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5 1. APRESENTAÇÃO Todo homem são pensa no suicídio CAMUS Então é pecado Arrojar-se à casa secreta da morte, Antes que a morte nos venha buscar? WILLIAN SHAKESPEARE The Last Poem Good-bye, my dear, good-bye Friend, you are sticking in my breast. The promised destinies are weaving the thread from parting to a meeting. Good-bye, my dear, no hand or word, Don´t be sad, don´ cloud your brow, To die – in life is nothing new, But nor is new, of course – to live * SERGEI IESSIÊNIN Foi através de leituras e vivências que refleti sobre a validade da vida. Pouco a pouco me interessei e assumi curiosidade por este ato tão forte e misterioso que é o suicídio. Às vezes penso sobre uma das passagens que li de Jacob Burckhardt, e acredito no que ali está escrito: “[...] um grande tema histórico deve, necessariamente, estar ligado simpática e misteriosamente à mais profunda intimidade de seu autor” 1 . Muitos fatores devem ter concorrido para a escolha desse tema de estudo, incluindo aí o próprio suicídio do poeta Carlos Eduardo Zago * , então aluno do curso de Letras nesta universidade e que se tornaria tema central da pesquisa. * O Último Poema Adeus, minha querida, adeus / Amiga, você está furando meu peito / Os destinos prometidos estão tecendo / o fio do partir para um encontro. / Adeus, minha querida, sem mão ou palavra/ Não fique triste, sem nuvens no teu semblante / Morrer – na vida não é nada novo, / Mas também não é novo, claro, viver. / (Tradução minha) - Último poema do poeta russo S. Iessiênin escrito em 1925 com o sangue de seus pulsos cortados pouco antes de se enforcar. 1 BURCKHARDT, Jacob. A cultura do renascimento na Itália: um ensaio. Trad. TELLAROLI, Sérgio. São Paulo: Cia. das Letras, 1991, p.07. * Carlos Eduardo Zago: poeta nascido em Presidente Prudente – SP (06/03/1975). Cursava Letras pela Universidade estadual de Londrina quando se suicidou em 14/11/2003 ao jogar-se do terceiro andar do

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1. APRESENTAÇÃO

Todo homem são pensa no suicídio CAMUS Então é pecado Arrojar-se à casa secreta da morte, Antes que a morte nos venha buscar?

WILLIAN SHAKESPEARE

The Last Poem Good-bye, my dear, good-bye Friend, you are sticking in my breast. The promised destinies are weaving the thread from parting to a meeting. Good-bye, my dear, no hand or word, Don´t be sad, don´ cloud your brow, To die – in life is nothing new, But nor is new, of course – to live*

SERGEI IESSIÊNIN

Foi através de leituras e vivências que refleti sobre a validade da vida. Pouco

a pouco me interessei e assumi curiosidade por este ato tão forte e misterioso que é o

suicídio. Às vezes penso sobre uma das passagens que li de Jacob Burckhardt, e

acredito no que ali está escrito: “[...] um grande tema histórico deve, necessariamente,

estar ligado simpática e misteriosamente à mais profunda intimidade de seu autor”1.

Muitos fatores devem ter concorrido para a escolha desse tema de estudo,

incluindo aí o próprio suicídio do poeta Carlos Eduardo Zago*, então aluno do curso de

Letras nesta universidade e que se tornaria tema central da pesquisa.

* O Último Poema Adeus, minha querida, adeus / Amiga, você está furando meu peito / Os destinos

prometidos estão tecendo / o fio do partir para um encontro. / Adeus, minha querida, sem mão ou palavra/ Não fique triste, sem nuvens no teu semblante / Morrer – na vida não é nada novo, / Mas também não é novo, claro, viver. / (Tradução minha) - Último poema do poeta russo S. Iessiênin escrito em 1925 com o sangue de seus pulsos cortados pouco antes de se enforcar. 1 BURCKHARDT, Jacob. A cultura do renascimento na Itália: um ensaio. Trad. TELLAROLI, Sérgio. São Paulo: Cia. das Letras, 1991, p.07. * Carlos Eduardo Zago: poeta nascido em Presidente Prudente – SP (06/03/1975). Cursava Letras pela Universidade estadual de Londrina quando se suicidou em 14/11/2003 ao jogar-se do terceiro andar do

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A oportunidade de estudo surgiu em 2003, enquanto participava de uma

disciplina especial chamada “A vida que eu levo é a vida que quero?”, ministrada pelos

professores Gabriel Giannattasio e Tony Hara. Tive aí a oportunidade de receber

apontamentos que cristalizaram meu foco de estudo. De lá para cá, foram dois anos de

leituras e pesquisas acerca do suicídio em Londrina e, em especial, do suicídio de

Carlos Eduardo Zago. E isso graças ao grupo de pesquisa “Infames, casos de

singularidade histórica” 2 iniciado em 2004, no qual desenvolvi um subprojeto.

Ainda em 2004, o estudo ganhou ares mais práticos com a esperada

autorização de acesso aos autos-criminais da 1ª Vara Criminal da Comarca de

Londrina. Tínhamos então uma fonte concreta a ser pesquisada.

Ao mesmo tempo fui tendo contato com leituras que deixaram ainda mais

claro meu interesse pelo assunto, na verdade, a leitura paradigmática foi o contundente

O mito de Sísifo de Camus3, pela primeira vez me deparava com um livro voltado para o

suicídio em termos da discussão da validade ou não de nossas vidas: “Só existe um

problema filosófico realmente sério: o suicídio. Julgar se a vida vale ou não a pena ser

vivida é responder à pergunta fundamental da filosofia*.”4

prédio onde morava. Era conhecido, principalmente no meio acadêmico, por conta de suas atitudes provocativas, debochadas e suas intervenções poéticas. 2 vide GIANNATTASIO, Gabriel. Malditos: capítulos da história no campo da história das ideáis in: TODAVIA: revista de pós-graduação em História Social / Departamento de História, Centro de Ciencias Humanas, UEL – Vol. 1, nº 1 (Mar/1999) – Especial Romantismo. Londrina: Eduel. p. 05 a 19. 3 CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Trad. ROITMAN, Ari & WATCH, Paulina - 3ª ed. - Rio de Janeiro: Record, 2006. * Em outras palavras, e atentando para o caráter central das questões relativas ao suicídio para a filosofia e para a moral, o filósofo Ludwig Wittgenstein diz: “Se o suicídio é permitido então tudo é permitido. Se alguma coisa não é permitida, então o suicídio não é permitido. Isso lança luz sobre a natureza da ética, pois o suicídio é, por assim dizer, o pecado elementar. [...] Ou será que até o suicídio em si não é nem bom nem mau?” – WITTGENSTEIN, L. apud ALVAREZ, A. O deus selvagem: um estudo do suicídio. Trad. MOREIRA, Sonia.- São Paulo: Cia. das Letras, 1999, p. 217. 4 Ibid. p. 17.

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Mas afinal, qual era o personagem que procurávamos nas pesquisas do

grupo Infames? Quem era esse infame, esse personagem considerado singular na

história? Seria uma pessoa com qual tipo de vida? Por enquanto adianto o que

considerávamos o avesso desse personagem buscado, isto é, o homem cotidiano,

medíocre, domesticado e resignado, tipo esse do qual a maioria de nós parece

pertencer em maior ou menor grau, temos em Nietzsche uma descrição:

Ele, que de resto só procura retidão, verdade, imunidade a ilusões, proteção contra as tentações de fascinação [...] não traz um rosto humano, palpitante e móvel, mas como que uma máscara com digno equilibro de traços, não grita e nem sequer altera a voz: se uma boa nuvem de chuva se derrama sobre ele, ele se envolve em seu manto e parte a passos lentos, debaixo dela.5

Ou em outros termos Alexandre Henz, já oferecendo-nos um diagnóstico do

tempo presente:

[...] o homem se tornou este verme manso incuravelmente medíocre e insosso. [...] O pior é que essa mesmice, este apequenamento do homem, este apaziguamento de Dionísio, este nivelamento do homem tornou-se a meta da nossa civilização e não um acidente de percurso.6

Definido em uma simples frase de Dostoiévski, comentando acidamente

sobre a vida daqueles que querem viver na superfície e que têm medo da vida viva do

subsolo: “[...] tomastes a vossa covardia por sensatez [...].”7

O texto que apresento é multifacetado, assim como foi marcada a pesquisa

nesses anos, podendo ser dividido em pelo menos duas seções básicas: estudo geral

do suicídio em Londrina de 1990 até 2004; e o estudo mais focado do caso do poeta

5 NIETZSCHE, F. Obras incompletas. Trad. TORRES FILHO, Rubens Rodrigues Torres. - São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 60. 6 HENZ, Alexandre apud HARA, T. Saber noturno: uma antologia de vidas errantes. Tese de Doutorado: Unicamp – Campinas, 2004 (mimeografado), p. 08. 7 DOSTOIÉVSKI, F. Memórias do Subsolo. 3ª ed. Trad. SCHNAIDERMAN, Boris – São Paulo: Ed. 34, 2000, p. 146.

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Carlos Zago. No entanto, para a apresentação desses dois temas básicos, dividi o texto

em outros subtítulos.

Assim, teremos no capítulo Critérios da pesquisa um comentário sobre as

intenções com o texto, discutindo os objetivos e apontando as bases referenciais pelas

quais visa-se dar um mínimo de sustentabilidade ao texto.

Em Perspectivas Nietzschianas: abundância ou falta? proponho uma

discussão filosófica que demarcará as distinções que pretendo propor aos casos de

suicídio analisados, a saber, que de um diagnóstico da existência de uma pessoa,

podemos traçar uma diferenciação básica, segundo a qual há os que sofrem de

abundância de vida e, por outro lado, os que o padecem pela falta.

Já em Falta, a partir dessa distinção que assimilo de Nietzsche, apresento

casos de suicídio acontecidos em Londrina que interpreto como exemplos de pessoas

que sofreram pela “falta”, isto é, pelo recalque, pela busca frustrada de mar calmo, paz

e felicidade. Em Casos singulares, apresento os casos mais chamativos estudados.

Chamativos com relação ao método empregado pelos suicidas e pelo mistério que os

casos suscitam.

Em Abundância: apresentação do personagem conceitual temos uma

discussão sobre o tipo de personagem conceitual que se tenta trazer à vida na figura de

Carlos Zago. Discutindo a que tipo de processos de subjetivação* esse personagem

costuma se ligar. Bem como a discussão de um possível significado que o suicídio pode

ter na vida das pessoas ligadas a tal tipo de existência.

* Subjetivação entendida aqui, grosso modo, como o processo de constituição da personalidade, do modo de se viver, das relações da pessoa consigo mesma frente ao mundo exterior, suas concepções e atitudes mais marcantes.

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No capítulo Zago: hipótese da concretização do personagem conceitual,

apresento enfim um texto biográfico pelo qual se tenta demonstrar minimamente como

Zago pode ou não ser considerado alguém que sofreu por abundância de vida. Alguém

que assim possa ser visualizado enquanto uma concretização contemporânea do

personagem conceitual buscado pelo grupo de pesquisa desde seu início.

Uma, dentre as tantas lacunas deste trabalho, é a falta de um espaço para

debater o contexto social no qual viveram os suicidas estudados. Para tal, seria

necessário uma ampliação bibliográfica, para assim, buscar uma certa proximidade com

o trabalho de Norbert Elias.8 A análise de um sujeito singular como Zago, embora seja

preferencialmente focada nas características pessoais e subjetivas da pessoa, também

não deveria prescindir de uma análise do ambiente que de um modo ou de outro

influenciou seu processo de subjetivação, como afirma Foucault: “A atividade

consagrada a si mesmo não constitui um exercício de solidão, mas sim uma verdadeira

prática social.”9

Outra lacuna é a falta de um texto que dê conta da história do suicídio. Isto é,

uma análise de como o ato foi praticado e encarado nas sociedades desde a Grécia

Antiga até hoje. Texto esse que poderia contar com exemplos de trajetórias de suicidas

ilustres na história, bem como uma análise comparativa dos diversos discursos que já

se detiveram no suicídio, seja o religioso, o filosófico, o médico, o jurídico.

8 ELIAS, Norbert. Mozart: sociologia de um gênio. Trad. PAULA, Sérgio Góes de. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995. 9 FOCAULT apud LOPES, F. H. LOPES, Fábio Herique. A história em xeque: Michel Foucault e Hayden White. In: RAGO, Margareth; GIMENES, Renato Aloizio de Oliveira (orgs). Narrar o passado, repensar a história. Campinas: Ifch/Unicamp, 2000, p. 295.

