Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

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ALUÍSIO FERREIRA DE LIMA A dependência de drogas como um problema de Identidade: Possibilidades de apresentação do ‘Eu’ por meio da Oficina Terapêutica de Teatro PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO - 2005 -

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ALUÍSIO FERREIRA DE LIMA

A dependência de drogas como um problema de Identidade:

Possibilidades de apresentação do ‘Eu’ por meio da Oficina

Terapêutica de Teatro

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

- 2005 -

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ALUÍSIO FERREIRA DE LIMA

A dependência de drogas como um problema de Identidade:

Possibilidades de apresentação do ‘Eu’ por meio da Oficina

Terapêutica de Teatro.

Dissertação apresentada à banca examinadora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social, como exigência parcial para a obtenção do título de MESTRE em Psicologia Social sob orientação do Prof. Dr. Antonio da Costa Ciampa.

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

- 2005 -

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Comissão julgadora ______________________________ ______________________________ ______________________________

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“O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o

inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem

duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas:

aceitar o inferno e tornar-se parte dele, até o ponto de deixar de percebê-lo. A

segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber

reconhecer, de dentro do inferno, o que não é inferno, e preservá-lo, e abrir

espaço.”

Ítalo Calvino

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DEDICATÓRIA

In memoriam Ao meu pai, Luís C. Lima e avô Raimundo C. Lima, com quem aprendi a importância da superação das adversidades e o valor das histórias de vida.

A minha filha Stephanie Caroline, por lembrar-me a todo instante que um mundo melhor é algo pelo qual vale a pena lutar. A Kelli de Fátima Teixeira, por ter me mostrado que é possível uma metamorfose miraculosa. A todos aqueles que olhando para a criação, superação ou transgressão, conseguem enxergar os fragmentos de emancipação.

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RESUMO LIMA, A. F. (2005). A dependência de drogas como um problema de

Identidade: Possibilidades de apresentação do ‘Eu’ por meio da Oficina Terapêutica de Teatro. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Palavras Chave: Uso de Drogas, Oficinas Terapêuticas, Identidade, Psicologia

Social, Sintagma Identidade-Metamorfose-Emancipação.

Esta dissertação propõe investigar o sentido da oficina terapêutica de teatro para uma

pessoa que passou por ambulatório de tratamento da dependência química do

município de Diadema - SP. Para isso partimos da Psicologia Social e do conceito de

Identidade como categoria central de análise, propondo entender o fenômeno não

apenas no seu aspecto instrumental, mas sim, todo o contexto no qual o indivíduo

que usa substâncias psicoativas está inserido, nos conflitos da tradição vs.

modernidade, do mercado de consumo, dos diagnósticos e tratamentos; com a

proposta de apresentar uma contribuição tanto teórica, quanto política. A pesquisa foi

realizada a partir da narrativa da história de vida do participante, que foi gravada e

transcrita com o consentimento do entrevistado. Ao analisar a narrativa da história de

vida, procuramos focar os acontecimentos imediatamente antes, durante e após a

participação na oficina terapêutica de teatro, pedindo que o participante nos contasse

diversos aspectos de sua vida e não apenas aquele que levou o indivíduo a procurar

tratamento da dependência de drogas. O que mudou na sua vida familiar, social,

profissional e individual, observando como este processo se desenvolveu. A

dissertação é dividida em cinco capítulos, que abordam os diversos aspectos no qual

os indivíduos que utilizam substâncias psicoativas estão inseridos. Desse modo, o

presente trabalho tece algumas reflexões sobre a questão das drogas e da

possibilidade de mudança por meio da oficina terapêutica de teatro, assim como

oferece subsídios para discutir as Identidades Pós-Convencionais (Habermas), e as

possibilidades de emancipação na Modernidade.

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ABSTRACT

LIMA, A. F. (2005). The drugs dependency how an Identity problem: Possibilities of presentation of “Self” through Therapeutic workshop of Theater. Masters Dissertation. Pontíficia Universidade Católica de São Paulo.

Key words: Drug usage, therapeutic workshop of theater, Identity, Social

Psychology, Sintagma Identity-Metamorphose-Emancipation.

This dissertation aims to investigate the mean of the therapeutic workshop of theater

to the person who has been treated by the ambulatory of drug dependency in the city

of Diadema – SP. To do so, we start from the Social Psychology and the concept of

Identity as the central category of analysis, considering to understand not only the

phenomenon in its instrumental aspect, but, all the context in which the individual

that uses psychoactive substances is inserted, in the tradition vs. modernity conflicts,

of the market of consumption, of the diagnostic and treatments; with the proposal to

present a contribution in such a way theoretical as political. The research was carried

through from the narrative of the participant life history, which was recorded and

transcript with the consent of the interviewed. While analyzing the life history

narrative, we focused on happenings immediately before, during and after the

participation on the therapeutic workshop of theater, asking the participant to tell

several aspects of his life and not only the one who made the person search for drug

dependency treatment. What has changed in his family, social, professional and

individual life, observing how has this process developed. The dissertation is divided

in five chapters that approach several aspects in which the individuals who use

psychoactive substances are inserted. In this way, this work weaves some reflections

on the question of drug usage and the possibility of change through the therapeutic

workshop of theater, as well as it offers subsidy to discuss the Post Conventional

Identities (Habermas) and the possibilities of emancipation in Modernity.

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AGRADECIMENTOS

Este trabalho não teria sido possível sem muita paixão, apoio e amizades.

Muitas pessoas ajudaram, incentivaram e me suportaram durante este período e, é

certo que não conseguirei agradecer a todos os envolvidos neste pequeno espaço,

pois isso iria requerer uma centena de páginas; correndo o risco de parecer injusto ou

ingrato para alguns. Entretanto, não poderia deixar de agradecer algumas pessoas que

contribuíram de forma direta neste percurso, às outras agradecerei pessoalmente ao

encontrá-las.

Meu especial agradecimento dirige-se ao Prof. Dr. Antonio da Costa Ciampa

por apresentar novas perspectivas de leitura sobre a Identidade, pelas orientações

preciosas, pela amizade e confiança que foram essenciais para a realização desse

trabalho. Termino a dissertação sentindo que é apenas o começo de uma longa

jornada, desejando que nos próximos anos possa continuar contando com seu apoio.

A Meire Silva de Lima, grande companheira e incentivadora, pelas palavras

que disse antes da inscrição no mestrado e no decorrer de sua elaboração, à você

desejo toda a felicidade do mundo.

A minha filha Stephanie Caroline Ferreira de Lima, que de tão pequena talvez

não saiba o quanto significa para mim, obrigado pelas horas ao meu lado no

computador e por não desistir nunca de chamar-me para brincar contigo, a você meu

eterno amor.

Ao meu pai Luiz Cardoso de Lima (in memorian) que sonhou este momento

muito antes de eu ter nascido, minha gratidão.

A minha mãe Aparecida e a meus irmãos: Alexandre, Paulo, Thiago, Elisa,

João Victor; ao Raimundo (Ceará), Natália, Vitória e João Paulo, que acreditaram

em mim nos momentos mais difíceis.

Ao Mestre Kaor Okada pelos ensinamentos do Bushidô, pela paciência de

todos esses anos, espero um dia poder mostrar o quanto aprendi do caminho.

Ao Emerson da Costa Andrade, que me honra com sua amizade, confiança e

incentivo.

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A Bianca Mendes, pelas longas horas que passou ao meu lado na leitura e

revisão final do texto, que no futuro possa retribuir sua ajuda.

As amigas Ana Paula de Carvalho e Brendali Dias, pelas discussões

produtivas no Espaço Psiquê.

