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ideologia

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  • Revista Urutgua - revista acadmica multidisciplinar www.urutagua.uem.br/009/09costa.htm Quadrimestral N 09 Abr/Mai/Jun/Jul Maring - Paran - Brasil - ISSN 1519.6178

    Centro de Estudos Sobre Intolerncia - Maurcio Tragtenberg Departamento de Cincias Sociais - Universidade Estadual de Maring (DCS/UEM)

    Lukcs e a ideologia como categoria ontolgica da vida social

    Gilmasa Macedo da Costa

    Resumo

    Ideologia um dos temas mais controversos no campo das cincias sociais e o termo tem sido empregado nas mais diversas acepes, mas especialmente como falsa conscincia ou iluso dos sentidos. Este texto contm uma anlise sobre a ideologia na Ontologia produzida por Lukcs em sua maturidade. Expe a concepo de ideologia como complexo da vida social, fundado no trabalho como modelo de toda prxis humana. O texto busca expressar nexos internos decisivos para a caracterizao da ideologia, definindo a natureza de sua essncia na funo que exerce nos conflitos humanos sociais. Essa concepo ontolgica da ideologia apresenta uma abordagem distinta frente sua apreenso como falsa conscincia.

    Palavras-chave: Ideologia, Ontologia, Trabalho.

    Abstract

    Ideology is one of the most controversial themes in the social science and have been used in the most several senses, but especially as false conscience or illusion of senses. This text has an analysis about ideology in the Ontology produced by Lukcs in his maturity. It presents the ideology conception as a complex of social life, founded in the work as a model of all human praxis. The text tries to express internal decisive connections for the ideology characterization, defining the nature of its essence in the function that performs in the social human conflicts. This ontological conception presents a distinct broach face to its apprehension as false conscience.

    Keywords: Ideology, Ontology, Work.

    Doutora e Docente da Universidade Federal de Alagoas.

  • Consideraes Preliminares Ao longo da histria da cincia moderna o problema da ideologia tem sido abordado sob as mais diversas acepes. O conceito de ideologia, de antiga origem, empregado freqentemente desde as expresses mais cotidianas, na prtica poltica e at em abordagens cientficas e filosficas, com diferentes significados. Diante disso, Michel Lwy afirma que ao longo dos ltimos dois sculos ele se tornou objeto de uma acumulao incrvel, at mesmo fabulosa, de ambigidades, paradoxos, arbitrariedades, contra-sensos e equvocos (1978:10). Isto s faz ver que ideologia um tema de difcil equacionamento e tem requerido esforo de reflexo no percurso do conhecimento humano.

    Leandro Konder, por sua vez, realiza uma vasta anlise sobre o problema da ideologia, reunindo a viso de proeminentes pensadores antes e depois de Marx, alm de autores nacionais e internacionais de diversas reas das cincias humano-sociais. Seu texto A Questo da Ideologia deixa claro que uma marca recorrente no pensamento contemporneo a relao entre conhecimento e ideologia, a idia de que o conhecimento, sob a presso deformadora da ideologia, estaria sujeito a distores. Contra essa viso distorcida e ilusria do mundo, os indivduos lutariam em busca de afirmar suas convices, recorrendo a verdades na realizao de escolhas e decises que lhes permitem manter-se vivos e atuantes. O autor sugere ainda que a questo da ideologia decisiva para os problemas humanos, mas sua resoluo terica permanece enigmtica. Trata-se de um problema cuja soluo compete prxis, dependendo de cada poca, do prprio contexto especfico. Mesmo assim ele pondera:

    Embora, em ltima anlise, a soluo de problemas tericos cruciais dependa da ao prtica, convm fazer a ressalva de que a ao prtica capaz de resolver esses problemas precisa, ela mesma, da teoria. Quer dizer: precisa de uma teoria melhor, mais abrangente e mais rigorosa do que aquela que tem tido. Essa concluso no implica menosprezo algum pelo trabalho dos tericos que se empenharam em decifrar enigmas dos perodos anteriores ao nosso. Ao contrrio, o avano no trabalho terico a ser empreendido agora pressupe o exame rigoroso e por isso mesmo respeitoso do que j foi feito no plano da teoria (Konder, 2002, p.265).

    Ao analisar pensadores contemporneos, Konder dedicou parte do referido texto ao problema da ideologia no Lukcs de Histria e Conscincia de Classe, obra de 1922, bem como em algumas produes subseqentes, enfatizando a influncia do seu pensamento sobre os mais diversos autores que o sucederam. Com nosso texto queremos apresentar reflexes sobre a concepo de ideologia que Lukcs formula na sua Ontologia, produzida 50 anos depois de Histria e Conscincia de Classe, buscando apreender, pelo interior do prprio texto, informaes precisas sobre essa categoria do ser social no pensamento da maturidade deste pensador hngaro. Do nosso ponto de vista, a produo de uma ontologia materialista por parte de Lukcs aprofunda e acresce novos elementos ao problema da ideologia que vo alm da abordagem do prprio autor em obras precedentes, conforme argumentamos na seqncia. A concepo de ideologia elaborada por Georg Lukcs em Para a Ontologia do Ser Social1 subverte, a nosso ver, o conceito de ideologia habitualmente presente em outras obras de tradio marxista, em dois aspectos essenciais. Em primeiro lugar, por 1 O ttulo dessa obra em alemo Zur Ontologie des gesellschaftilichen Sein. Como no foi inteiramente publicada em portugus, estamos utilizando a verso italiana da parte II de Per lontologia dellessere sociale, tr. de Alberto Scarponi, Roma: Riuniti, 1976-1981. A partir de agora nossa exposio versar basicamente sobre esta qual corresponde a numerao indicada. O grande nmero de citaes subseqentes do autor necessrio devido anlise rigorosa e imanente requerida pelo tema.