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Mas prossigamos. “Poder dispor absolutamente de si mesmo e recusar-se:

existe dom mais misterioso?”10 Vamos então flertar com o mistério daqueles que se

matam.11

2.CRITÉRIOS DA PESQUISA

[...] a realidade, mesmo supondo esta inteiramente conhecida e explorada, não entregará jamais as chaves de sua própria compreensão, por não conter em si mesma as regras de decodificação que permitiriam decifrar sua natureza e seu sentido. CLÉMENT ROSSET

I´ve got a good mind to give up living

B.B. KING

O tema suicídio geralmente quando abordado, é tomado ainda como pecado,

algo imoral, criminoso e vergonhoso, enfim, tema que quando estudado, só deve sê-lo a

fim de evitá-lo, com finalidades profiláticas. E é na contra-mão dessa visão

estereotipada que se situa o trabalho:

[...] se o discurso médico conseguiu construir um estereótipo para o suicida (associado ao louco, por exemplo), não devemos pensar que todos os indivíduos que tentaram o suicídio se identificaram com esse estereótipo. Não negligenciemos a experiência dos próprios indivíduos. Se há no indivíduo uma dimensão que incorpora as referências culturais, há também outra que contesta.12

Se pegarmos o exemplo de uma capa de uma revista de grande circulação

com a chamada para uma matéria sobre suicídio, teremos: “Suicídio: o que leva uma

pessoa a acabar com a própria vida? Como evitar?”13 Não quero saber como evitar o

suicídio, e sim mergulhar numa tentativa de dar ao ato nuances mais humanas e menos

10 CIORAN, E. M. Breviário de decomposição. Trad. BRUM, José Thomaz. - Rio de Janeiro: Rocco, 1989, p. 44. 11 Parafraseando o título do prefácio de Luís Gusman em: Di BENEDETTO, Antonio. Os suicidas. Trad. RIBEIRO, Maria Paula G. – São Paulo: Globo, 2005, p. 09 – 18. 12 LOPES, F. H. Op. Cit, p. 294. (grifo meu). 13 VOMERO, Maria Fernanda. Suicídio: o que leva uma pessoa a acabar com a própria vida? Como evitar? In: Revista Super Interessante. Edição 184, Janeiro 2003, p.36 a 43. (Grifo meu).

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cientificistas, moralistas e sociológicas. Não se trata aqui propriamente de incentivar o

ato, muito menos de criticá-lo.

Espero que o texto, além de saciar a curiosidade de alguns, também faça-os

refletir de uma maneira nova sobre o tema. Que possam olhar para o suicídio (suicidas)

de novas perspectivas, reavaliando suas próprias vivências.

Mas por que o suicídio? Utilizo-me aqui de uma bela passagem de Cioran

que demonstra o que há de instigante no ato:

O suicídio é um dos sinais distintivos do homem, uma de suas descobertas [...] sem ele, a realidade humana seria menos curiosa e menos pitoresca: faltar-lhe-ia um clima estranho e uma série de possibilidades funestas, que têm seu valor estético, mesmo que só fosse por introduzir na tragédia soluções novas e uma variedade de desenlaces.14

Ao contrário de uma outra vertente de análise, a sociológica de Émile

Durkeim para ser pontual, embora apresente um breve quadro estatístico sobre os

casos estudados, destes não ousarei tirar conclusões de causalidade e nem buscar o

“[...] elemento social do suicídio.”15 Camus nos aponta a necessidade de olharmos para

o ato de outras formas: “Sempre se tratou o suicídio apenas como fenômeno social.

Aqui, pelo contrário, trata-se [...] da relação entre o pensamento individual e o

suicídio.”16 Ressaltando, a intenção não é chegar a uma conclusão, nem de apontar as

causas dos suicídios em Londrina com vistas à medidas de controle (como o foi com

Durkeim analisando a Europa do século XIX). Afinal de contas, como indica Alfred

Alvarez: “Nenhuma teoria será capaz de desvendar um ato tão ambíguo e de razões

tão complexas quanto o suicídio.”17

14 CIORAN, E. M. Op. Cit., p. 45. (grifo meu). 15 DURKEIM, Émile. O suicídio: um estudo sociológico. Trad. CAIXEIRO, Nathanael C. - Rio de Janeiro: Zahar, 1982, p. 23. 16 CAMUS, Albert. Op. Cit. p.18, (grifo meu). 17ALVAREZ, A. O deus selvagem: um estudo do suicídio. Trad. MOREIRA, Sonia.- São Paulo: Cia. das Letras, 1999, p.12.

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Basicamente, segue-se aqui a linha histórica que privilegia o estudo de

individualidades. Mas em que medida o tema individualidades se liga ao suicídio na

pesquisa? A figura do suicida surge nesta pesquisa como uma espécie de “ponta-do-

iceberg” para a detecção de vidas intensas. Até por conta disso, acabei selecionando

um caso para trabalhar detalhadamente (Zago). O estudo de individualidades e de

temas incomuns na história vem ganhando espaço entre historiadores que de forma

geral se ligam à chamada Nova História Cultural18, ou mesmo à incipiente historiografia

pós-moderna19. Os estudos baseados em indivíduos ao contrário dos estudos de

sociedades inteiras ou sistemas políticos nos trazem novas percepções já que, através

da análise de indivíduos, não necessariamente os heróis, percebemos na prática as

contradições que sempre existem nas sociedades.

Mas que tipo de indivíduo se busca? Partilho do diagnóstico daqueles que

vêem a necessidade de se trabalhar tentando mostrar e elogiar aqueles que se lançam

em seu tempo e contra ele, numa invenção experimental de novas perspectivas de vida

marcada assim pelo caráter extemporâneo de seus atores, vejamos o que Deleuze tem

a dizer sobre estes, alertando-nos para algo que é preciso ouvir, buscar saber:

Há vidas em que as dificuldades tocam o prodígio; são as vidas dos pensadores. E é preciso ouvir aquilo que nos contam a seu respeito, porque descobrimos aí possibilidades de vida cuja simples narração já nos dá alegria e força e lança uma luz sobre a vida de seus sucessores. Há aí tanta invenção, reflexão, audácia, desespero e esperança como nas viagens dos grandes navegadores; e, para falar verdade, são também viagens de exploração nos domínios mais recuados e mais perigosos da vida.20

18 BURKE, Peter (org.). A escrita da história: novas perspectivas. Trad. LOPES, Magda.- São Paulo: Ed. Unesp, 1992. 19 vide JENKINS, Keith. A história repensada. Trad. VILELA, Mário. - São Paulo: Contexto, 2001. 20

DELEUZE, G. Nietzsche. Trad. CAMPOS, Alberto. – Lisboa: Ed. 70, 1965, p. 48; (1º grifo meu; 2º grifo do autor).

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Com relação aos processos de subjetivação, a bibliografia fundamental na

qual me inspiro vem de três vertentes, a saber, a teórico-filosófica, a literária e a

biográfica.

No campo da teoria e filosofia o fundamento parte de Gilles Deleuze e Michel

Foucault para entendermos as continuidades e descontinuidades dos processos de

subjetivação desde a Grécia Antiga, passando pela possibilidade e desejo de se

encontrar tais processos hoje. O texto de Michel Onfray21 também é de suma

importância, assim como toda a inspiração nietzschiana.

Já na literatura, na qual o suicídio tem sua própria história, pode-se buscar aí

base bibliográfica na medida que muitos textos literários nos brindam com a

apresentação de personagens que de algum modo, configuram exemplos (conceituais)

de processos de subjetivação com ou sem a presença do suicídio. Neste sentido,

autores como Hermen Hesse e seu “Harry” de O lobo da estepe22; a “G.H.” de Clarice

Lispector em seu A paixão Segundo G.H23; alguns personagens da literatura camusiana

como, por exemplo, o “Merseault” do seu O estrangeiro24; ou personagens de

Dostoiévski, como o “Kirílov” de Os demônios25 e o narrador de Memórias do Subsolo26;

assim como, o jornalista de Os suicidas de Mário Di Benedetto27; o “Julien” de Stendhal

e seu O Vermelho e o Negro28 e o “Werther” de Goethe29, dentre outros, podem ser

úteis.

21 ONFRAY, Michel. A escultura de si: a moral estética. Rio de Janeiro: Rocco, 1995. 22 HESSE, Herman. O lobo da estepe. Trad. BARROSO, Ivo. - 4 ed.- Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1969. 23 LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. 10ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. 24 CAMUS, A. O estrangeiro. Portugal: Livros do Brasil, 19[..]. Introdução de J.P. Sartre. 25 DOSTOIÉVSKY, Fiódor. Os demônios. Trad. BEZERRA, Paulo. - São Paulo: Ed. 34, 2004. 26 ibid. Memórias do Subsolo. 3ª ed. Trad. SCHNAIDERMAN, Boris – São Paulo: Ed. 34, 2000. 27 Di BENEDETTO, Antonio. Os suicidas. Trad. RIBEIRO, Maria Paula G. – São Paulo: Globo, 2005. 28 STENDHAL. Op. Cit.

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Por fim, no caso dos textos biográficos, tento buscar exemplos concretos de

possíveis processos de subjetivação que inspirem e norteiem o estudo. Para tanto,

recorri aos seguintes textos: Saber Noturno: uma antologia de vidas errantes;30 o livro

de Edwar C. Branco sobre Torquato Neto Todos os dias de paupéria: Torquato Neto e a

invenção da tropicália31; e o livro de Alfred Alvarez O deus selvagem: um estudo sobre

o suicídio,32 no qual além de uma análise profunda do suicídio ele nos apresenta um

pouco da vida de alguns suicidas ilustres.

Vejo no estudo dos processos de subjetivação uma esperança, um tipo de

possibilidade escapatória ao niilismo. Deste tipo de estudo pode resultar trabalhos que

se identifiquem com o realizado por um historiador-artista, para citar Tony Hara, ou seja,

aquele historiador que escreve para apresentar, em última instância, novas

possibilidades de existência, diferentes das normalmente aceitas e desejadas. Um tipo

de historiador cujas preocupações ao olhar para o passado e observar seus

personagens intensos giram em torno da seguinte indicação:

É necessário aprender com essas singularidades, ser afetado pela vida excessiva e pelas obras que eles produziram. Uma perspectiva vitalista da História busca o entendimento das fulgurantes exceções, das singularidades que apresentam à humanidade as extremas proporções e os abismos da existência que denunciam a mediocridade dessa vida para o mercado que se arrasta na contemporaneidade.33 .

Um outro critério da pesquisa é a forma diferenciada com que a morte é

tomada. Façamos uma reflexão sobre como ainda encaramos a morte de forma

29 GOETHE, J. W. Os sofrimentos do jovem Werther. Trad. NASSETI, Pietro. - São Paulo: Martin Claret, 2003. 30 HARA, Tony. Saber noturno: uma antologia de vidas errantes. Tese de Doutorado: Unicamp – Campinas, 2004 (mimeografado). 31 BRANCO, Edwar de Alencar Castelo. Todos os dias de paupéria: Torquato Neto e a invenção da tropicália. São Paulo: Annablume, 2005. 32 ALVAREZ, A. Op. Cit. 33 HARA, Tony. Historiador-artista: uma perspectiva vitalista da História. Caderno de Resumos. IX Encontro Regional de História. Ponta Grossa/ Paraná. 2004, p.35; (grifo meu).

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antinatural, isto é, como algo estranho, humilhante, alheio, avesso a nós. Toda essa

repulsa à idéia da morte parece tratar-se de uma criação cultural do homem. José

Saramago em um de seus romances34 mostra-nos como precisamos da morte. Para tal,

ele faz um tipo de “brincadeira” ao imaginar o dia em que a morte cessasse suas

atividades, isto é, que as pessoas parassem de morrer. Enfim, precisamos da morte

mais do que imaginamos.

Tal preocupação não existe com esse teor no resto da natureza onde a morte

acontece o tempo todo e é aceita naturalmente. Na natureza a morte é encarada como

talvez deveria ser para nós, uma mudança física no corpo, uma transformação: “A vida

é fundamentalmente movimento e mesmo a morte nada mais é do que a matéria em

mutação.”35 Somos nós, animais-humanos desejosos da eternidade, que vemos apenas

o antinatural na morte, isto é, o artificial:

“[...] a morte suscita reações completamente opostas as da sua habitual representação: a morte efetiva de um próximo ou o pensamento da própria morte (a qual, em certos momentos de lucidez de pesadelo, aparece subitamente não mais como uma lei de natureza, à qual todos se acomodam, mas como um fato por vir, que, ousamos dizer, é imediatamente escarrado do pensamento) constituem momentos de verdade durante os quais a representação naturalista da morte é profundamente desacreditada, em benefício de uma intuição puramente artificialista e factual”36.

Temos ainda o personagem principal do romance Os suicidas alegando o

caráter até irreal da morte:

[...] a morte, de certo ponto de vista, pode ser uma irrealidade. Para o meu corpo morto, a morte não é real. Para os demais, os que estão vivos, a minha morte é uma realidade e o meu corpo um resíduo da minha morte. Podem experimentar: atravessem o meu corpo com a estaca, o meu corpo morto não reagirá.37

34 SARAMAGO, José. As intermitências da morte. São Paulo: Cia. Da Letras, 2005. 35 GIANNATASIO, Gabriel. Sade, um anjo negro da modernidade. São Paulo: Imaginário, 2000. p.77. 36ROSSET, Clément. A anti-natureza: elementos para uma filosofia trágica. Trad. PUELL, Getulio. - Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989, p. 84, (grifo meu). 37 Di BENEDETTO, Antonio. Op. Cit., p. 90.

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Enfim, a análise da importância e relatividade da morte, ou mesmo da

desconstrução da morte enquanto algo totalmente avesso à vida, é digno de atenção e

de demais estudos, muitos trabalhos já existem tratando o tema. Cabe ressaltar um

trabalho de Jean Baudrillard38 no qual ele demonstra como as sociedades foram

deixando de comungar (em vida) com a morte, como a excluímos e a expulsamos da

nossa vida, como nos separamos daquilo proposto por um imperativo famoso do

filósofo grego pré-socrático Heráclito: “Viver de morte, morrer de vida”.