Aos amigos que conheci durante o Mestrado, Tiago Lopes, Cláudio, Eliete,

Juliana, Renato Ferreira, Nilson Netto, Nadir Lara Jr. e Geison, por sua ajuda e

amizade na jornada acadêmica e aos amigos do NEPIM-PUCSP por seus excelentes

conselhos, críticas e sugestões, em especial à Juracy de Almeida, Helena Kolyniak,

Sueli Satow, Alessandro Campos, Patrícia e Shirley Lima.

Aos professores (as): Dr. Leon Crochik, Dra. Mary Jane Spink, Dr. Raul

Albino Pacheco Filho, Dr. Salvador Sandoval, Dra. Ana Luiza Garcia, por seus

livros, textos e aulas; principalmente a Dra. Maria do Carmo Guedes que

acompanhou grande parte deste processo, ensinando a importância do pensamento

crítico, das perguntas e respostas pensadas, estando sempre presente nos momentos

que precisei.

Aos amigos do EFRS: Vilmar E. Santos, Mirian Aranda, Celso Augusto

Azevedo, Silvana Rosa, Myrna Coelho, Elaine Zingari, Sandra Maia e todos os

pacientes do Espaço Fernando Ramos da Silva que possibilitaram um novo capítulo

na minha vida pessoal e profissional.

Aos professores do Centro Universitário de Santo André, principalmente ao

Prof. Dr. Jorge Maalouf, pelas supervisões e orientações na época da graduação.

Aos professores: Dr. Odair Sass e Dr. Cláudio Bastidas pelas excelentes

colocações e sugestões na banca de qualificação e por aceitarem prontamente a

participação na banca de defesa.

Ao CNPQ , pois não seria possível realizar esta dissertação sem a obtenção de

uma bolsa de estudos.

A todas as pessoas envolvidas direta ou indiretamente na minha vida e na

pesquisa; aos que concederam o seu tempo e seus discursos para realização deste

trabalho, em especial a Lou-Lou sem a qual esta dissertação seria muito diferente.

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SUMÁRIO:

INTRODUÇÃO ........................................................................................... 3

A DEPENDÊNCIA DE DROGAS COMO UM PROBLEMA DE IDENTIDADE............ 4 O ENVOLVIMENTO DO PESQUISADOR COM O MUNDO DAS DROGAS ............................. 13

CAPÍTULO I ............................................................................................. 24

1.1 – AS METAMORFOSES DO PHÁRMAKON ............................................................... 25 TRANSFORMAÇÕES DO CONCEITO “DEPENDÊNCIA DE DROGAS” ................................... 33 O USO DE DROGAS NO BRASIL ................................................................................................... 39

1.2 – AS METAMORFOSES DO “TRATAMENTO”........................................................ 42 OS MODELOS DE TRATAMENTO DA ATUALIDADE............................................................... 51

CAPÍTULO II............................................................................................ 67

2.1 – O ESPAÇO FERNANDO RAMOS DA SILVA ......................................................... 68 AS METAMORFOSES NO PROJETO TERAPÊUTICO DO EFRS................................................ 71 OS GRUPOS DE ACOLHIMENTO .................................................................................................. 77 AS OFICINAS TERAPÊUTICAS NO ESPAÇO FERNANDO RAMOS DA SILVA...................... 78

CAPÍTULO III .......................................................................................... 82

1 - OFICINA TERAPÊUTICA: QUE OFICINA É ESSA?................................................ 83 A ARTE COMO POSSIBILIDADE TERAPÊUTICA ...................................................................... 90 A DIFERENÇA ENTRE ARTE E FAZER CRIATIVO .................................................................... 99

CAPÍTULO IV......................................................................................... 106

4.1 – A CONCEPÇÃO TEÓRICA DE IDENTIDADE DE ANTONIO C. CIAMPA.... 107 IDENTIDADE COMO METAMORFOSE HUMANA ................................................................... 110 POLÍTICAS DE IDENTIDADE E IDENTIDADES POLÍTICAS .................................................. 113

4.2 – SIMULTANEIDADE DA SOCIALIZAÇÃO E INDIVIDUAÇÃO DA IDENTIDADE EM G. H. MEAD........................................................................................ 119

O EU E O MIM ................................................................................................................................ 123 O OUTRO GENERALIZADO......................................................................................................... 127 A MATERIALIDADE EM MEAD.................................................................................................. 129

4.3 – A APROPRIAÇÃO DOS CONCEITOS DE MEAD POR J. HABERMAS.......... 132 A GUINADA LINGUISTICA E O PENSAMENTO PÓS-METAFÍSICO ..................................... 135 A TEORIA DO AGIR COMUNICATIVO ...................................................................................... 136 O MUNDO DA VIDA...................................................................................................................... 142 A CONCEPÇÃO DA IDENTIDADE EM HABERMAS ................................................................ 146 AS PATOLOGIAS DA MODERNIDADE PARA HABERMAS ................................................... 153

CAPÍTULO V .......................................................................................... 158

5.1 – A HISTÓRIA DE LOU-LOU ..................................................................................... 159 ONDE APRESENTAMOS LOU-LOU E ESSA NOS CONTA SUA HISTÓRIA.......................... 162 LOU-LOU CONTA COMO A GAROTA-MORNA PASSA A SER VISTA COMO GAROTA-PERDIDA QUANDO SE TRANSFORMA NA ANARCOPUNK .................................................... 168

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2

A ANARCOPUNK CONTA COMO SURGE A ADOLESCENTE-EXPERIMENTADORA QUE POSSIBILITARÁ SUAS PRIMEIRAS EXPERIÊNCIAS COM A PERCEPÇÃO......................... 171 QUANDO A EX-GAROTA-MORNA, QUE TINHA SE TRANSFORMADO NA ANARCOPUNK-ADOLESCENTE-EXPERIMENTADORA COMEÇA A NAMORAR E TRANSFORMA-SE NA ALUNA-REBELDE ........................................................................................................................... 179 QUANDO SURGE A VENDEDORA-DE-CACHORRO-QUENTE NA VIDA DE LOU-LOU ...... 180 O MOMENTO EM QUE A GAROTA-ISOLADA COMEÇA A ENCONTRAR OUTRA PERSONAGEM ............................................................................................................................... 183 A ANARCOFEMINISTA É SURPREENDIDA PELO RETORNO DA ADOLESCENTE-EXPERIMENTADORA ..................................................................................................................... 187 APARECE A BRUXA-DA-ILHA-DA-MAGIA NA ESTEIRA DA ANARCOFEMINISTA-QUE-NÃO-ERA-MAIS-ATIVISTA DEPOIS DO RISCO DE SE TORNAR A DEPRESSIVA-DEPENDNTE-DE-DROGAS........................................................................................................................................... 196 QUANDO APARECE MAIS UMA PERSONAGEM NA HISTÓRIA DE LOU-LOU.................. 201 O RETORNO DA DEPRESSIVA-DEPENDENTE-DE-DROGAS QUE AGORA TAMBÉM ERA LOUCA-SUICIDA ............................................................................................................................ 203 INESPERADAMENTE SURGE UM NOVO PROBLEMA E LOU-LOU MOSTRA QUE JÁ NÃO É MAIS A MESMA LOU-LOU QUE PROCUROU TRATAMENTO........................................... 213 O MOMENTO EM QUE LOU-LOU SE TORNA MÃE E MUDA SUA FORMA DE ENCARAR O MUNDO ........................................................................................................................................... 219 QUANDO LOU-LOU NOS ENSINA QUE A MELHOR VIDA É AQUELA QUE PODE SER VIVIDA ............................................................................................................................................ 220 NEM ADICTA, NEM EX-DROGADA, LOU-LOU ESÁ APENS SENDO A LOU-LOU-DE-HOJE, RENOVADA A CADA NOVO DIA ............................................................................................... 223 A LOU-LOU-DE-HOJE FALA DE PLANOS PARA O FUTURO................................................. 225

