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Pontos de Interrogação n. 2 Revista do Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural Universidade do Estado da Bahia, Campus II — Alagoinhas
A invasão linguístico-literária das ciências humanas - Vol. 1, n. 2, jul./dez. 2011 | 74
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DELEUZE, MARX E MARIGHELLA:
PENSAMENTO EM MOVIMENTO E SOCIALISMO LIBERTÁRIO
Prof. Dr. Osmar Moreira (Pós-Crítica/UNEB)
RESUMO: Trata-se de um debate sobre a importância linguístico-literária na teoria e prática
filosófica, política e guerrilheira, bem como de uma descrição das novas exigências políticas e
culturais para o campo literário.
PALAVRAS-CHAVE: signo, filosofia, política, guerrilha, literatura-máquina-de-guerra.
RÉSUMÉ : Il s’agit d’une discussion sur l’importance linguistique et littéraire dans la théorie et
la pratique philosophique, politique et la guérilla, ainsi que la description des nouvelles
exigences culturelles et politiques pour le domaine littéraire.
MOTS – CLEF: signe, philosophie, politique, guérilla, littérature-machine-de-guerre
INTRODUÇÃO
Encontramos na obra de Gilles Deleuze (1925-1995), Karl Marx (1818-1883) e
Carlos Marighella (1911-1969) uma imagem bem situada, problematizada e
multiplicada das contribuições linguístico-literárias tanto para a filosofia quanto para a
ciência política, em sua vocação guerrilheira. Encontraríamos essa imagem e a vocação
guerrilheira também em obras de linguistas e escritores, mas apenas como flutuações de
signos e sem efetuações históricas e sociais relevantes, do mesmo modo que não
encontraríamos nem na filosofia nem na ciência política, em sua vocação guerrilheira e
revolucionária, um modo de tematizar a confusão entre formas de representação da
realidade com a realidade, ela mesma enquanto linguagem e forma de representação,
sem pesquisa e/ou sem um crivo linguístico-literário.
É com a filosofia deleuziana (e nessa linha Jacques Derrida, Michel Foucault)
que aprendemos a interrogar os signos e a desmontar a lógica de seu sentido; com a
releitura de Marx, pós-Althusser, a conceber novos modos de produção (JAMESON,
1992: 15-103) e a encarar a confusão fetichista - formas de representação da realidade
com a realidade, ela mesma enquanto linguagem e forma de representação, como
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possibilidade de engendramento de novas sintaxes, sobretudo as que dizem das
expressões e práticas políticas minoritárias; e, com a prática guerrilheira de Marighella,
que não há socialismo libertário possível apenas destruindo as instituições burguesas,
mas fazendo de todos os agenciamentos coletivos possíveis um modo de guerrilha
contra os aparatos de poder reativos e que conspiram contra a vida, sua estética e
plasticidade.
Assim, com esses autores e suas obras, a virada cognitivista na linguística (seres
humanos limitados por sua capacidade de criar e conhecer além e aquém de outros seres
matematicamente perfeitos em sua linguagem combinatória e computacional) e o grau
zero da literatura (o nome “campo de concentração”, por exemplo, tem 19 letras que
podem se tornar 19 X 18 X 17 X 16 X 15 X 14 X 13 X 12 X 11 X 10 X 9 X 8 X 7 X 6
X 5 X 4 X 3 X 2 X 1 palavras; destas , “n” versos” que, na página em branco e/ou em
ambiente verbivocovisual, podem se tornar “n” poemas, livros, bibliotecas) ganham um
rosto humano, uma posicionalidade (DERRIDA, 2001), um corpo político, um sopro de
existência, uma fulguração coletiva em prol de uma sociedade humana libertária.
Se compusermos, ainda, outros agenciamentos dando conta desse conjunto de
criadores no campo da linguística e da literatura que produziram em contexto de
barbárie sem se darem conta da lógica fetichista burguesa e sua noção de realidade ou
que, como Marx, Deleuze e Marighella, criaram os antídotos contra tais contextos e se
abriram a um amplo e revolucionário trabalho multicultural e político, teremos não só
uma rede de combatentes contra a sociedade de controle em suas múltiplas faces, mas a
emergência de outras estratégias e táticas envolvendo esses sujeitos anônimos em suas
disputas linguísticas, suas guerras de relatos, suas batalhas não apenas por políticas
públicas como formas de reparação econômica e cultural, mas como devir comunal e
cooperativo (CASTORIADIS, 1983: 157 – 182).
I
Quem perambula pelos livros de Deleuze identifica, ao menos, três imagens de
pensamento elevadas a sua enésima potência: a primeira é como criar, escapar, produzir
linhas de fuga em contexto de barbárie e de dominação; a segunda é como mobilizar
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coletividades nômades capazes de se apropriarem das forças reativas que formam e
conformam esses sistemas de dominação e barbárie; a terceira, como fazer uso da
literatura – ou da obra de arte, para engendrar na filosofia uma máquina de produção de
conceitos.
De Empirismo e Subjetividade em David Hume (1953) à Lógica do Sentido
(1969), nota-se uma reconstrução da noção de empirismo contra o bom senso
racionalista e instrumental - e suas vinculações ao stalinismo e ao nazifascismo - assim
como uma espécie de experimentação e oficina do conceito contra a naturalização do
sentido.
A noção de corpo sem órgãos, retirada da obra de Artaud, associada à ética de
Espinosa, e mobilizada a quatro mãos com Félix Guattari a partir dos anos setenta, além
de base ao plano de imanência – e singularidade do sistema popfilosófico – vai garantir
aos esquizos, e seus coletivos, uma espécie de caixa de ferramentas contra a miraculosa
esquizofrenia em tempos de capitalismo tardio (MANDEL, 1982).
A noção de pensamento em movimento, então, implica “o que significa pensar”
e onde instalar uma máquina de guerra, nômade, móvel capaz de combater máquinas
abstratas e concretas de captura dos desejos voltados à construção e afirmação de uma
estética da existência; e socialismo libertário, a conjugação de uma teoria-práxis e/ou
práxis-teórica que ao mesmo tempo esvazie a noção de indivíduo soberano e promova
agenciamentos coletivos como condição de emergência daquela miríade de associações
minoritárias, em suas linhas de fuga. De um lado cultura e subjetividade, em seu viés
genealógico e afirmativo; de outro, cultura e política, como possibilidade de um devir
revolucionário nas pessoas e nas instituições.