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  • identificar no trabalho a base ontolgica da ideologia, demonstrando-lhe um sentido mais amplo que o conceito a ela atribudo. Em segundo lugar, por fazer a distino entre ideologia e falsa conscincia, definindo-a como funo na reproduo social, enquanto ato humano efetivamente existente e operante sobre os conflitos do cotidiano, que pode se expressar na forma de idia ou mesmo de atividade prtica. A reflexo lukacsiana nesta obra inteiramente permeada pela noo da totalidade social como complexo de complexos e do trabalho como fundamento de toda atividade humano-social.

    Convm salientar que, em exposio realizada durante o percurso de realizao da sua Ontologia, Lukcs havia afirmado que o homem um ser que responde2, um ser ativo, capaz de agir sobre a natureza para satisfazer suas necessidades e tambm de agir sobre os outros homens no sentido de conduzi-los a atingir determinada finalidade. Essa afirmao ir persistir nos escritos subseqentes no sentido de que a atividade humana se desenvolve mediada por inmeras posies teleolgicas que implicam a relao do homem com a natureza e do homem com os outros homens. Uma atividade que tem o carter de prxis e, nela, sujeito e objeto so categorias distintas, efetivamente existentes e efetivamente operantes, que interagem no processo de objetivao de um novo ser, o ser social.

    Assim, a vida social no se constitui para o filsofo hngaro numa simples continuidade da vida natural, mas tem por base as posies teleolgicas dos homens, todos os momentos da vida scio-humana, quando no tm um carter biolgico (respirar) so resultados causais de posies teleolgicas e no simples elos de cadeias causais3. As posies teleolgicas de um modo geral expressam o modo particular da reproduo do ser social em relao aos complexos da natureza.

    O trabalho, enquanto posio teleolgica primria, aquela que articula a troca orgnica entre sociedade e natureza, o momento predominante no salto ontolgico entre o mundo natural e a constituio da vida especificamente humana. Pelo trabalho o homem cria um novo objeto e, ao mesmo tempo, se reconhece como sujeito frente ao objeto por ele criado, dando incio ao prprio processo de exteriorizao. Neste sentido, no s cria um novo ser como cria a si mesmo como ente humano genrico. No contnuo movimento de reproduo do ser social verifica-se, concomitantemente, o socializar-se da sociedade, o dirigir-se da humanidade a uma generidade real, no sentido da essncia em si, e o desdobramento da individualidade humana4. Disso resulta um entrelaamento entre os dois complexos elementar-fundamentais do ser social: entre a totalidade real de qualquer sociedade e a totalidade igualmente real dos homens singulares que a formam5. Esse elemento novo contido no ser social possibilita por si a existncia de um gnero humano, pois, conforme Lukcs afirma retomando afirmao de Marx, a generidade cessa de ser muda6, tal como se expressa nos animais, medida que entre cada exemplar e o gnero se verifica uma interao permanente que permanentemente se traduz em conscincia interior7. Ou seja, nesse processo se realiza o metabolismo social mediante o qual se v superada a pura animalidade, visto que o trabalho contm, em germe, os atos de conscincia capazes de elaborar respostas ao

    2 Lukcs, Georg. As Bases Ontolgicas do Pensamento e da Atividade do Homem. Temas de Cincias Humanas n. 4. Tr. C.N. Coutinho, So Paulo: Livraria Editora Cincias Humanas, 1978, p.5. 3 Lukcs, Per lontologia..., op. cit. p..351. 4 Idem, ibidem, p.403. 5 Idem, ibidem, p.471. 6 Idem, ibidem, p.472. 7 Idem, ibidem, p.472.

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  • ambiente natural, assegurando a sobrevivncia da espcie humana como gnero no mais mudo em seu conseqente desenvolvimento individual e social.

    O impulso inerente ao prprio trabalho na superao da imediaticidade torna as relaes entre homem e natureza cada vez mediadas por categorias sociais crescentemente mais complexas. Nisto reside o carter central e decisivo do trabalho como categoria fundante do mundo dos homens. Mas, se Lukcs entende o trabalho em sentido ontolgico como categoria central do ser social, ao mesmo tempo considera que a totalidade deste ser, em ltima instncia, unitrio, se realiza pela reproduo de categorias e de relaes socioontolgicas que, tendo o trabalho por seu fundamento, distinguem-se dele em sua processualidade interna e em suas qualidades essenciais.

