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48 CADERNOS • Centro Universitário S. Camilo, São Paulo, v. 11, n. 1, p. 48-58, jan./mar. 2005 Filosofia da mente: Causalidade e a questão da vontade The philosophy of mind: causality and the question of will RESUMO Causalidade e Vontade podem ser analisadas a partir de várias abor- dagens. O tema aqui proposto será orientado para a filosofia da mente. Iniciaremos com a visão ética da relação causalidade e Vontade, a seguir, nortearemos para o enfoque científico das funções cerebrais e estados mentais. O objetivo dessa análise é tentar mostrar se a Von- tade tem ou não fundamentação causal. No caso de haver uma base causal para a Vontade, qual a natureza dessa causa: física e/ou mental ou de outra natureza. DESCRITORES Mente-Filosofia; Causalidade; Vontade ABSTRACT Causality and Will can be analyzed from several different points of view. Our theme will be explored here from the perspective of the philosophy of mind’. We begin with an exam of the ethical aspect of the relationship between Causality and Will, considering next the scientific aspect of cerebral functions and mental states. Our aim is to verify if Will has (or not) a causal background. In case of a positive answer, we’ll conjecture about the nature of this causal background – a physical and/or mental one or some other kind. KEYWORDS Mind-philosophy; Causality; Will * Graduada em Letras e Literaturas das Línguas Portuguesas, pela Faculdade de Humanidades Pedro II, FAHUPE. Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutora em Filosofia pela Universidade Gama Filho. Pós- Doutora pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora da Universidade Federal de São João del-Rei. Laboratório de Lógica e Epistemiologia. Mariluze Ferreira de Andrade e Silva * ARTIGO ORIGINAL/ORIGINAL RESEARCH filosofia, ética e bioética 05 Filosofia da mente.p65 22.03.2005, 13:27 48

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Filosofia da mente: Causalidadee a questão da vontade

The philosophy of mind:causality and the question of will

RESUMOCausalidade e Vontade podem ser analisadas a partir de várias abor-dagens. O tema aqui proposto será orientado para a filosofia da mente.Iniciaremos com a visão ética da relação causalidade e Vontade, aseguir, nortearemos para o enfoque científico das funções cerebrais eestados mentais. O objetivo dessa análise é tentar mostrar se a Von-tade tem ou não fundamentação causal. No caso de haver uma basecausal para a Vontade, qual a natureza dessa causa: física e/ou mentalou de outra natureza.

DESCRITORESMente-Filosofia; Causalidade; Vontade

ABSTRACTCausality and Will can be analyzed from several different points ofview. Our theme will be explored here from the perspective of thephilosophy of mind’. We begin with an exam of the ethical aspect ofthe relationship between Causality and Will, considering next thescientific aspect of cerebral functions and mental states. Our aim is toverify if Will has (or not) a causal background. In case of a positiveanswer, we’ll conjecture about the nature of this causal background– a physical and/or mental one or some other kind.

KEYWORDSMind-philosophy; Causality; Will

* Graduada em Letras e

Literaturas das Línguas

Portuguesas, pela Faculdade de

Humanidades Pedro II, FAHUPE.

Mestre em Filosofia pela

Universidade Federal do Rio de

Janeiro. Doutora em Filosofia pela

Universidade Gama Filho. Pós-

Doutora pela Universidade

Federal do Rio de Janeiro.

Professora da Universidade

Federal de São João del-Rei.

Laboratório de Lógica e

Epistemiologia.

Mariluze Ferreira deAndrade e Silva*

ARTIGO ORIGINAL/ORIGINAL RESEARCHfilosofia, ética e bioética

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VISÃO ÉTICA DA CAUSALIDADEE VONTADE

Em Ética a Nicômaco, Aristóteles introduzos conceitos de ação voluntária, deliberação edecisão, dando origem a uma teoria da açãovoluntária que serviu de base, em tratados éti-cos, para construir a teoria da responsabilidademoral levando em conta os estados mentais:Vontade, Consciência e Intencionalidade.

A teoria da responsabilidade moral tentaexplicar a necessidade de recompensas e puni-ções como itens que contribuem para a formaçãodo caráter e para incentivo de certos tipos deações. Aristóteles advogou que a causa das boasações seriam as boas emoções e a excelência seriauma inclinação do sujeito no sentido de praticarboas ações causadas por boas emoções. Porém,não é muito simples entender as emoções comocausa das ações porque se as ações e as emoçõessão voluntárias, elas deverão ser submetidas aum juízo de valor. Também poderíamos buscar acompreensão desse problema perguntando pelascausas das emoções, mas a resposta nos condu-ziria a outra pergunta até chegarmos ao ser em sida questão e não termos mais nada a dizer eapelarmos para uma tautologia.

Na teoria moral, a excelência é entendida como“Vontade”, “disposição da escolha”, como uma pro-priedade do caráter, algo inerente ao agente quefaz suas escolhas e age de acordo com predisposi-ções do seu caráter. A escolha, nesse sentido, édeterminada por um princípio racional — nãoemocional. A escolha é decisória e a ação resultantedessa escolha implica em a Vontade ser voluntária.

Na Ética a Eudemo, o agente é causa e prin-cípio da ação voluntária e suas ações podem seraprovadas ou reprovadas. Como as ações decor-rem de uma disposição de escolha do agente, éo próprio caráter como causa das ações que passaa ser alvo de reprovação ou aprovação.