3.SUICÍDIO EM LONDRINA (1990 – 2004)

Um olhar retrospectivo a seu passado é um modo de definir seu presente e seu futuro; a maneira como esculpe o passado, o tipo de imagem que o homem lhe impõe, é preparatória ao ato de se lançar no futuro. Pode o homem decidir caminhar heroicamente a largos passos para o futuro ou entrar nele recuando, mas não pode evitá-lo.

HAYDEN WHITE

3.1 Sobre os documentos

Os dados a serem apresentados foram extraídos, como já observado, de

autos-criminais. Mas do que se tratam? De que fontes vieram estes dados?

Os autos-criminais de suicídio não chegam a ser “processos-crime” já que

paradoxalmente no suicídio, a vítima e o criminoso são um só*, desta forma, só tive

acesso a inquéritos, que são a instituição de uma investigação que poderá ou não

desembocar num processo-crime.

38 BAUDRILLARD, Jean. A troca simbólica e a morte. São Paulo: Loyola, 1996. * Vide artigo 18 e 28 do Código Criminal.

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No geral, o inquérito de um caso de suicídio consta de uma capa com

informações gerais tais como: data, nº do registro, nome do escrivão, delegado,

delegacia, natureza da infração com o artigo do código penal a que se refere, nome do

indiciado e da vítima – um só no suicídio e tentativa de suicídio. A seguir, sem obedecer

a um rigor, anexa-se uma descrição curta dos fatos envolvidos no caso para que então

se instaure o inquérito e as devidas averiguações, bem como demais documentos:

atestado de óbito, ficha de identificação da vítima, fotos do local do crime e da vítima.

Também há laudos técnicos (autópsia, balística, toxicologia).

Uma importante seção é a dos testemunhos (“termos de declaração”), seção

que pode ser a maior de todo o inquérito. Além desses, todo e qualquer pedido que o

juiz tenha feito a algum órgão para o melhor andamento do caso também é anexado.

Por fim, temos a conclusão do juiz e, por se tratar de suicídio - onde o criminoso já está

morto - segue-se o pedido de arquivamento. O mesmo ocorre com aquele que tenta

contra a vida não obtendo sucesso, isto é, não se pune a tentativa de suicídio.

Na 1ª vara Criminal de Londrina (situada no Fórum da cidade) constam todos

os inquéritos e processos-crime relacionados a crimes contra a vida de 1970 até a

atualidade (o restante foi doado ao CDPH –UEL). Meu recorte temporal foi de 1990 a

2004 já que os inquéritos mais recentes costumam conter mais informações do que os

antigos, e também porque demandaria muito tempo de pesquisa abarcar todos os

inquéritos de 1970 até hoje, haja vista que não há quase nenhuma lógica de

organização desses autos, muito menos sua digitalização. Isto é, a procura de

inquéritos de suicídio entre um número aproximado de 400 caixas-arquivo foi sempre

uma atividade de garimpagem.

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Com relação às fontes no estudo específico do caso Carlos Zago, utilizo aqui

duas entrevistas gravadas em áudio realizadas em 2005 com duas pessoas próximas

do “Carlão”: Rubens Pillegi Sá (estudante de artes pela Uel – artista plástico – reside

em Londrina) e Flávia Arielo (única testemunha ocular do suicídio; historiadora pela Uel

– reside em Bauru-SP). Obviamente também me utilizo da obra poética de Carlos Zago

como fonte para analisá-lo, atentando para o fato que a obra completa dele, segundo

relatos, está de posse de uma “amiga” que após sua morte levou-a para São Paulo e

não parece interessada em compartilhá-la. Por fim, também são utilizados relatos e

poemas deixados por conhecidos e amigos de Zago no site de relacionamento Orkut na

comunidade destinada a ele (http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=4274539),

bem como relatos obtidos em conversas informais pelo meio acadêmico.

3.2 Dados

Fiz a análise de 104 casos, entre suicídios e tentativas de suicídio. Desses, 4

foram os casos de tentativa e, conseqüentemente, 100 os de suicídio. Mas é claro que

não devemos inferir daí que, dentre 1990 e 2004 ocorreram exatamente 100 casos de

suicídio em Londrina. Primeiro porque as estatísticas oficiais, são questionáveis e

quase sempre incompletas. Eu mesmo tive experiência disso, visto ter tido

conhecimento de dois casos de suicídio em Londrina que misteriosamente não foram

investigados pela justiça. Segundo, porque às vezes um inquérito demora anos para ser

arquivado, assim, podem ter escapado à minha tentativa de estatística, casos

acontecidos no período recortado, mas ainda não disponíveis para consulta, ainda não

concluídos e arquivados.

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A relatividade das fontes podem ser visualizada, por exemplo, no fato de que

em Londrina há um prédio (Ed. Julio Fuganti) que possui o estigma de ser palco de

suicídios recorrentes. Existe até um documentário londrinense que aborda aspectos

desse estigma.39 O fato é que durante o período que é abarcado na pesquisa sabe-se

que houveram suicídios neste prédio, mas curiosamente não me deparei nem uma só

vez com um inquérito de suicídio ocorrido lá. Fica a pergunta, onde estão estes

inquéritos? Foram abertos?*

Assim, fica a certeza de que tendo contabilizado 100 casos de suicídio entre

1990 e 2004, isso não significa que durante este mesmo período tenham ocorrido 100

casos de suicídio em Londrina, o que nos daria a falsa média de aproximadamente 07

casos por ano na cidade.

Vamos aos dados da pesquisa. Na distinção de sexos obtive o seguinte: as

04 tentativas de suicídio foram masculinas, e em um dos casos a tentativa foi

reincidente. E dos 100 suicídios:

39 Triângulo Fuganti. Direção e Roteiro: Mariana Soares; Edição: Willian Barbini; Finalização: PbW Digital Cinema; DVD (7’ 33’’); color; Londrina: 2005. * Entrando para o hall das histórias envolvendo Carlos Zago, antecipo aqui que o seu inquérito de suicídio também não foi aberto! Não há sequer um Boletim de Ocorrência que cite seu nome. É como me disse uma das escrivãs do Fórum depois de tentar me ajudar: “Oficialmente, para a cidade de Londrina, ele está vivo...”.

Distinção de Sexo

16%

84%

FEMININO

MASCULINO

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Já a média de idades é maior do que aquela que pelo menos eu esperava

encontrar. A média aritmética das idades dos 100 suicidas ficou em 39 anos. Casos de

jovens abaixo dos 20 anos foram 11 (11%). O caso de suicida mais jovem foi o da

jovem A.G.R.S. de 15 anos matou-se com um tiro em Londrina no ano de 1993; já o

mais idoso foi E.J.S. de 88 anos, em 2001, que na zona rural de Londrina e por meio de

tiro de espingarda suicidou-se.

O recorte temporal indicado se deve às datas limites dos casos encontrados e

analisados, tendo o mais antigo ocorrido em 21/02/1990 e o mais recente a ser

analisado ocorrido em 12/01/2004. Levando-se em conta que a pesquisa junto às fontes

do Fórum foi feita em 2004 e 2005, como pode ser possível visualizar pela indicação do

caso mais recente, da data do suicídio até seu arquivamento, temos em média pelo

menos um ano de processo jurídico, daí o fato das pesquisas em 2005 só terem

alcançado casos do começo de 2004.

O instrumento com que se leva adiante um suicídio é algo relevante e que

deve ser levado em conta não somente pelo aspecto da investigação policial, mas

porque o suicida parece estabelecer com ele uma relação íntima e alheia ao mesmo

tempo. O instrumento pode fazer parte do seu universo cotidiano e que antes não

recebia nenhuma atenção especial, pode-se também estabelecer com o objeto uma

relação quase sagrada, o que pode ser mais típico de suicídios planejados com um

certo tempo e antecedência. O instrumento empregado muitas vezes pode ser

entendido como a mesma coisa que o local escolhido, como nos casos de precipitação,

afogamento ou mesmo nos demais.

Os métodos empregados para o suicídio nos casos analisados, foram:

Precipitação (queda de prédio, passarela, interna ou externamente); Objeto Cortante

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(faca, lâmina de barbear – navalha); Afogamento (normalmente em um dos Lagos

Igapó da cidade); Enforcamento (seja com corda, roupa, fio de varal, fio elétrico); Armas

de fogo (garruchas, pistolas, revólveres, espingardas de cano duplo); Envenenamento

(overdose de remédios, ingestão de tóxicos tais como soda cáustica, venenos

agrícolas); Fogo (atear de fogo no corpo com álcool).

O suicídio choca, e é visto geralmente como uma ignomínia, tal senso-comum

faz-se ver também nos inquéritos, como por exemplo, na tentativa de se cogitar o

acidente ao contrário do suicídio. Isso acontece normalmente quando o inquérito abre

espaço devido a uma falta de provas ou inconsistência dos testemunhos. Isto é, se em

um caso, por algum motivo, o suicídio não é evidente, nota-se uma tendência de se

Método Empregado

39%

35%

10%

7%

4%

3%

2%

Arma de Fogo

Enforcamento

Precipitação

Envenenamento

Afogamentos

Objeto Cortante

Fogo

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concluir o inquérito alegando antes um possível acidente do que um suicídio

intencional. É o que se pode ver em um dos casos onde um policial que segundo

testemunha vivia uma fase atribulada de sua vida, deu um tiro na face. O que segue no

inquérito é a tentativa de se dissimular o testemunho referido, em favor da hipótese de

um possível acidente quando o mesmo estava a limpar a arma, muito embora todos

saibam, e não é preciso ser policial para saber disso, que manutenção de arma de fogo

só se faz com a mesma não municiada e travada. Os casos de afogamento também

parecem ser encarados, no limite do possível, como acidentes, mas em casos em que o

suicida (um caso) se amarra propositalmente à ferragens antes de atirar-se num lago,

essa hipótese de acidente é descartada.

Da análise dos testemunhos, percebo que a intenção da justiça é averiguar

se o dito suicídio não pode ter sido na verdade um assassinato. Descartada essa linha

de investigação, averiguam se alguma pessoa próxima não incentivou o suicídio.

Normalmente essas duas possibilidades são logo superadas, e então o que resta é

obter das testemunhas relatos que dêem conta do motivo ou motivos que levaram a

pessoa a cometer o crime de tirar sua vida.

Apresento em seguida os motivos mais levantados pelas testemunhas:

alcoolismo, dívidas, problemas com relacionamentos amorosos, depressão, doença

(aids, câncer, diabetes, esquizofrenia, epilepsia). Desses ditos motivos, o alcoolismo é o

argumento mais levantado (e mais aceito) como motivo para o suicídio; em pelo menos

25 casos vemos este argumento.

Normalmente o que o discurso jurídico, o jornalístico e nossa própria

concepção concebe enquanto motivo para o suicídio, é “apenas” a parte mais visível de

um processo maior; temos normalmente uma análise reducionista daquilo que

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impulsiona um suicida a tal ato. Alvarez nos ajuda a visualizar o que tento dizer para

fundamentar uma crítica:

As significações sociais que [...] (se) retira do ato suicida podem explicar parte de suas causas locais e imediatas; mas não nos dizem absolutamente nada sobre os longos, lentos e ocultos processos que levam a ele. {..] Talvez seja por isso que quanto mais convincentes são as teorias sociais, mais desligadas elas parecem do material em que se basearam.40

Ou ainda Camus:

Um gesto desses se prepara n silêncio do coração, da mesma maneira que uma grande obra. O próprio homem o ignora. Uma noite, ele dá um tiro em si mesmo ou se joga pela janela.41

É certo que na maioria das vezes o motivo levantado pelas testemunhas é

realmente muito importante (não raro o mais), mas o isolamento de um motivo é

resultado de uma visão objetiva demais, reducionista. Quem sabe a razão para isso

esteja no fato que assim, com um motivo claro, fica mais fácil, tanto para a justiça como

para a família, lidar com o absurdo que o suicídio suscita.

Ainda com relação aos dados da pesquisa, cabe um espaço para destacar

uma constatação que deixa um pouco decepcionado qualquer pesquisador,

principalmente quando se trata da pesquisa de suicidas, a saber, a escassez de

bilhetes e cartas suicidas deixadas nos casos analisados. De fato, apenas em um caso

me deparei com a carta de um suicida pela qual pude entrar um pouco mais no

universo de uma pessoa que está preste a se matar, só aí encontrei um discurso

humano, sentimental, vivo e detalhado sobre o que pode envolver o ato e as

impressões que podem precedê-lo. Nos outros casos apenas bilhetes curtos, nos quais

40ALVAREZ, A. Op. Cit. p. 108. 41 A. CAMUS. Op. Cit. p. 18.

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percebe-se a intenção geral de deixar declarações de amor e conforto aos familiares,

pedidos de desculpas, discutir herança e outros.

De um total de aproximadamente 15 bilhetes, dois me chamaram a atenção.

O primeiro de um caso de 1998, M.F.S. 31 anos, segundo a família era esquizofrênico,

matou-se por ingestão de soda cáustica; o segundo foi o caso de uma mulher R.M.B.O.

de 28 anos, suicidou-se em 1997 por enforcamento. Cito trechos de ambos a seguir:

• “As pessoas são solitárias porque constroem paredes ao invés de pontes”-

M.F.S.

• *“Mas só sei dizer que estou sentindo um vazio uma tristeza, angústia, solidão,

enfim, nem eu mesma sei explicar o que está acontecendo. Pois é fácil alguém te

ver lá embaixo e julgar, sem ao menos saber o sentimento” – R.M.B.O. (grifo

meu).

