04 - O Movimento Etnico-social Pela Demarcacao Das Terras Guarani Em MS

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Tellus, ano 3, n. 4, p. 137-145, abr. 2003 Campo Grande - MS O movimento étnico -social pela demarcação das terras guarani em MS Levi Marques Pereira Resumo: O texto reflete sobre os significados que comportam algumas ações de reivindicação de demarcação de terras protagonizadas por comunidades guarani de MS. A hipótese de trabalho testa a possibilidade de esboçar a caracterização dessas ações enquanto um movimento social. Para isto recorro à bibliografia das ciências sociais que define os princípios e parâmetros de tais movimentos, para aferir em que medida eles se aplicam ao caso guarani de MS. Reúno dados expostos em minha dissertação de mestrado (PEREIRA, 1999), em dois laudos de identificação de Terra Indígena (PEREIRA, 2002a e 2002b) e em pesquisas recentes com vistas à elaboração da tese de doutorado. Utilizo também, em grande medida, os estudos de Brand (1993 e 1997), fundamentais para a compreensão do processo de perda da terra por parte de inúmeras comunidades guarani. Ao final, tento extrair duas conseqüências que decorrem da abordagem adotada no texto: 1) a primeira, de natureza teórica, permite caracterizar estas ações enquanto movimento social; 2) a segunda, de natureza política, exclui qualquer legitimidade para a alegação, freqüente em certos setores políticos regionais, de que tais ações seriam resultado direto da interferência de agentes políticos externos às comunidades guarani. Palavras-chave: Guarani/Kaiowá; demarcações de terras; movimento social. Mestre em antropologia social - UNICAMP. Doutorando - USP.

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  • Tellus, ano 3, n. 4, p. 137-145, abr. 2003Campo Grande - MS

    O movimento tnico-social pelademarcao das terras guarani em MS

    Levi Marques Pereira

    Resumo: O texto reflete sobre os significados que comportam algumasaes de reivindicao de demarcao de terras protagonizadas porcomunidades guarani de MS. A hiptese de trabalho testa a possibilidadede esboar a caracterizao dessas aes enquanto um movimento social.Para isto recorro bibliografia das cincias sociais que define os princpiose parmetros de tais movimentos, para aferir em que medida eles se aplicamao caso guarani de MS. Reno dados expostos em minha dissertao demestrado (PEREIRA, 1999), em dois laudos de identificao de TerraIndgena (PEREIRA, 2002a e 2002b) e em pesquisas recentes com vistas elaborao da tese de doutorado. Utilizo tambm, em grande medida, osestudos de Brand (1993 e 1997), fundamentais para a compreenso doprocesso de perda da terra por parte de inmeras comunidades guarani.Ao final, tento extrair duas conseqncias que decorrem da abordagemadotada no texto: 1) a primeira, de natureza terica, permite caracterizarestas aes enquanto movimento social; 2) a segunda, de natureza poltica,exclui qualquer legitimidade para a alegao, freqente em certos setorespolticos regionais, de que tais aes seriam resultado direto dainterferncia de agentes polticos externos s comunidades guarani.Palavras-chave: Guarani/Kaiow; demarcaes de terras; movimentosocial.

    Mestre em antropologiasocial - UNICAMP.Doutorando - USP.

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    Abstract: The text reflects upon the meanings that are proportionate to certain landclaim actions led by the Guarani community of South Mato Grosso. The hypothesisof the study tests the possibility of drafting the characterization of these actions asa social movement. The bibliography used is that of the Social Sciences that definesthe principles and parameters of such movements to gauge in what degree they areapplied to the MS Guarani case. Data from my Masters dissertation is included intwo indigenous land identification reports (PEREIRA, 2002a and 2002b) and tworecent studies with a view to the elaboration of a doctoral thesis. Also used extensivelyare Brands studies (1993 and 1997), which are fundamental to the comprehensionof the land losing process faced by several Guarani communities. Finally, twoconsequences are extracted from the approach of the text: 1) of a theoretical nature,allows the description of these actions as a social movement; 2) of a political nature,excludes any legitimacy for the allegation that is frequent in some political andregional sectors that such actions would be the direct result of external interferenceof political agents in some Guarani communities.Key words: Guarani/Kaiow; land demarcation; social movements.

