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UNIVERSIDADE DO EXTREMO SUL CATARINENSE – UNESC PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO CURSO DE MESTRADO EM EDUCAÇÃO ROSILENE DE FÁTIMA KOSCIANSKI DA SILVEIRA A CONTRIBUIÇÃO DA LITERATURA NO PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: UMA REFLEXÃO MEDIADA PELO OLHAR DA CRIANÇA CRICIÚMA, MARÇO DE 2008

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UNIVERSIDADE DO EXTREMO SUL CATARINENSE – UNESC

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

CURSO DE MESTRADO EM EDUCAÇÃO

ROSILENE DE FÁTIMA KOSCIANSKI DA SILVEIRA

A CONTRIBUIÇÃO DA LITERATURA NO PROCESSO DE

ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: UMA REFLEXÃO MEDIADA PELO

OLHAR DA CRIANÇA

CRICIÚMA, MARÇO DE 2008

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ROSILENE DE FÁTIMA KOSCIANSKI DA SILVEIRA

A CONTRIBUIÇÃO DA LITERATURA NO PROCESSO DE

ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: UMA REFLEXÃO MEDIADA PELO

OLHAR DA CRIANÇA

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Educação no curso de Mestrado em Educação da Universidade do Extremo Sul Catarinense, UNESC. Orientador Prof.: Dr Celdon Fritzen

CRICIÚMA, MARÇO DE 2008

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S587c Silveira, Rosilene de Fátima Koscianski da. A contribuição da literatura no processo de alfabetização e

letramento: uma reflexão mediada pelo olhar da criança / Rosilene de Fátima Koscianski da Silveira; orientador: Celdon Fritzen. - Criciúma: Ed. do Autor, 2008. 116 f. ; 30 cm.

Dissertação (Mestrado) - Universidade do Extremo Sul Catarinense. Programa de Pós-Graduação em Educação, 2008.

1. Alfabetização. 2. Letramento. 3. Literatura. 4. Educação. l. Título.

CDD. 21ª ed. 372.4

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação

Bibliotecária: Flávia Cardoso – CRB 14/840 Biblioteca Central Prof. Eurico Back – UNESC

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ROSILENE DE FÁTIMA KOSCIANSKI DA SILVEIRA

A CONTRIBUIÇÃO DA LITERATURA NO PROCESSO DE

ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: UMA REFLEXÃO MEDIADA PELO

OLHAR DA CRIANÇA

Dissertação aprovada pela Banca Examinadora para obtenção do grau de Mestre em Educação, no curso de Mestrado em Educação da Universidade do Extremo Sul Catarinense, UNESC, com linha de pesquisa em História, Formação e Exercício Profissional.

Criciúma, 18 de Março de 2008.

BANCA EXAMINADORA

Prof. Celdon Fritzen – Doutor em História e Teoria Literária – (UNESC)

Orientador

Profª. Ana Claudia De Souza – Doutora em Lingüística – (UFSC)

Profª. Maria Isabel Leite – Doutora em Educação – (UNESC)

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Dedico.... À minha mãe Otilia (em memória) – sabedoria profunda... com ou sem palavras!

AGRADECENDO... Aos CO-AUTORES desta pesquisa, alunos da primeira série do Ensino Fundamental da Escola de Educação Básica Irmã Edviges, Criciúma – SC, que aceitaram dialogar... ALBANO, Josué Medeiros ALVES, Lara Fabian Leacina BITENCOURT, Francielen Soares COLOMBO, Vitor Carlos CORREA, Rodrigo Daminelli DUARTE, Stefani Borges JOAQUIM, Isaac Borges JOSEPHINO, Elton Bacelar LOCKS, Pâmela Henrique MIRANDA, Luiz Filipe Pavesi OENNING, Juliano Bittencourt PEDROSO John Kennedy Vargas PORTO, Karoline Gonçalves REBELO, Sarah das Almas RINALDI, Rafaela Pedro ROSA, Bruno Teixeira da SANTOS, Bruno Cardoso dos SANTOS, Thiago Monteiro dos SANTOS, Willian Caetano dos SILVA, Luiz Filipe Alano da VALIM, Mariany Nicolau Minha gratidão!

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AGRADECENDO... Ao professor Celdon, orientador atento e amável – guia primoroso. À banca de qualificação e defesa pelas intervenções necessárias e frutíferas – professora Ana Claudia – atenta aos detalhes, Professora Bel – a generosidade em pessoa. Aos professores do mestrado, por compartilhar seus conhecimentos. Aos colegas do curso com quem partilhei o projeto de pesquisa, em especial, Adriana e Luciana que acompanharam de perto as alegrias e percalços da sua realização. Ao Walter – secretário atencioso. Aos parceiros do GEDEST, GPEI e Grupo de Estudos em Walter Benjamim – em especial, Ana Maria – valiosíssimas contribuições. Ariane e Valquiria, mais que assessoria tecnológica. À direção, funcionários, corpo docente e discente da EEB Irmã Edviges, pelo acolhimento de uma idéia. Ao esposo Albertino – fiel colaborador, exercendo múltiplas funções, inclusive a de cinegrafista amador. Ao filho José Vinícius, que chegou trazendo mais um motivo para eu ouvir e tentar compreender as crianças. Ao meu pai Carlos, de quem herdei o otimismo profissional. Aos queridos Claudair, Joana, Valdenir, Luciana e Alice, pela compreensão nas minhas ausências. À amiga Rosângela, com que compartilhei a expectativa do ingresso no curso. A Seicho-No-Ie, filosofia que faz a diferença. A todas as pessoas que de alguma forma contribuíram para o êxito desse projeto. Muito Obrigado!

6

“Uma vida humana é uma ficção que o homem inventa à medida

que caminha”.

(HELD, 1980, p.18).

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RESUMO Esta pesquisa teve como alvo refletir sobre a contribuição da literatura no processo de alfabetização e letramento da criança a partir da escuta desta. Com vistas à consecução do estudo, a pesquisa utilizou a abordagem qualitativa com as estratégias propostas pelos espaços de narrativa, cuja base teórica contempla autores que entendem a linguagem como essencial na constituição dos sujeitos, e a criança como ator social que produz linguagem e cultura. Inicialmente, este estudo procede a uma análise das conexões históricas e teóricas da alfabetização e do letramento com a literatura; depois, a uma discussão das possibilidades desencadeadas pela literatura, enquanto canal de experiência estética e poética, na formação do leitor/autor. Em seguida, descreve-se o trabalho realizado em parceria com 21 crianças da primeira série do Ensino Fundamental, da Escola de Educação Básica Irmã Edviges – vinculada à Rede Pública Estadual, situada no município de Criciúma-SC. A partir das falas das crianças, as quais tiveram abertura de espaços para a narração e/ou criação de histórias e poesias, buscou-se uma forma de pensar tanto a criança como protagonista do processo da sua aprendizagem, quanto o papel da literatura na escola, como linguagem viva, dinâmica e mobilizadora de saberes e de sujeitos. Palavras-chave: alfabetização, letramento, literatura e pesquisa com crianças.

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ABSTRACT This research has the objective of studying the contribution of literature to literacy and to the alphabetization process of children, taking into consideration the voice of the child. In order to achieve this objective the research used the qualitative approach and strategies proposed by the narratives spaces, a theory whose authors understand language as having fundamental importance in the subjects’ formation, and children as social actors who produce language and culture. First, this study presents an analysis of the historical and theoretical connections among alphabetization, literacy and literature; then, it presents a discussion on the possibilities created by the literature as a channel of aesthetic and poetic experience, in the reader’s, author’s formation. Later on, this research describes the work done in partnership with twenty-one children who study in the first year of the primary school at Escola de Educação Básica Irmã Edviges, a public school situated in Criciúma (SC). Based on the children’s oral production (narratives and poems), this work proposes a way of thinking the children as protagonists of their learning process and the role of literature in schools as a living, dynamic language that mobilizes of knowledge and subjects. Keywords: alphabetization, literacy, literature, research with children.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 11

CAPÍTULO I ........................................................................................................................ 16

1 A ALFABETIZAÇÃO, O LETRAMENTO E A LITERATURA ........................................... 16

1.1 ALFABETIZAÇÃO: PERCURSO HISTÓRICO E TEÓRICO ......................................... 17

1.1.1 A escrita e a alfabetização na sociedade moderna ................................................ 17

1.1.2 A alfabetização.......................................................................................................... 19

1.1.3 A alfabetização no Brasil.......................................................................................... 22

1.1.4 A alfabetização e o letramento................................................................................. 25

1.1.5 Modelos de letramento............................................................................................. 28

1.2 A LITERATURA ............................................................................................................ 30

1.2.1 A literatura infantil .................................................................................................... 32

1.2.2 Os livros para criança e a qualidade literária ......................................................... 35

1.2.3 A cartilha: um livro infantil para além do didático.................................................. 38

1.2.3.1 Objeto histórico e cultural..................................................................................... 39

1.2.3.2 A cartilha, o leitor e a leitura ................................................................................. 42

1.3. A ABORDAGEM NA PESQUISA COM CRIANÇAS .................................................... 47

1.3.1 A construção da infância ......................................................................................... 49

1.3.2 A infância na contemporaneidade........................................................................... 51

1.3.3 Propostas metodológicas na pesquisa com crianças ........................................... 53

CAPÍTULO II ....................................................................................................................... 59

2 O CANTEIRO DE OBRAS OU O CAMPO DE PESQUISA .............................................. 59

2.1 APRESENTANDO O CAMPO DE PESQUISA.............................................................. 59

2.1.1 “[...] Agora mudei de idéia!”: a entrada em campo e as primeiras percepções ... 63

2.2 FALAS, HISTÓRIAS, POESIAS: CONSTRUINDO AS CATEGORIAS DE ANÁLISE... 64

2.2.1 A formação do grupo e as experiências iniciais..................................................... 65

2.2.2 “Quero contar uma história” ou a narração e co-autoria na interação com a

literatura ............................................................................................................................. 68

10

2.2.3 “Poesia do menino, que sou eu [...]”: a experiência lúdica com a linguagem

poética................................................................................................................................ 78

2.2.4 “A primeira palavra que aprendi foi meu nome...”. Aprender a ler e escrever:

criando estratégias, buscando e produzindo significados............................................. 89

CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................. 95

REFERÊNCIAS ................................................................................................................. 103

ANEXOS ........................................................................................................................... 110

11

INTRODUÇÃO

Ao sistematizar o relato dessa pesquisa que teve como foco central do trabalho

investigativo o propósito de reflexionar sobre a contribuição da literatura no processo de

alfabetização e letramento da criança, exponho inicialmente e com satisfação o quanto esse

objetivo agigantou-se a partir do momento em que optei por desenvolver a pesquisa de

campo convidando a criança a tornar-se depoente, investigando o problema, considerando o

seu ponto de vista. Essa opção requereu certa dose de coragem, pois foi necessário despir-

me de algumas certezas e ir a campo aberta ao que pudesse ser encontrado e tecer

reflexões e entendimentos a partir dos achados junto aos sujeitos participantes.

Os objetivos específicos pretendidos se constituíram na análise da conexão

histórica e teórica da alfabetização e do letramento com a literatura; na discussão das

possibilidades desencadeadas pela literatura na formação do leitor/autor, a partir das falas

da criança; e na abertura de espaços para a narração e/ou criação de histórias e poesias

para e pelas crianças, refletindo sobre o lugar da linguagem literária no processo de

aprendizagem do código escrito e na escola como um todo. A definição desses objetivos

pautou-se na percepção de que embora nas últimas décadas a criança e o seu

desenvolvimento harmônico e integral tenham se tornado freqüentemente motivo de estudos

para pesquisadores de todas as áreas, as ações efetivas da escola ainda não se

solidificaram nessa proposição. Embora avançando teoricamente, a escola tem preservado

um caráter disciplinador e regulador do comportamento, abrindo pouco espaço para o

pensamento, a voz, e principalmente para a imaginação da criança.

Ao referir-me ao pensamento falo da criança-sujeito-pensante, agente ativo da sua

aprendizagem que aprofunda a consciência de si mesmo e desenvolve capacidades

lingüísticas (e muitas outras) também no processo de alfabetização com letramento a

despeito das formas em que este possa ser conduzido. Uma aprendizagem pensada na

perspectiva vigotskiana, que considera a interação fator essencial. E mais do que isso, tem

na interlocução entre as múltiplas vozes presentes no espaço escolar seu elemento

constitutivo e na qual a imaginação pode ser componente deflagrador na construção dos

saberes e dos próprios sujeitos. A imaginação entendida não como “algo distinto da razão,

mas sim o que dá flexibilidade, energia e vivacidade à razão” (EGAN, 2007, p.34) e que no

processo de aprendizagem da linguagem escrita torna esta mais significativa e dinâmica.

Esse foi um dos principais fatores que levei em conta para pensar esse momento escolar

específico vivenciado pela criança como parte integrante e extremamente importante do seu

processo de formação e não como um aspecto isolado. Além disso, na grande maioria dos

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estudos relacionados à infância1 a criança ainda é considerada objeto e não sujeito

participante de uma pesquisa.

Em relação à literatura, não pretendi focalizar o tênue limite (se existente) entre

os gêneros adulto e infantil, mas abordei-a como um elemento significativo da aprendizagem

que se inicia muito antes da criança chegar à primeira série2 do Ensino Fundamental. Da

mesma forma que entendo não ser possível estabelecer fronteiras rigorosas entre o gênero

adulto e infantil na literatura sem correr o risco de parecer arbitrário, tampouco acredito ser

possível demarcar com precisão o início e o fim do processo de alfabetização e letramento.

Pois, tomando como ponto de partida uma visão sociointeracionista “a alfabetização,

enquanto processo individual não se completa nunca, visto que a sociedade está em

contínuo processo de mudança, e a atualização individual para acompanhar essas

mudanças é constante” (TFOUNI, 2002, p. 15). Apenas, como uma delimitação

metodológica, direcionei o foco deste estudo para as crianças3 que freqüentam a primeira

série do Ensino Fundamental, buscando uma interlocução com elas, enquanto protagonistas

do processo. As crianças co-autoras desta pesquisa encontravam-se nos momentos iniciais

da alfabetização (formal/escolar), uma vez que a pesquisa de campo foi realizada no

primeiro semestre do ano letivo – 2007.

Esse ano letivo abarcou a implementação das leis nº 11.114 de maio de 2005 e

11.274 de fevereiro de 2006, que promoveram alterações em alguns artigos da Lei de

Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei nº 9394/96, implementando o Ensino

Fundamental de nove anos que prevê o ingresso da criança aos seis anos de idade.

Para realizar a pesquisa, parti do pressuposto de que a alfabetizar e letrar é

transcender os limites da mera aquisição técnica da leitura e da escrita iniciando a formação

de um leitor que se faz autor nesse percurso e torna-se capaz de escrever, compor, criar,

imaginar, pensar, levantar hipóteses e, de fato e de direito, se habilita a compreender e se

expressar através da linguagem oral e escrita no seu tempo e espaço. Pensar o processo de

alfabetização e letramento nessa perspectiva é imaginar, em primeiro lugar, uma escola com

abertura para a emoção e a imaginação enquanto características inerentes ao ser humano.

É sonhar com um ambiente que possibilite o desenvolvimento integral do sujeito,

repensando e re-significando o uso das ferramentas utilizadas no ambiente escolar, entre as

quais está a literatura. 1 In-fans, aquela que não fala. JOBIM e SOUZA, Solange. II Seminário “Educação, Imaginação e linguagens artístico-culturais” Criciúma, 28/08/2006. 2 Com a implementação do Ensino Fundamental de nove anos, o Ministério da Educação deixou em aberto para que os sistemas pudessem utilizar a nomenclatura mais adequada aos sistemas (série, ano, ciclo). O Estado de Santa Catarina na Rede Pública Estadual (a qual a escola em que foi desenvolvida a pesquisa está vinculada) optou por continuar utilizando a denominação série. Portanto, nesse estudo, ao referir-se à turma participante identificarei como “primeira série”. 3 Como a pesquisa aconteceu no ano de implementação da lei, a maioria das crianças que dela participou, completa sete anos em 2007.

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Os termos alfabetização e letramento4 aparecem juntos em todos os momentos

da pesquisa, pois embora cada termo possua sua especificidade, na qual a alfabetização é

entendida como a aprendizagem do código escrito e o letramento como a utilização da

competência de ler e escrever para comunicar-se na prática social, o entendimento que

busco fortalecer é de que não é possível alfabetizar sem objetivar o letramento ou vice-

versa. Portanto, são termos complementares e indissociáveis.

A primeira e a segunda série da Educação Básica representam, pela nova

realidade legal, as classes para a alfabetização5. A estas, entre outras atividades, cabe

ocupá-las, durante o período de dois anos, em desenvolver as habilidades técnicas da

escrita e da leitura. Um tempo que, suficiente ou não, assume vital importância na história

escolar de uma criança quando os seus primeiros movimentos se direcionam no sentido de

constituir formas peculiares para lidar com a aprendizagem. São nesses primeiros

movimentos que a criança busca se autoperceber estabelecendo uma relação saudável (ou

não) com a escola e com o conhecimento. Afinal, esse período representa um marco

significativo na vida da criança.

Ao planejar as estratégias metodológicas para estudar a temática, inicialmente

pensei em desenvolver oficinas que têm, de certa forma, uma identificação com o que Leite

(2006) chama de espaço de narrativa6. Principalmente pela idéia básica de ouvir a fala da

criança, observar o que ela tem a dizer, criando situações de encontro onde realizássemos

contação de histórias fantásticas, leituras de poesias, criação de enredos... Enfim, interagir

por meio da literatura com a linguagem oral e escrita, com os sujeitos da pesquisa e, nessa

interação, observar a contribuição da literatura no processo de alfabetização. A aproximação

inicial com os procedimentos previstos pelos espaços de narrativas despontou como um

caminho possível e realizei a pesquisa, experimentando essa metodologia.

O estudo realizado, embora esteja diretamente relacionado aos campos da

linguagem e da arte – uma vez que o objetivo maior é compreender a contribuição literária

(na sua dimensão estética e poética) no processo de alfabetização e letramento da criança -

está atravessado por outros corpos teóricos, principalmente pela antropologia, psicologia e

filosofia. Na antropologia, por convidar a criança como sujeito-co-autor da pesquisa e

4 No estudo sobre alfabetização organizado pela Secretaria de Educação do Estado de Santa Catarina – Gerência de Criciúma, no segundo semestre de 2007, discutiu-se a idéia de desenvolver a alfabetização com letramento, uma idéia que não difere da proposta que explicito anteriormente, por isso, posso usar os termos ligados por “e” ou “com” o sentido permanece inalterado. 5 No estudo acima referido, foi enfatizado a constituição de “classes para alfabetização” ao invés de “classe de alfabetização” tratando da primeira e da segunda série do Ensino Fundamental, que em tese, representa um tempo maior para que a criança possa consolidar a aquisição da leitura e da escrita. 6 Essa é uma expressão cunhada no Grupo de Pesquisa, Ensino e Extensão em Educação Estética – GEDEST, na UNESC, do qual faço parte, a partir de discussões metodológicas de pesquisa, por isso ela sempre aparece em itálico neste texto.

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percebê-la agente da sua aprendizagem; pela possibilidade de capturar as significações

atribuídas por este “outro criança”, compreendendo-a enquanto categoria social e histórica.

Na psicologia, porque ao problematizar a relação entre literatura e educação reivindica-se a

abertura de um espaço para abordar na escola assuntos de certa forma preteridos por ela,

ou vistos de forma estigmatizada, e que dizem respeito aos conflitos e a própria condição

humana. E pela filosofia, por reconhecer a predominância de modelos teóricos objetivos no

processo de formação humana que, segundo Azevedo (2005, p. 32), apresentam:

um mundo idealizado, regido por normas abstratas e pré-concebidas, onde a priori tudo se encaixa. [...] Nesse modelo, o ser humano é apresentado como um elemento lógico e previsível, sempre buscando sua natural e mecânica integração no status quo.

A duração de dois anos para o curso de mestrado é um fator que dificulta, mas

não inviabiliza a pesquisa. Ir a campo dentro desse limite de tempo implicou em riscos de

colher ou tratar os dados de forma acelerada, um risco que decidimos correr (eu e o

orientador). Valendo-me do espaço de narrativa como procedimento metodológico de

pesquisa, efetivamos os encontros e por meio do diálogo aberto pudemos reflexionar sobre

a forma como ela [a criança] vivencia esse momento e como a literatura pode vir a atuar no

processo. Realizei a pesquisa de campo em uma escola da rede pública estadual do

município de Criciúma, em Santa Catarina. As crianças, alunas da primeira série, são

consideradas co-autoras não apenas porque suas falas, opiniões e produções (orais e

gráficas) foram imprescindíveis para as reflexões e entendimentos possíveis dentro do

contexto em que o diálogo foi estabelecido. Mas, principalmente pela imprevisibilidade da

própria metodologia utilizada que confere aos sujeitos um alto grau de interferência nos

rumos da pesquisa. Em nenhum momento pretendi uma verdade final, mas empenhei-me na

escuta sensível da voz da criança, nas angústias que permeiam esse momento de sua vida

e nas idéias, histórias e poesias que elas são capazes de produzir a partir da interação com

a literatura, uma vez que esse era o propósito.

O caminho que me fez chegar ao problema de pesquisa, além da justificativa

pautada nos resultados que a escola vem produzindo em termos da relação entre os

sujeitos e o código escrito, que percebo também por estar imersa nesse universo, tem uma

forte ligação com as reminiscências que conservo da minha própria infância. Eu poderia

afirmar que a opção pelo objeto de estudo e as reflexões que pude realizar estão, de alguma

forma, relacionadas com a experiência que tive com a linguagem literária na infância e que

influenciaram o meu modo de lidar com a leitura e com a escrita em situações dentro ou fora

da escola. Em função disso, elaborei um memorial que, temendo ser excessivo para a

introdução, pode ser consultado ao final deste trabalho (vide ANEXO 1).

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O percurso investigativo, a metodologia adotada e a interação entre sujeitos

participantes conduziram a uma reflexão acerca do(s) conceito(s) de infância(s) que

permeiam as ações, os espaços e os instrumentos presentes na escola. Suscitaram ainda

outras interrogações que extrapolam os limites desse estudo. Registrei essa experiência

com consciência de que nela contém muito do que sou enquanto professora e dos co-

autores que a tornaram possível, organizando a dissertação em dois capítulos, que

representam dois momentos diferenciados e interligados na pesquisa.

Apresento no primeiro capítulo a sustentação teórica, com a trajetória da

alfabetização; o surgimento e a influência do termo letramento; a literatura, a literatura

infantil e o entrelaçamento com a educação; a reflexão sobre a qualidade dos livros

destinados às crianças, incluindo a cartilha – tratada na atualidade como livro de

alfabetização. Trago ainda questões relacionadas à construção histórica e social da infância,

os conceitos coexistentes nos dias atuais e a opção metodológica da pesquisa com

crianças, denominada espaços de narrativa.

No segundo capítulo, propositadamente chamado de Canteiro de obras, trato da

pesquisa de campo, que se concentra em torno de três categorias de análise: a primeira é

constituída do registro (na íntegra) das histórias narradas pelas crianças e das reflexões que

elas suscitaram; a segunda traz, além dos textos inéditos construídos pelas crianças, a

problematização do lugar da poesia na escola e na vida dos sujeitos; e a última, igualmente

tecida com as palavras das crianças, tornaram-se fontes reveladoras dos temores,

expectativas, estratégias e das nuances pessoais envolvidas no aprendizado do código

escrito. Seguindo as pistas que pude encontrar, fui teorizando a experiência que finalizo com

algumas considerações e tentando responder a interrogação que me acompanhou durante o

trajeto: seria a linguagem literária uma aliada no processo de alfabetização com letramento?

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CAPÍTULO I

1 A ALFABETIZAÇÃO, O LETRAMENTO E A LITERATURA

A investigação do processo de alfabetização e letramento constitui uma tarefa

árdua, principalmente pela pluralidade de entendimentos existentes acerca dos termos.

Pesquisar a contribuição da literatura nesse processo, considerando o ponto de vista dos

atores sociais implicados diretamente, ou seja, das crianças, torna essa tarefa ainda mais

complexa, porém instigante na mesma proporção. Ao fazer o percurso teórico pelas obras

com as quais entrei em contato, constatei que existe uma extensa bibliografia que trata

especificamente de cada conceito que compõe o título desse capítulo e embora eu tenha

desenvolvido a pesquisa de maneira articulada é necessário fazer uma delimitação teórica

das especificidades de cada termo, bem como da perspectiva sobre a qual a análise foi

alicerçada.

Quero esclarecer, inicialmente, que apresento os termos alfabetização e

letramento juntos em todos os momentos da escrita e que essa é uma ação proposital que

defende a ênfase da indissociabilidade de ambos na prática pedagógica, sem ignorar a

especificidade que cada conceito possui. Pois, compreendo que a alfabetização precisa ser

pensada na perspectiva do letramento e, nesse sentido, o próprio conceito de alfabetização

amplia seus horizontes e passa a ser visto como “um processo ativo de leitura e

interpretação, onde a criança não só decifra o código escrito, mas também o compreende,

estabelece relações, interpreta” (KRAMER, 1986, p. 168) e pelo qual descobre “que a

palavra escrita é mais uma forma de expressar as coisas, idéias e sentimentos [tornando-se]

[...] a base fundamental para a aquisição da leitura e da escrita” (idem, p. 170).

Se conseguíssemos assumir isso, permanentemente, não haveria a

necessidade de distinção, chamaríamos [apenas] de alfabetização como fizemos no

passado. Mas, reconhecendo que esta não é, ainda, a nossa realidade, é necessário

distinguir alfabetização de letramento, pelo menos em termos técnicos. É o que nos adverte,

Magda Soares (2004), enfatizando o quanto o surgimento do termo e as discussões acerca

do letramento ampliaram, sim, o conceito multifacetado de alfabetização, mas que uma

diferenciação entre ambos é necessária, principalmente em países onde a questão da

alfabetização não foi debelada. Então, de forma introdutória e simplificada, poderia definir a

alfabetização como a aprendizagem técnica do código escrito e o letramento como a

utilização da competência de ler e escrever para comunicar-se na prática social. Sem, com

isso, perder o horizonte de trabalhá-los, concomitantemente.

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A alfabetização desenvolvida na perspectiva do letramento pode ter na

linguagem literária uma ferramenta indispensável, pois “como arte, é a literatura, em suas

diferentes formas, que propicia ao leitor o acesso à sua interioridade e o estabelecimento de

relações de seu mundo interior com o exterior” (SARAIVA et al, 2001, p. 13). Sob esse

enfoque, “a aprendizagem da leitura é uma experiência que deve ultrapassar o domínio da

decodificação sígnica, para transformar-se em meio de autoconhecimento e apreensão do

real” (Idem). Zaccur (2001, p. 34), refletindo a partir de que modos e sentidos se faz a

alfabetização, afirma que cada um de nós é um ser em construção e o processo de

aprendizagem se constitui num movimento em espiral que se realimenta na dinamicidade de

interações e iterações. A autora faz um questionamento que considero pertinente para as

relações que podem ser estabelecidas entre a alfabetização, o letramento e a literatura: Por

que não pensar que cada criança estará não só se alfabetizando, mas também se

alfabecriando ao se apropriar da escrita como linguagem sua?

Permitir à criança alfabecriar é proporcionar-lhe a sua forma própria de lidar com

a linguagem e de atribuir significados, é realizar a sua experiência pessoal, única e

intransferível numa escola que consinta aos seus sujeitos a oportunidade de poder brincar

com um código que é arbitrário. Desse modo a escola propiciará a vivência de situações

lúdicas, prazerosas, poéticas e criadoras pelos caminhos da leitura e da escrita sem medo

do fracasso. É em busca dessa escola que encaminho a reflexão, utópica de certa forma,

mas possível quando seus atores sociais puderem compartilhar experiências num cenário

em que a criança seja vista como produtora de cultura.

1.1 ALFABETIZAÇÃO: PERCURSO HISTÓRICO E TEÓRICO

1.1.1 A escrita e a alfabetização na sociedade moderna

Segundo Tfouni (2002), a escrita (produto humano por excelência) data de cerca

de 5.000 anos antes de Cristo, porém o processo de difusão e a adoção dos sistemas

escritos (pictográficos, ideográficos e fonéticos) pelas sociedades antigas aconteceram de

forma lenta e condicionada aos fatores políticos e econômicos. Dessa forma, foi somente

nos séculos V e VI a.C. que foi possível reconhecer a sociedade grega como “letrada”. Essa

sociedade passou por um processo de transformação cultural, política e social que propiciou

o “aparecimento, entre outras coisas, do pensamento lógico-empírico e filosófico, a

formalização da história e da lógica enquanto disciplinas intelectuais, e a própria democracia

grega que tem íntima relação com a escrita fonética na Grécia e Jônia” (p. 14).

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A escrita é uma forma de memória do conhecimento produzido pela humanidade

e uma ferramenta a mais no sentido de elaborar e comunicar coisas, idéias e sentimentos.

“Pode ser tomada como uma das causas principais do aparecimento das civilizações

modernas e do desenvolvimento científico, tecnológico e psicossocial da sociedade nas

quais foi adotada de maneira ampla” (TFOUNI, 2002, p. 14). Mas, é também, segundo a

autora, um instrumento de poder e, portanto, não é produto neutro.

A instrumentalização do homem para o uso do código escrito foi histórica e

predominantemente assumida pela escola e a alfabetização uma decorrência necessária

para possibilitar a aquisição de habilidades requeridas para a leitura e a escrita. Durante

muito tempo a alfabetização foi entendida no sentido elementar do termo como sendo o

processo pelo qual nos apropriamos de um código escrito [o alfabético]. Giroux (apud

TFOUNI, 2002) faz uma crítica à alfabetização definida principalmente em termos

mecânicos e funcionais que de maneira geral confunde-se com a escolarização.

A alfabetização enquanto sinônimo de escolarização no sentido reducionista dos

termos correlaciona a aquisição da escrita com o desenvolvimento cognitivo. Uma visão que

muitas vezes pode ser usada para separar grupos letrados e não-letrados nas sociedades

modernas que usam a escrita, instaurando uma dicotomia na qual essa divisão “vem

substituir as divisões mais antigas entre povos primitivos e povos avançados, pré-lógicos e

lógicos, tradicionais e modernos, pensamento mítico e pensamento científico” (KLEIMAN,

1995, p. 23). Os estudos que apontam a associação da escrita ao desenvolvimento cognitivo

carregam ainda outros problemas, entre eles o de legitimar argumentos que reforçam o

preconceito7 “chegando até criar duas espécies, cognitivamente distintas: os que sabem ler

e escrever e os que não sabem” (idem, p. 27). Essa visão da escrita caracteriza o modelo

autônomo8 de letramento e alfabetizado que, sob essa ótica, seria o cidadão capaz de

dominar os sistemas gráficos de uma língua (codificando, decodificando, lendo,

escrevendo), pois desenvolveu e usa a capacidade metalingüística em relação à linguagem.

“É alfabetizado porque é capaz de distinguir palavras, sílabas, morfemas, grafemas, etc., [...]

principalmente aprendidos na escola, como resultado de uma competência individual”

(COSTA, 2000, p. 15).

Não podemos esquecer que a alfabetização é fundamental para a formação do

leitor e numa sociedade letrada (como a nossa) o seu domínio é entendido como

possibilidade de ascensão social, como forma de participação efetiva na sociedade e

contribui para a emancipação do sujeito. Mas, lamentavelmente, ela tem sido tratada como

um problema e usada como um mecanismo político-ideológico de dominação e exclusão.

7 RATTO (1995) faz uma análise da materialização do preconceito que a sociedade letrada constrói associando a imagem do analfabeto ao de um primata. 8 Explicito o modelo autônomo no item 1.1.5 – modelos de letramento.

19

1.1.2 A alfabetização

Os estudos referentes à alfabetização passaram por diferentes concepções em

sua trajetória histórica9, sendo que na primeira metade do século XX o âmbito da pesquisa e

do discurso acadêmico focalizava a questão do ensino, com prioridade para a investigação

dos métodos10 de alfabetização com a fundamentação teórica centrada na Psicologia,

principalmente no Associacionismo11.

Nessa época, de forma geral, a preocupação girava em torno de pelos menos

dois métodos diferentes, com duas formas diferenciadas de se pensar a alfabetização: os

métodos sintéticos12 (que insistiam na correspondência entre a linguagem oral e escrita e

que esta deveria partir de elementos mínimos, “as letras” ou “fonemas” no caso do método

fonético, para os maiores, “silabas/palavras/frases”, como o caso do método alfabético) e os

métodos analíticos (nos quais a leitura é concebida como um ato “global” e “ideovisual”, que,

portanto deveria se iniciar com unidades significativas para a criança que partiria do todo

para o elemento menor). Paralelo a esses métodos e tentando utilizar o que haveria de

melhor em ambos, se propôs ainda o chamado método “misto” ou “global”, que segundo

Ferreiro e Teberosky (1999, p. 23) “participariam da benevolência de uns e de outros”.

De acordo com Silva (2004), nos anos 60, a questão da alfabetização começa

ser estudada a partir do fracasso escolar. A ideologia do déficit é amplamente divulgada

atribuindo aos alunos oriundos das camadas populares uma desvantagem, pois o meio em

que viviam não lhes oferecia as condições ideais para o pleno desenvolvimento e a escola

teria a função de compensar essa deficiência. Essa questão é aprofundada por Carraher

(1986), que discute alfabetização e pobreza, e Kramer (1982) que explicita a política de

educação compensatória no pré-escolar na obra: A política do pré-escolar no Brasil: a arte

do disfarce.

Na segunda metade do século XX, o esforço em compreender os processos de

aquisição da leitura e da escrita se intensifica. Ferreiro e Teberosky, com base na teoria

9 Barbosa (1994) mostra o trajeto histórico da alfabetização considerando o ano de 1789 como marco fundamental da associação entre alfabetização e escola. Refere-se ao ideal republicano de universalização da cultura escrita, concretizando o modelo que concebe a alfabetização como “aprendizagem coletiva e simultânea dos rudimentos da leitura e da escrita” (p.16). 10 Números que comprovam essa tendência estão em SOARES (2006). 11 Segundo o modelo associacionista a aquisição da linguagem na criança se dá pela imitação do meio social que a cerca. Por exemplo, quando os adultos apresentam um objeto para a criança, acompanham essa apresentação com uma emissão vocálica – por reiteradas associações entre emissão sonora e a presença do objeto, a emissão do som acaba por se transformar em signo do objeto, se faz “palavra” (nessa perspectiva a criança espera passivamente o reforço externo). 12 Maiores detalhes sobre os métodos do ensino da leitura ver FERREIRO e TEBEROSKY, 1999; uma revisitação aos métodos empregados para alfabetizar, em CARVALHO, 2005.

20

piagetiana13, desenvolvem seus estudos buscando descobrir o sujeito cognoscente, ou seja,

“o sujeito que busca adquirir o conhecimento [...] aquele que procura ativamente

compreender o mundo que o rodeia e trata de resolver as interrogações que este mundo

provoca” (1999, p. 29) e publicam14 os resultados na obra: “Loz sistemas de escritura em el

desarollo del niño” traduzido para o português como Psicogênese da língua escrita. Essa

obra causou um grande impacto na educação brasileira e foi considerada por alguns

estudiosos como um marco divisório na história da alfabetização. As discussões anteriores

mantinham o foco na avaliação dos métodos de ensino e a partir dos estudos desenvolvidos

pelas autoras o eixo central foi deslocado do ensino para a aprendizagem, partindo não de

como se deve ensinar, mas de como a criança aprende. Até então, a idéia mais aceita era

de que havia pré-requisitos para que a criança pudesse aprender a ler, um conjunto de

habilidades conhecidas como prontidão para alfabetização.