Muñoz1 (2002) admite que ações e eventosque são efeitos da necessidade, da sorte ou da na-

tureza, não estão sujeitos à aprovação ou à repro-vação porque esses efeitos são resultados de causasinvoluntárias. Um agente só está sujeito a juízosmorais quando ele for causa voluntária das suasações. Mas, uma questão se coloca: de que açõesos agentes são causa? Segundo Muñoz, todas asações voluntárias que decorrem de uma decisãoindividual, tem o agente como causa, e todas asações que resultam de uma decisão são voluntárias.

Muñoz acata a idéia de que uma ação é vo-luntária quando está conforme o desejo, a esco-lha, a Vontade e o pensamento do agente. Essasafirmações abrem espaços para questionamentossobre a relação causalidade-Vontade entenden-do-se “Vontade” como um estado mental queproduz uma ação voluntária. Segundo a análisede Muñoz, não há dificuldade para compreenderque uma ação é voluntária quando a escolha évoluntária e toda ação voluntária é conforme odesejo do agente. Mas o entendimento sobre oque seja “ação voluntária” não satisfaz porque nãose explica nem se justifica uma ação ser voluntá-ria simplesmente porque ela é uma ação confor-me o pensamento. Se entendermos que toda açãoé resultado de uma combinação de pensamentose os pensamentos se inclinam para uma escolha,então toda ação é resultado da combinação depensamentos e escolha da ação para expressar opensamento. Na Ética a Eudemo, Aristóteles ad-mite a possibilidade de agir sem deliberação eescolha — agir pelo impulso, por exemplo —. Aação, nesse caso, está relacionada a um dos esta-dos da alma, volitivo, epistêmico ou aos dois.Mas como saber qual estado da alma determina aação? A Vontade e/ou o conhecimento? Essa ques-tão dá origem ao surgimento de várias teoriassobre a relação causalidade e Vontade.

CAUSALIDADE MENTAL,DETERMINISMO E AUTONOMIADOS EVENTOS MENTAIS

Donald Davidson2 (2001) afirma: “eventosmentais como percepções, lembranças, decisões

1. MUÑOZ, Alberto Alonso. Liberdade e Causalida-de: ação, responsabilidade e metafísica em Aristóteles. SãoPaulo: FAPESP 2002 p. 48s.

2. DAVIDSON, Donald. Mental events. In: Essays onActions and Events. Oxford 2001 (1980). p. 208.

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e ações resistem capturas na rede nomológicada teoria física”. E coloca a questão “Como podeesse fato ser reconciliado com o papel causal doevento mental no mundo físico?” Rudolf Lüthe3

recorta este problema colocado por Davidson eapresenta algumas reflexões sobre a causalida-de mental: Para Lüthe, há um paradoxo na visãode Davidson sobre o problema corpo/mente por-que, por um lado os eventos mentais não pare-cem em si mesmos possíveis de serem explicá-veis e prognosticáveis causalmente e, por outrolado, eles têm efeitos causais que correspondemao mundo físico. Isto significa dizer que a deci-são de fazer uma coisa produz o efeito de queessa coisa é feita. Essa causalidade específica,segundo Lüthe, parece ser problemática porqueela trata os eventos mentais apenas como cau-sas, não como efeitos. O paradoxo se coloca àmedida que se entende que eventos mentaisparecem pertencer a uma rede mental e, aomesmo tempo, parece que eles não estão con-tidos nela. Na verdade, continua Lüthe, consta-ta-se que decisões podem ter efeitos no mundofísico sem que elas possam ser explicadas eprognosticadas no interior de uma rede causalcomo efeitos. Do mesmo modo, constata-sehaver independência, ainda que parcial, entreliberdade de ação e responsabilidade ética doseventos mentais em relação à rede causal.

Nosso comentário sobre essa colocação deLüthe é que, desse ponto de vista, há possibili-dade de não haver uma explicação causal paraa ação de um sujeito, ainda que seja uma açãovoluntária. Nessa situação, a causa é uma Von-tade sem fundamentação causal. A ação é umefeito sem causa necessária.

Para Lüthe, é desejável que os eventosmentais sejam fenômenos com efeitos causais,porém sem produção causal, mas isso gera umconflito entre determinismo e autonomia doseventos mentais. O determinismo é necessáriopara explicar a causalidade dos acontecimentosfísicos, através dos eventos mentais e a autono-mia exige independência estrita dos eventosmentais, com relação à rede causal, necessáriapara permitir a responsabilidade moral a seusefeitos no mundo físico. A autonomia e o deter-minismo são paradoxais a ponto de se excluí-rem mutuamente. Davidson acha que esse pro-blema é aparente e Lüthe acha que o determi-nismo e a autonomia dos eventos mentais podem

ser reconciliados. Davidson interpreta a auto-nomia como “não estar submetido a uma lei”,introduz o termo anomalia dos eventos men-tais e demonstra que a anomalia não entra emconflito com um determinismo especial, cha-mado “monismo anômalo” que defende quetodos os eventos são do tipo físico, têm aspec-tos físicos e não há pensamento sem atividadecerebral (processos neurais). Critica o reducio-nismo: não é possível explicar os eventos men-tais através de uma redução aos processos físi-cos. Anomalia, nesse caso, seria a ausência dequalquer outra correlação entre acontecimen-tos mentais e físicos e a negação da existênciade leis psicofísicas.

