando Nathan lhe ofereceespontaneamente um emprstimo. Enquanto isso, o Cavaleiro cristo, vencendoseus preconceitos, acaba se apaixonando por Recha e deseja casar-se com ela.Nathan parece ter muitas reservas quanto a esse projeto de casamento, o que

    desperta no Cavaleiro a desconfiana de que isso se deveria ao fato de ambosprofessarem religies distintas. Ao tomar conhecimento de que Recha filhaadotiva de Nathan e de que seus verdadeiros pais eram cristos, o Cavaleirodecide consultar o Patriarca de Jerusalm. Embora o Cavaleiro apresente oproblema de forma apenas hipottica, o Patriarca se mostra furioso e exige quelhe tragam esse judeu o qual, segundo ele, seria culpado de educar uma crianacrist numafalsareligio e afirma que a pena para esse crime de apostasia a condenao morte pela fogueira. Por sorte, um bom monge intercede,trazendo provas de que Recha irm do Cavaleiro cristo e que ambos so, naverdade, osfilhos de Assad, o irmo desaparecido do Sulto, o qual havia seconvertido ao Cristianismo (o que, mais uma vez, ilustra o estreito parentesco

    entre essas trs religies).Este , em linhas gerais, o percurso da pea. Agora, trata-se de tentar

    examinar como filosofia e literatura encontram-se a articuladas. A essepropsito, caberia lembrar a observao precisa de Franklin de Mattos (2001,p. 97), segundo o qual um dos traos mais fascinantes do sculo XVIII seriajustamente [...] a inexistncia de fronteiras precisas entrefilosofia e literaturae, consequentemente, a multiplicidade de gneros ento praticada pelofilsofo. Mattos (2001, p. 97) ressalta ainda que o tratado ordenado e rigorosodeixa de ser o meio privilegiado de expresso filosfica e ofilsofo se tornaromancista, contista, homem de teatro. Se, na Frana, autores como Diderot,Rousseau ou Voltaire (para nomear apenas alguns), procuraram integrar essas

    formas de expresso conto, romance, pea teatral ao combate filosficodas Luzes, [...] tornando-asflexveis para esclarecer os homens [...], [e] faz-

    5Trata-se da clebre Parbola dos trs anis, que ser analisada mais adiante.

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    los virtuosos (MATTOS, 2001, p. 98), pode-se dizer que, na Alemanha, umdos maiores representantes dessa tendncia foi Gotthold Ephraim Lessing.6

    Lessing , geralmente, considerado como o grande reformador daliteratura alem, tendo dedicado grande parte de seus esforos s reflexesestticas, crtica de arte e dramaturgia.7 Seus escritos influenciaramenormemente o pensamento esttico e a produo dramtica subsequente.Como bem observou Heinrich Heine, no livroDieromantischeSchule[A EscolaRomntica], Lessing foi aquele que libertou o teatro alemo da influncia

    avassaladora da poesia clssica francesa. Nas palavras de Heine (1836, p. 31-34):[Lessing] mostrou-nos a nulidade, o ridculo e a falta de gosto daquelasimitaes do teatro francs que, por sua vez, parecia imitao do grego.No somente atravs de suas crticas, mas tambm com suas prpriasobras de arte, ele foi o fundador da nova e original literatura alem.

    Em 1770, Lessing aceita um emprego como bibliotecrio, emWolfenbttel, na Biblioteca do Duque de Braunschweig. Aps envolver-senuma disputa teolgica com o Pastor Goeze, de Hamburgo, ele escreve sualtima pea,Nathan der Weise(1779), vindo a falecer apenas dois anos depois,aos 52 anos de idade, na cidade de Braunschweig.

    2. A CONTROVRSIADOSFRAGMENTOS[FRAGMENTENSTREIT]

    Ainda no seu livro A Escola Romntica, Heinrich Heine (1836, p.31-34) escreve que Lessing [...] foi um paladino a servio da liberdade depensamento e contra a intolerncia clerical.Para compreendermos essaafirmao, preciso retomar ainda alguns pontos da biografia de Lessing. Trsanos aps assumir o posto de Bibliotecrio em Wolfenbttel, Lessing comeaa editar as chamadas Contribuies para a Histria e a Literatura [Beitrge].Uma vez que seu posto como bibliotecrio ducal lhe permitia publicar seus

    6Cf. HEGEL (2004, p. 222): [...] em muitas pocas a poesia dramtica, particularmente, tambm erautilizada para conquistar um acesso vivo a nossas representaes da poca, no que concerne poltica, eticidade, poesia, religio, etc. [...] Voltaire [...] procura com frequncia divulgar seus princpiosiluministas tambm por meio de obras dramticas; sobretudo Lessing est empenhado, em seuNathan,em justificar sua f moral em oposio ortodoxia limitadamente religiosa.7Dentre suas principais obras dramticas esto:Miss Sara Sampson(1755, considerada a primeiratragdia burguesa alem),Minna von Barnhelm(1767),Emilia Galotti(1772) eNathan der Weise(1779).Como crtico e terico da esttica, suas principais obras so aDramaturgia deHamburgo(1769) e oLaocoonte(1766). Alm disso, escreveu inmeros textos e artigos sobrefilosofia e religio.