Em Nietzsche e a filosofia, nos tópicos sobre a cultura encarada dos pontos de
vistas pré-histórico, pós-histórico e histórico, temos, da primeira perspectiva, uma
visibilidade do homem ativo com a capacidade de agir com suas forças reativas sem
ressentimento e má consciência; na segunda, a ausência da má consciência e do
ressentimento no processo da cultura e da justiça e, do ponto de vista histórico, a cultura
capturada por forças reativas e desnaturadas, assim como desnaturando também o seu
produto: o homem.
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Para Deleuze, acionando sua máquina de guerra no interior do pensamento
nietzscheano, na pré-história teríamos uma atividade genérica da cultura que, adestrando
o homem, através do hábito e das leis, o formaria para agir as suas forças reativas, razão
pela qual a cultura se exerceria em várias direções: 1. Contra as forças reativas do
inconsciente; 2. Contra as forças digestivas e intestinais ou ainda voltada para o seu
objetivo maior: reforçar a consciência, dotá-la de uma nova faculdade de esquecimento,
a memória, que, para um processo de seleção, em vez de voltar-se para as marcas,
lembranças ou sensibilidade, diria da vontade de poder dispor do futuro, de falar, de
prometer, produzindo, desse modo, um homem ativo, poderoso.
Compreende-se, desse modo, porque tal atividade cultural não recua diante de
qualquer violência, visto que o meio posto em ação por esta atividade pré-histórica ou
genérica implica: a) a equação da castigo – dano causado = dor sofrida; b) a relação da
dívida c) o homem responsável.
A dor, então, torna-se um meio de troca, uma moeda, um equivalente, e a cultura
referida a esse meio chama-se justiça. Nas relações entre os homens, cada homem seria
responsável pela sua dor, conforme o dano causado a outrem. Eis porque, para
Nietzsche, na leitura de Deleuze, é no crédito, e não na troca, que reside o arquétipo da
organização social.
Da perspectiva pós-histórica, a justiça não tem como origem nem a vingança
nem o ressentimento, mas define-se pela inserção de um terceiro termo, o prazer, que,
junto aos termos da equação cruel – dano causado = dor sofrida, não vai se mover pelo
sentimento de culpa ao infligir uma dor ou ao contemplá-la, posto que sua tarefa
fundamental é o adestramento das forças reativas do homem.
A justiça, como atividade genérica, adestraria as forças reativas do homem,
tornando-as aptas para serem agidas. Em oposição à justiça, o ressentimento, depois a
má consciência, seriam responsáveis pelo triunfo das forças reativas que implicariam,
além da injustiça natural, em blocos de resistência ao perecimento, inaptidão para serem
agidas e em ódio a tudo que é ativo. Desse modo, tanto o ressentimento quanto a
vingança, longe de serem a origem da justiça, seria o último domínio a ser conquistado
pelo espírito de justiça.
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Nessa linha de oposição dos elementos de uma atividade genérica da cultura – a
justiça e o castigo, aos elementos reativos da história do homem – o ressentimento e a
má consciência, infere-se que se a justiça não tem o ressentimento como origem e o
castigo não tem como produto a má consciência, ou seja, há ao menos um sentido de
que o castigo não leva ao sentimento de culpa, mas, ao contrário, congela, concentra,
endurece, aguça os sentimentos de aversão, aumenta a força de resistência, a ponto de se
ousar dizer que o castigo, nos milhares de anos que precederam a história do homem,
foi quem retardou o desenvolvimento da culpabilidade.
Da oposição, ponto por ponto, do estado da cultura em que o homem, ao preço
da dor, sente-se responsável por suas forças reativas, ao estado da má consciência em
que o homem, pelo contrário, se sente culpado por suas forças ativas ou as ressente
como culpadas, emerge o produto da atividade cultural: o homem ativo, livre, soberano,
capaz de prometer, um legislador gerado pelo espírito das leis, um homem super-moral
gerado pela moralidade dos costumes.
No lugar da atividade genérica, a história apresenta povos, raças, classes, igrejas,
estados que se desdobram em organizações sociais, em comunidades de caráter reativo e
parasitas que ao absorverem a atividade genérica da cultura e seu produto, acaba por
não ter outra coisa a produzir senão os rebanhos; no lugar da justiça, a história apresenta
sociedades que não querem perecer e que não imaginam nada superior às suas leis.
Prova disso, é a existência do estado que jamais se deixaria inverter e a lei que se
confunde com o seu próprio conteúdo, ou que somente desaparece em proveito de
outras mais estúpidas; o indivíduo, em vez de livre e soberano, torna-se animal
domesticado, o “aborto sublime”, o animal gregário, o ser dócil, doentio, medíocre; a
violência da cultura transforma-se em propriedade legítima dos povos, estados, igrejas,
cujas atividades de adestramento só formariam um homem servil às forças reativas e o
processo de seleção somente voltado para seleção dos fracos, sofredores e escravos, em
vez do forte.
Nesse sentido, a história é vista como “o acto pelo o qual as forças reactivas se
apoderam da cultura ou a desviam em seu proveito, o que faz do triunfo das forças
reativas, não um mero acidente, mas o princípio e o sentido da ‘história universal’.
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Essa inserção deleuziana da noção de pós-história não só desloca a interpretação
dialética, binária, do pensamento nietzscheano, permitindo com isso uma abertura
epistemológica, sem precedentes, na história da filosofia, mas permite introduzir a
paralogia na filosofia da história. Nem pré-história, nem história, mas uma imagem
complexa de descontinuidade temporal que articule, relativamente, o virtual e o atual,
que oponha coexistências temporais e suas séries divergentes a uma noção de processo,
concebida como linha reta e finalidade teleológica.
Com o trabalho conceitual desenvolvido a partir do estudo e comentário de obras
de escritores tais como em Proust e os signos (1964/1987), Sade/Masoch (1967/1973),
Lógica do sentido (1969/1974), Kafka: por uma literatura menor (1975/1977),
Superpositions (1979), L’Epuisé (1992) e Crítica e clínica (1993/1997), temos não
apenas uma contribuição filosófica aos estudos de teoria, crítica e historiografia
literárias, mas principalmente o reconhecimento epistemológico da importância da
literatura na transvaloração do trabalho filosófico.
