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Painel: “Federação, distribuição das competências
constitucionais e limites orçamentários: qual pacto federativo”.
Tema: Federalismo brasileiro pós-88: a concretização do pacto
cooperativo
1. Definições básicas:
i) Federação: Em geral, todos sabemos que uma Federação
pode ser compreendida como “um modo de ser, um
modelo de estado, formado pela união de vários
Estados-membros, que perdem a soberania em favor da
União Federal, aparecendo no direito internacional
público como estado simples”.
A federação está relacionada mais fortemente à
estrutura institucional1 e em seu coração (núcleo)
encontra-se o federalismo.
ii) Federalismo: pode ser entendido como o princípio básico
da Federação, um processo de governo que congrega
um conjunto de idéias e valores que “permitem a
convivência de vários modelos de vida e/ou identidades
culturais e sociais em um mesmo projeto ou pacto,
conjugados a uma distribuição espacial de poder”2. Sua
configuração essencial se funda na existência de
múltiplos governos que devem atuar de maneira
conjunta e integrada à um Governo Central – União –
regida por uma Constituição. Ele deve prever regras de
relacionamento entre essas esferas de poder – aliviando 1 BERNARDES, Wilba Lúcia Maia. Federação e federalismo. Belo Horizonte: Del Rey, 2010.
2 BERNARDES, Wilba Lúcia Maia. Federação e federalismo. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 119.
2
suas tensões e contribui para aproximar o cidadão do
aparato estatal, tornando possível o aumento de sua
participação política.
Desse modo, entende-se que o federalismo traz um
importante avanço democrático, já que, para além da
divisão clássica dos poderes horizontais – Legislativo,
Executivo e Judiciário – promove um corte vertical,
fazendo com que esses diversos níveis estejam próximos
aos cidadãos.
A teoria federalista permite, assim, que países de grande
extensão territorial mantenham-se unidos, sem recair
em centralismo autoritário.
...
Como todos sabem, a origem do federalismo remonta à
Declaração de independência dos EUA, de 4 de julho de
1776, e das próprias características do
constitucionalismo americano.
No entanto, o modelo federalista pensado, por Madison,
Jay e Hamilton nos famosos artigos Federalistas,
estabelece uma estrutura de co-soberania – dualista e
centralizada – em que os Estados-Membros abrem mão
de uma parte de sua soberania para a União, ficando
com a outra parte3.
Já nesta época, previu-se o princípio da subsidiariedade
nas competências estaduais: delimitou-se as
3 BERNARDES, Wilba Lúcia Maia. Federação e federalismo. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 119.
3
competências da União e as remanescentes ficaram com
os Estados-Membros.
Esse modelo, em sua forma pura, deu ensejo ao
chamado “paradigma dualista” do federalismo4, baseado
na significativa descentralização do poder e autonomia
dos Estados – soberanos em seu âmbito de
competência.
Essa proposta se contrapõe ao chamado “paradigma
hierarquizador”, próprio de centralismo autoritário5 que,
por vezes, deturpa o Estado Federal e o transforma, na
prática, em Estado unitário – fato presente na história
republicana brasileira.
Contudo, esses modelos não são exclusivos. Mais
adequado às exigências contemporâneas e às diretrizes
do Estado de Bem-Estar é o chamado “paradigma
cooperativo”, assentado nas ações de
coordenação/cooperação dos entes federativos, que
mantém certa autonomia, mas atuam de maneira
interdependente a partir de estratégias de integração,
solidariedade, coordenação e cooperação na
concretização de políticas públicas.
4 ABRUCIO, Fernando Luiz. SANO, Hironobu. A experiência de cooperação intereestadual no Brasil:
formas de atuação e seus desafios. In: Cadernos Adenauer XII. nº. 4. Municípios e Estados: experiências
com arranjos cooperativos. Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer, abril 2012. p. 91.
5 ABRUCIO, Fernando Luiz. SANO, Hironobu. A experiência de cooperação intereestadual no Brasil:
formas de atuação e seus desafios. In: Cadernos Adenauer XII. nº. 4. Municípios e Estados: experiências
com arranjos cooperativos. Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer, abril 2012. p. 91.
4
Tal é a perspectiva inicialmente prevista na Constituição
de 88, conforme demonstrarei a seguir.