5.2 - QUANDO RESGATAMOS A HISTÓRIA DE LOU-LOU MAIS UMA VEZ, AGORA PARA INTRODUZIRMOS NOSSAS CONSIDERAÇÕES FINAIS .............. 227 5.3 – QUE POSSIBILITA DISCUTIRMOS A AMPLIAÇÃO DO CONCEITO IDENTIDADE-METAMORFOSE PARA O SINTAGMA IDENTIDADE-METAMORFOSE- EMANCIPAÇÃO.................................................................................. 232

CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................. 237

CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................... 238

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: .................................................. 245

SUMÁRIO DAS TABELAS:

Tabela 1 – Mudança referente a Faixa Etária atendida pelo EFRS............................................ 73 Tabela 2 – Mudança do Perfil dos usuários matriculados no EFRS........................................... 74 Tabela 3 – Mudança de Gênero dos usuários atendidos no EFRS.............................................. 75 Tabela 4 – Distribuição Local de usuários de drogas por sexo e substância.............................. 76 Tabela 5 – Diferenciação entre Fazer Artístico e Fazer Criativo. ............................................ 103 Tabela 6 – Tipos de Ação........................................................................................................... 140 Tabela 7 – Consciência Moral e Competência de Papel ........................................................... 151 Tabela 8 – Distorções sistemáticas da comunicação................................................................. 155

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INTRODUÇÃO

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A DEPENDÊNCIA DE DROGAS COMO UM PROBLEMA DE

IDENTIDADE

Os caminhos que levam ao conhecimento científico nem sempre se

apresentam prontos ou acabados. A trajetória do conhecimento precisa ser

construída; muitas vezes ao pensar que se está na via certa, descobre-se que

se tem de abandoná-la e recomeçar; este é o caminho da construção do

conhecimento, é o interesse de nossa razão. Esse interesse é a “identidade

da prática e da teoria; o interesse pela libertação da coerção; interesse

(prático) pela transformação do sistema social, interesse (teórico) pela

clarificação da situação que se constitui nas condições sob as quais

vivemos”1, ou seja, um questionamento crítico e criativo, mais a

intervenção prática inovadora.2

Freud entende que o indivíduo é um ser constituído a partir da sua

relação com outros indivíduos, sendo que o contraste entre a psicologia

individual e a psicologia social perde sentido quando examinada mais de

perto; isso faz com que o autor infira que toda Psicologia é Social3. Foi com

essa primeira verdade que o pesquisador entrou no Mestrado; uma verdade

que se transformou na medida em que se deparou com uma Psicologia

Social Crítica diferente das outras Psicologias; e que por sua vez era

diferente de uma Psicologia Social não crítica. Esse contato com as

diferentes ‘Psicologias’ fez com que imaginássemos que talvez hoje Freud

1 Antonio da C. CIAMPA, A História da Severina, p. 216. (grifos do autor) 2 Pedro DEMO, Pesquisa e construção do conhecimento: metodologia científica no caminho de

Habermas. 3 Sigmund FREUD, Psicologia de Grupo e Análise do Ego, p. 91.

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5

pensaria antes de sua afirmação e diria que toda Psicologia ‘deveria’ ser

social. Visto que é difícil entender a “relação entre o universal e o

particular, entre a totalidade social e a totalidade individual, e o erro é

cometido, mesmo pelos chamados marxistas, porque eles estão com o

pensamento viciado pela tradição ocidental, que é no fundo aristotélica, em

que uma coisa existe separadamente da outra”4, sem contar que as

discussões com os problemas sociais não são fáceis de serem feitas, seja

porque são desanimadoras, seja porque apontam para nossos maiores

medos, ou ainda, porque apresentam um desafio a nossa força de vontade e

imaginação no que se refere à busca de saídas na Modernidade.

Aqui você tem que entender que o universal é o particular – e não é

também – porque ele passa a ser a negação desse universal, porque se

individualizou. Por isso que a Psicologia tem um papel para

desempenhar, porque se todo mundo fosse igual, a Psicologia não faria

sentido algum.5

Da mesma forma, o mestrado possibilitou uma maior aproximação

com a filosofia e com as ciências sociais, fazendo com que sentisse a

importância da interdisciplinariedade, fortalecendo a lição apresentada por

Merleau-Ponty: “Não haverá diferença entre psicologia e filosofia; a

psicologia é sempre filosofia implícita, iniciante; a filosofia não terminou

nunca de tomar contato com os fatos”.6 É importante colocarmos que não

4 Iraí CARONE, Análise epistemológica da Tese de doutoramento de Antonio da Costa Ciampa, p.

13. 5 Ibid., p. 13. 6 Maurice MERLEAU-PONTY, Merleau-Ponty na Sourbone: resumo dos cursos: 1949-1952:

filosofia e linguagem, p. 22.

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6

queremos defender aqui a idéia que a filosofia pode se tornar psicologia,

pois isso não teria sentido, por outro lado, entendemos que esta será uma

importante aliada no trabalho que faremos adiante.

A filosofia, transformada na modernidade em especialidade, nos

parece bem equipada para responder às necessidades dos indivíduos em sua

busca particular de sentido, mas que já não pode mais preencher essas

expectativas em um mundo cada vez mais pluralista sem recorrer a um

suporte metafísico; nas condições do pensamento pós-metafísico, ela não

pode mais “contentar os filho e filhas da modernidade, que necessitam de

orientação, com o sucedâneo de visão de mundo que substituiria as certezas

perdidas pela fé religiosa ou as definições que o homem ocupa no cosmo.”7

No entanto, no que se refere às questões de identidade – quem somos e

quem gostaríamos de ser –, sabemos que “ela pode, enquanto ética, mostrar

o caminho rumo a autoclarificação racional”8, assim como na medida em

que “entretém uma intima relação tanto com as ciências como com o senso

comum e compreende a linguagem ordinária enraizada na práxis, ela pode,

por exemplo, criticar a colonização do mundo da vida que é esvaziado pelas

intervenções da ciência e da técnica, do mercado e do capital, do direito e

da burocracia.”9

O pesquisador aprendeu que pesquisar Identidade é pesquisar algo

em constante mudança; que ser pesquisador de Identidade é procurar

entender a história daquilo que se estuda e estar preparado para apreender o

7 Jürgen HABERMAS, Verdade e Justificação, p. 323. 8 Ibid., p. 323. 9 Ibid., p. 324.

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que ainda está por vir. É identificar a opressão no que está estabelecido e

observar os fragmentos de emancipação nos lugares em que aparentemente

não existem saídas. Também aprendeu a compreender a história como algo

essencial para discutir Identidade; e que isso não significa dizer que seja

uma tarefa fácil, pois sabemos que desde “o fim do século XVIII, a história

é concebida como um processo mundial que gera problemas. Nele, o tempo

é entendido como um recurso escasso para a superação prospectiva dos

problemas que o passado nos legou. Passados exemplares nos quais o

presente pudesse confiantemente orientar-se esvaneceram-se.”10 O

pensamento histórico saturado de experiência parece destinado a criticar os

projetos utópicos, ocorrendo uma desvalorização daquilo que foi feito no

passado e uma supervalorização do que é feito no presente, não levando em

conta, muitas vezes, as contradições históricas, os progressos e as

regressões vividas pelos indivíduos; assim como essas mudanças estão

ligadas a interesses econômicos e políticos.

Considerando algo mais, “num certo sentido, talvez simplificando ou

falando de forma esquemática, cabe lembrar que o mercado sempre fez

parte da chamada ordem sistêmica, cuja existência se justifica (ou deveria

se justificar) pelo atendimento às necessidades do mundo da vida, ou seja, o

sistema precisa existir para servir ao mundo da vida e não o contrário como

vem cada vez mais acontecendo, em que a própria vida é posta a serviço

dos interesses sistêmicos.”11 Portanto, o problema não estaria na “evolução,

no desenvolvimento da racionalidade, mas exatamente na falta da mesma,

10 Jürgen HABERMAS, A Nova Intransparência: A crise do Estado de Bem-Estar Social e o

esgotamento das Energias Utópicas, Novos Estudos CEBRAP, 18, p. 103. 11 Antonio da C. CIAMPA, Fundamentalismo: A Recusa do Fundamental, p. 02.