    As diferenas entre as posies teleolgicas no significam uma clivagem absoluta entre as posies prprias do trabalho e aquelas que se desenvolvem simultaneamente a ela com funes na reproduo dos indivduos e da sociabilidade. Em princpio, seja no intercmbio com a natureza, seja na influncia sobre as posies teleolgicas de outros homens, a posio somente pode adquirir uma eficcia objetiva quando no seu objeto intencional pe em movimento homens, foras etc., reais8, de modo que a posio teleolgica no pode jamais ter um carter puramente ideal. Porm, nas posies teleolgicas secundrias e aqui convm esclarecer que o fato de serem secundrias significa atos fundados, derivados do trabalho, essenciais para a reproduo social e, portanto, de modo nenhum menos importantes, mas que, em tais posies, o objeto da posio do fim o homem, suas relaes, suas idias, seus sentimentos, sua vontade, suas aptides. Assim, trata-se de um campo qualitativamente mais oscilante, doce, imprevisvel que no trabalho9, significando que na ao dos homens sobre outros homens a resistncia e a imprevisibilidade das reaes do prprio homem ampliam o grau de dificuldade do conhecimento em relao dificuldade do conhecimento da objetividade natural, tpica das posies do trabalho.

    Neste sentido, o fato de que os homens pensam e reagem positiva ou negativamente diante de situaes que lhes so colocadas torna ainda mais complexas as aes do homem sobre o homem, pois as posies que esto destinadas a guiar o comportamento dos homens, freqentemente, tm, a priori, como fim todo um campo de reaes desejadas (ou no desejadas) em relao a fatos, situaes, obrigaes etc. sociais10. De maneira que uma posio teleolgica secundria pe em movimento, em definitivo, no uma cadeia causal, mas uma nova posio teleolgica11. Decorrem da problemas de natureza diversa do intercmbio orgnico com a natureza, em especial quanto s possibilidades de controle sobre o processo desencadeado.

    De modo que o trabalho o solo gentico da atividade humana, entretanto, no processo de reproduo derivado da diviso do trabalho diversificam-se as necessidades do homem, extrapolando aquelas referentes simples reproduo da vida material. Alm de buscar o domnio sobre a natureza, o homem deseja conhecer a si mesmo e para isso produz generalizaes que no se destinam a agir sobre as causalidades naturais dos objetos do trabalho, mas que respondem aos conflitos que o inquietam, tendem a explicar os segredos de sua existncia, de seu destino e de sua origem, buscando conferir sentido s suas necessidades afetivas. Expressam valores que se voltam

    8 Idem, ibidem, p.490. 9 Idem, ibidem, p.491. 10 Idem, ibidem, p.466. 11 Idem, ibidem, p.465.

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  • interioridade do sujeito como individualidade, que a sociedade da qual membro , por vezes, incapaz de responder.

    A resposta a conflitos deste gnero ultrapassa o exerccio das atividades do trabalho, por isso emerge a necessidade de normas generalizadoras do comportamento humano que surgem do cotidiano mais imediato da vida social e assumem processualmente a forma de costumes, tradies, normas sociais, convices religiosas, vises de mundo, expresses artsticas, teorias cientficas etc. O que justifica o seu surgimento o fato de que os homens travam conflitos seja entre indivduos, seja entre indivduos e sociedade, seja entre grupos de indivduos. E esses conflitos precisam ter uma resoluo, sob pena de porem em risco a organizao social existente.

    A natureza desses conflitos pode variar de sociedade para sociedade, mas a resposta elaborada para sua resoluo representa uma alternativa expressa nas generalizaes criadas pela sociedade em que os homens vivem e agem. Como os indivduos so os portadores imediatos dos atos de conscincia, as respostas sociais elaboradas para a resoluo dos conflitos s podem se efetivar mediadas pela conscincia destes mesmos indivduos. So atos deste tipo que se caracterizam como posio teleolgica secundria; nele, o sujeito no tem como fim imediato a objetividade material, mas a prpria subjetividade humana, tendo em vista conduzir outros homens a agirem conforme uma posio desejada.

    Tais posies so extremamente importantes para que a esfera econmica possa se manter e se reproduzir. Isto porque a sociedade se desenvolve a tal ponto que o modo de se manifestar da necessidade cada vez mais se torna caracterizado por induzir, impelir ou coagir os homens a tomarem determinadas decises teleolgicas ou de impedir determinadas tomadas de deciso. Com o desenvolvimento social as posies teleolgicas secundrias ganham corpo e, alm do mais, com a diferenciao social de nvel superior, com o nascimento das classes sociais com interesses antagnicos, esse tipo de posio teleolgica se torna a base espiritual-estruturante do que o marxismo chama de ideologia12. Assim, as sociedades mais complexas acabam por gerar interesses conflitantes enfrentados por aes cuja essncia ontolgica a posio teleolgica secundria.