Bertrand Russell4 (1976) já havia colocadoque a ciência moderna mostrava uma concep-ção tradicional de causa e efeito fundamental-mente errônea carecendo ser substituída por umanoção diferente que ele chamou “leis da mu-dança”. Um exemplo: na concepção tradicional,certo evento A causava certo evento B. Issoimplicava que dado qualquer evento, B, se po-dia descobrir um evento anterior, A, que manti-vesse uma relação com B. Assim:

1.Sempre que A ocorresse, era seguido por B2.Nesta seqüência, havia algo “necessário”, e

não mera ocorrência “de fato” de A primei-ro e B depois.Outro exemplo seria a afirmação de que o

dia causa a noite, fundamentado no fato de queo dia é sempre seguido pela noite. A respostaera que o dia não podia ser considerado a causada noite porque não seria seguido pela noite sea rotação da Terra cessasse ou se se tornasse tãolenta que uma rotação completa demorasse umano. Uma causa deveria ser tal que em nenhu-ma circunstância concebível deixasse de serseguida pelo seu efeito. Segundo Russell, a na-tureza não apresenta conseqüências na formatradicional da causação. Tudo na natureza estáem mudança contínua. E o que chamamos “even-to” é, na realidade processo. Se um evento temque causar outro, eles devem ser contíguos notempo. Se houver qualquer intervalo entre eles,algo pode acontecer durante o intervalo queimpeça o efeito esperado. Causa e efeito sãoprocessos temporalmente contíguos. Tudo quese conhece empiricamente é aproximado. As leisque conhecemos empiricamente têm forma deleis causais tradicionais mas não devem ser con-sideradas universais ou necessárias. Dizer que

3. CASAT, R, & WHITE, G. (ed). Philosphie und diecognitiven Wissenschaften. Österreichische LudwigWittgenstein Gesellschaft, 1993, p. 323-327. Tradução demarco Antonio Frangiotti. Extraído do Google.

4. RUSSELL, Bertrand. Leis causais Psicológicas e Fí-sicas, In: A Análise da Mente.Rio de Janeiro: Zahar, 1976(1971) p. 70s.

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ingerir arsênico é seguido pela morte é umageneralização empírica — diz Russell.

ABORDAGEM CIENTÍFICA DASFUNÇÕES CEREBRAIS EDOS ESTADOS MENTAIS

Feitas essas considerações, passemos parao lado científico, propriamente dito, da questão.Popper5 (1975) encontra no mundo das Idéiasde Platão um terceiro mundo objetivo e autôno-mo, existente em adição ao mundo material eao mundo da mente — e aponta Platão comofilósofo pluralista. Ao enunciar esse pensamen-to, Popper construiu a teoria dos três mundos.O mundo consiste de três submundos ontologi-camente distintos. 1. o mundo material, ou mun-do dos estados materiais. 2. o mundo mental,ou mundo de estados mentais e o 3. o mundodos inteligíveis, ou das idéias no sentido objeti-

vo — mundo de objetos de pensamentos pos-síveis, mundo das teorias em si mesmas e suasrelações lógicas, dos argumentos e das situaçõesde problema. Esses três mundos se relacionamde tal modo que os dois primeiros podeminteragir e os dois últimos também podeminteragir. Desse modo, o segundo mundo, mun-do das experiências subjetivas, ou pessoais,interage com cada qual dos outros dois mun-dos. O mundo um e o três não podem interagirsenão pela intervenção do mundo dois — mun-do das experiências subjetivas ou pessoais.

Popper estabelece uma relação causal en-tre os três mundos que é detalhadamente des-crita por Eccles6 (1994), a partir do cérebro enão do corpo. Segundo Eccles, a neurologiaclínica e as neurociências mostram que o espí-rito não dispõe de via de acesso direta ao cor-po. O cérebro é o mediador de todas as intera-ções com o corpo, conforme tabela a seguir7:

TABELA 1. Tabelas dos três mundos que englobam todas as formas de existência bem como todas as experiências, tal como Popper

os define.

MUNDO 1Objetos e estados materiais

1. InorgânicosMatéria e energia do cosmos

2. BiologiaEstrutura e ações de todos os seresvivosCérebro humano

3. Objetos fabricadosSubstratos materiaisda criatividade humanados utensíliosdas máquinasdos livrosdas obras de arteda música

MUNDO 2Estados de consciência

Conhecimento subjetivoExperiências da consciência:

PercepçãoPensamentoEmoçõesIntençõesMemóriasSonhosImaginaçãoCriativa

MUNDO 3Conhecimento

ObjetivoPatrimônio cultural codificado sobresubstratos

Materiais:FilosóficosTeológicosCientíficosHistóricosLiteráriosArtísticosTecnológicoSistemas teóricosProblemas científicosRacionais críticos

Mundo 1 — conjunto do cosmos, mundomaterial, orgânico e inorgânico.

Mundo 2 — experiências da consciência/espírito, experiências perceptivas imediatas (vi-são, audição, tato, dor, fome, cólera, alegria,medo etc.), memórias, imaginação, pensamen-to, ações e no centro de tudo isso o mundo do“eu” único enquanto ser que passa pelas expe-riências.

Mundo 3 — criatividade. Cultura. No Mun-do 3, Popper8 (1995) coloca os produtos damente humana: estórias, mitos explanatórios,artefatos, teorias científicas, problemas científi-cos, instituições sociais obras de arte. Os obje-tos do Mundo 3 são de nossa autoria.