2. Breve percurso do federalismo no Brasil
Na fórmula americana, o Federalismo surgiu de maneira
centrípeta – ou seja, os Estado-Membros se associaram,
formando a União Federal.
Isso possibilitou grande autonomia das entidades subnacionais,
seja no campo legislativo, administrativo e orçamentário.
Já no contexto brasileiro, esse processo ocorreu de maneira
inversa: com a Proclamação da República, o poder central cedeu
poder às províncias, formando o Estado Federal.
A descentralização se deu, então, de maneira centrífuga. Assim,
da pena de Rui Barbosa, o Decreto n. 01 de 15 de novembro
1889, declarou soberanas as províncias.
Desde então, nossa história revela um movimento pendular: há
momentos de grande centralização legislativa, administrativa e
especialmente fiscal e outros movimentos de maior
flexibilização, com maior autonomia dos Estados.
Assim, se a Constituição de 1891 trazia modernas idéias liberais
para um país ainda predominantemente agrário, marcado por
forte patrimonialismo e clientelismo, o resultado da política
federativa na República Velha não foi satisfatório.
Expandiu-se o poder das oligarquias locais e os grandes coronéis
abafaram as possibilidades de avanço democrático.
5
A adoção de “ideias fora do lugar” como diria Roberto Schwarz,
não logrou produzir, àquela época, efeitos promissores uma vez
que, a excessiva descentralização promovida em um contexto
dominado por caudilhismos e políticas regionalistas levou à
formação da República Velha e ao domínio dos Coronéis.
Com os ventos revolucionários de 30 e a subida ao poder de
Getúlio Vargas, assistimos a um intenso processo de
desenvolvimento pelo alto – ou seja, o desenvolvimento
econômico e industrial do país, bem como a outorga de direitos
sociais foi resultado de políticas centrais, em que a União Federal
toma progressivamente as rédeas do poder e cria uma
burocracia estatal independente dos coronéis.
Assim, ainda que a Carta de 1934 tenha buscado confirmar ideais
federalistas – para alguns ali já estava presente o germe do
federalismo cooperativo6, sua efêmera duração mostrou que
eles não se sustentaram.
Não precisa dizer que, o auge desse centralismo se dá com a
Constituição de 1937 – outorgada e autoritária, época do
chamado Federalismo nominal – paradigma hierarquizador.
No período de redemocratização, entre 1946 e 1964, assistimos
a um sopro de ideias liberais:
i) A Constituição de 1946, em seu art. 5º, recupera o princípio
federativo, estabelece as competências da União e
recupera a competência residual ou remanescente dos
Estados-Membros;
6 BERNARDES, Wilba Lúcia Maia. Federação e federalismo. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 229.
6
ii) Mantém também um sistema de competências
concorrentes e;
iii) Promove relevante transferência de receitas da União para
os Estados, vinculando-as.
Com o Golpe Militar de 64, o Poder Executivo da União se
fortalece, uma nova centralização é efetivada, especialmente
a partir do AI n. 02, de 27 de outubro de 1965.
Sob a égide da Constituição de 1967 e a posterior emenda de
n. 01, de 1969, o Brasil se torna quase uma pseudo-federação,
tamanha a força da União e as características centralistas
próprias de Estado unitário.
O sonho federalista, fortemente relacionado à democracia, se
perde.
3. O federalismo cooperativo na Constituição de 1988
A reconstrução do federalismo brasileiro se dá, então, com o
advento da Constituição de 1988.
Com efeito, a renovação das estruturas federais no Brasil
aconteceu, no campo teórico, a partir da ênfase na cooperação
entre Estados-Membros e na superação das desigualdades
regionais.
A Constituição de 1988 e os ares do processo de
redemocratização trouxeram relevantes aperfeiçoamentos:
i) a forma federalista de três níveis, legando à União, aos
Estados (nele incluído o Distrito Federal) e aos
Municípios a condição de ente federativo,
7
ii) maior descentralização administrativa e legislativa,
determinando os âmbitos de competência a cada um
desses entes e, mais importante,
iii) o modelo cooperativo, entre os entes federativos, fazendo
com que seja necessária a adoção de fórmulas de atuação
conjunta na implementação de políticas públicas e adoção de
medidas legislativas.