Em Proust e os signos não se trata de uma busca do tempo perdido, mas de uma
cartografia da modalidade dos signos, um trabalho arqueológico sobre a memória como
possibilidade de uma estética do esquecimento e da disposição afirmativa de um devir
ou disposição/apropriação relativa de um tempo futuro; já em Sade/Masoch, retoma a
noção freudiana de complexo de Édipo como uma descoberta fundamental para se
debater, questionar, desmontar a lógica que atravessa a lei que condena previamente
sem que o condenado tenha direito à defesa e articula as obras dos escritores Marquês
de Sade e Leopoldo Von Sacher-Masoch como modos-limite de expor e atravessar os
fantasmas inventados e postos em movimento pelo capitalismo.
Lógica do sentido implica “um ensaio de romance lógico e psicanalítico”.
Através da obra do escritor e matemático inglês Lewis Carroll, além de uma teoria do
jogo, temos uma teatralização do acontecimento em que tanto a designação como a
coisa designada, quem designa e sob que condições de produção de sentido, bem como
as condições de estabelecimento, estrutura e funcionamento da significação
propriamente filosófica, para combater tanto o bom senso quanto o senso comum e
sustentar a qualquer ser humano o direito de renomeação do mundo e suas
circunstâncias de vida e de sociabilidade.
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Félix Guattari, em Kafka: por uma literatura menor, conjuga o devir
revolucionário nas pessoas, tematizado em textos literários anteriores, com a
possibilidade de uma miríade de trabalhos revolucionários micropolíticos. O corte na
linguagem, o trabalho coletivo e a reabertura de novos roteiros para a vida política
fazem da obra de Gilles Deleuze não apenas o retorno em diferença de valores políticos
e estéticos da Comuna de Paris, agora levada ao limite pelo maio de 68 e seus
desdobramentos, mas os principais antídotos contra a zdanovização/stalinização tardia
da obra de arte.
II
Em Marx, pensamento em movimento, por sua vez, implica como extrair da
lógica do fetichismo burguês e sua noção de realidade objetiva, uma forma material e
simbólica que designe quem de fato produz a riqueza senão a natureza e a acumulação
da força de trabalho da classe trabalhadora, e socialismo libertário, mesmo a contragosto
dos anarquistas clássicos, uma forma de utilização do aparelho estatal como condição de
possibilidade dessa travessia de uma sociedade dividida em classes antagônicas para
uma sociedade sem classes. É na cabeça de quem pensa, ou de qualquer trabalhador,
portanto, que deve ser maquinada a inversão dessa lógica perversa que falsifica a
realidade, bem como são os diferentes e múltiplos contextos de configuração dessa
realidade falsificada que devem servir de base objetiva (mesmo quando as séries e/ou
formas são de ordem subjetiva) para o trabalho socialista, materialista, histórico,
dialético, mas sem prescindir da pesquisa como um algo para além de clichês e palavras
de ordem petrificadas em partidos e sindicatos.
Nesse sentido é possível ler de outra forma noções como “totalidade”, “luta de
classes”, “relações produtivas” engendradas por Marx, em sua obra. No Livro primeiro
do Volume I de O Capital, intitulado “O processo de produção do capital”, Marx, já nos
primeiros capítulos, indica, com extremo rigor, algumas noções operatórias decisivas ao
trabalho revolucionário.
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A primeira dessas noções, o “valor de uso”, articulada paradoxalmente ao “valor
de troca”, exprime a posição radical de Marx contra as mistificações da ciência
burguesa e a favor de uma tomada de consciência da classe trabalhadora em direção à
abolição do trabalho assalariado e à proliferação de associações de homens livres
(MESZÁROS, 2002).
Em equações simples, e acessíveis a qualquer trabalhador, demonstra que o
“valor de troca” ou a quantidade de energia gasta numa determinada atividade pode,
sempre, e de forma abstrata e relativa, equivaler ao “valor de uso”, ou seja: a
singularidade ou qualidade de uma força de trabalho em movimento produtivo.
O exemplo clássico é aquele envolvendo 20 metros de linho = 1 casaco, em que
o primeiro termo da equação, os 20 metros de linho, exprime um gesto específico, uma
qualidade envolvendo certas condições de produção de uma quantidade de linho; e o
segundo termo, em vez de ouro, prata, ou dinheiro, como forma geral do valor, diz de
outra posição da forma trabalho, agora, enquanto quantidade e não enquanto qualidade.
Essa estratégia adotada, a forma trabalho enquanto equivalente do “valor de
uso”, torna visível não somente a fixação dos metais nobre, o ouro, a prata, e mais
adiante o dinheiro, como a forma mítica e acabada do valor de troca, mas
principalmente como o valor de uso, enquanto qualidade de força envolvida numa
determinada produção, será substituído pela mercadoria, na lógica do capital.
A inversão dessa lógica, agora materializável no pensamento de Marx, envolve
uma crítica ao fetichismo da mercadoria (o produto do trabalho e não sua qualidade)
que, combinada ao dinheiro, tornar-se-á capital.
Mercadoria, dinheiro, mercadoria, ou dinheiro, mercadoria, dinheiro,
constituirão, a partir do século XVI, os elementos da equação que irão instaurar a
divisão do trabalho em contextos de manufatura, bem como, após a invenção da
máquina nesse laboratório ou oficinas manufatureiras, em fins do século XVIII,
proliferará em todos os domínios, seja nas fábricas, seja na agricultura, os meios
técnicos de produção que irão sugar ao limite a força de trabalho de milhões de homens,
mulheres e crianças espalhados pelo planeta terra.
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Com a introdução da máquina e a máquina da máquina no sistema produtivo não
se tem, como prometia o ideário burguês, uma substituição de braços e corpos da classe
trabalhadora, uma redução da jornada de trabalho, visto que a massa de mais valia seria
multiplicada e as condições de justiça trabalhista absolutamente possíveis.
Ao contrário, é nesse ritmo de desenvolvimento técnico que a burguesia
dissemina seus tentáculos e investe cada vez mais na exploração da classe trabalhadora
e no domínio de povos e nações.
A pergunta essencial de Marx é: quem é que trabalha, utilizando essa e aquela
tecnologia, na produção de toda essa mercadoria? Ou ainda: como construir, a partir da
materialidade social do trabalho, uma teoria que a um só tempo explicite a condição de
objeto e de sujeito da classe trabalhadora?
