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SomanluRevista de Estudos Amaznicosano 3, n. 1/2, jan./dez. 2003

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONASPRESIDENTE DA REPBLICA Lus Incio Lula da Silva MINISTRO DA CINCIA E TECNOLOGIA Eduardo Campos GOVERNADOR DO ESTADO DO AMAZONAS Eduardo Braga VICE-GOVERNADOR DO ESTADO DO AMAZONAS Omar Aziz SECRETRIA DE ESTADO DE CINCIA E TECNOLOGIA Marilene Corra da Silva Freitas DIRETOR-PRESIDENTE DA FUNDAO DE AMPARO PESQUISA DO ESTADO DO AMAZONAS Jos Aldemir de Oliveira MINISTRO DE ESTADO DA EDUCAO Tarso Genro REITOR Hidemberg Ordozgoith da Frota VICE-REITORA Neila Falcone da Silva Bonfim PR-REITOR DE PESQUISA E PS-GRADUAO Jos Ferreira da Silva DIRETOR DO INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E LETRAS Maria Izabel de Medeiros Valle COORDENAO DO PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SOCIEDADE E CULTURA NA AMAZNIA Elenise Faria Scherer CONSELHO EDITORIAL Elenise Faria Scherer, Ernesto Renan Freitas Pinto, Joo Bosco Ladislau de Andrade, Jos Aldemir de Oliveira, Lus Balkar S Peixoto Pinheiro, Mrcia Perales Mendes Silva, Marcos Frederico Krger Aleixo, Maria Izabel de Medeiros Valle, Marilene Corra da Silva, Narciso Jlio Freire Lobo, Nelson Matos de Noronha, Odenildo Teixeira Sena, Selda Vale da Costa, Walmir Albuquerque Barbosa, Yoshiko Sassaki. COMISSO EDITORIAL Elenise Faria Scherer Nelson Noronha Narciso Jlio Freire Lobo

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Copyright 2004 Universidade Federal do Amazonas EDITOR Renan Freitas Pinto COORDENADORA DE REVISTAS Prof. Dayse Enne Botelho FINALIZAO DA CAPA Wilson Prata CONCEPO GRFICA Marcicley Rego FOTO DA CAPA Andria Mayumi EDITORAO ELETRNICA Elton Neves/Rogrio Cordovil REVISO DE ABSTRACTS Paulo Renan Gomes da Silva REVISO DE PORTUGUS Renan Freitas Pinto A exatido das informaes, conceitos e opinies so de exclusiva responsabilidade dos autoresPublicada em Julho de 2004Somanlu: Revista de Estudos Amaznicos do Programa de Ps-graduao em Sociedade e Cultura na Amaznia da Universidade Federal do Amazonas. Ano 1, n. 1 (2000 - ). - Manaus: Edua/FAPEAM, 2000 v.: il.; 17 x 24cm. Semestral At 2002 publicao anual e vinculada ao PPG Natureza e Cultura na Amaznia. Interrompida em 2001. ISSN 15118-4765 1. Cultura Amaznica 2. Amaznia - Sociologia 3. Amaznia - Antropologia I. Programa de Ps-Graduao em Sociedade e Cultura na Amaznia. CDU 316.722(811)

Editora da Universidade Federal do Amazonas Rua Monsenhor Coutinho, 724 - Centro Telefax: (0xx) 92 231-1139 e-mail: [email protected] CEP 69.010-110 Manaus/AM

Esta obra foi publicada com o apoio financeiro da: FAPEAM Fundao de Amparo Pesquisa do Estado do Amazonas Rua Recife, n 3.280 - Parque Dez fone: (0xx92) 634-3389 CEP 69.057-002 Manaus/AM

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Natureza e cultura na Amaznia: evoluo e tendncias da pesquisa e da ps-graduao Nelson Matos de Noronha ........................................................ 7 Meditao e devaneio: entre o rio e a floresta Joo de Jesus Paes Loureiro ....................................................... Os enredos caboclos e nativistas nas toadas dos Bois-Bumbs Garantido e Caprichoso, heris do Festival Folclrico de Parintins Maria Eva Letzia ...................................................................... Escolas indgenas: a que ser que se destinam? Mrcio Silva ............................................................................... Uma comunidade da vrzea: organizao e morfologia social Marilene Corra da Silva/Jos Fernandes Barros..................... Polticas agrrias e polticas ambientais na Amaznia: encontros e desencontros Ktia Helena Serafina Cruz Schweickardt .............................. Polticas energticas no Estado do Amazonas: implicaes e questes em face do meio ambiente Andr Jun Miki .......................................................................... Manaus ontem e hoje: transformaes do espao urbano e memria popular

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Lucynier Omena Melo .............................................................. Cidades desaparecidas: Poiares, sculo 18 Patrcia Melo Sampaio ............................................................. Ps-modernidade: uma tentativa de reflexo sobre sua expresso econmica, poltica e cultural Marinez Gil Nogueira .............................................................. Filosofia, antropologia: o fim de um mal-entendido Claude Imbert .......................................................................... Dissertaes defendidas at 2001 ................................................... Roteiro para elaborao de artigos .................................................

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ApresentaoA revista Somanlu se consolida e se afirma como a Revista do Programa de Ps-Graduao em Sociedade e Cultura na Amaznia da Universidade Federal do Amazonas assegurando assim a sua continuidade como um peridico marcadamente multidisciplinar, guardando estreita relao com o que se pesquisa e escreve sobre a Amaznia, principalmente nas Cincias Humanas, mantendo ainda a identidade com a reformulao do curso de mestrado. Os artigos selecionados para o presente nmero levantam indagaes e expressam inquietaes substantivas sobre a Amaznia. Essa a principal caracterstica da revista: ser mltipla no apenas por abarcar reas diversas do conhecimento, mas porque interpreta no uma Amaznia, mas Amaznias, a partir de diferentes pontos de vista. Portanto, os artigos selecionados constituem um conjunto de textos de flego que aponta para o fato de que a construo da problemtica amaznica, mais do que uma questo local, mundial. A reformulao do Programa, estabelecida por meio de uma ao entendida como a capacidade poltica e cientfica de criar uma ordem de coerncia, visou a busca da compreenso dos variados e complexos processos envolvidos na produo da Amaznia no sculo 21. Para isso, a realizao de estudos pontuais extremamente importante como tambm a criao de condies para o intercmbio de idias numa inter-relao permanente entre o marco terico conceitual e os dados objetivos de pesquisas de campo, de modo complementar. Neste sentido, a publicao de reflexes de pesquisadores de diversos lugares do Brasil e do mundo possibilita-nos vises diferenciadas da cincia e da Amaznia que, postas lado a lado com os resultados de pesquisas de alunos e professores ligados ao Programa, permite o intercmbio de conhecimentos e de idias fundamentais para o crescimento da cincia e para a compreenso de processos culturais que fazem da Amaznia um complexo e diferenciado espao sociocultural. Por outro lado, os artigos aqui apresentados articulam teoria e prtica. O foco da revista a discusso de temas relacionados Amaznia a partir da realidade local. Por isso, mesmo os textos marcadamente tericos, revelam o plano do vivido, explicitando referenciais, identidades e lutas que revelam a produo sociocultural da Amaznia.Somanlu, ano 3, n. 1/2, jan./dez. 20037

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Partindo desse pressuposto, no artigo de abertura, Nelson Matos de Noronha analisa o processo que culminou com a transformao do ponto de vista curricular, pedaggico e conceitual do Programa Natureza e Cultura na Amaznia para o Programa em Sociedade e Cultura na Amaznia. Mais do que a simples mudana de denominao, o artigo analisa as tendncias e a evoluo do programa, associando o aparecimento do Mestrado as representaes que constituem formas da existncia humana na Amaznia. No artigo seguinte Joo de Jesus Paes Loureiro, poeta e importante intelectual da Amaznia envolvido com a difuso dos enigmas da regio, articula arte com a natureza, visando construir a dimenso transfiguradora que preside as trocas e tradues simblicas da cultura amaznica. Na mesma linha, mas numa dimenso pontual, o texto da pesquisadora portuguesa radicada na Frana Maria Eva Letzia que analisa os enredos nativistas dos Bois-Bumbs de Parintins. Inicialmente a autora traa a origem do boi-bumb e assinala que o festival de hoje j tem outros objetivos que no se resumem ao simples reverenciar do boibumb, j que no folclore amaznico os ingredientes nativistas ou indigenistas ultrapassam largamente o quadro do antigo auto popular. O Prof. da USP Mrcio Silva analisa o surgimento das escolas indgenas nas ltimas duas dcadas e o modo como a escola oportuniza a aquisio da educao formal, pelo menos em p de igualdade com o resto da comunidade nacional. O autor sustenta que a criao das Escolas Indgenas corresponde a uma das reivindicaes mais freqentes dos povos e organizaes indgenas no Brasil. O autor aponta a importncia das escolas indgenas sem esquecer de destacar as dificuldades enfrentadas para a superao dos velhos modelos e prticas pedaggicas associadas escola tradicional. O artigo da professora Marilene Corra da Silva e do socilogo Jos Fernandes Barros, alm de seu mrito sociolgico, tem particular relevncia por focalizar uma rea de vrzea da Amaznia especificamente o municpio de Manacapuru no Estado do Amazonas, onde os autores participam de um projeto de pesquisa-ao o Projeto Pyra. O texto desvenda a configurao da organizao coletiva, a distribuio do poder poltico e econmico entre as camadas sociais locais, remetendo a um diagnstico analtico do contexto rural, a fim de propiciar subsdios que contribuam para a formulao de polticas de sustentabilidade para a vrzea da Amaznia.