Segundo Fernando Abruccio e Hironobu Sano,
“Esta nova configuração de poder garantiu aos governos
subnacionais instrumentos para fazer inovações em políticas
públicas, o que ocorreu em vários casos. Basta lembrar que
programas como o Programa Saúde da Família (PSF) e o Bolsa
Família, considerados muito bem sucedidos, tiveram suas origens
em administrações municipais, assim como as primeiras
experiências mais orgânicas de governo eletrônico e de centros
de atendimento integrado aos cidadãos aconteceram em
governos estaduais. Também vale citar o caso do Governo
Montoro, em São Paulo, que conseguiu construir uma nova
relação entre o Executivo estaduais e as prefeituras durante o
seu mandato, numa agenda que envolvia a montagem de
consórcios e políticas mais regionalizadas”.7
Chegou-se a falar em um novo “federalismo estadualista”. No
entanto, no contexto da Carta de 1988 é mais adequado
entende-lo como federalismo cooperativo e, alguns casos, de
coordenação.
7 ABRUCIO, Fernando Luiz. SANO, Hironobu. A experiência de cooperação intereestadual no Brasil:
formas de atuação e seus desafios. In: Cadernos Adenauer XII. nº. 4. Municípios e Estados: experiências
com arranjos cooperativos. Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer, abril 2012. p. 97.
8
Com efeito, se num primeiro olhar todo federalismo necessita de
cooperação entre os entes, é possível compreende-la de modo
mais especifico.
Nos explica Bercovici que a cooperação prevista no art. 23 da
Constituição – tratando de competências comuns – envolve a
tomada conjunta de decisões, na qual um ente não pode atuar
isoladamente dos demais8.
São as chamadas competências comuns, envolvendo temas que
vão desde a saúde, meio ambiente, moradia, fomento de
produção alimentar e agropecuária, até a educação.
Nessas questões, não há supremacia entre os entes federados e
a responsabilidade é comum.
Como todos sabem, essas competências não se confundem com
as competências concorrentes, nas quais União e Estado
concorrem para uma mesma função, mas a primeira em caráter
geral e a segunda, específico, na forma do art. 24, § 1º, da
Constituição.
4. Dificuldades na concretização do Federalismo cooperativo
Muitos foram os avanços no federalismo cooperativo desde 88:
houve incremento dos arranjos governamentais na realização de
políticas públicas, especialmente no plano vertical – vide SUS,
educação -; formaram-se consórcios intermunicipais e arranjos
metropolitanos que, efetivamente, trouxeram maior nível de
cooperação entre os entes federativos.
8 BERCOVICI, Gilberto. Desigualdades regionais, Estado e Constituição. São Paulo: Max Limonad, 2003.
p. 153.
9
No entanto, apesar da reforma promovida pela Carta de 1988 e
da expressa previsão constitucional, o resultado ficou muito
aquém do esperado, demonstrando um certo colapso do modelo
cooperativo. Esse falência, presente de maneira mais
contundente nas relações horizontais intergovernamentais,
envolvem, principalmente os temas do chamado “federalismo
fiscal”, ponto sensível no qual não se instauraram relações
competitivas saudáveis.
Assim, inúmeras razões concorreram para o atual quadro
federativo do país:
i) A repartição de competências previstas na Constituição
manteve um campo muito aberto para a União impor
diretrizes gerais aos Estados, consolidando sua
centralidade normativa9.
ii) A complexa repartição de receitas leva à dificuldade de
compreensão sistemática dos arts. 153, 157, 158 e 159
da CR/8810, sem contar que a ordem tributária e
financeira confusa gerou enorme contencioso judicial,
suportado tanto pelos entes públicos quanto pelas
privadas, que suportam um custo incompatível com o
desenvolvimento econômico do país.
iii) “Até 1994, a manutenção do poder dos bancos estaduais e
do controle do sistema de ICMS deu aos governadores
um forte poderio, levando diversos governos a atuarem
9 BERNARDES, Wilba Lúcia Maia. Federação e federalismo. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 248
10 BERNARDES, Wilba Lúcia Maia. Federação e federalismo. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 249.
10
de maneira irresponsável e a repassar as custas para a
viúva”11.