De acordo com esse esquema, primeiro exis-te o sentido exterior que se relaciona especifica-mente às percepções produzidas de imediatopelos estímulos dos órgãos dos sentidos: visual,auditiva, tátil, olfativa, gustativa, de dor etc.

Em segundo lugar, há o sentido interior queabrange uma grande variedade de experiências

5. POPPER, K. Sobre a Teoria da Mente objetivasIn: Conhecimento objetivo. Belo Horizonte: Itatiaia, 1975.p. 151s. Traduzido por Milton Amado da edição de 1973,publicado pela Oxford University Press – London. Corrigida.Primeira edição original 1972.

6. ECCLES, John C. Hipóteses sobre as relações entreo espírito e o cérebro. In: Cérebro e Consciência. O self eo cérebro. Lisboa: Instituto Piaget. 1994 p. 19s.

7. Material extraído de op. cit. p. 19.8. POPPER, Karl e ECCLES, J. O eu e seu cérebro.

2.ed. Campinas: Papirus. 1995. p. 62s.

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cognitivas: pensamentos, memórias, intenções, ima-ginações, emoções, sensações, sonhos. Na base doMundo 2, existe o “eu” que é a base da Identidadee continuidade pessoais que cada um de nós expe-rimenta durante a vida distanciando as interrup-ções diárias da consciência durante o sono. A cadanovo dia a consciência retorna para nós, com suacontinuidade essencialmente inalterada pelas ho-ras de inconsciência no sono9 (Popper, Eccles, 1977).

Em terceiro lugar está o Mundo 3, da cria-tividade cultural.

Eccles examina as implicações biológicasdas teorias que admitem a existência da cons-ciência e dos estados mentais (Mundo 2) nãocomo efeitos causais e conclui que todas essasteorias (p. ex., o Materialismo radical, o Pampsi-quismo e o Epifenomenalismo) partem do prin-cípio de que os acontecimentos físicos proces-sados no cérebro (Mundo 1) são as únicas cau-sas das ações. O Materialismo radical, o Pampsi-quismo e o Epifenomenalismo rejeitam a idéia

de que os fenômenos mentais, associados aosacontecimentos cerebrais, não produzam qual-quer efeito causal. A função do cérebro no con-trole do comportamento circunscreve-se ao in-terior das estruturas físicas do cérebro. Afirma-se que o Mundo 2 pertence ao Mundo 1 (Epife-nomenalismo) mas se nega que possua algumefeito causal. O Mundo 2 — Mundo da cons-ciência e dos estados mentais — surge primeiroe depois desenvolve-se à medida que a comple-xidade do cérebro aumenta.

Para Eccles, os postulados fundamentais dateoria dualista-interacionista, podem trazer escla-recimentos sobre a relação espírito-cérebro. Se-gundo, ele, esta teoria, desde Homero, foi a pri-meira a colocar o problema das relações entre oespírito e o cérebro. Ela foi retomada por Descar-tes, mas a maneira como ele a defendeu foi rejei-tada. A teoria dualista-interacionista exige a aber-tura do Mundo 1 aos acontecimentos do Mundo2, como se mostra no esquema abaixo (Figura 1):

FIGURA 1. Diagrama que representa como, no âmbito da interação espírito-cérebro, a informação circula no cérebro humano. Os

três componentes do Mundo 2 (percepção exterior, percepção interior, e o eu, psique ou alma) são figurados com as suas

comunicações representadas por setas. As setas com duplo sentido representam as vias de comunicação que atravessam a

fronteira entre o Mundo l e o Mundo 2. isto é, que ligam o cérebro de ligação aos componentes do Mundo 2. O cérebro de

ligação apresenta a disposição em colunas aqui indicada pelas linhas verticais a tracejado. É preciso imaginar que a superfície

do cérebro de ligação é enorme, pois possui dez milhões de dendrões em lugar dos quarenta que estão aqui indicados. A área

motora suplementar (SMA), está ligada particularmente às intenções do Mundo 2; as três setas indicam a especificidade potencial

da ação que exerce a intenção sobre os módulos da SMA (Área Motora Suplementar). O Mundo 2 está representado acima do

Mundo l, por razões de ordem prática do diagrama. Se o Mundo 2 tivesse alguma localização espacial, seria colocado no espaço

onde atua, isto é, como o indicam as setas, nos módulos do cérebro de ligação. (Ob.cit. p. 114)

9. POPPER, Karl R. e ECCLES, John C. O eu e seucérebro. Campinas: Papirus 1977. p. 440s.

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Observando o esquema acima vemos que há3 componentes no mundo 2 que estão em comu-nicação: o mundo dos sentidos externos, o dossentidos internos e o mundo do “eu” e há umesquema central da Psique, Eu, Alma e da Vonta-de. Segundo Eccles, é comum compreender aVontade como operativa em um movimento vo-luntário em que as conseqüências morais são ava-

liadas pelo eu. Nesse caso, a ação determinadapela Vontade implica uma responsabilidade moral.Isso é ilustrado graficamente com as setas a partirdas “intenções” desenhadas através da Vontadeem direção ao cérebro de ligação e não direta-mente como seria o caso para uma ação voluntá-ria simples destituída de considerações morais, oque acontece com os animais. (Vide Figura 2)

FIGURA 2. Diagrama do fluxo de informação para as interações cérebro-mente de um cérebro de mamífero. Os dois componentes

do Mundo 2, Sentido Externo e Sentido Interno, estão representados com comunicações ilustradas por setas para o Cérebro de

ligação no Mundo 1. Notar-se-á que aos mamíferos é atribuído um Mundo 2 correspondente à sua consciência e que este Mundo

2 tem as mesmas características gerais, em termos de Sentido Externo e Sentido Interno, do Mundo 2 humano do Figura 9.5,

mas há uma ausência completa da categoria central do Psique, Eu ou Alma. (ECCLES, J. A evolução do cérebro. A criação do Eu.