Para concluir esta parte do texto, tratemos de outro “tipo” de suicídio que

pude encontrar. Falo daquele no qual primeiro tem-se um homicídio e em seguida o

suicídio. Encontrei 04 desses casos, e em todos, os crimes foram passionais. Todos

envolveram casais em que o homem matou a mulher para depois se suicidar. Em um

deles o crime de homicídio foi cometido em pleno Terminal Urbano de Londrina, e o

suicídio não muito longe dali. Em três casos os casais deixaram filhos.

4. PERSPECTIVAS NIETZSCHIANAS: Abundância ou Falta?

Mas existem dois tipos de sofredores, os que sofrem de abundância de vida, que querem uma arte dionisíaca e também uma visão e compreensão trágicas da vida – e depois os que sofrem de empobrecimento de vida, que buscam silêncio, quietude, mar liso, redenção de si [...] Quanto aos valores artísticos

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todos, utilizo-me agora desta distinção principal: pergunto, em cada caso: “foi a fome ou a abundância que aí se fez criadora? 42 Tal distinção remete-nos ao caráter moral do homem, pois do excesso solicitado pela existência deriva um sofrimento nobre e criador [...] enquanto a falta só é capaz de produzir um sofrimento escravo que almeja a redenção alcançando o que não lhe pertence [...]. O excesso e a imaginação constituem-se, então, como meios de transporte para a superação dos limites impostos à condição humana. O romântico é um ser em estado de excesso, permanentemente transbordante, o avesso do que contemporaneamente chamamos ”politicamente correto.”43 O mais pesado dos pesos. – E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: “Esta vida, assim como tu a vives e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes; e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivizelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e seqüência - e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez – e tu com ela, poeirinha da poeira!” – Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasse assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderias: “Tu és um deus, e nunca ouvi nada mais divino!” Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse; a pergunta de tudo e de cada coisa: “Quero isto ainda uma vez e ainda inúmeras vezes?” pesaria como o mais pesado dos pesos sobre teu agir! Ou então, como terias de ficar bem contigo mesmo e com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?44*

As passagens acima são partes vitais para a compreensão da discussão

proposta neste capítulo. Sofrer por falta, por abundância de vida, dizer “sim” à vida,

desejá-la mais uma vez. Mas o que de fato significa viver de tal forma? O que significa

esse sofrer por excesso e não pela falta de vida, esse viver de um tal modo que se

deseje que cada momento da sua vida pudesse se repetir inúmeras vezes? Isto é, na

prática, existe regras para isso? Eis uma questão que creio encontraremos respostas

42 NIETZSCHE, F. A gaia ciência. Trad. SOUZA, Paulo César de. - São Paulo: Cia. das Letras, 2001, p. 272-273. 43 GIANNATTASIO, Gabriel. Malditos: capítulos da história no campo da história das ideáis in: TODAVIA: revista de pós-graduação em História Social / Departamento de História, Centro de Ciencias Humanas, UEL – Vol. 1, nº 1 (Mar/1999) – Especial Romantismo. Londrina: Eduel, 1999, p. 16. 44 Ibid. p. 193. * No mesmo sentido e de forma simplificada temos: “Era isto a vida? – direi à morte. Pois bem! Que se repita!” –NIETZSCHE, F. Assim falava Zaratustra. Trad. MIORANZA, Ciro. – São Paulo: Escala, 200-. A festa do asno – p. 278.

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(ou não) dentro de cada um. É como indicou o próprio Nietzsche ao comentar sobre o

processo do tornar-se o que se é, que dentre outros fatores, pressupõe a transformação

do sujeito em alguém capaz de dizer ‘sim’ ao demônio que fizesse a pergunta acima

indicada: “Que alguém se torne o que se é pressupõe que não suspeite sequer

remotamente o que é.”45

Em todo caso, Camus ajuda a também tentarmos uma maior empatia com

essa estilística de vida quando no decorrer do seu livro46 explica como vive um homem

absurdo, dizendo que este vive como se fosse morrer em breve, como um condenado à

morte, isto é, vive com o peso de saber que deve aproveitar sua vida já que esta se

findará muito em breve. Algo que faz lembrar umas das descobertas angustiantes do

personagem “Julien” do romance de Stendhal: “É inacreditável, contudo, que eu não

tenha conhecido a arte de gozar a vida senão depois de ver seu termo tão próximo de

mim”.47

Com relação à pesquisa, é a partir dessa distinção que apresento os

próximos itens do texto. Segundo o que pude inferir dos inquéritos, me perguntei: aqui,

foi o excesso de vida ou o ressentimento que levou à pessoa a sofrer? Outra pergunta

similar: o que precedeu a intensidade da morte dessa pessoa (suicídio) foi também uma

vida intensa ou, ao contrário, algo como um desespero por conta de uma “paz” perdida?

Em todo caso, tanto naquilo que pode ser enquadrado enquanto vida

excessiva, como o que pode sê-lo enquanto vida em ressentimento, o fato é que a

atitude de tirar a própria vida dá traços de excessividade tanto em um caso quanto 45 NIETZSCHE apud HARA, Tony. Saber noturno: uma antologia de vidas errantes. Tese de Doutorado: Unicamp – Campinas, 2004 (mimeografado), p. 65. 46 CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Trad. ROITMAN, Ari & WATCH, Paulina - 3ª ed. - Rio de Janeiro: Record, 2006. 47 STENDHAL. O vermelho e o negro. Trad. MELVILLE, Jean. - São Paulo: Martin Claret, 2004, p. 434.

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noutro. Isto é, o suicídio já é um elemento que faz a pessoa merecedora de um olhar

especial, independente da vida passada. No entanto, para fazer uso da distinção

nietzschiana sugerida, é necessário ser um pouco reducionista.

4.1. Falta

Muitos falham em sua vida. Um verme venenoso lhes devora o coração. Que tratem ao menos de ter êxito em sua morte. Nietzsche (Zaratustra)

Da maioria dos casos de suicídio estudados, extraio a sensação de que as

pessoas se mataram por um certo tipo de culpa, por um desejo de adequação social

não obtido. Ou seja, pareceram-me pessoas que por razões e em intensidades

diferentes, se sentem em disparidade com aquilo que esperavam delas, e por isso

sentem-se menores, tristes e envergonhadas porque, para citar alguns exemplos, não

passaram no vestibular, estavam doentes, sem emprego, sem relacionamento estável

dentre outros.

No entanto, longe de querer desqualificar tais suicidas ou tratá-los com frieza,

cabe ressaltar que tiveram em seu último ato de vida, uma atitude transgressora,

intensa, forte. Muito diferente da interpretação que muitos aí fazem, julgando tratar-se

apenas de mais uma covardia na vida dessas pessoas. Algo que lembra Kierkegaard

comentando de forma paradoxal o suicídio: “Concordo, é uma covardia; mas uma

covardia que exige muito valor.”48

Vamos a três casos que bem ilustram o que parece ser o tom geral dos

casos:

48 KIERKGAARD apud Di BENEDETTO, Antonio. Op. Cit. p. 151.

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A.P.F. – 19 anos. Suicídio em 2001 por precipitação em uma das passarelas

da rodovia Pr-445*. O motivo mais evidente que transparece pelos inquéritos é o de

uma rejeição amorosa. Sofria pela separação dos pais e porque o homem com quem

vinha mantendo relacionamento não a quis namorar mesmo depois dela ter escrito a

ele uma carta declarando-se. Com a rejeição, passou a acreditar que não foi aceita por

provavelmente ter sido considerada “gorda” pelo homem que pretendia conquistar.

Falta ou Abundância?

É certo que muitos vivem a desilusão amorosa de forma vívida, o

personagem Werther de Goethe é um arquétipo nesse sentido. Mas aqui não parece

sê-lo. Ou seja, no caso de A.P.F., o que gerou o sofrimento foi a falta. Primeiro pelo fato

da vida dela não parecer ter nuances excessivas, e depois, porque ela ao invés de

colocar-se para além da moral e dos padrões estéticos ficou ainda mais escrava

desses, até por conta do amor que esperava ver retribuído.

L.C. – 43 anos. Suicídio em 2002. Era alcoólatra, morava sozinho e todos

sabiam que ele era infeliz por sentir-se excluído da família. Seus filhos moravam em

outra cidade e inclusive acreditava que estes não eram de fato seus filhos. O método

empregado foi enforcamento. Abundância ou Falta?

Primeiro cabe um comentário sobre o alcoolismo. É marcante a alegação

desse traço nos suicidas analisados. Mas o fato é que há diferentes formas de ser um

alcoólatra. Ou seja, deduzir uma vida boêmia - o que seria um bom indício para a

Abundância - pelo fato da pessoa ser alcoólatra não satisfaz. Afinal de contas, nem

todo alcoólatra é um Raul Seixas, que é um bom exemplo de vida em Abundância.

* Talvez não tivesse falecido se sua queda tivesse sido simples, mas o fato é que durante a queda, uma caminhonete a atingiu e com isso ela realmente não teve chances de vida.

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Neste caso, a pessoa enveredou-se pelo sofrimento por conta da necessidade de

sentir-se ajustado à família; não morava sozinho por opção, mas porque não era aceito

no seio familiar. Enfim, a impressão que tenho da vida daqueles marcados pela

Abundância, é que nestes o fator “família” e sua adequação a ela, não é primordial,

como o foi para esta pessoa.

A.M.F. – 50 anos. Suicídio em 1999. Segundo a família, 13 anos antes ele

havia contraído uma dívida no valor de 20 mil reais ao comprar uma casa, e a

incapacidade de quitá-la o levou ao suicídio. Enforcou-se num sábado no

estacionamento do Shopping Catuaí (Londrina). Falta ou Abundância?

Prender-se de maneira tão fortemente a questões financeiras não parece ser

atitude ligada aos de vida excessiva. Na verdade, tenho a impressão que esses

chegam a contrair dívidas por diversão, dandismo, trafegam em ironia pela ilegalidade,

ou mesmo pela pobreza; não têm muitas preocupações como a de manter uma boa

imagem perante a sociedade. E no caso aqui apresentado, sinto ter sido o oposto,

assim, Falta.

Para concluir os casos analisados, não posso negar que por trás de um

desses casos analisados enquanto Falta, possa ter havido de fato um exemplo de vida

(e morte) marcadas pela Abundância. Enfim, trata-se de uma interpretação; além do

que pode padecer de uma limitação das fontes em me revelar a vida da pessoa.

4.2. Casos singulares

[...] só as impressões confusas de um sonho são comparáveis talvez, ao sentimento que se experimenta ao dizer: “Esta é a última manhã!” Werther (Goethe)

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Com relação ao singular, o que primeiro chamou atenção durante a pesquisa

foram alguns casos de enforcamento. Comecei a me deparar com exemplos que nos

fazem rever os conceitos que temos sobre aquilo que, grosso modo, chamamos de

instinto de vida. Antes do contato com os casos de suicídio, pressupomos que o suicida

para lograr êxito no seu projeto deve programar um meio tal que impossibilite as

chances de, num acesso instintivo pela vida, seu corpo automaticamente atrapalhe ou

impossibilite o feito. Pois não é bem assim, alguns casos de enforcamento desmentem

isso. São casos em que a pessoa ao se matar não tinha os pés suspensos no ar,

estavam agachadas, ajoelhadas, com os pés no chão. Ou seja, bastaria esticar as

pernas no momento do ato para que o projeto suicida se encerrasse ali mesmo. Mas ao

que parece, quando a vontade de morrer é de tal forma brutal, até uma reação natural-

instintiva do corpo é superada em favor de uma pulsão (de morte) mais vigorosa e

desenfreada naquele momento.

Com a mesma idéia de superação da dor e de reações naturais, como nos

casos de enforcamento com altura menor que a do corpo, que insiro o caso de A.S.M.

de 49 anos que em 2001 suicidou-se. Num bilhete deixado, A.S.M. diz que seu suicídio

deve-se à impossibilidade de pagar dívidas. O que mais chama atenção é o método

utilizado para dar cabo da vida: foi ao banheiro de sua casa e lá, com a sua lâmina de

barbear, cortou-se diversas vezes, sobretudo nos braços e pescoço, até a morte. As

condições do banheiro quando o corpo foi encontrado são chocantes. E então,

devemos vê-lo com pena? Com horror? Como alguém decidido e corajoso que não

padece mais de sua angústia? Como alguém que vai ao inferno? Alguém que

simplesmente não existe mais como ser humano? Respostas são pessoais.

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Um outro caso que muito me interessou devido a uma maior possibilidade de

“diálogo” com o suicida, foi o de C.R.R.M. de 38 anos, ocorrido em 1998. O interesse

reside no fato dele ter deixado uma carta (15 páginas) como testemunho das razões de

seu suicídio. Como comentado antes, este foi o único caso em que me deparei com

uma carta.

Foi escrita na mesa de um bar horas antes do suicídio; ademais, a carta

indica um certo grau de formação e instrução, vejamos a frase inicial: “Aqui estou eu

num bar, tentando encontrar a coragem necessária através de umas doses de whisky”.

Além de sua eloqüência, também demonstrou humor quando, por exemplo, escreveu:

“Acho que esta carta está a maior bagunça. Mas que se dane! Eu não amanhecerei

vivo mesmo! Na verdade eu já morri há muito tempo!”. C.R.R.M. enforcou-se, utilizou a

mesma corda que já estava por dentro da sua calça quando ele bebia e escrevia sua

carta de suicídio, também tinha consigo um livro de filosofia (Sócrates).