iv) Os resquícios do paradigma dualista e de seu oposto, o
paradigma hierarquizador, ainda arraigados na política
nacional, dificultaram a forma cooperativa e entrelaçada
de fórmulas políticas públicas, de modo que
“descentralizar significou repassar funções e lutar por
recursos, criando espaço para formas de gaming, como o
‘jogo do empurra’ (passar para outro a responsabilidade,
o ‘efeito carona’ (aproveitar dos serviços custeados por
outro) e o aumento dos custos de barganha referente à
cooperação federativa”12.
v) Houve forte aumento na competição entre os Estados,
especialmente na busca de investimentos privados,
levando à “guerra fiscal” ao invés de alternativas de
atuação conjunta na redução das desigualdades
regionais, o que ocasionou verdadeiro “carnaval
tributário” como diria Geraldo Ataliba, especialmente
em relação ao ICMS e sua regulamentação.
vi) A grave crise econômica do final dos anos 80 e dos anos 90,
aprisionaram as unidades federativas nas mãos da União
e o processo de estabilização econômica do Plano Real
exigiu forte centralização administrativa.
11
ABRUCIO, Fernando Luiz. SANO, Hironobu. A experiência de cooperação intereestadual no Brasil:
formas de atuação e seus desafios. In: Cadernos Adenauer XII. nº. 4. Municípios e Estados: experiências
com arranjos cooperativos. Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer, abril 2012. p. 98.
12 12
ABRUCIO, Fernando Luiz. SANO, Hironobu. A experiência de cooperação intereestadual no Brasil:
formas de atuação e seus desafios. In: Cadernos Adenauer XII. nº. 4. Municípios e Estados: experiências
com arranjos cooperativos. Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer, abril 2012. p. 98.
11
5. Desafios do federalismo fiscal e a emergência do novo pacto
cooperativo
Para que se possa falar em novo pacto federativo e de efetiva
cooperação, é preciso, em caráter urgente, enfrentar problemas
clássicos de gestão fiscal: “tributar com equidade e eficiência,
adequar a distribuição de recursos, via orçamento, às
necessidades, e executar o dispêndio com eficiência”.
Esses temas implicam em três grandes desdobramentos:
“estruturação eficiente do sistema de competências tributárias,
atribuição equilibrada de encargos entre níveis de governo e
formatação de um sistema eficiente de transferências
intergovernamentais”
Assim, com o objetivo de repensar o pacto federativo brasileiro é
que Requeri junto à Presidência do Senado Federal, a
constituição de uma Comissão de Especialistas do Pacto
Federativo, instalada em 12 de abril de 2012 e que, em seus
trabalhos, já enfrentou, na primeira Agenda, os temas mais
urgentes do federalismo fiscal, dentre os quais gostaria de
destacar três importantes análises:
5.1. A dívida dos Estados
Com a estabilização da moeda e a implantação do Real, era
necessário um amplo processo de reformas no âmbito de todos
os entes federativos, de modo a promover a reestruturação do
aparelho estatal e garantir a devida responsabilidade fiscal como
etapas imprescindíveis para o sucesso do Plano Econômico.
12
Nesse processo, surgiu um forte tensionamento entre
governadores e União, pois o governo federal tentava impor a
venda de empresas e bancos estaduais, bem como o
cumprimento de metas fiscais apertadas aos Estados, o que
gerou grande resistência.
Nesse contexto, a descentralização federativa promovida pela
Constituição de 1988, paradoxalmente, acabou se tornando um
obstáculo a mais para o fomento das políticas nacionais, pois os
governadores não estavam subordinados aos ditames da União.
Contudo, sem os artificialismos financeiros possibilitados pela
alta inflação, que chegou a superar incríveis 2.500% no ano de
199313, ficou mais evidente a fragilidade financeira dos Estados,
fazendo com que, aproveitando-se deste ambiente, o Governo
Federal iniciasse um reforma federativa que voltaria a centralizar
competências e receitas.
Um importante exemplo desse movimento se deu com a
promulgação da 3ª Emenda Constitucional, que incluiu o § 4° no
art. 167 da Constituição, permitindo que a União pudesse fazer a
retenção de créditos oriundos do principal imposto dos Estados:
o ICMS14.