Esse me parece o princípio essencial do método dialético-paradoxal: garantir à
classe trabalhadora, onde quer que ela seja explorada, a formulação de um problema que
ponha em jogo a situação de alienação a que está submersa e ao mesmo tempo
dramatize as condições de reversão dessa exploração/dominação.
E todo o trabalho teórico, mesmo do jovem Marx, consistiu em politizar a noção
de “espírito do povo” presente na dialética hegeliana, suplementado-a com a noção de
luta de classes entendida e estendida à totalidade das relações sociais, a um
materialismo social sem transcendência de qualquer natureza.
Esse gesto teórico e revolucionário, anunciado já na tese sobre Demócrito e
passando pelos Manuscritos econômico-filosóficos, Ideologia alemã, Sagrada família,
explica porque não adiantava mais interpretar o mundo mas, sim, transformá-lo.
Tratava-se não somente de garantir o desenvolvimento crítico e revolucionário
da classe trabalhadora, mas de uma permanente vigilância da ciência burguesa e seus
universais (conceitos, métodos, noções de verdade, institucionalidade e maquinaria de
disseminação e falsificação).
Nesse sentido, caberia perguntar: se no processo de circulação da mercadoria
vale mais a propaganda em torno dos produtos do que a ênfase na qualidade do trabalho
envolvido, qual a posição da ciência burguesa em relação a sua performance técnica?
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Ou ainda: como politizar a relação do trabalhador, “sua” máquina de trabalho, e a do
consumidor em relação aos objetos em circulação no mercado?
A leitura da obra de Marx, articulada criticamente por dois sistemas
arquiinimigos de interpretação, o fenomenológico e o hermenêutico, poderia
encaminhar não só uma recuperação da força do método dialético em sua diferença e
multiplicidade, mas abrir novas séries de trabalho revolucionário a partir de uma
politização das subjetividades e reencaminhamento das lutas coletivas.
Um roteiro possível seria: 1. Realizar uma cartografia da ciência burguesa e seus
processos de auto-fetichização e propaganda, legitimados como universais; 2. Abrir os
arquivos da ditadura do proletariado; 3. Situar a dialética negativa versus a
comunicativa; 4. confrontar a liberdade de expressão política nas sociedades liberais e
ditas democráticas com a censura nas pós-revolucionárias ou pós-capitalistas; 5.
Repensar as fronteiras entre sujeito e objeto.
E o ponto de partida, numa linha de radicalidade proposta por Marx, seria um
texto intitulado “Abolição do sistema assalariado” (MARX, 1985), em que ele defende
que um justo salário a uma jornada justa de trabalho é, no limite, um falso problema,
posto que a conquista mais radical da classe trabalhadora seria se apropriar da matéria
prima, das máquinas e das fábricas e, de um só golpe, abolir o sistema assalariado e a si
mesma enquanto classe trabalhadora.
Nesse sentido, a imagem política do “valor-de-uso” não só se coloca em seus
devidos termos e da perspectiva de quem produz a riqueza, mas nos coloca em
condições de construir os antídotos contra os sistemas reativos de poder, de direita e/ou
de esquerda, bem como fazer devir revolucionário, e cotidianamente, certos objetos do
consumo.
Uma cartografia da ciência burguesa e seus processos de auto-fetichização e
propaganda, legitimados, como universais, deveria levar em conta não só as categorias
exigíveis para que um domínio se torne realmente científico, mas necessariamente
apontar as artimanhas e/ou aporias pelas quais se procurou omitir, apagar, falsificar os
desvios e as anomalias do próprio sistema.
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O progresso da ciência é um fenômeno que diz de sua instrumentalidade e de seu
quase engajamento de classe, a burguesa, na medida em que se recusa a se desenvolver
nas periferias, se põe a cobrar caro pelos seus produtos e patentes, e, mais
monstruosamente: inverter o sentido do “valor-de-uso”, agora, não mais a qualidade do
trabalho de que derivam os objetos, mas a proliferação da luminosidade obscena que
atrai e captura as vontades.
E não se trata, como se poderia presumir à primeira vista, de lançar a razão
instrumental que fundamenta a modernização social (estado, economia cotidiano) contra
a razão dialética negativa (ciência, moral e arte) para fazer derivar daí uma escatologia à
maneira adorniana, mas de colocar em seus devidos termos os valores históricos,
racionais e estéticos pós-coloniais e de como o pensamento de Marx, aliado a uma
cultura subalterna, poderia encaminhar uma pauta de reparações sociais ao ocidente
branco, hegemônico e logocêntrico.
Teremos, assim, a emergência de outra noção de trabalho (entre a fábrica e a
agricultura) que precisa ser tematizada e recuperada em sua forma de expressão. Sabe-
se, pela via da história oficial, que foram os escravos, em vários continentes, quem
produziram a massa de mais valia que assegurou o desenvolvimento econômico dos
países, hoje, os mais ricos do mundo, mas o que a lógica do sistema procura a todo
tempo silenciar é a maneira pela qual a consciência artesanal, em torno desse quase-
trabalho, se constituiu e agora invade os espaços públicos com outra noção de sujeito e
de objeto.
Em Para além do Capital, István Mészáros¸ em tópicos como “A tragédia de
Lukács e a questão das alternativas” e “Poder político e dissidência nas sociedades pós-
revolucionárias”, tem-se uma extraordinária contribuição ao debate sobre outra teoria do
socialismo a partir da obra de Marx, livre da interpretação e prática stalinistas.
Em primeiro lugar, mostra como o pensamento de um teórico do quilate de
Lukács teria sido reprimido pelo partido comunista húngaro desde 1928 e de como
textos mais contemporâneos, a exemplo de “O presente e o futuro da democratização”,
de 1968, teriam sido censurados e só aparecido por volta da queda do muro de Berlim
(1989) atestando, com isso, não só um sistema de repressão, cujas origens remontam à
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revolução russa, mas uma completa ausência de credibilidade por parte desses censores,
agora “críticos” da “nova ordem mundial” instalada.