    Breve retrospectiva sobre o contexto etnogrfico de reivindicao deterra

    Discuto aqui algumas aes de mobilizao poltica de comunidadesguarani em defesa de suas terras. Tive oportunidade de acompanhardiretamente o desenrolar de vrias destas aes e seus desdobramentosno perodo em que trabalhei como indigenista, primeiro na Misso Meto-dista Tapepor, e em seguida no Projeto Kaiow-andeva. A mobilizaoindgena em torno da demarcao da terra tradicionalmente ocupadapela comunidade de Piraku discutida mais detalhadamente, com oobjetivo de definir as caractersticas que este fenmeno poltico assumeentre os Kaiow. Na seqncia, acrescento informaes sobre casos deoutras comunidades. A discusso dos casos particulares permite demons-trar que as aes polticas se caracterizam como um movimento tnico,j que o potencial mobilizador est inerentemente relacionado s caracte-rsticas organizacionais e aos valores culturais do grupo, mas evidenciatambm que as aes assumem as feies de um movimento social,segundo as definies correntes nas anlises sociolgicas1.

    Piraku um tekoha-aldeia situado no municpio de Bela Vista, smargens do rio Apa, extremo norte do territrio tradicional kaiow. Estacomunidade logrou permanecer na parte de mata, no fundo da fazendaque ocupou suas terras, at incio da dcada de 1980, quando foramdescobertos por Maral de Sousa, um Guarani que na poca trabalhavacomo enfermeiro da FUNAI na localidade de Campestre, onde tambm

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    residia uma comunidade kaiow. Procurado por Maral e por lderes dacomunidade de Piraku, o Conselho Missionrio Indigenista, organizaoligada CNBB, tornou pblica a situao da comunidade, que comfreqncia era pressionada pelo fazendeiro Lbero Monteiro para quedeixassem a terra onde sempre viveram. Aos poucos a FUNAI acaboupor se ver forada a reconhecer a existncia dessa comunidade, mas osencaminhamentos administrativos para garantir aos ndios a posse daterra continuavam amordaados pela burocracia estatal e pela pressode polticos de MS, defensores incondicionais dos direitos de propriedadelegal do fazendeiro, em detrimento da posse tradicional indgena.

    Em Piraku, os Kaiow discutiam o futuro da comunidade e aspossibilidades de permanncia na terra. Aos poucos a comunidade foi semobilizando e criando um consenso em torno da defesa intransigente daterra. Mobilizados, passaram a pressionar a FUNAI para que reconhecessea terra, entretanto o tempo passava e a comunidade no aferia maioresresultados com as gestes e presses junto ao rgo indigenista oficial.Cansados de esperar por uma soluo diplomtica e no suportandomais as presses do fazendeiro que com freqncia ameaava a comu-nidade de despejo, atravs da presena constante de seguranas armados,resolveram agir por conta prpria.

    Desta mobilizao surgiu um lder de nome Lzaro Morel, jfalecido, que assumiu a responsabilidade de convencer lderes de outrascomunidades a apoiar a comunidade de Piraku na demanda pelademarcao da terra. Lzaro realizou uma verdadeira peregrinao pordiversas reas guarani expondo para seus lderes os problemas enfren-tados por sua comunidade e a importncia de contarem com o apoiopara a realizao de uma mobilizao de grande impacto. Cobroutambm da FUNAI e de outras organizaes indigenistas que se posicio-nassem ao lado da comunidade na disputa com os fazendeiros. A posturafirme e determinada na cobrana de apoio para a resoluo do problemada terra tambm foi adotada pelas lideranas de outras comunidades eisto surpreendeu muitos dos representantes destas agncias, pois estra-nharam a mudana de comportamento das lideranas indgenas, queantes pareciam aceitar com resignao os desmandos impostos pelosfazendeiros, administradores e polticos na regio.