Para Ferreiro e Teberosky (1999), até 1962 a maior parte dos estudos sobre a

linguagem infantil ocupava-se predominantemente da quantidade e variedade de palavras

utilizadas pela criança: neles, a preocupação maior era com o método de alfabetização

utilizado. Essa etapa foi tomada como ponto de partida (pelas autoras) para fazer a distinção

entre métodos de ensino e processos de aprendizagem.

Paralelo aos estudos de Ferreiro e Teberosky, outras pesquisas relacionadas à

aquisição da linguagem escrita, visando outros aspectos além dos métodos, estavam sendo

desenvolvidas, entre elas, a de Smolka (1980). A pesquisadora fez um estudo entrevistando

crianças de vários contextos sócio-econômicos no intuito de investigar os processos e as

estratégias que as crianças pequenas usam para interpretar a escrita no meio em que vivem

e identificar os conceitos que a Educação Infantil desenvolve sobre esse tipo de linguagem

antes de iniciar a instrução formal na escola. Nas palavras da autora, a aquisição da

linguagem escrita se configura como uma questão ampla e complexa que nos remete para

além dos métodos e nos faz:

[...] buscar historicamente, sócio-culturalmente, psicologicamente, raízes e origens desta forma de linguagem. Levanta a questão do signo, da capacidade humana de criar sinais e símbolos. Leva-nos a considerar, na sua gênese, do ponto de vista de nossa cultura ocidental, a relação pensamento/linguagem no movimento das interações humanas, [...] remete às teorias do conhecimento, ao aspecto filosófico da questão; e falar no movimento das interações humanas nos abre a dimensão política (p.21).

Magda Soares (2006), analisando a transformação paradigmática ocorrida a

partir dos anos 80 e acompanhando o movimento que se fez a partir deles, faz um alerta

que em decorrência do questionamento da validade dos métodos tradicionais se difundiu

13 Ferreiro e Teberosky utilizam os pressupostos epistemológicos centrais da teoria de Jean Piaget para aplicá-los à análise do aprendizado da língua escrita. Sobre isso ver: AZENHA,(Ática, 1995). 14 Os estudos de Emilia Ferreiro e Ana Teberosky foram publicados em 1979.

21

uma idéia de certa forma equivocada: a idéia de que não era necessário haver um método

para a alfabetização. Essa discussão ainda se mostra bastante polêmica nos dias atuais e

segundo a autora contaminada por duas questões: a primeira pelo fato de que os problemas

de aprendizagem da leitura e da escrita foram considerados, sobretudo metodológicos e, em

segundo lugar, porque na área da alfabetização o conceito “método” tornou-se

estereotipado, “sinônimo de manual ou um artefato pedagógico que tudo prevê e que

transforma o ensino em uma aplicação rotineira de procedimentos e técnicas” (p. 93).

Além de evidenciar uma visão reducionista do processo de aprendizagem da

língua materna, a crítica intensa aos métodos de alfabetização conduziu a perda da

especificidade do processo e na prática pedagógica gerou uma incerteza generalizada, não

solucionando e em certos casos até agravando o problema do fracasso escolar. Silva (2004,

p. 35) afirma que em geral a utilização dos métodos “não tem garantido a apropriação do

código lingüístico, e mesmo seu aprendizado não responde hoje às necessidades de leitura

e de escrita”, porém é necessário repensar essa questão superando o desconforto sofrido

pelos alfabetizadores, retomando o sentido de método no âmbito educacional. Para Magda

Soares (2006, p. 93), “método, na área de ensino, é um conceito genérico sobre o qual pode

ser abrigado tantas alternativas quantos quadros conceituais existirem ou vierem a existir”. E

ainda que numa re-significação e ampliação conceitual é possível compreender que:

Particularmente no campo do ensino das línguas (materna ou estrangeira, oral ou escrita), um “método” é a soma de ações baseadas em um conjunto coerente de princípios e hipóteses psicológicas, lingüísticas, pedagógicas, que respondem a objetivos determinados. Um método de alfabetização será, pois, o resultado da determinação dos objetivos a atingir (que conceitos, habilidades, atitudes caracterizarão a pessoa alfabetizada?), da opção por certos paradigmas conceituais (psicológico, lingüístico, pedagógico), da definição enfim, de ações, procedimentos, técnicas compatíveis com os objetivos visados e as opções teóricas assumidas (SOARES, 2006, p. 93).

Como é possível perceber, a autora defende sim um método consistente de

alfabetização, não no sentido estreito do termo, mas que considere as diferentes dimensões

imbricadas no processo. E mais ainda, que este seja balizado por uma concepção outra dos

processos de aprendizagem da língua escrita, na qual a criança seja vista como sujeito e

contemplada na sua dimensão psicológica, lingüística e, sobretudo, a social e política.

Nessa perspectiva, a noção de letramento, no sentido ideológico (explicitada no item 1.1.5)

é uma das possibilidades.

Para compreender a forma com que o processo de alfabetização e letramento

tem sido efetivado nos diferentes sistemas educacionais (brasileiros) nos dias atuais e quais

as veredas que as discussões teóricas têm tomado, trago alguns indicadores,

acompanhados de dados sobre a alfabetização no Brasil. Um percurso necessário para

22

aclarar a análise da introdução e da influência do termo letramento em nosso sistema de

ensino.

1.1.3 A alfabetização no Brasil

Na tentativa de perceber a realidade que envolve a alfabetização e o letramento

no âmbito educacional brasileiro poder-se-ia lidar com alguns indicadores, com pontos

diferenciados, mas totalmente interligados entre si: os índices históricos15 de analfabetismo16

que, por sua vez, vêm apresentando um decréscimo num ritmo significativo que a julgar por

este movimento estaria próximo de 0% nas décadas seguintes; as taxas de escolarização17

no sentido da universalização18 da Educação Básica que, amparada legalmente,

apresentam um crescimento sistemático e conseqüentemente têm contribuído para reduzir

os índices de analfabetismo; a repetência19 e a evasão nas séries iniciais como “outro”

problema ainda não solucionado e que tem na primeira série20 do Ensino Fundamental o

índice mais elevado. Contudo, deixo esse leque de fatores que estão relacionados ao

problema de pesquisa para focalizar uma questão mais subjetiva: os diferentes (e

rudimentares) níveis de letramentos produzidos pela escola.

Os níveis rudimentares de alfabetização e letramento de uma grande parcela da

população brasileira é um problema que precisa ser enfrentado, não apenas pela escola,

mas principalmente por ela. É elevado o número de sujeitos que passam pelos bancos

escolares e “aprendem” a técnica da escrita e da leitura, mas não se habilitam a utilizarem

essa ferramenta de forma competente, com autoria e autonomia na prática. Soares (2005)

15 Os dados oficiais do Ministério da Educação em relação aos índices de analfabetismo no Brasil (por década) registram os seguintes números: ano – 1820 mais de 99%; 1872 (ano do primeiro censo) com 82,3%; 1920 com 71,2%; 1940 com 61,1%; 1950 com 57,1% em 1960 com 46,7%; em 1970 com 38,7%; em 1980 com 31,9%; em 1990 com 24,2% e no ano 2000 com 16,7% . Esses dados foram exibidos no programa Salto para o futuro no dia 29/03/2003. 16 Entre 1986 e 1995 a taxa de analfabetismo no Brasil, na população de 15 anos e mais de idade, passou de 20,0% para 14,7%. Os valores para os anos de 1987, 1988, 1989, 1990, 1991, 1992, 1993 e 1995 foram, respectivamente, 20,0%; 17,0%; 19,7%; 19,0%; 19,0%; 18,3%; 16,3% e 15,5%. (IBGE, Censo Demográfico 1991 e Pesquisa nacional por amostra de domicílios 1986-1990, 1992-1993, 1995, dados não publicados). 17 Os dados do IBGE também apontam o aumento da escolarização das crianças e adolescentes na última década que por sua vez tem contribuído para a redução do analfabetismo no Brasil. 18 Todo o esforço governamental se concentra no sentido de colocar “todas” as crianças na escola, com oportunidade de ingresso, o que não significa que elas estarão em igualdade de condições. 19 Segundo BARROS, (2006) os índices de repetência e evasão nas séries iniciais colocam o país na 30ª posição no ranking mundial atingindo 21% dos alunos matriculados, em torno de 1,3 milhões de crianças que tiveram que repetir a primeira série em 2004. 20 Os dados do Ministério da Educação divulgados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira- (INEP) em 2001 apontam que: “[...] no período 1995/1996, a repetência no Brasil era de 30,2%, os dados atuais indicam uma queda de 28,5% em relação àquele período. A primeira série tem o maior índice de repetência, de 39,3% [...]”.

23

discute os dados oficiais e o conceito de analfabeto que pelo censo de 1991 estariam em

torno de 18% correspondente às pessoas que responderam “não” a pergunta: do

recenseador: “Sabe ler e escrever um bilhete simples?”. Segundo a autora, é no correr dos

anos 90 que começa a se discutir o conceito de alfabetização, reconhecendo que não é

possível reduzi-la ao “reconhecimento e uso das relações entre cadeia sonora da fala e a

cadeia gráfica da escrita, limitando-se ao primeiro ano de escolaridade, à chamada classe

de alfabetização” (Idem, [s.p.]).

A ampliação do conceito de alfabetização sugere uma abordagem diferenciada

para tratar da questão. A diferença que se apresenta, nos dias atuais, em nosso país (não

somente) é o fato de atentarmos para os níveis considerados precários de letramento,

pressupondo debelada a questão do acesso à escola, mas com poucas garantias de

aprendizagem efetiva. Na verdade, grande parte da população brasileira que está passando

pelos bancos escolares apresenta desempenho incipiente em leitura, interpretação e

produção textual. Seria impreciso quantificar essa população, mas não inviável analisar os

possíveis motivos que podem conduzir as pessoas a essa condição. É possível ter uma

idéia da gravidade do problema em Soares (2005) que faz menção à nota do jornal A Folha

de São Paulo, edição de 02/09/91, que apresenta como título da matéria “Analfabetos no

país já somam 60 milhões”. Segundo a autora, seria um absurdo se fosse considerado o

conceito técnico de analfabeto, pois esse número seria equivalente a quase metade da

população brasileira, mas em seguida vem a explicação: “Dados do IBGE dizem que apenas

18% são analfabetos, mas o número de “desqualificados” é muito maior” (idem [s.p.]), ou

seja, uma parcela significativa da população brasileira se encontra não ou semi-alfabetizado

mesmo tendo freqüentado a escola regular e/ou concluído o Ensino Fundamental, ou será

que essa situação teria se modificado?

Compreendendo que as circunstâncias pouco se modificaram, pois de maneira

geral continuamos produzindo rudimentares níveis de letramentos na escola, considerei

essa questão como um ponto chave para tratar a problemática da pesquisa. Uma vez que,

para além dos números oficiais ou reais que possamos acessar e deles fazer múltiplas

leituras, ou tomá-los como objeto de estudo, a minha indagação maior foi no sentido de

tentar compreender de que forma a literatura pode contribuir para efetivar um processo de

alfabetização com letramento no sentido amplo da formação humana, favorecendo a

educação de um sujeito capaz de expressar-se com autonomia por meio da linguagem oral

e/ou escrita assumindo a autoria do seu discurso. Ou seja, um sujeito que possa pensar e

interferir em sua realidade social. Buscar perceber a significação da literatura nesse

movimento, especificamente pelo olhar da criança imersa no processo de alfabetização e

letramento foi o desafio que me propus. Pensei, portanto, o problema de pesquisa a partir

das questões suscitadas pelos níveis de letramentos, considerados baixos, por entender

24

que a tarefa de alfabetizar e letrar precisa ser pensada no âmbito da significação, do fazer

sentido para o sujeito, mais do que dominar o objeto escrita, o sujeito precisa saber o que

fazer com ele.

Sem desconsiderar, evidentemente, a importância dos muitos elementos

envolvidos no processo de alfabetização, entendo ser o precário desempenho no uso do

código escrito na prática uma das mais graves manifestações desta problemática porque

oculta uma faceta política, social e ideológica de preservação de um modelo excludente que

faz com que a maior parcela da população não tenha acesso ao capital cultural produzido

pela humanidade. Resultado de um sistema de educação que se mostra ineficiente na

formação do homem (no sentido integral) e do leitor/ autor com autonomia para pensar e

produzir significados dentro do seu contexto específico. Porém, um sistema que se

configura, inegavelmente, o fator maior (quando não único) de possibilidade para a iniciação

de muitos sujeitos ao mundo da escrita e da leitura.

Os resultados gerais que a escola tem apresentado são ainda insuficientes. É

preciso admitir que apesar dos esforços que têm sido empreendidos no campo prático e

teórico da educação brasileira, o fracasso na alfabetização ainda é uma realidade,

infelizmente. Uma realidade que precisa ser inevitavelmente discutida, pois um problema

que surge na base tende a se perpetuar progressivamente, atingindo as diferentes áreas e

níveis educacionais. Basta uma simples análise das produções textuais apresentadas por

alunos do ensino médio para constatar a dificuldade na produção escrita. E isso vai além,

nos cursos de graduação podemos encontrar alunos com dificuldade de expor de forma

clara e consistente suas idéias. É possível encontrar monografias, dissertações e teses, com

idéias soltas, pensamentos mal-elaborados, dessa forma, guardadas as devidas proporções,

o problema se manifesta em todos os níveis educacionais e eu me pergunto: quais os

fatores que levam a escolarização a ser ineficiente no que se refere ao desenvolvimento da

capacidade de compreensão e elaboração escrita do sujeito?

É verdade que os problemas que envolvem os sistemas escolares são inúmeros

a começar pela própria estrutura física, os rituais, o material didático, a disposição dos

espaços, a prática pedagógica... Uma somatória de fatores que impossibilita a interação dos

sujeitos e o aprendizado com o outro, dificultando o fluxo da elaboração cognitiva. Com essa

estrutura a aprendizagem tende a assumir um caráter mecânico, desprovido de significados

e a partir do processo de alfabetização e letramento essa característica se torna presente e

conduz a grande maioria dos alunos a “abrir mão” da própria aprendizagem. O saber da

escola é, muitas vezes, um saber artificializado e desarticulado dos anseios humanos. A

escola na sua grande maioria trabalha apenas com o “certo” não abre espaço para a dúvida,

a intuição, a imaginação, a emoção [...] Para Ostetto (2006, p. 22) é preciso “provocar as

25

amarras racionalistas que impedem a viagem ao desconhecido” possibilitando à criança um

processo de aprendizagem que inclua a fantasia, a beleza e a ludicidade.

Reflexionando acerca das formas com que a educação, de forma geral, e

especificamente a alfabetização tem sido efetivada nos diferentes sistemas educacionais

brasileiros, gerando os resultados acima mencionados, percebo que uma transformação

depende igualmente de diferentes fatores, entre os quais o repensar e re-significar o próprio

papel da escola; o uso dos instrumentos inseridos em seu contexto; a compreensão da

função e do posicionamento teórico e político do professor enquanto sujeito privilegiado e

mediador do processo educacional. No Brasil, os problemas relacionados à alfabetização

estão longe de alcançar resultados satisfatórios. É um campo que se mostra amplo e aberto

para o debate na busca de uma educação emancipatória, que permita a expressão autoral e

autônoma do sujeito em todos os níveis de ensino.

1.1.4 A alfabetização e o letramento

Em meados dos anos de 1980, surge no contexto dos estudos e da discussão

sobre alfabetização no Brasil a noção de letramento. Uma das ocorrências do uso da

expressão letramento21 segundo Soares (2001) foi feita por Kato em 1986, em que a autora

diz acreditar que a língua falada culta é conseqüência do letramento, e Tfouni, em 1988,

distingue a alfabetização de letramento. A partir desse momento, o uso do termo torna-se

cada vez mais freqüente no discurso escrito e falado de professores e especialistas, e

motivo de pesquisa nos meios acadêmicos. Porém, a palavra letramento, segundo Soares

(2001) ainda não estava dicionarizada22, tinha sido introduzida muito recentemente na língua

portuguesa e “alguns autores preferiam, no lugar de letramento, utilizar a palavra

alfabetismo, mais próxima da língua portuguesa, porém não tão familiar quanto seu oposto,

analfabetismo” (SILVA, 2004, p. 37).

Para Kleiman (1995, p.15-16):

O conceito de letramento começou a ser usado nos meios acadêmicos numa tentativa de separar os estudos sobre o “impacto social da escrita” [...] dos estudos sobre a alfabetização cujas conotações escolares destacam as competências individuais no uso e na prática da escrita. Eximem-se dessas conotações os sentidos que Paulo Freire atribui a

21 Versão para o Português da palavra literacy, da língua inglesa. “Etimologicamente, a palavra literacy vem do latim littera (letra), com o sufixo –cy, que denota qualidade, condição, estado [...], ou seja: literacy é o estado ou a condição que assume aquele que aprende a ler e escrever (SOARES, 2001, p.17)”. 22 No dicionário Caldas Aulete, indicado como termo antigo ou antiquado aparecia a palavra letramento há um século atrás e significava “soletrar”. Uma palavra que deixou de ser usada, retornando em 1986 com outro significado. Em 2001 o Dicionário Houaiss dicionarizou a palavra letramento e o adjetivo letrado, a ela correspondente.

26

alfabetização que a vê como capaz de levar o analfabeto a organizar reflexivamente seu pensamento, desenvolver a consciência crítica, introduzi-la num processo real de democratização da cultura e de libertação.

De acordo com Soares (2004), o uso do termo letramento aparece decorrente da

necessidade de reconhecer e nomear práticas sociais de leitura e de escrita mais

avançadas e complexas que as práticas do ler e escrever resultantes da aprendizagem do

sistema da escrita. Para a autora, este fenômeno acontece simultaneamente ao

aparecimento do illettrisme, na França, e da literacia em Portugal. Nos Estados Unidos e na

Inglaterra, embora o termo literacy já estivesse sendo usado desde o final do século XIX foi

também nos anos de 1980 que se tornou foco de atenção e discussão nas áreas da

educação e da linguagem, evidenciado pelo grande número de artigos e livros publicados

sobre o tema. Convém ressaltar que, aproximadamente nesta época (final dos anos 1970), a

UNESCO23 propõe a ampliação do conceito de literate para functionanally literate, sugerindo

que as avaliações internacionais sobre o domínio de competências de leitura e de escrita se

fizessem de forma mais ampla, além do medir apenas a competência de ler e escrever.

Ainda segundo Soares (2004), se houve coincidências quanto ao momento

histórico em que as práticas sociais de leitura e escrita surgem como fundamentais em

sociedades distanciadas nos aspectos geográficos, socioeconômicos e culturais, as causas

e o contexto deste surgimento se caracterizam como diferentes nos países em

desenvolvimento, como o Brasil, dos países desenvolvidos como França, Estados Unidos e

Inglaterra. Uma das diferenças que pode ser destacada é o grau da ênfase colocada nas

relações entre as práticas sociais de leitura e de escrita e aprendizagem do código escrito,

ou seja, entre o conceito de letramento (illetrisme, literacy) e o conceito de alfabetização

(alphabétisation, reading, instruction, beginning literacy). Nos países de primeiro mundo, as

práticas sociais de leitura e escrita assumem a natureza de problema relevante na

constatação de que a população, embora alfabetizada, não possuía habilidades de leitura e

escritas suficientes para uma participação efetiva e competente, tanto no contexto social

como profissional, envolvendo a língua escrita. Nesta perspectiva, nesses países a

discussão sobre os problemas da aprendizagem inicial da escrita, ou da tecnologia da

escrita (alfabetização) e o domínio precário de competências de leitura e de escrita

necessárias para a participação em práticas sociais letradas (letramento) são tratados de

forma independente, revelando o reconhecimento de suas especificidades e uma relação de

não causalidade entre eles.

No Brasil, o movimento se fez na direção oposta. A discussão sobre a

importância de habilidades para o uso competente da leitura e da escrita tem sua origem

23 Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura.

27

vinculada à aprendizagem inicial da escrita, desenvolvendo-se a partir do questionamento

do conceito de alfabetização. Dessa forma, os conceitos de alfabetização e letramento se

mesclam e freqüentemente se confundem, com uma progressiva extensão do conceito de

alfabetização em direção ao letramento, do saber ler e escrever em direção ao ser capaz de

fazer uso da leitura e da escrita.

Para Soares (2004, p. 8), “a invenção do letramento, entre nós, se deu por

caminhos diferentes daqueles que explicam a invenção dos termos em outros países”.

Apesar da diferenciação sempre proposta na produção acadêmica, existe uma inadequada

e inconveniente fusão dos dois processos, com prevalência do letramento conduzindo a

uma certa extinção do termo alfabetização, a que a autora atribui o nome de “desinvenção

da alfabetização” para descrever a progressiva perda da especificidade do processo de

alfabetização que vem ocorrendo nas escolas ao longo das duas últimas décadas. Para a

autora, na concepção atual, a alfabetização não precede o letramento, os dois processos

são simultâneos.

Nas últimas (duas) décadas, os estudos sobre o letramento se intensificaram

provocando uma série de indagações e hipóteses a respeito do próprio significado, o sentido

se pluralizou provocando entendimentos diferenciados. Para Scribner e Cole (apud

KLEIMAN, 1995, p. 19) o letramento pode ser definido como “um conjunto de práticas

sociais que usam a escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em

contextos específicos, para objetivos específicos”. Tfouni (2002, p. 23) afirma que o termo

letramento “não tem um sentido único, nem descreve um fenômeno simples e uniforme.

Pelo contrário, está intimamente ligado à questão das mentalidades, da cultura e da

estrutura social como um todo”.

Para Costa (2000, p. 15) o termo letramento pode interpenetrar-se com a

concepção paulofreiriana de alfabetização no sentido de auxiliar no desenvolvimento de

“uma consciência crítica e reflexiva do sujeito, para que ele possa ter acesso à cultura e se

liberte como cidadão. Portanto um processo (ou uma prática) social/coletivo de

democratização do saber”. Para Silva (2004, p. 43), a noção de letramento não apenas

amplia o conceito de alfabetização como poderia fortalecê-lo “resgatando a dimensão

política, filosófica, dialógica, cultural e ideológica”. Cecília Goulart (2006) destaca não

apenas a dificuldade para conceituar o letramento como a possibilidade de conceber

letramentos, ou seja, uma pluralidade em torno deste termo que resulta numa falta de

condições para estabelecer os diferentes níveis de letramentos. A autora afirma ainda que a

discussão contemporânea sobre letramento é densa, complexa e está atravessada pelo viés

político-ideológico.

O conceito de letramento, vê-se, ainda está se consolidando. De qualquer modo,

foge ao âmbito deste trabalho aprofundar essa questão. Aqui, relacionado à alfabetização, o

28

letramento é bússola, é perspectiva pela qual o ensino e a aprendizagem do objeto escrita

se apóiam, enquanto a aprendizagem do sistema escrito torna-se ferramenta que amplia

gradativamente os níveis de letramento.

1.1.5 Modelos de letramento

Kleiman (1985), analisando os modelos de letramento encontrados na prática de

alfabetização escolar, aponta pelo menos dois que levariam a duas perspectivas e

conseqüências diferenciadas: o modelo autônomo e o modelo ideológico.

Costa (2000, p. 16), fundamentado em Kleiman, explicita inicialmente o modelo

autônomo de letramento, bem como o que este conceito representa em termos de

implicações sociais:

O modelo autônomo possui uma concepção quase absoluta de que nas instituições e nas classes letradas (escola, igreja, classe média,...) está a gênese da verdade. Assim a escola seria, com suas práticas, a principal agência de letramento e a escrita seria objeto de comunicação distinto da oral (visão polarizada entre oralidade e escrita), priorizando, portanto, na /pela escrita, um tipo especifico de letramento – a alfabetização. Esse modelo seria um modelo completo em si mesmo, instrumento neutro, a-social, a-histórico, justamente por não levar em conta o contexto social ou cultural que determina as práticas de letramento.

Para o autor, o modelo autônomo de letramento reforça a crença de poder

resolver as dificuldades de comunicação oriundas da diversidade sociocultural e lingüística

por meio da educação formal escolar baseado principalmente na certeza de que quanto

maior o nível de escolarização, melhor a performance do sujeito na comunicação. Esse

modelo enfatiza a dimensão individual da aprendizagem e o letramento é concebido como

um atributo pessoal. Além de outros problemas, modelos de letramentos que enfatizam a

ótica individual, segundo Silva (2004, p. 39), “concebem o ato de ler24 e escrever25 como

uma mesma habilidade, não levando em conta a especificidade de cada um; por outro lado,

quando compreendem a distinção dos dois processos acabam por enfatizar um deles”.

A autora destaca ainda o fato de que o ensino da leitura e da escrita

desconsidera muitas vezes as experiências anteriores do sujeito e o conflito necessário para

que ele memorize e compreenda o sistema alfabético. “Esse conflito só é possível na

24 A leitura é “um conjunto de habilidades lingüísticas e psicológicas, que se estendem desde a habilidade de decodificar palavras até a capacidade de ler textos escritos” (SOARES apud SILVA, 2004, p.39) 25 A escrita também requer um conjunto de habilidades lingüísticas e psicológicas, mas diferentes daquelas exigidas pela leitura, “as habilidades de escrita estendem-se desde a capacidade de registrar unidades de som até a capacidade de transmitir significado de forma adequada a um leitor em potencial” (SOARES apud SILVA, 2004, p. 40).

29

interação com o outro, pois é a partir do outro que a criança se dá conta das situações e

condições em que se produz a escrita e a leitura em sala de aula. Lemos e escrevemos o

que?, para quê, para quem, por quê?”(SILVA, 2004, p. 41). Embora enfatizando a questão

individual, a aprendizagem do código escrito é um fenômeno de caráter social e se faz na e

por meio da atividade discursiva.

O modelo ideológico leva em conta a determinação do aspecto social e cultural

nas práticas de letramento para uma sociedade e a significação do código escrito depende

do contexto em que foi adquirido. “Esse modelo não propõe a relação de causalidade para

ascensão social do sujeito, acesso aos seus bens sociais ou desempenho nas práticas

comunitárias” (COSTA, 2000, p. 16). Segundo o autor, enquanto o modelo autônomo possui

uma confiança absoluta de que o que é universalmente confiável ou válido provém das

instituições como a escola, a igreja, entre outras, no modelo ideológico essa confiabilidade é

relativizada.

O modelo ideológico, interpretado não como um atributo particular, mas na

dimensão social, pode ainda ser visto “sob duas perspectivas, progressista ou liberal e a

revolucionária ou radical” (SOARES apud SILVA, 2004, p. 42). Na ótica progressista ou

liberal, o letramento prevê tão somente que o individuo desenvolva práticas sociais de leitura

e escrita que o adaptem as condições do meio em que está inserido, enquanto na

perspectiva revolucionária ou radical o sujeito é encorajado a interferir no contexto criando

inclusive novas regras de participação.

É no âmbito do modelo ideológico de letramento, com sua possibilidade de ser

transformador ou revolucionário, que percebo uma ampliação, numa visão outra das

discussões sobre alfabetização. Mencione-se ainda que não apenas o uso social do código

escrito (letramento) está condicionado aos aspectos culturais de um determinado grupo

como a própria aquisição técnica desse código (alfabetização) se dá necessariamente

relacionada a uma maior ou menor valorização atribuída à escrita, de acordo com o contexto

em que o sujeito está inserido. Nessa perspectiva, o objeto de estudo (código escrito) pode

ser trabalhado para além da decodificação, visando à interpretação e à produção de

significados, pois somente dessa forma poderá contribuir para uma alfabetização e um

letramento na perspectiva de iniciar a formação de um leitor/autor.

Para Varrela (2001, p. 33), o grande desafio da atualidade imposto aos

professores em relação à leitura e a produção escrita é “alfabetizar crianças tendo o texto

como unidade básica e ensinar a ler e escrever a partir da reflexão sobre o processo

envolvido”, principalmente porque a “autonomia na leitura desenvolve-se com o aumento da

experiência, na medida em que ocorre a ampliação de conhecimentos que servem de apoio

à identificação de palavras, de frases e de modalidades de textos” (idem). Quando Varella

refere-se ao texto, é preciso ressaltar que a preferência pela polissemia e polifonia contida

30

nos textos literários contribui para potencializar a interação acerca de diferentes opiniões

sobre uma unidade temática. Os textos providos de diferentes significados podem

proporcionar aos que estão aprendendo a ler e escrever uma competência “para além do

domínio do sistema de escritura, melhor pronunciando, enunciando, e anunciando seu estar

no mundo, seu jeito de estar e de fazer sua humanidade, produzindo cultura” (PAIVA, 2005,

p. 113), consolidando não apenas o processo de alfabetização, como também o de

letramento.

O fantástico ficcional presente na literatura é um elemento que desencadeia o

pensar, o imaginar e o descobrir novas verdades. Sobretudo, a leitura literária pode

impulsionar o sujeito (leitor/autor) a não ter medo de enfrentar suas próprias idéias

representadas por meio da linguagem oral ou escrita. Ao ler me torno um co-autor

simplesmente pelo fato de não permanecer indiferente ao texto, ou seja, produzo

paralelamente um texto novo e ao escrever estarei dialogando com o outro, pois cada

palavra é uma forma de expressão de um tempo e um espaço constituído culturalmente.

Esse fator assume vital importância para a criança no momento da aquisição da linguagem

escrita que precisa necessariamente ter significado. A competência técnica é adquirida

paralelamente e/ou em conseqüência da constante interação com textos diversificados,

científicos e ficcionais, ou seja, o letramento se faz concomitantemente ao processo de

alfabetização.

1.2 A LITERATURA

O termo literatura permeia o trajeto desse estudo de forma muito evidente sem

reivindicar a necessidade de explicitar um conceito acerca do mesmo. Entretanto, ao tentar

focalizar com maior precisão o que a literatura representa para a formação do sujeito de

maneira ampla, e especificamente em que sentido está alocada nessa pesquisa, deparei-me

com a desconcertante tarefa de tentar responder: afinal, o que é a literatura?

A literatura é arte acima de tudo, mas é também um objeto cultural que

apresenta muitos aspectos fugidios, razão pela qual, pareceu-me mais sensato ao invés de

explicitar um conceito empenhar-me em apontar algumas características que tornam um

texto literário. Além disso, um evento lingüístico qualquer de hoje poderá amanhã se tornar

literatura reconhecida se a sociedade que o produziu ou o ler assim o determinar. Mais do

que destacar as características ou qualidades atribuídas à linguagem literária, percebo a

necessidade de me ater a uma delas em especial: o seu caráter formativo. Pois é a partir do

reconhecimento de que o texto literário configura-se como um objeto relevante na formação

do leitor, que faço a reflexão acerca da sua contribuição no processo de alfabetização e

31

letramento da criança. Compreendendo ainda que essa formação se inicia muito antes da

criança chegar à primeira série do ensino fundamental, acredito que quanto mais cedo ela

entrar em contato com a literatura maior será o seu repertório, com o qual vai dialogar e

constituir-se leitora.

Segundo Zilberman (1990, p. 12), quando a literatura nasceu, na Grécia antiga,

chamava-se poesia e sua função principal era divertir a nobreza nos intervalos entre uma

guerra e outra. “A Ilíada e a Odisséia devem seu aparecimento a essa circunstância, porém

sua permanência no tempo não se explica da mesma maneira”. Esses dois poemas épicos

tornaram-se para os gregos, de acordo com a autora, algo semelhante à Bíblia para os

hebreus: um instrumento que contava as origens da nação, explicitava as diferenças entre

homens e deuses, servia para legitimar o modelo político adotado e ainda ditava as normas

de comportamento privilegiadas por aquela sociedade. Dessa forma, a literatura assumiu

desde muito cedo uma propensão educativa. No decorrer do tempo ela sofreu inúmeras

transformações, surgiram novos gêneros, mas uma certeza manteve-se com o tempo: “a de

que o texto poético favorece a formação do indivíduo cabendo, pois, expô-lo à matéria-prima

literária, requisito indispensável a seu aprimoramento intelectual e ético” (ZILBERMAN,

1990, p. 13).

É esse aspecto formativo da linguagem literária que abona sua presença em

todos os níveis de escolarização como fator que contribui não apenas para a formação do

leitor, mas de uma forma abrangente atua na constituição do sujeito. Porém é preciso re-

significar a maneira de lidar com os textos literários no cotidiano escolar. Para Zilberman

(1990, p.17) “não pode ser a que desempenhou na Antiguidade, por que a escola se

interpôs entre a obra e o leitor, com conseqüências inegáveis”. Também não pode ser a

pedagogização da literatura, ou seja, utilizá-la apenas como um recurso para apreender

aspectos relacionados à estrutura da língua.

A linguagem literária caracteriza-se pela possibilidade de leitura do mundo real

de diferentes formas. Uma linguagem que vai se distanciando da objetividade e da

explicação única e propondo verdades que são construídas na interlocução entre autor(es),

texto(s) e leitor(es) e por isso está sempre em aberto. As significações que ela pode

suscitar a partir dos personagens, tempos ou eventos fictícios, dizem respeito à busca de

compreensão da própria condição humana, seus medos, suas paixões, suas eternas

dúvidas ainda sem respostas e como resultado de muitas vozes inquietas. Ligia Cademartori

sintetiza o que provisoriamente poderíamos tomar como um conceito de literatura, apenas

para convergir reflexões momentâneas, pois o próprio significado é escorregadio e não nos

permite apreendê-lo na sua abrangência:

32

A obra literária recorta o real, sintetiza-o e interpreta-o através do ponto de vista do narrador ou do poeta. Sendo assim, manifesta através do fictício e da fantasia, um saber sobre o mundo e oferece ao leitor um padrão para interpretá-lo. Veículo do patrimônio cultural da humanidade, a literatura se caracteriza, a cada obra, pela proposição de novos conceitos que provocam uma subversão do já estabelecido (1986, p.22).

Nas palavras de Azevedo (2004, p. 39), algumas características que constituem

“essa forma de arte feita com palavras convencionalmente chamada de Literatura” dão

conta de que em primeiro lugar ela é ficção e discurso poético. A ficcionalidade retrata o

mundo de forma subjetiva, analógica, intuitiva, imaginária e fantástica. Por meio do discurso

poético, afirma o autor, abrimos mão da linguagem objetiva, sistemática, impessoal,

coerente e unívoca dos livros didáticos para poder inventar palavras, transgredir as normas

oficiais da Língua, criar ritmos inesperados, brincar com trocadilhos e duplos sentidos,

recorrer a metáforas e poder ser ambíguo e até mesmo obscuro. O texto literário é, portanto,

constituído pela plurissignificação, se distancia do texto didático-informativo, possibilitando

que diferentes leitores cheguem a diferentes interpretações. Para o autor, “é possível afirmar

que quanto mais leituras um texto literário suscitar, maior será sua qualidade” (p. 40).

Vê-se que a literatura é um modelo de pensamento que se utiliza da ficção e da

linguagem poética para interpretar o mundo. Nas situações ambíguas e contraditórias de

personagens fictícios e imaginários discutem-se as contradições que caracterizam os

sentimentos e as paixões humanas, permitindo não apenas a reflexão, mas a busca do

autoconhecimento e a construção da identidade de um “eu” em relação ao “outro”. A leitura

de textos literários, além dos atributos acima citados, faz com que seu leitor produza um

texto paralelo e inédito que representa o seu posicionamento em relação ao que outras

vozes lhe falam, é um impulso ao “eu” autor que num movimento ininterrupto revela que “era

uma vez um escritor que escreveu para um leitor que virou escritor que escreveu para outro

leitor [...] percebendo mais profundamente as perplexidades da vida e muito provavelmente,

plasmando – juntos – outras maneiras de existir” (SILVA, 1990, p. 23).