Em segundo lugar, procura demonstrar - confrontando escritos de março e abril
de 1917 com O Estado e a revolução de Lênin, bem como os textos “patéticos” do fim
de sua vida, como aquele espírito da Comuna de Paris (“um Estado sem exército
mobilizado, sem uma polícia oposta às pessoas, sem funcionários acima do povo”)
“passam mais e mais para os bastidores de seu pensamento”. Lênin, em vez de investir,
após a revolução, numa supressão da classe trabalhadora, em direção à “associação de
homens livres”, procurou seguir à risca a ditadura do proletariado.
Para István Mészáros, embora a experiência revolucionária socialista, em todos
os países, tenha feito o espírito revolucionário entranhar-se ao corpo e tecido social, a
ponto de tais sociedades poderem ser consideradas como pós-capitalistas, é preciso,
hoje, fazer uma auto-avaliação e incorporar conceitos que apontem para a liberdade de
expressão e recuperem todo um trabalho teórico em torno dessa multiplicidade pós-
revolucionária.
Se, conforme ainda o raciocínio de Mészáros, há um espírito revolucionário
entranhado ao corpo social, acompanhado de uma censura ao pensamento teórico, nas
sociedades pós-capitalistas; por outro lado, nas sociedades liberais e ditas democráticas,
pode-se fazer todo tipo de barulho, apitaço, malabarismos teóricos, contanto que tudo
permaneça como está.
Não seria, diante dessa ordem de problemas, a atividade subalterna desse
trabalhador situado entre a agricultura e a fábrica, sem identidade fixa, operando um
devir individual da coletividade ou coletivo da individualidade, algo mais próximo da
experiência da Comuna de Paris e da noção de “associação de homens livres” pensada
por Marx?
Como tornar visível outra noção de trabalho entre ou para além da ditadura do
proletariado e os novos trabalhadores despolitizados, não sindicalizados e morrendo de
medo de perder o emprego?
Se, conforme Derrida, há um luto do trabalho ou um trabalho de luto envolvendo
a classe trabalhadora na sociedade neoliberal contemporânea, o trabalho revolucionário,
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molecular, cotidiano e subalterno, sem dúvida, deve ainda preservar, reter aquela cena
originária envolvendo a apropriação da matéria prima, das máquinas e das fábricas,
como condição fundamental para se conceber outro funcionamento do Estado que
pouco a pouco venha perecer a favor das cooperativas e associações, apesar da “ciência
e técnica” como ideologia e a consequente normatização e instrumentalização das
relações trabalhistas, como quer a teoria de Habermas.
Se, para Adorno, depois do nazi-fascismo e stalinismo, nenhuma ditadura do
proletariado é possível, por outro lado, a solução habermasiana da razão ou ação
comunicativa, considerando que não há mais objeto, mas relações dialógicas possíveis
entre sujeitos, no cerne mesmo de uma sociedade técnica, em que o estado não tem mais
interesse em investir em revolução, a questão que se coloca é a que proletário Adorno
está referindo, ou ainda: como dramatizar o vivido a partir de outra pedagogia da
memória da classe trabalhadora, e pela classe trabalhadora? Não seria possível, à
maneira deleuziana de pensar as sociedades de controle, retomar dobras do estado
técnico e voltar suas regras contra sua própria estrutura?
Nesse sentido, est-éticas do trabalho e devir revolucionário podem indicar um
trabalho político a partir daquilo onde menos se suspeita: a miríade de objetos
fetichizados que consumimos. Um bom exemplo seria o fato de panelas, virar um
“panelaço”; de filmes de ficção científica, um ataque terrorista; das bibliotecas privadas,
uma oficina de leitura em favelas; do imposto pago por professores, estudantes,
funcionários, pais de alunos e comunidade em geral, uma autogestão da atividade
universitária.
Se o marxismo ortodoxo, como pensava Lukács, era uma luta do marxismo do
seu tempo contra as investidas da ciência burguesa mais do que “uma liquidação
definitiva das falsas tendências” (anarquistas, poetas e diversas noções de socialismos),
então aproximar o método paradoxal ao dialético seria não só uma condição para
instituir sua multiplicidade, como queria Marx e que foi negada pelo stalinismo
mecanicista, mas politizar as fronteiras entre o sujeito e o objeto e abrir-se a uma
teatralidade política como condição de revitalização do pensamento de Marx, agora,
entre as crianças e todos/as aqueles/as aquelas anônimos/as que lutam cotidianamente
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não só para sobrevier à barbárie, mas para refazer sua vida estético-política para além da
burocracia sindical e partidária.
Se a principal leitura de Marx, durante o processo de construção de sua obra
política e filosófica foi, como atesta seus principais comentadores, a obra de William
Shakespeare, Balzac, entre outros escritores, que novos horizontes de sentido
poderíamos abrir para O Capital e sua crítica ao fetichismo burguês e mesmo sua crítica
possível e virtual ao fetichismo mecanicista e burocrático, se isolássemos (DELEUZE;
BENE, 1979), sua vontade de descrição exata da realidade, e o tomássemos como um
grande poema ou narrativa radical contra o estado do capital enquanto tal? Não seria
esse exercício uma forma de oposição dialética à altura daquela implementada por
Stálin e Zdanov ao combater artistas e escritores quanto ao experimentalismo na obra de
arte?
III
Em Marighella, pensamento em movimento implica “como pensar” mesmo com
o corpo espoliado, encarcerado e perseguido pelo sistema penal de direita (ou de
esquerda), e, socialismo libertário, uma experiência histórica conquistada apenas através
de uma ação guerrilheira bem planejada, na qual a poesia e a filosofia materialista
impõem régua e compasso.
O rompimento de Carlos Marighella com o PCB e sua aposta na luta armada
contra a ditadura militar é não somente uma recusa ao conformismo da esquerda, dita
revolucionária, mas um exemplo de quem preferiu unir vida e obra política – aqui
incluída a poesia, como condição permanente do fazer revolucionário.
A luz tênue que atravessa as fendas de prisões disciplinares e epistemológicas
torna visível o corpo do guerrilheiro ainda dilacerado pela tortura em seus requintes de
crueldade mas, também, o pensamento vivo de quem soube fazer de celas e presídios
por onde passou parte de sua vida um signo de liberdade e luta contra toda e qualquer
forma de aprisionamento.
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Por isso, após mais de 30 anos do rompimento com o PCB e de ser assassinado
pelos militares, podemos não só liberá-lo das garras de uma retórica política de esquerda
ressentida, mas, igualmente, reter um conjunto de metáforas e conceitos de sua obra
poética e política para nos ajudar a encarar outros desafios, próprios de um sistema
neoliberal não menos cruel.