    Foi assim que em 1986, Lzaro Morel dirigiu um amplo movimentode desintruso da terra reivindicada pela comunidade de Piraku, con-tando com o apoio de guerreiros armados, oriundos de diversas comuni-dades guarani de MS. Da mobilizao participaram inclusive os Terenade Dourados. Tal evento teve um grande impacto na imprensa e em

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    setores da sociedade civil (nacional e internacional) simpticos garantiados direitos indgenas, forando a FUNAI a encaminhar uma soluodefinitiva para o problema. Disto resultou a incluso da referida rea norol das terras que seriam objeto de estudos de demarcao.

    Concludas as aes mais prementes visando assegurar os direitosda comunidade, a mobilizao se diluiu, bem como o grande reconheci-mento poltico que Lzaro havia conseguido capitalizar naquele mo-mento. Da em diante passou a ser considerado como um lder importante,pois havia demonstrado grande capacidade de agregar as pessoas e defazer com que, em conjunto, agissem com vista a atingir um fim deter-minado. Porm, Lzaro foi destitudo de qualquer poder de mando, tor-nando-se uma liderana comum, com influncia restrita ao pequenocrculo de parentes prximos. Esta forma um tanto ingrata de tratar seulder esboa uma aparente contradio do sistema poltico kaiow. Porsua parte, Lzaro sempre fazia questo de relatar para pesquisadores,missionrios e outros visitantes de passagem por Piraku, o feitoextraordinrio que foi a grande mobilizao para a demarcao da terra,da qual se considerava o principal protagonista. Entretanto, a comunida-de parecia ter realizado um esforo deliberado de esquecimento do feitode seu lder, dando pouca importncia a esses relatos e no o poupandode crticas quando seu comportamento era julgado inadequado de acordocom as normas de conduta social do grupo. Com o tempo, surgiramoutros lderes que a comunidade julgava mais aptos para conduzir osassuntos da coletividade e Lzaro foi destitudo do cargo de capito (lderoficial do grupo) e relegado a um segundo plano. Este procedimento estem consonncia com as caractersticas organizacionais prprias aomodelo de poltico na sociedade guarani, onde a chefia poltica menosuma posio estvel, vitalcia ou hereditria, que uma performance queem cada momento se institui e se negocia com a comunidade a partir dedemandas especficas e circunstanciais (PEREIRA, 1999).

    O sucesso das aes solidrias das comunidades guarani que parti-ciparam da mobilizao em torno da demanda da demarcao da terrada comunidade de Piraku, serviu como um paradigma para comu-nidades que enfrentam problemas anlogos, inaugurando uma nova fasena relao dos guarani com os fazendeiros que com eles disputam a possedas terras, com as Ongs que os apoiam e, principalmente, com o rgoindigenista oficial FUNAI. Os lderes das comunidades cujas terras aindano foram reconhecidas e demarcadas pelo Estado, denominadas poreles como reas de conflito, constataram, a partir da experincia dePiraku, que a garantia de suas terras s vir se forem capazes de mobilizar

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    o apoio de outras comunidades guarani, de setores do indigenismo e dasociedade civil, como afirmou Ambrsio, lder da comunidade deGuyrarok: se o ndio ficar s esperando do governo e no tomar afrente e lutar pelos seus interesses, nada acontece, o governo s ficasentado atrs da mesa.