Lisboa. Instituto Piaget, 1989. p. 281)

Eccles advoga que maior compreensão daquestão mente-cérebro depende de estudo por-menorizado dos neurônios (células nervosas),do córtex cerebral e das sinapses que são ospontos minúsculos de contato pelos quais umneurônio pode excitar outro.

Os dois esquemas abaixo representam a teo-ria da Identidade e do Dualismo-interacionismo.A Teoria da Identidade se baseia na afirmação deque cada evento mental é um evento cerebral ea teoria Dualismo-interacionismo admite havercomunicação entre a matéria e a mente.

No esquema apresentado (Figura 3), des-creve Eccles, há indícios de que pensamentosgerados internamente excitam fortemente neu-rônios de áreas especiais do córtice cerebral.Estes resultados exigem que se acrescente aodiagrama uma informação proveniente de acon-tecimentos mentais (AM) como se percebe pelassetas adicionais da Figura 3 — representação

diagramada do Dualismo-interacionismo —. Odisparo de neurônios AMN daria uma respostadiferente da que existiria na ausência dos acon-tecimentos mentais de atenção, pensamento si-lencioso ou intenção.

Consultando Bertrand Russell10 (1976) en-contramos a afirmação que a primeira coisa quedeve ser definida quando se trata da Vontade éo “movimento voluntário”. isso significa dizerque a Vontade é um ato voluntário acrescentan-do que “os movimentos acompanhados de sen-sações cinestésicas tendem a ser causados pelasimagens dessas sensações e quando assim cau-sados são voluntários”. Para Russell a volição émais que um movimento voluntário uma vezque há decisão depois da deliberação. Os mo-vimentos voluntários são uma parte disto, masnão tudo. A volição implica em juízo — “é isso

10. RUSSELL, Bertrand. Op. cit. p. 63s.

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vista a crença no livre arbítrio, é mais fácilentender que a causa da escolha está na almaou espírito do que entender que o cérebrocausa a Vontade. Del Nero apresenta váriasmaneiras de entender a Vontade e a causa daVontade recordando e analisando um episódiobíblico: a escolha de Adão por comer a maçãproibida. Ele recorta o relato bíblico e faz duasconsiderações, uma sobre o Livre arbítrio, ou-tra sobre o sítio cerebral da mente.

1. Livre arbítrio — o ato de liberdade eVontade de Adão comer a maçã proibida foi umaescolha: desejar ser igual a Deus, elevar-se dacondição de criatura a Criador. Havia liberdadede escolha, cérebro porém dentro de um campolimitado das escolhas possíveis. A Vontade sópodia escolher dentro de certos limites.

2. O sítio cerebral da mente — na pres-crição de Deus haveria matérias de escolha ematérias de aceitação tácita. Escolher quando nãohá condições para isso seria violar uma regrabásica da vida e do conhecimento. Nesse caso,não aceitar as limitações cerebrais para a menteimplicaria em não aceitar a sanidade e a ponde-ração. Há limites para a Vontade e para a Liber-dade, na concepção de Del Nero. No Gênesisisto estaria representado na proibição de acessoà árvore do bem e do mal.

Segundo Del Nero (2002), as estruturas res-ponsáveis no cérebro humano pela causaçãoou geração da Vontade, de planos e intenções,

FIGURA 3. Diagramas das teorias do mente e do cérebro, (a) Teoria da identidade. (b) Dualismo-interaccionismo. Os agrupamen-

tos de neurônios são representados por círculos. AN representa os neurônios convencionais, que respondem apenas acontecimen-

tos neuronais. AMN são neurônios que estão associados tanto a acontecimentos mentais como neuronais e estão agrupados num

círculo maior representando o sistema nervoso nas suas funções mais superiores. Em (b), as setas AM representam influências de

ordem mental agindo sobre a população neuronal que estão associadas tanto aos acontecimentos mentais como aos neuronais.

Todas as outras setas em (a) e (b) representam as linhas ordinárias de comunicação neuronal, que estão representadas em ação

recíproca no caso dos neurônios AMN. (ECCLES, J. A evolução do cérebro. A criação do Eu. Lisboa. Instituto Piaget, 1989.p. 286.)

(a) Teoria da identidade (b) Teoria dualismo-interacionismo

o que devo fazer”; há também uma sensação detensão durante a dúvida seguida de sensaçãodiferente do movimento de decidir. Para Russell,as sensações e as imagens com as suas relaçõese leis causais, fornecem tudo o que parece sernecessário para a análise da Vontade, juntamen-te com o fato de que as imagens cinestésicastendem a causar os movimentos com que elasestão relacionadas. O conflito do desejo é es-sencial na causação da espécie empática daVontade, haverá imagens cinestésicas dos movi-mentos incompatíveis seguidos de imagens ex-clusivas do movimento que se diz querer. Assima Vontade parece não acrescentar qualquer in-grediente novo irredutível à análise da mente.