A seguir exponho os dois casos que considero os mais chocantes por conta

do método empregado. Tais casos nos fazem indagar sobre os níveis de angústia a que

se pode chegar para se cometer o suicídio e ainda se utilizar o fogo para isso. Motivos:

desejo de autopunição? Desejo de chocar? Pulsão irrefreável e ilógica? Nada disso?

Tudo isso e mais sensações de uma vez? Dúvidas como estas talvez não fossem

passíveis de explicação nem por quem chegou nesses “cumes do desespero” para

lembrar o romeno Émile Cioran.

Cito o caso de um homem de 48 anos, C.J., ocorrido em 2002. Segundo os

testemunhos, C.J. tinha depressão crônica há pelo menos 20 anos. Ademais, dizem ter

tentado se matar outras seis vezes antes de conseguí-lo na sétima tentativa. Três dias

antes ele havia tentado se matar na casa de um amigo quando trancou e vedou as

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portas e ligou o gás da cozinha, tendo sido impedido antes de conseguir se matar. Dias

depois em seu apartamento, depois de espalhar álcool pelo corpo, ateou fogo em si e

morreu ajoelhado. O espanto causado nos policiais pela cena, o que também indica as

fotos, foi indescritível; um claro exemplo da potência trágica contida no suicídio quando

este assume suas facetas mais expressivas e funestas.

Na mesma linha fica o caso de M.L.S.H. mulher de 47 anos. Também ateou

fogo ao corpo. Disseram que a mesma sofria de depressão há oito anos. Incrível como

meses antes ela já havia sido impedida de suicidar-se também por meio do fogo

quando foi encontrada já encharcada de álcool. Ou seja, o método escolhido por ela

não parece ter sido mera coincidência ou resultado de um impulso momentâneo, mas

uma distinção meticulosamente escolhida dentro da opção de não viver mais. Morreu

no hospital, em decorrência dos ferimentos causados por esta segunda tentativa de

suicídio por fogo.

Para finalizar, gostaria de apresentar um caso que chegou a ser muito

comentado na cidade no ano 2000 por conta da sua divulgação nos meios de

comunicação. É inegavelmente o caso mais misterioso e insondável com o qual tive

contato. De pronto lembrei de uma das passagens do livro de Di Benedetto quando me

deparei com esse caso: “[...] um pai e um filho não podem se suicidar. Eu não o

concebo, não entenderia.”49

Trata-se do suicídio conjunto de um pai e filho por precipitação. O mais

intrigante porém, além do fato de ter sido um duplo-suicídio, é o de não ter havido uso

de força por nenhuma das partes, isto é, o suicídio conjunto parece ter sido levado a

cabo de comum acordo. O próprio inquérito policial presume isso. Familiares afirmaram

49

Di BENEDETTO, Antonio. Op. Cit. p. 67.

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categoricamente que nem desconfiam dos possíveis motivos que levaram os dois a

isso. Eram de classe média-alta e bem instruídos.

Pularam juntos da cobertura, 13º andar, e para aumentar o mistério, lá foram

encontrados objetos “estranhos” tais como: balde com água colorida, pedaços de pano

recortados, uma boina do exército soviético. Muitos pensaram tratar-se de um ritual

demoníaco, mas nem a própria polícia parece ter dado crédito a tal explicação, tendo

concluído o caso cercada do mesmo mistério primordial com o qual iniciaram as

investigações.

5. ABUNDÂNCIA: apresentação do personagem conceitual

A Queda

E eu que sou o rei de toda esta incoerência, Eu próprio turbilhão, anseio por fixá-la E giro até partir... Mas tudo me resvala Em bruma e sonolência. Se acaso em minhas mãos fica um pedaço de ouro, Volve-se logo falso... ao longe o arremesso... Eu morro de desdém em frente de um tesouro, Morro à míngua, de excesso. Alteio-me na cor à força de quebranto, Estendo os braços de alma - e nem um espasmo [venço...! Peneiro-me na sombra em nada me condenso... Agonias de luz eu vibro ainda entanto. Não me pude vencer, mas posso-me esmagar, - Vencer às vezes é o mesmo que tombar – E como inda sou luz num grande retrocesso, Em raivas ideais ascendo até o fim: Olho do alto o gelo, ao gelo me arremesso... ........................................................................................ Tombei... E fico só esmagado sobre mim! ...

Mário de Sá-Carneiro

A estrada do excesso leva ao palácio da sabedoria. Willian Blake

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Um dos primeiros pensadores conhecidos a promover um tipo de zombaria

acerca do comportamento convencional foi Diógenes Laércio (o “Cão” - 400-325 a.C).

Temos aí talvez não o único nem o primeiro, mas exemplo de um tipo novo de

pensador. Ao mesmo tempo temos a abertura de um estilo novo de vida cujo brilho

situa-se além do pensamento contemplativo e passivo. Trata-se daquele indivíduo que

percebe racionalmente e/ou intuitivamente a ação de certos poderes (micro-poderes

diria Foucault)50 que agem de forma coercitiva sobre as pessoas, com intuito de só

serem aceitas na sociedade indivíduos com uma certa moral comum, isto é, pessoas

mais ou menos “fabricadas”. Deste modo, a sociedade visa um convívio mais

harmonioso entre seus membros, ainda que através de um certo controle multifacetado

(interno e externo) sobre os desejos, o que acarreta a formação de um homem dócil,

servil.

Desta percepção aguçada acerca das relações de força que permeiam a vida,

este novo tipo de homem sente necessidade de enfrentar estas ações de controle que

fazem parte da construção e imposição de padrões morais. E é claro que desta

oposição moral hegemônica x ética pessoal, inevitavelmente surgem embates internos

e externos. No caso específico de Diógenes, tratava-se basicamente de uma ética cuja

preocupação focava-se na busca pela satisfação de suas necessidades naturais,

descartando e debochando do restante, pertencente às necessidades e expectativas

construídas já dentro da lógica de um processo civilizador de controle de costumes,

incluindo aí a religião.

50 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Trad. MACHADO, Roberto. – Rio de Janeiro: Graal, 1979.

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Segundo Foucault51 e Nietzsche52, é mesmo na Grécia Antiga que surgem

exemplos vivos pelos quais visualizam-se rupturas – dobras - na moral em favor de

éticas subjetivas e de processos de individuação extra-morais.

Este personagem histórico não é visto aqui como sendo dotado de

características fixas e imutáveis que permita-nos uma delimitação certa. Pode-se

inclusive estender este argumento e chegarmos à afirmação de que não há um sujeito

claramente constituído a ser analisado, mas uma multiplicidade destes dentro de um só

corpo, tudo em devir e atravessado por fluxos diversos: “Não há sujeito, mas uma

produção de subjetividade: a subjetividade deve ser produzida, quando chega o

momento, justamente porque não há sujeito.”53

É importante uma diferenciação acerca do tipo/modelo de subjetivação a qual

pretendo ater-me visto que os processos de subjetivação são diversos. Há, por

exemplo, as práticas cristãs de subjetivação - Francisco de Assis é um de seus

expoentes - mas não é caso tratá-las. Também não se trata de um resgate dos modos

gregos de subjetivação, pois nestes casos havia uma prática de si preocupada dentre

outras coisas com um certo ascetismo e controle das emoções54, embora Diógenes

configure para a época uma exceção, aproximando-se assim do modo de subjetivação

elogiado nesta pesquisa.

Com todo o problema envolvido em cada adjetivação que apresento a

seguir, aceito o risco para dar visibilidade ao personagem . As qualidades que

costumam pertencer ou que imputam sob juízo moralista (ou não) a esses indivíduos 51 Idem; História da sexualidade: o uso dos prazeres. V.2. Rio de Janeiro: Graal, 1990. 52 NIETZSCHE. F. O nascimento da tragédia. Trad. GUINSBURG, José. - São Paulo: Cia das Letras, 1992. 53 DELEUZE, G. Conversações. Trad. PELBART, Peter Pál. - Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p. 141. 54 FOUCAULT, M. Resumo dos cursos do Collège de France (1970-1982). Trad. DAHER, Andréa; consult. MACHADO, Roberto. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997, p.119 – 134.

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trafegam entre: artista, boêmio, libertino, louco, errante, romântico, inconveniente,

contraventor, ateu, infame, extraordinário, imoral, revolucionário, expressivo, passional,

perigoso, transgressor, revolucionário, atrevido, ilógico, vagabundo, melancólico,

rebelde, impulsivo, dândi, avesso, malandro entre outras adjetivações. Cada exemplar

abre uma janela para debates, não havendo por hora condições de discorrer ou mesmo

conhecer mais sobre os mil sentidos possíveis atrás dessas máscaras.

Uma das marcas da subjetivação que se procura é o excesso ao contrário do

recalque, o que se procura observar é um homem de intensidade, impulsivo. Uma

leitura de Nietzsche indica que: “O impulso vital não aspira à conservação, mas à sua

intensificação, ao crescimento da intensidade de sua força, pela qual chega a sacrificar

a própria existência.”55

Através de Foucault, Deleuze elege como uma possibilidade de pesquisa a

tarefa de encontrar os processos atuais de subjetivação. Verificando, porém, se estas

mesmas subjetivações são suficientemente artísticas para romper de maneira plástica

os limites do saber e poder:

[...] o que interessa essencialmente a Foucault não é um retorno aos gregos, mas nós hoje: quais são nossos processos de subjetivação; será que temos maneiras de nos constituirmos como ‘si’, e, como diria Nietzsche, maneiras suficientemente “artistas”, para além do saber e do poder? Será que somos capazes disso, já que de certa maneira é a vida e a morte que aí estão em jogo?56

Tem-se aqui talvez a formação de um conceito-chave por sua capacidade de

condensar todo o foco da pesquisa: encontrar uma subjetivação artística atual.

55 FREZZATI JR, Wilson Antonio. Nietzsche contra Darwin. São Paulo: Ed. Uniduí, 2001, p.66. 56 DELEUZE, Gilles. Conversações. Trad. PELBART, Peter Pál. - Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p.124; grifo do autor.

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No mesmo sentido, Focault deixa claro seu objetivo e gosto pelo estudo

continuado de personalidades desconhecidas que por algum motivo chamam a atenção

e merecem resgate: “[...] a Vida dos homens infames poderá alargar-se a outros tempos

e a outros lugares.”57

Uma vida e uma obra, ainda que curtas, de um artista como Zago não podem

ser engolidas tão facilmente pelo “continuum” da história. Não se pode deixar passar

em vão tais forças plásticas. Se, ao contrário do que esperava Nietzsche*, os seres

extraordinários continuam raros e imersos numa cultura de rebanho, mais oportuno se

torna um estudo que procura pôr num mínimo de evidência aqueles que se vêem quase

sempre marginalizados:

[...] no mundo que sucedeu à graça, a arte foi o asilo das exceções que restaram. Ela foi um campo no céu noturno, no qual de tempos em tempos nascia uma estrela. [...] a quem admiraria se a cultura da uniformidade em franco progresso [...], agora prepare os próximos golpes da derradeira e sem data campanha contra o extraordinário?58

Retomando o tema suicídio e ligando-o ao tema do personagem conceitual

apresentado, nota-se que a morte auto-infringida parece ser recorrente dentre aqueles

que se envolvem em subjetivações intensas, artísticas.

Em alguns aspectos, estes exemplos de subjetivações costumam gerar

alguns fluxos tão intensos e perigosos que: “No limite, uma aceleração que faz com que

57 Ibid. p. 105, grifo autor. * Vejamos o caráter teleológico em Nietzsche quando espera que no futuro os homens conscientizem-se e passem a se tornar aquilo que são, o que nos traria uma nova realidade social fruto de uma nova relação subjetiva: “Mas coloquemo-nos no fim do imenso processo, ali onde a árvore finalmente sazona seus frutos, onde a sociedade e sua moralidade do costume finalmente trazem à luz aquilo para o qual eram apenas meio: encontramos então, com o fruto mais maduro da sua árvore, o’ indivíduo soberano’, igual apenas a si mesmo [...] supramoral, em suma,o homem de vontade própria [...].” – NIETZCHE, F. Genealogia da moral: uma polêmica. Trad. SOUZA, Paulo César de. – São Paulo: Cia. das Letras, 1998, p. 49. 58 SLOTERDIJK, Peter. O desprezo das massas: ensaio sobre lutas culturais na sociedade moderna. São Paulo: Estação Liberdade, 2002, p.116, grifos meus.

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já não se possa distinguir a morte e o suicídio.”59 A própria trajetória do cantor e

compositor Cazuza, configura um exemplo disso.