Outras medidas fundamentais para o prosseguimento dessa
reforma centralista foram a criação do PROES (Plano de Incentivo
à Redução do Setor Público Estadual em relação à Atividade
Bancária) e a implantação do chamado Fundo de Estabilização
Fiscal – que vinculou 20% das receitas federais, reduzindo o
repasse aos Estados e Municípios, fez com que fossem 13
REGIS, André. O novo federalismo brasileiro. p.
14 REGIS, André. O novo federalismo brasileiro. p. 82.
13
concentrados nas mãos da União algo como 65% da receita
nacional.
Com dívida alta e falta de controle fiscal, os Estados se viram
praticamente obrigados a renegociar seus débitos, cedendo às
restrições administrativas e orçamentárias “impostas” pela
União.
Um exemplo claro dos resultados dessa política foi a Lei de
Responsabilidade Fiscal, que veio posteriormente para
consolidar esse programa de estabilização financeira em todos
os níveis federativos.
De qualquer modo, com a renegociação das dívidas estaduais,
em grande parte efetuada com base na Lei n. 9.496 de 1997,
houve significativa perda de autonomia dos Estados, que viram
sua capacidade de investimento bastante reduzida e foram
impedidos de contrair novos financiamentos que elevasse as
prestações acima do limite de compromentimento de sua
Receita Líquida Real (RLR). Ficaram, assim, à mercê do
Orçamento da União e suas transferências voluntárias para que
pudesse realizar suas políticas públicas.
Mato Grosso, por exemplo, submeteu-se a um limite máximo de
comprometimento de sua Receita Líquida de 15%, com sua
dívida corrigida pelo índice IGP-DI mais juros de 6 a.a..
Para se ter uma idéia, ainda que na época fosse importante para
o Estado celebrar tal contrato, esse índice é tão elevado para os
padrões atuais que se tornou mais vantajoso buscar o
refinanciamento dessa dívida junto a bancos internacionais, tal
como previsto na Mensagem n. 77 de 2012, cujo objetivo
declarado é “o refinanciamento e recomposição da principal
14
dívida, denominada residual proveniente dos contratos firmados
entre o Estado de Mato Grosso e a União”.
Dita Mensagem foi convertida no Projeto de Resolução (PRS) n.
44/2012, que foi aprovado pelo Plenário do Senado Federal
nesta semana.
Com efeito, conforme dados da Secretaria do Tesouro Nacional,
atualizados em 30/06/2012, a dívida residual do Estado de Mato
Grosso com a União está em torno de R$ 863 milhões e, na
esteira do PRS n. 4/2012, quase a totalidade desse montante
será refinanciado pelo Bank of America N.A.
Ora, com tamanha dependência e subordinação dos Estados em
relação à União, impossível se falar em federalismo cooperativo.
Ao invés, o que temos é um novo centralismo político, financeiro
e social.
Diante desse quadro, a Comissão de Especialistas para
rediscussão do Pacto Federativo do Senado Federal tem
direcionado seus estudos da primeira agenda no sentido de
permitir, em caráter excepcional e sem revogar o art. 35 da LC
101/2000 (LRF), que sejam aplicados nos contratos oriundos da
Lei n. 9494/97 índices de correção e de juros adequados à
situação econômica do país, como por exemplo, a substituição
do IGP-DI pelo IPCA e a cobrança de juros máximos de 4% a.a.
Está em estudo, também, a possibilidade de diminuir o teto de
comprometimento da Receita Líquida Real – RLR, para algo em
torno de 11%, ao invés dos atuais 15%.
Sem cair no canto da sereia do Governo Federal, que tem
acenado aos Estados a possibilidade de concessão de novos
15
financiamentos ao invés de corrigir as distorções, essa medida
singela favorece os Estados e contribui para maior equilíbrio nas
relações econômicas entre as entidades federativas.