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    textos, sem que tivesse que se submeter censura, Lessing introduziu nessascoletneas uma srie de artigos extremamente crticos ortodoxia religiosa,de autoria de seu amigo j falecido, Hermann Samuel Reimarus (1694-1768).8Na tentativa de proteger a famlia de seu amigo, Lessing lana mo de umartifcio para camuflar o verdadeiro autor e, entre os anos de 1774 a 1778,publica esses ensaios sob o ttulo: Fragmentos de um Autor Desconhecido[Fragmenteeines Unbekannten], como se fossem textos casualmente encontradosna coleo de manuscritos da biblioteca ducal. Esses manuscritos continham,grosso modo, uma crtica radical Bblia, questionando o seu carter de

    Revelao Divina. Como observou Dieter Henrich (2003, p. 105, nota 7),[...] esta obra submetia a revelao crist ao escrutnio racional, baseando-se em uma acurada crtica histrica. A publicao evocou fortes reaesde refutao e desaprovao, marcando o incio de uma querela queficouconhecida como Fragmentenstreit [Controvrsia dos Fragmentos]9.

    Um texto datado de 1777 (ou seja, dois anos antes da publicaodo Nathan), intitulado Sobrea prova do esprito eda fora[ber den Beweisdes Geistes und der Kraft], resume bastante bem a posio de Lessing nacontrovrsia: para ele, a vivncia prtica do Cristianismo (e especialmente aprtica do amor ao prximo) seria mais importante que o apego aos dogmasda Bblia.

    Lessing defende que as verdades histricas no so totalmenteconfiveis, pois consistem em relatos de segunda-mo, diferentes daexperincia direta. Alm disso, [...] as verdades histricas no podem serdemonstradas (LESSING, 1995, p. 92). Ora, uma vez que a autoridade dasEscrituras se baseia, em ltima instncia, nesse tipo de verdades, fica claroque elas so insuficientes para demonstrar a divindade dessas revelaes:Verdades contingentes da histria [zufllige Geschichtswahrheiten] jamaispodem se tornar a prova das verdades necessrias da razo [notwendigenVernunftswahrheiten] (LESSING, 1995, p. 92). Bastante clebre sua

    8Reimarus era um respeitado orientalista e autor de diversos livros sobre filosofia e religio natural.Como bem observou Dieter Henrich (2003, p. 105), os escritos de Reimarus refletem tanto a tradiodo desmo britnico (Toland, Tindal, entre outros), como tambm a crtica filolgica da Bblia feita naAlemanha, em sua poca.9Essa foi a maior controvrsia no Protestantismo alemo, durante o sculo XVIII. Alm de numerosasrecenses dos Fragmentos e das respostas de Lessing, foram publicados cerca de 50 livros e artigossobre o assunto (Cf. LESSING, 2005, p. 8).

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    imagem do terrvel e imenso abismo entre as verdades contingentes dahistria e as verdades necessrias da razo (LESSING, 1995, p. 94).

    Mas, por outro lado, como bem observou H. B. Nisbet (in LESSING,2005, p. 12), [...] a insistncia no primado da tica [...] uma caractersticaconstante nos escritos de Lessing. De fato, em vrios de seus escritos, Lessingdefende que a verdade do Cristianismo seria suficientemente demonstradapelos seus frutos, isto , por ser uma religio do amor: [...] que me importase as lendas so falsas ou verdadeiras; os frutos so excelentes (LESSING,

    1995, p. 95). De maneira signifi

    cativa, Lessing encerra o artigo de 1777 [berden Beweis des Geistes und der Kraft] com uma citao de um texto apcrifo,conhecido como o Testamento de So Joo, no qual se afirma que asltimas palavras daquele apstolo teriam sido: Meusfilhos, amai-vos uns aosoutros.

    A controvrsia iniciada com a publicao dos Fragmentos torna-se ainda mais acirrada com a entrada do pastor Johann Melchior Goeze(1717-1786) no debate. Ao invs de atacar o autor annimo, Goeze passa aatacar o editordos manuscritos. Em linhas gerais, podemos dizer que o pastorGoeze defendia a importncia dos relatos histricos da Bblia e a verdade dosmesmos para a f, afirmando ainda que a f crist no poderia subsistir se os

    contedos essenciais daquele texto sagrado fossem negados.Num texto de 1778, intitulado As fragilidades de Lessing [Lessings

    Schwchen], o pastor Goeze (in LESSING, 1995, p. 96) exige que Lessingresponda: Qual religio ele prprio reconhece como verdadeira [wahre] e qualreligio ele segue [annehme]? Como veremos adiante, essa questo no diferemuito daquela que ser posta pelo sulto Saladin, e que Lessing responderpor meio da Parbola dos trs anis, no Terceiro Ato deNathan.