1.2.1 A literatura infantil

O que é Literatura infantil?

Para Aguiar et al (2001, p.16) “são as histórias e os poemas que ao longo dos

tempos, seduzem e cativam a criança, embora às vezes não sejam destinados ao público

infantil (e o livro Robinson Crusoé, de Daniel Defoe, é um exemplo)”.

Para Cristiane Madanêlo de Oliveira (2005) “a autêntica literatura infantil não

deve ser feita essencialmente com intenção pedagógica, didática ou para incentivar hábito

33

de leitura” [s.p.]; a designação infantil para essa modalidade literária não deve ser vista

como "menor", mas na perspectiva de que:

A palavra literatura é intransitiva e, independente do adjetivo que receba, é arte e deleite. Sendo assim, o termo infantil associado à literatura não significa que ela tenha sido feita necessariamente para crianças. Na verdade, a literatura infantil acaba sendo aquela que corresponde, de alguma forma, aos anseios do leitor e que se identifique com ele (idem).

A Literatura Infantil tem sua origem26 no final do séc. XVII, época em que

ocorreram mudanças estruturais na sociedade. Entre essas mudanças, três delas

contribuíram de forma determinante para o surgimento do gênero literário: a reestruturação

da família (burguesa); a reorganização da escola e o reconhecimento da infância enquanto

categoria social. A reorganização da família fez emergir o sentimento de infância que até

esse momento não era reconhecido e a partir da visão moderna de família se estabelece um

conceito de infância repleto de diferentes interesses e entendimentos. A escola foi

reformada e assumiu a função de cuidar do desenvolvimento intelectual infantil.

O surgimento da literatura infantil vinculado ao nascimento do conceito moderno

de infância e unido à escola de modo não acidental produziu os primeiros textos deste

gênero, expressando um apelo educativo, principalmente porque foram escritos por

pedagogos. Essa característica sobreviveu ao andar histórico e nos dias atuais podemos

encontrar um grande número de obras preservando tal pretensão. Fato que, segundo

Zilberman (1998, p. 14), torna problemática a relação literatura e educação, pois: “de um

lado, o vínculo de ordem prática prejudica a recepção das obras [...] e a crítica desprestigia

globalmente a produção destinada aos pequenos, antecipando a intenção pedagógica, e

sem avaliar os casos específicos”. Por outro lado, a autora reafirma que a “sala de aula é

um espaço privilegiado para o desenvolvimento do gosto pela leitura, assim como um

importante setor para o intercâmbio da cultura literária, não podendo ser ignorada, muito

menos desmentida sua utilidade” (idem).

A estreita relação entre literatura infantil e a educação intensifica seu caráter

utilitário no processo de alfabetização e letramento. Encontram-se disponíveis no mercado

editorial alguns livros que se dizem adequados para introduzir a criança ao universo da

leitura e da escrita. Essas obras são tomadas como um mero instrumento didático com o

qual a assimilação da tarefa escolar fica evidente. Segundo Zilberman (1988), são obras que

não apresentam as características básicas da ficção, tais como a ação narrativa entre o

26 Segundo Oliveira (2005 [s.p.]) a célula máter da Literatura Infantil, hoje conhecida como “clássica”, encontra-se na Novelística Popular Medieval que tem suas origens na Índia. Descobriu-se que, desde essa época, a palavra impôs-se ao homem como algo mágico, como um poder misterioso, que tanto poderia proteger, como ameaçar, construir ou destruir. São também de caráter mágico ou fantasioso as narrativas conhecidas hoje como literatura primordial. Nela foi descoberto o fundo fabuloso das narrativas orientais, que se forjaram durante séculos a.C., e se difundiram por todo o mundo, através da tradição oral.

34

aparecimento de um problema a resolver e a sua solução, a presença de personagens

animadas, um espaço e um tempo fictícios. Além disso, como a preocupação maior é a

aquisição e domínio do código escrito, alguns deles apresentam ao leitor as letras na

seqüência em que o alfabeto as ordena e na variedade de suas diferentes formas gráficas.

Ainda, segundo Zilberman (1988), os livros direcionados às crianças em

processo de alfabetização possuem uma transitoriedade, limitando o seu uso. Nessa fase, a

criança ainda não domina o código escrito e, portanto, não tem fluência e segurança para

poder escolher e ler uma obra e ao superar essa fase, esses livros podem ser dispensados,

o que, segundo a autora via de regra acontece. Dessa forma, essas obras além de serem

produzidas dentro de um modelo metodológico com uma concepção de aprendizagem

essencialmente pragmática, encontram-se atrelados ao fim que se destinam e representam

a parcela mais descartável e efêmera da literatura infantil.

Sisto (2005) faz uma “brincadeira-séria” utilizando a ficção para assinalar o

quanto à relação da literatura infantil com a escola pode ser problemática:

Nosso personagem chama-se Literatura Infantil e acabou de ser chamado na sala da coordenadora da escola, para se defender da acusação de ser coisa sem importância, desnecessária, sob a ameaça de perder o lugar na escola, e pior, na vida das pessoas [...] (p. 134).

Tal qual a crítica exacerbada aos métodos tradicionais de alfabetização que

geraram uma crença equivocada de que estes não eram mais necessários, também a

literatura infantil entendida como pedagogizante pode ter sido preterida no ambiente escolar.

O fato de muitas obras, em meio à diversidade existente, possuírem um caráter didático não

significa que não possamos encontrar qualidade literária e negar a contribuição do gênero

para a formação humana. Azevedo (2005, p. 25) reafirma o papel determinante que a

escola possui na formação de leitores, na qual “grande parte das pessoas tem sua primeira

chance de estabelecer contato com textos de ficção e poesia”. Embora, pois, a literatura

infantil tenha um percurso histórico marcado pela característica didática, ela supera essa

fragilidade atingindo o estatuto de arte literária, segundo Zilberman (1998), quando se

distancia de sua origem comprometida com a pedagogia e apresenta textos de valor

artístico a seus pequenos leitores.

A literatura (infantil ou não) tem necessariamente um componente que a torna

capaz de sensibilizar e encantar o leitor independente da idade (cronológica). É um

elemento que transcende o tempo e o espaço, pois ao ler uma história o leitor pode ser

“sugado” para o seu interior e se permitir uma vivência para além do real, para um

imaginário, ainda que possível apenas como imaginário que, para Ieda Oliveira (2005)

consiste numa certa “loucura” saudável que o prazer estético proporciona. Quando leio uma

35

história de ficção, produzo outra paralela e se estabelece um diálogo subjetivo entre escritor,

obra e leitor e “na subjetividade dos diálogos nasce um terceiro livro, que ficará por

escrever. São diálogos para sempre inéditos” (QUEIRÓS, 2005, p. 171) que me possibilitam

mais do que leitura, o exercício de uma leitura com autoria.

Ao compreender o importante papel que a literatura (infantil) pode desempenhar

no processo educacional, reconhecendo as múltiplas possibilidades que podem advir da

presença e permanência não exatamente na escola, mas, nas mãos das crianças, uma

preocupação se instala de imediato: a questão da qualidade. É preciso saber reconhecer a

qualidade de uma obra literária do gênero infantil ou juvenil. Como realizar essa tarefa?

1.2.2 Os livros para criança e a qualidade literária

O livro para crianças é também um objeto de consumo e atende uma parcela do

mercado, motivo pelo qual a quantidade de obras existentes nos dias atuais é imensa e a

sua qualidade nem sempre compromisso de todos os autores que se dispõe a escrever para

o público infantil. Durante o percurso desta pesquisa refleti sobre os parâmetros para poder

distinguir uma obra do gênero infantil de qualidade entre as demais e percebi que o meu

olhar [o de professora] construído por meio da experiência com a literatura no cotidiano de

uma sala de aula está muito mais relacionado à intuição (incluindo minhas preferências

pessoais) e baseado na observação da relação que as crianças estabelecem com as obras

literárias que chegam às suas mãos. Evidentemente, a experiência pode apontar alguns

caminhos, mas se mostra insuficiente para uma abordagem sólida ou para possibilitar

escolhas seguras, pois para poder aferir se uma obra do gênero possui qualidade literária é

necessário levar em conta alguns critérios, a começar pelo aspecto físico do objeto-livro,

materializado, comercializado – produzido cultural e historicamente.

Quando se trata do objeto-livro Fanny Abramovich faz uma lista de pormenores a

ser percebida, envolvendo vários aspectos:

A começar pela capa (se bonita, feia, atraente, boba, sem nada a ver com a narrativa), do título – que, afinal, são o primeiro contato que se tem com o volume: o impacto visual e a curiosidade despertada ou adormecida...E por que não discutir a encadernação, do desprazer que é ver um livro amado desfolhando, descolando, não dando mais nem para virar a página? [...] olhando muito do bem olhado se a ilustração corresponde ao que está escrito na página ao lado, se está muito compactado, muito apertado, sem espaço para respirar... ou ao contrário, se ficou muito pouca coisa escrita ou desenhada em cada folha, sobrando partes em branco [...] (1997, p. 145).

A adequação do tamanho e disposição das letras, da ilustração e do texto nos

livros, a escolha do formato mais adequado, são outros cuidados citados pela autora que,

por sua vez, representam investimentos maiores ou menores na edição de cada obra.

36

Esses e outros aspectos tornaram-se objeto de reflexão no livro organizado por

Leda Oliveira em 2005, denominado O que é qualidade na literatura infantil e juvenil? Com a

palavra o escritor. Nessa obra, autores que são também escritores de literatura infantil e

juvenil tentam responder a pergunta central, destacando as características entendidas como

necessárias para garantir a qualidade literária dos livros para jovens e crianças – eles tratam

principalmente da qualidade do teor literário, sem desconsiderar a importância dos

elementos extra textuais e da formatação gráfica para se fazer um “bom” livro ou uma “boa”

literatura. De maneira sintetizada, selecionei algumas idéias e opiniões apontadas por

Celso Sisto, Ricardo Azevedo, Gustavo Bernardo, Anna Claudia Ramos, Luiz Antonio de

Aguiar e Bartolomeu Campos de Queirós, alguns dos autores que participaram da referida

obra.

Celso Sisto defende que a diversidade deveria ser a palavra chave na questão

da qualidade. Que a literatura infantil, além do encantamento, poder de sedução, impacto e

magia, precisa ter compromisso com o leitor. Um compromisso que se manifesta desde a

produção textual com uma linguagem autêntica (não empolada, boba ou artificial) mantendo

a coerência entre personagens, voz narrativa, tempo narrativo e espaço histórico, até a

formatação do aspecto físico com materiais adequados. Na questão da linguagem literária,

afirma o autor, podemos concebê-la como desvio – “desvio da linguagem cotidiana. Esse

lugar desviante fica sendo o território onde pode emergir o poético, que é o que provoca o

estranhamento e a singularização (uma vez que a linguagem cotidiana seria automatizante)”

(p.120). Boas histórias e bons escritores resultam em livros que possibilitam o exercício

lúdico e livre da leitura com o protagonismo do leitor, que, para testar a validade do grau de

qualidade tem que resistir a outras leituras – leitura de outros leitores e do mesmo leitor

muitas vezes.

Ricardo Azevedo ao enfocar o conteúdo de uma obra literária, assegura que um

dos pontos principais é que diante da ficção e da poesia, abandonamos o campo da

linguagem utilitária e passamos a vê-la como matéria viva, passível de invenção e

experimentação. Nesse sentido, os textos que compõe a literatura (infantil ou não) devem

ser textos subjetivos, movidos por visões pessoais e não consensuais, abordando os

aspectos psicológicos e emocionais, as contradições e ambigüidades, as vivências

concretas, a efemeridade humana, as questões do imaginário coletivo e individual e outros

assuntos relevantes e relativos à condição humana. Luiz Antonio de Aguiar complementa

essa visão defendendo a autonomia literária para explorar os meandros humanos, livres de

utilitarismos, didatismos ou doutrinações, sejam elas políticas, religiosas ou morais. O autor

defende ainda que a literatura possa forjar uma cumplicidade com o leitor, tornando-se

amiga, parceira, amante... pois ela [a literatura] “alcança seus momentos mais belos quanto

37

mais se aproxima tanto da realidade e da intimidade, quanto da imaginação do seu leitor” (p.

117) . O que não significa que Gustavo Bernardo não tenha razão quando diz que “a ficção

é boa, se e somente se, não tem tudo a ver com a realidade; [...] se e somente se, não tem

tudo a ver com o leitor” (p. 14) [grifos do autor].

A literatura alimenta a alma e faz a imaginação se alargar, assegura Anna

Claudia Ramos. Por isso, segundo a escritora, a literatura infantil precisa ter qualidade

estética que possibilite qualquer pessoa ler e se encantar, mas que deixe espaço para o

leitor pensar, sentir, interagir e descobrir sentidos escondidos. Que apresente personagens

que moram em mundos aparentemente ilógicos, mas repletos de vida, de sonhos, desejos e

segredos escondidos. Personagens paradoxais que podem mudar de idéia, pensar e

descobrir maneiras de mudar o que não está bom. Para criar tais personagens, o escritor

precisa captar o imaginário infantil e se comunicar diretamente com a alma da criança. E,

partindo do princípio de que existe uma suposta divisória entre públicos distintos e de

autores que se propõe escrever para o público infantil, Resende (1988, p. 22) ressalta o

compromisso ético para com pequenos leitores, pois “se a infância é evocada no processo

de escritura de alguns escritores, resta saber se serão suficientemente habilidosos, para não

deixar sua seriedade adulta prejudicar a ludicidade da criança”, o escritor precisa saber

brincar com seriedade. A autora destaca obras criadas sem intencionalidade de público

infantil, como as de Ziraldo e de Ana Maria Machado, que permitem derrubar os limites e

eliminar distinções injustificadas entre duas literaturas. Resende afirma ainda que não há

coerência na classificação que pretende distinguir duas linguagens e duas concepções

diferenciadas de arte, pois quando se escreve visando o público infantil “é preciso colocar-se

ao lado do leitor, ver o mundo através dos seus olhos, ajudando-o a ampliar esse olhar nas

mais variadas direções” (AGUIAR et al, 2001, p. 21). O fato de a literatura infantil ter como

destinatários os pequenos, não justifica o uso de uma linguagem infantilizada pois “a criança

possui senso aguçado mesmo para uma seriedade distante e grave, contanto que essa

venha sincera e diretamente do coração” (BENJAMIM, 2002, p. 55).

Bartolomeu Campos de Queirós defende que a qualidade de um texto literário

está na divergência pretendida, pois “quanto mais diversificadas as considerações, quanto

mais individuais as emoções, mais rico se torna um texto [...] não há que se perguntar qual a

mensagem do livro, mas o que o sujeito pensa sobre o que foi lido por ele” (p. 171).

Enquanto escritor menciona o extremo cuidado diante da matéria prima do seu trabalho: a

palavra. Pois, “a mesma palavra que estabelece a verdade [...] configura a mentira. A

mesma palavra que fere, acaricia. A mesma palavra que acusa, perdoa. A mesma palavra

que liberta, aprisiona” (p. 169 - 170). Portanto, as palavras são compostas e permitem que

cada leitor possa adjetivá-las de acordo com sua experiência.

38

A qualidade em literatura (infantil ou não), sem dúvida, passa pelo cuidado com

a palavra. Essa que segundo Bakthin (2000) é polifônica e polissêmica – polifônica porque

não existe uma palavra (minha) original – todo discurso verbal traz as marcas das outras

tantas vozes que o constituem; é polissêmica – porque possui múltiplos significados,

vinculados ao conteúdo ideológico, o sentido de cada palavra é determinado pelo seu

contexto e só pode ser compreendido (numa pretensa totalidade) no interior das condições

sociais, históricas, políticas e culturais que o produziram. Um livro de qualidade é aquele

que fala com seu leitor – uma fala viva! “A compreensão de uma fala viva, de um enunciado

vivo é sempre acompanhada de uma atitude responsiva ativa [...]; toda compreensão é

prenhe de resposta e, de uma forma ou de outra, forçosamente a produz” (idem, p. 290).

Para Bartolomeu Campos de Queirós não existe texto literário sem qualidade, existe texto

que não é literário e o valor de uma obra de literatura (infantil) “se dá na medida em que elas

produzem alteração ou expansão dos horizontes de expectativas dos leitores de sucessivas

épocas”. (AGUIAR et al, 2001, p. 49). Portanto uma obra literária de qualidade não

envelhece facilmente, ela se mantém atual enquanto possibilita diferentes leituras para

diferentes épocas e leitores.

Na escola, ou fora dela, estar atento aos aspectos textuais e materiais da

literatura é sobretudo reconhecer o direito da criança ao acesso aos bens culturais. Em

termos de qualidade literária há muitos elementos a serem levados em conta, há muitas

direções a serem exploradas em relação ao suporte (livro) e ao teor textual. Mas, há pelo

menos uma posição clara entre pesquisadores e autores acerca da ameaça que arrisca a

qualidade em literatura, seja ela infantil ou não: quando indicada para atender objetivos

curriculares, ou para transmitir padrões e valores ideologicamente pré-determinados, a

experiencia estética do leitor pode ser comprometida.

1.2.3 A cartilha: um livro infantil para além do didático

Ao fazer a reflexão sobre a contribuição da literatura no processo de

alfabetização e letramento percebi uma certa “obrigação” de mencionar um instrumento que

por séculos se fez e se faz presente na vida de meninos e meninas que estão aprendendo a

ler e escrever: a cartilha. Esta, ao longo do tempo, adquiriu “ares” contemporâneos,

nomenclaturas diferenciadas e se apresenta na atualidade com as mais diferentes versões,

algumas preservando “velhas” concepções pedagógicas, sobre as quais se alicerçam a vida

escolar da criança desde os seus primeiros movimentos, outras buscando acompanhar o

ritmo da discussão teórica e o esforço dos pesquisadores no sentido de tornar a

alfabetização e o letramento processos mais eficientes, auxiliando o aluno “a se apropriar da

39

língua e da linguagem com autonomia, desenvoltura e prazer” (GARCIA, 2001, p. 227). Mas,

sobretudo a cartilha constituiu-se num dos instrumentos de maior acesso para as crianças

nesse momento da sua vida.

Nos dias atuais, raramente nos referimos ao livro didático específico destinado à

criança em processo de alfabetização e letramento como cartilha. Embora essa

nomenclatura pareça antiquada, esse fato não a isenta de uma produção nos moldes do

livro didático e de expressar as concepções pedagógicas que lhe dão sustentação. A

configuração dos livros (e de outros objetos) destinados às crianças é resultado de uma

construção cultural que condensa o pensamento da sociedade no seu tempo e espaço. Os

livros infantis didáticos ou não, e especificamente a cartilha, além de abarcarem o conceito

de infância28, ou seja, a forma como o autor, ao produzi-los, concebe a criança, agregam

ainda a visão idealizada de leitura e leitor, de escritura e escritor.

1.2.3.1 Objeto histórico e cultural

O livro infantil tem sua origem histórica na Alemanha, no século XVII. “Ao lado da

cartilha e do catecismo, também a enciclopédia ilustrada, o vocabulário ilustrado, ou como

queira chamar o Orbis pictus de Amos Comenius, encontra-se nas origens do livro infantil”

(BENJAMIN, 2002, p. 55). De acordo com o autor, o Iluminismo se apropriou à sua maneira

dessas obras, colocando em prática um programa de formação humanista, pois, “se o

homem era piedoso, bondoso e sociável por natureza, então deveria ser possível fazer da

criança, ser natural por excelência, o homem mais piedoso, mais bondoso e mais sociável”

(idem). Desta forma, é possível perceber que a preocupação maior nessa época era com a

formação moral e religiosa.

As primeiras e antigas cartilhas29 do séc. XVI e XVII, elaboradas em compasso

com o pensamento pedagógico da época, apresentavam características peculiares daquele

momento histórico e cultural. Segundo Walter Benjamim (2002), traziam em seus textos

palavras com combinações silábicas extravagantes, como, por exemplo, “chichleuchlauchra”

“xakbak”, “zauzezizau” e outras “monstruosidades fonéticas” que perseguiam as crianças

com pretextos pedagógicos, impondo caprichos e manias adultas por meio de uma

27 Manual do professor. 28 O conceito de infância é abordado nos itens: 1.3.1 e 1.3.2. 29 No Brasil, segundo Barbosa (1994) uma das mais antigas cartilhas foi Cartinha de aprender a ler, de autoria de João de Barros, impressa em 1539 em Lisboa. Acredita-se que essa cartilha foi usada para o ensino das primeiras letras e da religião. Segundo o autor, há noticias também de outras cartilhas, uma elaborada por Frei João Soares, impressa em 1539 e reeditada várias vezes e uma outra chamada o Método Castilho para o Ensino Rápido e Aprazível do Ler Impresso, Manuscrito e Numeração do Escrever, produzida por Antonio Feliciano de Castilho em 1850, em Lisboa. Portanto, nossas cartilhas têm origem em Portugal.

40

autoridade abusiva. Para o autor, os mestres que propuseram as cartilhas, nesse tempo,

com essas “palavras”, as imaginaram úteis pelo menos no sentido de impedir a trapaça da

criança em tentar adivinhar ao invés de ler. O autor afirma, ainda, que os pedagogos desse

período não foram capazes de perceber que aprender a ler é em boa parte aprender a

adivinhar. Essas “palavras” sumiram nas cartilhas modernas, que na busca de uma

aproximação maior com o universo infantil, abriram espaço para a ludicidade.

A cartilha moderna surgiu apresentando a proposta de articular o conhecimento

em torno de um aspecto fundamental da aprendizagem da criança: a ludicidade. Segundo

Walter Benjamim (2002), a cartilha lúdica resultou da idéia de unir o livro infantil ao caderno,

criando-se espaços para a criança desenhar, rabiscar e brincar, pois foi produzida a partir da

observação/constatação de que a criança brinca e isso a caracteriza. A primeira cartilha

lúdica, lançada por Ton Seidaman Freud em Frankfurt (1930), propunha uma metodologia

de alfabetização inovadora para a época, que possibilitava questionar a “seriedade” adulta

predominante no ambiente escolar e inaugurar uma forma outra de inserir as crianças ao

mundo letrado.

Em toda parte tomou-se cuidado de preservar a soberania da criança que brinca, de não deixar que ela perca força alguma junto ao objeto de aprendizagem e de banir o horror com que as primeiras letras e algarismos gostam de se impor como ídolos às crianças. [...] O charme – e ao mesmo tempo o elevado desempenho pedagógico – desses livros escolares está na maneira pela qual eles captam em si a descontração que corresponde a essa atitude soberana e que talvez a criança procure primordialmente fora dos livros (BENJAMIN, 2002, p. 153).

A cartilha lúdica trouxe explícita a combinação dialética de utilizar as inclinações

infantis a serviço da aprendizagem da leitura e da escrita, imaginando loterias de letras,

dados, quebra-cabeças, jogos infantis, e toda forma de fazer com que a criança aprendesse

brincando. Essa proposta foi levada adiante e venceu a barreira do tempo. As cartilhas

(brasileiras) da atualidade, chamadas agora de livro de alfabetização, continuam fazendo

uso dos jogos e das brincadeiras para introduzir a criança ao mundo da leitura e da escrita,

embora não deixem muito evidentes os motivos pelos quais o fazem.

No sentido de perceber a questão da ludicidade, analisei dois livros de

alfabetização disponíveis na escola onde foi desenvolvida a pesquisa de campo: o livro

Alfabetização: todas as letras, de autoria de Marisley Augusto, e o livro Minhas descobertas:

alfabetização, de Elizabete Garcia. O livro Alfabetização: todas as letras, embora não faça

menção quando esclarece os princípios teóricos e metodológicos e dos eixos organizadores

da obra sobre a importância da ludicidade na aprendizagem da criança, utiliza jogos de

bingos de letras, trava-línguas, parlendas, adivinhas, cantigas de roda, quadrinhas, entre

outras. O livro Minhas descobertas: alfabetização apresenta as sessões: “Brincando

também se aprende, com atividades lúdicas, mas não menos didáticas, relativas à língua e à

41

linguagem” (GARCIA, 2001, p. 13). São exemplos de propostas de brincadeiras nessa obra,

as adivinhas (p. 41), o jogo de bingo com palavras, (p. 135), o jogo da memória do par

contrário, (p. 148). Embora os jogos e brincadeiras se façam presentes nas duas cartilhas, é

possível perceber que eles são vistos como uma forma de auxiliar a aprendizagem, como

recurso pedagógico, e não como um reconhecimento de que o próprio ato de brincar

constitui uma aprendizagem.

Dietzsch (1996), na análise que faz sobre as cartilhas, afirma que:

Em nome de princípios lingüísticos e de bom comportamento, são improvisadas sentenças toscas e emblemáticas. Assim, sílabas que se repetem, bichos arremedando gente, letras dançantes, figuras que pretendem dialogar com seus leitores, na verdade se transformam em textos inverossímeis e ficam deslocados num espaço em que supostamente deveriam ser respeitadas a imaginação e a disponibilidade infantil para a descoberta da palavra e do mundo (p. 42).

Com a reflexão da autora, constata-se que algumas cartilhas, ao utilizarem a

ludicidade como recurso pedagógico, infantilizam o conteúdo para torná-lo “adequado” às

crianças. Pressupõem necessário traduzir o conhecimento, por princípio pertencente ao

universo adulto, para uma linguagem infantil, e, nesse sentido menor, “apequenada” para

que uma criança seja capaz de compreendê-lo. Nessa ação está implícita não apenas a

idéia de que a criança é um ser ainda incapaz de abarcar o saber do mundo adulto, portanto

separa criança e adulto, vê a criança como um “vir-a-ser”; e sugere que a aprendizagem

precisa transformar em “coisas”, personagem, as palavras, letras e algarismos, para que

uma criança seja capaz de aprendê-los. Dessa forma, algumas cartilhas e outros livros

didáticos apresentam na verdade conteúdos insignificantes que tratam o universo infantil,

separado do mundo adulto, menor e com pouca seriedade.

A forma como se concebe a aprendizagem da leitura e da escritura na esfera

escolar se aproxima ainda muito da copiação e decifração em oposição à co-autoria,

interpretação e produção textual. A despeito das tentativas de tornar a aprendizagem lúdica

e significativa para a criança, desde o início do século passado, as cartilhas e a escola como

um todo tem preservado a ênfase no desenvolvimento do aspecto racional, na apropriação

mecânica do código escrito, permitindo pouco espaço para a imaginação; dessa forma,

fragilizam-se, tecendo uma aprendizagem estéril e desarticulada da vida da criança.

Outro elemento que desempenha um papel determinante nas páginas da cartilha

e nos livros de literatura infantil é a ilustração. A relação entre imagens, palavras e

significados é um recurso do qual os autores não abrem mão. Porém, às vezes, a tentativa

de retratar desenho e palavra provoca uma situação forçada que não convence a criança.

A modificação ocorrida com as cartilhas contemporâneas em relação à ilustração

está muito mais relacionada às exigências de mercado do que à evolução das concepções

teóricas e ao compromisso com o leitor iniciante. A maioria delas apresenta muitos excessos

42

de coloridos e brilhos nas capas e pouca diferença e/ou consistência textual. Os livros

didáticos, de uma maneira geral e, principalmente, os de alfabetização, possuem um

conteúdo imagético por vezes exagerado.

Lins (1977, p. 134) atribui o excesso de imagens (fotografias, reproduções de

obras de artes e desenhos) dos livros didáticos aos princípios colocados na sociedade e

reproduzidos pelos autores na produção dos livros didáticos; entre os princípios, o autor

destaca o fato de que “estamos na era da imagem; o aluno, habituado à TV e às revistas em

quadrinhos, resiste à página escrita, tendo dificuldade de captar imagens verbais”. E, ainda,

que as formas que se apresentam às ilustrações pressupõe uma média muito baixa de

inteligência dos alunos, dadas às noções elementares que são traduzidas pelas imagens.

No caso específico da cartilha, o uso excessivo de imagens utilizadas para

ilustrar as palavras compromete, em muitos casos, a qualidade dessas imagens, tornando-

as caricatas. Muitas vezes a criança não reconhece a ilustração que o autor apresenta, tal é

a precariedade, ou faz uma leitura equivocada, como, por exemplo, “letra I de castelo”,

quando na verdade a ilustração se refere a uma igreja. A ilustração das cartilhas

contemporâneas se distanciou “anos-luz” das litogravuras em branco e preto de desenhistas

alemães do séc. XIX, mencionadas por Walter Benjamim: “[...] as lições apresentavam

litogravuras bem cuidadas que, em cores ou branco e preto, ostentavam meninas vestidas à

européia, brincando com suas bonecas e animais de estimação [...] (DIETZSCH, 1996, p.

44)”. Essas cartilhas destinavam-se a poucas crianças, privilegiadas. No Brasil, segundo

Barbosa (1994, p. 60) houve uma queda na qualidade gráfica das cartilhas a partir da

Segunda Guerra Mundial, quando as ilustrações “inicialmente realizadas por artistas

famosos, aos poucos passaram a ser confiadas a desenhistas primários, o que também

favoreceu o barateamento dos custos”.

Para além da preocupação com a aprendizagem que permita a expressão da

ludicidade da criança, para além da contribuição que as imagens possam ter no

entendimento da mensagem, essas imagens que nos dias atuais de certa forma saturam o

nosso cotidiano e inviabilizam um olhar mais atento à mensagem a ser comunicada também

nas páginas de um livro escolar, há que se perguntar qual é a preocupação implícita neste

livro – cartilha - com a formação do leitor e com a busca de sua emancipação?

1.2.3.2 A cartilha, o leitor e a leitura

O livro didático infantil traz implícita uma forma de ser e de organizar uma

sociedade, possui uma concepção de homem. A nossa sociedade capitalista e excludente

dissemina essa concepção atuando no sentido da preservação de sua estrutura social por

43

meio de práticas de leitura que, ao invés de auxiliarem a criança na construção da

autonomia enquanto sujeito-leitor, atuam no sentido inverso. Ao ocupar-se

demasiadamente, principalmente na alfabetização, com a aquisição da competência técnica

da decodificação de letras, sílabas e palavras, de forma separada, distorce o significado da

leitura e limita suas possibilidades. Amâncio (2002, p. 186)30 observa que as cartilhas

apresentam pseudotextos sem coesão, coerência e/ou frases que ferem princípios

lingüísticos básicos e que essa “linguagem falsa das cartilhas [...] invade o espaço da

linguagem verdadeira, viva e dinâmica, que possibilita a interlocução, as interações pessoais

e que é constitutiva das relações sociais e da construção do conhecimento”. Foucambert

(1994, p. 110) constata que há uma preocupação excessiva com a alfabetização na qual o

ensino da decodificação segue uma progressão rigorosa que vai do simples ao complexo,

com grupos homogêneos de crianças, que, aos olhos do adulto, estão no mesmo estágio, e

que essa “sessão de ‘leitura’ soletrada será mantida durante todos os anos de escolaridade,

conservando seu aspecto oral e coletivo”. E neste ponto me ocorrem outras interrogações:

qual é o leitor que está sendo construído na escola por meio dos instrumentos didáticos

disponíveis e/ou utilizados de forma pouco questionada? Quais seriam as possibilidades, no

livro didático (enquanto instrumento) produzido neste início de século, que trariam uma

forma “outra” de pensar a emancipação do leitor?

Garcia (2001), nas recomendações destinadas aos professores que utilizam a

cartilha, esclarece que pensa/projeta um leitor capaz de “compreender nas mensagens orais

e escritas de que é destinatário direto ou indireto: saber atribuir significado, começando a

identificar elementos possivelmente relevantes segundo os propósitos e intenções do autor”

(idem), e espera que, ao ler os textos contidos em sua obra, a criança possa combinar

“estratégias de decifração com estratégias de seleção, antecipação, inferência e

verificação”. A autora consciente de que o livro de alfabetização é um instrumento que

carrega a pretensão de introduzir a criança ao mundo da leitura e escrita na qual está

subjacente o aprendizado do mecanismo técnico, propõe/pondera que essa habilidade

possa ser construída na interação com a diversidade textual desenvolvendo outras

habilidades na criança-sujeito que pensa, que atribui significados e que relaciona o

conhecimento com seu repertório cultural.

A proposta de utilizar textos significativos para a criança é também adotada por

Augusto (2004) no livro de alfabetização Todas as letras. Nesta obra, a autora faz uma

seleção ampla de textos de variados gêneros, preservando sua autoria e integridade, mas

usa-os como pretexto para aprendizagem das letras e das sílabas. Ela organiza o conteúdo 30 A autora realizou seu estudo dialogando com outros autores, especialistas e professoras alfabetizadoras, analisando os textos das cartilhas, as lições e situações vivenciadas em sala de aula para perceber a pertinência e validade que esse recurso didático pode ter/assumir nas relações de ensino, o lugar que ocupa na escola e as concepções de aprendizagem e de linguagem que permeiam essas relações.

44

da obra seguindo a ordem alfabética com o objetivo de focalizar a aprendizagem da letra e

da sílaba, confirmada pela chamada dos textos feita por um nome de criança cuja letra

inicial é a mesma, por exemplo: Ana e o anel, Eva e o elefante, Igor o irmão de Pedro, Oto e

o ovo, [...]. Numa classificação propostas por Barbosa (1994, p. 55) este livro representa um

modelo de cartilha mista ou analítica sintética que, por sua vez, combina duas orientações,

ou busca contemplar um método eclético de alfabetização. “As cartilhas mistas partem de

palavras-chaves que são destacadas de uma frase, [ou de um texto] para logo a seguir,

realizar sua decomposição em sílabas, compondo-se com estas sílabas novas palavras” e

ainda “estabelece-se uma hierarquia de dificuldades [...] na apresentação das sílabas, essas

cartilhas tem sempre o cuidado de começar pelas que tem uma relação biunívoca com o

oral, para depois apresentar sílabas com relações mais complexas com o oral” (idem).

Foucambert (1998, p. 23) afirma que “a necessidade de conhecer os elementos

simples e suas combinações, e a necessidade de partir daquilo que interessa a criança,

portanto de um texto complexo dotado de sentido” são dois pontos de vista que divergem há

séculos na questão do leitor-aprendiz. Mas o equilíbrio de forças se dá somente em nível

teórico, pois a alfabetização de massa continua a ser feita pelo caminho da decifração,

enquanto o trabalho contextualizado não passa de pequenas experiências, ainda muito

incipientes.

O ensino da decodificação (decifração) predominante se contrapõe às formas de

leitura mais consistentes que poderiam ser desenvolvidas apesar da estrutura escolar, pois

infelizmente em nosso país, a grande maioria da população tem acesso à leitura apenas por

meio da escola; e a forma escolarizada de leitura, ou seja, desarticulada das questões que

permeiam o contexto social dos sujeitos, é muitas vezes a única. É uma leitura esterilizada,

desprovida de significações mais profundas, é a leitura da e para a escola. Os livros

didáticos, em especial a cartilha, ocupam-se muito mais da decodificação do que da

atribuição de significados. Entretanto, Foucambert (1994, p.115) esclarece que “a criança

aprende a ler lendo, da mesma maneira em que aprende a falar... falando”. Ao considerar o

sistema regular (francês) de ensino, o autor aponta como fragilidade a forma artificial e

descolada das questões de contexto do sujeito, re-afirma que “o único pré-requisito do

aprendizado da leitura é ser uma pessoa questionadora do mundo; [...] a criança não

aprende fazendo de conta, ela se confronta com os textos sociais dos quais precisa como

criança e não como aluno” (idem).