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Dois textos correspondem a pesquisas que deram origem a dissertaes de Mestrado. O primeiro de autoria de Ktia Helena Serafina Cruz Schweickardt analisa a interface entre as polticas agrrias e as polticas ambientais na Amaznia, estabelecendo o nexo entre projetos de assentamento rurais e unidades de conservao estabelecidos em reas coincidentes. A autora analisa as estratgias para a produo do espao na regio, tendo como ponto de partida um assentamento localizado nas cercanias da cidade de Manaus. O segundo, de autoria de Andr Jun Miki discute a gerao de energia e suas implicaes polticas em face da sustentabilidade econmica, ambiental e social. A concluso que a gerao de energia eltrica no Estado do Amazonas ainda valoriza o modelo monomatricial implantado na dcada de 60. Como resultado de pesquisa para realizao de trabalho de concluso de curso o texto de Lucynier Omena Melo, que analisa uma festa num bairro na Manaus. A pesquisa foi desenvolvida a partir de um estudo de caso acerca das festas populares na cidade sob o prisma das obras de memrias de dois reconhecidos autores amazonenses: Thiago de Mello e Jefferson Pres. A opo pela comparao com a Manaus do passado deu-se pelo fato de a comemorao escolhida, uma festa junina, fundamentar-se na tradio e na repetio, que mostra os elementos que se perderam ou se modificaram no decorrer do tempo. O artigo da professora Patrcia Melo Sampaio recupera a trajetria histrica de uma povoao colonial da Capitania do Rio Negro, Poiares, com a finalidade de estabelecer indicadores que permitam a compreenso do processo de aparecimento e desaparecimento de povoaes que existiram no rio Negro. A idia central desenvolvida no texto a de que as povoaes, criadas sombra da estruturas administrativas da Capitania de So Jos do Rio Negro, eram ncleos marcados pela artificialidade e pela transitoriedade, porque eram imposies que se contrapunham s estruturas locais preexistentes e tambm porque eram profundamente dependentes dos estmulos oriundos da estrutura estatal. Dois textos apresentam discusses tericas generalizantes. No primeiro, a professora da Universidade Federal do Amazonas Marinez Gil Nogueira discute o sentido da ps-modernidade como uma situao de transio no interior do prprio sistema capitalista, direcionada para novas formas de acumulao de capital e de dominao poltica. No segundo artigo, Claude Imbert, professora de Filosofia da

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cole Normale Suprieure de Paris, apresenta uma instigante discusso da relao entre Filosofia e Cincias Humanas e como esse processo ocorreu historicamente desde a herana kantiana, passando por Durkheim, Lvi-Strauss, concentrando-se especialmente em Merleau-Ponty. Finalmente a Revista apresenta um resumo das dissertaes defendidas no perodo de 2000 a 2001. Os prximos nmeros continuaro com a publicao desses resumos visando mostrar o perfil das pesquisas desenvolvidas no Programa que buscam abordar diferentes problemas da Amaznia, pondo tona, discutindo e, na medida do possvel, apontando, a partir do conhecimento cientfico e prtico, solues para a melhoria da qualidade de vida dos amaznidas.

Editores

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Artigos

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Natureza e cultura na Amaznia: evoluo e tendncias da pesquisa e da ps-graduao 1

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ResumoNo artigo, analisam-se os propsitos, as linhas de pesquisa e a estrutura curricular do Programa de Ps-Graduao Natureza e Cultura na Amaznia tais como se apresentavam no segundo semestre de 2000. A anlise das tendncias e da evoluo do programa procura associar a histria do aparecimento de um programa de pesquisas voltado para a investigao das prticas sociais e as representaes que constituem as formas da existncia humana na Amaznia histria recente do aparecimento e das transformaes tericas e metodolgicas das cincias humanas.

Palavras-chaveAmaznia; pesquisa; ps-graduao.

Nota do Editor: O texto possibilitou a discusso do Programa de Ps-Graduao ensejando, entre outras, a mudana do Programa para Programa de Ps-Graduao em Sociedade e Cultura na Amaznia. 2 Doutor em Filosofia, professor do Departamento de Filosofia e do Programa de Ps-Graduao em Sociedade e Cultura na Amaznia da Universidade Federal do Amazonas.1

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AbstractThe purposes, the research areas and the curriculum structure os the M.A. Program in Nature and Culture in the Amazon as effective on the second semester of 2000 are reviewed. The review of trends and the evolution of the program has tried to associate the history, the proposal of a research program geared towards the investigation of social practices and the representations which constitute the forms of the human existence in the Amazon to the recent history of the theoretical and methodological emergence and transformations in human sciences.

KeywordsAmazon region; research; post-graduate programs.

IntroduoO objetivo do presente artigo sugerir uma viso geral com a apresentao dos objetivos, da evoluo e das tendncias do Programa de Ps-Graduao em Natureza e Cultura na Amaznia para a discusso pblica, no seio da comunidade universitria, das polticas de pesquisa e ps-graduao na rea de cincias humanas na Universidade Federal do Amazonas. A idia de um Programa de Ps-Graduao em Natureza e Cultura na Amaznia, para alm dos papis de integrao e constituio da unidade nacional que tm sido atribudos s universidades pblicas, nasce a partir da necessidade de fortalecimento das universidades situadas na Amaznia brasileira com vistas a elidir as desigualdades entre as instituies de ensino superior e de pesquisa, que dificultam o acesso dos estudantes, pesquisadores e professores da Regio Norte do pas aos cursos de mestrado e doutorado. Alm disso, um programa como esse deve diferenciar-se dos demais pela sua pretenso a desenvolver estudos e pesquisas cujas problemticas tenham como objeto a Amaznia. Ora, como se sabe, a Amaznia uma representao pela qual se entende tanto a dimenso geopoltica de uma regio do planeta que se espalha por diversos

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pases da Amrica Latina quanto as dimenses da biodiversidade e da diversidade de culturas humanas que esto presentes nessa regio. Com a nomenclatura do Programa, visou-se a destacar o seu carter interdisciplinar. O eixo pelo qual se orientaro seus objetivos, sua estrutura disciplinar e o acervo de trabalhos e pesquisas a ser produzido pelos seus pesquisadores dever ser o homem enquanto produtor de sua prpria existncia, sujeito conhecedor e constituidor de representaes e de formas simblicas e, ao mesmo tempo, objeto de conhecimentos e saberes nos quais se focalizam tanto a sua dimenso de ser emprico, finito, mortal quanto a sua dimenso de ser transcendental, isto , capaz de compreender e dar sentido sua existncia, situando-a em um universo ou mundo no qual ele no se encontra no centro, mas constitui um elemento fundamental para o equilbrio ou o desequilbrio da vida. Tal eixo dever permitir a explorao e o desenvolvimento de uma diversidade muito grande de preocupaes. Mas estas podem ser agrupadas em duas grandes linhas de pesquisa: 1. Espao e tempo, linguagem e cultura: a se englobam os estudos das dimenses do espao e tempo, dos grupos humanos e etnias, dos processos histricos e culturais, dos estudos etnolingsticos, das representaes do discurso e da comunicao na Amaznia; 2. Sociedade, Estado e Mudanas Estruturais: a se englobam os estudos que visam a compreender as polticas pblicas e o desenvolvimento regional, a utilizao de recursos, os impactos scio-ambientais, o pensamento social, as relaes internacionais, a internacionalizao da Amaznia e os processos de trabalho e da cidadania na regio. Em vista dessas linhas de pesquisa, devero preponderar, no Programa, as disciplinas classificadas pela CAPES e o CNPq entre as cincias humanas. As disciplinas e os contedos pertencentes aos domnios das cincias da vida, as da matemtica assim como as das cincias da matria que nele tiverem lugar sero complementares e atendero a demandas especficas de pesquisas isoladas. Alm disso, no mbito das cincias humanas, as disciplinas devero permitir a constituio de recursos conceituais, tericos e metodolgicos para a compreenso das dimenses nas quais se pode concentrar o enfoque dos estudos sobre o homem na Amaznia. Assim, os grupos humanos e as etnias no sero considerados apenas

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pelo enfoque da antropologia social e da antropologia cultural, mas tambm por outros enfoques, como o da histria social, o da histria da literatura, o da histria das prticas sociais etc. Da mesma forma, haver interdisciplinaridade nas pesquisas que visarem a compreender as polticas pblicas e o desenvolvimento regional, pois a cincia poltica e a sociologia devero lanar mo de conceitos e recursos tcnicos das cincias do ambiente, da economia poltica, tanto quanto da geografia humana, da histria, da anlise dos discursos e outras disciplinas nas quais as relaes do homem com a sociedade e a natureza fsica e biolgica se desdobrem. A estrutura disciplinar do Programa ser organizada de tal modo que a formao dos discentes e pesquisadores lhes fornea os recursos para o desenvolvimento de pesquisas nas quais se respondam s questes: a) sobre as possibilidades, as formas, a abrangncia e as relaes dos conhecimentos produzidos na e/ou sobre a Amaznia; b) sobre as intervenes, as prticas, os movimentos e as formas de organizao cultural das populaes bem como sobre a produo de subjetividades individuais e coletivas pelas quais se deram, se alteraram ou se reformularam e ainda se do as formas concretas e historicamente determinadas da existncia na Amaznia; c) sobre as diversas formas pelas quais essa existncia expressa suas perspectivas, seus horizontes, seus valores, suas possibilidades, suas opes, seus obstculos contornveis ou no, enfim, os sentidos que ela d a si mesma e aqueles que ela pretenderia torn-los seus ou deles se desvencilhar.

Evoluo e tendnciasAs respostas a essas questes devero, em sua generalidade, fornecer um amplo conhecimento das relaes que os homens teceram e tecem com as sociedades e com a natureza ao longo da histria pela qual a Amaznia tornou-se, para o pensamento e as sociedades contemporneos, o universo onde se encontra uma reserva de recursos biolgicos, fsicos e qumicos e onde se deu e desenvolveu o encontro de uma pluralidade de culturas que se revelam cruciais para a continuao da existncia da humanidade e para a constituio de uma idia de sociedade plural e isonmica.16

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A evoluo das pesquisas dever se dar em funo da atualidade dos problemas que a Amaznia oferece ao pensamento contemporneo. Sem situar-se alheia ao curso dos acontecimentos pelos quais ela adquiriu e adquire sua significao universal, a Amaznia encerra uma realidade singular que exige uma compreenso de suas particularidades e desafia o pensamento europeu ou ocidental a submeter-se prova da explicao de fenmenos que no se adaptam s suas categorias tradicionais. Ora, as cincias da vida e da matria percorreram trajetrias marcadas por hesitaes, recuos, deslocamentos, distores e revolues que lhes permitiram, a partir dos sculos 17 e 18, organizarem-se segundo esquemas formais e corpos de conceitos pelos quais o conhecimento no apenas se v confirmado pela experimentao, mas, tambm, retificado pela introduo de aparelhos tericos mais refinados e recursos de observao mais rigorosos. Por isso, elas possuem, a partir da compreenso de suas prprias atualidades, um conhecimento suficiente sobre as tendncias para as quais se dirigiro suas futuras pesquisas, sobre os problemas que ainda esto por serem explorados, os mtodos, os temas e as teorias que as animam e aguardam um aproveitamento mais profcuo por parte dos pesquisadores. Somente a partir do final do sculo 18 que surgiram os primeiros sinais de constituio do que vieram a ser as cincias humanas, com o nascimento da psicologia pelas mos de Phillipe Pinel e a formulao da idia de uma antropologia pragmtica pelo filsofo Immanuel Kant. No sculo 19, atravs das obras de Auguste Comte e de Karl Marx, esboaram-se os traos de uma cincia do homem que deveria atender s exigncias de objetividade, universalidade e necessidade alm de, assim como as demais cincias, desvincularem-se completamente das concepes teolgicas sobre as quais se assentavam os saberes de pocas passadas. Pode dizer-se que suas matrizes foram a economia poltica, a biologia e a filologia, posto que, mediante tais cincias, surgiram os conceitos de trabalho, vida e linguagem pelos quais as dimenses empricas da existncia humana tornaram-se, pela primeira vez, objetos de conhecimentos autnomos e independentes de concepes filosficas, morais e religiosas. At as duas primeiras dcadas do sculo 20, essas cincias se organizaram segundo um esquema evolucionista e uniforme da histria da humanidade. Em tal perspectiva, as questes da universalidade e da singularidade, das identidades eSomanlu, ano 3, n. 1/2, jan./dez. 200317