5.2. Guerra fiscal
A Comissão de Especialistas do Senado tem proposto que a “guerra fiscal” deve ser definida como toda forma de competição fiscal entre os Estados, tais como a concessão de isenção, anistia e incentivos, em desacordo com disposto na Lei Complementar n. 24/75, a lei que disciplina a concessão de benefícios do ICMS, tributo de competência estadual, regulamentado pela Lei n. 87/96. Com efeito, em razão da profunda desigualdade regional tornou-se comum em nosso país que os Estados, notadamente os mais pobres ou distantes dos grandes centros de produção e consumo, na legítima expectativa de atrair investimentos de infra-estrutura e indústria, concedam benefícios fiscais ao arrepio da lei, promovendo uma guerra fratricida que tem se tornado extremamente maléfica para a Nação. Para entender essa problemática, é importante lembrar que a Lei complementar n. 24/75 estabeleceu o “princípio de que todo tipo de isenção deve resultar de decisão formalizada em convênios celebrados pelos estados (art. 1o.), em reunião com a participação da maioria dos estados ((art. 2o. par. 1o.) e por decisão unânime dos estados representados (art. 2o. par. 2o.),
sujeitando-se os ausentes ao disposto no convênio7. Esta lei cria o
CONFAZ – Conselho de Política Fazendária - composto por aqueles secretários, cuja finalidade principal era regulamentar consensualmente os tratamentos especiais na tributação do então ICM. Fica claro, portanto, que a legislação, ao mesmo
16
tempo que transfere aos estados todo o poder para arbitrar sobre incentivos do ICM, tendo retirado do governo federal esta prerrogativa, postula também um rígido mecanismo para sua aprovação, que exige homogeneidade na abrangência e unanimidade entre os estados”15. Contudo, diversos Estados concedem isenções diretas de ICMS, quando não diminuem sua alíquota interna, sem passar pelo crivo do CONFAZ, prejudicando completamente a análise do interesse nacional na concessão do benefício. Para entendermos algumas dessas distorções, vejamos o caso da aplicação do ICMS para exportação, em situação hipotética descrita por Ricardo Varzano, que interessa aos mato-grossenses e é extremamente emblemática do caos da guerra fiscal: “Considere-se uma empresa localizada no estado de MT, cuja produção é total e diretamente exportada. Devido à isenção das exportações, as saídas de mercadorias realizadas pela empresa não geram débitos de ICMS. Mas as aquisições de insumos geram créditos, os quais, na falta de débitos que os compensem, precisam ser ressarcidos à empresa exportadora para assegurar a isenção do valor total das exportações. Se as aquisições são feitas de outras empresas do estado de MT, o ressarcimento corresponde exatamente ao que o estado arrecadou anteriormente dos produtores de insumos. Se, no entanto, os insumos são adquiridos do estado de SP, cabe a ele a arrecadação do imposto incidente sobre os insumos, e ao estado de MT a concessão do crédito de imposto correspondente.
15
PRADO, Sergio. Guerra fiscal e políticas de desenvolvimento regional do Brasil.
http://www.sefa.pa.gov.br/site/semin_poltrib/materestudo/P5_GuerraFiscal_SergioPrado.pdf
17
A exportação, além de não gerar receita, cria um ônus para os cofres estaduais. Em contrapartida, se a exportação, ao invés de direta, é feita por uma firma situada no estado do PR, o estado de SP arrecada o imposto correspondente ao valor dos insumos, o estado de MT coleta o referente ao valor adicionado pelo produtor, e o estado do PR paga toda a conta relativa ao imposto anteriormente incidente. Nesse caso, é um excelente negócio para o estado de MT atrair para seu território a empresa produtora do bem exportado. Este pode abrir mão de apenas parte de sua receita e, além das vantagens econômicas, ainda arrecadar alguma coisa. A sistemática de tributação das operações interestaduais estimula a concessão do incentivo”16. Instaura-se, assim, a guerra fiscal, cujo resultado final é sempre nocivo para todos, conforme bem demonstra Ricardo Vanzano: “Se MT consegue atrair empresas e, com isso, obter vantagens para sua população, o estado de MS, que dispõe de idênticos instrumentos, pode agir da mesma maneira. Começa a guerra fiscal, a qual reduz ainda mais a disponibilidade de recursos públicos; ainda assim, é vantajosa. Mas, PR, GO e SP também dispõem dos instrumentos. A guerra fiscal se espraia e aprofunda. Com o passar do tempo, as renúncias fiscais se avolumam, e os estados de menor poder financeiro perdem a capacidade de prover os serviços e a infra-estrutura de que as empresas necessitam para produzir e escoar a produção.