O confronto com os textos sociais (reais e ficcionais) numa leitura não

escolarizada requer um aprendizado. A criança aprende dialogando com a diversidade

textual, compreendendo as diferenças intertextuais e produzindo diferentes significados. Ela

fala inventando “um saber ler que nunca existiu, o dela mesma, e ela só pode inventá-lo a

partir das diversas maneiras de saber ler vigentes em seu meio” (FOUCAMBERT, 1998, p.

45

28). Colomer (2001, p. 126) destaca a importância da reflexão pedagógica sobre a leitura

de textos com significado, de utilizar a leitura como um instrumento integrado às tarefas

educativas ou de levar em conta às habilidades básicas envolvidas na aprendizagem para

além da decifração.

Na diversidade textual proposta, pesquisadores como Osman Lins e Regina

Zilberman defendem a inserção e intensificação da literatura na escola desde os momentos

iniciais da aprendizagem. O livro didático é também uma das formas de trazer a literatura

para a escola, desde que seus autores tenham o compromisso ético de não utilizá-la de

forma fragmentada, comprometendo-a, mas sim preservando a integridade textual e autoral.

Para Lins (1977, p. 140), é preciso intensificar, na escola, “o convívio dos alunos com os

textos literários”. Zilberman (1998, p. 14) assegura que a “sala de aula é um espaço

privilegiado para o desenvolvimento do gosto pela leitura, assim como um importante setor

para o intercâmbio da cultura literária, não podendo ser ignorada, muito menos desmentida

sua utilidade. Garcia (2001) recomenda que esta seja “uma prática regular nas salas de

alfabetização” (p. 24) e apresenta, no livro de sua autoria, uma diversidade de textos

literários com a devida referenciação.

O leitor destinatário do livro de alfabetização é alguém que precisa ser tutelado.

E o autor enquanto adulto e detentor do conhecimento é quem mostra o caminho por onde o

leitor iniciante deve trilhar. A produção da cartilha está amparada por uma visão

adultocêntrica, produzida pelo adulto a partir da forma com que ele acredita ser útil para

“conduzir” a criança à leitura. O autor constrói o seu leitor-modelo, pressupondo as formas

como o texto será recebido, a partir das suas concepções de infância, de conhecimento e

aprendizagem, de leitura e de leitor, de escritura e de escritor. Nesse sentido, formata o

livro dentro de um recorte possível, o de autor. Essa forma, por si só, é restrita e unilateral;

principalmente porque, ao tentar, por um lado, se adequar aos avanços teóricos, e por outro,

dialogar com a criança na prática, pode não atingir nem uma coisa nem outra. É frágil na

base teórica, pois enquanto produto comercializável31 tende acatar as exigências de um

mercado consumidor e inconsistente quando busca justapor as propostas de atividades a

uma posição teórica.

Marislei Augusto (2004) explicita que o seu livro está amparado na concepção

piagetiana32 de construção de conhecimento. Ela relaciona no manual destinado aos

31 Barbosa (1994) refere-se ao mercado editorial de livros para a alfabetização como um grande negócio e reúne informações sobre algumas cartilhas que foram editadas muitas vezes, permanecendo por um longo período no mercado consumidor. Cartilha do povo, para ensinar a Ler Rapidamente, foi uma delas, produzida por Manoel Bergstrõn Lourenço Filho, atingiu até 1961 1176 edições, outro exemplo foi a Cartilha para Ensino Rápido da Leitura de Mariano de Oliveira que teve até 1965 um total de 1134 edições com milhões de exemplares vendidos em todo o país; Caminho Suave também foi uma cartilha de grande aceitação, produzida na década de 50 por Branca Alves Lima, foi utilizada no sistema educacional brasileiro até 1997. 32 Sobre isso ver: AZENHA. (1995) e KRAMER (2006).

46

professores as hipóteses levantadas por Ferreiro e Teberosky sobre as etapas de

desenvolvimento da criança com o intuito de viabilizá-las ou reformulá-las. Essa tentativa de

sistematizar o ensino da escrita, pautado na sucessão dos padrões evolutivos da

aprendizagem é, segundo Azenha (1995, p. 99), uma interpretação equivocada que “serve

mais como um impedimento para o avanço do que de estímulo para a reflexão sobre a

linguagem escrita, conteúdo sem o qual a criança não pode aprender”, pois além de supor

que se devam construir situações de aprendizagem consideradas ótimas para crianças pré-

silábicas, silábicas, etc., acredita-se que estas crianças farão percursos homogêneos na sua

aprendizagem.

Há que se levar em conta que um livro didático é apenas um dos diferentes

instrumentos e uma das inúmeras possibilidades que a escola possui; uma cartilha é

insuficiente para dar conta de alfabetizar/letrar um sujeito que está integrado ao mundo, faz

parte dele e atua não passivamente, mas imprime ao seu redor a sua marca, quer a escola

queira ou não. Da formação do leitor, da qual a primeira série do Ensino Fundamental toma

para si a tarefa de instrumentalizar tecnicamente e dar os passos iniciais no sentido de

projetar um leitor autônomo, a escola não tem dado conta, muito menos a cartilha.

Entretanto, existem outros aspectos a serem considerados e aprofundados (não inclusos

nesse texto) que podem ser determinantes para afiançar (ou não) o uso do livro de

alfabetização como instrumento auxiliar no processo de alfabetização e letramento, fato que

me leva a refazer, nos dias atuais, a pergunta feita por Kramer (1986, p. 39) “por que negar

às crianças [...] o acesso a livros didáticos (cartilhas, no caso) de boa qualidade e que

tragam conhecimento da área organizado e estruturado adequadamente?”.

Entre os elementos constitutivos da cartilha, mencionados ou não, há ainda um

fator pouco considerado que acredito merecer atenção, principalmente por se tratar de um

livro para crianças – é a relação sentimental que ela [a criança] pode estabelecer no

momento em que recebe, abre e toma posse de um objeto que acredita poder conduzi-la ao

“caminho” da leitura. Atingida pelo olhar de Walter Benjamim (2002), eu poderia ver/pensar

a/na cartilha como o primeiro livro da criança na escola e na significação afetiva que pode

assumir esse objeto, na revelação que faz o autor, preservando a cartilha com que sua

própria mãe aprendeu a ler ovo, chapéu, rato... e com ele advertir, irônica e/ou

poeticamente, “que não seja dito nada contra essas cartilhas. E como alguém que aprendeu

a ler com essas cartilhas poderia revoltar-se contra elas? Quanto de tudo aquilo que esse

alguém enfrentou na vida posterior se deve ao rigor e à segurança com que essas letras

penetraram em seu íntimo?” (p. 155). Para uma criança à revelia de qualquer crítica a

seriedade da vida “fala” de dentro de uma cartilha. Para Walter Benjamim (2002), o dedo

47

que percorre suas linhas ultrapassa o limiar de um reino de cujo território nenhum viajante

retorna, o terreno do “preto no branco”.

1.3. A ABORDAGEM NA PESQUISA COM CRIANÇAS

Os estudos realizados no campo da infância, durante muito tempo, pautaram-se

preponderantemente em abordagens que pretendiam entendimentos sobre a infância e o

seu desenvolvimento, principalmente nos campos da psicologia e da pedagogia. Dessa

forma, tratavam da criança como objeto e não como sujeito de pesquisa de maneira que ao

lançar-se a campo para compreender melhor o universo infantil, os pesquisadores

entrevistavam pais, babás, professores, enfim, qualquer pessoa adulta que pudesse

oferecer alguma informação, menos a criança. Pode-se dizer que durante muito tempo a

criança não teve direito a falar e ser ouvida.

O movimento que tenta virar esta página da história na qual a criança é vista

como objeto vai se delineando a partir de algumas decisões que garantem a ela direitos

fundamentais inerentes à pessoa humana. A aprovação do Estatuto da Criança e do

Adolescente – ECA33 em 1990 foi um marco decisivo do ponto de vista legal. A mudança

cultural se faz sentir por meio do esforço de pesquisadores que buscam uma forma outra de

ver e atuar junto às crianças. Uma premissa fundamental para entender essa proposta

consiste em superar a visão romântica compreendendo que a infância é uma construção

cultural, portanto existem múltiplas e diferentes infâncias.

Esse outro olhar lançado à infância tem seus movimentos iniciais inspirados em

Walter Benjamim e Lev Semyanovich Vigotski que contribuíram para estabelecer as bases

paradigmáticas sobre as quais a criança deixou de ser considerada coadjuvante para ser

vista e tratada como protagonista de uma história em construção. A compreensão da

historiografia da infância tem como ponto de partida os estudos do historiador francês

Philippe Ariès, que segundo Kramer (1996, p. 18) “inaugura uma linha de investigação: a

história da infância”. A autora destaca ainda a contribuição de Bernard Charlot, que, na

década de 70, discutiu a significação ideológica da idéia de infância presente no

pensamento pedagógico comum, entre os filósofos e nos sistemas mais amplos.

Benjamim (1993 –1994 – 2002), em seus estudos, trata dos excluídos da

história, problematizando o conceito linear de história e seus desdobramentos. Aproxima-se

da criança buscando capturar o seu ponto de vista e desvela o olhar infantil para o

brinquedo, para o livro, enfim, para o mundo; por meio da análise do adulto inquiridor retrata

33 Lei nº 8.069 de 13 de julho de 1990.

48

a infância do menino-Walter em Berlin. Esses escritos contribuem de forma determinante

para romper com a concepção romântica de infância e, segundo Kramer (2002, p. 45),

superam a visão da criança como filhote de homem, ser em maturação, cidadão do futuro,

para entendê-la como “parte da humanidade, fruto da sua tradição cultural que é também

capaz de recriá-la, refunda-la; criança que reconta e ressignifica uma história de barbárie,

refazendo essa história a partir dos despojos de sua mixórdia cultural [...]”.

Vigostski (1984 – 1987) fundamenta seus estudos no campo da psicologia na

história e na sociologia. Ao investigar a relação entre pensamento e linguagem desenvolve

o conceito de desenvolvimento proximal destacando a participação criadora da criança, a

capacidade de discernimento, de tomar iniciativa, de começar a fazer sozinha o que antes

só conseguia fazer com a mediação e, portanto, reconhece que a aprendizagem se dá na

interação com o outro. Nessa ótica, o autor compreende a criança como produtora de

cultura e re-significa o papel da brincadeira.

A contribuição de Bakhtin (1988 – 1998) está nas suas reflexões acerca da

linguagem fundamentadas na história e na sociologia e nos estudos em metodologia da

pesquisa em ciências humanas e sociais, formulando entre outros o conceito de exotopia,

que implica na necessidade de considerar o lugar de onde o pesquisador observa, escuta,

pergunta, mede, pois o objeto pesquisado nas ciências humanas está sempre carregado de

interesses e intenções. Para Silva et al (2005), a abordagem filosófica de Vigotski , Bakthin e

Benjamim representa uma combinação necessária para conhecer interações e práticas

entre crianças e adultos nos espaços de educação infantil e ensino fundamental escolhidos,

mas também para compreender de que modo a cultura contemporânea se manifesta nesses

espaços.

Ao investigar o significado que a literatura assume para a criança no processo de

alfabetização e letramento, buscando compreender o problema no diálogo com ela e por

meio do seu olhar, uma exigência se impôs: conhecer o perfil do ator social que está no

centro desta reflexão. Dessa forma, empreendi uma breve passagem pela construção

histórica e social da infância com a re-leitura de alguns dados, impregnada pelo olhar dos

interlocutores já mencionados e em diálogo com outros pesquisadores da infância que

encontrei pelo caminho. Os estudos referentes à infância são subsídios necessários para

lançar luzes ao problema da pesquisa principalmente porque “perceber a diferença das

visões que são possíveis ao pensarmos nas crianças pode modificar, sobremaneira, as

idéias que levantamos acerca das investigações que nos propomos a fazer com elas”

(HONORATO et al, 2006 [s.p.]).

49

1.3.1 A construção da infância

Ao longo do percurso histórico que a humanidade vem trilhando, a infância tem

sido compreendida de diferentes formas. O entendimento que uma sociedade possui acerca

da criança está refletido nos espaços e objetos destinados a ela, dessa forma, vestimentas,

brinquedos, livros, ou qualquer outro elemento constituem uma espécie de enciclopédia

carregada de significados culturais que permitem perceber os diferentes conceitos

coexistentes. Para Honorato et al (2006) esses diferentes conceitos vão desde a

inexistência do sentimento de infância na Idade Média, passando pela perspectiva etapista

e faseológica que compreende a infância como mera passagem para a idade adulta com a

acumulação de experiência e conhecimento até a formulação, nos dias atuais, de um

entendimento de criança ator social, pessoa de pouca idade34 que se apropria e recria a

cultura na qual está inserida

O historiador francês Philippe Ariès (1981), como um dos primeiros

pesquisadores da infância, realizou seus estudos baseados em iconografias (pintura,

escultura); examinou diários antigos de família, registros em igrejas e túmulos (a partir da

Idade Média), explicitando a formação e as transformações do sentimento35 de infância e da

família em relação à organização social no correr dos séculos. O autor trouxe à luz a

formação da consciência da particularidade infantil. Ariès levantou e analisou dados que

evidenciavam a forma como as crianças eram tratadas na Idade Média e no início dos

tempos modernos, buscando compreender o sentimento dos adultos em relação à infância.

Constatou que esta era desconhecida na Idade Média, ou melhor, desconsiderada: adultos

e crianças partilhavam os mesmos espaços e atividades sem uma preocupação

diferenciada. Nessa época, a criança muito pequena não contava, pois havia uma alta taxa

de mortalidade infantil e sua sobrevivência era improvável.

Na sociedade medieval [...] o sentimento de infância não existia o que não quer dizer que as crianças fossem negligenciadas, abandonadas ou desprezadas. [...] assim que a criança tinha condições de viver sem a solicitude constante de sua mãe ou de sua ama, ela ingressava na sociedade dos adultos e não se distinguia mais destes (ARIÈS,1981, p. 156).

Analisando o movimento evolutivo da sociedade e a forma com que a infância é

representada, Ariès identifica dois sentimentos distintos em relação às crianças. O primeiro

deles é a paparicação, pelo qual a criança por sua ingenuidade e graça torna-se fonte de

34 De acordo com o ECA, art.2º, criança é a pessoa até doze anos de idade incompletos. 35 Não significa gostar ou não da criança, mas a consciência de infância como momento singular da vida humana, dotado de significados constituídos socialmente.

50

distração para o adulto. Um sentimento que provocou muitas críticas no final do séc. XVI e,

sobretudo no séc. XVII, gerando outro sentimento: o da moralização. Esta, por sua vez,

pode ser representada pela hostilidade de Montaigne36 que considerava insuportável a

atenção que se dispensava às crianças. A paparicação teve origem no meio familiar e a

moralização, ao contrário, proveio de uma fonte exterior à família, partiu dos educadores,

eclesiásticos ou dos homens da lei, preocupados com a disciplina.

A formação da consciência da infância no séc. XVII é decorrência das

transformações constantes ocorridas nas formas de organização da sociedade. Segundo

Sarmento, a constituição de infância enquanto categoria social, na modernidade, é

“resultado de um processo complexo de produção de representações sobre as crianças, de

estruturação de seus quotidianos e mundos de vida, e especialmente, de constituição de

organizações sociais para as crianças” (2004, p. 11). O autor faz uma análise de alguns

fatores que contribuíram para o que denomina institucionalização da infância no início da

modernidade e destaca: o recentramento do núcleo familiar; a criação de instâncias públicas

de socialização da criança, especialmente a escola; a produção de disciplinas e saberes

periciais; e a promoção da administração simbólica da infância.

A criação da escola pública está associada à construção social da infância, pois em

meados do século XVIII foi constituída (inicialmente direcionada apenas para rapazes de

classe média urbana) e progressivamente ampliada com a proclamação da escolaridade

obrigatória. Para Ariès (1981, p. 232), “a substituição da aprendizagem pela escola exprime

também uma aproximação da família e das crianças, do sentimento de família e do

sentimento de infância, outrora separados”. A família passou a ser o núcleo de convergência

das relações afetivas, retomando o cuidado, proteção e estimulando o desenvolvimento da

criança, tornando-a destinatária dos anseios de mobilidade social ascendente pelo

investimento na sua formação.

De acordo com Sarmento (2004), a modernidade propiciou a elaboração de um

conjunto de procedimentos configuradores da administração simbólica da infância que

definem e direcionam a vida da criança na sociedade. São normas que não estão escritas

ou definidas formalmente, mas, estabelecidas na prática social e aceitas como adequadas.

O consenso sobre a freqüência ou não de crianças a determinados ambientes, a dieta

alimentar permitida ou proibida, a admissibilidade de participação na vida coletiva em áreas

36 Michel Eyquem de Montaigne forneceu a base para que Jean Jacques Rousseau pudesse desenvolver sua tese sobre a bondade natural do ser humano. Ele nos chama a “atenção para a necessidade de educarmos a criança logo cedo, para que se torne possível dar a ela a formação que seja peculiar a sua natureza. É neste sentido que nos diz o seguinte: ‘Os filhotes de ursos e de cães mostram sua tendência natural; os homens, porém, metendo-se desde logo em hábitos, preconceitos, leis, mudam ou se mascaram facilmente’ [I, p. 74]”. DIONIZIO, Manoel Neto. Rousseau: um Olhar Sobre a Infância e a Educação. 2001, [sp]. Disponível em: http: //www.unicamp p.br/~jmarques/cursos/rousseau2001/mdn.htm. Acesso em 21-01-2007

51

reservadas aos adultos (espaços culturais, ações cívicas, política). Trata-se de um código

construído socialmente que define o papel que deve ser desempenhado pela criança.

Ainda entre os fatores que contribuíram para formar a consciência da

particularidade infantil está o surgimento de um conjunto de saberes que colocou a criança

como objeto de conhecimento. Esses saberes deram origem à pediatria, à psicologia do

desenvolvimento e à pedagogia que entre outras questões buscaram focalizar a atenção à

criança e suas necessidades.

Com as transformações econômicas, políticas e culturais, a concepção de

infância e o papel social da criança também se modificaram e, de certa forma,

condicionaram a sociedade (os adultos) a compreender melhor a criança. Entretanto, ainda

é desafiador nos interrogarmos até que ponto o movimento dialético que desencadeia essas

transformações sensibiliza a nossa forma de ver e agir em relação ao outro, quando esse

outro é uma criança. Podemos perguntar-nos como vemos e tratamos efetivamente a

infância real no início desse novo milênio e qual a perspectiva de professores, psicólogos e

demais profissionais em relação aos meninos e meninas com os quais atuamos. De fato,

estamos nos posicionando em relação à criança como sujeito? Afinal, sabemos quem é a

criança do século XXI?

1.3.2 A infância na contemporaneidade

O conceito de infância difundido nos meios acadêmicos, com referenciais que

estiveram (e estão) presentes em curso de formação de profissionais que atuam com a

criança, tem na sua grande maioria, a base na psicologia do desenvolvimento. Esta traz

implícita uma concepção de infância (predominante nos dias atuais) que pode ser chamada

de romântica, pois parte do princípio de que a criança é igual em qualquer tempo e/ou

espaço, pautada na essência ou natureza infantil.

A concepção de criança baseada em uma natureza infantil atravessa as ações

da escola (e de outros espaços destinados à infância) legitimando as diferentes formas de

atuação. A infância é entendida a partir de um determinado modelo natural e igual,

desconsiderando as diferentes realidades sociais e culturais que, por sua vez, produzem

diferentes infâncias.

Sônia Kramer, em artigo escrito e publicado em 1978, explicita a visão de

infância presente no senso comum e na pedagogia:

Um conceito de criança abstrato, delineado com base em padrões fixos de desenvolvimento, de linguagem e de socialização, uma infância definida pela falta, por aquilo que não é, que não tem, que não conhece, fundamentalmente, uma criança compreendida pela negação de sua humanidade: filhote do homem, a ela cabia ser moldada ou no máximo se

52

desenvolver para ser alguém no dia em que, adulta, deixasse de ser criança (2005, p. 16).

A autora discute essa idéia de infância habitualmente entendida em oposição ao

adulto e estabelecida principalmente pelo fator idade, pelo qual a criança é vista como um

ser que ainda não possui maturidade. Kramer assegura que o fator idade é insuficiente para

definir a infância, uma vez que esse limite estará relacionado aos papéis e desempenhos

específicos para a criança dependendo da classe social à qual ela pertence. Ela advoga em

defesa de uma infância considerada na sua dimensão de cidadã, inquestionável do ponto de

vista legal, mas longe de tornar-se uma conquista de fato. Argumenta que para ampliar o

entendimento sobre infância, levando em consideração a criança real, constituída histórica e

socialmente, a visão natural precisa ser superada porque não é possível estabelecer um

conceito global de infância se as condições de origem e contexto social de cada criança são

diferentes. Kramer (1982, p. 16) afirma ainda que “ao se adotar uma concepção abstrata de

infância, está-se [...] distanciando-a de suas condições objetivas de vida e como se estas

fossem desvinculadas das relações de produção existentes na realidade”. E ao formatar os

espaços para a criança de acordo com essa premissa está se desconsiderando as

diferenças resultantes do meio de onde ela provém.

Azevedo (2005) alerta para o fato de que uma divisão mecânica de pessoas em

função da faixa etária pode, entre outros problemas, gerar um fosso entre crianças e adultos

que poderá ser superado quando os mesmos descobrem o quanto são parecidos nos

aspectos fundamentais da vida, pois tanto os adultos quanto as crianças são, em grau

diferente, atingidos por fatores afetivos, sociais e outros, sentem dores físicas, envelhecem,

manifestam sentimentos de ciúme, ódio, amor, tristeza ou alegria, gostam de conforto,

detestam ser rejeitados, são sexuados, entre outras semelhanças que poderiam ser ainda

acrescentadas.

Fritzen (2006) apresenta as imagens de infância produzidas pela literatura

brasileira no final do século XIX, que por sua vez, influenciaram o modelo educacional

vigente. A visão de infância feliz e inocente traduzida pelo Romantismo e a imagem da

criança enquanto ser bruto que precisa ser disciplinada e ter os instintos adaptados a ordem

social:

Usando da imagem de ente não contaminado pela corrupção do mundo moderno, o Romantismo a apresentou repetidamente na literatura, sempre a associando à inocência angelical, cujo emblema mais notável no Brasil se tornou “Meus oito anos”, de Casimiro de Abreu. Porém, embora ainda permaneça como clichê em nossa época, a natureza anterior ao pecado e à corrupção do mundo do trabalho e da sexualidade adultas que era atribuída à criança, conferindo-lhe traços nostálgicos de uma estadia no Éden indesejadamente interrompida, foi sendo alterada ao longo do século XIX. É como ser que antecipa o adulto e que deve ser vigiado e controlado de modo a ter seus instintos adaptados às exigências da sociabilidade e produção econômica que, principalmente nos discursos da pedagogia, da

53

psicologia e da psicanálise, a infância foi recebendo novas significações (p. 124).

Os discursos acadêmicos, nos dias atuais, estão buscando novas significações

para a infância em abordagens que permitam reconhecer que há diferentes formas de ser

criança e que estas são constituídas no contexto histórico e social. Vê-se que as crianças

“são, desde que nascem, sujeitos atuantes em sua realidade, atores sociais. É então a partir

dessa compreensão de criança e de seu lugar como ator social, que precisa ter seus direitos

assegurados – sendo ouvida, respeitada” (HONORATO el al, 2006, [s.p.]). O horizonte

focalizado por pesquisadores e demais profissionais que atuam com crianças apontam para

essa perspectiva de infância que surge como realidade social; mas o esforço precisa ser

intensificado, pois apesar da discussão teórica se mostrar bastante avançada, na prática, a

autoridade e o controle do adulto constituem-se ainda discurso corrente, aceito e efetivado

(com grau maior ou menor) dependendo do contexto sócio-cultural. Não obstante, em

qualquer contexto, ela [a criança] não absorve de forma passiva a cultura, os valores, a

ideologia do meio, ela transgride-os. Essa interação infratora também contribui para que as

transformações na relação criança-adulto se efetivem.

1.3.3 Propostas metodológicas na pesquisa com crianças

Uma vez delineadas as condições que possibilitam uma abordagem outra nas

pesquisas em ciências humanas e sociais, e em especial as que almejam como sujeito a

criança, alguns autores contemporâneos realizam uma série de estudos voltados para a

infância no campo da sociologia, da psicologia e em outras áreas do conhecimento. No

artigo intitulado: Questões teórico-metodológicas na pesquisa com crianças, Silva et al,

(2005, p. 47- 48) apresentam uma parcela desses estudiosos que têm nutrido esse campo

de análise e buscam relacionar “o conhecimento teórico sobre a criança, a discussão

metodológica, o delineamento da técnica e a construção da sensibilidade do olhar”. Nessa

perspectiva, esses pesquisadores almejam suplantar “o mito do protagonismo infantil e

analisar criticamente as mudanças nos papéis e nas formas de interação entre crianças e

adultos, compreendendo a infância como categoria e as crianças como sujeitos empíricos

em interação constante” (idem).

As propostas metodológicas que se constroem sintonizadas com a perspectiva

de infância como categoria da história procuram instrumentos que ajudem o pesquisador a

evitar olhar sobre as crianças (ou jovens e adultos), capturando apenas o reflexo dos seus

54

conceitos pré-estabelecidos. Embora um estudo dessa natureza possa ter alguns pontos em

comum com a pesquisa etnográfica37, Quinteiro (2002, p. 41) esclarece que:

Contudo, falta por parte dos estudos etnográficos, da pesquisa participante, do inventário dos artefatos, das produções culturais, das histórias de vida e das entrevistas biográficas propiciar um conjunto integrado de métodos e técnicas que possa subsidiar as pesquisas relativas à criança e à infância no campo educacional.

Percebendo a carência de uma metodologia específica para conduzir pesquisas

com crianças, para a qual as estratégias e metodologias usualmente utilizadas em

diferentes campos se mostravam ineficientes, Leite (2006, p. 3) propõe a construção de um

procedimento diferenciado que pretende tê-la como depoente privilegiado: os espaços de

narrativa. Essa é uma proposta de pesquisa que tem como intenção rever e reformular a

atuação junto às crianças, favorecendo a captura da sua contribuição. É uma possibilidade

que implica além da mudança conceitual e metodológica, a re-significação dos instrumentos

utilizados no campo.

Somamos a estes estudos a leitura crítica de uma bibliografia que começa aos poucos a despontar na área e a companhia lado a lado de autores como Walter Benjamin, Mikhail Bakhtin e Lev Vygostsky fez com que construíssemos, de alguma forma, no grupo de pesquisa, estratégias teórico-metodológicas de investigação – estratégias nas quais as crianças pudessem participar de tal forma que se constituíssem não como objeto de estudo, mas como sujeitos co-participantes destes estudos. A estes encontros pesquisador-criança chamamos espaços de narrativa (LEITE, 2006, p. 3).

Na proposta do espaço de narrativa, a metodologia e os instrumentos de

pesquisa estão para além da observação participante. A criança assume um papel ativo de

participante proponente, intervencionista e provocador, pois buscando ser aceita, ela está

geralmente pronta a participar e disposta a dar sua contribuição. Para Alderson (2005), as

crianças demonstram muito interesse pela pesquisa, principalmente porque “muitas delas

estão acostumadas a questionar, investigar e aceitar resultados inesperados, mudar de

idéia, e assumir que seus conhecimentos são incompletos e provisórios” (p. 426), enquanto

um grande número de adultos (pesquisadores ou não) busca o caminho mais confortável, no

sentido da confirmação de hipóteses pré-elaboradas e evitando as incertezas.

Dentro dessa ótica, a criança é sujeito de fato e de direito e participará do estudo

por opção. O pesquisador precisa consultar em primeiro lugar a própria criança para

conhecer o seu desejo e disposição em participar do estudo e então sua adesão será

voluntária e não uma imposição autoritária do adulto. A mesma preocupação em resguardar

37 Esse tipo de pesquisa baseia-se na observação direta do comportamento e do desenvolvimento do ser humano – individualmente ou em grupos e, na produção de uma descrição escrita dos resultados, mantém uma dimensão ampla e compreensiva dos fenômenos tratados em seu enfoque cultural. A idéia de cultura é central para a pesquisa etnográfica. SILVA, Marize Borba da e SCHAPPO, Vera Lúcia. Introdução à pesquisa em educação, Florianópolis: UDESC, 2002.

55

seu direito de optar livremente pela participação na pesquisa recai sobre a preservação e o

cuidado com a produção da criança. Ela é autora de falas, de textos, de desenhos e

pinturas; dispõe-se a fornecer imagens, cenas, fotografia, entre outros. A questão ética e

legal deve permear todo o trabalho do pesquisador, pois é um direito assegurado pelo

art.17, cap. II do ECA: “O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física,

psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da

identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais”.

A questão ética, por ser subjetiva, está ligada ao comprometimento e a

responsabilidade do pesquisador. Entrevistar e ouvir a criança requer respeito à voz e a

opinião. E mais do que isso, é necessário que o pesquisador desarme-se dos preconceitos e

das próprias intenções sob o ponto de vista do seu objeto de estudo, uma vez que ela pode

apontar elementos até então desconhecidos, ou novas formas de ver o objeto em questão.

É preciso estar preparado para ser surpreendido e não apenas para provar as hipóteses

levantadas inicialmente, pois, ouvir de fato a criança pode significar inclusive um novo rumo

às próprias intenções de investigação. Como produtora de cultura, a criança pode relatar um

prisma imperceptível para o olhar adulto e nas respostas não-esperadas, ou não-evidentes,

colocar o pesquisador em situações desconcertantes. Ouvir a criança não significa apenas

registrar o que ela diz de forma audível. É imprescindível estar atento às palavras não ditas,

aquilo que fica “no ar”, às palavras articuladas pelo olhar, pelo movimento das mãos, do

corpo, pelo tom e pelas expressões utilizadas, ou ainda, o não querer falar. O silêncio da

criança pode ser uma resposta intencional. Para Ferreira (2005, p. 6), é preciso “levar a

sério a voz das crianças, reconhecendo-as como seres dotados de inteligência, capazes de

produzir sentido e com o direito de se apresentarem como sujeitos de conhecimento” e,

mais do que isso, o pesquisador deve “assumir como legítimas as suas formas de

comunicação e relação, mesmo que os significados que as crianças atribuem as suas

experiências possam não ser aqueles que os adultos que convivem com elas lhes atribuem”

(idem). Esta postura exige um esforço maior, uma vez que fomos ao longo da formação

acadêmica e pedagógica habituados a pensar a criança nos moldes do conceito

estabelecido pela psicologia do desenvolvimento como um ser em formação que se

desenvolve por etapas e segundo uma cronologia. Neste sentido, é muito comum olharmos

a criança como aquela que não sabe e que nada tem a contribuir.

Nas estratégias metodológicas propostas pelos espaços de narrativa pode-se

fazer uso de instrumentos como o gravador, a filmadora e a máquina fotográfica digital no

processo de captação e registro das falas e ações das crianças. Leite (2006) sugere ainda o

uso de um diário de campo. Uma espécie de caderneta onde se registram as observações e

se descrevem rigorosamente os acontecimentos evitando adjetivações desnecessárias. A

coleta dos dados por meio de filmagens, gravações e fotografias, segundo a autora, além da

56

finalidade de capturar e registrar os encontros tem ainda a possibilidade de devolutiva38 para

que crianças e pesquisadores se vejam e reflitam sobre suas falas e ações, o que

caracteriza parte do caráter formador da pesquisa e ainda tira o sujeito do anonimato.

O tempo é um dos fatores que faz diferença nessa proposta de pesquisa. Em se

tratando de crianças como sujeitos-co-autores, na constituição dos espaços de narrativa,

pesquisador e criança precisam de tempo para estabelecer uma relação consistente e um

diálogo fértil e profundo. É preciso que ambos se entreguem a uma conversa “verdadeira”

para além das primeiras frases (feitas) e de muita disposição para buscar o significado que

ultrapasse os primeiros enunciados. É fundamental conquistar a confiança da criança e

ouvir de fato a sua voz, essencialmente porque a profundidade é o critério de validade nas

pesquisas em ciências humanas (BAKHTIN, apud SILVA et al, 2005).

Outro aspecto relevante para permitir o diálogo entre os atores envolvidos na

pesquisa, segundo Leite (2006, p. 7), é o local onde acontecem os encontros. Se a (minha)

pesquisa trata da relação entre literatura e alfabetização e, enquanto pesquisadora pretendo

compreender de que forma a criança percebe e interage com a literatura no processo formal

de aquisição da linguagem escrita, não poderia buscar a fala da criança na sala de aula,

porque “o local, por si só, é carregado de valores, regras e hierarquias que as crianças

rapidamente decodificam e essa percepção interfere fortemente em suas respostas” (idem).

As crianças com a atenção permanente ao seu redor, rapidamente percebem o que o

pesquisador quer ouvir e oferecem as respostas desejadas. Um fator que pode não

inviabilizar, mas comprometer o resultado. O ideal é que o local escolhido seja um espaço

livre, onde os sujeitos participantes sintam-se abertos a uma fala autêntica e que as crianças

não reconheçam no pesquisador um adulto típico39 do local e possam estabelecer um

diálogo desembaraçado e produtivo.

Um dos maiores entraves na pesquisa com crianças é o “adultocentrismo”

presente em nossa sociedade, construída por e para os adultos. Segundo Leite (2006, p. 4),

buscar a criança como participante implica em trazê-la “ao palco do diálogo e buscar

estabelecer com ela uma parceria”, o que significa transgredir com o estabelecido e buscar

meios de minimizá-lo, uma vez que é impossível suplantar as relações desiguais de poder

entre adultos e crianças. Silva et al (2005) explicitam que, para o pesquisador das ciências

humanas poder avançar, ele precisa reconhecer os próprios limites, situando o ponto de

38 A devolutiva é o momento em que trazemos novamente os textos, falas e outras produções do campo de pesquisa para que os sujeitos possam analisar, re-organizar, confirmar ou não a autorização concedida. Também expressão cunhada no GEDEST (ver nota de rodapé 6). 39 FERREIRA, (2005) desenvolve o conceito de adulto típico referindo-se aos adultos e suas ações esperadas, ou o papel mínimo, de acordo com o ambiente, por exemplo, os adultos típicos da escola são: professor, orientador, diretor, entre outros. O pesquisador precisa se colocar como atípico para afetar o outro com sua presença, despertando interesse e curiosidade.

57

vista de onde realiza a investigação – fator essencial para derrubar o mito da neutralidade

cientifica. Uma das condições para assegurar o rigor da pesquisa é explicitar passo a passo,

não apenas os procedimentos metodológicos, como também o contexto, ou melhor, o

prisma de onde o pesquisador está analisando e atribuindo significações a sua questão de

pesquisa.

A partir dessa ótica, um dos primeiros passos foi procurar compreender-me

enquanto sujeito-pesquisador-educador, contextualizando a minha fala e a origem desta; os

conceitos e pré-conceitos imbricados e a justificativa para determinadas posturas e atitudes

do ambiente escolar que me afetam gerando a necessidade de reflexão e que até então, eu

considerava natural. Como pesquisadora, sou antes professora e filha de professor. Este é

um elemento marcante; a maior parte da minha vida estive dentro de uma sala de aula. Meu

pai foi professor de séries iniciais numa escola “isolada”40 durante muitos anos e me colocou

numa sala de aula (mutisseriada) por volta dos dois anos de idade [...] .Constitui-me

pedagoga, a escolha da profissão não se deu por acaso.