    A partir do incio da dcada de 1990, o campo do indigenismo emMS, confrontou-se com sucessivas tentativas de comunidades guarani dereocuparem terras tradicionais, das quais foram alijados pelo processohistrico de ocupao da regio pelas frentes agropastoris. Aparece comfora a reivindicao das comunidades de Cerrito, Jaguapir, Paraguasu,Sete Cerros, Guasuty, Jaguary e Jarar. A demarcao destas reas foi umpercurso cheio de percalos administrativos e judiciais, conflitos e aesdeterminadas e intransigentes das comunidades em defesa de seus direitos.Ao final, estas comunidades tiveram suas terras asseguradas e o sucessoestimulou dezenas de comunidades que se encontram fora de seusterritrios de origem, a tambm reivindicar a demarcao de suas terras.

    Atualmente, um nmero significativo de comunidades encontram-se mobilizadas em torno da demanda de suas terras. A estruturao destasaes segue sempre o modelo descrito para Piraku, onde a comunidadese mobiliza em torno da demanda objetiva da demarcao e destamobilizao emerge um lder que negocia ou costura as alianas com ascomunidades politicamente solidrias, assumindo a conduo das aesat que elas atinjam o objetivo proposto. De fundamental importncianestas mobilizaes tem sido o papel desempenhado pelas lideranasreligiosas2, cujos rituais aglutinam as pessoas e fornecem a necessriasegurana para as situaes de risco a que se expem (PEREIRA, 1999;2002a; 2002b). O ritmo das mobilizaes das comunidades guarani seguea lgica do fluxo e do refluxo, de acordo com a capacidade de suaslideranas de construir as redes internas e externas de apoio. Dependeainda do grau de abertura que o cenrio poltico nacional apresenta parasuas demandas e da rede de apoio das organizaes indigenistas que oslderes indgenas conseguem estabelecer em cada momento.

    A reivindicao da demarcao das terras guarani enquantomovimento social

    necessrio agora apontar as caractersticas dos casos etnogrficosapresentados no item anterior que permitem identific-los como inseridosem um movimento social. Em primeiro lugar, deve-se precisar como ascincias sociais definem tais fenmenos.

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    Rios (1987, p. 799) afirma que os movimentos sociais expressamuma conscincia de grupo e de afinidades percebidas por indivduossubmetidos s mesmas presses. Isto seria uma das condies para osurgimento de tais movimentos. Consultando os estudos que enfocam oprocesso de expulso das comunidades guarani em MS3, ocorrido princi-palmente nos ltimos 60 anos, nota-se que eles descrevem que a aodesestruturadora produzida pelas frentes de ocupao agropastoril,atingiu a totalidade das terras guarani em MS, embora algumas comu-nidades lograram permanecer em fraes de terras que anteriormenteocupavam, enquanto outras foram expulsas e, em conseqncia, tiveramque se refugiar nas reservas demarcadas, destinadas a concentrar apopulao indgena. Todas as comunidades comungam a situao doassdio, presso e violncia que representa o contato com as frentescolonizadoras. Este fenmeno est na base do surgimento de umaconscincia de participao em uma histria comum, aproximandocomunidades distintas em torno de um mesmo problema: a perda doespao fsico necessrio reproduo fsica e cultural sociedade, de acordocom sua estrutura social e princpios cosmolgicos.

    A situao histrica atual remodelou a forma de relao entre ascomunidades. Isto se deu, entre outros fatores, pelos seguintes motivos:a) cada comunidade dispunha, at a chegada das frentes de ocupaoagropastoris, de sua prpria terra, isto lhe facultava a opo de definircom quais comunidades se relacionar e a forma e freqncia dessainterao. Entretanto, com o confinamento4 nas reservas, passam a convi-ver com comunidades com as quais inexistiam vnculos sociais de paren-tesco, aliana poltica e solidariedade religiosa. Resultam da srios proble-mas de convivncia; b) na reserva as comunidades passam a dividir umespao exguo e so foradas a competir por recursos ambientais escassos,isto gera uma situao de stress ambiental; c) a constituio de uma malhaviria e a facilidade de transporte e de comunicao, intensificou eampliou o trnsito de informaes entre as comunidades; d) a constituiode um amplo leque de instituies indigenistas, ligadas ao governo e asetores da sociedade civil, criou um campo de alianas de fundamentalimportncia para as tentativas de resoluo dos impasses vividos pelascomunidades guarani. este novo ambiente de vida que implicar naelaborao de um novo formato para as relaes que se estabelecem entreas distintas comunidades. tambm essa nova situao histrica quecria as necessidades e as condies para o surgimento do movimentosocial pela demarcao das terras.