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diferenas culturais, da natureza e da cultura, da civilizao e da barbrie foram abordadas segundo uma escala entre o estgio primitivo e o estgio moderno, a idade teolgica e a idade cientfica da humanidade. A partir da dcada de trinta, diversos fatores contriburam para a ocorrncia de uma inflexo que se revelou fundamental para a evoluo das cincias humanas e para a anlise de suas tendncias atuais e futuras. Entre eles, devemos destacar o desenvolvimento das cincias formais da linguagem pelas quais a lgica se viu diante de outras possibilidades alm daquelas que foram fixadas por Kant a partir do helenismo. No mesmo movimento, deve situar-se o aparecimento das geometrias no-euclidianas pelas quais se desmontou o apriorismo das formas da sensibilidade definidas por Kant. Alm desses acontecimentos, devemos incluir os surgimentos da psicanlise, da lingstica, da etnologia e o das interpretaes estruturais das literaturas e dos mitos, pelos quais o esquema evolucionista e uniforme deu lugar a uma concepo no uniforme e, ao mesmo tempo, sincrnica e diacrnica dos fatos sociais e dos fenmenos de cultura. No lugar das continuidades que reuniam, sob a categoria maior de Humanidade, inmeros e diversos acontecimentos na ordem da existncia humana, foram desenvolvidas anlises pelas quais se determinaram histrias descontnuas, saberes interrompidos ou substitudos por formas de conhecimento completamente heterogneos s suas antigas problemticas; no lugar da anlise das mentalidades e dos comportamentos, surgiram anlises dos sistemas de pensamento ou das formas arquitetnicas dos discursos, anlises dos sistemas de trocas e anlises das formas elementares do parentesco. Essa inflexo produziu o que atualmente constitui o universo de problemas, temas, conceitos, mtodos e teorias no qual as cincias humanas desenvolvem suas pesquisas e formulam as questes que lhes parecem cruciais para a consolidao de seu devir. Os estudos sobre a existncia, atuao e a compreenso do homem na Amaznia tendem, portanto, a desenvolver-se em consonncia com essa inflexo que se deu na prpria histria das cincias humanas. Todos eles, entretanto, tendem, tambm, a eleger suas formas de procedimento, seus modos de recortar e isolar seus objetos e suas reas de abrangncia interdisciplinar a partir de questes que, na atualidade, colocaram ao pensamento impasses no tocante s dimenses cognoscitivas,18

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polticas e ticas da existncia, tais como, por exemplo, o problema da criao de mecanismos pelos quais as potencialidades individuais e coletivas possam ser aumentadas sem que isso implique o fortalecimento dos mecanismos de uniformizao, adestramento, controle e limitao das liberdades e das diferenas. Certamente haver uma tendncia para a aglutinao das disciplinas e das pesquisas em torno das linhas j indicadas anteriormente. Isso no deve significar, entretanto, que tais linhas de pesquisa venham a cristalizar-se como dois compartimentos estanques e incomunicveis. Natureza e cultura, palavras e coisas, sujeito e objeto, linguagem e pensamento, realidade e conscincia so termos pelos quais as sociedades ocidentais dissociaram o homem e o universo ao qual ele pertence. Mediante o trabalho interdisciplinar que se pretende desenvolver neste Programa de Ps-Graduao, essa dissociao tender a desaparecer. O que nos permite fazer esse prognstico a constatao de que a literatura, a anlise dos mitos e das tradies orais tm se tornado cada vez mais relevantes nas investigaes dos aspectos polticos e ticos da existncia humana. Da mesma forma, tem-se constatado o crescimento do interesse, por parte de historiadores, gegrafos e cientistas sociais, pela linguagem como fonte de informaes e como instrumento metodolgico de suas pesquisas. Parece que, ao invs de tomarem o mundo como um mecanismo ou como um organismo, as cincias humanas passaram a v-lo como um texto. Essa mudana tem permitido a superao de uma polmica na qual os filsofos se detiveram at o incio do sculo 20, quando a fenomenologia e a hermenutica mostraram que o homem no o soberano de sua histria, de sua vida e de sua linguagem, mas que atravessado e constitudo por elas. No lugar de conceber a natureza como uma dimenso anterior cultura e esta como o resultado de uma separao produzida pela interveno do homem sobre a primeira, os trabalhos desenvolvidos pela fenomenologia e pela hermenutica passaram a considerar natureza e cultura como dimenses indissociveis da existncia humana, como constituintes do mundo, entendidos como estrutura de subjetivao e de objetivao na qual o homem se reconhece como doador e portador de sentido, isto , como um ser constitudo de signos e produtor de signos em um universo de significaes que o antecede e o atravessa, mas que afetado por suas intervenes.Somanlu, ano 3, n. 1/2, jan./dez. 200319

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As cincias humanas possuem um carter assaz interpretativo. O que no implica falta de objetividade nem tampouco relativismo. O uso que elas fazem dos instrumentos de formalizao tomados de emprstimo lgica, s matemticas e mesmo s cincias da informao produz recursos suficientes para a realizao de diagnsticos e anlises satisfatrios e conclusivos. Ocorre que os seus enfoques podem se mover de tal forma que uma determinada realidade pode ser estudada sob aspectos distintos. Assim, conforme a dimenso para onde se voltar o foco do pesquisador, surgiro trabalhos com acentuado interesse histrico, geogrfico, psicolgico, sociolgico, literrio ou semiolgico, sem que o realce de um desses aspectos signifique o desaparecimento dos outros. Alm disso, elas esto sujeitas a determinadas inflexes decorrentes da relao do pesquisador com os objetos de suas pesquisas. Aps mais de cem anos de atividades, tornou-se patente para os pesquisadores das cincias que tm o homem por objeto que o requerido distanciamento absoluto tomado pelo cientista em relao aos fenmenos impossvel. No mbito das cincias humanas, essa constatao muito mais explcita do que em outras reas do conhecimento. Em sua essncia, a relao desse pesquisador com seu objeto uma relao pela qual aquilo que isolado, examinado e analisado libera um conhecimento que, muito mais do que uma cultura, um sistema de pensamento, um modo de vida ou uma prtica social desconhecidos, revela os valores, a forma de existncia, o modo de pensar e as prticas concernentes ao prprio pesquisador. Alm do que, nessa relao, sujeito e objeto produzem um no outro as modificaes e trocas que, ao mesmo tempo, afastam-nos e aproximam-nos, opem-nos e renemnos. Em vista disso, preciso considerar a atualidade das cincias humanas, tanto em sua dimenso epistemolgica quanto em suas dimenses poltica, econmica, tica e esttica. Certamente, os temas e os problemas que se elegero para a proposio de projetos de pesquisa decorrero das urgncias locais em consonncia com as questes que tocam as cincias humanas no mbito de sua generalidade. Tais temas e problemas obedecero a uma certa uniformidade, posto que devero se referir aos acontecimentos, s prticas, aos comportamentos e s formas de pensamento que determinaram e aos que constituem atualmente as formas de existncia na Amaznia. Em outras palavras, tais pesquisas adquiriro sua unidade medida que20

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esclarecerem as razes pela quais a Amaznia delineou-se ao longo da histria e tornou-se aquilo que ela atualmente, explicando os motivos pelos quais algumas opes foram feitas em detrimento de outras e revelando o leque de possibilidades que ainda aguardam investimentos bem como aquelas que solicitam transformaes, reformas ou liquidao. Alm de generalidade e unidade, as pesquisas do Programa de PsGraduao em Natureza e Cultura na Amaznia possuiro uma sistematicidade que se dar na prpria organizao das grades de disciplinas de seus cursos de Mestrado e Doutorado fornecida pelas preocupaes sobre: a) o que podemos conhecer, eixo epistemolgico; b) sobre o que devemos fazer, eixo poltico; c) o que podemos esperar, eixo tico. Assim, a estrutura dos cursos ser concebida como um quadro no qual haver disciplinas eminentemente propeduticas, como, por exemplo, Seminrio de Pesquisa, Comunicao Cientfica, As Ferramentas do Discurso; disciplinas que, alm de apresentarem essa caracterstica preparatria, permitem investigaes de temas e problemas especficos, como Formao do Pensamento Social na Amaznia, Epistemologia e Metodologia das Cincias Humanas e Sociais, Filosofia da Cincia, Educao, Cultura, Comunicao e Semitica; disciplinas que devero permitir o aprofundamento das pesquisas em questes especficas, como A Amaznia na Era da Globalizao, A cidade e o urbano na Amaznia, Amaznia: Relaes Internacionais, Amaznia e os Meios de Comunicao, Anlise do discurso sobre a Amaznia, A questo agrria na Amaznia, Correntes de opinio contempornea na Amaznia, Cultura e Natureza na Amaznia, Estado e Polticas Pblicas na Amaznia, Formao Social do Brasil, Histria, Cultura e Movimentos Sociais na Amaznia, Imaginrio e Cultura Popular na Amaznia, Literatura Amazonense, Natureza e Cultura em Mitos Amaznicos, Resduos Slidos Urbanos, Trabalho e Sociedade, Trabalho, Subjetividade e Cultura. A reordenao das disciplinas, a redefinio das linhas de pesquisas e outros ajustes sempre podero e devero ser operacionalizados em funo da histria acadmica e da formao dos professores e dos pesquisadores do Programa. Pelo momento, uma coisa certa: os estudos que foram produzidos atravs das dissertaes recentemente defendidas e aqueles que esto em andamento representam, ao mesmoSomanlu, ano 3, n. 1/2, jan./dez. 200321

Natureza e cultura na Amaznia: evoluo e tendncias...

tempo, os sucessos, as hesitaes e as inflexes prprios de um recentemente esforo caracterstico de todo trabalho cientfico, especialmente daqueles que do seus primeiros passos e se desenvolvem no para confirmar-se o que j se sabe, mas para permitir as mudanas que se almejam.

RefernciasSILVA, Marilene Corra da; RICOEUR, Paul; MIGNOLO, Walter. Um estudo de hermenuticas racionalistas num campo interpretativo comum. SOMANLU Revista de Estudos Amaznicos, Manaus, ano 1, n. 1, p. 35-50, 2000. FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das Cincias Humanas. Traduo de Salma Tannus Muchail. 3. ed. So Paulo: Martins Fontes, 1985. _______. A arqueologia do saber. Traduo de Luiz Felipe Baeta Neves. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1994. _______. O que so as Luzes? In: Ditos e escritos II: arqueologia das cincias e histria dos sistemas de pensamento. Traduo de Elisa Monteiro. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2000. p. 335-351. MESQUITA, Otoni. Cores de um meteoro. SOMANLU Revista de Estudos Amaznicos, ano 1, n. 1. Manaus, p. 185-194. 2000. PINHEIRO, Lus Balkar S. P. De vice-Reino Provncia: tenses regionalistas no Gro-Par no contexto da emancipao poltica brasileira. SOMANLU -- Revista de Estudos Amaznicos, ano 1, n. 1. Manaus, p. 83-108. 2000. PROGRAMA DE PS-GRADUAO. Natureza e Cultura na Amaznia. Manaus: Instituto de Cincias Humanas e Letras da Universidade Federal do Amazonas, 1998.