Olhemos, com mais profundidade, o ladocientífico da questão. Del Nero11 (2002) afirmaque a Vontade é um dos pontos cruciais da mentehumana porque sobre ela se edifica a sociedadeuma vez que se supõe sermos livres para agir eescolher caminhos. Disso decorre a concepçãode uma mente mecânica e material parecer ab-surda. Há dificuldade em se entender a naturezacerebral da mente, diz Del Nero, porque a idéiade espírito /alma harmoniza-se mais com a no-ção de Vontade e de livre escolha. Tendo em

11. DEL NERO, Henrique Schützer. Patologias da Von-tade In: O sitio da mente: Pensamento, emoção e Vontadeno cérebro humano. São Paulo: Collegium Cognatio. 5. ed.2002; p. 283s e Base neural para a Vontade. Op. Cit. p. 426.

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estão alojadas numa área do neocortex — olobo frontal, Sabe-se disso porque uma sériede alterações nesse local estão associadas aanomalias. O ser humano é capaz de controlarações de modo voluntário e de modo automá-tico. O modo voluntário é lento, atento, cons-ciente, ligado ao aprendizado e ao início darealização de uma tarefa. O automático é rápi-do e não se tem consciência de sua operação.Na fase da aprendizagem a atenção é lenta evoluntária quando se automatiza ela é rápida enão-consciente. Quando se elege o controlevoluntário como conceito representante daVontade, pode-se medir o fluxo sanguíneocerebral durante a execução da tarefa. Quandohá novidade, aprendizado, consciência e con-trole voluntário, o fluxo sanguíneo se dirigepreferencialmente para as áreas frontais do cé-rebro. Quando se atinge certo grau de automa-tismo e destreza, o sangue vai para as áreasposteriores (no cerebelo). Se a Vontade temuma região cerebral preferencial de processa-mento mental, tem limitações. A mente poderesolver muitas coisas mas ela também tem assuas limitações. Del Nero concorda que não éfácil definir os limites para a Vontade no estadoatual de conhecimento sobre o cérebro. O quese sabe com certeza é que se alguém tem al-gum grau de desregulagem mental, a Vontadenão pode consertá-la. Se há determinação ce-rebral para algo, a Vontade nada pode fazer. AVontade opera cerebralmente dentro de certoslimites. Ainda que haja predisposição genética,há margem de manobra para a ação voluntária.

Analisando essas afirmações do autor con-cluímos que, nem sempre “o poder do pensa-mento” ou a “força de Vontade” são instrumen-tos eficazes para resolver problemas quandosua base fundamental está no cérebro ou emeventos mentais desconhecidos.

Del Nero (2002) considera a Vontade sobtrês perspectivas:

1.é ilimitada e não sofre a coação cerebral2.é uma ilusão, visto estar determinada por

um órgão físico3.é uma propriedade que emerge da com-

plexidade cerebral quando esta gera amente, sendo uma vivência que se agregaa alguma instância de controle sobre aação e a percepção (p. 285).Del Nero admite que a Vontade é uma pro-

priedade, mas a emergência de uma proprieda-de — Vontade — é inexplicável quando carac-terizada como fenômeno espiritual. Mas há umequivoco quando o dualismo de propriedadespermite que a Vontade-emergência seja quase

similar à Vontade-espírito. A Vontade, para DelNeo, é uma sensação que acompanha a sincro-nização de módulos que processam informaçãocerebral complexa e de outros que a redescre-vem sob a forma lingüístico-mental.

Para Del Nero, há três instâncias da Vonta-de que ele chama patologias:

1. a Vontade que se crê ilimitada porque elase vê como uma propriedade do espírito.

2. a Vontade que se crê capaz de enfrentar oconhecimento tomando-o por matéria de es-colha e opinião — uma ordem judicial de-terminou a uma doente contra a sua Vonta-de que ela se submetesse a diálise.

3. a Vontade é, de certa forma, a marca damente, como é marca do mental — e comomuitos distúrbios mentais se fazem acom-panhar de anomalia frontal, supõe-se que,de certa maneira, toda patologia mental éuma patologia da VontadeMas, pergunta Del Nero, até que ponto

uma Vontade pode agir sobre a disposiçãogenética ou adquirida por consolidação dehábitos e condicionamentos? Até que pontoalguém, pela força de Vontade poderia pararde fumar, de se drogar ou de beber compulsi-vamente? (Del Nero, 2002, p. 286).

Um fato relatado por Del Nero: há algunsanos foi confirmado haver um forte componen-te genético no alcoolismo. Um grupo de alcoó-latras tomando conhecimento desse fato solici-tou aposentadoria por invalidez alegando queeram doentes irrecuperáveis. A corte negou asolicitação por 4 votos a 3 alegando que emborahouvesse motivações orgânicas para o alcoolis-mo ainda restava a cada um a possibilidade deabandonar o vício, pelo exercício da Vontade. Apartir desse exemplo, Del Nero coloca uma di-ferença entre “Vontade-espiritual” e “Vontade —cerebral”. A Vontade que a corte julga necessáriapara os alcoólatras se livrarem do vício não éum ato de Vontade cerebral “é uma prerrogativaque emerge de algo que está acima do proces-samento cerebral subjacente. O exame da Von-tade e de sua base neural está diretamente liga-do à nossa concepção dos limites da ação hu-mana, reaparecendo, neste ponto a questão dalinguagem”. Para Del Nero (2002) não existe nocérebro humano um sistema neuronal específi-co responsável pela implantação da Vontade ouda liberdade. Vontade e liberdade são conceitoscontaminados pelas visões culturais que se temdeles. Há caracterização de certas ações contro-láveis e de outras não. Toda ação sobre a qualse tem controle poderia ser chamada ação livre