    A atuao das comunidades guarani, exigindo a demarcao de

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    suas terras, emergiu em distintos locais nas ltimas dcadas. Inicialmenteas aes tinham pouca conexo direta entre si e, enquanto fenmenosrelativamente isolados, eram muitas vezes neutralizados pelas forascontrrias aos interesses indgenas. A partir da dcada de 1970, as aesdas comunidades submetidas a uma situao comum comeam a ganharvisibilidade e articulao. Nesse perodo tambm passam a receber o apoiode organizaes indigenistas da sociedade civil que iniciam a atuao naregio. Assim, as comunidades com problemas de terras comeam aensaiar os primeiros passos buscando uma maior articulao e apoiopoltico mtuo. A continuidade no tempo destas aes mais um aspectoque aproxima as aes das comunidades guarani de um movimento socialque correspondem a fenmenos mais estveis, no tempo e no espaosocial (SILVA, 2002, p. 16).

    As aes isoladas de diversas comunidades guarani em MS, visandoassegurar seus direitos s terras que tradicionalmente ocupavam, naforma como haviam predominado at a dcada de 1970, transformam-se, a partir desta data, em eventos polticos capazes de aglutinar po-pulaes de vrias comunidades. A mudana altera a maneira como,at ento, vinha sendo tratado o direito destas comunidades s suasterras. Os lderes procuram reverter a tendncia predominante de perdacrescente das terras ocupadas por comunidades guarani para as frentescolonizadoras, estabelecendo um ordenamento das relaes entrecomunidades que permita confrontar, com objetividade, o problemacomum. A ao poltica visando a ruptura com a situao vigente e ainstaurao de uma nova ordem social, a exemplo das aes de reocu-pao de terras guarani aqui analisadas, so justamente aspectos queentram na caracterizao dos movimentos sociais.

    Deve-se considerar ainda que o movimento social dos guarani conduzido por ndios que se constituem enquanto lideranas polticas ereligiosas. Entretanto, a posio de representao no ocupada por umlder em carter permanente e incondicional, como ficou claro a partirda anlise da posio de Lzaro, lder de Piraku. De acordo comprocessos de instituio da liderana, prprios sociedade guarani, older ser aquele que em determinado momento e frente a uma situaoespecfica, for capaz de estabelecer um consenso mnimo entre as posies,o que no impede de algumas pessoas permanecerem por perodos longosna posio de liderana, desde que demonstrem capacidade de reconstruirconstantemente sua base de apoio e legitimao, sempre colocadas emquesto pelo fluir da vida social.

    O movimento guarani mobiliza as comunidades em torno de uma

  • causa objetivamente definida: a defesa das terras, este o motivo queconcentra todo o sentido das aes coletivas. No existe nenhumregimento ou estatuto regendo a conduta das lideranas envolvidas nomovimento, sendo esta mais uma caracterstica geral que define osmovimentos sociais, pois a adeso se d sempre pela simpatia ou por sesentir participante da causa, no pela incluso em carter formal. Aliderana no dispe de um dispositivo legal a partir do qual possa exercero controle e poder poltico, por isso que o comportamento das lideranasse constri na interao direta com os participantes do movimento,segundo a demonstrao de compromisso e de capacidade de mobili-zao em torno da demanda coletiva estabelecida pela prpriacomunidade. Dessa forma, a eleio de comisses para discutir comrepresentantes do governo, mobilizaes da opinio pblica, conduode aes de reocupao de terras, montagem de estratgias de defesa esegurana das ocupaes, etc. passam sempre por decises que devemser tomadas por toda a comunidade em reunies gerais.