Segundo uma conversa de Foucault com Schroeter sobre o caráter muitas

vezes drástico e mortal de um modo de subjetivação, ele diz: “[...] o suicídio tornou-se

então uma arte que toma toda a vida.”60

Para definir em que sentido o suicídio parece fazer parte da vivência de um

personagem conceitual que se envolve em subjetivação artística, cito Hermann Hesse e

a descrição que este faz do seu personagem “Harry”:

“[...] pertencia ao grupo dos suicidas. E aqui é necessário esclarecer que não se devem considerar suicidas somente aqueles que se matam. Entre estes há suicidas que só o chegaram a ser por mero acaso, e de cuja essência de suicídio não fazem realmente parte. Entre os homens sem personalidade, sem características definidas, sem destino traçado, entre os homens incapazes e amorfos, há muitos que perecem pelo suicídio, sem por isso pertencerem ao tipo dos suicidas, ao passo que há muitos que devem ser considerados suicidas pela própria natureza de seu ser, os quais, talvez a maioria, nunca atentaram efetivamente contra a própria vida. O ”suicida” – e Harry era um deles – não precisa necessariamente viver em relações particularmente intensas com a morte; isto se pode fazer sem que se seja um suicida. É próprio do suicida sentir seu eu, certo ou errado, como um germe da Natureza, particularmente perigoso, problemático e daninho, que se encontrava sempre extraordinariamente exposto ao perigo, como se estivesse sobre o pico agudíssimo de um penedo, onde um pequeno toque exterior ou a mais leve vacilação interna seriam suficientes para arrojá-lo no abismo. Esta classe de homens se caracteriza na trajetória de seu destino porque para eles o suicídio é a forma de morte mais verossímil, pelo menos segundo sua própria opinião. A existência dessa opinião, que quase sempre é perceptível já na primeira mocidade e acompanha esses homens durante toda sua vida, não representa, talvez, uma particular e débil força vital, mas, ao contrário, encontram-se entre os suicidas naturezas extraordinariamente tenazes, ambiciosas e até ousadas.61

É nesse tipo de relação com o suicídio que vislumbro Zago. Não só um

suicida porque de fato se matou, mas alguém que já pertencia em vida ao grupo dos

suicidas. Isto é, vivia intensamente o que em certo sentido lhe acarretava uma vivência 59 FOUCAULT apud DELEUZE, G. Conversações. Trad. PELBART, Peter Pál. - Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p.138. 60 DELEUZE, G. Conversações. Trad. PELBART, Peter Pál. - Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p.141. 61 HESSE, Herman. O lobo da estepe. Trad. BARROSO, Ivo. - 4 ed.- Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1969, p. 45.

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suicida, uma vida levada no limiar da tentação frente à vida e morte. Prossigamos para

o debate da vida dele propriamente dita.

6. ZAGO: hipótese da concretização da abundância de vida

Todo mundo aceita que ao homem cabe pontuar a própria vida: que viva em ponto de exclamação (dizem: tem alma dionisíaca)

JOÃO CABRAL DE MELO NETO Uma figura ética, um personagem conceitual me encantam muito mais quando emergem do concreto, da prática.

MICHEL ONFRAY

Não tenho material que possibilite um resgate da vida de Zago antes de sua

vinda a Londrina. Desse período em que viveu em Presidente Prudente – SP, só

sabemos que perdeu pai e mãe. Sua família era basicamente a tia e a irmã. Já seu

período em Londrina ecoou forte, principalmente entre os estudantes da Universidade

Estadual de Londrina. Por toda a universidade, independente do curso, há pessoas que

de algum modo ouviram falar ou tiveram contato com o “Carlão”. Era conhecido como o

“louco do CCH*”, ou “o tarado da Uel”, por conta da sua mania de paquerar abertamente

as meninas que acabava de conhecer. Quem o conheceu mais de perto teve a chance

de conhecer seu lado lírico, podendo assim, não reduzi-lo a um clichê ou rótulo como

parece ter sido no resto da comunidade estudantil.

Na tarefa de descrever traços da vida de Carlos Eduardo Zago, insiro o texto

apresentado na revista Coyote que seu amigo Rubens Pillegi escreveu quando foram

publicados alguns de seus poemas após sua morte:

* Centro de Ciência Humanas – ao qual pertence o curso de Letras.

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Meu jovem amigo, o poeta Caros Zago, pulou de um edifício, suicidando-se, no dia 14 de novembro de 2003. Escreveu seu último poema na poça de sangue que refletia o azul do céu, numa tarde qualquer, dia alucinado, marca deixada pra trás, rastro. Alguém se abandonava como uma bituca de cigarro que voa da sacada do terceiro andar para morrer na rua, brasa espatifada contra a sarjeta. Morreu, brother? Morreu! Deus. A história. A arte. A filosofia. O homem. Pois é, morreram todos. Matou todas as idéias, todos os ideais. Morreu como um anticlímax. Coisa chata de falar. E deixou poemas para a gente ler. Embora sua arte esteja além da complexidade que a sua obra poética possa suscitar, temos a atitudes de um ser convulsionado, vivendo seu personagem como o único contato que se permitia: para a profundidade da expressão, quer dizer, a autoconstrução de um mito. Pode chamar de gênio, bobo, pateta. Artista, vigarista, tarado. Pedófilo, necrófilo, viado. Qualquer papel social dado, qualquer troca com o Estado. Qualquer tentativa de se tecer um tratado. Aqui, um documento, registro, retrato. Estabelecida a cópia, vamos alegar o quê? Coisa mais sem originalidade. Mais um suicídio de poeta. Que papo! E voou. Para seu último poema. Sua derradeira performance como artista. O personagem assassino de seu autor. E deixou-nos sós, no escuro da noite, bocas abertas a olhar estrelas em vão.62 Rubens Pillegi Sá

A descrição da vida de uma pessoa nunca será capaz de dar conta da

experiência concreta ou de um contato pessoal com tal personagem. Se imaginarmos

Zago enquanto uma vela, no sentido de alguém que viveu sob o signo do fogo, então

metaforicamente aquilo que eu tenho para analisar não passa da parafina derretida e

distorcida que sobrou da sua vida em chamas. O que não significa que a descrição seja

um esforço em vão. É certo que não teremos mais o calor vivo da chama da vela em si,

e sim um calor menor, afinal estamos desprovidos da experiência direta com o sujeito,

menor também porque se usa o jogo meio dúbio das palavras para fazê-lo. Enfim, as

palavras não são as coisas. Mas, ainda assim, que algum calor emane.

Guardadas devidas proporções, com relação a Zago cito as mesmas palavras

utilizadas por Edwar C. Branco para tratar o poeta Torquato Neto:

62 Revista de Literatura e Arte COYOTE. Carlos Eduardo Zago. N.8. Londrina: Coyote edições, verão de 2003, pág. 09.

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Não foi único, neste aspecto, mas foi singular, na medida em que levou ao limite da coincidência entre arte e vida o combate contra aquelas formas dominantes de pensamento.63

Para defender tal hipótese, vejamos os relatos obtidos na principal entrevista

realizada acerca do “Carlão” com Flávia Arielo. Ela conta que Zago só tinha como

família as tias e uma irmã, mas não soube me precisar algo sobre a vida dele antes de

vir para Londrina cursar Letras, curso este que ele estava para jubilar quando se matou.

Ela me lembra das vezes que Zago foi visto nu pela universidade: “ele já andou nu nas

festas do RU – Restaurante Universitário -, e uma amiga sabe dele ter andado nu no

calçadão da Uel também!” Perguntada sobre como conheceu ele lembra: “Na primeira

vez que o vi foi numa festa na minha casa em 2002... Ele chegou e ficou um tempão se

olhando no espelho sem se mexer... e só!” Então eu a questiono sobre mais situações

marcantes que ela presenciou, o que a faz lembrar de um dia em que estava tendo

aula: “[...] ele entrou uma vez na nossa sala e disse: quem quiser beijar eu tô aqui fora!”

Conta também de uma “suruba” que ela soube que Zago participou durante uma festa:

“[...] rolou a maior suruba lá no banheiro...o Carlão, fulana, fulana...”

Então entramos no assunto do suicídio, até por conta dela ter sido

testemunha ocular. Segundo ela, Zago estava muito alterado nos últimos dias que

antecederam o suicídio. Inclusive ele dizia às vezes para seus amigos que se não

arrumassem dinheiro para ele, iria se matar. Ele pedia dinheiro para ir a Presidente

Prudente para acompanhar o velório de sua tia que, para ele, era como se fosse sua

mãe. Além disso, ela acredita que Zago tivesse algum tipo de doença mental: “[...]

tenho quase certeza que ele era esquizofrênico... só sei que tomava remédios”.

63 BRANCO, Edwar de Alencar Castelo. Todos os dias de paupéria: Torquato Neto e a invenção da tropicália. São Paulo: Annablume, 2005, p.225.

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Também alude para o fato dele estar em abstinência de remédios a algum tempo e,

claro, não esquece de mencionar o exame de Aids (soro positivo) que Zago carregava

no bolso quando se matou: “[...] juntou muita coisa.” Se referindo ao recente exame que

confirmou a Aids, a morte da tia e a falta de remédios.

Com relação aos remédios e sua possível doença, acredito que este seja

apenas mais um ingrediente no emaranhado de relações que levaram Zago ao suicídio.

Isto é, não sou capaz de me contentar com esses três motivos-base (abstinência / aids /

falecimento da tia) para afirmar que daí, e só daí, adveio sua atitude. De qualquer

forma, acredito sim que estes tenham sido os fatores finais que o levaram à morte, ao

suicídio.

Flávia ainda conta que no dia do suicídio, Zago botara a mão no fogo e

depois, com uma faca, remexia as queimaduras. Assustados, os vizinhos chamaram a

polícia que nada pôde fazer ao dizer que ele não estava cometendo crime, embora,

segundo ela, Zago ficou a brincar com o policial e sua arma enquanto era interrogado.

O humor de Zago era algo muito característico: “Eu sempre tive essas duas visões dele:

alegria com fundo de tristeza”. Algo facilmente visualizado nessa brincadeira que ele

fazia, no dia de sua morte, com o policial e sua arma. Parecia pertencer àquela alegria

irônica, que flui de um estado não exatamente feliz, mas convulsionado, vívido, caótico,

belo, como a alegria que Nietzsche vê na música Carmem de Bizet: “Sua alegria é

africana; a fatalidade paira sobre ela, sua felicidade é breve, súbita, sem perdão”. 64

Uma vez em conversa informal com a então estudante de filosofia Gisele

Gomédi, foi-me relatado um caso interessante envolvendo ela, um professor de filosofia

64 NIETZSCHE apud ROSSET, C. O princípio de crueldade. Trad. BRUM, José Thomaz. 2ª ed. – Rio de Janeiro: Rocco, 2002, p. 27.

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da Uel e o Zago. Conta que enquanto caminhava com seu professor, Zago se

aproximou deles e, sem conhecer nenhum nem o outro, perguntou ao professor:

“professor o que acha de eu me matar?”. O professor riu e foi evasivo. Note-se que isso

aconteceu em 2002, e ele veio a se matar no fim de 2003. Assim, parece que, embora o

suicídio de Zago tenha sido impulsionado por uma união funesta de acasos, não foi

exatamente uma atitude para a qual ela já não estivesse preparado*, talvez até por

conta disso o impulso, isto é, a não-premeditação, o ganhou tão rapidamente. Segundo

conta Flávia Arielo, ele quando chegou na sacada do apartamento, após ela ter dito

não ter dinheiro para lhe dar, ficou parado poucos segundos ali e se atirou em direção

ao chão mesmo tendo os fios de alta tensão bem abaixo de si.

Agora passo aos relatos que obtive com Rubens Pillegi quando o entrevistei

em 2005. Rubens já morou com Zago e conta da difícil relação que tinha com ele:

“Zago não era fácil [...] Ele começava a falar um tipo de alemão que só ele entendia e

ficava assim sem parar (imita)... daí a gente ia falar sério com ele e ele respondia nessa

língua louca dele... a gente ficava puto... um dia depois que a gente brigou por causa

disso ele deixou de falar daquele jeito e foi pra porta, virou e disse se eu quisesse fazer

sentido eu ia pro exército!, abriu a porta e foi embora”.

Conta da ida dele para a Amazônia já em 2003. Zago, segundo Pillegi, havia

conhecido uma garota pela internet que pediu e pagou para que ele fosse para Manaus.

Chegando lá, Zago não ficou nem uma semana com a menina e já brigaram.

Coincidentemente na época, Zago obteve uma herança, uns 4 mil reais, o próprio Pillegi

ajudou-o a conseguir retirar esse dinheiro em Manaus mesmo. E, segundo conta, Zago

* Situação que faz lembrar um dos personagens de Sartre: “[...] começava a crêr que teria a vida breve e trágica de uma flor belíssima.” - SARTRE, Jean-Paul. O muro. Trad. SILVEIRA, H. Alcântara. – 2ª ed.- São Paulo: Progresso Editorial, 1948, p. 173.

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reuniu todas as pessoas que conhecera na cidade e levou-os para um prostíbulo, tendo

gasto lá praticamente todo o seu dinheiro! Quando retornou, segundo Flávia, “[...] ele

contava que tinha do pra Amazônia ensinar as índias a usarem camisinha” (risos).

Pessoalmente nunca falei com Zago, mas tive a oportunidade de presenciar

um de seus happenings*. Foi em 2003, e estava vendo uma palestra de algum assunto

ligado a meio-ambiente. Quando o orador da mesa abriu para perguntas do público,

chegou Zago (que eu devia estar vendo pela primeira vez) e perguntou o seguinte:

“éh...eu posso recitar uma poesia?” O público o olhou atônito. Alguns riram, outros

menos surpreendidos começaram a se falar como se já soubessem de que figura

tratava-se Carlos Zago.

Outra passagem interessante aconteceu durante as mesmas aulas da

disciplina especial A vida que eu levo é a vida que eu quero. Justamente no dia em que

o professor Gabriel discutia com a sala o aforismo O mais pesado dos pesos (já citado).