    O Duplo Carter da Ideologia Definir o carter essencial da ideologia no tarefa to simples como possa parecer, pois quando se trata das ideologias singulares, tem-se como problema de fundo que a gnese destas ideologias pressupe estruturas sociais nas quais operam grupos diversos e interesses contrapostos, que tendem a se impor como interesse geral da sociedade inteira. Em suma: o nascimento e a difuso das ideologias so o conato geral da sociedade de classe13. Neste sentido, a sociedade de classes o pressuposto bsico para que ideologias singulares, a exemplo do direito e da poltica, possam surgir e adquirir certa autonomia no conjunto das relaes sociais.

    Um outro aspecto caracterizador relacionado s ideologias singulares consiste em que os interesses so, decerto, por fora das coisas determinados pela estrutura social, mas tais determinaes podem se tornar o motor da prxis somente quando os homens singulares vivam estes interesses como seus prprios interesses e tendam a afirm-los no quadro das relaes para eles vitais com os outros homens14. Portanto, para que as

    12 Lukcs, As bases ontolgicas..., op. cit, p.9. 13 Lukcs, Per lontologia..., op. cit, p.453. 14 Idem, ibidem, p.453.

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  • determinaes da prxis sejam postas em movimento, os interesses de classe precisam ser incorporados pelos indivduos e integrados s relaes dos homens entre si. Para Lukcs essas questes so decisivas para o carter das ideologias singulares, contudo, so insuficientes para caracterizar a ideologia em sentido mais amplo.

    Lukcs argumenta que, se na histria da humanidade tomamos o perodo da caa e da coleta, no qual ainda no podiam ainda estar presentes todas as determinaes que caracterizam a estratificao em classes sociais, mesmo aquela mais originria, o conceito de ideologia[...] alcana uma certa ampliao e tambm a sua gnese aparece sob uma luz um tanto modificada15. Diz o autor:

    a caa de animais ferozes requer dos homens modos de reao totalmente diversos e comportamentos obrigatoriamente impostos por estes ltimos nascem, ao menos, simultaneamente ao trabalho, ou melhor, no que concerne ao peso social so at precedentes e mais relevantes. Referimo-nos sobretudo coragem, firmeza, se necessrio o esprito de sacrifcio, sem os quais a caa, que era habitual - como est demonstrado - durante o paleoltico, teria sido impossvel. (Idem, ibidem, p.454).

    Assim, formas ideolgicas embrionrias se desenvolvem organicamente do processo de reproduo social possvel na poca: a caa como meio de reproduo individual e coletiva, lanando as bases de modos de conduta que nas fases ulteriores, em sociedades de classe, sucessivamente, adquiriram forma ideolgica (no plano poltico, moral, etc.)16, tornando-se importantes instrumentos do processo de reproduo social. Expresses scio-humanas diferentes do trabalho propriamente dito, ou seja, [...]as posies teleolgicas que visam determinar a conduta dos outros homens, j deviam estar universalmente difundidas; de outro modo no seria possvel nem a coleta nem a caa17. Essas posies no expressavam antagonismos de classe, sua funo devia ser assegurar uma maior unidade no agir dos grupos humanos. Segundo Lukcs, devido existncia da cooperao entre os homens para garantir a reproduo do grupo scio-humano deviam existir aspectos da seguinte ideologia: uma certa generalizao social das normas do procedimento humano, mesmo se elas no se impunham ainda em termos antagnicos no mbito da luta entre interesses de grupos18.

    Logo, as atividades imediatas de subsistncia tornavam necessria a existncia de uma normatividade grupal, de um conjunto de regras de conduta a serem reconhecidas e respeitadas por todos os membros do grupo. A se encontram possivelmente os germes dos conflitos entre a comunidade e os indivduos, porque seria um preconceito metafsico supor que a conscincia social fosse totalmente idntica em cada homem19. Esses argumentos do autor so significativos para a caracterizao ampla da ideologia, pois consiste em que toda ideologia tem seu ser-precisamente-assim social: ela nasce direta e necessariamente do hic et nunc social dos homens que agem socialmente na sociedade20. O cotidiano mais imediato o solo no qual a ideologia se torna um componente necessrio vida em sociedade. Surge como conseqncia da prpria atividade social dos homens que medeiam esta mesma atividade por atos de conscincia. Deste modo, o sentido concreto da ideologia , portanto, mais amplo do que o seu conceito rigoroso. Isso quer dizer simplesmente - de um modo aparentemente

    15 Idem, ibidem, p.453. 16 Idem, ibidem, p.455. 17 Idem, ibidem, p.455. 18 Idem, ibidem, p.455. 19 Idem, ibidem, p.455. 20 Idem, ibidem, p.446.

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  • tautolgico - que no ser social no pode se dar nada cujo nascimento no seja determinado de maneira decisiva tambm pelo prprio nascimento21.