    A controvrsia prolonga-se por meses, at que Goeze apela ao Duquede Brunswick e, em 3 de agosto de 1778, o governo determina o confisco detodos os exemplares dos Beitrge, e os escritos de Lessing passam a sercensurados. Em 17 de agosto de 1778, o governo baixa a seguinte resoluo:

    [...] no que diz respeito aos temas religiosos, [Lessing] fica proibido depublicar qualquer coisa, seja aqui ou em outra parte, seja sob seu nomeverdadeiro seja sob pseudnimo, sem a prvia autorizao do Conselho deMinistros (in LESSING, 1995, p. 99).

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    Quando se torna impossvel prosseguir a discusso por conta dacensura que lhe foi imposta Lessing decide voltar ao seu velho plpito, aoteatro, e dali encerrar o debate com Goeze.10 nesse contexto que ele decideescrever a peaNathan der Weise.

    3.NATHANEAQUESTODATOLERNCIARELIGIOSA

    Podemos perceber, dessa forma, que o surgimento doNathan estintimamente ligado publicao desses Fragmentos, extremamente crticos

    religio crist, bem como controvrsia teolgica da resultante, entreLessing e o pastor Goeze, de Hamburgo.

    As cartas de Lessing a seu irmo Karl (agosto e outubro de 1778) e aElise Reimarus (setembro de 1778) demonstram claramente que a deciso deescrever uma pea como oNathan der Weisedeve ser vista no contexto de umacontinuao da controvrsia com os ortodoxos luteranos.11Alis, num esboo(no-publicado) para o prefcio deNathan, Lessing (1995, p. 113) afirma:As convices de Nathan contra todareligio positiva foram, desde sempre,tambmas minhas.12A partir dessa afirmao, torna-se mais clara a relaoentre filosofia e literatura na ltima pea escrita por Lessing: como bemobservou Yasukata (2002, p. 74), se quisermos compreender adequadamente

    a ideia de religio defendida por Lessing, necessrio levarmos em conta noapenas os textos especficos sobre esse assunto, mas tambm as ideias sobrereligio expostas noNathan.

    10Numa carta a Elise Reimarus, datada de 06/09/ 1778, Lessing escreve: Preciso tentar se pelo menosem meu velho plpito, no teatro, ainda me permitiro pregar em paz (in: LESSING, 1995, p. 101-102).11Em carta de 20/10/1778, endereada a seu irmo Karl, Lessing escreve: Ser nada menos que umapea satrica, para que eu possa deixar o campo de batalha com risos de sarcasmo (in: LESSING,1995, p. 102).12 A respeito da noo de religio positiva, Hegel escreveu: O conceito de positividade de umareligio somente surgiu e se tornou importante em pocas mais recentes; uma religio positiva oposta religio natural e com isto se pressupe que exista somente umareligio natural, pois anatureza humana apenasuma, e que, todavia, as religies positivas podem ser muitas. J a partir dessaoposio fica claro que uma religio positiva seria uma religio contranatural ou sobrenatural, quecontm conceitos e noes que so exuberantes para o entendimento e a razo, que exige sentimentose aes que no se deduziriam a partir do homem natural (HEGEL, 1970, p. 216).

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    De acordo com o prprio Lessing, o cerne a partir do qual a pea temorigem a clebre Parbola dos Trs Anis13 cujo argumento remonta IdadeMdia, e tem uma de suas verses mais famosas noDecameron, de Boccaccio.Isso documentado atravs de uma carta a seu irmo Karl (11/08/1778):

    No quero que o contedo verdadeiro da minha pea seja conhecido cedodemais; mas se tu ou Moses [Mendelssohn] quiserem conhec-lo, basta leroDecameron,de Boccaccio (Giornata 1, Novella 3): O Judeu Melchisedech.Creio ter inventado um episdio muito interessante para ela, de modo queo todo resultar numa boa leitura, e que certamente ir irritar os telogos

    mais do que com outros dez fragmentos. (in LESSING, 1995, p. 100).