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8

que decorre da inversão de meios que se tornam fins (ordem sistêmica) e de

fins que se tornam meios (mundo da vida)”12, tendo uma íntima relação na

construção/manutenção das identidades. O pesquisador volta a afirmar aqui

a importância da Psicologia e da análise das Identidades. “A Psicologia vai

apanhar esse processo de singularização e a biografia é a grande forma de

você recuperar o processo de individuação: como eu internalizei minha

classe, como reproduzo minha classe..., a tal ponto que sou diferente de

outro burguês.”13

Ao adotar a Identidade como categoria central de análise, é

necessário também que se descreva como esta é entendida. Por enquanto

basta dizer que partimos da concepção de Identidade desenvolvida por

Ciampa, que entende toda identidade como pressuposta, “uma identidade

que é re-posta a cada momento, sob pena de esses objetivos sociais, filho,

pais, família etc., deixarem de existir”14 e que isso introduz uma

complexidade ao passo que ao ser re-posta a identidade “é vista como dada

e não como se dando, num continuo processo de identificação. É como se,

uma vez identificado o indivíduo, a produção de sua identidade se esgotasse

com o produto15”, dando a impressão que a identidade continua a mesma,

quando na realidade esta presa num movimento de mesmice. E como esses

processos não podem ser entendidos de maneira simplificada, é lícito inferir

que a auto compreensão do homem é intra-subjetiva, dele com ele mesmo,

12 Antonio da C. CIAMPA, Fundamentalismo: A Recusa do Fundamental, p. 02. 13 Iraí CARONE, Análise epistemológica da Tese de doutoramento de Antonio da Costa Ciampa, p.

13. 14 Antonio da C. CIAMPA, A estória do Severino e a história da Severina, p. 163. 15 Ibid., p. 163.

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9

e, ao mesmo tempo intersubjetiva ou social; dele com outras pessoas da

comunidade real ilimitada. E que a ‘comunicação’ está na raiz dessa tarefa.

É aquilo que pressupõe um discurso irrestrito, a vontade/liberdade de cada

um se colocar na posição do outro, a disciplina de engajar-se numa

justificação racional e a vontade de afastar a razão interesseira de modo que

o ‘melhor argumento’ vença. Seguindo a tradição da teoria crítica da

sociedade, em contraste com o pensamento tradicional, incorpora o

interesse emancipatório no conhecimento para além de sua mera aplicação

prática e utiliza a reflexividade para decidir de que modo cada interesse

promove autonomia.

Tendo apresentado essas primeiras lições aprendidas pelo

pesquisador, voltamos ao tema desta introdução: a dependência de drogas

como um problema de Identidade. Já apontando que esse não é um

problema recente; ao longo da história ocorreram diversas tentativas de

caracterizar a identidade do dependente de drogas, com o intuito de

desenvolver tecnologias que pudessem dar conta do fenômeno. No entanto

nenhuma dessas tentativas tiveram êxito, dada a pluralidade de formas de

vida na qual está inserida a pessoa que utiliza substâncias psicoativas.

De acordo com a literatura, parece existir um consenso entre os

diferentes autores no que se refere a impossibilidade de traçar uma

identidade típica para o dependente de drogas, mas isso não significa que

não existam ainda teorias que defendam a idéia da ‘identidade adicta’,

pressupondo um indivíduo com tendência inata a dependência, como é o

caso do Alcoólicos Anônimos – AA, não levando em consideração que a

identidade é metamorfose humana em busca de emancipação. Partindo da

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10

idéia de uma identidade sempre igual a si mesma, independente da

temporalidade e da historicidade e, deixando de ser a articulação entre a

diferença e igualdade. Ao ignorar essa unidade , a identidade se torna

abstrata. Isso não quer dizer que não existiram/existem teorias interessantes

à respeito da dependência de drogas, ou ainda, de seu uso como contestação

social.

Para Freud, por exemplo, as drogas têm um lugar permanente na

economia de libido. Sendo assim “devemos a tais veículos não só a

produção imediata de prazer, mas também um grau altamente desejado de

independência do mundo externo, pois sabe-se que, com auxilio desse

‘amortecedor de preocupações’, é possível, em qualquer ocasião, afastar-se

da pressão da realidade e encontrar um refúgio num mundo próprio, com

melhores condições de sensibilidade”16. Se seguirmos o raciocínio de Freud

podemos tomar como hipótese que quanto mais repressão existir na

sociedade, maior será o uso/abuso de drogas por parte das pessoas. Se isso

for verdadeiro, encontraremos um aparente paradoxo, pois o usuário de

drogas seria então uma denúncia do sistema, na medida em que tem de

buscar a satisfação humana em outras formas não institucionalizadas,

negando inclusive o principio de desempenho.

Alguns autores da atualidade vão defender que foram frustadas as

tentativas de caracterização da personalidade típica do dependente de

drogas. Para Olivenstein17 a problemática passaria pelo surgimento de uma

falha estrutural inscrita por razões ainda não esclarecidas no psiquismo do 16 Sigmund FREUD, Mal estar na Civilização, p. 27. 17 Claude OLIVENSTEIN, Destino do Toxicômano.

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indivíduo. Utilizando o referencial psicanalítico vai defender que essa falha

seria gerada por uma falta arcaica, responsável por uma vivência de

incompletude que precederia a falta imediata da droga.

Em Birman verificamos uma diferenciação entre os indivíduos que

utilizam substâncias psicoativas pela dimensão compulsiva dos mesmos;

nas palavras deste autor: “os usuários de droga podem se valer da droga

para seu deleite e em momentos de angústia, mas esta nunca se transforma

na razão maior de sua existência. Os toxicômanos, porém, são compelidos à

sua ingestão por forças físicas e psíquicas poderosas. As drogas passam a

representar, para esse grupo, o valor soberano na regulação de sua

existência.”18 Logo, não haveria uma dependência física, se não fosse a

presença da dependência psíquica. Sendo que nas toxicomanias ocorreriam

ambas as formas de dependência, tendo no caso da dependência física um

aumento crescente da dose inicialmente administrada, com possíveis

substituições por drogas mais potentes.

Também é insuficiente abordar o fenômeno das drogas sem levar em

consideração o contexto sócio-histórico no qual o indivíduo está inserido.

Seguindo essa linha de argumentação encontraremos em Bucher uma

importante contribuição. Este autor defende que a identidade do usuário de

drogas “não se deixa reduzir a uma ‘personalidade social’, enquanto

assimilação de influências externas (e normativas) culminando na

confecção de papéis sociais estáveis e integradores.”19

18 Joel BIRMAN, O mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação, p.

223. 19 Richard BUCHER, Drogas e drogadição no Brasil, p.176.