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Meditao e devaneio: entre o rio e a floresta 1

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ResumoRio e floresta so enigmas da Amaznia. Dependendo do rio e da floresta para quase tudo, o caboclo usufrui desses bens, mas tambm os transfigura. Essa mesma dimenso transfiguradora preside as trocas e tradues simblicas da cultura, sob a estimulao de um imaginrio impregnado pela viscosidade espermtica e fecunda da dimenso esttica. O rio desgua no imaginrio onde se pode ler a multiplicidade dos ritmos da vida e do tempo e observar as indecises da fronteira entre o real e o imaginrio. Entre o rio e a floresta preciso saber ver para efetivamente ver. Um olhar sustentado pela pertena emoo da terra, com a sensibilidade disponvel ao raro, com a alma posta no olhar.

Palavras-chaveCultura amaznica; imaginrio popular.

AbstractRiver and Forest are enigmas of the Amazon region. The Amazon man, in his dependence on the river and forest for just about everything,

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Palestra proferida no Programa de Ps-Graduao em Sociedade e Cultura na Amaznia do Instituto de Cincias e Letras da Universidade Federal da Amazonas. Doutor em Sociologia da Cultura, poeta, professor da Universidade Federal do Par.

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enjoys the usufruct of these assets whilst transfiguring them. This same transfiguring dimension presides over the symbolic exchanges and translation of the culture under the stimulation of a way of thinking saturated by the spermatic and fertilizing viscosity of the esthetic dimension. The river flows into the way of thinking where one can read the multiplicity of the rhythms of life and time and observe the indecisions of the frontier between reality and imagination. Between the river and the forest one has to know how to look to effectively see. A look sustained by the emotional domain of the land, with the sensibility made available to uniqueness, with the soul present in the stare.

KeywordsAmazon culture; popular imagination. A margem do rio, entre o rio e a floresta, o lugar privilegiado dos enigmas da Amaznia transfigurados em enigmas do mundo. Oferece interrogaes sobre origens e destinos. onde o rio desgua no imaginrio. Quando se pode ler a multiplicidade dos ritmos da vida e do tempo, observar as indecises da fronteira entre o real e o imaginrio, o espontneo maravilhamento diante dos acasos. O sentido privilegiado da contemplao conduz ao jogo esttico, pela quimera de olhar as coisas ante o mistrio que delas emana e pelo que nelas se exprime, nesse vago e gratuito prazer da imaginao que no busca um porto, embora numa viagem de vagos destinos. Uma viagem que no precisa levar a nenhuma parte. A margem do rio no exige lgica para ser coerente. Nela esto os mais preciosos arquivos culturais do mundo amaznico, os manguezais simblicos de nossa cultura, as razes submersas da alma cabocla. O ritmo das mars, em sua regularidade telrica, estimula uma viso mltipla, embora fatalista. Tudo acontece no momento escrito. A conscincia dos limites investiga na busca do ilimitado. Assim como a pororoca, que a rebeldia cabana do rio contra as margens que o limitam, engolindo as margens que o oprimem devoradas com inesperada sofreguido. Revelando uma afetividade csmica, o homem promove a converso estetizante da realidade em signos, atravs dos labores do dia-a-dia, do dilogo com24

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as mars, do companheirismo com as estrelas, da solidariedade dos ventos que impulsionam as velas, da paciente amizade dos rios. como se aquele mundo fosse uma s cosmogonia, uma imensa e verde cosmoalegoria. Um mundo nico realimaginrio. Nele foi sendo constituda uma potica do imaginrio, cujo alcance intervm na complexidade das relaes sociais. O imaginrio estetizante a tudo impregna com sua viscosidade espermtica e fecunda, acentuando a passagem do banal para o potico. gerador do novo, do recriado. Valoriza a dimenso auto-expressiva da aparncia e sua ambigidade significante, nas quais o interesse passa a concentrar-se. A cultura amaznica talvez represente, neste final de sculo, uma das mais raras permanncias dessa atmosfera espiritual em que o esttico, resultante de uma singular relao entre o homem e a natureza, reflete-se e ilumina miticamente a cultura. Cultura que continuar a ser uma luz aurtica brilhando, e que persistir enquanto as chamas das queimadas nas florestas, a poluio dos rios e a mudana das relaes dos homens entre si, no destrurem, irremediavelmente, o locus que possibilita essa atitude potico-estetizante, ainda presente nas vastides das terras-do-sem-fim amaznico. Formas de vivncia e de reproduo que tendem a permanecer vivas e fecundas, na medida em que sobreviverem no espao amaznico, as condies essenciais desse locus, no qual a presena humana, do ndio ao caboclo atual, encontraram meios para uma produo poetizante da vida, at o ciclo de um terceiro milnio. Entre o rio e a floresta preciso saber ver para efetivamente ver. Um olhar sustentado pela pertena emoo da terra, com a sensibilidade disponvel ao raro, com a alma posta no olhar. A transfigurao do olhar acontece no momento em que se percebe a diversidade verde do verde; o corpo de baile das aaizeiras; a volpia dos pssaros revoando; a vaga ela perdida no olhar do canoeiro; a moa na janela como a solitria imagem de uma espera; a igarit balanando nas ondas entre as estrelas; a dupla realidade da beira do rio refletida nas guas, como cartas de um baralho de sortilgios. Na linha da ribanceira, entre o rio e a floresta, esto os arquivos da vida amaznica. uma verdadeira escola do olhar. Uma pedagogia da contemplao. Um aprender a aprender olhar. O olhar que experimenta a vertigem de uma alma errante. Na margem do rio e da floresta irrompe a vida, em duplo. o reino dasSomanlu, ano 3, n. 1/2, jan./dez. 200325

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ambigidades e da semovncia de contornos. o desenvolvimento de uma cincia da libido em que o desejo brilha, o jogo esttico evidencia-se, o prazer do olhar dominante e o partilhamento com a natureza o prmio. Um modo de contemplao que forma um verdadeiro sistema. O sistema a que eu chamo de potica do imaginrio na cultura amaznica. Entre o rio e a floresta experimenta-se o sentimento do sublime da natureza, tanto que imperioso povoar essa realidade elevada com seres da mesma altura, isto , divindades habitantes desses olimpos submersos, e no mato adentro, que so as encantarias. Cada praia encantada uma ilha de Circe do imaginrio a chamar-nos. O efeito do sublime um modo de sentir. a representao do real por meio do irrepresentvel. A boina, por exemplo, o efeito do sublime representando o irrepresentvel do rio. Entre o rio e a floresta, a experincia transcendente resulta de experincias vividas. A serenidade que advm das guas tranqilas, a inquietao pressaga das noites de tempestade, so experincias do cotidiano e no de leituras romanescas ou filosficas. A admirao, o maravilhamento nascem da contemplao das coisas. Dessas particularidades que brotam das sensaes, o esprito chega ao essencial. O efeito do sublime decorre de um espanto diante das tempestades, das pororocas; dos alumbramentos diante dos fenmenos da natureza e do cosmo, que se oferecem como interrogaes. A explicao-resposta metafrica, alegrica, numa potica iluminada pela religiosidade dos mitos, formas de explicao atravs do irrepresentvel da representao. Esse primado do olhar no elimina a posio do sujeito como espectador participante. Ator que tambm est na platia de si mesmo e dos outros. Dessa meditao devaneante do caboclo explode o entusiasmo da imaginao, revolucionando as hierarquias lgicas entre o real e o irreal. Numa paisagem que ainda, em grande parte, no guarda vestgios da interveno humana, nem modificadora, nem moralizadora, os rios e a floresta se oferecem como um espao aberto aos trabalhos e os dias do caboclo, criao dessa teogonia cotidiana, no misticismo de sua vertigem do ilimitado. Para viver de uma forma ilimitada, convive com seres sobrenaturais, porque somente a imaginao consegue ultrapassar os horizontes. Foi a boina que, ao agitar-se, fez o barranco ruir; o curupira fez o26

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caador perder-se na mata; a iara fez afogar-se de seduo aquele que, aparentemente, no tinha razes para morrer no rio; a tristeza no veio da alma, mas do canto do acau. Diante do rio e da floresta, o homem, incapaz de franjar os seus vastos limites, insere-se nessa desmedida atravs de um gesto que o faz superior a essa natureza: ele cria os encantados, mantendo a grandiosidade esmagadora que o envolve sob seu controle. Ele passa a ser a razo primeira de tudo. O caboclo: um ser criador das origens. Essa potica do imaginrio no faz dele um poeta. Mas o mantm envolvido em uma atmosfera estetizada que torna o imaginrio a encantaria de sua alma. O espao infinito pe a viso e o esprito em repouso. A encantaria a quebra dessa regularidade do olhar pela diversidade da imaginao. Alm da aparente monotonia do sublime provocada pela natureza magnfica da geografia (dita por Mrio de Andrade), h um mundo revolto de boinas, botos, mes-dgua, iaras, curupiras, porominas, etc. Enquanto o olhar contempla em repouso, o esprito trabalha incansvel nas minas subjacentes da imaginao. O desejo de companhia sobrenatural uma resposta ao inevitvel sentimento de solido a que o homem se expe diante da natureza magnfica. O equilbrio inquieto da solido o leva a buscar realidades alm da superfcie, transferindo a profundidade da alma para a natureza. A crena nos encantados o liberta e isola da trivialidade de cada dia-a-dia. Talvez, semelhana dos romnticos, os caboclos ribeirinhos em face do rio e da floresta tiveram lugar privilegiado para a descoberta de si mesmos. Assim, tambm, como kantianos intuitivos, compreenderam a dimenso esttica do sublime da natureza magnfica e a poetizaram pelo imaginrio, numa infinitizao de sentidos (que prprio do potico, na voz de Julia Kristeva). A encantaria no um paraso perdido. No um den e nem um inferno. um olimpo. Um espao de quimeras. No aspirado, nem temido. mundo criado pelo devaneio que a poesia da contemplao. Mergulho na profundidade das coisas por via das aparncias, esse o modo da percepo, do reconhecimento e da criao pelo veio do imaginrio estticopoetizante da cultura amaznica. Modo singular de criao e recriao da vida cultural que se foi desenvolvendo emoldurado por essa espcie de sfumato, que se instauraSomanlu, ano 3, n. 1/2, jan./dez. 200327