16
Extraído do artigo “A guerra fiscal do ICMS: quem ganha e quem perde”, de Ricardo Vanzano, com
adaptações. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/sites/000/2/ppp/pdf/ppp15.pdf
18
As batalhas da guerra fiscal passam a ser vencidas somente pelos de maior poder financeiro, que são também os que têm acesso mais fácil a crédito. Ao mesmo tempo, com a generalização dos benefícios fiscais — todos os estados concedendo incentivos semelhantes —, estes perdem seu poder de estímulo, que depende de diferenças na tributação. A guerra fiscal transforma os incentivos em meras renúncias de arrecadação, que não têm qualquer efeito estimulador. Em face da redução generalizada do peso da tributação, as empresas passam a escolher sua localização em função da qualidade da infraestrutura oferecida. Evidentemente, a guerra fiscal é inimiga tanto da política de desenvolvimento regional quanto da desconcentração industrial”. Por essas razões, os estudos do Senado Federal indicam que “o cenário ideal para o ICMS é o de uma reforma que tornasse a alíquota interestadual igual a zero. Esta parece ser uma opção que vai na direção correta em termos técnicos, ainda que alguns ajustes e adaptações viessem a ser necessários17. Com essa reforma, o tributo passa a ser pago ao estado no qual o contribuinte utiliza os serviços públicos, torna-se possível desarmar a guerra fiscal e passa a ser viável a simplificação da legislação, reduzindo os custos administrativos dos contribuintes e do fisco”18. Por meio dessas medidas, institucionaliza-se o chamado princípio do destino, amenizando, esse relevante conflito federativo.
17
Abstrai-se, aqui, de detalhes técnicos como a inexistência de incentivos à fiscalização pelo estado de
origem. A alíquota zero é usada como uma referência. A adoção de alíquotas interestaduais de 2% ou
4%, como mostrado em Khair (2011) amenizaria as perdas e ganhos, mas não alteraria seus sinais nem
mudaria a posição relativa dos estados.
18 Fonte:NI n. 1204/2012. Consultoria Legislativa do Senado Federal – Marcos Mendes.
19
Além disso, a Comissão de Especialistas tem trabalhado para uniformizar o tratamento legal, seguindo as definições adotadas pela Constituição, de modo a disciplinar as diferenças entre isenção, incentivo e benefício fiscal, delimitando suas hipóteses de cabimento e revogando dispositivos da já antiquada Lei Complementar n. 24/75.
5.3. Fundo de Participação dos Estados – FPE
Fundo de Participação dos Estados – FPE foi criado no contexto
da Reforma Tributária de 1965, que gerou o Código Tributário
Nacional, com o objetivo inicial de compensar a desigualdade na
arrecadação do então ICM, que estava concentrada na região
sudeste19.
Nessa época, o Fundo era composto por 10% da arrecadação
federal com o IR e o IPI e previa que 5% do seu montante fosse
distribuído em razão do território, 47,5% em relação ao tamanho
da população e 47,5% ao inverso da renda per capita.
Esses critérios de distribuição de receitas permaneceram até
1988, quando a Constituição reafirmou a existência do Fundo,
ampliou sua receita para 21,5% da arrecadação de IR e IPI (art.
159, I, a), bem como determinou que ele seria regulamentado
por Lei Complementar com o objetivo de promover o equilíbrio
sócio-economico entre os Estados (art. 160, II, CF/88).
No entanto, em razão da ausência de consenso, o Congresso,
aproveitando-se de estudos do CONFAZ, editou a Lei
19
Revista Conjuntura economic.
20
Complementar n. 62/82, estabelecendo, em caráter provisório,
coeficientes fixos para os 27 Estados da federação20.
Naquela ocasião Mato Grosso ficou com 2,38% dos recursos do
Fundo, o que, em valores corrigidos, gera aproximadamente
1bilhão e 616 milhões de receita para o Estado, ante os 70
bilhões do montante líquido total, em dados atuais (aprox.
1,4% do PIB nacional).
No entanto, o que era para ser provisório, foi se mantendo no
tempo. Isso se deveu, em grande parte, à ausência de vontade
política e certo conformismo com os valores repassados.
Somente a partir da insurgência de alguns Estados, através das
ADINs de nos 875, 1.987, 2.727 e 3.243, ajuizadas,
respectivamente por (i) Rio Grande do Sul; (ii) Mato Grosso e
Goiás; (iii) Mato Grosso; e (iv) Mato Grosso do Sul é que o debate
para a reforma do FPE começou a ganhar força.