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Se utilizarmos o conceito de Identidade-Metamorfose para discutir o

problema da dependência de drogas, podemos partir de, no mínimo, dois

pontos de discussão. O primeiro se refere as questões intersubjetivas que

conotam um fetiche no uso de drogas e que atribuem a essas um poder de

dominação inevitável sobre os indivíduos; ao reconhecimento e redução dos

indivíduos que utilizam essas substâncias psicoativas a um único

personagem: o dependente; sendo que aqui encontramos outras

complexidades, na medida em que o fato dos indivíduos deixarem de re-por

esta personagem (dependente), muitas vezes não é uma garantia da

recuperação dos outros personagens perdidos/negados (pai, filho, irmão,

trabalhador etc.), aprisionando muitas vezes os indivíduos na personagem

do ‘Ex’ (ex-dependente, ex-drogado etc.), não ocorrendo portanto uma

metamorfose, enquanto mesmidade de pensar e ser. O segundo ponto de

discussão refere-se às formas de utilização das drogas, que podem conter

tanto um sentido reacionário (no fortalecimento das indústrias de bebidas,

farmacêuticas, tabagistas, ilegais etc), quanto emancipatório, na medida em

que entendemos que nem toda forma de contravenção seja algo negativo,

mas que podem apontar para necessidade de mudança na realidade vigente

e que muitas vezes desvelam as desigualdades sociais e as impossibilidades

de existência na sociedade administrada. Sendo assim, a dependência de

drogas pode, contraditóriamente, ser uma reivindicação de independência

da dependência da realidade vivida.

Page 22: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

13

O ENVOLVIMENTO DO PESQUISADOR COM O MUNDO DAS

DROGAS

O tema das drogas têm sido abordado sob diversos pontos de vista:

Psicofarmacologia, Epidemiologia, Psicopatologia, Ciências Sociais etc.,

tendendo algumas vezes a um reducionismo que descreve o ser humano

impotente perante às influências das substâncias psicoativas. Com isso, os

estudos partem sempre da influência da droga no comportamento humano,

ou ainda, da influência do mercado no consumo das drogas, porém pouca

atenção tem sido dada ao indivíduo que utiliza as substâncias e, quando esse

é visto já se têm pressupostos teóricos que lhe negam a condição de sujeito;

quando muito o encaram como alguém quase totalmente determinado por

políticas de identidade heteronomamente estabelecidas.

Ao partir da Psicologia Social para entender o sentido da oficina

terapêutica de teatro para pessoa que passou por tratamento da dependência

de drogas, o que se propõe é entender o fenômeno não apenas no seu

aspecto instrumental, mas sim, compreender o contexto no qual o indivíduo

que usa substâncias psicoativas está inserido, nos conflitos da tradição vs.

modernidade, do mercado de consumo, dos diagnósticos e tratamentos. Para

tanto, utilizaremos o conceito de identidade como categoria central de

análise, com a proposta de apresentar uma contribuição tanto teórica,

quanto política.

Sabemos que as drogas são, antes de tudo, substâncias consumidas

pelos indivíduos para alterar a consciência. Mas essas drogas são,

igualmente, mercadorias. E assim, como a “relação do homem com ele

Page 23: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

14

mesmo só é real, objetiva, por meio da sua relação com outros homens”20,

o uso de drogas sendo um objeto estranho para o indivíduo, entra em total

coerência com a lógica do capitalismo, na medida em que os indivíduos se

relacionam com o uso de drogas como algo estranho a eles, quanto mais

consomem essas substâncias, mais são consumidos por elas; logo, não é por

um acaso que a questão do uso abusivo das drogas aparece na Modernidade

como um dos maiores problemas da Saúde Pública no Mundo e

contraditóriamente é um dos negócios mais rentáveis da atualidade,

fortalecendo tanto o mercado legal quanto o ilegal. Assim, entendemos que

se as drogas, enquanto mercadorias, são usadas, consumidas, para marcar

diferenças sociais e, com isso transmitir mensagens, que moldam as

identidades, essa condição de catástrofe de proporções epidêmicas tem uma

íntima ligação com as condições do capitalismo.

Quando utilizamos o termo ‘usuário de drogas’, queremos apontar

uma categoria na qual estamos todos incluídos direta e indiretamente, mas

que por conta das questões morais acabam sendo diferenciadas entre si. Nos

referimos tanto a pessoa que fuma seu ‘baseado’ (maconha) com os amigos,

participa da ‘cervejada’ do final de semana, que usa drogas para dormir,

para lidar com a depressão, que toma o ‘cafezinho’ para agüentar mais um

turno da exploração no mundo trabalhista, enfim, falamos de nós mesmos e

ao mesmo tempo falamos daqueles que são estigmatizados pelo uso abusivo

de qualquer uma dessas substâncias.

Ao estigmatizar o usuário de drogas, a sociedade cumpre a função

divergente a que explicitamente se propõe, ou seja, ao invés de

20 Karl MARX, Manuscritos Econômico-Filosóficos, p. 119. (Grifos do autor).

Page 24: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

15

desestimular o uso da droga, reforça-o por meio do rebaixamento

contínuo da auto-estima desses indivíduos, negando-lhes o acolhimento e

a aceitação social estimulando-os a integrar-se com outros indivíduos

marginalizados por diferentes desvios e/ou estigmas, encontrando em

outros toxicômanos a sua identidade grupal.21

Embora a comparação dos dados obtidos no Brasil com os estudos

americanos demonstre que o uso na vida de qualquer droga pelo brasileiro é

em média, duas a quatro vezes menor que nos EUA22, preocupa-nos a

existência da crença de maior periculosidade das drogas ilegais, o que é

questionável dada a facilidade de acesso das drogas legalizadas; por

exemplo, em 2001 foram emitidas “121.901 AIHs (Autorização de

Internação Hospitalar) para as internações relacionadas ao alcoolismo.

Como a média de permanência em internação foi de 27,3 dias para o

período selecionado, estas internações tiveram um custo anual para o SUS23

de mais de 60 milhões de reais”24. Esse dado nos leva a imaginar que a

indústria de álcool causaria muito prejuízo ao Estado, entretanto,

considerando o arrecadamento de impostos das indústrias de bebidas, esse

prejuízo não parece ser tão grande assim; basta olharmos para o

faturamento trimestral da indústria de bebidas para entender que é um

negócio muito lucrativo. No relatório divulgado para acionistas da

21 Isabel S. AMARAL, A sociedade de consumo e a produção da toxicomania, p. 46. 22 CARLINI, E. A. et al., I Levantamento Domiciliar sobre Uso de Drogas no Brasil: estudo

envolvendo as 107 maiores cidades do país: 2001, p. 328. 23 Sistema Único de Saúde. 24 BRASIL, A Política do Ministério da Saúde para a atenção integral a usuários de álcool e outras

drogas, p. 17.

Page 25: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

16

Companhia de Bebidas das Américas – AMBEV25; do segundo trimestre de

2003 foi relatado que a empresa atingiu um lucro de R$ 468,2 milhões com

a venda de cerveja., apresentando inclusive metas para o aumento das

vendas, e é claro do consumo, para os próximos semestres.

De acordo com o “I Levantamento Domiciliar sobre Uso de Drogas no

Brasil”, realizado pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas

psicotrópicas (CEBRID) e Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP);

coordenado pela Secretaria Nacional Antidrogas (SENAD), que pesquisou

107 cidades brasileiras com mais de 200 mil habitantes: 19,4% da

população brasileira já fez uso na vida de drogas (fora álcool e tabaco);

sendo que entre essas drogas o maior índice encontrado foi do uso de

maconha (6,9%), seguido dos solventes (5,8%), dos anorexígenos

(estimulantes do apetite - 4,3%), dos benzodiazepínicos (3,3%) e da cocaína

(2,3%). Já o uso na vida de álcool foi de 68,7% e o de tabaco de 41,1%. Em

termos de dependência, a pesquisa constatou que o álcool atinge 11,2% da

população brasileira e o tabaco 9,0 %. A dependência de outras drogas

girou em torno de 1% da população, como é o caso dos benzodiazepínicos –

neste caso devemos levar em consideração que os usuários deste tipo de

substância muitas vezes não a consideram como droga –, da maconha e dos

solventes.26

Mas antes de apresentar a pesquisa propriamente dita, falaremos

sobre o envolvimento com o tema e o interesse pela pesquisa. Vale dizer

25 Resultados divulgados para acionistas da BOVESPA em São Paulo, 11 de agosto de 2003. 26 CARLINI, E. A., et al., I Levantamento Domiciliar sobre Uso de Drogas no Brasil: estudo

envolvendo as 107 maiores cidades do país: 2001.