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como uma zona indistinta entre o real e o surreal. Sfumato, que na pintura e na teoria de Leonardo Da Vinci, o contorno difuso da figura para poetizar sua relao com o todo. Como elemento que estabelece uma diviso imprecisa, semelhana do encontro das guas (de cores diferentes) de certos rios amaznicos, como as do Amazonas com o Negro, ou do Amazonas com o Tapajs e outros. O limite entre as guas amarelas de um e negras, verdes ou azuladas de outro, no est definido por uma linha clara e precisa, mas, por guas misturadas, viscosamente interpenetradas, que criam uma tonalidade imprecisa verde-negro-amarelada, como se essa forma de sfumato fosse estabelecendo uma realidade nica, na fsica distino que caracteriza os dois rios. E num ambiente pleno de situaes como essa que caminha o bachelardiano homem noturno, da Amaznia. Depara-se este homem noturno com situaes de imprecisos limites, de variadas circunstncias geogrficas que vo motivando a criao de uma surrealidade real, semelhana do efeito provocado pelo maravilhoso pico, que um recurso de poetizao da histria, nas epopias, resultante da mistura da Histria real com a dos mitos. Uma surrealidade cotidiana, instigadora do devaneio, na qual os sentidos permanecem atentos e despertos, porque prprio desse estado manter a conscincia atuante. Dependendo do rio e da floresta para quase tudo, o caboclo usufrui desses bens, mas tambm os transfigura. Essa mesma dimenso transfiguradora preside as trocas e tradues simblicas da cultura, sob a estimulao de um imaginrio impregnado pela viscosidade espermtica e fecunda da dimenso esttica. Essa transfigurao do real pela viscosidade ou impregnao do imaginrio potico acentua uma passagem entre o cotidiano e sua estetizao na cultura, atravs da valorizao das formas auto-expressivas da aparncia, nas quais o interesse de quem observa est concentrado. Interesse que direciona o prazer da contemplao forma das coisas marcadas pela ambigidade significante prpria do que esttico. Sob o olhar do natural, a regio se torna um espao conceptual nico, mtico, vago, irrepetvel (posto que cada parte desse espao no igual a outro), prximo e, ao mesmo tempo, distante. Seja para os que habitam as margens desses rios que parecem demarcar a mata e o sonho, seja para os que habitam a floresta, seja ainda para os que habitam os povoados, vilas e as pequenas cidades, que parecem estar muito mais num tempo congelado do que num espao dos nossos dias. O olhar que se dirige para a regio est impregnado desse prximo-distante que todo prprio das situaes28

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aurticas, como pe em relevo Walter Benjamin ao estudar a multiplicao da obra de arte na poca atual. Benjamin caracteriza a aura em seu j clssico texto A obra de arte na poca de suas tcnicas de reproduo: A nica apario de uma realidade longnqua, por mais prxima que esteja. Nas vrias formas de contacto com a Amaznia, essa uma impresso constante, isto , esse prximo-distante, esse perto-longe, esse tocvel-intocvel, onde o homem vive seu cotidiano que se apresenta a ele revestido da atmosfera de uma coisa rara. Mesmo nos conflitos gerados pela devastao crescente de sua celebrada natureza, os fatores de auratizao ficam evidentes: um bem nico e universal, impossvel de ser recuperado, se destrudo; riqueza de fauna e flora cujo desaparecimento representaria uma perda insubstituvel; acervo de formas de vida incalculveis, como se ela fosse o fecundssimo tero do universo (em pouco mais de 1 ha de floresta ainda no afetada pelo homem, encontra-se mais espcies do que em todos os ecossistemas da Europa juntos); presena constitutiva de valores intransferveis e intransportveis. Para o viajante comum ou o estudioso, este constitui um princpio instaurador, princpio segundo o qual a Amaznia concebida como um bem nico e irrepetvel, revelador de um hic et nunc que o resultado de uma acumulao de signos do imaginrio universal. Signo de uma natureza tida como nica, original e irrepetvel. Para compreender-se a Amaznia e a experincia humana nela acumulada e seu humanismo surrealista, deve-se, portanto, levar em conta seu imaginrio social, pois todo o verdadeiro humanismo deve tambm se fundar alm das conquistas da cincia. Pode dizer-se que o caboclo espcie de Hesodo tropical no exerccio de sua teogonia cotidiana, ao valorizar espontaneamente esse mundo imaginrio cheio de representaes, parece acreditar no realismo primordial das imagens. Para o caboclo, plantador e pescador de smbolos, a imagem parece estar constituda de uma fora prpria, criadora de uma realidade instauradora de novos mundos, capaz de ultrapassar o simples campo de escombros da memria. O amor, por exemplo, pode estar expresso pelo tambataj, uma planta que brotou no lugar onde um amoroso ndio macuxi enterrou sua ndia bem-amada; tambm o amor um golfinho encantado, o boto, incorrigvel sedutor, que ora aparece sob a forma humana e vestido de branco, ora volta ao rio sob a forma de animal; pode ainda ser a apario fatal de um rosto feminino flor das guas profundas do rio, a iara, entidade queSomanlu, ano 3, n. 1/2, jan./dez. 200329

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atrai os jovens fascinados por ela, para as guas profundas do amor e da morte. Quer dizer, incontveis imagens como as do amor, por exemplo, vo se instalando no vasto mundo em derredor, tornando-o a paisagem significante e sensvel e aparente. A paisagem a natureza penetrada pelo olhar. Pelo olhar a natureza criada na cultura. Diante de uma paisagem regular na aparncia o que a faz mudar a natureza da alma. Assim, por essa via contemplativa, a paisagem ser sempre nova. No de uma novidade linear de espaos sucessivos, mas de uma novidade circular, penetrante, superposta no mesmo espao.

O caboclo ribeirinho um viajante imvelNavega em busca das origens pelo devaneio. de Paul Zunthor a afirmao dizendo que a paisagem no existe em si mesma. Ela uma fico, um objeto construdo. Esta fico, penso, um efeito do olhar navegante, renovando a paisagem com paisagens superpostas, semelhana da contemplao sucessiva de paisagens, prprio de quem viaja. Viajante imvel, o caboclo cria planos superpostos de paisagem, construindo plasticamente a sua paisagem ideal. Pelo mito, a paisagem um objeto representado que confere cena o teatro da cultura e a legitimao de crena. Com essa atitude, constri-se a paisagem ideal. A beira do rio, a ponte, a noite, a casa, as rvores em torno e o rumor do silncio nos lbios do vento. Ao inventar a sua paisagem, o caboclo inventa-se a si mesmo para essa paisagem. Criando um mundo novo para sua alma, ele se cria como alma capaz de habitar esse mundo poetizado. Tudo governado pelas foras divinas. A natureza participa ento do sagrado, uma paisagem ideal que inclui a lenda na forma de encantaria. Habitada por divindades, a natureza tem na encantaria o seu lugar ameno. O imaginrio testemunha nossa liberdade de criar. Estamos colocados no lugar das manhs do mundo. A margem do rio e da floresta o sfumato entre o real e o no-real, o espao esfumado que contorna as coisas, tornando-as vagas e misteriosas. O irreal ou no-real deixa de ser o que est escondido, submerso no real. Ao contrrio. Ele revela-se ao trabalho dos sentidos, no sfumato desse livre jogo entre imaginao e entendimento, que a potica do imaginrio na cultura amaznica. Mais do que para dar lio, as fices mitopoticas ribeirinhas so para revelar a30

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beleza; menos que estmulo reflexo do que uma moral a seguir, demonstram mais o prazer de sentir e ver. O caboclo, por sua mitopotica, no mente ou falta com a verdade. Ele faz o que Coleridge chama de suspenso da descrena. Temos de aceitar um acordo ficcional, em princpio. O ouvinte aceita que o que se narra uma histria imaginria, mas, nem por isso, deve pensar que o narrador est contando mentiras. Esse acordo ficcional o que Umberto Eco menciona no percurso do seu quarto bosque da fico. Por esse acordo ficcional fingimos acreditar no relato ouvido. Liberamos o livre jogo entre imaginao e entendimento. Cremos como numa verdade. Reconhecemos seu poder ser. Sua verossimilhana. Sua lgica onrica. O caboclo, ao narrar, procura fazer-nos crer que conta um fato verdadeiro que, como tal, ele acredita. Espera uma espcie de simpatia da credibilidade. Cita detalhes, rico nos efeitos do real. Roland Barthes vincula aes a situaes ou a pessoas conhecidas, indica datas, enfim, confeita de credibilidade seu relato. Temos de entrar em seu jogo com nossa suspenso de descrena. Ora, se temos crena espontnea no relato das experincias vividas na realidade real pelo caboclo, no seria justo separar nele, ao entrar nessa idealizada realidade, duas faces: verdadeiro para umas coisas e mentiroso para outras. At porque, muitas vezes, ele um dedicado amigo leal ou membro da famlia. Temos de viver com ele essa ambigidade como as duas faces da verdade. Uma de crena, outra de aceitao pactual. A inverossimilhana vem legitimada por semelhanas. A informao condizente com elementos da realidade atribui ao inverossmil caractersticas do real. O mundo real imprescindvel para criar a irrealidade. Temos de aceitar que o caboclo tem imaginao, mas no um mentiroso. Diante da praticidade da vida, um especial e discreto prazer inventar coisas diferentes da realidade e que nos permitam ser ouvidos. E que, ouvindo-nos, prestem ateno em ns e no, apenas, no magnfico ambiente que nos cerca. O imaginrio, com a exuberante potncia ertica do belo em nossas lendas, , para o caboclo, o testemunho de sua liberdade de ser e criar. A lenda inventada pelo caboclo povoando as encantarias revela sua vontade (ou desejo) de participar de uma realidade superior que ele reconhece presente na natureza onde habita. O rio e a floresta so como origens, um ponto zero, o lugar de todo os comeos. O lugar das manhs do mundo,Somanlu, ano 3, n. 1/2, jan./dez. 200331

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onde em vez de um passado, busca-se a profundidade das coisas. Consciente de ser um ser para a morte, ele procura ser para a vida eterna da encantaria. Entende-se, nesta meditao devaneante, o imaginrio como capital cultural. Seguindo Gilbert Durand, o conjunto de imagens no gratuitas e das relaes de imagens que constituem o capital inconsciente e pensado do ser humano. No sero fantasias, no sentido de que o termo tem como irrealidade, mas o substrato simblico ou conjunto psicocultural (presente tanto no pensamento primitivo quanto no civilizado; no racional como no potico; no normal e no patolgico), de ampla natureza, promovendo o equilbrio psicossocial ameaado pela conscincia da morte. Ainda na estrada de Durand, o imaginrio entendido aqui como o conjunto de imagens e de relaes de imagens produzidas pelo homem, a partir de um lado, de formas tanto quanto possveis universais e invariantes e, de outro, de formas geradas em contextos particulares historicamente determinveis. A formao do sentido do imaginrio ribeirinho/caboclo resulta de um trajeto antropolgico de tenso e troca entre a natureza e a cultura, tendo como sntese o homem. a troca incessante entre o subjetivo e o objetivo, integrando o universal e o singular, o interior e o exterior, o indivduo e os grupos. O imaginrio amaznico o pndulo da resoluo das questes entre natureza e cultura em que ele se sustenta. Por esse trajeto vai-se formando o sentido das coisas, num conjunto de interaes entre opostos. A fantasia passa a ser acionada por transcendncia ou sublimao. Diante da matria fluente e corrente da gua do rio que passa, o caboclo libera e abre sua imaginao, na liberdade de um temperamento devaneante que produz a sua passagem para o potico. Por isso, mais do que contemplar, ele sonha a paisagem que o faz sonhar. Sonha buscando o infinito no no espao. Ele busca o infinito na profundidade. Aparentando inrcia, o caboclo segue, no incessante trabalho da imaginao, inventando a sua teogonia. Ou melhor, a sua mitogonia. E espero que ainda no, a sua mitoagonia. No podemos esquecer que so rios de gua doce os rios da Amaznia. Fatal relembrar aqui Bachelard, quando diz que a gua doce a verdadeira gua mtica. Podemos acrescentar, ento, que a nossa mitopotica bebe o leite e o mel da gua doce de nossos rios.