Foi então formulada para a classe a pergunta extraída do próprio texto – “ desejar essa

vida inúmeras vezes assim como ela foi, quem aqui seria capaz de responder sim a

esta pergunta?” Após um certo silêncio, Zago que não era aluno matriculado na

disciplina, respondeu: “Eu diria!” Menos de dois meses depois se matou.

O nível de reflexão que Zago tinha sobre seu processo de subjetivação

parecia ser grande. Lembro de uma história contada pelo aluno de filosofia Eduardo

que envolve o professor José F. Weber*. Conta-me que certa vez o professor Weber

pediu aos alunos que freqüentavam sua disciplina que fizessem um trabalho sobre a

* Alusão às manifestações públicas de contestação ou simples brincadeira artística típicas de sujeitos ligados à contracultura, vide GUARNACCIA, Matteo. Provos: Amsterdam e o nascimento da contracultura. Trad. MENDES, Leila de Souza. – São Paulo: Conrad, 2001. * Professor do Departamento de Filosofia, dedicado ao estudo do pensamento nietzschiano.

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filosofia de Nietzsche, passados alguns dias o “Carlão” chegou perto e disse algo

assim: “Professor, eu produzi algo sobre o trabalho que você passou do Nietzsche e

queria que você desse uma olhada...” Então o professor respondeu: “Claro, só

mostrar...” E Zago ficou parado à frente dele olhando para si... Isto é, segundo sua

própria concepção, ele próprio era um trabalho vivo que poderia se ligar à filosofia de

vida proposta por Nietzsche.

Demais situações inusitadas envolvendo Zago extraí de tópicos listados na

comunidade Carlos Zago no site Orkut**. Começo com um caso um tanto engraçado

que é contado pelo melhor amigo de Carlos Zago em Londrina, Rafael Galli, com quem

tive oportunidade de estabelecer diálogo à distância desde o ano passado – peço

licença para utilizar o texto na configuração idêntica a do site, recuado à esquerda:

Ser uma pessoa normal... 31/01/2006 06:57 Uma vez eu e Dani Boy fomos buscar o Carlos em Joinville. Ele havia surtado em Floripa se não me engano e a polícia o tirou do ônibus. Passamos altos apuros nessa fita... Eu nunca tinha visto o Carlos daquele jeito, completamente fora do mundo e ouvindo vozes. No caminho de volta ele surtou em Ponta Grossa. Mais uma vez a polícia o tirou do ônibus com violência. Algemaram-no e o puseram deitado de cara pro chão. Muito feio e assustador... Daí ficamos 11 horas em Ponta Grossa esperando o próximo busão pra Presidente Prudente onde iríamos deixá-lo. Decorridos dias após esse episódio, encontrei Carlos. Ele me disse assim: -Rafa... Depois dessa juro pra você que vou procurar ser normal... Vou acordar as 7:00 tomar café e ir para o trabalho que vou arrumar. Daí chego cansado em casa, assisto novela e vou dormir. Claro que perguntei pra ele se ele tinha certeza do que estava querendo. Não tinha... Nunca teve, aliás. Só sei que passou como uma ventania esse rapaz. Que bom que pude conhecê-lo. Confesso ter havido momentos em que me perguntei se ele não fingia ser tudo aquilo. Hoje em dia isso está mais precisamente resolvido desde 14/11/2003.

Além de detalhes sobre Zago, Rafael aqui tocou em um ponto interessante,

com o suicídio ele foi ter certeza da veracidade da vida e do jeito de ser do “Carlão”, o

que remete a Camus: “Os homens só se convencem das nossas razões, da nossa

sinceridade e da gravidade de nossos sofrimentos com a nossa morte. Enquanto vivos,

** http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=4274539

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nosso caso é duvidoso [...].”65 Se a morte em si já nos desperta maior sensibilidade

para com a vida da pessoa, mais agudo ainda é esse sentimento quando trata-se de

um suicídio, pelo menos parece ser isso o que ele quis dizer. Para além disso, o que

fica dessa passagem é realmente o humor do Zago e sua consciência irônica que não

era normal.

A seguir o comentário de Matheus, trata-se do “Carlão” como ele era visto por

alguém próximo, um texto livre e sem preocupações acadêmicas:

04/01/2006 07:49 (MATEUS) puta, já faz dois anos que o carlão se matou? Realmente, como disseram aí, a grande experiência poética com ele era poder ouvi-lo declamando seus textos. Mas aqui "no papel" ela também funciona muito bem. Ele tinha uma capacidade única (ou talvez não capacidade, mas um karma, sina, sei lá), pra mim, de transitar na grande sopa elemental que reúne, indistintas: a genialidade e a imbecilidade, a grandeza e a decadência, o sublime e o vicioso. Confesso que muitas vezes não soube distinguir o que nele me soava brilhante e o que soava banal, e isso era muito interessante pra mim. era como se o paulo leminski tivesse um lado igor valérius, se o walt whitman tivesse arroubos de bicho-grilice pseudo-poética de estudante da uel. e, nisso tudo, creio que ele foi único.

Cito a seguir Eduardo novamente ao falar das línguas absurdas que o Zago

falava, assim como Rubens Pillegi havia comentado:

De seus gestos pululavam pardais, De sua boca eu aprendia aramaico [..] ' Ohana Mahatmanesh!' - Que língua é essa Carlos? - 'É a lingua-minguante!' - Qual o intuito? -'Esse mesmo'- ... respondia seco ...

Encerrando esta parte dedicada às descrições que obtive pela internet e

chegando finalmente à poética do Zago, cito um comentário maravilhoso. Aqui temos

além do comentário sobre a poesia que se segue ao texto, uma descrição de como

Zago era percebido por aqueles mais próximos a ele:

65 CAMUS, A. A queda. Trad. RUMJANEK, Valerie. - São Paulo: Círculo do Livro, 1956, p. 51.

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Comentário Eduardo É a poesia que mais representa o Carlão, pelo menos o Carlão que conheci; O Carlão de movimentos transcendentais e performáticos, quando ele brincava com os elétrons e as energias orgônicas de mundos alternativos e possíveis, O Carlão de pensamentos extemporâneos, O Carlão de sensibilidade ímpar... O Carlão de boca sorridente e olhos tristes que, em meio daqueles universitários concentrados no que há de intelectual em todo aquele eurocentrismo exacerbado e daqueles outros catatônicos e ansiosos esperando o tempo passar para que um dia tenham o canudo e talvez um dia sejam felizes, de uma certa maneira, gritava: 'Não percebem vocês a beleza do mundo? O que fazem parados? Vamos viver arte, ser arte!' O Carlão de muitas poesias escritas - acredito que se juntarmos todas as poesias deixadas em capas de caderno, verso de foto e de recados, teremos um material bom - e de um outro tanto de poesias faladas

A seguir o poema, ou a experiência sensorial e textual de Zago:

O Infinito Labirinto ou a Balada Alienada Um ex-agente no Cáucaso me contou um estória sobre umas flores que ele roubou de um traficante de ópio na Birmânia e me deu quatro pétalas pra mascar dizendo que eu nunca mais ia voltar do país dos sonhos pensei que ele estava tristonho quando disse-me sorrindo que sua hora estava chegando e que por isso ele iria partindo em dois as mentes que pelo caminho fosse encontrando agradeci sem mais delongas e ascendo para algum canto que não sei bem se era um quarto ou um antro masquei três pétalas estranhas daquela flor das montanhas que supus ser papoula da Birmânia apesar de nunca ter visto antes as pétalas de papoula agora já faz tempo eu sei que descobri que não se tratava do rubi oriental era uma outra flor instrumental que só conhecem alguns monges do Nepal que a bebem em um magnífico ritual onde os iniciados buscam entrar em um transe transcendental do qual nunca mais voltam ao normal nada disso eu sabia naquele instante em que comia

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que muitas eras depois eu descobriria de onde foi que minha alma descendia e por quais caminhos meu karma me levaria para alcançar essa estranha sobrenatural sabedoria tirei os sapatos fumei um cigarro e apaguei a luz e mal deitei na cama, desapareceu o quarto e me vi deitado sobre o cume de uma montanha mil vezes mais alta que a mais alta das montanhas do Himalaia cercada por um oceano mais vasto que qualquer um já visto ou imaginado pela mente humana quis levantar e dar um grito mas só consegui dar um suspiro estava eu deitado sobre o infinito? não sei alguns segundos se passaram ou foram os milênios que cantaram enquanto abri e fechei os olhos de uma lágrima que chorei vi surgir um ser que jamais imaginei em minha vida até então ser capaz de conceber não há palavras para dizer não há como descrever era um Avatar a plena Luz do Ser e tive medo e alegria sobre aquilo que eu poderia chamar de sua cabeça milhares de estrelas dançavam em um céu que ao mesmo tempo que se criava se desfazia fechei de novo os olhos e me tornei um com aquele ser e ouvi então ressoar pot todo ar e além do vácuo uma canção muito muito delicada como fosse cantada por todas as vozes das crianças de todas as épocas e lugares da eternidade, era um canção reveladora só uma sílaba motriz e geradora multiplicando-se livre em infinitos tons e vibrações nela pude ouvir a síntese viva de cada um dos sons da criação OM em um mesmo instante que também

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já era outro me vi deixando a idéia de que eu tinha ainda corpo ou que fosse sequer uma pessoa foi quando como um sino que soa atravessei todos os templos erigidos por todos os seres que os erigiram e percebi que cada um desses seres era um próprio templo em si e perguntei ao tempo ao espaço e a matéria: ---- O que é o tempo o espaço e a matéria? imediatamente a resposta se formou você, a montanha e o oceano cada um dos grãos de areia da montanha é outra montanha e cada uma das gotículas do oceano é um outro oceano a montanha e o oceano bailam, nesse bailado o oceano em seu movimento vai decompondo a montanha que é imóvel e que vai aderindo ao oceano, chegará um momento em que toda a montanha irá se dissolver acabando assim com o movimento do oceano e com sua própria imobilidade nesse exato momento começará O Tempo a partir daí o que haverá entre cada grão de areia da montanha dissolvida a cada gotícula do oceano será chamado de Espaço e Matéria será todo o possível movimento realizado no tempo por esse espaço imóvel gargalhei imediatamente e de dentro de minha boca surgiram duas flores uma azul mas de um azul que era também tátil, gustativo e olfativo e outra branca de um branco com todas as propriedades da azul, a Flor branca disse para a azul por uma boca que parecia a minha " Oceano " enquanto a Flor azul dizia para a branca " Montanha" depois disso a luz do quarto se acendeu e eu estava novamente sobre a cama Olhei entorno preocupado eu havia dormido eu havia sonhado? Quem havia acendido a luz do quarto? Na parede um grande quadro nele pintado um quarto onde no lugar onde estaria a minha cama havia um vaso com duas flores não vou lhes dizer as cores, mas para o horror dos horrores na parede do quarto do quadro haviam outro quadro de um quarto onde no lugar onde estaria a minha cama havia um vaso com duas flores não vou lhes dizer as cores, mas para o horror dos horrores descobri que não era um quadro era um espelho que refletia as flores que eu havia me tornado OM

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Vamos a outro poema:

A palavra fisga o olhar, peixe maiúsculo na lagoa da face Nenhuma sólida certeza escorre Apenas deixa-se passar o etéreo E grava-se grave estilhaço do desassossego cego em nossa mente. O relâmpago da idéia absorverá o impossível nomeado A armadilha exposta há de gerar certa dívida com o nada Polimento de arestas Religião sem festas Dança escura que semeia credos populares Onda viciada a palavra emerge submissa do oceano branco do papel Fuga de rancores, floração do inusitado, mágica fixa Prepare um rebuliço único e unja esses carnavais Tenho os dedos ocupados em posição de assalto Construo procissões para romper os séculos Manejo uma máquina, rememoro possessões antigas Amparado pelo lado oculto da ta presença te busco impaciente ciência de tentar adentrar o castelo oblíquo do outro e uma vez lá tomar o cálice vítreo e transparente do teu entendimento e derramar um bálsamo malsã que te envenene de sutis cordialidades meu heroísmo é cínico como um grave rancor adormecido teu silêncio enoja-me sei que tua boca mastigará as preces o condenado mais jamais vai furtar o novo do teu inclemente senhor agora um karma líquido se oferece a teu negar os sóis, os hinos, as bandeiras, as políticas do inevitável irão corromper esses ruídos até o findar do rosnar da presa e o delicado conjunto que faz da música teu motor não irás tombar ante o final necessário da resposta a pergunta atônita Quem recusa um floreio armado de lápis e papel? Eu não sou um poeta e estou farto do que pareço ser.66

Parece aqui haver uma desconstrução do poder da palavra em exprimir o

real. Ele marca o vir-a-ser também inerente à linguagem, discute paradoxalmente a

palavra: ao mesmo tempo em que a relativiza, a utiliza para tal.