Page 26: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

17

que o interesse do pesquisador pelos estudos sobre a identidade das pessoas

que usam substâncias psicoativas surgiu durante o período em que foi

estagiário na equipe do ambulatório de tratamento aos usuários de drogas

do município de Diadema – SP, Espaço Fernando Ramos da Silva –

EFRS27. O estágio ocorreu no período de 15 de fevereiro de 2002 a 31 de

dezembro de 2003, tendo sido executadas as seguintes tarefas na instituição:

atendimentos individuais, grupais, familiares, trabalhos de prevenção e

capacitação na temática das drogas e monitoria em oficinas terapêuticas.

Observamos neste período que os usuários28 envolvidos no

tratamento tinham uma participação constante nas oficinas terapêuticas,

sendo na maioria das vezes o único espaço frequentado por esses. Sendo

que durante os atendimentos do grupo de familiares, a mudança de

personagens destes usuários era constantemente trazidas pelos componentes

da família; pudemos verificar inclusive, que alguns familiares vinham ao

grupo informar o “abandono do paciente”, justificando que este tinha

“mudado de vida”, arrumado emprego, namorada, reconstruído

relacionamentos etc.

Observamos também, utilizando uma expressão habermasiana, a

presença de “fragmentos de emancipação” nas mudanças de vida desses

usuários; citaremos aqui como exemplo a oficina terapêutica de teatro do

EFRS, na qual, após a apresentação de uma peça teatral em um Encontro

27 O histórico e funcionamento do EFRS será apresentado no Capitulo II. 28 Termo utilizado pela saúde pública para designar a pessoa que procura e/ou faz tratamento em

unidades de saúde, para substituir o antigo termo ‘paciente’.

Page 27: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

18

Internacional29, na participação em um coquetel ao término do evento, os

usuários foram acolhidos e parabenizados como “artistas” pelos

representantes europeus e latino americanos; esses pacientes retornam na

semana seguinte propondo a mudança do nome oficina de teatro do EFRS –

“Os Recuperandos”, para “Cia. Re-Visão”, sendo também proposto para os

técnicos a apresentação de peças em outros eventos e espaços.

Esses ‘fragmentos de emancipação’ fizeram com que surgisse o

interesse em pesquisar o sentido da oficina de teatro para a pessoa que

passou por tratamento da dependência de drogas no EFRS, constatando uma

metamorfose identitária significativa depois dela e verificando que esta

pessoa reorganizou sua vida e resignificou / transformou as personagens

vividas.

A escolha do Espaço Fernando Ramos da Silva como locus de

localização de possíveis participantes para a pesquisa se deu pela forma de

tratamento da instituição, em que a permanência do indivíduo depende de

sua disposição ao tratamento proposto, diferentemente de instituições totais,

29 1º. Encontro Internacional do Programa URB-AL em Diadema – Intercâmbio de Experiências

entre países da Europa e América Latina. URB-AL – É um programa de cooperação descentralizado

da Comissão Européia, cujo objetivo envolve as políticas públicas. Baseia-se em intercâmbio de

experiências entre a União Européia e América-Latina. Os participantes deste programa se agrupam

livremente, segundo suas afinidades, ao redor de um ou vários temas relacionados com a cidade. A

cidade de Diadema, assim como outras cidades do ABC Paulista, participaram da primeira fase deste

programa. Que consiste em desenvolvimento de projetos de diagnósticos de problemas sociais, de

saúde e educação, principalmente na luta contra pobreza e desequilíbrios sociais; promoção e

proteção dos diretos humanos. Diadema, nesta ocasião, apresentou o Diagnóstico Social e

programático realizado na cidade e os primeiros resultados do projeto Educar é Prevenir, que

capacitou todos os coordenadores das escolas municipais nas temáticas: drogas e sexualidade.

Page 28: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

19

que utilizam a internação e a abstinência, como forma ideal para o

tratamento da dependência de drogas, em que é necessário que o indivíduo

abra mão de seu desejo e autonomia, passando por um período de

internação, tendo além dos atendimentos das especialidades a participação

“obrigatória” em oficinas terapêuticas.

Outro fator que fortaleceu a escolha do EFRS dentre outras

instituições de tratamento do ABC foi o fato desta instituição ter seu projeto

de criação e intervenção utilizado como objeto de pesquisa em uma

Dissertação de Mestrado em Psicologia Social da Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo – PUCSP.30

A direção do EFRS mostrou-se bastante interessada em colaborar

com a pesquisa, tendo possibilitado acesso aos prontuários, indicado

informantes e participantes potenciais para entrevista. Entre os 2494

prontuários de usuários matriculados31, levantamos os prontuários de ex-

pacientes que apresentavam em seu histórico alguma participação na oficina

terapêutica de teatro durante seu tratamento na instituição. Este processo foi

iniciado no dia 20 de dezembro de 2003 e encerrado em 15 de janeiro de

2004.

Após o levantamento de 57 prontuários de pessoas que participaram

da oficina terapêutica de teatro, faziam uso de drogas psicoativas e

obtiveram alta do ambulatório, ou abandonaram em momento de maior

30 Sérgio S. LIMA, Espaço Fernando Ramos da Silva: Um projeto de tratamento e prevenção ao

uso de drogas em Diadema. 31 Total de pacientes matriculados em 22/12/2003.

Page 29: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

20

organização pessoal; da escuta de ‘informantes’ sobre o possível

participante (os informantes foram antigos usuários, familiares de usuários e

técnicos da instituição), escolhemos um usuário que apresentasse o histórico

que apontasse para uma identidade pós-convencional.32

A escolha da oficina terapêutica de teatro entre as outras da

instituição ocorreu devido a alguns fatores; 1) ao fato desta ter sido a

primeira oficina da instituição; 2) ser a oficina na qual o usuário expõe seu

trabalho por meio do corpo, para um público que pode reconhecer ou não

sua atuação; 3) pelo seu efeito peculiar de possibilitar a mudança nas

interpretações publicamente reconhecidas, referentes ao indivíduo

estigmatizado. Este último item é defendido por Habermas que infere que

quando “uma companhia de teatro, os membros de uma universidade ou de

uma organização eclesial conseguem impor reivindicações de cogestão,

esse fato tem também, certamente, um aspecto político.”33

A pesquisa foi realizada coletando a narrativa da história de vida, que

foi gravada e transcrita com o consentimento da entrevistada – por meio de

um termo de autorização devidamente esclarecido sobre os objetivos da

pesquisa e garantido o sigilo. Estes relatos procuraram focar acontecimentos

imediatamente antes, durante e após sua participação da oficina terapêutica,

buscando que o participante nos contasse diversos aspectos de sua vida, não

apenas aquele que levou o indivíduo a procurar tratamento no EFRS. A

escolha da narrativa de história de vida como instrumento principal de

32 Esse termo será explicado no capítulo IV no qual tratamos do referencial teórico adotado na

pesquisa. 33 Jürgen HABERMAS, Para Reconstrução do Materialismo Histórico, p. 99.

Page 30: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

21

análise, ocorreu devido ao fato do método utilizado na pesquisa ter como

requisito básico estudar históricamente o que está sendo investigado, isto é,

no processo de mudança.

O interesse da pesquisa foi registrar a memória viva do participante e

compreender, outrossim, os processos de metamorfose que foram

acontecendo nos diversos setores de sua vida, novos significados que

passou a atribuir aos fatos de sua vida; como se percebe e percebe que é

visto pelos membros dos grupos que freqüenta. O que mudou na sua vida

familiar, social e profissional, observando como este processo se

desenvolveu. Ou seja, entender seu projeto de vida, o que é e o que quer ser.