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A linguagem lquida do rio de gua doce revela a oralidade narrativa da natureza. A linguagem fluda de quem conta. Ela conta ao olhar devaneante do caboclo as narrativas que ele traduzir no contar de seus causos e legendas, na lquida e fluida corrente oralizada, passando nos lbios dos rios, e que , enfim, como a fonte de toda linguagem. Uma mar de linguagens que vai contando de botos, boinas, porominas, macunamas, expulso de colonos, contaminao fluvial pelo mercrio, homens sem terra na terra dos sem fim. E j comea a contar os causos que lhe contam as antenas parablicas e a Internet. A gua um silncio visvel. Ela se oferece navegao livre do devaneio como navegao interior, em busca de uma profundidade e no de uma distncia. A lenda, nessa potica do imaginrio amaznico, como a formulao de um desejo. Os bloqueios da vida prtica so retirados, a gratuidade economiza os esforos da racionalidade. O ser, no repouso do devaneio, libera o sonho que a fonte desse desejo de um mundo idealizado. Muito mais do que pelo fatalismo de uma vida governada pela determinao da natureza, a cultura amaznica, produzida pelo caboclo, estrutura-se como a lgica do sonho.

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Os enredos caboclos e nativistas nas toadas dos Bois-Bumbs Garantido e Caprichoso, heris do Festival Folclrico de Parintins 1

Maria Eva Letzia 2

ResumoA autora traa a origem do boi-bumb e assinala que o festival de hoje j tem outros objetivos que no se resumem ao simples reverenciar do boi-bumb, j que no folclore amaznico os ingredientes nativistas ou indigenistas ultrapassam largamente o quadro do antigo auto popular, impondo outros mitos regionais e outras lendas locais, vestidas de roupagens diferentes, que transformam a manifestao dos dois bois de pano numa complexa pera folclrica, representada na cidade de Parintins no Amazonas.

Palavras-chaveAmaznia; boi-bumb; cultura popular.

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Manteve-se a grafia do portugus de Por tugal. Centre de Recherche et dEtudes Lusophones et Inter tropicales C.R.E.L.I.T. UNIVERSIT STENDHAL GRENOBLE 3 Frana.

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Os enredos caboclos e nativistas nas toadas dos...

AbstractThe author traces back the origin of the boi-bumb ritual bulls and indicates that todays festival already has other objectives which cannot be synthesized as the simple reverence to the ritual boi-bumb bull, since the native or indigenous ingredients in the amazon folklore widely surpasses the framework of the ancient popular play by imposing the manifestation of the two cloth-made ritual bulls into a complex folk opera, represented in the city of Parintins located in the State of Amazonas (Brazil).

KeywordsAmazonia; boi-bumba, popular culture.

Os bois em festa na cidade de ParintinsO Festival Folclrico de Parintins, no Estado do Amazonas, j teve trinta e seis edies, que ao longo de cada ano contriburam para exaltar dois bois de pano, dois bumbs, como costumam dizer os amazonenses, cujos nomes: Garantido e Caprichoso, invadem no somente o espao do bumbdromo e dos bairros adjacentes, mas tambm se repetem e se propagam nas pginas dos jornais, nos painis publicitrios, nas antenas das rdios locais e nos reclames da televiso. A tradio do boi-bumb nascera no Nordeste do Brasil, ainda na fase colonial, mantendo-se at aos nossos dias, no folclore regional. Durante o ciclo da borracha, as animaes protagonizadas por um boi de pano vieram com as levas de migrantes, corridos pelo flagelo da seca, para a Amaznia, onde cedo caram nas graas das populaes caboclas, contagiando, ao mesmo tempo, com a sua alegria festiva os ndios pacificados, acabados de entrar na civilizao brasileira e cujos antepassados fizeram outrora a histria do Norte do Brasil. No remate da centria de oitocentos, o povo do Amazonas brincava e danava em torno da figura do boi, no ms de junho, em todas as povoaes e at

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nos seringais, situados nos municpios distantes da calha do Madeira, do Purus ou do Juru, onde nos enfeites destinados ao lendrio bovino folgazo logo se fez notada a influncia do artesanato indgena. No entanto, a festa maior, equiparada a um carnaval amazonense fora da poca, fincou o p numa pacata cidadezinha do interior, a trezentos e vinte e cinco quilmetros a nordeste de Manaus, chamada Parintins, topnimo nativo, evocador das longnquas migraes indgenas que passaram por a. H quase quatro decnios, esta povoao abriga um dos mais espectaculares festivais folclricos do pas, oriundo da competio, velha de oitenta anos, que se instalou entre o Bumb Garantido e o Bumb Caprichoso. Para muitas tribos ndias, a regio de Parintins j fora uma etapa, que marcara, numa dada altura, a sua existncia andarilha, uma existncia tangida de um lado para o outro por causa das incurses dos invasores brancos. Os mitos indgenas s vezes mencionam aquelas deslocaes acompanhadas das lutas pela conquista dos territrios de caa e de pesca. O deambular incessante dos nativos e os reencontros entre diversas naes indgenas servem hoje em dia de referncia aos poetas e versejadores populares que compem as toadas de boi, em que o povo pega e repete at se tornarem em estribilhos, um pouco como os motes das modinhas de carnaval. Atualmente, os Bumbs Garantido e Caprichoso j se confundem tambm com os mitos dos habitantes primitivos da Amaznia, tm as respectivas torcidas, suscitam amor e devoo, quando no fascinao e at fanatismo. Garantido e Caprichoso representam dois toiros da Ilha Tupinambarana, nascidos por volta de 1913, por ocasio das festividades juninas. Com eles apareceram outros mitos que tambm concorrem para a festa. Trata-se das rainhas do folclore, dos pajs e das cunhs-poronga, estes ltimos ressuscitados das tradies nativas, mas funcionando como mestre-de-sala e porta-bandeira, personagens emblemticas, invejadas e queridas, alvos de todas as atenes, indispensveis na qualidade de itens do programa festivo, criadores de lendas azul e branca ou vermelha e branca, conforme a preferncia de cada qual. O ncleo urbano de Parintins organizou-se em redor da Catedral de Nossa Senhora do Carmo, um templo imponente de que se orgulha o povo local. Este

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edifcio religioso e os prdios do centro da cidade datam dos anos de 1950. Antes, a vila no passava de um amontoado de casas de palha. volta da igreja comearam a surgir os colgios, as lojas de comrcio retalhista, os armazns e a prpria cidade. E finalmente, em 1966, na quadra paroquial da catedral parintinense, aconteceu o primeiro festival folclrico. No referido templo, os Bois Garantido e Caprichoso tiveram at baptismo, porque Parintins fervorosamente religiosa, catlica.

Em que consiste a festa e o desafio do Garantido e do Caprichoso na Ilha TupinambaranaDesde 1966, as regras das representaes foram modificadas vrias vezes, mas, mesmo assim, o seu princpio bsico continua a ser o Auto do Boi, uma histria singela e engraada em que o protagonista o bovino, acompanhado pelo casal Pai Francisco e Me Catarina (ou Catirina), a Sinhazinha da Fazenda e o pai da mocinha, o Fazendeiro, Amo do Boi. Contudo, o festival de hoje j tem outros objectivos que no se resumem apenas no simples reverenciar do boi-bumb, j que no folclore amaznida os ingredientes nativistas ou indigenistas ultrapassam largamente o quadro dum antigo auto popular, nascido no Nordeste, e tendem a impor outros mitos regionais e outras lendas locais, vestidas de roupagens diferentes, que transformam a manifestao dos dois bois de pano numa complexa pera folclrica, representada a cu aberto, no bumbdromo e nas ruas de Parintins. Segundo a pesquisadora Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti, do Instituto de Filosofia e Cincias Sociais junto da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o Festival Folclrico de Parintins apia cada ano com mais fora a chamada questo indgena, atravs dos rituais nativistas e o quotidiano dos caboclos ribeirinhos, reforado pelos temas relacionados com a realidade da populao amaznida. O que foi consideravelmente ampliado o nmero de itens que entram actualmente no certame e na disputa. Repare-se aqui em que, alm do boi e dos quatro personagens que o acompanhavam desde o incio, agora aparecem os Pajs, as CunhsPoronga, os Representantes das tribos indgenas, os Tuxauas, os Porta-Estandartes, as38

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Rainhas do Folclore, os Levantadores de toadas, mostrando trajos e coreografias oriundas dos rituais nativos, que j mais nada tm que ver com o antigo auto. Mas seja como for, o fenmeno que verdadeiramente marcara o processo de transformao dos tradicionais desafios em espectculos musicais o surto das toadas de boi, peas lrico-musicais assinadas pelos compositores de renome. As letras dessas composies poticas populares constituem hoje colectneas da moderna poesia amazonense moda dos antigos cancioneiros, que reflectem toda a propenso do povo para a festa, o seu apego s tradies e tambm uma tentativa mais recente de recuperao dos valores ancestrais, alm do interesse crescente pela histria e pela civilizao das naes nativas, at agora marginalizadas e votadas ao desprezo e ao esquecimento. quilo tudo se acrescenta um tema escaldante de actualidade: a luta dos defensores da natureza tropical contra o desmatamento cada vez mais intensivo, contra a devastao da floresta por meio das queimadas premeditadas, contra a poluio do ar, e contra a inquinao das guas dos rios e igaraps, em suma, um combate ecologista, condizente com as aspiraes e com as preocupaes da nova gerao dos moradores na Amaznia.