Apesar da familiaridade com o ambiente escolar, existem algumas coisas que

me incomodam profundamente. Citando apenas algumas das que têm relação mais próxima

com o meu objeto de pesquisa: a aprendizagem da leitura e escritura na esfera escolar que

se aproxima muito mais da cópia e decifração em oposição à co-autoria e produção textual;

a literatura, que na maioria das vezes, não entra na escola enquanto arte, mas como motivo

pedagógico, e nesta perspectiva se desqualifica, perde o seu encanto, torna-se mero

instrumento de aprendizagem racional; a falta de espaço para a imaginação, tornando a

aprendizagem mecânica, estéril e desarticulada da vida da criança; e, (recentemente)

percebi que as interrogações relacionadas ao processo de alfabetização e letramento da

criança estão, geralmente, direcionadas aos adultos, pedagogos e especialistas, que a priori

são os que sabem, e não aos sujeitos envolvidos e interessados diretamente, ou seja, às

crianças. Não temos perguntado a elas como vivenciam o primeiro ano da educação básica,

quais são seus medos, suas angústias... e tampouco como percebem a presença ou

ausência da literatura no seu processo de alfabetização e letramento.

Entretanto, ciente dos limites, não somente da elaboração escrita, mas também

do enfoque aqui explicitado, reconheço que por maior que tenha sido o esforço em buscar a

contribuição da criança-depoente, ainda assim, fui eu, enquanto pesquisadora adulta, que

selecionei os dados e atribui os significados a partir de um olhar que carrega uma trajetória

situada. Afinal, segundo Silva et al (2005), os próprios “dados não são dados, mas sim

construídos [...] por trás do dado, há sempre um rosto, um corpo, um sujeito” (p. 43).

40 Nomenclatura usada para designar escolas localizadas em comunidades do interior e que abrigam as quatro séries iniciais do ensino fundamental, numa única sala de aula.

58

O caminho percorrido trouxe algumas respostas, incipientes em comparação ao

emaranhado de novas interrogações que surgiram e que conduzem o eu-pesquisador a não

perceber o espaço educacional da mesma forma, mas principalmente a aprender com

Walter Benjamim (2002, p. 103) a olhar o outro-sujeito-criança como um arquiteto sempre

presente num canteiro de obras, agindo, procurando e provocando desordem, pois “a Terra

está repleta dos mais incomparáveis objetos da atenção e da ação das crianças”; ou como o

artista disposto a brincar permanentemente com pincéis e tintas em busca de nuances ainda

não descobertas para imprimir no mundo a sua marca. É desta forma que a criança “grita”

revelando a sua presença e nos chamando a percebê-la.

A generosidade41 da criança é algo muito evidente; ela está na maioria das

vezes pronta a aceitar o convite do adulto para um mergulho ao desconhecido, além disso,

segundo Ferreira (2005), as crianças são as melhores informantes do seu tempo e espaço;

são atores sociais, transformando e sendo transformados; são protagonistas competentes

das suas experiências e entendimentos do mundo que as cercam. Esses e outros tantos

motivos, mais do que justificar, revelam a necessidade de intensificar as pesquisas com

criança como uma das formas de nos aproximarmos da condição humana e compreendê-la

nas múltiplas dimensões. A criança, disposta a se entregar inteira ao momento presente

pode extrair de cada experiência conteúdos mais intensos e significativos e auxiliar o adulto

na tarefa de transformar o seu modo de ver e vivenciar as experiências humanas.

Realizei a pesquisa de campo seguindo as coordenadas fornecidas pelos

espaços de narrativa, gostaria de continuar conversando com os sujeitos participantes por

um tempo indeterminado [...], porém, foi necessário deixar o campo e realizar a análise que

apresento no capítulo II. Trago para o centro da reflexão as histórias narradas pelas

crianças, os textos poéticos construídos por elas e as suas falas e opiniões sobre a

aprendizagem da escrita e da leitura. A partir desses eventos, discuto a relação da literatura

com o processo de alfabetização e letramento.

41 Dos 21 alunos que compõe a turma convidada, obtive em alguns encontros a participação de 100%.

59

CAPÍTULO II

2 O CANTEIRO DE OBRAS OU O CAMPO DE PESQUISA

Este capítulo está organizado da seguinte forma: inicialmente trago a

contextualização do campo, especificando a escola onde a pesquisa foi desenvolvida, o

espaço físico, os instrumentos utilizados, os critérios adotados para a seleção dos sujeitos

participantes e algumas reflexões que atravessaram a temática no movimento de ação em

campo. Na seqüência, o marco decisivo deste estudo que se constitui na convergência das

falas, opiniões, histórias e poesias narradas/criadas pelas crianças em categorias de

análise. Relato ainda a maneira como o grupo foi se constituindo, mencionando as

percepções das primeiras interlocuções entre as crianças e a pesquisadora; as

interrogações pré-elaboradas que levei para o campo; a experiência de leitura da primeira

obra literária do gênero infantil com o grupo e as histórias e poesias que foram narradas

e/ou produzidas pelas crianças em momentos de criação e que deram origem às reflexões

posteriores.

Antecipo que algumas das minhas expectativas em relação aos encontros com

as crianças não se confirmaram. Uma delas está relacionada a minha experiência com a

literatura na infância. Em contrapartida, registro alguns textos inéditos que dizem muito do

momento em que foram concebidos e de seus autores e, nesse aspecto vão muito além

daquilo que eu esperava.

Vale lembrar que a proposta de problematização da tríade: alfabetização,

letramento e literatura se fez de maneira articulada sem no entanto esquecer que cada um

dos termos possui uma especificidade. Porém, não interessou, para esse estudo, aprofundar

cada elemento de forma isolada, mas sim reflexionar acerca das possibilidades que podem

advir da inserção da literatura como um elemento auxiliar no processo de alfabetização da

criança desenvolvido na perspectiva do letramento.

2.1 APRESENTANDO O CAMPO DE PESQUISA

A escola: a pesquisa de campo foi realizada com crianças, alunas de uma das

turmas da primeira série da Escola de Educação Básica Irmã Edviges. Essa unidade escolar

está situada num bairro periférico do município de Criciúma, em Santa Catarina e pertence à

Rede Pública Estadual. Atende aproximadamente mil alunos do Ensino Fundamental e

60

Médio. A primeira série do Ensino Fundamental possui 41 alunos no ano letivo 2007,

distribuídos em duas turmas, uma no período matutino e a outra no vespertino.

Como foi dito na introdução, na implementação das Leis 11.114/2006 e

11.274/2007 no âmbito federal ficou em aberto para que os sistemas pudessem optar entre

utilizar a designação série, ano, ciclo ou outro. O sistema de ensino da Rede Estadual de

Santa Catarina, ao qual a escola está vinculada, optou por continuar utilizando a

nomenclatura “série”. Portanto, o Ensino Fundamental das escolas da Rede Estadual de SC

organizam os alunos em nove delas, sendo que as duas primeiras constituem as classes

para a alfabetização. Registre-se que os sujeitos participantes desta pesquisa são crianças

da primeira série.

Os critérios: a turma que participou da pesquisa foi a primeira série 02 que

freqüenta a escola no período vespertino. O critério que levei em conta para convidar essa

turma foi à conveniência de horário para as crianças e seus responsáveis. Ciente de que a

pesquisa não poderia interferir no horário de aula das crianças, a opção era utilizar o horário

depois da aula; porém, para as crianças que freqüentam a aula de manhã esse tempo

coincide com horário de almoço e poderia causar transtornos aos responsáveis uma vez que

se trata de crianças que ainda não vêm à escola desacompanhadas.

Para fazer pesquisa com as crianças da primeira série que pela nova realidade

legal são crianças de seis42 anos (relativamente pequenas) é preciso muita atenção e

cuidado. Enviei aos pais um documento detalhando data, horário e local em que os

encontros aconteceriam. Isso não funcionou, porque os responsáveis pelas crianças

esqueciam o compromisso assumido, buscando-as no horário regular. Foi necessário enviar

comunicados individuais um dia antes de cada encontro43.

Os nomes: em relação aos nomes das crianças, optei por mencioná-

los, completos, levando em consideração principalmente três fatores: a opinião das

crianças; o fato de que o tema abordado, as falas, histórias ou poesias das crianças

que foram convertidas em categorias de análise, uma vez registradas, não implicaria

em riscos de qualquer natureza para as crianças; e ainda como uma forma objetiva

do reconhecimento da autoria de cada sujeito participante.

Apresento, na ordem alfabética as crianças que participaram da pesquisa: Bruno

Cardoso dos Santos, Bruno Teixeira da Rosa, Elton Bacelar Josephino, Francielen Soares

Bitencourt, Isaac Borges Joaquim, Jhon Kennedy Vargas Pedroso, Josué Medeiros Albano,

42 Neste ano de 2007, como é o ano de implementação do Ensino Fundamental de nove anos, as turmas da 1ª série abarcam alunos de seis e sete anos, situação que não ocorrerá no próximo ano letivo. 43 Foram realizados (9) nove encontros planejados e organizados e muitas outras conversas informais, antes durante e depois da pesquisa de campo. Antes para me aproximar da turma, conhecer as crianças; durante para acertar detalhes dos encontros; e depois para concluir a devolutiva.

61

Juliano Bittencourt Oenning, Karoline Gonçalves Porto, Lara Fabian Leacina Alves, Luiz

Filipe Alano da Silva, Luiz Filipe Pavesi Miranda, Mariany Nicolau Valim, Pamela Henrique

Locks, Rafaela Pedro Rinaldi, Rodrigo Daminelli Correa, Sarah das Almas Rebelo, Stefani

Borges Duarte, Thiago Monteiro dos Santos, Vitor Carlos Colombo e Willian Caetano dos

Santos.

Os instrumentos: para registrar os encontros com as crianças utilizei um

gravador tipo MP3, uma filmadora e um bloco de anotações que pode ser chamado de diário

de campo. Para que as crianças pudessem ter familiaridade com os instrumentos da

pesquisa, no encontro inicial, antes de qualquer coisa, fizemos o reconhecimento dos

instrumentos: elas puderam ver a câmera ligada, filmar e ser filmado, gravar e ouvir a

própria voz.

Em relação aos instrumentos, dentre aqueles que utilizei para captar imagens e

falas das crianças (e minhas), o uso da filmadora nessa experiência específica constitui-se

como o mais intrigante. Ciente de que é um instrumento que abre um leque de

possibilidades trazendo gestos e expressões que não são possíveis de perceber na

gravação, eu precisava usá-lo; porém, particularmente, o fato de estar sendo filmada me

impôs certo desconforto44. Percebi que na contação ou leitura de uma história, ou de uma

poesia o fato de estar sendo filmada, quebrava um pouco o encantamento que estas

poderiam proporcionar. Em contrapartida, para as crianças servia como um elemento

motivador, elas queriam aproveitar a oportunidade para marcar sua presença. Pude

perceber em muitos momentos, mas principalmente quando deixei a filmadora no tripé e

conversamos sentados em circulo no chão, de vez em quando uma delas levantava e se

dirigia até a câmera e fazia um gesto, uma pose. Além disso, quando contávamos com um

operador, a sua presença era suficiente para interferir no encontro.

Revendo o material gravado em vídeo, percebi que tivemos muitos momentos

em que esquecemos completamente que havia filmadora, gravador e nos entregamos ao

encantamento das histórias, das poesias, enfim, das palavras que fluíram e que foram

compartilhadas. Ao encerrar o encontro, eu buscava registrar imediatamente todo o

movimento efetuado, as análises possíveis e as reformulações necessárias para o próximo

encontro; pois, embora os instrumentos fossem eficientes para capturar falas e imagens, a

minha experiência, ali vivida, é que propiciaria a reflexão sobre os dados coletados. Daí ser

preciso aprimorar o registro logo após o encontro para não correr o risco de perder nuances,

impressões, vozes, gestos, enfim, dados que poderiam se mostrar importantes no decorrer

da pesquisa.

44 Essa pesquisa serviu inclusive para superar o desconforto que eu sentia em relação à filmagem ou gravação. A experiência foi intensa e tive que ver e ouvir inúmeras vezes minha própria imagem e voz que essa ação se tornou “natural”.

62

O ambiente: o espaço físico escolhido para esta experiência não foi uma sala de

aula. Existe na escola pesquisada um prédio que, apesar de situado no mesmo pátio, está

separado por um pequeno muro. Até 1998, abrigava as classes de Educação Infantil. Este

espaço é constituído de apenas uma sala ampla, onde estão um aparelho de televisão, um

vídeo cassete e um aparelho de DVD. É usado como sala de vídeo, de artes, de reuniões,

entre outros, e é conhecida pela comunidade escolar como a “sala do pré”. As crianças

mostram-se eufóricas quando são convidadas a ir para esse local. Percebendo a satisfação,

sugeri que fizéssemos os encontros nessa sala. Como a sugestão foi aceita, solicitei à

direção da escola a permissão para utilizá-la, fazendo os encontros nesse espaço, já que ali

ficaríamos mais à vontade.

A pesquisadora: o desejo de dialogar com as crianças foi intenso desde a

reformulação do projeto no início do curso de mestrado. Porém, eu atuo nesta unidade

escolar como professora de séries iniciais e venho trabalhando com a primeira série desde

2003, de forma que, inserida nesse contexto, fazer a pesquisa de campo com os meus

alunos não me permitiria um distanciamento necessário para uma análise depreendida ou

pretensamente crítica. Ao final do ano de 2006, me afastei das atividades em sala de aula e

convidei os alunos da primeira série vespertino, ano letivo 2007, para participar deste

estudo. Na proposta metodológica utilizada, esse é um fator que deve ser levado em

consideração, objetivando um diálogo com a criança no qual ela não esteja cerceada pelo

ambiente, nem constrangida pelo adulto (professor) e possa falar livremente.

É preciso dizer que, embora estivesse afastada da função de professor, não

consegui me descolar totalmente do papel pedagógico na atuação em campo. O que fiz foi

um exercício de estranhamento do que me foi familiar durante tanto tempo com a

oportunidade de olhar a sala de aula por outro viés. Eu me encontrava com uma turma de

crianças, que não eram meus alunos, não para “dar” aula, mas para conversar com elas e

intercambiar experiências. Em muitos momentos, agi e fui vista pelas crianças como

professora. Em outros, esquecemos a filmadora, o gravador e nos entregamos ao encanto

de uma história de ficção ou de uma poesia que arrancou aplausos espontâneos,

pensamentos profundos, os quais relato na seqüência. Estes momentos me fizeram não

apenas refletir sobre a temática, mas com a mesma ou maior intensidade, me emocionar...

A apresentação: considero que o início do trabalho de campo se deu no

momento em que foram estabelecidos os primeiros contatos com os sujeitos. Procurei me

manter atenta aos acontecimentos e aos diálogos que foram se construindo, buscando

significações, sem perder de vista, evidentemente, o foco central de análise. Quando

encontrei com as crianças pela primeira vez, iniciei o diálogo, desta forma:

Boa tarde, eu sou a Rosilene, (podem me chamar de Rosi) sou aluna (pesquisadora) da UNESC, estou estudando e quero fazer uma pesquisa com as crianças que quiserem participar. Eu gostaria de me encontrar com

63

vocês para conversar, ler, contar e inventar histórias [...] Eu gostaria de gravar (filmar) para depois assistir com vocês. Queria saber quem vai querer participar desta atividade, não vai ser no horário de aula. O que vocês acham da idéia? Quem quer participar?

Ainda dentro da conversa inicial, na sala de aula propus às crianças que

definíssemos dentro das alternativas o melhor dia e horário para os nossos encontros.

Entramos em acordo de que ocorreriam preferencialmente uma vez por semana na quarta-

feira, após o horário regular de aula e poderiam durar de 30 a 45 minutos (ou mais),

dependendo de como pudesse fluir e encaminhar-se para diálogos produtivos ou não. Após

a conversa inicial obtive a aceitação de 15 alunos, que estariam na dependência da

autorização dos pais, pela questão legal que ampara a pesquisa e também por se tratar de

horário extra classe. Na seqüência, formalizei a autorização dos pais, da professora45 e da

direção da escola (vide ANEXO 2 e 3).

A devolutiva: as falas das crianças foram gravadas e transcritas. Antes de

comporem o texto final, foram devolvidas para que as crianças pudessem concordar (ou

não) com o conteúdo e a forma daquilo que foi dito e escrito. Foram possibilitados às

crianças momentos para ver as vídeo-gravações em situações de auto-análise, autocrítica e

re-construção dos textos.

A devolutiva teve dois momentos diferenciados: o coletivo e o individualizado. O

coletivo se fez assistindo conjuntamente as filmagens, re-lendo as histórias, falas e poesias,

com o grupo participando, opinando, modificando. O individual foi necessário para finalizar

os textos das crianças: fiz uma leitura marcada para que cada criança pudesse dispor da

forma mais adequada do (seu) texto. É preciso dizer que muitas coisas bonitas foram ditas e

não foram autorizadas e, então, ficaram simplesmente guardadas “para sempre” num

“lugarzinho secreto” de onde não podem ser vistas, nem ouvidas, mas... podem ser

imaginadas!

2.1.1 “[...] Agora mudei de idéia!”: a entrada em campo e as primeiras percepções

Nos movimentos iniciais da experiência de campo, percebi que embora o

primeiro encontro devesse ter um caráter formal, quando eu pretendia convidar as crianças

para participar da pesquisa e obter a autorização delas e de seus pais, essa conversa

primeira já apontava elementos passíveis de reflexão. Entre as tantas vozes que se ouvem,

uma situação merece consideração, a resposta “em coro” que obtive quando perguntei se as

45 Para a professora da turma, solicitei a autorização apenas oralmente, uma vez que a pesquisa não alterava a sua rotina de trabalho com as crianças.

64

crianças gostavam de histórias e poesias: a resposta foi “Siiiiiiiiiiiim”. Vocês querem

participar de uma pesquisa sobre literatura? O coro novamente se repetiu “Quereeeeemos”.

Percebi que as crianças responderam afirmativamente, porque em primeiro lugar

está subentendido que na escola o aluno não tem opção, alguém sugere e cabe ao aluno

acatar. Essas crianças não me conheciam e acatavam a minha proposta de imediato.

Perguntei se elas sabiam o que era pesquisa, literatura [...] a resposta em coro não veio e

falas tímidas e expressões surpresas apontaram que não. Fiz uma sucinta explicação sobre

literatura, pesquisa e sobre meu projeto. Elas ouviram e então como a assistente

pedagógica46 havia me fornecido uma lista com os nomes dos alunos, comecei a perguntar

individualmente sobre o desejo de participar ou não do meu trabalho de investigação.

Percebi que ouve um momento de estranhamento, as crianças ficaram surpresas pelo fato

de serem convidadas individualmente. Dos 20 alunos presentes na sala de aula, quinze

decidiram participar e os demais disseram que não. Olhando de frente, chamando pelo

nome as crianças, compreendi que elas estavam dizendo “não” pelo simples fato de poder

dizê-lo. Elas queriam na verdade experimentar um exercício de autonomia de poder optar e,

embora elas dissessem que não, o seu desejo de participar era visível na expressão facial,

principalmente quando mencionei o fato de contar histórias.

Quando retornei para buscar as autorizações, três crianças que não queriam

participar me comunicaram que tinham mudado de idéia, Lara foi muito enfática na sua fala:

“você não me deu a autorização naquele dia porque eu disse que não queria, mas agora

mudei de idéia”. Providenciei as autorizações e mantive-me preparada para as novidades e

a instabilidade de “sim” e “não” que se seguiriam. Conclui os encontros contando com a

participação de todos os alunos da turma.

2.2 FALAS, HISTÓRIAS, POESIAS: CONSTRUINDO AS CATEGORIAS DE ANÁLISE

Embora o material registrado nos encontros com as crianças tenha inúmeras

possibilidades de reflexão, foi preciso fazer opções. As falas com e das crianças fizeram

emergir situações que, por aproximação de significados puderam ser convertidas em três

categorias de análise: a autoria na interação com a literatura; a experiência lúdica com a

linguagem poética; a alfabetização e o letramento na visão da criança.

Essas categorias surgiram a partir da fala das crianças. Em relação ao primeiro

eixo reflexivo quero destacar que a solicitação mais freqüente que ouvi das crianças durante

46 Designação do profissional que atua na Unidade Escolar e que tem, entre outras, a função de auxiliar no atendimento da secretaria da escola.

65

os encontros foi: “Quero contar uma história”. Meninos e meninas participaram dos

encontros acreditando que teriam a oportunidade de poder contar uma, das muitas histórias

que eles conheciam. Ouviram atentamente as histórias que foram lidas, riram, se

emocionaram, se posicionaram, mas, se empenharam para garantir um espaço para narrar

a sua. A cada encontro, eu ouvia: “Eu quero contar uma história!”; “Deixa eu...”, “Hoje sou eu

[...]”. Então pude perceber que as narrativas, feitas de forma muito peculiar, preservavam a

estrutura do enredo e agregavam elementos da experiência da criança. Algumas de forma

sutil, outras mais ousadas, mas cada conto descortinava nuances de uma construção

paralela, única, personalizada. Ou seja, aflorava nesta ação uma apropriação da fala do

outro, uma experiência de co-autoria.

A segunda categoria de análise foi provocada a partir de um dos encontros em

que levei como proposta a leitura de poesias. A experiência lúdica com a linguagem poética

surgiu das tentativas que as crianças fizeram de compor textos poéticos e do quanto

pudemos rir ao brincar com as palavras de forma descompromissada, enquanto a leitura da

obra de Ruth Rocha, O menino que aprendeu a ver, tornou-se um instrumento mediador da

reflexão sobre o desconforto que angustia a criança que é pressionada a aprender a ler e

escrever de qualquer forma e o quanto antes, quando chega ao Ensino Fundamental.

2.2.1 A formação do grupo e as experiências iniciais

Marcado o primeiro encontro com as crianças que haviam concordado em

participar da pesquisa, chegamos à “sala do pré”. Iniciei a conversa e embora eu tenha

empreendido um grande esforço para não me colocar como adulto típico do espaço

pesquisado, naquele momento o meu papel de pesquisadora (adulta) me atribuía a

“obrigação” de iniciar o diálogo. Muitas seriam as possibilidades, pois estávamos frente a

frente produzindo uma análise intersubjetiva e ininterrupta. Assim como eu, as crianças

levaram para o encontro suas expectativas. Elas me dirigiam um olhar inquiridor com uma

sonora pergunta: “o que ela quer com a gente?”. Bakhtin trata da “tensão discursiva que

existe em qualquer grupo, espaço social ou sociedade, e que pode ser explicada

dependendo de onde nos posicionemos” (apud GOULART, 2006, p. 454). Era necessário

administrar essa tensão e tentar conquistar as crianças para permanecerem na pesquisa

nos próximos encontros, pois elas poderiam desistir a qualquer momento, se assim o

desejassem.

Ao reunir as crianças e fazer um trabalho em grupo, cria-se a possibilidade de

emergir as falas, opiniões e sentimentos das crianças de forma mais autêntica. Mas é

preciso construir a relação de troca onde o diálogo possa avançar para além do que a

66

criança possa perceber que o adulto quer ouvir. Ela precisa sentir que vai falar e ser ouvida,

então “se apropria da linguagem, pondo-se em jogo e jogando com o que é próprio da

linguagem, a tensão entre regra e turbulência [...] além do senso de humor, suas respostas

intempestivas revelam agudeza de raciocínio, sedução, poder de negociação, colocando os

adultos diante do inesperado” (ZACCUR, 2001, p. 45).

Nesse encontro marcado, começamos pela apresentação dos sujeitos e

instrumentos da pesquisa. Levei um crachá (pronto) para facilitar a identificação, do qual o

Thiago reclama imediatamente ao recebê-lo: “aqui tem outra letra, sabia?!”, referindo-se à

letra “h” entre o “t” e o “i” que eu não tinha colocado. Pouco a pouco constituímos um grupo

e passamos a tecer considerações, produzir significados e construir uma identidade coletiva

tendo como mediador a linguagem.

Antes de ir a campo preparei um roteiro com algumas perguntas que poderiam

ser abordadas durante os encontros com as crianças. Essas seriam uma espécie de fio

condutor na busca do entendimento de como a criança vive a experiência, ou qual a

percepção que ela tem da literatura no seu processo de alfabetização e letramento. Entre as

muitas interrogações elaboradas antes do encontro e aquelas que surgiram no diálogo,

registro aquelas diretamente ligadas à temática em discussão e que se fizeram presentes

durante a pesquisa: Você gosta de histórias? Por que será que gostamos de ler e ouvir

histórias? O que você sente quando ouve uma história? Será que as histórias podem nos

ajudar a aprender ler e escrever? Como? Você seria capaz de inventar uma história? O que

é uma poesia? Você conhece alguma? O que você sente ou pensa ao ouvir ou ler uma

poesia? Você pode/quer criar uma poesia? De que forma você está aprendendo a ler e

escrever? Algumas dessas interrogações tiveram respostas e embora eu utilizasse a palavra

“você” para os questionamentos, eles eram dirigidos ao coletivo e não a uma criança em

específico.

A primeira obra que li para e com as crianças foi: Ida e Volta de Juarez

Machado. Ainda não tínhamos tido a oportunidade de falar sobre as suas histórias

preferidas, então com base em experiências anteriores optei por levar esse livro, que não

possui texto escrito: uma história contada por meio das imagens. Os acontecimentos vão se

seguindo sem que o autor aponte quem é o personagem, fator que encanta as crianças (e

adultos) porque permite múltiplas interpretações. Segundo Azevedo (2005, p.46), um livro-

imagem trabalha “com uma linguagem cheia de possibilidades”. Enquanto eu folheava as

páginas do livro, as crianças mantinham os olhos atentos aos detalhes e faziam comentários

diferentes sobre a ilustração e a seqüência dos fatos. Elas compunham a narrativa com

vozes múltiplas e como estávamos sentados no chão em forma de círculo elas se

colocavam fisicamente cada vez mais próximas a mim. Procurei criar um suspense,

perguntando às crianças se era possível contar ou escrever uma história sem palavras. As

67

falas vão acontecendo, as crianças dialogam com o livro e com o grupo. Os fragmentos

registrados dão uma idéia da interação das crianças com a proposta do autor, nesta obra:

Esse livro não tem palavras [...] “(EU). “É para ler? Eu ainda não sei ler!”(THIAGO). “Esse livro todo mundo pode ler, mesmo quem ainda não sabe, é o livro chamado: Ida e Volta do Juarez Machado” (EU). “Ida e Volta?” repete o Elton, em tom interrogador, ele pede: “vire, quero ver atrás!”. “Deixa eu ver” (ISAAC). “Quero ver” (MARIANY). “Deixa eu ver” (PAMELA). O Josué afirma: “Ah! Esse livro eu vi no prézinho”. Eu pergunto: você conhece esse livro? “Sim, mas eu não li” (JOSUÉ). À medida que vamos folheando as páginas ilustradas, as crianças verbalizam a história: “Saiu do banho, sem secar o pé!” (VITOR). “Sapato, roupas do Super-homem” (JOSUÉ). “Roupas do Superman [...] tocando música” (KENNEDY). “Ele está dançando! Dançando rock.” (ISAAC). “Pegando a sombrinha, o guarda chuva” (JOSUÉ). “Saiu... saindo, tem cachorro, olha as pegadas dele (ISAAC) “O cachorro está indo atrás dele!”(KAROLINE). “É o cachorro está indo atrás dele” (ELTON). “A porta fica aberta?” (BRUNO47) “Não é cachorro é gato!” (ELTON). “A maçã” (WILLIAN). “Olhe a curvinha, a curvinha do pé dele” (LUIZ FILIPE48). “O caroço ele jogou no lixo” (BRUNO). “Ele tem que jogar no lixo senão é...” (BRUNO). “Pegadas do cachorro, o cachorro faz xixi...” (KENNEDY). “Tem que achar um poste para fazer xixi?”(EU), “é pra se esconder [...]” (JOSUÉ). “O cachorro chegou em casa” (PAMELA). “Lendo jornal, o personagem lê jornal” (KAROLINE). “É uma mulher?”(JOSUÉ). “Como é que ele é?”(KAROLINE). “Quem é?”(MARIANY). “O nosso personagem continua caminhando, vocês já imaginaram como que ele é?” (EU). “Eu acho que ele é por aqui” (STEFANI)49. “Girando e quebrando a janela” (BRUNO). “Depois você vai mostrar tudo de novo, não é?” (RODRIGO)50 “Fazendo embaixadinha, eu sei como que é” (JOSUÈ) (O menino explica como se faz embaixadinha, chutando a bola, sem sair do lugar ou deixá-la cair). “Eu só quero saber como ele é?”(KAROLINE). “A história não mostra as pessoas, mostrou o pezinho, a maçã, mas não mostrou o homem...” (SARAH). “Pegadas de bicicleta” (KENNEDY). “Ah! Ele morreu!!!” (ISAAC) [...].

Esses fragmentos verbalizados dão uma idéia do enredo que vai se

estruturando, que, evidentemente é muito mais amplo do que se pode registrar apesar do

apoio da câmera e do gravador. Pude capturar o que foi dito, em parte, pois não foi possível

transcrever todas as falas das crianças que são simultâneas e paralelas, mas fico pensando

na riqueza dos pensamentos das crianças, inclusive daquelas que não falaram, mas que

acompanharam cada página do livro, andando por suas entranhas. Registrei aquelas falas

que se destacam, por estarem mais próximas do gravador, pois as crianças falam ao

mesmo tempo enquanto olham atentas o virar de cada página. Elas “caminham” atrás do

personagem que, nesse livro, não se mostra, oferecendo a oportunidade propicia para que

cada leitor construa o “seu” personagem ideal para a narrativa que se apresenta. Quanto à

ilustração, as crianças repetem o tempo todo: “deixa eu ver...deixa eu ver” elas querem e

precisam de mais tempo para ver. 47 Bruno Teixeira da Rosa. 48 Luiz Filipe Alano da Silva. 49 A menina refere-se a um personagem do seu tamanho e assinala com a mão. 50 Nós estávamos na metade do livro e o Rodrigo já perguntava se eu poderia mostrar “de novo” a mesma história. Mais adiante, me reporto a esse gesto das crianças de ler ou contar “a mesma” história como sendo sempre uma nova experiência. Walter Benjamim nos ajuda a compreender esse fato.

68

Para compreender a importância que a ilustração pode ter num livro para

crianças basta observar a forma com que elas direcionam o olhar à ilustração e se fixam

nela. Capturam elementos minúsculos que aos adultos passam despercebidos. Quantas

vezes eu já tinha olhado essa obra... Nunca percebi “as roupas do Superman, as curvinhas

do pé do personagem” e muitos outros detalhes que só foi possível enxergar porque olhei

com as crianças. A ilustração no texto é também texto que “não repete, mas acrescenta [...]

é a criança quem vê, é a criança quem lê, possibilidades criadas pela capacidade de

escrever/desenhar pelos olhos da infância” (MACHADO, 2007, p. 55).

O termo ilustração nos dias atuais está cedendo lugar a expressões como:

palavra&imagem, texto intersemiótico, e outras terminologias. Na literatura infantil a

linguagem visual é uma linguagem que se entrelaça com a linguagem verbal com o intuito

de promover o prazer estético. Ela é a porta de entrada para a obra e desempenha o papel

de mediador entre leitor e texto, mostrando em imagens o que o texto apresenta pela

presença ou ausência da palavra. Para Azevedo (2005), a qualidade na ilustração de um

texto de ficção consiste em apresentar imagens subjetivas, metafóricas, poéticas, arbitrárias,

fantasiosas, simbólicas, analógicas e ambíguas para possibilitar ao leitor um contato rico e

expressivo com a obra. O autor faz uma análise dos diferentes graus de relação entre texto

e imagem nas obras da literatura infantil contemporânea e constata que podemos encontrar

desde o livro-texto, sem imagens, eventualmente uma ilustração de capa, até o livro-imagem

sem texto escrito, cujo enredo é criado e construído exclusivamente através de imagens,

como é o caso da obra que escolhi para ler com as crianças.

As imagens se constituem no primeiro convite de um livro infantil, um elemento

que entusiasma o pequeno-grande leitor não apenas durante a leitura, mas influencia na

própria escolha da obra. Para Walter Benjamim (2002, p. 69), quando um livro ilustrado se

abre “não são as coisas que saltam das páginas em direção à criança que as vai

imaginando – a própria criança penetra nas coisas durante o contemplar [...]”, a magia

acontece porque, “diante do seu livro ilustrado, a criança [...] vence a parede ilusória da

superfície e, esgueirando por entre tecidos e bastidores coloridos, adentra um palco onde

vive o conto maravilhoso (idem)”.

2.2.2 “Quero contar uma história” ou a narração e co-autoria na interação com a

literatura

Quero contar uma história [...] ou a narração e co-autoria na interação com a

literatura constituiu-se uma categoria de análise por representar um pedido insistente dos

sujeitos que participaram desta pesquisa. Antes de ir a campo (como pretendia ler e contar

69

histórias) eu estava preocupada em fazer uma seleção adequada de obras literárias que

pudessem agradar os meus parceiros de estudo, mas percebi logo no primeiro encontro

que, mais do que ouvir historia ou poesias, essas crianças queriam partilhar o seu

repertório, insistindo num espaço/tempo para “contar as suas histórias”. Dessa forma, parte

do tempo em que estivemos juntos e falamos de literatura serviu para que elas fizessem

algumas narrativas. Essas narrativas das crianças foram revisadas (com e por elas) e

registradas na íntegra, observando o propósito de, em primeiro lugar, acolher a fala da

criança e a partir dela esboçar as considerações que se mostrassem relevantes no decorrer

da pesquisa.

Da experiência de contação de histórias para e pelas crianças alguns aspectos

podem ser depreendidos, entre os quais posso destacar a manifestação do desejo que as

crianças têm de serem ouvidas que é “denunciado” pelo pedido insistente de tempo/espaço

para contar uma história. Acredito que essa avidez por poder falar tenha relação tanto com

os espaços institucionais em que elas estão inseridas, desde muito pequenas, como

também com a forma que nós (adultos) tratamos/vemos as crianças no cotidiano desses

espaços, e que estão vinculadas, evidentemente, a uma concepção de infância. Outro ponto

que merece ser observado com maior atenção é o ato de narrar. O que podem revelar esses

textos oralizados de forma não planejada? Estariam, as crianças, experimentando formas de

assumir a co-autoria das histórias ao fazer ou ouvir as narrativas no grupo? Percebi que as

crianças contavam as histórias como “suas” e mais do que isso, várias crianças contavam “a

mesma” história de forma inaugural e o grupo ouvia com a mesma disposição: como se

ouvisse aquela narrativa pela vez primeira.

Nessa reflexão, está também o diálogo da linguagem literária com as diferentes

dimensões humanas, pois a interação com as fábulas, contos, personagens mitológicos,

enfim, com o encantamento dos figurantes ficcionais, possibilitam à criança (e ao adulto)

uma tomada de consciência de si mesma.