    Esta determinao se refere a toda espcie de ser e a todo objeto que entra na esfera social. Determinaes deste gnero nunca podem desaparecer inteiramente da natureza real dos objetos. Assim como para outras categorias no interior do trabalho, uma lei do desenvolvimento que no curso dos acontecimentos elas se tornem crescentemente mais sociais. Assim, desde a nutrio e a sexualidade at a mais abstrata expresso do pensamento, no h qualquer componente do ser social cujo concreto ser-precisamente-assim no seja determinado pelas circunstncias sociais de sua gnese22. Mediante essas consideraes, Lukcs afirma: Isto e nada mais nos diz a caracterizao mais geral de ideologia23. Nesta determinao geral do ser se encontra a mxima concretude possvel para o homem enquanto ser social, isto , a sociabilidade universal do prprio homem e de todas as suas expresses vitais24. A determinao gentica da ideologia torna-a um componente vital da cotidianidade, pois constantemente a cotidianidade coloca conflitos a resolver, enfrentados mediante formas ideolgicas. Neste sentido, as ideologias so os instrumentos pelos quais so conscientizados e enfrentados tambm os problemas que preenchem tal cotidianidade25. Assim, A ideologia acima de tudo aquela forma de elaborao ideal da realidade que serve para tornar a prtica social dos homens consciente e operativa26. De fato, a ideologia, em sentido amplo, se manifesta permanentemente na vida social, no sendo uma expresso circunscrita aos momentos de crise, nem aos conflitos de interesse entre os homens. Deste modo, a ideologia no um atributo exclusivo de um determinado pensamento, mas uma possibilidade criada pelas circunstncias histrico-sociais numa determinada sociedade, a partir das necessidades da vida cotidiana.

    O carter restrito da ideologia, por sua vez, est ligado sua natureza como instrumento de luta social. Logo que o conflito social se apresenta como problemtica vital na realidade dos homens, as sociedades produzem concretamente meios para a sua resoluo na forma de ideologia. Lukcs diz: De fato, a ideologia tambm, indissociavelmente do primeiro aspecto, um instrumento da luta social que caracteriza qualquer sociedade, pelo menos aquelas da pr-histria da humanidade27. Em momentos de crise econmico-social de determinadas formaes sociais, surgem formas ideolgicas de pensamento, ou de prticas sociais, como respostas necessrias mediao dos conflitos de interesse entre os homens, que tomam dimenso significativa como conflitos de classe. O sentido pejorativo que a ideologia adquiriu no curso dos acontecimentos sociais tem origem no fato de suas manifestaes, como instrumento de luta social, serem inconciliveis:

    A inconciliabilidade fatual das ideologias no conflito entre si toma no curso da histria as formas mais variadas; pode apresentar-se como interpretaes de tradies, de convices religiosas, de teorias e mtodos cientficos, etc., mas se trata sempre, antes de tudo, de instrumentos de luta; a questo a decidir sempre um que fazer? social e a sua contraposio fatual determinada pelo contedo social deste que fazer? (Idem, ibidem, p.447).

    21 Idem, ibidem, p.449-50. 22 Idem, ibidem, p.450. 23 Idem, ibidem, p.450. 24 Idem, ibidem, p.450. 25 Idem, ibidem, p.446. 26 Idem, ibidem, p.446. 27 Idem, ibidem, p.446.

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  • Em suma, logo que o conflito social se apresenta como problemtica vital na realidade dos homens, as sociedades produzem instrumentos para sua resoluo na forma de ideologia. Lukcs diz: Segundo Marx, como vimos, esta consiste no fato de que os homens trazem tona atos de conscincia e combatem os seus conflitos sociais, cuja base ltima preciso procurar no desenvolvimento econmico28. Neste sentido, o surgimento da ideologia leva a supor conflitos sociais a serem resolvidos no mbito primrio da economia. Entretanto, toda sociedade produz formas ideolgicas especficas que devero incidir sobre os indivduos mediando interesses conflitantes. Segundo o filsofo hngaro,

    os portadores ontolgicos imediatos de qualquer atividade social, e por isso tambm dos conflitos, so os homens singulares. Na imediaticidade, portanto, todos os conflitos apresentam-se como contrastes de interesse entre indivduos singulares, ou entre individualidades e grupos, ou ainda entre dois grupos (Idem, ibidem, p.452).

    Assim sendo, estas so as condies que apresentam o modelo generalssimo da gnese da ideologia 29. O conflito bsico ao qual nos referimos se institui porque se formam grupos de indivduos cujos interesses vitais apresentam convergncias ou divergncias entre si e entram em conflitos com interesses de outros grupos. Em ltima anlise, tais divergncias tm razes nas relaes estabelecidas no campo da produo. Entretanto,

    estes conflitos podem ser dirimidos com eficcia na sociedade s quando os membros de um grupo logram persuadir a si mesmos que os seus interesses vitais coincidem com os interesses importantes da sociedade inteira, isto , que todos aqueles que defendem estes interesses fazem ao mesmo tempo algo de til para a sociedade inteira. (Idem, ibidem, p.452).