    O carter de movimento se explicita tambm na dissoluo damobilizao to logo esta tenha atingido seu objetivo. Assim ocorreu comPiraku em 1986, Jaguapir, Paraguassu e Sete Cerros entre os anos de1991-1992. Em cada um desses casos, as lideranas locais se alaram aum nvel de importncia excepcional para o padro estabelecido pelosistema poltico Kaiow, dirigindo um grande contingente de populaovinda de diversas reas para apoiar a comunidade local na demandapela posse da terra. Uma vez assegurada a demarcao da terra,desapareceu o motivo que os unia e mobilizava; as pessoas pertencentesas comunidades solidrias, ao movimento, retornaram aos seus locais deorigem e a liderana local perdeu visibilidade e importncia, voltando aum patamar prximo ao ocupado por um habitante comum de umarea guarani.

    Pensar as aes das comunidades guarani para assegurar o direito posse das terras tradicionais como movimento social, alm das impli-caes tericas aqui brevemente enunciadas, tem tambm implicaesde natureza poltica. Estas ltimas permitem dissolver alguns mitos quepredominam em determinados setores da poltica regional de que os ndiosque se envolvem nessas disputas estariam sendo insuflados e dirigidospor interesses escusos de determinadas organizaes indigenistas. Ora,o simples fato de que a mobilizao indgena se caracterize comomovimento social j descarta essa possibilidade. Na verdade, nem oprprio movimento indgena possui lideranas fixas, elas surgem edesaparecem com as demandas das comunidades pela posse da terra.

  • Tais demandas tm sua origem e fundamento no prprio processo deocupao das terras no Estado pelas frentes agropecurias, que foiincapaz de assegurar aos ndios as terras que tradicionalmenteocupavam. O rgo indigenista oficial (SPI, FUNAI), mesmo dispondode uma poltica indigenista que garantia o direito indgena s terras poreles tradicionalmente ocupadas, foi incapaz de assegurar a demarcaodestas terras. justamente esta demanda que eclode no movimento socialdos Guarani pela demarcao de suas terras.

    Notas1 Por exemplo Rios (1982).2 A participao dos xams fundamental, motivo pelo qual um lder poltico semprebusca apoio de uma liderana religiosa para apoiar a comunidade no esforo deretorno para a terra de origem. Alguns xams so considerados especialistas emquestes de demarcao, pois so os conhecedores das rezas que garantem a eficciadas aes.3 Por exemplo, Brand (1993 e 1997) para um panorama geral e Pereira (2002a e2002b) para casos especficos.4 O termo definido por Brand (1993), como a reduo compulsria de vriascomunidades guarani nas pequenas reas demarcadas como reservas.

    Bibliografia

    BRAND, A. J. O confinamento e seu impacto sobre os Pa-Kaiow. Dissertao (Mestrado) Pontifcia Universidade Catlica de Porto Alegre, Porto Alegre, 1993._____. O impacto da perda da terra sobre a tradio kaiow/guarani : os difceis caminhosda palavra. Tese (Doutorado em Histria) - PUC/RS, Porto Alegre, 1997.PEREIRA, Levi M. Parentesco e organizao social Kaiow . Dissertao (Mestrado) Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Cincias Humanas,Campinas, 1999._____. Relatrio de identificao da Terra Indgena Guyra Rok. Municpio de Caarap,Mato Grosso do Sul. Documentao Funai. Braslia, 2002a. (mimeo)_____. Relatrio de identificao da Terra Indgena Arroio Kora. Municpio de Paranhos,Mato Grosso do Sul. Documentao Funai. Braslia, 2002b. (mimeo)RIOS, J. A. Movimentos sociais. Dicionrio de Cincias Sociais. [S.l.]: FGV/MEC, 1982.SILVA, M. F. Antropologia e movimento indgena na Amaznia Brasileira. IX CONGRESSODE ANTROPOLOGIA, 9., Barcelona, 2002. Comunicao apresentada.