Re-faço, com Jobim e Souza, uma pergunta simples, mas que pode ter uma

infinidade de respostas: Por que contamos histórias? Como estas histórias abarrotadas de

significação potencializariam o processo de alfabetização com letramento, uma vez que a

linguagem literária, pode ser, segundo Pereira (2007, p. 32), comparada ao jogo se

considerada como atividade lúdica, realizada em estado de liberdade que, inventa seu

caminho e seu sentido e além de criar uma ordem, ele mesmo é uma ordem se constituindo

de disputa e tensão, mas também de harmonia, ritmo e regras. Dessa forma, afirma autora,

“o circulo mágico assim criado abraça outros mundos, simultaneamente reais e ilusórios,

que se sustentam na leveza do pensamento e na materialidade dos sinais gráficos e

sonoros” (idem). Reconhecendo a importância dos aspectos citados, procuro discuti-los,

buscando, por meio das narrativas documentadas, algumas pistas que me permitam

70

compreender como essa criança, do início do séc. XXI, aluna da primeira série do Ensino

Fundamental, percebe e interage com a literatura, levando em conta os pontos levantados.

Trilhando esse caminho, entendo que tais narrativas recuperam fatores importantes que

dizem respeito à linguagem literária e a sua contribuição na formação de saberes e de

sujeitos e ao compartilhar o repertório, mais do que exercitar o pensar e o sentir, as crianças

foram revelando formas contemporâneas de enxergar o mundo e de atribuir significações.

A leitura da obra de Juarez Machado, Ida e volta, foi a porta de entrada que

encontrei para me aproximar das crianças, uma vez que não havíamos conversado ainda

sobre as preferências do grupo. E foi nesse dia que perguntei se alguém queria contar uma

história, fiquei surpresa ao perceber que esse era o desejo da grande maioria, e que em

cada encontro um pedido se repetia: “hoje, deixa eu contar uma história?” (VITOR); “Eu

também quero contar uma história”(JOSUÉ), “Eu Também” (PAMELA) e outras crianças

solicitavam, optei por deixar que cada criança conquistasse o espaço e a atenção do grupo

para falar ao invés de sugerir uma ordem a elas. O Vitor e o Josué foram os primeiros a

contar história. O Vitor apresenta João e o pé de feijão, um dos contos de Hans Christian

Andersen que embora se desenrole no mundo fantástico da imaginação, tem a preocupação

de mostrar o problema da miséria. Para esse conto, o menino elabora a seguinte versão:

É o João e o pé de feijão. Eles estavam sem comida. Na casa só tinha goteira. Na barraca que o João morava só tinha água. Só tinha aranha. Eles não tinham nada, só tinham a vaca. O João caminhou e encontrou um grande homem e perguntou: O senhor quer comprar essa vaca? O senhor quer trocar essa vaca por um saco cheio de feijão mágico? O homem respondeu: eu troco essa vaca por um pé de feijão mágico! O João ganhou o pé de feijão, levou pra mãe que viu o pé de feijão. O João plantou o pé de feijão que cresceu e subiu até lá no céu. O João passou pela porta e viu o gigante. O gigante falou bem assim: que cheiro de criança! Aí ele viu que era o Joãozinho. O Joãozinho ficou atrás dos copos e o gigante não sabia mais o que fazer, daí o Joãozinho nunca mais ficou sem comida porque pegou o pato e todos os ovos para ele e sua mãe. (VITOR).

Ao perceber que o Josué iria contar a “mesma” história do Vitor fiz o seguinte

comentário: “essa história nós já conhecemos”. Foi uma fala insensível da qual (felizmente)

as crianças não tomaram conhecimento e que tem a ver com a perspectiva inaugural da

criança fazer “de novo” a mesma coisa e apropriada para a literatura, pois “contar histórias

sempre foi à arte de contá-las de novo” (BENJAMIN, 1994, p. 205). Sem se importar com o

fato de acabar de ouvir a história do João e o pé de feijão, o Josué faz a sua narrativa:

Um dia a mãe do João foi fazer comida e não tinha. Eles só tinham leite de vaca. Daí o João estava passeando e encontrou um velho que lhe deu uma semente de feijão, era um feijão mágico! Ele plantou o pé de feijão que ficou grande. O Joãozinho foi até lá no céu e achou um castelo com um gigante. A mulher do gigante achou o João e escondeu no guarda-comida, o gigante queria pegar comida e a mulher dele não deixava. O gigante dormiu e depois acordou, caiu do céu e desmaiou. O Joãozinho pegou o sapato do gigante. (JOSUÉ).

71

O Joãozinho? Mas ele é bem grande como é que o Joãozinho vai usar o sapato do gigante? Ele tropeça? Pergunta o Juliano.

Josué responde: Ah! Já sei! O Joãozinho acha a coisa mágica

Tanto Vitor, quanto Josué re-contam João e o pé de feijão, apontando outras

versões à narrativa. Os elementos evidenciados pelo Vitor estão mais voltados à descrição

da casa do João, sinalizando a situação econômica da família. Em relação à venda da vaca

ele coloca o menino como quem propõe a venda e não o contrário, invertendo os papéis dos

personagens e desmontando a história que gira em torno do fato do Joãozinho ser

enganado ao trocar uma vaca por algumas sementes de feijão. Josué também destaca a

questão da miséria, afirmando que a família não tinha comida. Conta que o Joãozinho

ganhou um feijão mágico que também não foi trocado pela vaquinha, o único bem da

família. Um dos pertences do gigante pelo qual o João se interessa é o sapato na versão

contada pelo menino Josué, que é contestada pelo Juliano: “O Joãozinho? Mas ele é bem

grande como é que o Joãozinho vai usar o sapato do gigante? Ele tropeça?”. Josué garante,

“Ele usa a coisa mágica...”. A narrativa de Josué teve colaborações relevantes: a

interferência de Juliano como interlocutor atento e crítico que participa da composição do

texto, questionando suas falas e sugerindo outras e a de Thiago que contesta a versão dos

colegas enquanto espera um momento oportuno para assumir o discurso.

A importância da voz do outro pode ser entendida na atitude do Thiago que

queria contar a história do João e o pé de feijão, pois em sua opinião, tanto Vitor quanto

Josué teriam contado “tudo errado”. Ele ouviu as narrativas dos colegas mostrando-se

inconformado pelas versões apresentadas. Faz uma análise atenta e minuciosa em cada

versão que ouve, aguardando a oportunidade de tornar-se o narrador com o firme propósito

de manter-se o mais fiel possível da versão da história que ele conhecia. Thiago faz sua

narrativa de maneira ininterrupta e no momento em que surgem idéias diferentes, ele as

coloca de lado, deliberadamente, mas, acaba incluindo outros elementos:

O menino chamado João que a sua mãe do João falou assim: Joãozinho acabou a comida e o dinheiro vai até cidade vender a nossa vaquinha o único bem que nos resta. Ele foi pro mato e encontrou um velho que falou: com essa semente você nunca mais sentirá fome. Quando a mãe do Joãozinho viu, jogou tudo pela janela. Na manhã seguinte, o João acordou com muita fome, foi até o quintal e viu um pé de feijão enorme que chegava até o céu, ele nem falou pra mãe, subiu e viu um castelo enorme, queria ver mais de perto e viu uma mulher enorme também. (A mulher do gigante – complementa o Vitor) Ai a mulher falou assim para o João: menino o que você está fazendo aqui? Você será meu escravo, mas o gigante não poderá vê-lo, senão vai querer comê-lo. O gigante chegou e falou: sinto cheiro de crianças vou farejar por todo lado. A mulher respondeu: não senhor é o cheiro da comida que eu estou fazendo para o senhor. Ai o Joãozinho ficou escondido dentro do armário, depois saiu do armário, pegou a galinha dos ovos de ouro e uma cobra que cantava. Joãozinho saiu carregando uma embaixo de cada braço e gritou assim: mamãe, mamãe tem um gigante atrás de mim! Dá o machado, porque o gigante está atrás de mim. O

72

Joãozinho derrubou a árvore e o gigante morreu. Eles, o Joãozinho e a mãe ficaram felizes para sempre, a galinha botava os ovos de ouro e a cobra cantava. Eles nunca mais sentiram fome (THIAGO).

O menino Thiago faz sua narrativa sem interrupção. É uma história relativamente

longa, mas ele não apenas consegue narrá-la de uma só vez, como tem a atenção do seu

público apesar da história estar sendo contada pela terceira vez. As crianças intuem que é

“outra” história e uma experiência única. É possível perceber que as narrativas das crianças

carregam no seu percurso muito mais do que um enredo ficcional. Elas trazem elementos da

experiência da criança em constante diálogo com a obra. Isso não acontece apenas com a

linguagem literária, evidentemente. Mas, em igual proporção nas relações que as crianças

estabelecem com um mundo de coisas, e, nessa ação, segundo Benjamim (2002, p. 58),

elas estão “menos empenhadas em reproduzir as obras dos adultos do que em estabelecer

uma relação nova e incoerente entre esses restos e materiais residuais”. O conto

maravilhoso é um produto de resíduos do qual a criança se apropria e, segundo o autor:

talvez o mais poderoso que se encontra na história espiritual da humanidade: resíduos do processo de constituição e decadência da saga. A criança consegue lidar com os conteúdos do conto maravilhoso de maneira tão soberana e descontraída como o faz com retalhos de tecidos e material de construção. Ela constrói o seu mundo com os motivos do conto maravilhoso, ou pelo menos estabelece vínculos entre os elementos do seu mundo.

Re-narrando uma história os meninos agregam diferentes elementos ao texto,

invertem a ordem, estabelecem relações múltiplas e, dessa forma, indicam que a linguagem

literária pode libertar o sujeito do caminho único, da certeza inquestionável, e talvez por

esse mesmo motivo “pode se constituir como fonte para a formação de leitores críticos:

vivendo o desafio de interpretar vazios, ambigüidades, novas relações, novos modos de

viver, conhecer e falar” (GOULART, 2007, p. 64). Além disso, quando se trata de possibilitar

a leitura e contação de histórias para e pelas crianças no âmbito da sala de aula, Zaccur

(2001, p. 48) nos assegura que:

penetrando no mundo habitado pela palavra do outro, as crianças tomam a iniciativa de pedir, tomar e recriar o que lhes parece belo e necessário á vida. Em pouco tempo a criança passa de ouvinte à contadora de história. Ao narrar costuma se valer dos recursos expressivos que apreciou e dos quais se apropriou: a entoação, o gesto, o colorido da fala sublinhando as passagens, chega mesmo a usar de recursos mais sutis, como a aliteração diante do público ampliado [...].

As características que a autora menciona são facilmente identificáveis no

percurso narrativo das crianças, mas além dessas características podemos encontrar outros

elementos agregados ao enredo. Mariany nos contou a história do Chapeuzinho Vermelho.

Sua narração, da mesma forma que as histórias contadas pelos meninos, está repleta de

dados apontados por ela, revelando formas de co-autoria. Assinalo esse como um dos

73

aspectos de maior relevância que, por sua vez, podem apontar um viés ainda não pensado

numa obra produzida e reconstituída inúmeras vezes. Possuímos uma visão romantizada da

capacidade criativa e costumamos entendê-la como “um momento mágico, reservado a

alguns especialmente tocados pela arte e agraciados com a genialidade” (BARON, 2001, p.

58), quando na verdade o ato criador se constitui a partir dos elementos presentes em

nossas experiências em diálogo com o outro.

Essa foi uma das minhas expectativas em relação à narração das histórias

pelas crianças. Pensei inicialmente que elas contariam histórias inéditas, logo nas primeiras

experiências, com base, evidentemente, na minha experiência de infância, na escola, na

qual criávamos histórias para contar aos colegas e ao professor. Contrariando minha

espera, nenhuma das crianças quis inventar algo novo, pois todas as narrativas feitas por

elas são bastante conhecidas, João e o pé de feijão, Chapeuzinho vermelho, Os três

porquinhos, O leão e o ratinho e outras. São contos que fazem parte do nosso acervo

cultural e que foram e serão re-contados por várias gerações. Possivelmente, continuarão

dialogando com diferentes crianças em outros tempos e contextos. Mas foi a forma com que

as crianças narraram “suas” histórias, mostrando a novidade no percurso do conhecido que

me convenceu de que não é necessário criar algo novo, totalmente inaugural, para exercitar

a autoria, a criatividade e a imaginação. Pelos caminhos das muitas histórias já criadas e

inúmeras vezes re-contadas, existem muitos espaços vazios para serem preenchidos. O

jeito com que cada sujeito se apropria desse objeto e atribui significação é que conta. Nessa

perspectiva, perguntar-se-ia: quais idéias, pensamentos ou dúvidas desprendem-se de uma

história quando dela me aproximo? Estaríamos nós [os adultos] dispostos a ouvir uma,

duas, ou muitas vezes a “mesma” história? O que nos ensinam as crianças com este gesto?

Problematizando o conceito de autoria, não como algo que surge por “inspiração” para uns

poucos privilegiados, mas como produto de um processo rico de interações com a

linguagem, trago Chapeuzinho Vermelho, sob a interpretação de Mariany:

A Chapeuzinho Vermelho ajudou a mamãe fazer um bolo bem gostoso. Ela colocou a cobertura de chocolate dentro de um pacote e espremeu, espremeu e foi enfeitando o bolo. Depois a mamãe botou numa cestinha e disse assim: Vai filhinha, não pare pra conversar com seus amiguinhos em lugar estranho, não vá pela floresta. Daí ela foi. No caminho tinha uma Bambi que estava chorando porque era o aniversário da mãe e ela não tinha nada pra dar pra ela. Daí ela deu uma flor para Bambi dar à sua mãe. Depois, saiu um passarinho que estava com a asinha machucada, porque derrubaram ele. Então a Chapeuzinho Vermelho colocou geléia na asa do passarinho. Ela chegou na casa da vovó, bateu assim: pã pã pã, pã! O lobo disse assim: Quem é? Daí ela respondeu: Sou eu Chapeuzinho Vermelho! Daí o lobo disse assim: é só puxar a tranca. Ela puxou a tranca, entrou e falou, ela disse assim: Oi vovozinha! Daí ela foi lá e quis abrir uma outra porta para pegar açúcar e fazer café para a vovozinha que falou assim: Não mexa! Depois ela disse assim: Vovó porque esses braços tão grandes? Pra mexer no teu lindo rostinho! Depois ela disse assim: Pra que essa boca tão grande? Pra te comer melhor! E saiu correndo. Daqui a

74

pouco ela estava se balançando e o balanço deu bem na cara do lobo. O lobo não morreu, apareceu um monte de passarinhos. Aí o caçador pegou o lobo e matou, saiu muito sangue e os passarinhos voaram e foram embora (MARIANY).

Essa foi a versão da menina para Chapeuzinho Vermelho. Ela conhece a história

e ao contá-la insere, como foi mencionado, elementos da própria experiência em diálogo

com o enredo. Na narrativa da menina encontramos alguém “muito pobre” que não tem

nada para dar para a mãe que está de aniversário, um pássaro de asa machucada que

requer cuidados, uma menina-personagem que sabe fazer café, braços grandes no lobo que

servem “para mexer no seu lindo rostinho”, o lobo atropelado pelo balanço, entre outros.

Mariany se coloca como personagem e ao mesmo tempo como co-autora da história, ela

produz um texto paralelo, significativo para as suas experiências, no qual está re-afirmando

valores e construindo significados em relação ao mundo que a cerca.

Nós somos ao mesmo tempo, personagens e criadores das histórias, diz

Jobim e Souza (2006), como personagem nos relacionamos de forma afetiva com os

acontecimentos, uma sensação que obscurece a razão. Como narradores nos colocamos no

lugar do personagem que estabelece o equilíbrio entre o sensível e o racional. Contar e re-

contar nossas histórias é uma forma de conciliar a experiência subjetiva e a condição

humana na sua universalidade. Além disso, segundo Aguiar (2007) aquilo que vivemos na

fantasia adquire uma concretude existencial, pois as experiências imaginadas acionam

sentimentos reais que mobilizam outros comportamentos e, nesse sentido, por meio da

linguagem literária, é possível descobrir a coragem, o amor, a liberdade e a capacidade para

enfrentar a dor, transferindo para o cotidiano os achados e possibilitando a transformação

da nossa própria vida. A ficção possibilita a re-significação dos nossos pensamentos,

comportamentos e valores, principalmente porque “nos textos literários pulsam forças que

mostram a grandeza e a fragilidade do ser humano; a história e a singularidade, entre outros

contrastes” (GOULART, 2007, p. 64).

Bernardo (2005, p. 20) problematiza a definição de catarse na literatura

quando o leitor se identifica com o personagem. Essa é, em sua opinião, uma definição

incompleta, pois o autor não cria um personagem com a nossa cara, mas é a transformação

ocorrida, sem perceber que nos torna ligeiramente diferentes do que éramos antes de abrir

um livro, “o processo de catarse é na verdade, o processo de reconhecimento de si mesmo

com alguém que há pouco não se era, isto é, um processo de produção dinâmica,

permanente, infinita de si mesmo” (idem).

As crianças demonstraram muita disposição para esta atividade. Mesmo

saindo da escola, depois de quatro horas de aula, elas se mostravam entusiasmadas para

ler, ouvir e/ou narrar histórias. Num dos encontros, a Pamela apresentou uma versão de: Os

75

Três porquinhos e a Sarah uma versão sintetizada de O leão e o ratinho. A fábula dos três

porquinhos foi uma das mais comentadas pelas crianças. A menina faz a narrativa de uma

forma totalmente descontraída e solta, imitando os personagens:

Era uma vez três porquinhos, um fez a casinha de palha, outro fez a casinha de tábua e o outro fez a casinha de material. Um certo dia apareceu um lobo, que cantou assim: eu sou o lobo mau, eu gosto de pegar os porquinhos pra fazer mingau. O lobo mau disse: abre essa porta se não eu vou soprar, os três porquinhos disseram: não abro. Ele começou soprar fuu, fuu, fuu! Essa casinha destruiu tudo. Daí eles foram para a casinha de tábua que era um pouquinho mais forte, eles entraram bem rapidinho, trancaram a porta e ficaram bem escondidinhos embaixo da cama. O lobo mau chegou, bateu na porta e disse: abre essa porta se não eu vou soprar! Os porquinhos disseram: não abro! Abre essa porta, se não eu vou soprar! Eles disseram: não abro! O lobo começou fuu...cada vez mais forte. Essa casinha destruiu. Essa não tem mais! Daí eles foram para a casinha de tijolo, que nunca destrói e ficaram embaixo da cama. O lobo mau chegou na porta e cantou de novo: eu sou o lobo mau, eu gosto de pegar os porquinhos pra fazer mingau. O lobo soprou, mas a casinha não destruiu. O porquinho falou: irmãozinhos, o lobo não vai conseguir destruir minha casa. Ele soprou de novo e a casinha não destruiu. O lobo soprou, soprou, cansou de tanto soprar e viu a chaminé lá em cima, pensou em subir pela escada, os porquinhos escutaram, colocaram uma bacia de água quente e fogo. O lobo subiu, caiu e pegou fogo no rabo dele, os porquinhos riram, riram da cara dele, o lobo fugiu e os três porquinhos ficaram felizes para sempre (PAMELA).

O Leão e o ratinho: Um dia tinha um leão com a pata encima do ratinho, aí depois passou o tempo e o ratinho pensou assim: eu acho que eu também vou ajudar o leão e cortou a rede dele (SARAH).

As meninas re-contaram as fábulas de maneira lúdica, descontraída, mas ao

mesmo tempo comprometida. Para Walter Benjamim isso nada tem a ver com os

ensinamentos morais que estão embutidos nessas narrativas, para o autor:

podemos duvidar que os jovens leitores apreciem a fábula em virtude da moral que a acompanha, ou que utilizem para aperfeiçoar a capacidade de compreensão, como por vezes supunha, e sobretudo desejava, uma certa sabedoria alheia à esfera das crianças. Seguramente, os pequenos se divertem mais com o animal que fala de forma humana e age racionalmente do que com o texto mais rico de idéias (2002, p. 58).

A aproximação com as crianças e o contato com a linguagem literária,

especialmente com histórias consideradas do gênero infantil que conhecemos desde muito

cedo, me levou a pensar sobre as perguntas feitas por Jobim e Souza (2006, p. 1): “Por que

contamos história?” “Por que ouvimos história?” A autora levanta algumas possibilidades

como a necessidade de dar ordem aos fatos cotidianos de nossa vida e de estarmos

constantemente buscando sentido para alcançarmos uma compreensão que nos convença

de uma certa harmonia. Parece que as histórias têm a missão de dar sentido à aparente

falta dele na experiência de estar no mundo, pois, cada vida é única e se constitui num

enigma a ser decifrado. Sendo assim, a ficção nos ajuda na compreensão enquanto

humanos porque por meio das histórias “todas as vozes da humanidade se encontram”

76

(idem). Além disso, quando se trata de crianças em pleno processo de alfabetização e

letramento, ler, ouvir ou contar histórias é uma das formas de exercício da imaginação que,

por sua vez, conduzem o sujeito a diferentes experiências na interação com a linguagem e

impulsionam para a construção de significados. Nesse caminho, a conseqüência mais

importante é a oportunidade para a criança progredir na capacidade de recepção e

interlocução com a linguagem literária.

As crianças que contaram as histórias ainda não estão alfabetizadas, mas

assumem a autoria no ato narrativo até mesmo porque “a função-autor não é prerrogativa

possível apenas para aqueles que aprendem ler e escrever” (TFOUNI, 2002, p. 45).

Portanto não é preciso dominar a técnica da leitura e da escrita para exercer o papel de

autor, pois esta “é uma função ligada a um tipo de discurso – isto é o discurso letrado – que,

por ser social e historicamente constituído (como, aliás, todos os discursos o são), pode

estar também acessível àqueles que não dominam o código escrito” (idem).

Quem conta um conto aumenta (ou diminui) um ponto. Nas palavras de Zaccur,

(2001, p. 48) “a criança ouvindo e recriando, intuiria que a cada conto recontado algo novo

seria apropriado?”. Talvez esse seja um dos motivos que faz uma criança, ainda que

conheça e que tenha ouvido muitas vezes a “mesma” história, insista para ouvi-la de novo.

Será que narradores ou “ouvintes [crianças] intuiriam o quanto à narrativa realimenta e

dinamiza a apropriação da linguagem, na dinamicidade que lhe é própria, implicando em

inter-ação e diálogo, espaço-tempo em movimento ao sabor de acasos e imprevistos?”

(idem).

Num dos encontros com as crianças tive a oportunidade de ler para elas

Soldadinho de Chumbo, mas o grupo também ouviu essa história na interpretação do

menino Kennedy:

Uma princesa estava dormindo no sofá. Daí a mãe chamou para dar o presente dela. O presente era um soldadinho de chumbo. O soldadinho de chumbo era um robô que se levantou e saiu caminhando. Muitos ratos apareceram e pegaram o soldadinho de chumbo. Depois o soldadinho de chumbo conseguiu pegar os ratos e jogar para a rua. A princesa estava dentro de uma porta trancada e amarrada e teve uma hora que os ratos viram e daí eles pegaram ela e estavam jogando dentro do fogo. O soldadinho de chumbo conseguiu salvar a princesa e eles conseguiram sair do castelo. O castelo caiu tudo. Chegou a hora do casamento, o soldadinho de chumbo e a princesa se casaram. Mas, a princesa estava só sonhando! Era um sonho e ela acordou! (KENNEDY).

Quando li essa história, o menino Kennedy estava entre as crianças que não

gostaram do final, por isso ele se propôs a narrar uma versão com outras aventuras para os

personagens principais.

Voltando ao fato de que, mais do que ouvir, as crianças quiseram aproveitar

os encontros para contar suas histórias, percebo que elas deixaram muito evidente uma

77

reivindicação: preciso falar, quero ser ouvida! Essas crianças, assim como um grande

número de meninos e meninas, desde muito cedo, ocupa espaços institucionalizados e nos

quais têm acesso a livros, mídias com diferentes suportes para o acervo literário. Na escola

em que foi feita a pesquisa, por exemplo, no ano de 2007, chegaram obras literárias de

excelente qualidade e estão disponíveis para as crianças a qualquer momento. O que talvez

ainda não esteja disponível é o espaço/tempo para a criança poder falar e ser ouvida,

estabelecendo um diálogo simétrico com os outros (adultos ou crianças) que estão à sua

volta. É preciso reconhecer que a escola ainda trabalha muito mais com a idéia de que são

os adultos (o professor) que têm a dizer para as crianças e não o contrário. É o professor

que ensina, que fala, que alfabetiza... e para os alunos, aquelas respostas coletivas,

padronizadas, que registrei no primeiro encontro, nas quais “todos” respondem “siiiiiiiim,

quereeeemos”, além de ser preponderante, podem traduzir a falta que a criança sente, na

condição de aluno, de poder estabelecer diálogos produtivos, necessários em qualquer

etapa de sua formação. O cômico é que uma das maiores reclamações dos professores é:

como falam essas crianças! Mas, se perguntarmos “o que elas dizem?”, possivelmente

ficaríamos sem resposta. Abrir espaços para o diálogo é um caminho a ser construído

permanentemente – a literatura (na escola e fora dela) pode nos auxiliar nessa tarefa,

Jaqueline Held, nos dá um exemplo:

que sátira implacável que Pinóquio, por exemplo, nos oferece de um mundo em que os homens não são iguais, de uma sociedade onde alguns sempre têm fome, de uma forma de escolha aparvalhante e repressiva onde todos devem submeter-se ao molde comum, enfim, de um universo em que o “professor” – em algum sentido em que o entendemos – sempre tem razão, simplesmente porque é o mais forte! (1980, p.169).

Ao documentar as narrativas das crianças e fazer a reflexão em torno do que

teria a literatura de elemento potencializador no processo de alfabetização com letramento,

tomando como referência à experiência realizada, percebi que as crianças têm um profundo

interesse pela literatura (assim como pela infinidade de outros objetos presentes em seu

contorno) e que nessa interação elas fazem muito mais do que ouvir, ou ler, elas de fato se

apropriam de uma história e vão paralelamente elaborando versões personalizadas,

agregando elementos da sua experiência. Percebi que as crianças contam as histórias como

sendo “suas” e mais do que isso, elas contam a “mesma” história de forma inédita. Esse

movimento de elaboração imaginativa e cognitiva pode ser entendido como os primeiros

passos na formação do leitor, cativado pela linguagem literária, e do autor que tem algo a

dizer da forma como essa linguagem o afeta. Seguindo esse caminho chegamos na

poesia... Como foi a experiência com as crianças?

78

2.2.3 “Poesia do menino, que sou eu [...]”: a experiência lúdica com a linguagem

poética

Levar a poesia para essa experiência foi uma das formas de dialogar com as

crianças, brincando com as palavras de maneira descontraída e ao mesmo tempo

provocadora. Parti do pressuposto que o texto poético pode sensibilizar o sujeito e

impulsioná-lo a reagir, a perceber a beleza e a atribuir significação, mas a experiência lúdica

com a linguagem poética somente se constituiu um eixo reflexivo porque as crianças

aceitaram a provocação e entraram na brincadeira.

Analisar o material produzido durante esse encontro significou perceber que há

vários fios que se entrelaçam e se mostram pertinentes nas falas capturadas. Entretanto,

para manter o foco na questão norteadora (como a criança da primeira série do ensino

fundamental, em pleno processo de alfabetização com letramento, lida com a linguagem

literária e, nesse caso, especificamente com o texto poético) requereu, em princípio, dois

olhares diferenciados: o primeiro, sobre a prática materializada nessa experiência efêmera,

no encontro entre pesquisador e crianças; e, um segundo, de consistência teórica sobre o

objeto poesia como uma obra de arte e nas suas possibilidades de mediação entre o sujeito

e a linguagem (padrão). Esses olhares entrelaçados possibilitaram a discussão de alguns

pontos principais, que incluíram o lugar da poesia na escola e na vida das crianças-sujeitos,

o papel da poesia na formação do leitor-autor e a reflexão sobre o compromisso da poesia

com a beleza, a emoção, a ludicidade e a invenção da linguagem, libertando a palavra do

uso convencional. Buscando pistas, fui teorizando a experiência na tentativa de

compreender, entre vozes e reações, o diálogo entre a poesia e as crianças.

Tratando de poesia para crianças (sem necessidade de separação categórica),

Cunha (2005) afirma que podemos compreendê-la no âmbito de pelo menos duas correntes

principais, a lírica que abriga obras primas da literatura infantil brasileira, com autores

consagrados como Cecília Meireles, Roseana Murray, Bartolomeu Campos de Queirós e

muitos outros; e a poesia que se distingue pelo humor. Essa segunda corrente, talvez não

tão valorizada como deveria “existe em contraste com a primeira, mas não necessariamente

em oposição a ela – tanto que diversos poetas transitam entre as duas” (idem p. 80). De

toda forma, compreendo que as poesias podem ser apreciadas por crianças e adultos

estejam elas incluídas em uma ou outra tendência, desde que tenham acesso a essa forma

de linguagem, dentro ou fora da escola. Como posso gostar de algo que não conheço?

Como as crianças podem gostar, construir pensamentos ou re-significar seu cotidiano com a

poesia, se na escola, quando ela aparece, está prioritariamente, carregada de didatismos e,

dessa forma, esvaziada do seu valor poético e estético?

79

Situando a poesia no contexto teórico faz-se necessário ressaltar que ela “não

constitui o adorno e o supérfluo, ou o verniz do processo educacional” (OSAKABE, 2007, p.

49), pelo contrário, deve ocupar um lugar de destaque no contexto escolar “por sua própria

constituição, já que ela se apresenta como a instância que permite flagrar algumas

diferenças cujo enfrentamento trará conseqüências nada desprezíveis na formação do

aluno” (idem). No processo de alfabetização da criança, que com os estudos atuais se quer

necessariamente com letramento, a linguagem literária se configura como um elemento

indispensável no sentido de possibilitar o acesso ao código lingüístico de forma significativa,

principalmente porque “hoje tem-se bem claro que o domínio da linguagem oral e escrita e

de uma norma considerada socialmente como padrão é requisito para a sobrevivência do

aluno e sua inserção numa sociedade estratificada como a nossa” (idem, p. 47). Em

determinados momentos da nossa educação, em especial no trabalho com a alfabetização,

defendeu-se (e ainda se defende) a idéia de trabalhar a linguagem-realidade do aluno51 na

tentativa de reduzir a distância entre o discurso da escola (padrão/científico) e o do aluno

(cotidiano) como uma forma de sanar as fragilidades do aprendizado e do uso competente

da língua. Isso é válido se considerado como ponto de partida, pois:

A história mais recente da educação lingüística tem evidenciado resultados bastante problemáticos de um ensino desmobilizante, em que a simples valorização da variante do aluno não lhe resolve a sua condição subalterna de modo a prepará-lo para enfrentar as exigências de uma sociedade que mais e mais cobra o domínio da língua escrita padrão, que se não se afirma como superior a outra variante, é aquela que uma certa história consagrou como veículo privilegiado dos intercâmbios necessários à integração do sujeito (OSAKABE, 2007, p. 40).

Evidentemente, também essa linguagem padrão, que o autor se refere é

cambiante, sendo constantemente transformada pelos e para os sujeitos sociais. Entretanto,

o dialogo entre a criança (com sua cultura) e a linguagem padrão (com a qual a escola

alfabetiza) é muitas vezes uma fala improdutiva. Uma ação discursiva divergente em que o

que se fala/lê/escreve parece não ter nenhum significado para o sujeito que aprende. Para

Goulart (2006, p. 451), a constituição da linguagem escrita pela criança faz parte da

constituição geral da linguagem e se faz pela continua interação entre fala e escrita. Nesse

sentido, “as duas modalidades de linguagem verbal dialogam continuamente na perspectiva

do letramento”, além de que, no processo de alfabetização e letramento da criança é

necessário pensar de que forma é possível estabelecer uma relação entre modalidade oral e

escrita de forma que uma não se sobreponha à outra, mas que “uma contribua com a outra

para que os conhecimentos e sentidos historicamente confrontados sejam entendidos

criticamente” (idem, p. 454). Esse princípio também é válido na questão da linguagem- 51 Idéias elaboradas (e tratadas de forma reducionistas em determinados contextos) a partir das propostas de Paulo Freire para a alfabetização de adultos trabalhadores. Sobre isso ver: FREIRE (1980).

80

realidade do aluno e aquela supostamente padrão, não é uma questão de sobreposição,

mas de possibilidade de um diálogo fecundo entre ambas, no sentido de que o sujeito

possa, de fato, compreender a linguagem e apropriar-se desta com autonomia, assumindo a

autoria do seu discurso.

Os recortes teóricos acima referidos têm como pano de fundo uma concepção

de homem como sujeito ativo, pensante e transformador. Nessa perspectiva, a criança é

vista como uma pessoa de pouca idade, mas que pensa, que cria estratégias para a sua

aprendizagem e que na interação com o outro produz conhecimento, ou seja, um sujeito que

tem a dizer do momento e das experiências que vivencia. Por esse motivo foi convidada a

ser parceira nesta pesquisa; é co-autora uma vez que suas falas, opiniões e produções

foram imprescindíveis para as reflexões e entendimentos possíveis dentro do contexto em

que o diálogo foi estabelecido – dialogo, que por sua vez, determinou o enfoque de análise.

Também é relevante retratar um pouco do cenário da pesquisa para dar uma idéia mais

próxima de como pode ser a conversa com as crianças participantes e reconhecer que

mesmo quando falam “sério” elas dão um jeito de brincar, ou vice-versa. Então a brincadeira

pode nos aproximar.

Discorrendo sobre o encontro propriamente dito, é preciso dizer em princípio

que, pelo percurso que havíamos trilhado até o momento, tínhamos conquistado certa

intimidade. Sentados em círculo, no chão, ficamos muito à vontade e de vez em quando

uma das crianças tocava meu cabelo, ou fazia algum outro gesto de carinho. Para iniciar a

conversa daquele dia perguntei às crianças: Vocês sabem o que é uma poesia? O Bruno52

responde: “eu não sei, não”. Vocês conhecem alguma? Algumas crianças respondem sim,

outras não, outras devolvem a pergunta: poesia? O que é isto? Lara, por sua vez declara:

“eu sei o que é uma poesia!”, e roubando a cena começa a recitar a que ela conhece:

Eu queria ser poeta Mas, poeta, não posso ser, Porque poeta pensa muito E eu só penso em você!

Ao perceber que o grupo apreciou a sua poesia, Lara recitou mais duas vezes

e todos ouviram encantados. Percebi que o que importava naquele momento era a forma

como ela se entregava à interpretação daquele pequenino texto e nos oferecia como um

presente com a voz suave, mas com uma autoridade absoluta. Era possuidora de algo que

tornava aquele público “seu” por alguns instantes; o público parou, ouviu, se emocionou e a

aplaudiu, foi um momento de êxtase! A menina inaugurou o encontro daquele dia

surpreendendo, colocando emoção ao recitar o seu poema. Foi também uma conquista de

espaço, de poder, de aprendizado e de autonomia, pois fazer a narrativa era uma forma de

52 Bruno Teixeira da Rosa.

81

compartilhar sua tradição, seu repertório cultural. Com esse gesto ela desperta no grupo a

vontade de querer participar, principalmente porque “palavra puxa palavra, idéia evoca idéia,

criação realimenta criação” (ZACCUR, 2001, p. 33). Ouvir a Lara fez com que as outras

crianças quisessem revelar seus “guardados”. O Bruno53 foi o primeiro a se manifestar, ele

diz não conhecer nenhuma poesia, mas uma música, “a da Isabel e do Renato” e pergunta

se poderia cantar um pedacinho, mas, como o grupo não lhe concede espaço, a “sua”

música aguarda outra oportunidade, sem constrangimentos.

Retomo a palavra para dizer às crianças que trouxe algumas poesias.