    Desta forma, retomando as afirmaes iniciais, vale reafirmar que, para Lukcs, os interesses que conduzem a conflitos entre os homens so socialmente determinados. Ao mesmo tempo, tais determinaes podem se tornar o motor da prxis somente quando os homens singulares vivam estes interesses como seus prprios interesses, e tendam a afirm-los no quadro das relaes para eles vitais com os outros homens30. Por sua vez, referindo-se totalidade social, Lukcs argumenta: Nesta aparece aquilo que se deve entender por ideologia no sentido mais lato do termo, isto quer dizer que a vida de todos os homens e, portanto, todas as suas atividades, sejam elas prticas, intelectuais, artsticas, etc., so determinadas por aquele ser social no qual o indivduo em questo vive e opera31.Tal afirmao encontra correspondncia na afirmao de Marx: No a conscincia dos homens que determina o seu ser, mas ao contrrio, o seu ser social que determina a sua conscincia32. Conscincia humana e ser social encontram-se em determinao reflexiva como prxis humano-genrica. Nas formulaes de Lukcs com relao ao surgimento das ideologias em sociedades singulares, fica esclarecido que esta totalidade, o seu grau de desenvolvimento, os problemas evolutivos que dela derivam para o homem - j definido por ns anteriormente como um ser que responde - que colocam em movimento aquelas reaes que eventualmente se pem como ideologia33.

    Em suma, os portadores imediatos dos atos conscientes e, portanto, dos conflitos socialmente postos, so os indivduos singulares. Deste modo as ideologias, enquanto 28 Idem, ibidem, p.447. 29 Idem, ibidem, p.452. 30 Idem, ibidem, 452-3. 31 Idem, ibidem, p.453. 32 Idem, ibidem, p.452. 33 Idem, ibidem, p.452.

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  • posies teleolgicas secundrias, agem sobre os indivduos e grupos humanos visando a conservao ou a mudana do status quo, mas as determinaes para o surgimento dos complexos ideolgicos encontram-se na sociedade na qual os indivduos vivem e agem.

    A questo central no surgimento do fenmeno ideolgico, em seu carter restrito, que sua gnese pressupe a existncia de sociedades nas quais grupos com interesses contrapostos tendem a impor seus interesses como correspondentes aos interesses de toda a sociedade. A sociedade de classe constitui a base e propicia os meios atravs dos quais a ideologia surge como importante instrumento de combate aos conflitos de interesses entre os homens. Portanto, a base sobre a qual se institui a ideologia no sentido restrito.

    Ideologia como Funo Social Na exposio feita at agora, tornou-se claro que as trs dimenses que se seguem: a ideologia tem suas determinaes concretas no cotidiano mais imediato, serve para tornar a prtica humana consciente e operativa e se dirige para dominar conflitos - articulam-se noo ontolgico-prtica de ideologia como funo social. Assim, percorrendo o caminho desta concepo, Lukcs afirma que resulta num equvoco interpretar o conceito de ideologia como elucubrao arbitrria de pessoas singulares34, isto porque,

    enquanto um pensamento permanece simplesmente o produto ou a expresso ideal de um indivduo, no importa o valor ou desvalor que possa conter, no pode ser considerado uma ideologia. Nem mesmo uma difuso social mais ampla atinge o ponto de transformar um complexo de pensamento diretamente em ideologia (Idem, ibidem, p.445).

    Do mesmo modo, uma opinio correta ou falsa, uma teoria cientfica ou uma hiptese, por si mesmas, no podem ser consideradas ideologias, podem somente tornar-se ideologias em determinadas circunstncias, no curso de acontecimentos, quase sempre permeados por muitas mediaes. Ilustrando suas afirmaes, Lukcs exemplifica:

    A astronomia heliocntrica ou a doutrina evolucionista no campo da vida orgnica so teorias cientficas, deixando de lado sua correo ou falsidade, e nem isso enquanto tais, nem o repdio ou o acolhimento delas constituem em si ideologia. Somente quando Galileu ou Darwin em seus confrontos, as tomadas de posio se tornaram instrumento de luta nos conflitos sociais, elas, em tal contexto - operaram como ideologias (Idem, ibidem, p.449).

    Neste sentido, a prxis humana constitui a base na qual algo produzido pelos homens se torna ideologia. A histria contm exemplos de pensamentos cientficos que, em circunstncias determinadas, operaram como ideologia, entretanto, para Lukcs, isso no decorre da correo ou da falsidade das idias neles contidas. Em sua interlocuo com Engels, Lukcs argumenta em favor de uma concepo ontolgico-prtica da ideologia:

    Que a imensa maioria das ideologias se funda sobre premissas que no resistem a uma crtica gnoseolgica rigorosa, especialmente se dirigida por um longo perodo de tempo, certamente verdadeiro. Mas isto significa que estamos falando da crtica da falsa conscincia.Todavia, em primeiro lugar, so muitas as realizaes da falsa conscincia que nunca se tornaram ideologia; em segundo lugar, aquilo que se torna ideologia no de modo nenhum necessariamente idntico falsa conscincia. Aquilo que realmente ideologia, por isso, somente podemos identificar pela sua ao social, por suas funes na sociedade (Idem, ibidem, p. 461).

    34 Idem, ibidem, p.445.

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  • A concepo de ideologia para Lukcs tambm repele o apelo sua definio com base em critrios morais, na imediaticidade no entram em questo nem os aspectos morais (convico sincera ou demagogia cnica, etc.) como critrios para estabelecer o que ideologia.35. Independentemente da qualidade moral de um pensamento, ele pode adquirir uma fora de embate prtico-imediata to grande que pode parecer o meio mais eficaz para dirimir uma crise36. De maneira que, um critrio moral, tomado isoladamente, no basta para qualificar um pensamento como ideologia. Lukcs ressalta ainda que nem mesmo uma difuso social mais ampla atinge o ponto de transformar um complexo de pensamento diretamente em ideologia37. Para que isso ocorra necessria uma funo social bem determinada.