Se nos afastássemos um pouco das determinações canônicas do que seja um
poema, com seu contorno de letras lançadas na página em branco e sua polissemia
aberta ao vento e considerássemos os seus escritos de guerrilha (poemas, manuais, teses,
chamamentos, cursos de filosofia na prisão, atos performáticos, manuseios de armas no
campo de batalha etc.) como uma forma de re-educação da poesia, então é preciso pôr
em questão tanto o sistema literário (o conjunto de autores, as obras e seu público)
quanto o sistema político, para se vislumbrar outra forma de liberação do espírito
estético-político.
Barthes, em Aula, ensina que as forças da escritura (mathesis, mimesis, semiosis)
seriam suficientes para salvar o homem da barbárie, pois além de lhe facultarem a
seleção de saberes diferenciais ainda fariam emergir sentidos mesmo no deserto das
representações; o problema é não ter alertado leitores e críticos quanto ao impasse da
escritura e o limite imposto pelo letramento. O que fazer com o Museu de tudo, de um
João Cabral, por exemplo, diante de 20 milhões de analfabetos no Brasil? Como armar a
literatura para fazê-la funcionar entre os iletrados? Como lançar a literatura contra a
legião de literatos e sua fetichização do sistema? Seria a fetichização do sistema
literário, pelos literatos, uma armadilha criada pelos macrossistemas de exclusão?
Se corpos de iletrados, semi-letrados, ou letrados reacionários, são semelhantes a
corpos de prisioneiros, à medida que têm seus desejos de liberdade capturados, somente
a experiência da prisão poderia engendrar uma pedagogia diferencial envolvendo uma
ressignificação de traços e marcas escriturais, corporais, capaz de fazer fugir os sistemas
de dominação.
Nesse sentido, pode-se aprender com Marighella outras estratégias para uma
política da subjetividade. Mas uma política da subjetividade que não seja apenas a
construção e/ou reconstrução da auto-estima, encenando os dados de uma ficção pessoal
na luta com seus fantasmas, mas um agenciamento coletivo que estabeleça as condições
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pontos de interrogação
da afetividade e do pertencimento, das estratégias de luta e de resistência, das
trincheiras e dos seus pontos rizomáticos.
A questão política, então, passa a ser: que imagem, palavra ou metáfora, em cada
um, pode encenar, abrir a ferida, então apaziguada, naturalizada, escamoteada? Que
forças políticas, estéticas, religiosas, econômicas podem ser aí dramatizadas? Como
renomear os inimigos e contra eles estabelecer novas linhas de força e resistência? Não
se trata mais (e Marighella parecia advinhar isso ao romper com o PCB) de opor
capitalismo e socialismo, nazismo e stalinismo, materialismo histórico e positivismo,
mas de perguntar: como combater a ilusão de que o capitalismo seria o seu próprio
coveiro? Como politizar a política a partir do principal paradoxo da democracia: o
governo do povo, ou seja, um conjunto de atitudes burocráticas que controla e evita que
o pensamento político se desenvolva e se dissemine?
Os escritos de guerrilha e as marcas inconscientes no corpo guerrilheiro tanto
servem para atiçar o espírito revolucionário como dotá-lo de outra vontade criadora e
expressiva. Assim, quando diz no poema “O país de uma nota só” que além de um
protesto ainda teria o dom de produzir algo capaz de filtrar o pensamento contra a
barbárie social e coletiva que assolava o Brasil em seus tempos difíceis, está não só
deslocando o fluxo da poesia no corpo do poeta (do coração pra cabeça), mas
assegurando uma imagem do pensamento em seu tempo próprio: o presente, contra as
rachaduras do passado e as teleologias em decomposição.
Em o Manual do guerrilheiro urbano, além de exigir outra responsabilidade
social para a ciência, a religião e o pensamento estético ainda faz ver, aos poetas, outro
campo de experimentação para a metáfora. Se o guerrilheiro urbano pode planejar e agir
através de sequestros, assaltos, atos de terror contra os lacaios de multinacionais que
vampirizam o país e reorientar o sentido da riqueza espúria em direção à luta
camponesa, o poeta, no melhor dos casos, sempre escreve: eis a realidade irrefutável
que perseguimos a vida inteira, mas que nunca tivemos a coragem de agir; ou ainda: o
meu mundo não é ainda nesse mundo e quero apenas que esse devir revolucionário
camponês assegure o vôo livre de minhas metáforas.
De um lado, a imagem de um guerrilheiro que planeja e age, de outro a de um
poeta que escreve e se esconde, e muito raramente a de um guerrilheiro que escreve para
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esconder o modo de agir contra as formas da barbárie ou de um poeta que planeja e age
contra as formas de escrever indiferente às conquistas de sociabilidade. Essa dicotomia
está na base de nossa ficção social e só a imagem do poeta guerrilheiro ou do
guerrilheiro poeta pode encaminhar outra forma do compromisso teórico e estético.
Desde a emergência da tradição marxista, temos visto proliferar ao menos três
dicotomias extremamente reativas: 1. a do poeta que escapa à realidade para conservar,
preservar a escrita da unidade do ser; 2. a do anarquista que recusa a figura do estado,
como condição de emergência do homem livre e soberano; 3. a do historiador que faria
a crítica exata do real contra a fantasia poética e o espírito burguês do anarquista.
Ora, quando Carlos Marighella rompe com o Partido Comunista Brasileiro e
investe na luta armada, de um só golpe ele expõe a fraqueza de uma objetividade
histórica conformista, age na melhor tradição anarquista e encara a maquinaria militar
com inocência poética. Desde então, as marcas e traços dessa combinação do poeta,
guerrilheiro e anarquista, no coração dos anos 60, mudaria definitivamente a forma de
se fazer revolução.
Essa atitude política, ainda que nos últimos instantes de sua vida, encenasse
outra poética como um recorte metonímico de rajadas de metralhadora, a condição
anarquista como um mapeamento das formas reativas de poder (a máquina comunista)
onde menos se suspeitava, e a história, mais intempestiva e radical, seria a da irrupção
de um silêncio contra a tagarelice e a impotência dialética.