Procurando desenvolver fundamentos que contribuam na elaboração de uma

proposta teórica sobre a questão da identidade como metamorfose,

utilizando como referencial teórico metodológico a concepção de Antonio

da Costa Ciampa que se expressa como o sintagma Identidade-

Metamorfose-Emancipação.34

Sabemos no entanto que mesmo com todo o esforço desprendido

nesta dissertação não será possível explorar todos os aspectos relacionados

à identidade da pessoa que utiliza substâncias psicoativas. Contudo,

acreditamos – utilizando aqui a linguagem artística – que conseguiremos

apresentar ao longo destas páginas algo que se pareça com um esboço.

Lembrando que os esboços não são quadros nem desenhos, pois estes

últimos são completos; integram todos os seus componentes e projetam-nos

para além da obra. Já os esboços são sempre incompletos, contornos

34 Ciampa propõe a ampliação da concepção identidade-metamorfose, para o sintagma: identidade-

metamorfose-emancipação no Encontro Nacional da ABRAPSO – 1999.

Page 31: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

22

parcialmente visíveis de conteúdo indeterminado. Não ditam para o artista

como este deve empregar os contrastes de tons, cores e sombras de uma

pintura. Estão abertos para serem utilizados de diferentes maneiras, a serem

redesenhados ou abandonados.

Mas isso não significa que um esboço não conte com uma lógica

interna; um esboço bem feito oferece entendimentos construtivos sobre os

problemas internos de uma tarefa artística e também quais condições são

necessárias para resolver seus propósitos. Assim, contraditóriamente, essa

indeterminação do esboço dá ao trabalho futuro uma determinação; lhe

confere um sentido de direção. Da mesma forma, a história de Lou-Lou nos

oferece elementos para pensar como um esboço pode ser a expressão de

um quadro futuro, e, como mesmo existindo em um mundo da vida

colonizado pela lógica sistêmica, as condições não estão abertas a um

sentido a priori de determinação, deixando nosso futuro em permanente

construção.

A dissertação divide-se em cinco capítulos, procurando englobar os

principais aspectos envolvidos no uso de drogas. O capítulo I aborda o

fenômeno das drogas, procurando apresentar um histórico referente ao uso

de substâncias que alteram a consciência e, como essas mudanças,

influenciadas pelas questões econômicas, trouxeram os primeiros

diagnóstico e o estigma do ‘drogado’, situando como essa problemática se

desenvolveu no Brasil. Busca-se discutir a evolução do tratamento e sua

relação com orgãos da saúde, judiciário e igreja, assim como os ‘atuais’

modelos de tratamento, apresentando a Redução de Danos e a atual Política

Pública brasileira em relação ao tratamento de drogas.

Page 32: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

23

O capítulo II apresenta o Espaço Fernando Ramos da Silva, seu

histórico desde a fundação em 1996 e as metamorfoses ocorridas na

instituição até os dias de hoje, seu modo de funcionamento e as oficinas

terapêuticas alí desenvolvidas.

No capítulo III, falaremos sobre o uso das oficinas em saúde mental

desde sua criação após a reforma de Pinel, com a Laborterapia, do declínio

desta e da ascenção da oficina artística, em que é discutida sua

caracterização e possibilidades terapêuticas.

O capítulo IV apresenta nosso referencial teórico metodológico de

análise, que com bases no Materialismo Histórico e na Psicologia Social

Crítica, traz as contribuições de Antonio C. Ciampa, George H. Mead e

Jürgen Habermas.

O capítulo V faz a apresentação de Lou-Lou, uma personagem real,

embora de nome fictício, que por meio da sua História de Vida, trará

conteúdos dos quais faremos análise, correlacionando todas as questões

apresentadas nos capítulos anteriores e discutindo a possibilidade de

entender a identidade a partir do sintagma Identidade-Metamorfose-

Emancipação.

Após este capítulo faremos nossas considerações finais que,

utilizando o que foi pesquisado, discutirá as possibilidades de prevenção e

intervenção na questão do uso de drogas na modernidade e algumas

implicações para a teoria da identidade.

Page 33: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

CAPÍTULO I

MAS QUE DROGA É ESSA? BREVE HISTÓRICO SOBRE O USO

DE DROGAS

Page 34: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

I

Na origem, (...) qualquer instituição é sempre uma solução

para um problema humano. À medida que se consolida, que

se institucionaliza, deve garantir sua própria

autoconservação. É o interesse de sua “razão”. Se,

historicamente, esse interesse não convergir com o interesse

da razão humana, torna-se, para a humanidade, irracional.

A. C. Ciampa

1.1 – AS METAMORFOSES DO PHÁRMAKON35

Fazendo uma revisão da história da humanidade, pode-se observar

que a droga se fez presente na vida cotidiana, desde as primeiras notícias de

sua existência. O homem sempre teve uma relação muito próxima com a

natureza, principalmente com as plantas que beneficiam nosso corpo, mente

e espírito.

Na Ilíada, Morfeu confere um sono agradável aos guerreiros ao tocá-los

com o caule e a cápsula de uma papoula. Alexandre, o Grande, no século

IV a.C., levou o ópio ao conhecimento dos povos do noroeste do

continente indiano.36

35 Recorremos à palavra grega Phármakon por acreditar que esta represente melhor nosso olhar

sobre as substâncias psicoativas. Phármakon é qualquer substância com que se altera a natureza de

um corpo, droga salutar ou prejudicial, pode ser tanto remédio quanto veneno. Cf. José P.

MACHADO, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, V.III. 36 Alain LABROUSSE, As drogas e os conflitos, Drogas: a hegemonia do cinismo. p. 47.

Page 35: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

26

“A história da humanidade nos ensina que o uso de drogas é apenas

um modo de vida”37; encontramos a presença de substâncias psicoativas em

toda história do ser humano, em vários contextos: social, religioso,

medicinal e até mesmo econômico; logo, sua utilização é um fenômeno que

não se limita à época atual e ao contexto sócio-cultural em que vivemos.

Tanto nas civilizações antigas quanto nas indígenas contemporâneas

as plantas psicoativas como a papoula, a maconha, a coca, a cana-de-açucar

eram/são bastante utilizados e estavam/estão ligados a rituais religiosos,

culturais, sociais, estratégicos militares, entre outros.

O chá de ópio (antecessor da heroína e da morfina) foi a bebida

símbolo nacional da China, como o café é hoje para o Brasil. O álcool nas

civilizações grega e romana era utilizado como valor alimentício e também

nas festividades, fato que ocorre até a atualidade. A folha de coca é

mastigada há séculos pelos índios da América do Sul, fazendo parte da

cultura desses povos e com grande valor terapêutico para os estados de

fadiga e cansaço.

Assim, nos primórdios da história da humanidade encontramos um

uso de drogas ligado ao contexto religioso, no qual a substância era

utilizada para atingir estados psíquicos considerados superiores, em que o

xamã, monge, sacerdote, entre outros representantes da espiritualidade

tribal, acreditavam perceber a divindade e, inclusive, atingir um estado de

alma de comunhão com ela.

37 Alfredo TOSCANO JR. & Sérgio D. SEIBEL, Dependência de drogas, p. 01.

Page 36: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

27

Toscano Jr e Seibel apontam que na Idade Média, por exemplo,

inicia-se a proibição do uso de substâncias psicoativas. Uma proibição

baseada na crença da aceitação do sofrimento como provação divina e a

transformação da droga em um produto imoral e do pecado. Da mesma

maneira:

A cafeína foi considerada intoxicante e seu uso condenado por

muçulmanos árabes. Apesar desta resistência, o uso do café difundiu-se

amplamente entre as nações árabes; passando a ser cultivado e usado

como bebida nacional. Com o café, ocorreu na Europa a mesma

resistência que com o tabaco. Em algumas áreas houve repressão contra

seu uso e foram lançados inúmeros avisos médicos sobre seus efeitos

maléficos.38

A partir do século XVIII deixa de parecer evidente que a dor

agradasse a Deus (devido ao enfraquecimento da igreja e à ascensão do

Estado) e o uso de drogas, médico e lúdico recobra sua legitimidade.