    Assim, o decisivo, para Lukcs, consiste em que os pensamentos somente depois de terem se tornado veculos tericos ou prticos para combater conflitos sociais, quaisquer que sejam estes, grandes ou pequenos, episdicos ou decisivos para o destino da sociedade, que so ideologia38. Assim, a concepo de ideologia em Lukcs est intimamente articulada funo social que um pensamento exerce no mbito dos conflitos sociais; alm disso, pode expressar-se como veculo terico ou como prtica social. A identificao de um pensamento como ideologia se apia no critrio ontolgico-prtico, pelo exame da funo que este pensamento, ou prtica social, desempenha na vida cotidiana efetiva. Seu carter est vinculado origem no hic et nunc do ser-precisamente-assim histrico-social e funo que exerce junto s reaes humanas ao ambiente econmico-social.

    Pelo exposto percebe-se que, para Lukcs, a ideologia nem um fenmeno exclusivamente ligado ao capitalismo, nem exclusivamente uma resposta social aos conflitos de classe. Seu carter como complexo social mais amplo que o carter restrito mediao de tais conflitos. Contudo, possvel antecipar que o capitalismo, enquanto modo de produo permeado pela contradio entre classes sociais antagnicas, produz fenmenos ideolgicos singulares que se caracterizam como ideologias em sentido restrito. Os conflitos somente tomam propores realmente significativas como conflitos de classe e com isso as ideologias particulares ou restritas se geram e tm seu campo de operaes. Quando o conflito social apresenta-se como problema vital para a sociedade, no qual as classes travam lutas sociais sob os mais diversos aspectos, penetrando at o ntimo das individualidades, a ideologia, ento, se expressa como instrumento ideal de luta que serve aos embates entre grupos humanos com interesses antagnicos.

    Devemos considerar que, a rigor, as individualidades s emergem efetivamente no interior de relaes sociais puras e, para Lukcs, a primeira relao puramente social o capitalismo. Lukcs afirma: a prpria individualidade, assim como o valor de sua plena explicitao, um produto do desenvolvimento social e por isso, em toda a sua manifestao concreta - tanto mais quanto mais elevada, quanto mais singular ela -, pressupe ontologicamente um determinado nvel de produo39.Tal nvel de produo se d efetivamente na sociedade burguesa, na qual a conscincia dessa polarizao se dissemina socialmente, aparecendo como momento importante do processo reprodutivo.

    35 Idem, ibidem, p.445. 36 Idem, ibidem, p.449. 37 Idem, ibidem, p.445. 38 Idem, ibidem, p.448-9. 39 Idem, ibidem, p.173.

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  • A nova situao social em termos objetivos e a conscincia dessa dualidade entre gnero e indivduo so um efeito necessrio do nascimento do capitalismo e do processo que leva este ltimo ao poder e, por isso, traduzida em realidade somente pela grande revoluo francesa, 40 que rompeu a sociedade civil nas suas simples partes constitutivas, de um lado os indivduos, de outro, os elementos materiais e espirituais que constituem o contedo da vida, a situao civil destes indivduos41. Essa revoluo pe em movimento as foras sociais necessrias ao desenvolvimento da economia na nova sociabilidade; alm do mais proclama a unidade do homem como homo economicus j existente na teoria e na prtica42. A partir de ento a ideologia no exerccio dessa funo restrita pode agir no sentido de manter ou de modificar aspectos da realidade social, retroagindo sobre os processos socioeconmicos em curso.

    Nosso autor reconhece o direito e a poltica como complexos ideolgicos especficos decorrentes das necessidades do desenvolvimento econmico-social. Sobre este aspecto comenta:

    Basta recordar como o costume, o uso, a tradio, a educao, etc., que se fundam totalmente sobre posies teleolgicas deste gnero, com o desenvolvimento das foras produtivas vo continuamente aumentando seu raio de ao e a sua importncia, terminando por se formar esferas ideolgicas especficas (sobretudo o direito) para satisfazer estas necessidades da totalidade social (Idem, ibidem, p.464).

    Estas esferas se explicitam a partir da diviso do trabalho, adquirindo autonomia como atividade peculiar distinta da produo material, mas cumprindo uma exigncia do desenvolvimento dessa diviso no sentido de assegurar a reproduo das relaes sociais. O desenvolvimento social produziu aparatos institucionais particulares, relativamente autnomos, mediante os quais tais formas especficas de ideologia operacionalizam suas generalizaes e cumprem suas funes peculiares no interior da sociedade. Pensemos em todo o aparato estatal criado a partir do capitalismo, com suas divises em poderes Executivo, Legislativo e Judicirio. Aparato sem o qual, a partir daquele determinado momento do desenvolvimento das foras produtivas, a reproduo da base econmica se tornaria impossvel. No de estranhar, por exemplo, o peso dos direitos do trabalho e dos direitos sociais na mediao das relaes entre capital e trabalho, possibilitando a continuidade do processo de desenvolvimento econmico-social. O espao de ao desses complexos ideolgicos o cotidiano, campo do direito, ou o contexto social global, espao da poltica. Naturalmente o carter complexo do ser social implica a interpenetrao desses complexos e desses espaos, mas no a homogeneizao de suas especificidades ontolgicas.