Pergunto, inicialmente se posso fazer a leitura de uma poesia escrita por Manoel de Barros

e chamada O menino viu o sol. Como a resposta é afirmativa, faço a leitura pausadamente e

as crianças ficam em silêncio.

O menino viu o Sol se encolher por dentro de um inseto. Era muito perigoso que o sol estourasse dentro do inseto. Ia ser um estrondo. O menino, com medo, se escondeu atrás da porta. Mas o inseto continuou bem na flauta a dar voltas pelo jardim. E o estouro não aconteceu. Depois o menino viu que o Sol nem cabia no inseto! Isso era.

Termino a leitura e elas permanecem em profundo silêncio... Buscando as falas

das crianças, pergunto “vocês querem que eu leia novamente?” Com esse gesto obstruo um

momento de fruição! Não era necessário perguntar. Eu fiz de fato a leitura do poema

novamente e poderia ter feito sem quebrar o encantamento da leitura inaugural da mesma

forma que fez a menina Lara, uma, duas, três vezes [...] sem perguntas, ela simplesmente

recitava. Analisando essa atitude, me perguntei, se teria o aspecto pedagógico se

sobressaído e cobrado um retorno imediato e mensurável daquilo que não tinha como

proposta ser medido. Por quantas vezes podemos repetir esse gesto na sala de aula,

quando levamos um texto poético, uma história de ficção e ao invés de possibilitar que

sejam simplesmente desfrutados, vamos interpelando os alunos com inúmeros

questionamentos? Por que o silêncio das crianças me incomodou? Como conter uma

postura didático-pedagógica tão arraigada em nossa formação? Um momento de deleite, de

introspectividade, teria eu interrompido? Teríamos necessidade de tempos diferentes para

ouvir e escutar; pensar e compreender; olhar e ver? O tempo da criança é diferente do

adulto? Prestando mais atenção nesses aspectos, fiz a leitura de Quadrilha de Carlos

Drummond de Andrade: 53 Bruno Teixeira da Rosa.

82

Quadrilha João amava Tereza que amava Raimundo Que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém . João foi para os Estados Unidos, Tereza para o convento, Raimundo morreu de desastre, Maria ficou pra tia,

Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes Que não tinha entrado na história.

Observando a forma como as crianças ouvem o texto poético foi possível

perceber que elas vão construindo as cenas imaginativamente. Meninos e meninas ouviram

atentamente a poesia Quadrilha e me olhavam curiosamente. Em alguns momentos

repetem em tom de voz baixo pequenas partes do texto. Quando termino, elas caem na

risada!!! Quando o riso cessa, e talvez, inspiradas pelo clima de romance da poesia, as

crianças começam a cantar uma música, comandada pela voz do Luiz Felipe54 e da Sara,

repetindo várias vezes o seguinte trecho: “Se quiser, sempre que quiser um beijo eu vou te

dar, sua boca vai ter tanta sede de me tomar [...]”. Então, um poema surgiu,

espontaneamente, em forma de canção! E depois de muita cantoria, algumas crianças

suspiraram profundamente. Aproveito o clima e apresento a elas, outra poesia, a de Sidônio

Muralha:

Boa Noite A zebra quis ir passear mas a infeliz foi para a cama - teve que se deitar porque estava de pijama. Para Aguiar (2007, p. 18) na etimologia da palavra verso está o movimento da

linguagem voltada para si mesma, uma “linguagem que escava o caminho para o seu

interior” e nesse movimento estabelece relações importantes “com o ritmo, a sonoridade e

os efeitos de sentidos, presentes nos jogos lingüísticos e estruturais da composição, que

dão margem a inúmeras interpretações, possibilitando as mais variadas leituras” (idem).

Possibilitar o diálogo entre a poesia e a criança no processo de alfabetização e letramento é

criar condições para que ela possa pensar sobre a linguagem como um objeto vivo e

dinâmico e sobre a produção dos significados inerentes a ela. Além disso, viabilizar o

acesso ao acervo produzido pode ser um compromisso da escola, e entenda-se o acesso

amplo e irrestrito para não incorrermos no equívoco de defender “para poucos [...] o domínio

e o acesso aos objetos mais sofisticados da cultura; à grande massa, só aquilo que ela pode

assimilar, logo, literatura de quinta linha” (OSAKABE, 2007, p. 48). Entendo que mais do que

ler e ouvir poesias feitas para ela ou não, a criança pode ser provocada para experimentar a

54 Luiz Felipe Pavesi Miranda.

83

criação do texto poético, por isso, após a leitura das poesias, convidei-as para criarem

textos ou ensaiarem composições com palavras que chamaríamos de poesia. Entre risos e

gracejos, o convite é aceito pelo Josué, Vitor, Bruno55, Bruno56, Thiago, Sara, Willian e

Rodrigo que se mostravam dispostos a brincar com as palavras, inclusive algumas crianças

demonstram estar preparando seus textos (mentalmente) desde os momentos iniciais

quando foram sensibilizados por Lara.

Enquanto as crianças produziam suas falas, foi possível perceber que o seu

gesto criativo surgia tomando como suporte suas experiências. Estas experiências re-

instauravam uma nova ordem e se revestiam de outros significados. Cada palavra

pronunciada revelava uma tentativa de estabelecer ritmo, musicalidade e graça. De alguma

forma, o contato com a poesia “produz no leitor, como qualquer obra de arte, uma

percepção nova sobre determinada experiência, ou constitui ela própria uma experiência

sempre renovada, como se guardasse sempre o frescor de sua criação” (OSAKABE, 2007,

p. 49). A impressão que tive é que o envolvimento ainda pode ser maior, no sentido de um

sujeito sensibilizado projetar palavra sobre palavra e criar uma “obra” sobre outra. Trago as

poesias que foram ensaiadas naquele encontro e que tiveram a oportunidade de serem

revisadas por seus autores, na devolutiva, antes de compor esse texto. O Josué, havia

contado uma história em outro encontro e mostrava-se confiante para ser o primeiro a

compor a sua poesia que vai chamar de Mulher atrás do gato:

Mulher atrás do gato O gato Pulou na janela, Saiu correndo... A mulher correu Atrás do gato, O gato fugiu. O cachorro foi atrás E mordeu O rabo do gato!

Ouvindo uns aos outros, pensando e expressando seu pensamento, as crianças

vão produzindo (oralmente) textos significativos. O Josué faz uma composição sobre o gato

e inspira os colegas a pensar em outros animais e então um festival de poesias vai surgindo,

uma atrás da outra, nas quais, gato, rato, cachorro, tornam-se os elementos inspiradores:

elas têm caráter humorístico, algumas crianças querem deliberadamente provocar risos. As

composições possuem originalidade e dizem muito das experiências vividas por cada uma

delas e das tentativas de articular as idéias e compartilhar com o outro. Os bichos começam

a aparecer nos textos improvisados de variadas formas e tornam-se excelentes motivos

para exercitar a imaginação. A imaginação que se revela no ato da criação. A zebra de

55 Bruno Teixeira da Rosa. 56 Bruno Cardoso dos Santos.

84

Muralha que “quis ir passear, mas teve que ir pra cama, porque estava de pijama” foi quem

“abriu a porteira” para os bichos entrarem na imaginação das crianças! O Vitor inventa a sua

poesia falando de ratos e gatos, que têm na “vida real” relações perigosas que os adultos

têm dificuldade de perceber:

Janela

Uma janela Matou o rato, Outro rato veio. O gato fugiu E bateu na ração Mulher atrás, Saiu de casa Dez vezes E não viu nada Até que, enfim, Viu...

Como vimos, o texto do Vitor assinala de forma sutil e bem humorada uma crítica

a falta de atenção dos adultos. Cunha nos lembra que uma das “maiores armas do humor é

justamente apresentar, por trás da despretensão e da irreverência, uma visão crítica, um

olhar de estranhamento, uma nova forma de pensar o mundo e revelar seus absurdos, suas

contradições, suas injustiças” (2005, p. 88).

O Bruno57 faz um esforço tentando resgatar da memória um verso pronto, faz

movimentos faciais revelando que não conseguiu lembrar de nada, então, tenta criar,

improvisa um título e narra, segundo ele, um episódio ocorrido com seu animal de

estimação:

A cachorra e a mosca A mosca foi atrás da cachorra. Quando o cachorro nasceu... Da cachorra mãe. A cachorra morreu O filhotinho? Morreu também. A mosca soltou veneno Saiu uma fumacinha...

Ouvindo o Bruno Cardoso e o Thiago, pensei: estariam eles utilizando a relação

gato-cachorro para falar da repetição, do infindável retorno das coisas. Não sei se foi essa a

intenção, talvez isso não tenha tanta importância quanto o fato de poder exercitar a

linguagem de forma lúdica e autônoma, de assumir a autoria do seu discurso e poder

partilhar formas de pensamento que foram se traduzindo em poesias: Gato e cachorro correm Era um gato e um cachorro Eles viviam, viviam Brigando

57 Bruno Teixeira da Rosa.

85

Brigando Brigando A dona deles disse: Vai pra fora gato! Em vez de o gato ir, o cachorro foi Ela disse: vai pra fora gato! O cachorro voltou...

O Gato, Estava correndo. O cachorro comeu o gato. O cachorro vomitou, O gato saiu da boca dele E comeu o rato!

A Sarah faz uma poesia que fala de amor, encontrando outro motivo para

exercitar a linguagem poética. O Juliano, o Rodrigo, o Willian e a Rafaela também deixam os

animais de lado para pensar na vida e na morte. Suas poesias58 falam das dúvidas que

perpassam a existência humana, revelando a forma como a criança atribui significação ao

que vivencia ou ao que toma conhecimento ouvindo os adultos. O pensar sobre o vivido nos

leva a re-criação e nesse movimento ininterrupto vamos nos constituindo sujeitos, assegura

Zaccur (2001, p. 33). Para a autora no sentido original da palavra Poiesis está a

possibilidade de “um espaço de continua recriação, sem separação: entre o fazer e o

pensar, entre o inato e o adquirido [...] imagem de permanente mudança – mundo e seres

humanos permanentemente inacabados”. As crianças capturam o pacto da poesia com a

emoção, com a beleza e com as coisas que fazem sentido e manifestam em forma de rimas,

repetições, elas acham graça dos próprios textos. A Sarah elaborou seu texto, desta forma:

Amor Meu amor é legal Eu nunca queria abandoná-lo Se eu o abandonasse Meu amor iria morrer

O Rodrigo criou um texto que, segundo ele, tem a ver com a sua historia:

Poesia do menino Que sou eu, Que vai para a escola, Que os dois avôs morreram, Que o meu tio Rodrigo Também morreu Porque botou a mão na tomada. Estava brincando

58 O Juliano e a Rafaela não criaram as poesias que são aqui apresentadas naquele encontro. O Juliano construiu seu texto no momento em que vivenciava a perda do avô. A Rafaela diz tê-la feito em casa e perguntou se poderia colocá-la no meu trabalho, uma vez que durante os encontros ela não quis nem contar histórias, nem criar poesias porque ficou com vergonha de falar. Assegurou-me que é autora das idéias que foram organizadas por sua irmã que está na sexta série do Ensino Fundamental.

86

Com seu amigo Em Tubarão. Tinha seis anos. O amiguinho foi embora, O meu pai estava vendo bois, O meu pai já conhecia minha mãe, Mas eu nem tinha nascido. Eu queria meu tio, de novo, Ele era engraçado, Bobalhão! O William59 se dirige ao avô (já falecido) poeticamente para comunicar-lhe que

“já sabe ler”:

Eu queria meu avô Que já morreu. O nome dele É Zequinha. Assinado: Willian, Vovô Eu já sei ler!

Uma poesia singela, produzida a partir da matéria prima mais cara para o sujeito:

a sua própria vida, a sua história e o seu momento de experiência. Com sensibilidade

podemos apreender o que este pequeno–grande texto pode revelar sobre o seu autor e

perceber que ao transformar aspectos da vida cotidiana em poemas a criança está tirando

os elementos do contexto trivial para transformá-lo em elemento de reflexão. Sentimentos,

medos e frustrações são re-significados ao serem anunciados de forma autêntica nas

composições poéticas das crianças, é isso que faz Rodrigo com a poesia acima. O menino

pensa sobre a sua vida e sua história, trazendo para o centro de reflexão pessoas

importantes que sequer conheceu pessoalmente, mas que fazem parte da sua vida e

partilha a experiência. Já o Juliano, no texto a seguir, transforma em poesia a dor que sentiu

por ocasião da morte do seu avô:

Poesia pro meu avô Barriga O meu avô morreu Parou seu coração Ele foi para o caixão, E foi pro cemitério

Eu chorei, Chorei, Chorei muito. O nome dele é Altair.

59 Em final de outubro (quando a pesquisa de campo já havia sido concluída) o William, veio falar comigo e me pedir a sua poesia, fiz uma cópia e entreguei a ele. Uma semana depois, a sua mãe me relata, emocionada , sobre o gesto do menino que por ocasião do dia de finados, levou a poesia ao cemitério e leu em frente ao tumulo do seu avô.

87

Rafaela me entregou o texto abaixo e sugeriu: “coloque esta poesia no seu

trabalho!”. Ciente da proposta de ter as crianças como co-autoras, entendi que deveria

registrá-lo, reconhecendo que o que mais me chamou atenção na ação da menina foi o fato

de que ela se deu conta de que não teve participação de fala no decorrer da pesquisa e foi

buscar uma forma de se fazer presente, vencendo a própria timidez.

O que serei O que serei?

Serei carpinteiro60 Ou marceneiro O que serei? O que serei? Serei cantor Ou ator O que serei? O que serei? Serei atleta Ou poeta

O que serei? A experiência com as crianças traz a impressão (para não dizer certeza) de que

elas têm maior facilidade para lidar com o texto poético por não ter vergonha de criar

poesias, ainda que seus textos possam parecer, aos próprios olhos, sem graça e

desengonçados. E que talvez a melhor parte está exatamente em perceber que ela [a

poesia] quando está nascendo, nem seu autor pode imaginar onde vai parar! As crianças

não se importam de passar muito tempo pensando em coisas desimportantes61, de falar de

qualquer coisa, pois o mundo está cheio de coisas que elas ainda vão descobrir. Piacentini

(2003) diz que “a palavra poética, a palavra literária, voa e faz voar gentes e reinos” (s.p.) e

as crianças parecem perceber isso intuitivamente. A autora, afirma ainda que a poesia

genuína, aquela que tem compromisso com a beleza, a emoção, a invenção da linguagem

ou a poesia que mostra a palavra em "estado de arte" liberta da relação convencional com a

linguagem em que as palavras vão e vêm batidas de rotina e perseguidas por todo tipo de

molde. Os gatos, cachorros e ratos que entraram na poesia das crianças já não são mais os

mesmos. Esses bichos se emanciparam, ganharam vida própria e permanecerão na

lembrança daqueles que o viram desfilar enquanto eram narrados pela linguagem poética

que possibilita ver o mundo e suas coisas por múltiplas formas.

Ouvir, gravar e transcrever a poesia de cada criança, bem como as muitas falas

paralelas e simultâneas, foi um exercício de muita reflexão. Além de documentar

cientificamente os textos que foram produzidos, foi possível perceber que a contribuição da

linguagem literária no processo de alfabetização e letramento da criança extrapola, e muito

60 Perguntei a Rafaela porque ela fez a poesia usando o masculino, ela me respondeu: porque eu e a minha irmã decidimos assim. 61 BARROS, Manoel de. Memórias inventadas: a infância. São Paulo: Planeta, 2003. [s/p]

88

as questões estruturais da língua (padrão) transformando-se em um instrumento potente de

reflexão para o sujeito sobre si mesmo. Os textos poéticos podem falar, principalmente das

coisas “imaginárias” ou “reais” que estão relacionadas a nossa condição humana, e isso

inclui sonhos, fantasias, sentimentos, emoções, o potencial e a fragilidade de cada

indivíduo. Aprender a ler e escrever lendo e criando textos significativos que tratam dessas

coisas pode ser um caminho sólido para edificar um leitor competente e um sujeito sensível,

capaz de assumir a autoria do próprio discurso. Mas ao lançarmos mão da poesia para o

leitor iniciante é necessário esclarecer que, segundo Cunha (2005, p. 89) ela “não deve ser

feita para ensinar bons modos, ecologia, patriotismo, datas comemorativas, regras de

trânsito e acentuação, “deve ser, antes de mais nada, um espaço para o prazer, a diversão,

o encantamento com a palavra e a partir da palavra”. O texto poético precisa estar na escola

por ele mesmo, arrebatando as pessoas e as provocando para interagir com as palavras e

“usar a linguagem com mais intimidade e segurança, mesmo que jamais se torne um poeta

[...]” (idem). Encaminhar o processo de alfabetização com letramento nessa perspectiva,

inclui “a reinvenção da linguagem, a expressão da subjetividade e as singularidades próprias

do código escrito” (VARELLA, 2001, p. 33).

Necessário se faz ainda lembrar que por força de lei62 estamos vivendo um novo

momento no Ensino Fundamental, no qual as crianças devem ingressar aos seis anos de

idade na classe para alfabetização. Portanto, mais cedo elas terão a obrigatoriedade da

freqüência, da promoção e de outras responsabilidades próprias da escolarização. É preciso

olhar com carinho para esta nova realidade, para não permitir que mais cedo, elas sejam

desapropriadas da brincadeira, da imaginação e da fantasia porque chegou a hora de

“aprender a ler e escrever”. É preciso repensar práticas cerceadoras e padronizadoras dos

movimentos e das ações das crianças no espaço escolar. Se as crianças estão chegando

mais cedo à primeira série é exatamente por esse motivo que terão mais tempo para

vivenciar o processo de apropriação do código escrito numa perspectiva lúdica, prazerosa e

significativa. Podemos iniciar os pequenos escritores/leitores buscando uma forma outra de

lidar com o código escrito e isso inclui a linguagem literária, pois “o vínculo da criança com o

texto poético começa muito cedo. As cantigas infantis e as parlendas, por exemplo, podem

ser utilizadas para introduzir as crianças, já nos primeiros anos de vida, na linguagem

poética” (SOUZA, 2004, p. 64). Ao reconhecer que as crianças possuem um repertório com

cantigas e poesias procedentes da tradição oral brasileira, indicadoras de um estágio

embrionário de literatura, podemos, então, proporcionar espaços para socialização e

ampliação desse repertório na escola, em todos os níveis de ensino.

62 As Leis nº 11.114 de maio de 2005 e 11.274 de fevereiro de 2006 promoveram alterações em alguns artigos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei nº 9394/96 implementando o ensino fundamental de nove anos, com o ingresso das crianças na primeira série aos seis anos.

89

2.2.4 “A primeira palavra que aprendi foi meu nome...”. Aprender a ler e escrever:

criando estratégias, buscando e produzindo significados.

A abordagem do tema (a contribuição da literatura no processo de alfabetização

e letramento da criança) foi feita de duas formas: direta e indiretamente ao longo dos

encontros, continuamente buscando compreender as falas das crianças e suas possíveis

significações. Nos diálogos, por entre as frestas, tentei capturar algumas das formas pelas

quais as crianças que participaram dessa experiência se relacionam com os textos literários.

Busquei ainda perceber de que forma a literatura potencializa o processo de alfabetização e

letramento no sentido de promover maiores interações da linguagem, pois é a linguagem

que, segundo Bakhtin (2000), constitui o sujeito e exerce um papel fundamental na

elaboração do conhecimento. Além disso, falamos da experiência das crianças em aprender

o código escrito. Elas me “confidenciaram” suas estratégias para atingir o objetivo de

dominar essa ferramenta, afinal, elas têm consciência de que foram para a escola para

aprender a ler e escrever.

Os sujeitos desta pesquisa vivenciavam o período inicial do processo

formal/escolar de alfabetização e letramento, pois a pesquisa de campo foi desenvolvida no

primeiro semestre do ano letivo, e além de ouvir e inventar histórias em nossos encontros,

as crianças tiveram a oportunidade de pensar e falar sobre a forma com que cada uma está

aprendendo a ler e escrever. Na troca de experiências e no diálogo, pude perceber que

diferentes eventos contribuem para que essas crianças desenvolvam a habilidade técnica de

decifrar o código escrito, mas que elas buscam, paralela e prioritariamente, atribuir um

significado à mensagem a ser decodificada e criam formas peculiares para lidar com a

escrita e com a leitura. E é nessa perspectiva que se torna “reconhecida, igualmente, a

importância da arte literária por ser capaz de situar o indivíduo diante de si mesmo e de seu

contexto; por possibilitar-lhe a percepção de variados pontos de vista e por estimular sua

criatividade” (SARAIVA, 2001, p. 24).

Para abordar o assunto em questão, continuamos no ritmo da contação de

histórias, queríamos falar de coisa “séria” brincando, então lancei mão do livro O menino

que aprendeu a ver, de Ruth Rocha, para desencadear a reflexão sobre o processo de

alfabetização e letramento pelo olhar dos protagonistas do processo. Afinal, quem melhor

poderia informar o que é estar se alfabetizando, senão as próprias crianças situadas “no

olho do furacão”. Essa escolha deveu-se também ao fato de que na metodologia utilizada,

chamada de espaço de narrativa, o pesquisador exerce uma função provocativa das

reflexões. Dessa forma, desempenhando esse papel, não fiquei à espera de que as crianças

pudessem vir a falar espontaneamente sobre o tema, mas propositadamente selecionei

90

esse texto literário porque ele possibilitaria entrar na discussão do problema de pesquisa.

O texto de Ruth Rocha, em linhas gerais, narra a experiência de João, um

menino que está indo para a escola para aprender a ler e escrever e que percebe no

universo em que está inserido, coisas que ele não compreende. São as letras e os números

que o desafiam no sentido de tentar decifrar o que querem dizer. À medida que o

personagem vai participando das aulas e conhecendo as letras do alfabeto, começa a

percebê-las nas placas, nos cartazes e fica muito intrigado. Pergunta ao seu pai: “papai, o

que está acontecendo? Cada vez que eu vou para a escola, pintam nas placas, nos livros,

nos pacotes, nas paredes, as letras que eu estou aprendendo”. O pai então explica ao filho

que as letras estavam todas ali, era ele quem não as percebia, mas a partir do momento em

que aprendeu a ler e se apropriou de uma habilidade, abriu-se para ele um outro universo

de possibilidades.

A narrativa remete a muitos fatores que poderiam ser analisados, toma como

referência uma professora alfabetizadora que utiliza um método reducionista (bastante

criticado) que se fundamenta no exercício repetitivo, pelo qual apresenta aos seus alunos a

letra A e eles reproduzem A, A, A, e sucessivamente com outras letras. Uma história que

enfatiza a função pragmática da escrita (o menino e sua mãe precisam tomar o ônibus,

Qual? Como saber?) e trata das dificuldades de pessoas que não tem acesso à leitura para

viver numa sociedade em que o código escrito tem valor indiscutível, pois como assegura o

menino Isaac “quem não sabe ler não pode trabalhar”. Mas, para além de tudo isso, o meu

propósito ao selecionar esse texto para ler com as crianças foi seu aspecto literário: sua

forma narrativa que aborda os problemas vivenciados pela criança com a possibilidade de

discutir suas interrogações íntimas e inconfessáveis, de desvelar a sua relação com a

escola, com o código escrito e com a própria competência em processo de construção. Um

texto que fala com a criança e que compreende o seu momento. Pois, como pude observar,

a criança em determinado momento da história assume o papel de protagonista e vivencia o

episódio. Nesse caso, ela se faz João durante a narrativa, solidária nas suas dúvidas e

comemora o êxito do final feliz, no qual o personagem descobre que já sabe ler. O menino

Kennedy se entusiasma com a experiência do personagem e relata que a descoberta das

palavras para ele foi semelhante ao personagem de Ruth Rocha porque “quando eu

estudava no Branca de Neve63 todas as letras que a minha professora fazia no quadro eu

continuava vendo elas, pelo mundo”. Outras crianças falaram imediatamente após a leitura

da narrativa, a mesma frase: “eu ainda não sei ler”.

Essa história conduz às crianças a uma auto-análise, buscando compreender o

processo pelo qual estão passando. Elas olham ao redor, em busca das letras, das palavras

63 Nome da escola em que Kennedy fez a educação infantil.

91

para testarem o que são capazes de “ver”. Nos relatos das crianças, falando da sua

experiência de como estão aprendendo a ler e escrever, está o da Sarah, que afirma já

saber ler e explica como aprendeu: “eu aprendi a ler, aprendendo o alfabeto, conseguia ler

tudo. Depois eu fui formando palavrinhas com o alfabeto, com o C e o A eu formei a palavra

casa”. Então perguntei a ela: “a primeira palavra que você aprendeu foi casa? Ela foi

enfática: não, a primeira palavra que eu aprendi foi o meu nome, depois dos meus irmãos:

Luana e Sabrina, eu tenho mais um irmão, mas ainda não sei escrever o nome dele”. Ao

falar da sua experiência com a linguagem escrita, a menina explica como faz a combinação

entre as letras para chegar à formação das palavras, relata as estratégias que usa e

evidencia a atribuição de significados, pois a sua “primeira” palavra é algo muito

significativo: o seu próprio nome. Essa também é a experiência da Stefani: “eu sei ler e

escrever o nome do meu pai, Jucemir e do meu irmão Talles e, é claro, também o meu”.

Magda Soares (2005) problematiza o verbo ler, intransitivo e sem complemento

quando simplesmente se refere às habilidades de decodificar palavras e frases; ler – “verbo

transitivo é um processo multifacetado: depende da natureza, do tipo, do gênero daquilo que

se lê, e depende do objetivo que se tem ao ler” (p. 30-31). Quando tratamos da

aprendizagem da leitura e da escrita poderíamos transpor essa idéia de transitividade tanto

para a escrita quanto para a leitura, pois ambas pré-supõem tal condição: a criança

quer/precisa aprender [ler] o quê?, para quê? Aprender [escrever] o quê? Para quê? As

falas das meninas oferecem uma pista dos [seus] pontos de partida ao referirem-se às

primeiras palavras que aprenderam a ler e escrever. Elas deixam explícito que não são

quaisquer palavras. Mas sim àquelas carregadas de significação que não podem ser

tratadas apenas como “objetos de mecânicas operações de decomposição e recomposição,

mas que se insiram num universo semântico de situações existenciais das quais brotem,

plenas de significados” (SOARES, 2006, p. 120).

Apontando essa perspectiva está, fundamentalmente, Paulo Freire, na sua forma

de conceber o processo de alfabetização (e a educação de forma geral) muito anterior à

discussão sobre letramento(s). Ele não foi o criador de um método de alfabetização como foi

apregoado, pelo menos não no sentido restrito que essa palavra tem sido compreendida no

universo pedagógico. Mas, ao defender sua proposta de alfabetização, incluiu-se entre

àqueles que preferem um método eclético, capaz de abarcar sínteses e análises. Freire

definia alfabetização sobretudo como um ato de criação, de conscientização e a percebia,

na prática, como um instrumento que possibilita ao sujeito a reflexão sobre a sua posição e

lugar no mundo. Foi um dos primeiros educadores a pensar a construção de uma

concepção outra de alfabetização que dá origem ao modelo ideológico de letramento.

Quanto aos métodos, eles devem estar a serviço da aprendizagem do sujeito e

não o contrário, devem ser constantemente re-inventados por aqueles que o utilizam. Nem o

92

professor nem o aluno são reféns de um (único) método, mas podem e devem utilizar

estratégias metodológicas (ou criar outras) que “assumem e respeitam o alfabetizando como

sujeito ativo que traz experiências e sabedoria que vive e sofre um lugar social” (SOARES,

2006, p. 121) num cenário onde interagem culturas, saberes e ideologias. Segundo a autora,

é também nessa perspectiva que se verifica a não neutralidade não apenas atrelada aos

métodos, mas de todo um conjunto de procedimentos, técnicas, conteúdos e objetivos que

materializam uma concepção de educação, de homem e de mundo, independente da

consciência que se possa ter sobre ela. Dessa forma, posso, enquanto professor, tanto

contribuir para “adaptar e submeter a valores, tradições, padrões de poder e dominação

quanto [...] questionar esses valores, tradições, padrões de poder e dominações” (idem, p.

122), contribuindo para a sua superação.

Outro aspecto que pude depreender não apenas das falas das crianças, mas

das formas como elas falaram sobre o assunto foi o quanto às pessoas do círculo de

relações da criança (de grande parte delas) exercem certa pressão ao “exigir”, logo no início

do ano letivo, resultados palpáveis e claros de sua aprendizagem. Karoline relata a forma

que a família dela vem ajudando-a no intento de aprender a linguagem escrita:

A minha mãe em casa às vezes me ensina, meu irmão está dando aula pra mim [...]. Ontem à tarde quando cheguei da escola, fomos pra avó, ela tinha um quadro de desenhar, daqueles pequenos e me deu [...], chegamos em casa e meu irmão foi me ensinar ler e escrever, escrever emendado64 e fazer tarefa. Aprender escrever é um pouco difícil, a gente mistura as letras – e para escrever sozinha tenho que primeiro saber as letras.

No relato da experiência da Karoline, percebe-se a participação da mãe, do

irmão e da avó, todos comprometidos em auxiliá-la. Esse mesmo empenho pode ser

percebido na fala do Bruno65, que conta a sua experiência: “antes eu não sabia ler o alfabeto

[então] a minha madrinha fez o alfabeto pra mim e colocou na minha parede e daí eu leio,

eu já sei ler todas as letras. Agora ela vai fazer os nomes, casa, tudo”.

Tenho percebido, na experiência com turmas de alfabetização, que o empenho

da família para auxiliar as crianças na tarefa de aprender a ler e escrever tem, de certa

forma, uma curta duração. A mobilização familiar (na sua grande maioria) intensa no início

do ano letivo diminui à medida que a criança consegue decodificar letras, sílabas, palavras.

Ela se vê com menor apoio quando dá conta de ler (decifrar) e escrever (copiar) sozinha.

Fico me perguntando o quanto poderíamos avançar em termos de interações e saberes se

esta empolgação primeira, demonstrada por familiares ou responsáveis (que inclusive

confere maior compromisso à escola) não diminuísse com o avançar do ano letivo e

pudesse ser percebida ao longo da vida escolar da criança. Além disso, aprender a ler e 64 A menina refere-se a letra cursiva. 65 Bruno Cardoso dos Santos.

93

escrever (no sentido técnico) é somente re-conhecer as letras do alfabeto e compreender

suas múltiplas combinações (algo que a criança já faz com o próprio nome e com outras

palavras com as quais está familiarizada). É uma parcela do processo de alfabetização com

letramento que, para complicar a vida da criança, a escola tende a valorizar excessivamente

e o realiza hierarquizando o conteúdo do “simples ao complexo”. Evidentemente, esse é

reflexo de um posicionamento, político e ideológico que impõe à criança uma idéia de

dificuldade (aprender ler e escrever é muito difícil) e até de incapacidade, talvez mais

acentuado no contexto da escola pública, fazendo-a sentir-se pequena e impotente, imersa

num ambiente escolar pouco acolhedor, que não favorece a autoconfiança, como mostram

esses comentários:

“No começo da escola eu fiquei com muito medo, medo da professora ser muito

brava e de eu não conseguir aprender a ler” (JULIANO); “eu não sei ler nada e não consigo

aprender” (STEFANI); “a gente fica estudando e eu não consigo ler muito, é muito difícil!”

(KENNEDY); “no início eu fiquei com muito medo de reprovar, mas depois eu comecei a

aprender ler e escrever, aprendi o meu nome e também Criciúma” (BRUNO66).

As mesmas crianças que acabaram de afirmar que não sabiam “nada”, fazem

uma lista de palavras ortograficamente corretas, lêem e se dão conta: “é, eu já sei ler

algumas palavras!” (KENNEDY).

A forma como a criança percebe a escola e o seu ambiente é um dos fatores que

favorece ou dificulta o processo de aprendizagem. O que leva uma criança, na condição de

aluno, sentir-se incapaz? O quanto essa sensação real ou imaginária pode interferir no

processo de aprendizagem?

As falas das crianças revelaram ainda algumas estratégias e instrumentos que

elas criam/usam para apropriar-se do código escrito, por exemplo: “quando eu não sabia ler

eu aprendi fazendo o alfabeto com os dedos das mãos67 que a minha mãe e o meu pai me

ensinaram” (JOSUÉ); “a minha irmã tem um quadrinho com o alfabeto emendado68 e outro

não, ela deu os dois para mim, para eu aprender a ler” (JULIANO); “eu imagino assim o C, o

A, o S e o A de novo e fico ‘vendo’69 a palavra casa” (SARAH); “eu peguei o joguinho de

letras do livro [de alfabetização], recortei e fiquei jogando, formando palavras e consegui ler”

(ELTON); “eu estou aprendendo a ler e escrever usando meu notebook” (THIAGO); “a

minha tia Valdimara fez uma lista com todas as letras, assim: ba-be-bi-bo-bu [...] eu estou

lendo, mas eu não sei juntar esses pedaços para fazer palavras, e eu já vou fazer sete anos!

66 Bruno Teixeira da Rosa. 67 O menino faz uma demonstração para a turma, representando as letras do alfabeto utilizando o dedo das mãos. 68 Cursivo. 69 A menina usa a imaginação – imaginação entenda-se “como experiência mental, composta por imagens e idéias construídas pela linguagem” (CABRAL, p. 2007, p. 112).

94

(STEFANI); “eu sei ler mais que ele, o Bruno” (LUIZ FILIPE70) ; “verdade? O que está escrito

na tua camisa? (EU); Ah! Não sei! – No outro encontro, o menino volta com a mesma

camisa e vem correndo contar: “eu sei o que está escrito na minha camisa: Braço do

Norte71”.

As crianças lêem aquilo que está ao seu redor, elas direcionam o olhar para o

objeto escrita e concentram esforços no sentido de identificar palavras do contexto e

compreender seu significado, numa ação volitiva de “ver” com olhar científico, focado, ou

seja “ler” lançando hipóteses, produzindo respostas aceitáveis e aproximando-se do objeto

até dominá-lo. Elas realizam esse movimento de muitas formas, incluindo esforço, vontade,

ludicidade, imaginação e criatividade, na escola e fora dela.

A alfabetização com letramento é um processo que cobra sentido e que tem

como uma das tarefas, trabalhar as competências (técnicas) da escrita e da leitura que, ao

contrário do que possa parecer não é facilmente mensurável. Portanto não é tão simples

“aferir” essa aprendizagem, ainda que se refira somente à escrita (cópia) ou à leitura

(decifração), principalmente porque ela inclui um sujeito e um caminho pelo qual esse sujeito

faz opção. Um caminho que é construído a partir das interações, dos atores sociais

envolvidos e do contexto em que se está inserido, mas a despeito de tudo isso, ainda é um

caminho exclusivo para um sujeito que é, simultaneamente, individual e coletivo. Um

processo dinâmico, complexo e multifacetado72 que não pode ser tratado de forma

reducionista. Quase duas décadas inseridas no contexto educacional e os últimos anos

atuando especificamente nessa área me permitem inferir que a inovação teórica das últimas

décadas ainda não é consistente em termos práticos. É legitima a preocupação de Magda

Soares quando ela se reporta a uma espécie de (des)construção da alfabetização quando

se direcionam os debates e os estudos no sentido do letramento, supondo nossos

problemas técnicos com relação a aquisição da escrita/leitura resolvida. É a autora que

também reconhece o quanto as proposições formuladas por Paulo Freire foram reduzidas a

questões de “métodos” no seu sentido mais elementar, o quanto concepções profundas de

transformação paradigmática podem ser reduzidas a práticas efêmeras, a simples modismo.