    Assim, convm examinar, de maneira mais detida, o dilogo entreNathan e Saladin, que se encontra no Terceiro Ato doNathan(Cenas 5-7), noqual essa clebre parbola se insere:

    SALADIN J que s to sbio, responda-me: qual a f, qual a leique mais te iluminou?NATHAN Sulto, eu sou um judeu!SALADIN E eu, um muulmano. O cristo est entre ns. Dessastrs religies, s uma podeser a verdadeira. Um homem como vocno permanece no lugar onde o acaso do nascimento o colocou; ou,se permanece, ele o faz em virtude de um exame [Einsicht], por razes[Grnden], por uma escolha do melhor. Pois bem! Ento compartilha esse

    exame comigo.Diz-meas razes, a respeito das quais, por falta de tempo,eu no pude ainda meditar.Deixe-meconhecer claro, em sigilo a escolhadeterminada por essas razes, para que eu possa faz-las minhas. (LESSING,1993, p. 553, grifos nossos).

    A frase que merece especial ateno aqui Um homem como voc ou seja: um sbio no permanece no lugar onde o acaso do nascimento ocolocou. A questo colocada pelo sulto : quais foram as razes[Grnden]que determinaram a escolhade Nathan? Assim, a pergunta de Saladin dizrespeito justificativada permanncia de Nathan no judasmo.

    Nathan percebe a armadilha do Sulto: se ele respondesse, sem

    mais, que o judasmo a melhor das trs religies, ele ofenderia a religiodo Sulto, que ento poderia sequestrar seus bens, a ttulo de reparao. Por

    13Na segunda parte de seusCursos deEsttica,Hegel faz referncia parbola narrada por Nathan,acentuando a necessidade de se interpretar a narrativa em vista de seu contedo mais amplo, asaber, [...] da diferena e da autenticidade das trs religies a judaica, a maometana e a crist (cf.HEGEL, 2000, p. 119).

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    outro lado, se afirmasse que o islamismo a melhor das trs religies, apenaspara agradar ao Sulto, este poderia exigir que Nathan se convertesse. Almdisso, na opinio do Sulto, Nathan estaria agindo de maneira irracional(e,portanto, incompatvel a com atitude de um sbio), se admitisse permanecerno judasmo sem nenhumarazocapaz de fundamentar tal escolha. Assim, anica sada tentar se esquivar de uma resposta direta, o que Nathan consegueatravs de um artifcio, de uma resposta indireta ou melhor, por meio danarrativa de uma parbola:

    SALADIN Pois bem, fala! No nos ouve uma s alma.NATHAN Queira Deus que o mundo inteiro nos oua! [...] Permita-me sulto, que eu lhe conte uma pequena histria.H muitos e muitos anos, vivia no Oriente um homem que possua umanel de valor incalculvel, recebido de mo amada. A pedra era uma opala,que refletia cem belas cores e o anel possua o poder secreto de tornaragradvel a Deus e aos homens aquele que o usasse com essa confiana.[...] Esse homem decidiu conservar esse anel para sempre em sua famlia.Do seguinte modo: ele deixou o anel para o seu filho mais amado, eestabeleceu que este, por sua vez o deixasse ao mais amado, e assim pordiante. E independente do nascimento, somente em virtude do anel, essefilho predileto se converteria no chefe da casa. [...] E assim foi, defilhoemfilho, at que se chegou a um pai que tinha trs filhos, os quais eleamava igualmente. [...] Assim, ele teve a piedosa fraqueza de prometer

    o anel a cada um deles. Quando chegou a hora de sua morte, o bompai se viu em dificuldades: como fazer para no magoar os outros doisfilhos, sendo que ele amava igualmente aos trs? Em segredo, ordenouque um artista fabricasse outros dois anis iguais, absolutamente iguais aoprimeiro. O artista conseguiu cumprir a encomenda. Nem mesmo o paiconseguia distinguir o original. Satisfeito, o pai chama cada um dosfilhosem particular, d a sua beno e o anel e morre. Est ouvindo, sulto?SALADIN Sim, sim! Falta muito para acabar?NATHAN J acabei. Pois o que se segue se entende por si s. Malfaleceu o pai, cada um se apresentou com seu anel querendo ser o chefe dacasa. Investiga-se, disputa-se, lamenta-se. Intil: impossvel demonstrarqual o verdadeiro anel; (depois deuma pausa emqueespera a resposta doSulto)Quase to indemonstrvel [unerweislich] como para ns a f verdadeira

    [rechteGlaube]. (LESSING, 1993, p. 555-557).

    O que Nathan parece afirmar que, tal como ocorrera no caso dos anis,seria impossvel demonstrarracionalmentea verdade ou falsidade de uma religio.Saladin, percebendo o subterfgio, pressiona Nathan por uma resposta:

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    SALADIN Como? essa a resposta minha pergunta?... [...] Os anis! No brinque comigo! Penso que as religies que te indiquei podemmuito bem ser distinguidas. At pela vestimenta, pela comida, e pelabebida! (LESSING, 1993, p. 557)

    O que est em jogo aqui e o que o personagem Nathan tentardemonstrar em seguida, que essas diferenas so meramente exteriores ese apoiam sobre bases histricas, e que, portanto, nada tm a ver com umapossvel fundamentao ltima da religio.