    Outras formas de ideologia, segundo o pensamento de Lukcs, compem o universo das ideologias singulares. Formas puras como a filosofia e a arte apresentam-se distanciadas da prtica social mais cotidiana no s em face da autonomizao relativa que adquirem na diviso social do trabalho, mas especialmente porque as questes sobre as quais as ideologias puras se expressam vo alm do cotidiano imediato, seja no plano mais particular ou mais global de uma determinada sociedade. Isto no significa que, de alguma forma, no exeram uma interferncia no desenvolvimento social; basta pensar a influncia que o pensamento de Marx tem exercido sobre a classe trabalhadora. Tais formas mais elevadas de ideologia, na viso do autor, refletem o processo contnuo de sociabilizao do homem, no qual a individualidade adquire crescentemente maior

    40 Idem, ibidem, p.257. 41 Marx (apud Lukcs, ibidem, p. 494). 42 Marx (apud Lukcs, ibidem, p. 494).

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  • autenticidade, articulada expanso do gnero humano-social. De modo que emergem do desenvolvimento social e desempenham neste um papel fundamental na resoluo dos conflitos referentes autntica generidade humana.

    Consideraes Finais Fica evidenciado que, mais que definir o carter essencial da ideologia e de suas funes, entender o desenvolvimento ideolgico impe o necessrio reconhecimento de sua contraditria desigualdade no movimento evolutivo do ser social. Por um lado ocorre o crescente desenvolvimento do trabalho e o permanente aperfeioar-se da cincia que, dele derivada, move-se paralelamente no sentido da prpria autonomia, multiplicando e aprofundando o conhecimento dos homens quanto prxis humano-social. Por outro lado indiscutvel que o mesmo desenvolvimento econmico impulsiona tanto no sentido de ampliar as reificaes sociais, como quanto para firm-las na vida ideal e emotiva dos homens. Neste sentido, freqentemente, na vida social as ideologias podem tornar-se veculos da alienao e como tais contribuir para reforar a contradio entre o desenvolvimento das foras produtivas e o desenvolvimento da personalidade humana. Com isso podem se constituir mediaes negativas na elevao do homem a generidade para-si43.

    Enfim, Lukcs concebe como ideologia aquele ato consciente que exerce funo nos conflitos humanos. Na sua acepo mais ampla, a ideologia tem origem no cotidiano mais imediato da vida social, servindo conscientizao e operacionalizao da prtica humana. Em termos gerais, orientao ideal que se faz presente em todo ato humano. Todo indivduo age fazendo opes entre seu interesse particular e aqueles que o fazem partcipe do gnero humano. A continuidade do ser social seria impossibilitada se o conjunto dos indivduos no evitasse aes que se constitussem em obstculos ao processo de reproduo social, mediante preceitos que brotam espontaneamente na vida social. A ideologia permite que os homens tomem conscincia desse conflito e encontrem a resposta mais adequada para solucion-lo.

    Quando os interesses de um grupo precisam prevalecer sobre os de todos os outros grupos como sendo o interesse da sociedade como um todo, a ideologia ocupa uma funo vital na reproduo do ser social. Torna-se mediao nos conflitos de interesse gerados no campo econmico, que so enfrentados mediante a criao de complexos sociais ideolgicos, com a funo de regular as relaes entre os homens, em resposta a necessidades da totalidade social. A ideologia com essa funo restrita, tanto em forma ideal quanto em forma prtica, pode agir no sentido de manter ou de modificar aspectos da realidade social, retroagindo sobre os processos socioeconmicos em curso.

    A concepo ontolgica de ideologia em Lukcs expressa a existncia de complexos ideolgicos na vida em sociedade, compondo o conjunto das atividades humanas. Revela ainda que a funo que exerce nos conflitos sociais define o carter da ideologia e sua particularidade em relao ao trabalho ou outras atividades humanas. Torna claro tambm que um pensamento que se torna ideologia pode ser falsa conscincia e no resistir a uma crtica rigorosa, mas no por ser falsa conscincia que um pensamento ou atividade humana podem ser compreendidos como ideologia. Neste sentido, a teoria da ideologia contida em Para a Ontologia do Ser Social traz novos elementos ao problema da ideologia enquanto complexo da totalidade, que se distancia da viso gnosiolgica predominante na apreenso dessa importante categoria da vida social. 43 A ideologia como veculo da alienao foge aos objetivos do texto aqui apresentado. Entretanto, convm salientar que Lukcs se debrua sobre a relao entre ideologia, reificao e alienao sob o mesmo ponto de vista, sem que cada uma dessas categorias perca o respectivo estatuto ontolgico.

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    Referncias bibliogrficas

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