Quarenta e um anos após o seu assassinato, ainda podemos escutar os ecos do
seu chamamento ao povo brasileiro e é lamentável, ao menos no campo da literatura, a
conservação da mesma disciplinaridade, herança militar, que confina críticos,
professores e escritores em seus gabinetes, quando a situação política e cultural do país
exige urgentemente uma cruzada de liberação nacional.
Quantos livros poderiam ser escritos por nossos 20 milhões de analfabetos se
esquecêssemos as formais institucionais de letramento e nos lançássemos, nós
professores de literatura, em parceria com filósofos, juristas, psicólogos sociais,
economistas, médicos, arquitetos, matemáticos etc., etc., num trabalho voluntário de
ressignificação dos signos religiosos, jurídicos, míticos que atravessam o universo do
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iletrado e, transversalmente, os ajudássemos na releitura de seus traços e marcas
subjetivos, na abertura de arquivos locais e microrregionais, no agenciamento de outra
cultura diferencial da informação?
Quanta energia revolucionária poderíamos reunir, condensar, se ao poeta
coubesse, em suas oficinas de poesia, a liberação da consciência histórica (história da
baixa auto-estima, das cenas de discriminação, dos lapsos de memória, da captura do
desejo pelas máquinas mais obsoletas etc.); se ao historiador, em seus relatos e/ou
oficinas de emergências de marcas e traços comunitários, coubesse a liberação da
consciência poética (não mais a esquizofrenização do presente pela divisão do passado e
do futuro); se ao filósofo, sempre em parceria com o poeta e historiador, coubesse a
recuperação do pensamento escamoteado pelos sistemas ditos democráticos ou pelos
regimes de exceção?
Por que foi mais fácil a Carlos Marighella, encarcerado na Ilha Grande durante
06 anos, inventar uma universidade popular entre os companheiros de prisão, e tão
difícil entre nós, homens livres, professores, poetas, historiadores, filósofos, estudantes
em todos os domínios, realizar um trabalho de mediação junto a essa legião de
brasileiros, mais de 60 milhões, lançados abaixo do nível da pobreza?
Se vivemos e aceitamos, sem sequer nos indignarmos, uma realidade social onde
a tônica é salve-se quem puder, nenhuma vontade política deterá a seleção natural, viva
a inutilidade da poesia como condição de possibilidade dos poetas; qual a natureza da
nossa metáfora ou ficção social que ainda mantém intocáveis, jurídica e
institucionalmente, latifúndios e latifundiários, ciências e cientistas, igrejas e religiões?
E o poema de Marighella, o seu rondó da liberdade, responderia:
É preciso não ter medo,
é preciso ter a coragem de dizer.
Há os que têm vocação para escravo,
mas há os escravos que se revoltam contra a escravidão.
Não ficar de joelhos,
que não é racional renunciar a ser livre.
Mesmo os escravos por vocação
devem ser obrigados a ser livres,
quando as algemas forem quebradas.
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pontos de interrogação
É preciso não ter medo,
é preciso ter a coragem de dizer.
O homem deve ser livre...
O amor é que não se detém ante nenhum obstáculo,
e pode mesmo existir quando não se é livre.
E no entanto ele é em si mesmo
a expressão mais elevada do que houver de mais livre
em todas as gamas do humano sentimento.
É preciso não ter medo,
é preciso ter a coragem de dizer.
São Paulo, Presídio Especial, 1939.
Nesse linha estética, Carlos Drummond de Andrade teria dito: “Quando nasci, um anjo
torto desses que vivem na sombra, disse: vai, Carlos, ser gauche na vida” e Capinam,
numa homenagem e rachando completamente a metáfora, suplementa: “vai, Carlos, ser
Marighella na vida”.
CONCLUSÃO
Nessa perspectiva comparativa e/ou crítico-cultural, e operando com valores
linguístico-literários, pode-se concluir que as contribuições de Gilles Deleuze nesse
debate se configuram a partir tanto da noção de corte serial derivada do estruturalismo
quanto da mobilidade semântica do signo literário. Sem esta mobilidade não seria
possível vislumbrar certo grau zero do sentido, como condição do acontecimento, e sem
acontecimento a impossibilidade de se abrir outras séries diferenciais e diferenciadas,
sempre em movimento, e abertas a um devir micropolítico e comunitário.
As contribuições de Marx se devem à descoberta da forma do fetiche burguês e
seus tentáculos, bem como, e inversamente, da prática das formas de agenciamento
social (partidos, sindicatos, estado transitório, trabalhadores conscientes e em vias de se
organizar, movimentos da sociedade civil organizada), como condição de superação da
divisão de classe. Sem a forma do fetiche, fundada no valor de troca, não seria possível
vislumbrar uma est-ética do trabalho (pós-emancipação da luta de classes) derivada do
valor de uso. O problemático foram as formas do agenciamento social, ainda presas a
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um ativismo mecânico e sem cultura literária relevante no trabalho de esvaziamento dos
sentidos e ainda sem força para afirmar o experimental e rizomático.
O poeta guerrilheiro Marighella se apropria da potência da poesia para criar e
resistir às formas de aprisionamento sejam elas derivadas da noção de linguagem que
configura e estrutura o sistema literário, sejam elas derivadas da noção de política e luta
revolucionária de direita e de esquerda. A lição do guerrilheiro é, portanto, onde houver
forma de aprisionamento, há também, e entranhada à ela, a forma de construção da
liberdade, graças à poesia que corre nas veias e artérias de quem não desiste nunca de
lutar a favor da vida e da justiça social.
Nesse sentido, um roteiro para um socialismo libertário, como uma interpretação
desses intérpretes, implicaria: 1. Uma política da subjetividade; 2. Uma provocação
permanente aos intérpretes considerados marxistas, mas que na verdade são apenas
stalinistas; 3. Uma ampliação da noção de classe trabalhadora e suas redes e rizomas.
A noção de “anarquia coroada” que aparece em muitas passagens da obra de
Deleuze, entre outras coisas, nos ajuda a pensar a noção de indivíduo soberano e de
crítica ao estado levada à exaustão por anarquistas clássicos como Bakunin, Proudhon,
Stirner, entre outros. Para Deleuze, não se trata de opor o indivíduo soberano ao estado
usurpador, mas de avaliar permanentemente como um está implicado no outro e vice-
versa e de como é possível um devir revolucionário nas pessoas e nas instituições.