    NATHAN E somente no que diz respeito aos seus fundamentos[Grnde]elas no se distinguem. Pois todas as trs no esto baseadassobre a histria [Geschichte]? Escrita ou oralmente transmitida? E a histriano deve ser aceita somente por confiana e f? No ? Bem, qual aconfiana e a f de que se duvida menos? No a daqueles que so donosso sangue, que desde a nossa infncia nos deram provas de seu amor eque no nos enganaram nunca? [...] Como possvel que eu creia nos meuspais menos do que tu acreditas nos teus? Ou o contrrio. Posso exigir queacuses teus antepassados de mentirosos para que no contradigam aosmeus? O mesmo vale para os cristos. Ou no?SALADIN (Este homem tem razo. Tenho que me calar.) (LESSING,1993, p. 557-58).

    Uma importante questo filosfica est contida nessas palavras, ediz respeito aos fundamentos da pretenso verdade das religies positivas(ou sobre uma possibilidade de demonstrao dessa verdade). A questo deSaladin, implicitamente, pressupe que exista uma nicareligio verdadeira,e que essa verdade possa ser demonstradaem bases racionais, por meio deum exame capaz defundamentaruma escolha, uma opo do homem sbiopor uma das religies positivas. No entanto, a resposta de Nathan vai nosentido diametralmente oposto: todas essas religies podem ser distinguidasem todos os seus aspectos,excetoem seus fundamentos, [...] pois todas estofundadas na histria. Assim como a autenticidade ou falsidade dos anisno objetivamente demonstrvel, no h tambm nenhuma possibilidade deprova racional sobre qual das trs religies a verdadeira.

    Lembremos aqui da tese de Lessing, anteriormente mencionada,segundo a qual as verdades histricas no podem ser demonstradas: Verdadescontingentes da histria [zuflligeGeschichtswahrheiten] jamais podem se tornarverdades necessrias da razo [notwendigen Vernunftswahrheiten] (LESSING,1995, p. 92).

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    Assim, j que no possvel demonstrar racionalmente a verdade deuma religio uma vez que ela se fundamenta em fatos histricos qual seriao critrio de deciso? Nathan retoma a narrativa da parbola:

    NATHAN Voltemos a nossos anis. Como tinha dito: os filhosqueixaram-se em juzo e cada qual jurou diante do juiz ter recebido o aneldiretamente das mos de seu pai. [...] Este no poderia ter sido falso comele como suspeitar isso de um pai to querido? No restando outraalternativa seno acusar seus irmos de traidores e vingar-se deles.SALADIN Que fez o juiz, ento? Prossegue!NATHAN O juiz disse: [...] Pensais que estou aqui para resolverenigmas? [...] Mas... um momento: dizeis que o anel verdadeiro possui afora maravilhosa de tornar seu dono agradvel a Deus e aos homens. Issodeve decidir! Vejamos: quem de vs o mais amado pelos outros dois? Falai! Calai-vos? Os anis s agem para dentro e no para fora? Cada umama apenas a si mesmo? Ento no passais de impostores ludibriados. [...]Se preferis minha sentena a meu conselho: ide-vos! Mas meu conselho: tomai a coisa tal qual ela : cada qual recebeu o anel de seu pai, poiscreia com segurana que seu anel o verdadeiro. [...] Uma coisa segura:o pai amava igualmente aos trs, e no quis favorecer um em prejuzo dosoutros. Pois bem! Cada um imite seu exemplo de amor incorruptvel elivre de preconceitos! Que cada um se esforce por manifestar a fora doanel. Que essa fora venha em auxlio, com doura, com cordial tolerncia,com as boas obras e com a mais ntima submisso a Deus. (LESSING,

    1993, p. 558-559).

    Nessa parbola, pode-se interpretar a figura do pai como umarepresentao de Deus, e os trsfilhos, como sendo as trs religies citadaspelo Sulto (o judasmo, o cristianismo e o islamismo). Assim como o paiama igualmente os seus trs filhos, tambm Deus ama igualmente essastrs religies que, no entanto, disputam e combatem entre si cada umapretendendo ser a verdadeira religio ao invs de imitar o amor que o paidemonstrou para com eles.