Com efeito, no julgamento de 24 de fevereiro de 2010, o
Plenário do STF, através de voto da lavra do Min. Gilmar Mendes,
confirmou a inconstitucionalidade das alíquotas fixas, haja vista
que não atendiam à dinâmica da realidade social, imprescindível
para que o Fundo atingisse seu objetivo constitucionalmente
determinado, qual seja, o de promover o equilíbrio entre os
Estados da federação, atenuando as desigualdades de suas
receitas.
Enquanto critério de transição, o STF permitiu que a Lei
Complementar n. 62/89 continuasse a ser aplicada até
20
Revista Conjuntura econômica.
21
31/12/2012, tempo suficiente para que o Congresso Nacional
tomasse as devidas providências.
Porém, apesar de haver inúmeras propostas legislativas
regulamentado essa distribuição de receitas, não houve
aprovação, em nenhuma das Duas Casas, de nenhum projeto,
em que pese a proximidade da data final determinada pelo STF.
De qualquer modo, as discussões avançaram e o grande debate
instaurado está centrado na adoção de critérios paramétricos
(definição de variáveis como população e renda per capita) ou
critérios de equalização das receitas (diferença da receita dos
estados de menor arrecadação em relação aos de maior
arrecadação)”21.
Ambos atendem os ditames do STF, sendo que os paramétricos
já possuem uma metodologia bastante conhecida, por se
aproximarem dos velhos critérios do CTN, sendo de simples
aplicação e maior viabilidade política. Todavia, apesar de
dinâmicos, eles não possuem flexibilidade em relação às
variações de receitas que podem ocorrer em razão de perdas de
arrecadação de um Estado por algum fator imprevisto, por
exemplo.
Já os critérios de equalização pecam por possuir uma
metodologia mais complexa, mas atacam frontalmente o
problema das desigualdades, funcionando com uma válvula que
regula a transferência de recursos aos Estados que mais
21
Fonte:NI n. 1204/2012. Consultoria Legislativa do Senado Federal – Marcos Mendes.
22
precisam. É o modelo adotado em países como Alemanha,
Canadá e Austrália.
No âmbito da Comissão de Especialistas do Senado, a tendência
é o estabelecimento de regras de transição que mantenham a
atual arrecadação dos Estados fazendo com que nenhum
Estado sofra prejuízos com a Reforma.
No montante excedente, aferível devido ao aumento da
arrecadação federal, a preferência tem recaído, num primeiro
momento, sobre os critérios paramétricos, com alguns
aperfeiçoamentos visando diminuir as desigualdades regionais.
Contudo, já se faz a previsão para que, no futuro, haja uma
reforma mais ampla, com a aplicação de critérios de equalização
de receitas.
Com a maior promoção do equilíbrio regional e maior
racionalização na distribuição de recursos da União, espera-se
combater não apenas a desigualdade, mas também a existência
da malfadada guerra fiscal.
Desse modo, também já é corrente no Senado Federal que a
Reforma do pacto federativo deve ser feita em conjunto,
tornando possível que, eventual prejuízo em uma das medidas,
possa ser compensada a partir de outras.
Fomentam-se, assim, estratégias de cooperação e solidariedade
interestadual que possam evitar a guerra fiscal horizontal.
6. Qual pacto federativo?
Por todo o exposto, não tenho dúvidas que a efetivação do pacto
cooperativo, com repartição racional e proporcional de receitas,
aliada à adequação e reorganização das competências dos entes
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federativos com vistas ao entreleçamento e ação conjunta na
consecução das políticas públicas – saúde, educação, segurança,
meio ambiente, etc... é o cerne do novo federalismo, cuja
concretização se espera desde 1988.
Como visto, os desafios são inúmeros. Mas somente assim será
possível pensar o Estado Brasileiro como um Estado Social e
Democrático de Direito, no qual a necessária diminuição das
desigualdades regionais seja conciliada com as necessidades
democráticas de participação e autonomia de gestão das
entidades subnacionais e de seus cidadãos, aliado a amplo
desenvolvimento político, econômico e social a partir de gestão
cooperativa, situação que nunca ocorreu na nossa história, mas
que se mostra, hoje, como uma verdadeira janela de
oportunidade.