Conversar com as crianças sobre o processo de alfabetização e letramento, no “agora” em

que elas estão vivenciando, representou, essencialmente, refletir com elas sobre os vários

aspectos que envolvem esse momento, encarando “de frente” problemas encobertos,

disfarçados, esquecidos ou simplesmente banalizados. Impregnada pelo desejo de tentar

compreender se a literatura é, de fato, uma aliada no processo de alfabetização com

letramento, encaminho algumas considerações.

70 Luiz Filipe Pavesi Miranda. 71 Nome de um município de SC, vizinho de Criciúma. 72 SOARES, 2006.

95

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O arremate deste estudo é tarefa que realizo apenas formalmente, uma certeza

se impôs nesse percurso: é impossível finalizar! O diálogo com as crianças e o enfoque

priorizado me permitiu pensar sobre as possibilidades da linguagem literária não apenas no

processo de alfabetização e letramento, mas na formação e na vida dos sujeitos. Registrar

as histórias narradas pelas crianças, seus experimentos poéticos e suas falas e opiniões

sobre a aprendizagem do código escrito, além de indagá-las cientificamente, constituiu-se

numa oportunidade de refletir sobre o ato de ler, escrever e atribuir significados, sobre o uso

da escrita e da leitura na conquista da autonomia e da autoria; sobre as relações entre

sujeito e escola e da escola com a linguagem literária e outras questões não menos

importantes.

A urgência em aprofundar as reflexões acerca da alfabetização e do letramento

da criança, e especificamente da contribuição literária nesse processo, resulta da relevância

que a linguagem assume na constituição dos sujeitos. A literatura se apresenta como opção

privilegiada pelas características peculiares que possui e que falam diretamente ao ser ou

fazer-se humano. Enquanto patrimônio cultural ela é assimilada e transformada por nuances

pessoais, pela vontade de pensar e pelo desejo de conhecer e criar que são inerentes aos

sujeitos. Ao interrogar-me sobre o porquê da literatura desde os primeiros momentos da vida

(escolar) da criança, percebi que os textos literários não esgotam facilmente as

possibilidades. O seu exercício coloca em suspensão o mundo do leitor (e do ouvinte no

caso das crianças que ainda não sabem ler) para “transportá-los” para um outro mundo no

qual podem reconhecer os limites do próprio universo e (re)construir pontos de vistas,

valores e padrões de comportamentos por identificação ou por contraste, mas

principalmente “alcançar formas de prazer intraduzíveis ou difíceis de traduzir por meios

lingüísticos” (BRANCO, 2005, p. 103). Portanto, a leitura e a narração dos textos literários

na sala de aula (ou fora dela) compõem/ampliam o acervo pessoal de histórias, poesias,

ditos, pelos quais uma criança começa a perceber modelos de escrita e vai aprimorando o

seu critério de escolhas.

No processo de alfabetização e letramento, a linguagem literária desempenha

múltiplos papéis e o principal deles é de dar continuidade à composição do repertório que

vai se tornando cada vez mais amplo e significativo e com o qual a criança aprende a

dialogar, exercitando a fantasia e a imaginação. Ouvir, ler ou narrar uma história é apropriar-

se de um enredo que possibilita à criança oportunidades para que ela possa extrair, à sua

maneira, explicações que compõe o pensar humano, caracteristicamente ininterrupto. O

encantamento produzido pela obra ficcional captura a atenção e a emoção do ser humano,

adulto ou criança, aprisionando o tempo e o espaço para fruir uma história fantástica e

96

representam momentos extremamente criadores de significado e de conhecimento; de

elaboração e re-elaboração individual e social. Evidentemente, o prazer e o encantamento

que podemos vivenciar “não vem do significado psicológico de um conto (embora isso

contribua para tal), mas das suas qualidades literárias – o próprio conto como uma obra de

arte”. (BETTELHEIN, 1980, p. 20). Além disso, “os contos de fadas, como todas as

verdadeiras obras de arte, possuem uma riqueza e uma profundidade variadas que

transcendem de longe o que mesmo um mais cuidadoso exame discursivo pode extrair

deles” (idem, p. 27).

Os contos de fadas e outras histórias estão presentes na vida de muitas pessoas

e grande parte delas começa a ouvi-las ainda no berço, ou antes. As crianças que

participaram desta pesquisa deixaram muito claro, quando elas chegam à primeira série já

dispõem de um acervo pessoal e querem compartilhá-lo. Tanto quanto ouvir ou ler, elas

querem/precisam exercitar a oralidade, fazer a narrativas das suas histórias como forma de

revelar e re-significar suas idéias, seus valores, sua cultura; e de aprender a exercer autoria,

mostrando-se capaz perante o outro.

Ao trazer as histórias narradas pelas crianças para o centro da reflexão, percebi

que elas revelaram não apenas uma reprodução estática das versões que têm acesso. O

Vitor, o Josué e o Thiago, por exemplo, contaram “a mesma” história: O João e o pé de

feijão. Mas, cada criança ao narrar a “sua” apresentou-a de forma personificada, apontando

elementos modificadores com diferentes caminhos, finais múltiplos (felizes ou não) e nas

quais foi possível perceber um sujeito apropriando-se, protagonizando e assumindo em

muitos momentos formas de co-autoria. Foi possível observar que ao usar a imaginação, a

criança “trabalha subvertendo a ordem estabelecida, pois, impulsionada pelo desejo e pela

paixão, ela está sempre pronta pra mostrar uma outra possibilidade de apreensão das

coisas do mundo e da vida” (JOBIM E SOUZA, 1994, p. 149). É também nesse sentido, que

a inserção da criança na esfera letrada da literatura “representa o conhecimento de novos

modos de compreender a realidade, de organizá-la, abrindo-lhe as portas para conteúdos de

um novo campo de saber” (GOULART, 2005, p. 46).

Em relação à poesia, a experiência com as crianças foi surpreendente. No ouvir

o texto poético, o silêncio cauteloso, as emoções demonstradas, as risadas sem pudor... Ao

imitar o poeta e tentar fazer a sua obra a oportunidade de brincar com as palavras, como se

brinca com retalhos ou outros materiais residuais... Não tínhamos combinado, mas não

havia regras, ou melhor, uma única: todo texto criado seria chamado de poesia! Sem a

intenção de conceituar ou categorizar o objeto poesia, curtimos juntos essa experiência!

Uma experiência aparentemente simples, mas que abarca dimensões lingüísticas, estéticas

e poéticas nas quais as crianças “não precisam despojar-se de seus conhecimentos,

linguagens, constituídas no cotidiano dos seus grupos sociais de origem” (GOULART, 2006,

97

p. 454), mas usam esse acervo para produzir outros conhecimentos, linguagens, culturas. A

criação de poesias pela criança além de revelar primor estético, sublinha a autoria e traduz

“a concepção de criança como sujeito ativo, com vez e voz, que, deixando marcas, fazendo

história e ressignificando seu cotidiano mostra-se cidadã, hoje” (LEITE, 2004, p. 35).

Pude perceber que o diálogo entre a poesia e a criança se reveste de fantasia,

de imaginação e de ludicidade. Quando brinca com as palavras, a criança imprime-lhe um

sentido que não está na busca de resultados objetivos, mas que pode representar e ir além

da realidade vivida ou imaginada, ou seja, ela produz significados e formas para

compreender e re-organizar essa realidade. A partir dessa ótica, as poesias passam a ser

vistas “não numa racionalidade lógica, mas na sofisticação da palavra como signo entre

signos, do texto como palco de construção de significados” [grifo meu] (GOUVEA, 2007, p.

117). Além disso, a descoberta de si mesma pela linguagem e o compartilhamento das

experiências pessoais na produção do texto poético possibilitam à criança re-tratar a

condição humana com seus dilemas e mazelas pela lente da ficção. Um exemplo disso é a

poesia do Rodrigo que universaliza uma experiência peculiar quando fala do “menino que

sou eu... (como muitos outros) que vai à escola, que os dois avós morreram... (como muitos

outros avós que já morreram)” ou do Bruno relatando a experiência com a morte, lembrando

sua cachorrinha. As crianças falam poeticamente delas mesmas, mas falam dos muitos

“outros” presentes em cada um e nesse movimento retiram o olhar do seu ego-centro para

poder olhar também o outro. Esses aspectos tornam-se relevantes porque estão

diretamente relacionados aos sentimentos e as emoções da criança, embora na escola,

muitas vezes, fazemos de conta que eles não existem.

Interpretando a manifestação do desejo das crianças em poetizar suas

experiências cotidianas, faço das palavras de Ricardo Azevedo (2005) as minhas, para dizer

que nós precisamos criar espaços (na escola) para inferências mais amplas, nas quais “a

existência humana [seja apresentada] na sua complexidade, como um processo subjetivo

inevitavelmente contraditório (fazemos projetos futuros e sabemos que vamos morrer)” (p.

31); dizer ainda que nós, os seres humanos somos aprendizes, independente da faixa etária

e que é muito difícil “por vezes impossível, separar realidade e ficção e o que chamamos de

‘realidade’ e uma construção sócio-cultural” (idem). Em cada sujeito-criança presente na

sala de aula, ou dela excluída, está a vida repleta de idéias, desejos, possibilidades e

potencialidades, mas também de conflitos e contradições. Nos espaços de interlocução,

com o narrar das histórias e o fluir das vivências eu acredito estar uma das formas de

transformar o processo de aprendizagem numa experiência mais significativa, tanto

individual quanto coletivamente.

Ao re-afirmar a literatura como um instrumento expressivo no processo de

formação humana e defendê-la como parte integrante nas diferentes etapas da educação e,

98

obviamente incluindo o processo de alfabetização e letramento, não quero em absoluto

restaurar uma proposta de pedagogização, principalmente da literatura infantil. Até porque

segundo Regina Zilberman, enfatizando a autonomia da literatura (infantil) em relação aos

fins pedagógicos, podemos perceber que os elos entre os dois campos se reatam por outros

caminhos e, pela função formativa da literatura, o próprio livro se converte em “meio de

cultura e questionamento, [quando] liberto de uma inclinação doutrinária [...] incrementa no

leitor a capacidade de compreender o mundo e investigá-lo” (1998, p. 30). Dessa forma, o

próprio manuseio do objeto livro, favorece a aquisição e domínio da escrita, porque além de

despertar o interesse pela leitura permite a apropriação das características da língua escrita,

das relações existentes entre a forma lingüística e da representação gráfica.

Evidentemente, pela especificidade que possuem os textos literários, eles não

visam o deciframento da escrita, esse fato é mais uma decorrência do que um efeito

desejado. Porém “pela relação afetiva e intelectual que fundam com o leitor e pelo

convencionalismo de sua linguagem, os textos literários favorecem o processo de

alfabetização” (SARAIVA et al, 2001, p. 85) promovendo o desenvolvimento da consciência

lingüística na criança pelo acesso às convenções da língua escrita. Todavia, um dos

aspectos de maior relevância não está nesse fato, mas sim na ampliação do universo

imaginário da criança, pois ao ler ou ouvir uma história fictícia ela “entra nesse jogo, pondo

de lado sua realidade momentânea, e passa a viver imaginativamente, todas as vicissitudes

das personagens da ficção [...] aceita o mundo criado como um mundo possível para si”

(AGUIAR e BORDINI, 1993, p. 14). Nesse sentido, quando aguça a imaginação da criança

afastando-a da realidade imediata, a literatura possibilita uma penetração mais profunda da

própria realidade.

Como o processo de alfabetização e letramento é também o momento em que a

criança está construindo maneiras de agir e estar na escola, é essencial que ela possa

exercitar a imaginação, criando a partir das suas experiências e usufruindo (intensamente)

da linguagem literária. A fantasia pode representar para a criança uma das formas de

atenuar o desconforto imposto aos pequenos (revelado nas falas das crianças, nesta

pesquisa) pela pressão de professores, pais e da própria sociedade (letrada) no sentido da

cobrança imediata do uso competente do código escrito. Mais do que suavizar a tensão que

a criança sente, é possível pensar a experiência da aprendizagem do código escrito numa

perspectiva lúdica, viva e dinâmica, na qual seja possível narrar ou recontar histórias vividas

ou imaginadas, individuais ou coletivas, tecidas na linguagem e que colocam o sujeito em

constante confronto com suas próprias criações.

Reconhecendo que o nosso modelo educacional tem inibido o pleno

desenvolvimento dos sujeitos e afastado do cotidiano das salas de aula tanto a emoção

quanto a imaginação; um modelo no qual a literatura foi (e ainda é em muitos contextos)

99

tratada como um mero instrumento didático; e tem produzido um número considerável de

alfabetizados que se consideram incapazes de utilizar o código escrito (e os diferentes

saberes) de forma eficiente em seu beneficio, e da sociedade; talvez por ser um modelo que

atua prioritariamente na perspectiva de um homem constituído pelas atividades utilitárias ou

pelas necessidades obrigatórias. Essa forma de conceber o sujeito-aluno está presente em

cada espaço educacional e longe de ser superada. A construção de uma outra perspectiva

de educação requer a superação da visão unilateral do homem com a abertura de espaços

para o desenvolvimento dos múltiplos aspectos que o compõem, atuando na construção e

elaboração não apenas do conhecimento, mas da própria identidade humana numa

realidade social concreta.

Quanto ao código escrito, é insuficiente aprender a ler e escrever no sentido

restrito das palavras é muito mais importante que as crianças aprendam o que a escrita

pode fazer com elas ou o que elas podem fazer com a escrita. Em relação à leitura

Bettelhein e Zelan (1984, p. 234) garantem que “as palavras serão aprendidas facilmente e

depressa se estivermos interessados naquilo que elas significam para nós”.

Uma criança percebendo o papel social de aluno a ela atribuído olha ao seu

redor na busca de dominar letras, palavras, testa habilidades e capacidades no uso dos

signos lingüísticos, utiliza diferentes ferramentas de que dispõe e começa exercitar a escrita

utilizando principalmente nomes próprios, seus e de familiares, dentro e fora da escola. Ela

não escreve ou não tenta escrever qualquer palavra, mas sim àquelas carregadas de

conteúdo afetivo. Como sujeito social, a criança traz experiências e conhecimentos, os quais

utiliza como ponto de partida para a aprendizagem. Ela não pode ser despojada desse

repertório para aprender outros conhecimentos, precisa, sim, da oportunidade para

estabelecer diálogos frutíferos entre a (sua) linguagem cotidiana e a linguagem padrão que

organiza o espaço escolar.

“Você quer escrever outra poesia que eu vou dizer pra ti?” (BRUNO)73. Uma

pergunta encantadora principalmente por ser posterior à pesquisa! Fazer o papel de escriba

dos enunciados das crianças foi uma sensação de lidar com algo íntimo e precioso – para

muito além da construção de palavras e frases sem cor, som ou sabor... Penso que a

mediação do processo de alfabetização e letramento carece de muita sensibilidade! E,

sintetizando a questão norteadora dessa pesquisa eu poderia afirmar que existem duas

formas em que a leitura, a escrita e a aprendizagem de ambas pode ser experienciada: “ou

como algo de grande valor prático, importante se uma pessoa quiser ir adiante na vida; ou

como fonte de um conhecimento ilimitado e das mais comoventes experiências estéticas”

73 Bruno Teixeira da Rosa.

100

(BETTELHEIN & ZELAN, 1984, p. 50). Depois de conversar com as crianças, eu perguntaria

não dá para escolher as duas?

A constituição da linguagem escrita pela criança é parte da constituição geral da

linguagem e adquirida por meio da contínua interação com o código escrito, no qual as duas

modalidades (oral e escrita) se inter-relacionam promovendo a ampliação de ambas. Nesse

sentido, um dos desafios para o professor, é pensar formas de mediar essa relação não

sobrepondo, ou valorizando mais uma modalidade em prejuízo da outra – mas possibilitar à

criança o exercício pleno das duas modalidades. Precisamos ouvir as crianças nos seus

experimentos com a linguagem desfrutando com elas o prazer de reconstituir e

compreender suas experiências. Nas conversas que tive com as crianças pude perceber o

quanto elas se envolvem emocional e cognitivamente em narrativas orais de histórias ou

poesias feitas por elas ou não e o quanto relacionam essa atividade à sua vida e contexto.

Textos aparentemente simples podem ter para a criança um valor incalculável. São

processos intensos de aprendizagem e de atribuição de significados entrelaçados com a

vida da criança.

Embora retire tais considerações das vozes desses meninos e meninas,

reconheço, ainda, que essas narrativas, bem como as vozes paralelas e simultâneas que

foram capturadas (e aquelas que deixei escapar) têm muito mais a dizer e suscitam

reflexões que extrapolam qualquer tentativa bem comportada de teorização e fechamento.

Principalmente levando em conta que o tempo de permanência em campo foi relativamente

pequeno e a análise realizada é uma aproximação primeira com a questão da pesquisa. Ou

seja, o que foi possível trazer nessa reflexão constitui apenas indícios do que a interação

constante com a linguagem literária pode possibilitar à criança no processo de alfabetização

e letramento. Assumo minha limitação, ciente de que deixei de lado pontos importantíssimos

a serem ser retomados a qualquer momento por pesquisadores que queiram e possam me

auxiliar nessa tarefa de ouvir o que as crianças têm a dizer, principalmente sobre a

aprendizagem da escrita e da leitura e da contribuição da literatura nesse processo. Com

isso poderemos projetar uma escola que colabore de forma mais efetiva na formação de

sujeitos-leitores-autores – capazes de partilhar idéias e compreender o outro, numa

constante troca.

A noção de letramento foi trazida para o centro do debate e permanece como um

amplo foco de discussões e elaboração teórica que evidencia um movimento vivenciado nas

sociedades letradas pela necessidade de ampliar o conceito de alfabetização, na

perspectiva de um processo crítico e autônomo da leitura e da escrita. Pois, a simples

apropriação da leitura (decodificação) e da escrita (copiação/reprodução) pouco pode

auxiliar a formação do sujeito, menos ainda proporcionar alterações na condição de

indivíduo nas dimensões sociais, psíquicas, lingüísticas, cognitivas. A discussão sobre o

101

letramento é ampla, resultando em conceitos pluralizados que desencadeiam em modelos

diferenciados, como o modelo autônomo e o modelo ideológico. O modelo autônomo de

certa forma prevê uma perpetuação da estrutura social vigente, enquanto o modelo

ideológico percebe as implicações da e na prática social e objetiva a formação de um sujeito

que possa interferir em seu meio – a escolha é também política. Mas, não podemos ignorar

que é “função e obrigação da escola dar amplo e irrestrito acesso ao mundo da leitura, e isto

inclui a leitura informativa, mas também a leitura literária; a leitura para fins pragmáticos,

mas também a leitura de fruição; [...]” (SOARES, 2005, p. 33). Nas palavras de Baron

(2001, p. 71) reforço “a importância de trabalhos com a pintura, a música74, a fotografia, a

contação de história, a escuta o olhar atento”, pois o processo de alfabetização com

letramento não se conclui no primeiro e no segundo ano do Ensino Fundamental, mas “diz

respeito às várias formas de leitura que acompanham o movimento de subjetivação ao longo

da vida” (idem). Quando penso no aluno leitor e autor, percebo que este se constrói em

interação com um mediador que assume a autoria das estratégias utilizadas em seu fazer

pedagógico e que compreende a incompletude do conhecimento e do próprio ser humano.

Como professora (e alfabetizadora) que não consegui deixar de ser, apesar da

tentativa que fiz me afastando (fisicamente) da sala de aula para olhar o problema por outro

ângulo, quero aprofundar o olhar para a criança, não apenas como o sujeito projetado

contextualmente, mas dialogar com ela sobre suas percepções e imaginações em estado de

potência. Reconheço que a sociedade moderna nos impõe uma dinamicidade galopante

com pouquíssimo tempo para apreciar seja um texto literário ou qualquer outro objeto

repleto de Vida. Como observa Walter Benjamim (1994, p. 206), “o homem de hoje não

cultiva o que não pode ser abreviado”. Podemos facilmente nos acostumar a fazer

exercícios automatizados sem reflexão em todas as direções e atropelarmos as crianças... É

possível romper com a rigidez e permitir momentos fecundos de interiorização e atribuição

de significados subjetivos e intersubjetivos? Estamos dispostos a fazer isso? Ouvir uma,

duas, três vezes a “mesma” história com uma disposição inaugural? E aprender com isso?

“A pesquisa já acabou?” Com a Lara temos a impressão de que tudo acaba

muito rápido! Ah! Essa foi uma reclamação das crianças: pouco tempo! O tempo da escola é

breve! Aliás, estamos abreviando muita coisa, a linguagem é uma delas, que digam os e-

mails ou as mensagens de telefone móvel. Qual o lugar da história não contada, da

experiência não intercambiada ou da poesia não desfrutada? No mundo atual predomina

uma forte tendência pelo imediato e nesse contexto a experiência sensível vai aos poucos

sendo aniquilada e talvez um dos desafios para a escola dos tempos modernos, afetada que

é pela tendência da utilidade, rapidez e abreviação, o de possibilitar experiências lúdicas e

74 As crianças falavam muito de música, queriam cantar! Qual o papel da música na aprendizagem... Outra pesquisa!

102

encantadoras aos seus alunos. É preciso projetar sujeitos sensíveis, auxiliar na busca do ser

poético que nos habita, ainda que em possíveis fragmentos de tempo/espaço. Nesse

fechamento necessário e simbólico, sublinho um desafio para professores-pesquisadores:

problematizar as situações que envolvem o cotidiano escolar, não com um olhar

simplificador, mas para (se for preciso) ter a coragem de deixar para trás algumas certezas,

colocando-se de forma aberta ao diferente a partir de um exercício de reflexão constante. É

preciso olhar cada dia de aula como um novo e inaugural, como ele é! Em que não apenas o

professor, mas cada aluno é um outro acrescido das experiências anteriores, afinal, “não

podemos banhar-nos em um mesmo rio por duas vezes”. A célebre frase pronunciada por

Heráclito precisa chegar à escola e banir a impressão de que há muito tempo às coisas vêm

acontecendo sempre da mesma forma.

No momento em que uma criança diz quero contar uma história – ela quer muito

do que isso: quer falar e ser ouvida, quer principalmente revelar sua forma de ver e estar no

mundo. A disposição dos adultos para ouvi-la está relacionada à concepção que se tem

acerca do ser criança. O ambiente das escolas não favorece o diálogo, é quase sempre

muito formal e não está projetado para que as crianças possam expressar “seus anseios,

alegrias, medos, angústias, prazeres, enfim, suas vidas. Há pouco espaço e tempo para o

diálogo entre educadores e educandos, para ambos narrarem as suas experiências. A

linguagem está encarcerada, cristalizada, fossilizada” (ALGEBAILE, 2005, p. 122).

Quanto à contribuição da linguagem literária não apenas no processo de

alfabetização e letramento, mas na formação e na vida das pessoas, podemos sentir que “o

poder que as histórias têm de atrair e manter a atenção dos ouvintes é evidente” (EGAN,

2007, p. 24), por algumas vezes presenciei os olhares furtivos e a aproximação disfarçada,

dos responsáveis que chegavam para buscar suas crianças e percebiam que uma história

está sendo lida/contada... Eles tentavam “roubar” um pedacinho! Ao ouvir, registrar e pensar

sobre as narrativas e os experimentos poéticos que recebi como um presente destas

crianças, percebi ainda que histórias são elementos vivos que vão se agregando de maneira

quase imperceptível à vida das pessoas. Sem que nos demos conta, algumas delas

interferem de maneira significativa, desvendando potencialidades latentes, transformando e

sendo transformadas por nós; até porque como afirma Jaqueline Held (1980, p.18) “uma

vida humana é uma ficção que o homem inventa à medida que caminha”.

103

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110

ANEXOS

111

Anexo 1 – Registro memorial

AS MINHAS MEMÓRIAS E OS CAMINHOS DA PESQUISA

Criei esse espaço para confidenciar uma pequena parte da minha

experiência, na escola, por compreender que o entusiasmo e a opção pela temática foram

assinalados pelo ingrediente que me perseguiu como uma cortina invisível – trata-se das

recordações da infância e de uma vida vivida praticamente “dentro” da escola. Nessas

lembranças estão as marcas de uma experiência que, numa concepção não-linear de tempo

se entrecruzam passado, presente e futuro e permitem entrever no agora a atmosfera que

dela emana – são partes de um aprendizado. Lanço esse olhar para poder re-conhecer não

apenas as trilhas pelas quais passei, mas principalmente para poder compreender as

veredas que a própria pesquisa tomou. Se o diálogo com as crianças possibilitou-me evocar

essas lembranças e reavivar na memória histórias fictícias que me encantaram naquela

época, eu me permiti relatar alguns fragmentos dessa experiência, compartilhando os

motivos (pessoais) pelos quais cheguei ao tema de pesquisa. Além de que, essa também foi

uma forma de re-visitar minha própria infância, agora com um olhar adulto, desprendendo as

significações que possivelmente mereçam ser partilhadas.

Começo lembrando da literatura e não posso dizer que o acervo a que tive

acesso na escola75 da minha infância fosse diversificado. Muito pelo contrário, posso

rememorar quase todos os exemplares de que dispunha por ser um número extremamente

reduzido. Em compensação, tive um professor de séries iniciais que foi um contador de

histórias que, além de narrar “as suas”, provocava seus alunos para criarem narrativas

inéditas e partilharem com a classe. Uma das tarefas que ele freqüentemente propunha era:

invente uma estória76. Dessa forma, a literatura fez parte do meu processo de aprendizagem

e acredito que foi um dos fatores que me possibilitou estabelecer uma relação prazerosa

com a escola, com a escrita e com o conhecimento, um pressuposto que foi intuitivamente

incorporado à prática pedagógica.

Vivenciei minha infância em uma comunidade77, localizada muito próxima do “pé

da serra”, onde havia78 uma escola e o meu pai foi quase o único professor que esta

comunidade conheceu durante vinte e oito anos. Fui “nomeada” sua assistente desde muito

75 Escola Isolada Estadual do Rio d’Areia do Meio. 76 Nessa época havia uma diferenciação do termo estória e história. A primeira se referia a ficção e a segunda supostamente a fatos verídicos. 77 Esta comunidade chama-se Rio d’Areia do meio, situada na zona rural do município de Canoinhas – SC, junto à Serra Santa Emidia, onde existe uma capelinha, fundada pelo Monge João Maria – ligado a guerra do Contestado. Nesse local, o referido monge é considerado santo. 78 Existe apenas o prédio.

112

cedo, auxiliando-o em algumas tarefas. Era uma escola multisseriada e a experiência com a

literatura, apesar do acervo modesto, foi significativa. Havia alguns livros de literatura infantil

que tínhamos a oportunidade de ler. O professor contava/lia histórias (as clássicas: Branca

de neve e os sete anões, Chapeuzinho vermelho, A bela adormecida, entre outras) para os

alunos. Ele nos incentivava a criar outras histórias, a compor versos e fazer rima... Lembro-

me que essas tarefas eu realizava com prazer e, quando fazia a leitura para a classe,

reformulava algumas idéias que me ocorriam após concluir o texto. O professor e a classe

ouviam atentos cada narrativa, comentavam e complementavam, estivessem elas escritas

ou não.

Entre as histórias que li e ouvi naquela época, lembro-me de algumas que

tiveram seu enredo entranhado na minha memória: a história do Fogão de ferro que

abrigava um príncipe na floresta e que a filha do rei encontrou e tinha como missão salvá-lo.

Mas como ela tinha medo de voltar na floresta, mandava a filha do lenhador, do guardador

de porcos. Finalmente resolve ir pessoalmente libertar o prisioneiro, descobrindo um

príncipe encantado, por quem se apaixona ao mesmo tempo em que ele é lançado para um

reino muito distante e ela começa sua aventura em busca do amado [...]. Pedro da

Montanha79, na pele de um personagem jovem, bonito, rico, educado namorava Maria

Helena, mas durante um baile ocorre um assassinato e ele é acusado de ser o assassino.

Resolve fugir levando apenas o seu papagaio, um maço de fósforos e uma semente de

milho, acidentalmente escondida no bolso. Refugiado numa montanha, durante uma noite

de tempestade, a única entrada que dava acesso ao local em que ele se encontra

desmorona e ele fica preso, vivendo por muitos anos afastado da sociedade e com

saudades da amada, sua aventura é emocionante [...]. Outra história que marcou muito a

minha infância foi Braz e a primeira comunhão, um livro em preto e branco, que apresenta

uma das novelas da Condessa de Ségur e me fez banhar em lágrimas ao percorrer cada

página daquela obra. Ganhei este de livro de presente quando cursava a terceira série do

Ensino fundamental. Cheguei em casa abri o livro e literalmente entrei nele. Eu não podia

parar... Anos mais tarde encontrei um exemplar, levei para casa!

Iniciei meu trabalho como professora na mesma escola que estudei. Era uma

escola de difícil acesso, então fui contratada muito antes de estar habilitada para a função.

Recordo-me de um começo quase desprovido de teorias de ensino ou concepções de

aprendizagem, com uma bagagem relativamente pequena, composta essencialmente de

participação e observação de uma trajetória de interações. Interações vividas num espaço

em que o outro (aluno) era considerado sujeito capaz de aprender e de criar! Influenciada

79 Sobre Pedro da Montanha, estou até hoje procurando um livro chamado: O sorriso do anjo branco que dá continuidade a história que conheci na infância.

113

que fui por esse quase único modelo, iniciei meu trabalho como professora de séries iniciais.

Quase duas décadas separam-me desse primeiro momento.

O percurso em busca do entendimento acerca da infância teve inicio mais

precisamente em 2006, no curso de mestrado, especificamente na disciplina Infância e

Produções Culturais, apesar de trabalhar com crianças desde 1988. Essa foi uma

oportunidade de re-pensar alguns conceitos nos quais apoiava a prática pedagógica, fato

que me levou (inevitavelmente) a rever e reformular o projeto de pesquisa. A partir das

leituras e debates na disciplina, a intenção de pesquisa assumiu uma configuração

diferenciada, pois na elaboração inicial eu me propunha a pesquisar o mesmo problema,

porém, dialogando com os adultos envolvidos no processo para falar da e sobre a criança.

Reformulei a base do estudo invertendo a posição da criança que passou de objeto, para

sujeito participante da pesquisa. A decisão de ir a campo dialogar com as crianças se

consolidou no segundo semestre de 2006, no curso da disciplina Seminário de pesquisa:

investigação com crianças, que foi apoiada pelo orientador. Essas disciplinas me

proporcionaram o encontro teórico com os pesquisadores da infância que formam a base do

estudo.

Outro fator importante nessa trajetória foi a participação no grupo de estudos

sobre o pensador alemão Walter Benjamim. Ali, entre outros textos, entrei em contato com a

obra Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação, que traz uma visão de infância

ainda pouco discutida pela nossa sociedade atual.

Antes de realizar a pesquisa de campo, busquei preparar as bases para o estudo

no cotidiano da sala de aula. Como pesquisadora, procurei ajustar o foco de análise atuando

na alfabetização, uma vez que este é o meu campo de ação, embora sem o distanciamento

necessário para uma análise segura nesse período, me reporto à fala de Pedro Demo80

sobre o professor-pesquisador. Para o autor, a pesquisa precisa ser desmistificada, não

pode ser considerada pesquisa somente aquilo que demanda sofisticação, mas é preciso

identificar a alma da pesquisa que está na capacidade de questionar inteligentemente a

realidade e em cima disso fazer uma elaboração própria. Percebo que depois da

caminhada teórica não posso mais entrar numa sala de aula apenas como professora – é a

pesquisadora que insiste em estar presente com o olhar sensível para aquilo que não era

possível ser visto em passado muito recente.

A composição do sujeito-pesquisador, o estranhamento diante do familiar e a

base para o estudo de campo foram consolidados ainda no exercício da sala de aula e –

apesar das condições da presença física (como professor) ser desfavorável para uma

análise distanciada, num local que está carregado de regras e valores – o estudo foi se

80 A citação do autor foi extraída de uma conferência gravada em fita VHS e não possui data.

114

delineando na prática pedagógica. O diálogo com meus alunos (crianças da primeira série

em 2006) não pode ser aqui explicitado, uma vez que fazem parte de um universo escolar e

não me pertencem. Eticamente, não posso revelar falas, histórias, criações... Ah! Mas elas

ficaram em mim... E como contribuíram esses atores e autores para fortalecer o propósito de

dialogar com o sujeito-criança e ouvi-lo no seu desprendimento de querer dizer, criar e

construir com os adultos um mundo do qual elas façam parte efetivamente.

A experiência que tive na infância e na prática pedagógica com a linguagem

literária me fazia suspeitar de que se tratava de uma ferramenta de excelência na

aprendizagem, principalmente porque enquanto arte ela possui uma forma peculiar de

racionalidade. Contudo, foi mergulhando na pesquisa, ouvindo e conversando com as

crianças que pude então perceber e interpretar os significados que a literatura assume no

processo de alfabetização e letramento e principalmente como a criança a percebe. A

interação com as crianças e o diálogo sobre a percepção que elas têm da literatura, não

apenas deu consistência as reflexões que realizei como ainda me instigaram a registrar

parte da minha história reconstituindo um elo entre as diferentes experiências.

115

Anexo 2 – Modelo da autorização assinada pelas crianças e por seus responsáveis.

AUTORIZAÇÃO

Eu, _____________________________________________ , concordo em participar da

pesquisa proposta por Rosilene de Fátima Koscianski da Silveira sobre A Contribuição da

Literatura no Processo de Alfabetização e Letramento: uma Reflexão Mediada pelo Olhar da

Criança e sei que posso desistir de participar a qualquer momento, sem problema algum.

Deixo que usem na pesquisa e mantenham guardadas na UNESC as minhas falas, os meus

desenhos ou outros trabalhos feitos por mim.

________________________________ (assinatura da criança)

Eu, ______________________________________, CI no _________________, residente

______________________________________, autorizo meu/minha filho/filha

___________________________________________________ , a participar da pesquisa

proposta por Rosilene de Fátima Koscianski da Silveira , da UNESC, sobre A Contribuição

da Literatura no Processo de Alfabetização e Letramento: uma Reflexão Mediada pelo Olhar

da Criança. No período de ____/____/___ a ____/____/____. Autorizo, ainda, que sejam

feitas imagens a partir de filmadora, máquina fotográfica ou scanner dos trabalhos e

atividades realizadas, para uso da pesquisa e para fazer parte do acervo mantido pelo

Programa de Pós-graduação em Educação.

Por ser verdade, firmo o presente.

Criciúma, ________/_________/_________

(Assinatura)

116

Anexo 3 – Modelo da autorização assinada pela direção da EEB Irmã Edviges.

AUTORIZAÇÃO

Eu, (nome da diretora) responsável pela Direção da Escola de Educação Básica

Irmã Edviges, Criciúma, SC, autorizo a realização da pesquisa proposta por Rosilene de

Fátima Koscianski da Silveira, mestranda da Universidade do Extremo Sul Catarinense –

UNESC de Criciúma-SC. O projeto de pesquisa com o título: A Contribuição da Literatura no

Processo de Alfabetização e Letramento: uma Reflexão Mediada pelo Olhar da Criança será

desenvolvido com as crianças da primeira série desta unidade escolar no primeiro

semestre/2007. Estou consciente de que a mesma será realizada fora do horário regular de

aula e que a pesquisadora assume a responsabilidade em relação aos procedimentos, local

e os sujeitos da pesquisa.

____________________________________________________

Nome e assinatura da diretora

EEB IRMÃ EDVIGES – FEVEREIRO/2007