    Quanto figura do juiz, podemos dizer que ele um sbio, que conheceos limitesda razo humana. Por isso, tudo o que ele pode fazer [...] dar umconselho

    , ao invs de um veredito: o critrio para o julgamento deve ser buscadonos poderes mgicos do prprio anel. Todavia, segundo esse critrio, nenhumdos trsfilhos preenche os requisitos para fazer com que o anel se revele porsi, pois que esto lutando uns contra os outros. Assim como a autenticidadedo anel s poder ser demonstrada peloefeitodo mesmo, tambm a verdadeirareligio ir se mostrar no por meio da aparncia exterior: no pelas roupas,

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    pelo culto, pelos dogmas, mas sim, pelos seus efeitos prticos, isto , pelaconduta moral de seus seguidores.14

    Essa parbola reflete claramente a posio de Lessing em suacontrovrsia com Goeze. Contra a opinio de que a verdade de cada religioseria demonstrvel por via racional ou que ela poderia se justificar a partirde sua fundamentao em verdades contingentes da histria, Lessing pareceafirmar que isso no possvel, e que em ltima instncia, a ao moral quedecide sobre a verdade da religio (cf. ROBERTSON, 2002, p. 42).15Contra a

    pressuposio de que apenas uma nica religio seria verdadeira, Lessing irargumentar que a verdadeira religio

    [...] aquela que transcende todas as religies histricas [religies positivas]e que, no obstante, subjaz verdade de cada uma delas. uma religiobaseada numa humanidade real e universal. Tal religio [...] une as pessoasnuma comunidade. Numa palavra, a religio da humanidade deLessing. (YASUKATA, 2002, p. 81).

    Nos dois atos seguintes, Lessing exemplifica, atravs do dilogo entreo Cavaleiro e o Patriarca, os perigos da intolerncia dogmtica, que nodemonstra o amor ao prximo em suas aes. A isso se contrape o exemplodo prprio Nathan, que pe em prtica a mxima crist: amai os vossos

    inimigos.

    Isto se revela de modo bastante claro, por exemplo, no quarto ato dapea, quando o cavaleiro vai consultar o Patriarca sobre o caso de Recha, apster sido informado que esta no era filha legtima de Nathan, mas simfilhaadotiva:

    CAVALEIRO Suponhamos, reverendssimo padre, que um judeu temum filho nico ou melhor, uma filha a quem educa com o maioresmero, a quem ama mais que a si mesmo, e a qual lhe corresponde como amorfilial. Suponhamos agora que se descubra que tal garota no filha

    14Cabe assinalar a similaridade entre o pensamento de Lessing e o de Spinoza a esse respeito. Comefeito, no Cap. XVI do TratadoTeolgico-Poltico, Spinoza (2003, p. 221) escreve: Como tnhamosdemonstrado, a f no exige tanto a verdade quanto a piedade [...]. No , portanto, quem apresentaos melhores argumentos que necessariamente demonstra a maior f, mas sim quem apresenta asmelhores obras de justia e de caridade. E quo salutar e necessria no ser uma tal doutrina para asociedade, se queremos que os homens vivam em paz e concrdia!.15Como bem afirmou Robertson (2002, p. 43), [...] a verdade interior de cada religio a sua incitao ao moral. A tradio (o contedo histrico da religio) no pode estabelecer nenhuma verdadereligiosa, pois cada um acredita na religio em que cresceu.

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    do judeu: ele a recolheu quando menina, a comprou, a furtou comoquiserdes, e que essa menina filha de cristos e batizada, mas o judeua educou como judia. Diz-me, reverendssimo padre, o que fazer nessecaso? (LESSING, 1993, p. 576-577).

    O Patriarcafica horrorizado com o caso narrado pelo Cavaleiro e afirmaque se deveria executar imediatamente o que estabelecem o direito papal e odireito imperial como punio para [...] tal sacrilgio, tal depravao, a saber:ao judeu que induz um cristo apostasia, [...] as leis ordenam a fogueira

    (LESSING, 1993, p. 578). O cavaleiro pergunta: [...] mas e se a criana tivessemorrido na misria, se o judeu no tivesse se apiedado dela?. A respostado Patriarca: No faz mal! O judeu ser queimado! Pois seria melhor que acriana tivesse morrido na misria, do que ser condenada danao eterna.

    Quando o cavaleiro argumenta: Mas dizem que ele educou a crianano propriamente em uma f, mas margem de toda f, ensinando-a acerca deDeus nem mais nem menos do que aquilo que satisfaz razo. A resposta doPatriarca irredutvel: No faz mal! O judeu ser queimado! Alis, mereceriaque o queimassem trs vezes! Como? Deixar uma criana crescer desprovidade f? [...] Diga-me quem esse judeu. Traga-o aqui (LESSING, 1993, p.578-79).