As remotas origens mticas da festa taurinaAno aps ano, nos trs ltimos dias do ms de junho, na Ilha Tupinambarana, dois toiros: um branco, com um corao vermelho na testa e um preto, adornado com uma estrela azul, entre os chifres, recomeam o antigo confronto, cada um deles acreditando representar o Bem, deixando para o contrrio a encarnao do Mal. O toiro negro e azul, Caprichoso, pretende remontar origem da Constelao do Touro. Mas a marujada azul e branca lembra-nos a galera de Jaso, cheia de argonautas. Na mitologia grega, uma linda moa chamada Europa foi seduzida e amada pelo deus Zeus, senhor do Olimpo, que para poder aproximar-se dela, usou de uma artimanha, tomando a forma de um toiro branco. O animal raptou a bela jovem, numa praia, e levou-a para a ilha mediterrnica, chamada de Creta.Somanlu, ano 3, n. 1/2, jan./dez. 200339

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Nas moas vestidas de guerreiras h uma reminiscncia das mticas amazonas gregas, que o padre Carvajal acreditara ter encontrado, no sculo 16, no rio que receberia o nome do rio Amazonas. Desde sempre a figura taurina simboliza a fora criadora divina, a potncia, a pujana, a justia e a prpria divindade. No antigo Egipto, o toiro pis, com um disco solar entre os chifres, representava a virilidade e a fecundidade, e quando figurava como encarnao do deus da morte Osris, simbolizava o poder de ressurreio, as foras naturais e sexuais. Na Amrica do Norte, a nao Sioux via no toiro-bisonte Darma o emblema do universo e a encarnao animal do princpio Terra. No tocante s cores emblemticas dos dois currais parintinenses, a simbologia fornece-nos vrias pistas. O vermelho, cor do sangue e do fogo, remete para a criao do mundo e tambm para a ameaa da sua destruio. Tradicionalmente, o vermelho foi a cor da soberania, muito prezada nas cortes e adorada pela nobreza. Nos brases simbolizava a valentia, a fria guerreira, a chacina, a matana, devido ao sangue derramado, e tambm a crueldade e a ira. Para muitos, o vermelho a cor da riqueza e do amor, da fora vital e do eros triunfante. Na Idade Mdia, o catolicismo via nela o estandarte do Diabo, sinal do amor infernal, do dio e do egosmo. A psicologia v no vermelho a alegria de viver, o optimismo, o vigor e tambm a necessidade da conquista, o bero amoroso, a paixo, a pulso sexual. Na quiromancia, o vermelho representa a ddiva total ou a crise, a derrota, quando no a aflio, o infortnio e a carncia. O branco simboliza a luz, a castidade e a virtude. No Egipto, representava a morte que liberta, enquanto os europeus meditavam sobre o seu aspecto malfico, evocando a lividez cadavrica, o soeiro, ou seja, lenol morturio.40

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Entre os hebreus, esta cor tem o significado da pureza e da castidade. O branco tambm a cor da verdade. E no nos esqueamos de que, na Amrica, o branco a cor da Luadivindade, amiga dos guerreiros nativos. Tambm o azul possui uma forte conotao simblica. Na mitologia egpcia representava Amon-R, deus do Sol, tambm venerado na Creta. Os gregos antigos afirmavam que o azul favorecia a meditao e o descanso, identificavam-no com o vento e com o ar, vendo nesta cor o smbolo da espiritualidade e da contemplao. Roma reservou esta cor a Jpiter e a Inia (Iunon), encarnao da mulher fecunda. O catolicismo outorgou a cor celeste Virgem Maria. Os cristos escolhiam esta cor como emblema da verdade, da fidelidade, da castidade, da lealdade e da justia. O azul plido simboliza a inacessibilidade, o maravilhoso e a evaso. Na quiromancia e nos sonhos, o azul interpretado como revelador da tolerncia, do equilbrio, o domnio de si, da generosidade e da bondade. Se o vermelho representa a fora vital e a potncia, o azul tem para si a fidelidade, a lealdade, o equilbrio e a tolerncia. No confronto do Garantido e do Caprichoso, o vigor, a paixo, a alegria e o optimismo enfrentam com fria guerreira e com uma entrega total da torcida, a gana da evaso rumo ao maravilhoso, a espiritualidade area, a sinceridade da convico e a generosidade optimista da marujada detentora da verdade azul. As boas intenes dos iniciados nos mistrios dos bumbs adversrios e competidores manifestam-se na claridade branco-argntea do luar amaznico.

O auto do boi na verso parintinenseO antigo auto lusitano do boi morto e ressuscitado, que atravessara o Atlntico a bordo das naus dos donatrios-povoadores do Brasil Colnia, rapidamente criara razes do Nordeste, impondo-se como um importante componente do folclore local. No sculo 19, quando comeara o ciclo da borracha na Amaznia, o boibumb veio fincar o p nos barrancos e nos beirades da bacia do Amazonas,Somanlu, ano 3, n. 1/2, jan./dez. 200341

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graas aos trabalhadores migrantes, recrutados no Nordeste para a extraco do ltex nos seringais da regio. A brincadeira volta dum boi de pano foi mencionada nas obras dos escritores que conheciam bem a Amaznia, como o portugus Jos Maria Ferreira de Castro ou o brasileiro de Humait, lvaro Maia, que no entanto chegaram a reparar na lenta transformao do auto primitivo numa festa folclrica cabocla, tipicamente amaznida que j virou as costas ao auto primitivo e castio, adoptando os trajes e os enfeites inspirados na arte nativa, devedora do meio ambiente dominado pela selva, com a sua fauna e a sua flora, exuberantes nas formas e nas cores. No atual festival do folclore de Parintins, o antigo auto serve apenas de pretexto festa dos currais vermelho e branco, e azul e branco. Nos dias dedicados s apresentaes dos dois bumbs competidores: Garantido e Caprichoso, as tradicionais figuras do auto ocupam pouco espao em comparao com os novos itens oriundos do folclore ribeirinho e com os vultos espectaculares que representam a civilizao das naes indgenas. Na realidade, os bumbs afiguram-se como levantadores dos respectivos shows que se baseiam na actuao dos grupos de danarinos e danarinas acrobticos, capazes de elaborar, ano aps ano, coreografias inovadoras, apresentadas ao som das toadas, compostas para alcanar o objectivo desejado. O auto do boi virou emblema duma festa carnavalesca fora do tempo que galvaniza o povo parintinense e manuara, mas os enredos nativistas, caboclos, ecologistas, at, assim como o prprio ritual de apresentao e de exaltao dos bumbs concorrentes fazem esquecer o principal enredo primitivo. At a antiga personagem vedeta: a Sinhazinha da Fazenda actualmente muitas vezes fica eclipsada pela Cunh-Poronga, um puro produto amaznida, devedora da cultura nativa. Comparando as letras das toadas apresentadas pelos dois bumbs, no festival de junho de 2001, podemos afirmar que o auto tradicional na sua verso integral apenas foi lembrado no curral do Caprichoso. A toada intitulada Auto do Boi menciona Pai Francisco, Me Catirina, os vaqueiros, o povo morador na fazenda, Catarina, me de Catirina, guerreira, me parintina, que queria a lngua do boi. Mestre Chico, apaixonado, resolveu ento matar o boi com o faco de gume afiado, tirou a

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lngua do animal de plo negro e brilhoso, em que a galera-marujada logo reconhece o bumb Caprichoso. Contudo, pelos vistos, a morte do lindo boi foi intil, j que na fazenda a comida era abundante, ningum passava fome, todos os animais estavam bem alimentados e gordos, tinham ao seu dispor uns magnficos pastos verdes e muita gua para beber. Por isso, dado que o boi morto era o bovino mais lindo da propriedade, o povo azul da fazenda ficou chocado e indignado, e reclamou de volta o seu boi vivo. Para fazer ressuscitar o animal to querido de todos, os moradores da fazenda recorreram ajuda dum paj, personagem puramente indgena, chamada de propsito para aplicar um feitio sigiloso e forte no cadver do boi mutilado. O feiticeiro-curandeiro indgena conseguiu trazer de volta o touro negro, dando uma grande satisfao aos populares. No se trata aqui duma interveno milagrosa de um santo da Igreja Catlica, mas duma figura bem humana, apenas habilitada a servir-se das foras sobrenaturais, reputada capaz de comunicar com os espritos e detentora duma profunda sabedoria e dos ensinamentos deixados aos indgenas pelos mticos heris de cultura nativa amaznica. Moralidade da histria: quem valeu ao boi morto, foi um amaznida, representante da cultura local, de que a tradio nordestina se tornou devedora. Na toada intitulada Amo do boi, de autoria de Beto Carvalho, pertencente ao curral do mesmo Caprichoso, a figura do dono do animal negro, com uma estrela a brilhar na testa, chama pelo Bumb Caprichoso, toca o berrante e tira os versos que o exaltam: Meu touro negro bonito/Com sua estrela a brilhar./O que vem da baixa, no atinge/Pois minha estrela do ar. O Caprichoso, nesta toada, seria capaz de matar de inveja a galera do contrrio. O animal sado do curral azul faz delirar a sua marujada. O amo do boi aparece sozinho e fica encarregado da exaltao do bumb que faz a galera balanar. Quanto Sinhazinha da Fazenda, esta continua a ostentar um vestido rendado ( moda colonial), cheio de bordados preciosos, mas o seu padro de beleza j no corresponde ao duma donzela branca, filha dos lusitanos. A Sinhazinha da Fazenda que representa o curral azul do Boi Caprichoso tem um corpo moreno, a pele cheirosa, devida s essncias tiradas da floresta tropical. uma flor, adorno em beleza, mas tambm um produto da imaginao amazonense. A menina baila com o bumb, conforme a tradio, mas ostenta um sorriso faceiro na arena e traz a luzSomanlu, ano 3, n. 1/2, jan./dez. 200343

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da estrela no olhar, a luz que ilumina a escurido da noite, que dana, evoluindo no firmamento de bru, penetrando nos coraes dos seus aficionados, emocionandoos e envolvendo-os numa aura de amor e paixo, lema do curral azul para o ano de 2001. A Sinhazinha do Boi Caprichoso j no tem nada de uma menina ingnua, porque se tornou numa moa sedutora, flor dos trpicos e consciente dos seus encantos e do poder que exerce sobre a galera. No seu prprio curral, a Sinhazinha da Fazenda tem uma rival ou pelo menos uma concorrente temvel na pessoa da indigenista Cunh-Poronga, vedeta nativa, mulher-farol para a torcida azul. Na festa deste ano, a Cunh-Poronga uma criatura de Tup (veja a toada competente). Parecida com uma cheirosa flor do mato, recebeu a bno da divindade suprema dos nativos, que a moldou com astcia e subtileza. Afigura-se-nos como uma guerreira ndia, mas de traos aprimorados, uma espcie de estampa de imortal beleza. A Cunh-Poronga est atenta pois a sua misso salvar os guerreiros Tupi, quer dizer, pugnar pela salva-guarda das culturas nativas menosprezadas, tir-las do esquecimento, do abandono. A Cunh-Poronga, armada com um arco, tal o deus Cpido, h-de agradar ao pblico, mostrar-se atraente, irresistvel a fim de convencer a assistncia do valor da cultura indgena de que ela embaixatriz. A ndia guerreira tem o corpo nu, adornado de penas coloridas de sementes de sumaumeira e actua lanando as flechas que parecem danar no ar. A silhueta linda e leve baila em honra das tradies nativas e expe a sua beleza selvagem. Ao mesmo tempo, o compositor Ronaldo Barbosa fez desta Cunh-Poronga uma menina-moa da festa tribal ritual, uma adolescente ndia que desabrocha em mulher, que vem aqui comparada com uma rosa linda e nica no mundo pela sua cor azul. Numa segunda toada da autoria conjunta de Ronaldo Bazi, de Wenderson Figueiredo e de Mauro de Souza, a cunh rainha da floresta, que apresenta um bailado gostoso e bem caprichoso, dedicado ao bumb azul. quela Rainha do Boi, a natureza amazonense presta uma homenagem manifesta: Copas verdes se curvam/Ao encanto desta flor to bela/No amor da linda rainha/Do meu boi!.44