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ou produto da Vontade porque, havendo con-trole, o sujeito poderia ter agido diferentemen-te. A liberdade e a Vontade seriam apenas umaparcela das chamadas ações livres e voluntárias.Embora a neurociência raramente se julgue aptaa descrever o sítio cerebral de ambas — liberda-de e Vontade —, insere a noção de controlesobre a ação, elemento que pode redefinir embase neural esses dois conceitos atados à visãocultural da mente. Toda ação sobre a qual nãose tem controle seria situação de compulsãoretratada verbalmente como objeto de Vontadequer pelo sujeito da ação quer pelos seus juízos.Quando um sujeito relata que teve Vontade defazer uma coisa não há garantia de que tinhamesmo havido ou não a intenção de fazer essacoisa, apenas se tem certeza do uso descritivode sucedâneos lingüísticos de Vontade.

Se uma pessoa com perfil metabólico paraengordar diz que tem Vontade de emagrecer,faz todo tipo de dieta pela manhã e come com-pulsivamente à noite, isso não significa dizer queseja pessoa de pouca força de Vontade ou depouca fé. A “Vontade” de emagrecer que elaafirma é apenas a tradução intelectual de umconceito. Só será Vontade se houver controle.Se não houver controle, é compulsão. É pelorelato ou pelo estudo de suas condições cere-brais que se constatará as possibilidades de con-trole que o sujeito tem sobre determinados atos.

Del Nero concorda que atos voluntários elivres são aqueles em que há comprovadamentecondições cerebrais e não simplesmente verbaisou imputações externas de controle sobre a ação.

O gordo não é o que falha no regime nemo que não tem força de Vontade, é o que nãotem controle sobre os seus atos alimentares. Ele

admite, entretanto, ser difícil caracterizar o quesignifica controle cerebral porque há pessoas quese drogam contra a Vontade. Assim, um gordoque não controla sua ingestão alimentar podeter substâncias internas, neurotransmissores queo impedem de agir de outra maneira. O quepode ocorrer é uma desarmonia de certos cir-cuitos cerebrais. Para ele, deveria haver umanova concepção de Vontade emergente do re-conhecimento da mente como função cerebral.Prossegue dizendo que, enquanto não formoscapazes de fornecer limites cerebrais para os atosvoluntários de modo a instrumentalizar as insti-tuições na tarefa de julgar, deveremos pelomenos advertir quanto ao equívoco de suporque a Vontade e a liberdade sejam ilimitadas.Não sabemos até onde um indivíduo tem ounão controle de sua ação. Mesmo parecendo agirde forma intencional e livre, o indivíduo podenão ter nem Vontade nem liberdade intactas.Pode haver um equivoco lingüístico-cultural maisdo que hipótese de base neural. No caso de umgordo que se arrepende de comer muito doce,o que pode acontecer é que dadas certas condi-ções dos circuitos cerebrais há um disparo irre-freável do “comportamento de comedor de do-ces”. Ele se arrepende porque acha que poderiater agido diferentemente — acarrega culpa datransgressão pelo resto da vida e continua trans-gredindo, criando um nódulo existencial na suavida. Mesmo confessando sua culpa, ele podeser vítima da imagem que tem de si mesmo: aimagem de um comedor compulsivo e não deuma pessoa que tem Vontade cerebral diferenteda Vontade cultural.

Del Nero (2002) dá uma explicação neuralpara a consciência e, por conseguinte, para a

FIGURA 56. A consciência é posterior à gênese do plano do ato. A Vontade e a liberdade não surgem da planificação de um ato,função complexa não-consciente, mas de sua ratificação ou inibição enquanto ação possível ou desejável. (op. cit. p. 427)

Fonte: Del Nero, 45. O sítio da mente: pensamento, emoção e vontade no cérebro humano, 2002.

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Vontade livre. Ele mostra (ver Figura 4) haveruma base cerebral para a sensação de Vontadee de liberdade. Há na ação externa o resultadode dois processos: um complexo, não conscien-te, que desenha cenários de ação (devido a es-tímulos ambientais e ao recrutamento de memó-ria); outro que é o recrutamento de um monitorda ação presumida (do potencial de uma ação),a redescrição consciente dessa ação.

Quando ocorre a redescrição consciente, oconteúdo é consciente. Quando duas ordens (ada ação presumida e a da consciência como açãoredescrita) se sincronizam, há a mobilização detantas áreas cerebrais que se dispara a vivênciada consciência e também a possibilidade de ra-tificar ou abortar o esquema da ação. Quando seratifica, há a vivência da Vontade e quando aação é abolida, temos a vivência da prudênciaou da liberdade de escolher como agir. Tem-seassim uma explicação para a consciência e paraa Vontade. Segundo Del Nero (2002), a cons-ciência seria feita de três elementos: função, pro-cesso e vivência. Pela redescrição valorada (pro-cesso), através de sincronizações, estabeleço umanálogo (conteúdo) da ação e da percepção.

A função da consciência é monitorar vo-luntariamente a ação e a percepção presumidas.