    Assim como para Goeze, tambm para o Patriarca a f crist claramente a f verdadeira, o que justificaria em ltima instncia oassassinato do judeu que conduziu a criana a uma religio supostamente falsa.Sua frase, seguidamente repetida, mostra o nimo inquisitrio do patriarca, ecomo sua aoest longe do ideal cristo de amor ao prximo. Alm disso,entra em jogo, aqui, a ligao entre o trono eo altar, ou seja, da ligao entreteologia epoltica16, quando o Patriarca afirma que [...] a ausncia de crena amais perigosa para o trono. Todos os laos civis so desfeitos, dilacerados,se o homem no tem mais f. Fora! Fora com tal sacrilgio! Tambm aqui

    16

    No podemos deixar de mencionar, novamente, uma similaridade com o pensamento de Spinoza,principalmente no que diz respeito s suas reflexes sobre a ligao entre teologia e poltica. NoPrefcio aoTratadoTeolgico-Poltico, por exemplo, Spinoza (2003, p. 8) afirma: E no que diz respeitoaos conflitos desencadeados a pretexto da religio, evidente que eles surgem unicamente porque seestabelecem leis que concernem matria de especulao e porque as opinies so consideradas crimee, como tal, condenadas. Os seus defensores e proslitos so, por isso, imolados, no ao bem pblico,mas apenas ao dio e crueldade dos adversrios. A respeito da relao entre Lessing e Spinoza, vertambm GOETSCHEL (2004, p. 183-250) e HENRICH (2003, p. 104-109).

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    podemos perceber uma aluso controvrsia com Goeze (e ao fato de esteltimo ter recorrido ao governo, para que Lessing fosse censurado).

    Nesse mesmo ato, porm (Ato IV, Cena 7), o espectadorfica sabendoda verdadeira histria da adoo de Recha: o sbio judeu confessa ao mongeque pouco antes de ele chegar, trazendo a pequena Recha para que Nathana criasse, toda a sua famlia (mulher e sete filhos) havia sido brutalmenteassassinada pelos cristos:

    NATHAN Alguns dias antes os cristos haviam matado todos os judeus

    com suas mulheres efilhos; entre eles encontrava-se minha mulher com setefilhos [...], que morreriam todos juntos na casa de meu irmo, para onde osenviara afim de que se refugiassem. [...] Quando chegaste, fazia trs dias etrs noites que eu estava prostrado diante de Deus, coberto de p e cinzas,chorando [...] encolerizado, furioso, maldizendo a mim e ao mundo, jurandodio irreconcilivel Cristandade. [...] Mas aos poucos voltou-me a razo. Efalei com voz suave: E no obstante existe um Deus! No obstante tambmisto foi um decreto divino! Pois bem!Ponha emprtica oquecompreendestehtempos[...] (LESSING, 1993, p. 596, grifos nossos).

    Ao ouvir esse relato, o monge exclama: Nathan, Nathan! Por Deus!Tu s um cristo! Jamais houve um cristo melhor! Ao que ele responde:Pois o que me torna cristo aos teus olhos, o mesmo que me torna judeu

    aos meus! [...] Aqui o que falta agir! E foi o amor aos meus sete filhos queme uniu imediatamente filha de outrem a saber: filha de um cristo(LESSING, 1993, p. 597).

    4. CONSIDERAESFINAIS

    Na peaNathan, o sbio, Lessing prossegue seu propsito iluministade combate superstio e intolerncia religiosa. Prosseguindo suaargumentao exposta nos escritos da Controvrsia dos Fragmentos, eleprocura indicar a diferena entre verdades da razo e verdades histricas,sublinhando que a evidncia histrica nunca completamente confivel;

    sempre possvel haver falsificao e que no h acesso cognitivo verdadereligiosa. Como bem observou Ernst Cassirer:

    Os valores intelectuais puros so [...] sentidos [aqui] como insuficientes. Averdade da religio no pode ser estabelecida segundo critrios puramentetericos: no se pode decidir sobre o seu valor pondo de lado a suaeficcia moral. esse o significado em Lessing da parbola do anel: a

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    verdade ltima e profunda da religio s se prova desde o interior. Todademonstrao extrnseca insuficiente, quer se trate de uma demonstraoemprica, apoiando-se em fatos histricos, ou de uma demonstraolgico-metafsica, escorada em razes abstratas, visto que, em definitivo, areligio sempre e to somente o que age; a verdade de sua essncia s serealiza no sentido e na ao. (CASSIRER, 1992, p. 230-31).

    Dessa forma, Lessing apela ao moralcomo critrio da verdadereligiosa, opondo a ortodoxiado Patriarca (que pretende exercer o controlesobre a opinio e o pensamento dosfiis) ortopraxiade Nathan (que procedesegundo regras corretas do agir, a saber: piedade, caridade e amor ao prximo).