Uma frase clássica, como a de Proudhon, de que “toda propriedade é um roubo”
ou ainda, e com o mesmo sentido, de que “toda escravidão é um assassinato”, passada
pelo crivo da paralogia deleuziana ou enquanto proposição submetida a suas relações
com a “designação”, a “manifestação” e a “significação” (DELEUZE, 1988: 13-23)
sofreria uma tão terrível desmontagem que ao final de um processo de criação
conceitual, teríamos não só uma flutuação dos sentidos, bem ao gosto de marxistas
ortodoxos, mas uma extraordinária possibilidade de parceria entre marxistas e
anarquistas contra um inimigo comum: o capital e suas formas de separação e
destruição da vida.
Essa estratégia deleuziana evitaria uma série de falsos problemas envolvendo o
tema da miséria (a miséria da filosofia que destroça a filosofia da miséria, por seu
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hegelianismo e ignorância quando à economia política (debate entre Marx e Proudhon);
a miséria da teoria que destroça Para ler o Capital e A favor de Marx, por seu
policiamento stalinista e sua destruição de valores como “humanismo”, “moralismo”,
“historicismo” “economicismo” (debate entre Althusser e Thompson) e suas relações
com a política da subjetividade em contexto de capitalismo e sua esquizofrenia.
A noção de corpo sem órgãos que implica uma aposta na experimentação – em
vez da interpretação – não só acolhe, contempla, inscreve o movimento concreto e
abstrato do trabalho onde quer que ele ocorra, mas amplia as frentes de luta entre todas
as outras tribos vinculadas ao consumo de imagens e de objetos produzidos.
Em Deleuze, não há, como quer Terry Eagleton, um “depois da teoria”,
alienando a teoria cultural dos problemas concretos e urgentes do mundo
contemporâneo, nem um apriori da teoria em relação à prática revolucionária, mas uma
multiplicidade de formas de pensar o real e a sua contingência.
Se há, numa relação entre Marx e Nietzsche, uma apropriação reativa das forças
revolucionárias ou da atividade genérica da cultura no século XX, essa seria não só a do
nazismo se apropriando do pensamento de Nietzsche, mas a do stalinismo se
apropriando do pensamento de Marx, e a nova tarefa revolucionária seria: como
multiplicar as formas do pensamento, refazendo as instituições e afirmando a vida onde
quer que ela rebente.
Dito isso, pensamento em movimento e socialismo libertário em Gilles Deleuze
não é necessariamente nem ação direta contra o sistema de opressão praticado pelo
estado burguês ou proletário, a fim de substituir tais formas de estado por comunas e
sua autogestão, nem ação da classe trabalhadora unida, e seus intelectuais, contra o
capital, com a finalidade de substituir o estado burguês por um Estado proletário, com
sua ditadura em direção ao comunismo, mas: a partir de uma exposição indireta do
equívoco anarquista em relação ao poder e do marxismo em relação ao real e à ditadura
do proletariado, estabelecer as condições de uma crítica radical dessa subjetividade dita
revolucionária, seus aparatos discursivos, seus fetichismos e fantasmas, com a
finalidade diferencial de se apropriar do poder como uma forma de afirmação da vida e
do pensamento minoritário contra as forças reativas e esquizofrênicas do capitalismo e
suas formas de controle. E com as seguintes implicações:
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1. A pesquisa da subjetividade e do empirismo (ou teoria-prática) sustenta uma
apropriação da ação direta anarquista ou “libertária” como positividade de uma ciência
menor, mas isola, desconstrói, sua noção reativa de poder e seu apego à individualidade
soberana;
2. A pesquisa do capitalismo e sua esquizofrenia e consumo sustenta uma
apropriação do valor de uso, definida por Marx, em O Capital, como uma noção
afirmativa e revolucionária, não só uma imagem da qualidade do trabalho, mas do
trabalho revolucionário em seus usos dos objetos fetichizados. Ou seja: se o capital
enquanto tal substitui, apaga “valor de uso” pelo “valor de troca”, importando-se apenas
com o produto do trabalho e suas formas de sedução e captura dos desejos, o
deslocamento do valor-de-uso, agora, seria: o que fazer com esses objetos consumidos
(por esses trabalhadores-miríades de minorias) senão usá-los revolucionariamente?
3. A apropriação de conceitos de O Capital e a conceitualização de suas
metáforas (opor, por exemplo, em MARX, arte à ciência política) engendra não só uma
teoria do jogo, um teatro do pensamento, mas uma revolução nos usos da teoria-prática:
contra toda forma de fetichismo do marxismo, inclusive em relação a Marx;
4. A liberação do pensamento para esse outro entendimento do “valor de uso”
(os objetos de consumo: imagens, representações, sulfeto de ferro, ácido clorídrico,
panelas, lixo, entre outros) seria liberar a máquina de guerra para o mais ativo
socialismo libertário em diferença;
5. A outra noção de guerra de guerrilha deve ir além do enfrentamento das
minorias oprimidas contra seus opressores (grupos organizados contra os políticos do
G8, do G20, agricultores sem terras contra latifundiários e indústrias de transgênicos,
estudantes secundaristas contra empresários de transportes, entre outros), mas rebeliões
de consumidores contra a alta de preços e qualidade dos produtos despidos de seus
fetiches, de consumidores de imagens contra os falsificadores dos pactos da
representação e seu mercado simbólico, de criadores de signos artísticos e culturais
contra prefeitos e conselhos de cultura que privatizam o espaço público e inviabilizam
de forma criminosa a emergência de uma efetiva política pública para a cultura,
encarada agora como modos de vida.
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Em suma, o direito linguístico deve ir além de reivindicar o pluralismo, a
diversidade, afirmação e reconhecimento de línguas não oficiais e como aparelhos de
estado, mas conspirar a favor de um pensamento que se movimente ao identificar uma
dobra do poder como aparato do fetiche da mercadoria, que se movimente ao identificar
toda e qualquer vontade de poder absoluto, mesmo na ordem do discurso, que se
movimente na afirmação dos consensos locais e seus crivos estético-políticos como
experimentação mesma de uma anarquia coroada. Eis uma das condições para uma
estética da existência.
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RECEBIDO EM: 03 de novembro de 2011
APROVADO EM: 08 de dezembro de 2011