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A Rainha da Floresta afigura-se como uma doce morena, que tambm personifica o desejo, agora adornado de penas e que flutua reencarnada, naquele corpo perfeito, na arena do bumbdromo. Os compositores inventaram a metfora da flor de origem asitica, chamada de ltus, toda perfumada e que excita e seduz, incendiando o corao de cada brincante de boi azul. Por seu lado, o curral do Boi Garantido, muito preocupado com a exaltao do seu bumb vermelho e branco, quase se esqueceu de mencionar o auto tradicional. Uma nica toada foi dedicada Sinhazinha da Fazenda (Sinhazinha do meu Boi), que vem juntar-se ao Garantido, j presente na arena, a balancear. Trata-se duma menina linda, donzela-princezinha da propriedade, apresentada como uma filha do Amo-Fazendeiro branco. Aqui sobretudo o sorriso da sinhazinha a cirandar, que conquista o pblico espera da dana da mocinha em torno do boi de pano. foroso reconhecermos que a figurinha da menina da Fazenda, na verso vermelha e branca, apresenta-se bem apagada em relao sua concorrente do curral azul. O seu nico trunfo a graa juvenil e a frescura de que se desprende a imagem da inocncia e da virgindade homenageadas por Tony Medeiros. A cunh, guerreira ndia vermelha e branca, protagoniza a toada Rosa Vermelha. Apresenta-se como uma menina por quem a galera se apaixona. Ela vira o bem-querer de todos, graas ao seu sorriso. A cunh do Garantido, na verso do ano de 2001, tem algo duma Nossa Senhora da Guia: linda como uma estrela, guia a sua galera, inspira-a, tornando-se sua musa, luz e seduo da batucada vermelha. Reina nos coraes dos seus torcedores, f-los felizes, enamorados. A Cunh-Poronga uma guerreira serena, digna, apresenta um gingado de amor e magia, em lugar da paixo(!) parece leve, executa um bailado de pura poesia, anunciando a vitria do campeo Garantido, na segurana da sua beleza nada perversa, antes vaporosa, digna de uma roseira moa de grande virtude. E esta delicadssima rosa vermelha, quase tmida de to cheia de compostura, seduziria mais do que a vistosa rosa azul, guerreira selvagem de corpo provocante.

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O caboclo ribeirinho de Parintins como porta-voz dos defensores da natureza amaznicaO curral do Boi Garantido resolveu fazer do caboclo ribeirinho de Parintins o porta-voz do protesto ecologista contra o desmatamento da Amaznia e a devastao progressiva da selva. A figura do caboclo representativa do povo amaznida, que sempre soube viver/sobreviver em harmonia com o meio ambiente. Os ribeirinhos, estabelecidos nos barrancos, nas ilhas, beira dos lagos, dos parans ou nos beirades, foram capazes de aproveitar os recursos oferecidos pela me-natureza, sem cometer depredaes, sem prejudicar o prximo nem a fauna local. Os caboclos amazonenses jamais tinham acalentado grandes ambies com respeito melhoria do seu padro de vida, antes pelo contrrio, contentavam-se com pouca coisa e at hoje em dia continuam a aparentar muita humildade, embora j tenham conscincia dos estragos causados no seio da natureza circundante pelos invasores aliengenas, exploradores insaciveis dos recursos naturais encontrados no meio silvestre tropical. Na toada do bumb vermelho e branco, intitulada Lamento caboclo, o ribeirinho apresenta-se como um agravado, respeitoso e humilde, cnscio do lugar que lhe coube neste mundo, mas presente e desejoso de fazer ouvir a voz dele aos ricos detentores do poder e do saber. A personagem confessa no ter entendimento, quer dizer, no ter instruo, nem habilitaes especiais para falar ao pblico, vivendo apenas do exerccio da sua modesta profisso de pescador, visando somente o sustendo do ncleo familiar de que fazem parte os cinco curumins que dele dependem. O item, que monologa na toada, nunca andou na escola e analfabeto: nem to pouco leio escrita, mas afirma-se como um devoto de So Jos, temente a Deus, e sobretudo bom observador deste seu universo dominado pelas guas e pela selva verde. O caboclo dirige-se ou interpela um doutor da cidade, homem instrudo e diplomado, que tem uma posio reconhecida na sociedade. O ribeirinho queria que o seu interlocutor o informasse sobre as razes que levam os homens a destruir a natureza, esta obra-prima do Criador e que o pescador reconhece como uma fonte de vida e beleza.

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O caboclo ousa acusar da parvoce todos aqueles que, tendo muito dinheiro e podendo correr o mundo inteiro, no sabem ou no querem conhecer a si, conhecer e apreciar esta natureza amaznica, rica em espcies vegetais e animais, que a gente da cidade costuma desprezar, preferindo-lhe os encantos das terras alheias, as coisas vistosas e afamadas do estrangeiro. Alm disso, o caboclo parintinense depara com um outro paradoxo: Como que o homem/Com tanto conhecimento (entenda-se: exemplos das outras terras e continentes, instruo, cursos tcnicos superiores, etc.)/Destri sem ter argumento/O que a natureza fez, devasta e prejudica sem motivo aparente o pulmo do mundo que Deus colocou na Amaznia. Quanto a ele prprio, o pobre pescador-canoeiro, mestio ribeirinho sem pretenses e pobre no dinheiro, diz-se rico em paz interior, porque vive sem carregar nenhum crime ecolgico na conscincia, em harmonia com o meio ambiente que o cenrio e palco da sua existncia, sem ofender a Deus nem a ningum, sem roubar nada ao prximo, apenas a reivindicar um pouco de respeito pela natureza amaznica que alimenta a ele e aos seus e no seio da qual ele ganha o seu po, sem pedir nada aos poderosos do seu pas. Curiosamente, o lamento do caboclo de Parintins faz-nos lembrar certos camponeses quinhentistas dos autos e das farsas de Gil Vicente que, j naquela poca remota, no se coibiam de chamar a nossa ateno sobre o desconcerto do mundo em que viviam Na toada No mate a vida!, o Boi Garantido, pela boca de Tony e Inaldo Medeiros, cita-nos em exemplo o indgena, o ndio amaznico que um dia civilizar o mundo. O nativo que sempre respeitou a terra-me, que soube conviver em harmonia com a natureza, adoptando um modus vivendi ecolgico, que ensinava e transmitia aos filhos e netos, de gerao em gerao, durante muitos sculos, este respeito e este princpio de preservao cautelosa. Para o ndio, a natureza da Amaznia faz parte da civilizao nativa e o seu respeito representa a cultura do homem da regio, j que o conceito de cultura milenar do amaznida se baseia na preservao da flora e da fauna local. O indgena elogiado em anttese com o homem aliengena, que profanara a floresta, queimara uma parte da selva, poluiu e soterrou os rios. Nas mos do invasor, a natureza apenas tenta sobreviver.

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O poeta hiperboliza os estragos causados no seio da natureza pela civilizao industrial: Drages de ferro entraram na floresta, monstros devorando e esmagando tudo o que encontram na sua frente, que semeiam a desgraa e a morte, porque matam os nativos, donos legtimos dessas terras invadidas e colonizadas. E o ndio acusa-os da destruio do cho da sua tribo e dos seus antepassados. Em concluso, o indgena v o progresso como uma ordem adversa, inimiga da sua gente e da civilizao nativa. Na mesma toada, encontrmos ainda um recado destinado nova gerao que incita a juventude a prestar ateno aos conselhos do indgena a fim de evitar uma futura catstrofe ecolgica. A vida s ser possvel num mundo cujos recursos naturais forem respeitados e protegidos: preservando, seu moo,/Que o homem vai viver./ destruindo, seu moo,/Que o mundo vai morrer avisa o ndio amazonense. No repertrio das toadas escritas para a apresentao do Bumb Caprichoso, a natureza amazonense foi exaltada em Rainha da Floresta, atravs das copas verdes de rvores frondosas da selva, das flores do mato de beleza perfumada e selvagem, do azul do cu e dos rios, que se curvam para homenagear a CunhPoronga do curral azul. No entanto, muito mais original se afigura aos estudiosos do folclore a toada Santurio da Estrela. Com efeito, outrora, a Ilha Tupinambarana fazia parte da rica e generosa Pindorama, terra-me dos ndios, terra sagrada dos filhos do sol, cujas noites eram embaladas pelo brilho fascinante da Lua-Jaci, deusa protectora e confidente dos povos nativos. Naquele tempo abenoado, as tabas eram emolduradas pelas matas esmeraldinas, as malocas podiam mirar-se no espelho de prata dos rios sem poluio. A memria dos sculos anteriores chegada do homem branco equiparase aqui a uma Idade de Ouro amerndia, ao tempo da paz e da felicidade perdida... O firmamento, salpicado de estrelas, constitua, ento, a abbada rendilhada da catedral indgena ao ar livre, obra do Criador do Universo Monn, acabada pelo poderoso deus Trovo (Tup). Nesta toada emerge uma religiosidade nativista, singela e genuna, mas sobretudo to diferente da religiosidade imposta pelo conquistador catlico.

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A religiosidade nativista nas toadas de boiA toada Santurio da Estrela, composta pela dupla Cyro Cabral e Ronaldo Bazi, no se limita a exaltar a natureza amaznica, censurando a destruio desse meio ambiente, injustamente invadido pelos conquistadores brbaros, que verteram o teu sangue. Na realidade, por detrs do hino Terra encantada/Que o verde da mata/Reflete nos rios/Qual espelho de prata, possvel descobrir toda a carga de devoo pantesta indgena terra-me, Terra Sagrada/Dos filhos do sol/Do brilho da lua/Que embala a noite. Ao mesmo tempo os autores afirmam que a Amaznia pertence ao deus Tup e fica sob a tutela deste deus (Amaznia tupana) e esta importante divindade indgena, reconhecida pela maioria das naes nativas, homenageada como Nosso Senhor das tribos tupi, dos arcos e flechas/da f, do louvor. Observamos, portanto, um manifesto sincretismo religioso, em que o deus Tup est sobreposto a Jesus Cristo dos missionrios, que tanto se esforavam por evangelizar os filhos do mato do Novo Mundo. A terra da Amaznia considerada a mais bela criao divina e como tal ela se tornara sagrada e merece ser celebrada e louvada em canes. Contudo, tambm urgente preserv-la dos assaltos da civilizao capitalista e indu