    Como apontamos anteriormente, possvel identificar alguns pontosde concordncia entre o pensamento de Lessing e Spinoza.17No Cap. XVI doTratado Teolgico-Poltico, por exemplo, Spinoza afirma: [...] toda a lei consisteunicamenteemamar o prximo. [...] Tal mandamento , portanto, o nico critriode toda a f catlica e s em funo dele devem ser determinados todos osdogmas da f (SPINOZA, 2003, p. 216, grifos nossos). No Prefcio dessamesma obra, lemos ainda:

    Inmeras vezes fiquei espantado por ver homens que se orgulham deprofessar a religio crist, ou seja, o amor, a alegria, a paz, a continncia e alealdade para com todos, combaterem-se com tal ferocidade e manifestaremcotidianamente uns para com os outros um dio to exacerbado que se tornamais fcil reconhecer a sua f por estes do que por aqueles sentimentos. Defato, h muito que as coisas chegaram a um ponto tal que quase impossvelsaber se algum cristo, turco, judeu ou pago, a no ser pelo seu vesturio,pelo culto que pratica, por freqentar esta ou aquela igreja, ou,finalmente,porque perfilha esta ou aquela opinio e costuma jurar pelas palavras desteou daquele mestre. (SPINOZA, 2003, p. 9).

    intolerncia, baseada na iluso de que a prpria f a nica verdadeira,e que, portanto, seria legtimo combater e at mesmo matar em nomedessa f, a essa [...] competio que ope as diversas religies histricas, poiscada uma delas reivindica s para si uma superioridade absoluta que redunda

    na rejeio dogmtica de todas as outras crenas (CASSIRER, 1992, p.

    17Para Willi Goetschel, tanto aticacomo o TratadoTeolgico-Polticode Spinoza funcionam comouma espcie de subtexto aoNathan,de Lessing. Para o autor, [...] Nathan defende precisamentea distino entre religio e superstio feita por Spinoza [...]. Sua religiosidade consiste em um tipode sabedoria de carter espinosista, emancipadora e orientada para aprxis. (GOETSCHEL, 2004, p.236-37).

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    231), Lessing ope um ideal dehumanismo, segundo o qual o valor do homemno depende de sua crena religiosa, mas sim de suasaes. E o personagemNathanencarna esse ideal humano de maneira exemplar: mesmo tendo suaesposa e setefilhos queimados pelos cristos, ele pe em prtica o preceito deamar aos seus inimigos, no apenas aceitando adotar Recha,filha de cristos,porm, criando-a com o mesmo amor que dedicaria a umafilha natural. Poroutro lado, como se pde notar, o Patriarca a personificao da intolerncia:Tut nichts! Der Judewird verbrannt! [No faz mal! O judeu ser queimado].

    Como se v, o ideal de humanismo de Nathan acaba por transcenderas religies particulares.18O mais importante a eficcia da ao moral, talcomo pregada no Testamento de So Joo, anteriormente mencionado:Meusfilhos, amai-vos uns aos outros.

    Por fim, cabe assinalar que os pontos principais do pensamento deLessing sobre a religio, expostos em sua ltima pea teatral, j estavampresentes numa carta endereada a seu pai, cerca de trinta anos antes dapublicao doNathan. A carta datada de 30 de maio de 1749, e mantm suaatualidade ainda nos dias de hoje:

    O tempo ir dizer se o melhor cristo aquele que sabe de memriaos princpios do ensinamento cristo e que os tem na ponta da lngua

    muitas vezes, sem compreend-los , que vai igreja e segue todos oscostumes porque est habituado a eles; ou se o melhor cristo aqueleque teve srias dvidas e, aps examin-las, atingiu a convico, ou pelomenos, est ainda tentando atingi-la. A religio crist no algo que deveser engolido cegamente e adotado de boa f por intermdio de nossospais. Muitos de ns simplesmente herdamos deles [a religio], assim comoherdamos suas posses. Mas nossos pais tambm mostram, atravs de suaconduta, que tipo de cristos eles so. Enquanto eu observar que o maisimportante mandamento cristo amai ao vosso inimigo continuasendo observado da maneira como o vemos atualmente, eu irei duvidarse aquelas pessoas que se dizem crists realmente o so. (LESSING apud

    YASUKATA, 2002, p. 16).

    18Na 6 Cena do Ato II, por exemplo, Nathan afirma: Ns no escolhemos nosso povo. Ser quens somos o nosso povo? [...] Ser que cristos e judeus so antes judeus e cristos do que... sereshumanos? (LESSING, 1993, p. 533).

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    VIDEIRA, Mario. Filosofia e Literatura no Iluminismo alemo: a questo da tolernciareligiosa noNathan der Weise, de Lessing. Trans/Form/Ao, (Marlia); v.34, p.57-74, 2011,Edio Especial 2.

    ABSTRACT: This article addresses the issue of religious tolerance in the German Enlightenmentthrough the analysis and interpretation of selected excerpts of LessingsNathan der Weise(1779).It aims to point out that the origins of this play are closely related to the theological debate(Fragmentenstreit) between Lessing and Johann Melchior Goeze (chief pastor of the Church of St.Catharine in Hamburg), therefore making the play possible to be read as a reaction and a response tothe criticisms and objections of the latter.

    KEYWORDS:Lessing (1729-1781).Nathan. Religious Tolerance. Enlightenment.Fragmentenstreit.

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