Para Searle12 (1995, p. 156s), a causalidadeé geralmente considerada uma relação naturalentre eventos no mundo; a intencionalidade éconsiderada de diversos modos mas, em geral,como um fenômeno natural a integrar a ordemnatural — tanto quanto qualquer outro fenôme-no biológico. O problema que Searle coloca é ode saber se a causalidade pode ser intenciona-da. Pergunta ele: podem os estados intencionaisagir causalmente? Quando afirmamos que oevento A colidindo com o evento B causa omovimento de B, estamos aceitando uma visãotradicional de causalidade. Os princípios bási-cos da causalidade estão assentados sobre umateoria metafísica arraigada havendo pouca dife-rença entre um filósofo e outro quer assim seexplicassem:

1.o nexo causal em si não é observável.2.É possível observar regularidades causais.3.É possível observar certos tipos de seqüên-

cias regulares em que eventos de um dadotipo são seguidos de eventos de outro tipo;porém, além das regularidades, não se podeobservar uma relação de causação entreeventos.

4.Não podemos ver literalmente que um even-to causou outro.

5.Vejo eventos que estão causalmente rela-cionados; não percebo, porém, relação cau-sal além da regularidade.Em outro lugar, Searle fala sobre a causação

dos estados mentais e afirma que os processosmentais são causados pelo comportamento doselementos do cérebro13 (Searle, 1984, p. 35).

Searle não aceita a concepção científica domundo material e dá quatro características dosfenômenos mentais que tornam impossível in-seri-los nessa concepção.

A primeira é a consciência. É fato eviden-te que o mundo contém estados e eventosmentais conscientes, mas não é fácil ver comosistemas físicos podem ter consciência. Searleentende que a consciência é o fato central daexistência humana porque sem ela todos osoutros aspectos humanos da nossa existência —linguagem, amor, humor — seriam impossíveis.

A segunda é a intencionalidade. A inten-cionalidade é “a característica pela qual os nos-sos estados mentais se dirigem a, ou são acercade, ou se referem a, ou são de objetos e estadosde coisas no mundo diferentes deles mesmos”(op. cit. p. 21). Searle chama atenção para o fatode a intencionalidade se referir a intenções, cren-ças, desejos, esperanças, temores, amor, ódio,prazer, desgosto, vergonha, orgulho, irritação,divertimento e todos aqueles estados mentais,conscientes ou inconscientes que se referem a,ou são acerca do mundo, diverso da mente. Aquestão que se põe é como esta substânciadentro da cabeça pode ser acerca de algumacoisa. Como ela pode se referir a alguma coisa;

A terceira característica da mente é a subje-tividade dos estados mentais. Cada um sente assuas dores e não as dos outros. Os outros nãosentem a minha dor, não vêem o mundo comoeu vejo. Cada um vê e sente do seu ponto devista. Eu sou consciente de mim mesmo e dosmeus estados mentais internos e não sou cons-ciente do outro nem dos estados do outro. A partirdo séc. XVII, a realidade é pensada como algoque deve ser acessível a todos os observadoresque pensam que ela é objetiva. A questão queSearle coloca é como acomodar a realidade dosfenômenos mentais subjetivos à concepção cien-tífica da realidade enquanto totalmente objetiva?

A quarta característica é a causação men-tal. Supomos que os nossos pensamentos e

12. SEARLE, John R. causação intencional. In Intencio-nalidade. São Paulo: Martins Fontes, 1995 (1983) p. 156s.

13. SEARLE, J. R. Mente, cerebro e ciencia. Lisboa:Edições 70. 1984. p. 35.

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Recebido em 27 de agosto de 2004Aprovado em 28 de setembro de 2004

sentimentos são importantes para a maneiracomo nos comportamos, que há um efeito cau-sal sobre o mundo físico. Eu penso em levantarum braço e levanto um braço. Searle comenta:se os nossos pensamentos e sentimentos sãoverdadeiramente mentais, como pode algo men-tal originar uma diferença física? Pensamos queos nossos pensamentos e sentimentos produ-zem efeitos químicos em nosso cérebro e noresto do nosso sistema nervoso?

Estas quatro características que parecemproblemas para a relação corpo-mente são ca-racterísticas efetivas das nossas vidas mentaise qualquer explicação sobre as relações men-te-corpo deve levar em consideração essasquatro características. Searle (1984, p. 23) afir-ma que “os fenômenos mentais, todos os fenô-menos mentais, quer conscientes ou inconsci-entes, visuais ou auditivos, dores, cócegas,comichões, pensamentos, na realidade, toda anossa vida mental, são causados por proces-sos que tem lugar no cérebro”. A sensação dedor, por exemplo, é causada por vários even-tos que começam nas terminações nervosaslivres e terminam no tálamo e em outras re-giões do cérebro.

As teorias em voga sobre a causalidadeem relação aos atos de Vontade nos levam aconcluir que a Vontade pode ser causada tantopor fatores biológicos como por fatores cultu-rais e emocionais. O que vai nos orientar ondeestá a causa dos atos de Vontade de realizaralguma ação é o entendimento dos efeitos —comportamentos e condutas — resultantes daação executada pelo agente. Entende-se, dessemodo, que o ato pode ser voluntário ou invo-luntário dependendo do tipo de causalidadeque deu origem à Vontade de praticar determi-nadas ações. A causalidade da Vontade podeestar no cérebro, mas pode estar nas mentesquando intencionalizamos os nossos atos, oufora das mentes quando não intencionalizamosos nossos atos.

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