O poema a seguir é chave na compreensão do Zago. Aqui ele traça uma

crítica mordaz à civilização e seus preceitos morais. Foi através dessas palavras que

pude mais claramente perceber como ele era consciente mesmo quando criava de que

estava constituindo-se de forma a não se convencionar, não consentir, transgredir:

66 Revista de Literatura e Arte COYOTE. Carlos Eduardo Zago. N.8. Londrina: Coyote edições, verão de 2003, p. 13.

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Criada para ser infame sua mentira nos coloca a favor da morte e redime nossas falhas com o peso das ausências, métrica inóspita que hospitaliza qualquer surto poético odeio-te de joelhos sobre o milho, civilização. Mutiladora profícua dos anseios que destila sobre a áurea púrpura dos ingênuos seja o meu canto o vômito que brilhará sobre o manto da nossa hipocrisia. Doçuras, enleios, encantos. Sua pérfida baba re- vigora dia-a-dia, século após século a insuportável agonia dos teus fi- lhos. Senhora senil que obriga-nos a calados aceitar a marcha sobre os corpos. Te renego agora e para sempre modelo impiedoso do claustro. A criança treme de fome e eu bêbado de mim recuo ante a caridade. Tornei-me objeto, falsa relíquia que se espatifará em algum entardecer, até lá irei roçar minha modéstia em sua pele como uma vagabunda pronta para o coito e para ser paga mesmo depois de espacanda. Estou trancado em ti triunfo das equações e vou delirar “vigor da agonia” até que mate minha piedade algoz do teu rebanho. Absorto luto pelo absoluto.67

Na obra de artistas que se suicidam não raro encontramos criações que dão

indícios do ato que está por vir. O poema a seguir é, dos que tive contato, o que mais

se aproxima disso. Até hoje não sei a data em que foi escrito, mas desconfio que não

muito antes do suicídio. As imagens que ele suscita soam um tanto quanto indicativas

de uma pessoa que se imagina morrendo, se matando, partindo-se junto com seus

sinais:

A Morte do Signo Foi podada tombou vazia a flor do nada sua elegia, um balbucio vacilante vogais se desfazendo sobre o estandarte escurecido anunciam o fim do arrogante carrossel de consoantes Um sopro a sustenta e faz ainda a flor girar ela retorna espumando pela forma o sopro vai ela recai estagnada nem um temporal de alaridos, ritos ou gemidos talvez um suspiro malogrado de algum poeta entediado e se perguntarem lâmina ou tiro, responde: Um derrame fulminante, novo, imprevisto e fascinante como a queda de um livro do alto de uma estante. E o que importa o final já se vai o pai do mal, Melhor esquecer-se desta peça o que desapareça como o tal, E quem sabe restará no caule verde Como o limo marítimo, um gesto livre de seiva.68

67

Ibid. p.13.

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7. CONCLUSÃO – Suicídio por amor à vida?

Uma discussão muito cara durante a pesquisa foi a da possibilidade ou não

de alguém se matar por amor à vida. É claro que essa questão guarda traços

paradoxais para dizer o mínimo. Mas é com tal idéia que se pretende concluir o texto, já

que sua riqueza pode permitir abarcar o suicídio e o caso Zago numa só linha de

pensamento.

O amor à vida aqui é entendido como o sentimento de viver em abundância,

desfrutando a vida e experimentando com ela. Fazer de seu destino uma espécie de

obra de arte, envolvendo-se numa estetização da existência. Mas se matar porque se

ama a vida? Como seria possível?

Por inconcebível que possa parecer, é possível se matar por amor à vida. Quando a vida é menos do que ela mesma, quando o que exige do homem é que ele seja menos do que ele mesmo, então o suicídio constitui uma libertação, e não ma condenação.69

O paradoxo pode se desfazer aqui: se por um lado “As pessoas se matam

porque a vida não vale a pena ser vivida, eis uma verdade incontestável.”70 Por outro, o

suicida pode achar que a vida não vale mais pena ser vivida, justamente porque esta é

forçosamente menor do que aquela vida que ele deseja e luta para que seja. O que

lembra as palavras derradeiras do “Kirílov” de Dostoiévski: “Mato-me para dar provas de

minha insubordinação e de minha liberdade terrível e nova.”71 Em outras palavras:

[...] se é verdade que o suicídio é um fenômeno tipicamente moderno, nem sempre se trata de um ato de renúncia. Por vezes expressa a mais suprema

68 Ibid. p. 11. 69 KALINA, E. & KOVADLOFF, S. As cerimônias da destruição. Rio de Janeiro: F. Alves, 1983, p. 36 70 CAMUS, A. Op. Cit. p. 22. 71 DOSTOIÉVSKY, Fiódor. Os demônios. Trad. BEZERRA, Paulo. - São Paulo: Ed. 34, 2004, p. 600.

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paixão e por mais paradoxal que possa parecer, refiro-me a uma paixão pela vida, insistentemente negada e empobrecida no universo da modernidade.72

Zago parece ter sido exemplo deste tipo de suicida que se mata pelo seu

amor à vida e em conseqüência do que isso acarretou para ele. Uma exceção entre os

suicidas, uma exceção também entre os que não se matam. Exceção pelo seu excesso

em relação a sua época! E por conta disso, um grande em nosso tempo, diz Nietzsche:

“[...] o combate de um tal grande contra seu tempo é, ao que parece, apenas um combate sem sentido e destrutivo contra si mesmo. Mas, justamente, apenas ao que parece: pois o que ele combate em seu tempo é aquilo que o impede de ser grande, e isto para ele significa apenas: ser livre* e inteiramente ele mesmo.73

Termino com uma pérola de Fernando Pessoa:

Se te queres matar, porque não te queres matar? Ah, aproveita! Que eu, que tanto amo a morte e a vida Se ousasse matar-me, também me mataria... Ah, se ousares, ousa! De que te serve o quando sucessivo das imagens externas A que chamamos mundo? A cinematografia das horas representadas Por actores de convenções e poses determinadas, O circo policromo do nosso dinamismo sem fim? De que te serve o teu mundo interior que desconheces? Talvez, matando-te, o conheças finalmente... Talvez, acabando, comeces... E, de qualquer forma, se te cansa seres, Ah, cansa-te nobremente, E não cantes, como eu, a vida por bebedeira, Não saúdes como eu a morte em literatura! Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente! Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém... Sm ti correrá tudo sem ti. Talvez seja pior para os outros existires que matares-te... Talvez peses mais durando, que deixando de durar... A mágoa dos outros?...Tens remorso adiantado De que te chorem?

72 GIANNATTASIO, G. Anjos caídos da Modernidade: revolta e melancolia in: TODAVIA: revista de pós-graduação em História Social / Departamento de História, Centro de Ciencias Humanas, UEL – Vol. 1, nº 1 (Mar/1999). Londrina: Eduel, p.70. * A liberdade para Nietzsche pode ser vista no Crepúsculo dos Ídolos: “Liberdade significa que os instintos viris, que se alegram com a guerra e a vitória, têm domínio sobre outros instintos, por exemplo, sobre o da ‘felciidade”. NIETZSCHE, F. Obras incompletas. Trad. TORRES FILHO, Rubens Rodrigues Torres. - São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 386. 73 NIETZSCHE, F. Obras incompletas. Trad. TORRES FILHO, Rubens Rodrigues Torres. - São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 291.

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Descansa: pouco te corarão... O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco, Quando não são de coisas nossas, Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte, Porque é a coisa depois da qual nada acontece aos outros... Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda Do mistério e da falta da tua vida falada... Depois o horror do caixão visível e material, E s homens de preto que exercem a profissão de estar ali. Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas, Lamentado entre as últimas notícias dos jornais da noite, Interseccionado a peã de teres morrido com o último crime... E tu era causa ocasional daquela carpidação, Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas... Mesmo que estejas muito mais vivo além... Depois a retirada preta para o jazigo ou a cova, E depois o princípio da morte da tua memória. Há primeiro em todos um alívio Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido... Depois a conversa aligeira-se quotidianamente, E a vida de todos os dias retorna o seu dia... Depois, lentamente esqueceste. Só és lembrando em duas datas, aniversariamente: Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste. Mais nada, mais nada,absolutamente mais nada. Duas vezes ao ano pensam em ti. Duas vezes por ano suspiram por ti os que te amaram, E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti. Encara-te a frio, e encara a frio o que somos... Se queres matar-te, mata-te... Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência!... Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida? Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera As seivas, e circulação do sangue, e o amor? Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida? Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem, Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma? És importante para ti, porque é a ti que te sentes. És tudo para ti, porque para ti és o universo, E o próprio universo e os outros Satélites da tua subjectividade obejctiva. És importante para ti porque só t és importante para ti. E se és assim, ó mito, não serão os outros assim? Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido? Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces, Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial? Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida? Se assim a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente?

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Torna-te parte carnal da terra e das coisas! Dispersa-te, sistema físico-químico De células nocturnamente conscientes Pela nocturna consciência da inconsciência dos corpos, Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências, Pela relva e a erva da proliferação dos seres, Pela névoa atômica das coisas, Pelas paredes turbilhonantes Do vácuo dinâmico do mundo...74

BIBLIOGRAFIA

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_____________________. Anjos caídos da Modernidade: revolta e melancolia in: TODAVIA: revista de pós-graduação em História Social / Departamento de História, Centro de Ciencias Humanas, UEL – Vol. 1, nº 1 (Mar/1999). Londrina: Eduel. p. 67 – 71. GOETHE, J. W. Os sofrimentos do jovem Werther. Trad. NASSETI, Pietro. - São Paulo: Martin Claret, 2003. GUARNACCIA, Matteo. Provos: Amsterdam e o nascimento da contracultura. Trad. MENDES, Leila de Souza. – São Paulo: Conrad, 2001. HARA, Tony. Saber noturno: uma antologia de vidas errantes. Tese de Doutorado: Unicamp – Campinas, 2004 (mimeografado). ___________. Historiador-artista: uma perspectiva vitalista da História. Caderno de Resumos. IX Encontro Regional de História. Ponta Grossa/ Paraná. 2004. (p.35). HESSE, Herman. O lobo da estepe. Trad. BARROSO, Ivo. - 4 ed.- Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1969. HUMPHRY, Derek. Final exit: the practilities of self-deliverance anda assisted suicide for dying. 3rd edition. New York: Dell Publishing, 2002. JENKINS, Keith. A história repensada. Trad. VILELA, Mário. - São Paulo: Contexto, 2001. KALINA, E. & KOVADLOFF, S. As cerimônias da destruição. Rio de Janeiro: F. Alves, 1983. LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. 10ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. LOPES, Fábio Herique. A história em xeque: Michel Foucault e Hayden White. In: RAGO, Margareth; GIMENES, Renato Aloizio de Oliveira (orgs). Narrar o passado, repensar a história. Campinas: Ifch/Unicamp, 2000. p. 287 a 308. __________________. A experiência do suicídio: discursos médicos no Brasil, 1830 – 1900. Tese de doutorado, Unicamp: [s.n]. 2003. MELO NETO, João Cabral de. Museu de tudo e depois. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988. NIETZSCHE, F. Da utilidade e desvantagem da história para a vida. Trad. CASANOVA, Marco Antônio. - Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003. _____________. A Gaia Ciência. SOUZA, Paulo César de. - São Paulo: Cia. das Letras, 2001.

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_____________. O nascimento da tragédia. Trad. GUINSBURG, José. - São Paulo: Cia das Letras, 1992. _____________. Crepúsculo dos ídolos. Trad. MORÃO, Artur. - Lisboa: Edições 70, 1988. _____________. Obras incompletas. Trad. TORRES FILHO, Rubens Rodrigues Torres. - São Paulo: Nova Cultural, 1999. _____________. Assim falava Zaratustra. Trad. MIORANZA, Ciro. – São Paulo: Escala, 200-. _____________. Genealogia da moral: uma polêmica. Trad. SOUZA, Paulo César de. – São Paulo: Cia. das Letras, 1998. ONFRAY, Michel. A escultura de si: a moral estética. Rio de Janeiro: Rocco, 1995. PESSOA, Fernando. Poesia – Álvaro de Campos (completa). Ed. Teresa R. Lopes. São Paulo: Cia. das Letras, 2002. RAGO, Margareth; GIMENES, Renato Aloizio de Oliveira (orgs). Narrar o passado, repensar a história. Campinas: Ifch/Unicamp, 2000. Revista de Literatura e Arte COYOTE. Carlos Eduardo Zago. N.8. Londrina: Coyote edições, verão de 2003. pág. 09-13. ROSSET, Clément. A anti-natureza: elementos para uma filosofia trágica. Trad. PUELL, Getulio. - Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989. ________________. O princípio de crueldade. Trad. BRUM, José Thomaz. 2ª ed. – Rio de Janeiro: Rocco, 2002. SARAMAGO, José. As intermitências da morte. São Paulo: Cia. Da Letras, 2005. STENDHAL. O vermelho e o negro. Trad. MELVILLE, Jean. - São Paulo: Martin Claret, 2004. SLOTERDIJK, Peter. O desprezo das massas: ensaio sobre lutas culturais na sociedade moderna. São Paulo: Estação Liberdade, 2002. Triângulo Fuganti. Direção e Roteiro: Mariana Soares; Edição: Willian Barbini; Finalização: PbW Digital Cinema; DVD (7’ 33’’); color; Londrina: 2005. VOMERO, Maria Fernanda. Suicídio: o que leva uma pessoa a acabar com a própria vida? Como evitar? In: Revista Super Interessante. Edição 184, Janeiro 2003. p.36 a 43.

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ANEXOS

1. Ficha utilizada para pesquisa dos inquéritos

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA / Fórum da Comarca e Londrina – 1ª Vara Criminal

Projeto de Iniciação Científica: “Suicídio e Singularidade Histórica” Departamento de História

Nº Caixa: Nº do Auto: Data de Início: / / Término: / / Nome: Nacion: Natural: Cor: Est. Civil: Idade: Endereço: Lei (código penal): Motivo do Processo: Palavras-Chave do caso: Resumo do Processo (Descrição): Delegado: Pesquisador: Data da pesquisa: / /

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2. Foto de Carlos Zago (por Flávia Arielo)