“O poder negativo do soberano, o direito de imprimir morte, é suplantado

por outro, dotado de positividade, quando o Estado governamentalizado

se dispõe a proporcionar bem-estar à coletividade. Do poder de causar a

morte, passa-se para o poder de permitir a vida. O indivíduo, percebido

pelo Estado até o século XVII como um ‘corpo-máquina’ que deveria ser

disciplinado para trabalhar sem contestar, surge aos olhos do poder

governamental do século XVIII como parte de um ‘corpo-espécie’, parte

de uma população com especificidades a serem esquadrinhadas.”39

38 Manuel M. REZENDE, Uso, abuso e dependência de drogas: delimitações sociais e científicas,

Psicologia & Sociedade, 12 (1/2), p. 146. 39 Alfredo TOSCANO JR. & Sérgio D. SEIBEL, Dependência de drogas, p. 24.

Page 37: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

28

É importante observar que o uso de drogas esteve muitas vezes ligado

(como é evidente nos dias de hoje) a interesses sócio-econômicos.

Naquela época, as drogas tinham livre circulação e eram fundamentais

para a expansão e a consolidação do capitalismo no Oriente. Sua

liberação era positiva para o Estado e o colonialismo. No século

seguinte, a coisa mudou de figura. As drogas passaram a ser proibidas,

gerenciadas, controladas pelos países por meio de legislação de saúde

pública, imigração, polícia, segurança nacional, continental e

internacional. O proibicionismo passou a ser positivo para o Estado

intervencionista.40

Um exemplo disso é a chamada “Guerra do Ópio”, que ocorre após a

substância ter se tornado a principal mercadoria de exportação das potências

européias para o povo chinês.

Com a crise econômica da China, a produção doméstica do ópio

passa a abastecer 85% do mercado interno a ponto de dominar o comércio

do ópio em toda a Ásia; O parlamento britânico resolve, então, considerar o

tráfico de ópio moralmente injustificável, fato que acabou resultando nas

duas guerras entre esses países e, na proibição do uso de ópio pelo governo

chinês, que perdendo a guerra é obrigado a pagar pesadas indenizações aos

britânicos.

A política antiópio foi, na verdade, parte fundamental da estratégia de

atuação norte-americana na Ásia: na ocupação das Filipinas, após a

guerra hispano-americana (1898), os interventores estadunidenses

40 Edson PASSETTI, A arte de lidar com as drogas e o Estado, Política e drogas nas Américas, p.

10.

Page 38: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

29

consolidaram a posse do arquipélago em grande medida através do

esforço para acabar com o comércio de ópio estabelecido pelo anterior

monopólio colonial espanhol. A falta de interesse econômico dos Estados

Unidos no comércio do ópio facilitava a defesa oficial de combate ao

tráfico, fato que, ademais, ia ao encontro do ímpeto proibicionista dos

grupos de temperança e das sociedades de supressão do vício em geral.41

O interesse econômico e político fez com que os conceitos sobre as

drogas sofressem metamorfoses ao longo do tempo, enquanto em um

primeiro momento as substâncias psicoativas tinham uma livre circulação e

eram fundamentais para a consolidação do capitalismo no Ocidente, a

liberação era positiva para o Estado. No século seguinte, essas substâncias

passam a ser proibidas, controladas pelo Estado, por meio das legislações

de saúde pública e justiça. “Aquele consumo que era mais localizado em

certos grupos culturais, em certas minorias, em certas faixas da sociedade,

passa a ser ditado não mais pela lógica dessas tradições ou pela lógica

desses grupos, mas pela lógica de mercado, do capital.”42

Na Europa do século XIX, observou-se um elevado uso do ópio sob a

forma medicinal. Portanto, as drogas que a princípio se apresentavam na

forma de produto advindo da natureza, são levadas para laboratórios e

passam por transformações, surgindo outras drogas artificialmente

produzidas, as drogas sintéticas.

41 Thiago RODRIGUES, Política e drogas nas Américas, p. 47. 42 Gilberto VELHO, Drogas, Níveis de Realidade e Diversidade Cultural, Drogas: a hegemonia do

cinismo, p. 67.

Page 39: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

30

No final da década de 1920, a produção e administração das drogas

sintéticas é legitimada pelo FDA43, que emite relatórios favoráveis à ação

dessas substâncias.

A ênfase no caráter milagroso das substâncias sintéticas, que tratavam

depressões e ‘hábitos nocivos com drogas ilegais’, eram o cerne das

campanhas publicitárias. A metadona, por exemplo, foi anunciada, no

fim da década de 1930, como a droga mais indicada para o tratamento de

opiômanos (principalmente ‘heroinômanos’); contudo, pouco tempo

depois, percebeu-se que ela não eliminava a dependência impunemente:

uma nova adição era induzida aos habituados à heroina. Era a troca de

um opiáceo com fórmula e modo de produção de ‘domínio público’ por

outro sintético e patenteado. A excitação das anfetaminas, muitas vezes

superior à cocaína, interessou aos órgãos de defesa norte-americanos e

europeus, que procuravam drogas que despertassem coragem e

disposição nos soldados.44

Na década de 1960, temos um novo período de consumo, desta vez

associada a um novo contexto (experimentação com sentido existencial e de

contestação ética, estética e política), criando um ambiente favorável para

exploração dos valores conservadores. Foram realizadas “Reuniões de

milhares de hippies em concertos de rock ou em protestos contra a Guerra

do Vietnã, mais a existência de grupos defensores das drogas psicodélicas,

como Eternal Love Brotherhood, foram assimiladas pela opinião pública

através de um filtro midiático-estatal que apresentava tais manifestações

43 FDA – Food and Drug Administration, a principal estância reguladora de drogas dos Estados

Unidos, fundada em 1909. 44 Thiago RODRIGUES, Política e drogas nas Américas, p. 64-65.

Page 40: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

31

como contestações perigosas à ordem social.”45 Esses movimentos sociais

começaram a ameaçar a ordem estabelecida, fazendo com que os

significados atribuídos a essas drogas fossem novamente questionados. O

Estado volta sua atenção para o ‘potencial revolucionário’ que essas

substâncias traziam para os indivíduos, principalmente os associados ao

crescimento individual e questionamento social. “O perigo, portanto, residia

na transformação pessoal, e na conturbação real que a contestação pontual

poderia representar. A ameaça coletiva, cristalizada em grupos

guerrilheiros-psicodélicos, como a Eternal Love Broterhood ou os

Wethearmen, era irrelevante enquanto afronta à segurança nacional, mas

poderosa como instrumento de (des)informação.”46

Estes ‘fragmentos’ referentes história do uso de drogas mostra que ao

discutir o uso de substâncias psicoativas se deve considerar três aspectos: o

indivíduo (com suas características de personalidade e história de vida), a

própria substância (com seus efeitos farmacológicos) e o contexto sócio-

cultural onde esse encontro se realiza. Pois como vimos, certas convenções

sociais, jurídicas e também interesses econômicos passaram a distinguir

entre drogas lícitas e ilícitas.

Uma divisão que levou em conta prioritariamente questões políticas e

morais, lembrando que do ponto de vista da saúde essa distinção não

procede, pois tanto as drogas lícitas quanto as ilícitas podem causar

prejuízos para a saúde e dependência.

45 Thiago RODRIGUES, Política e drogas nas Américas, p. 80. 46 Ibid., p. 80.

Page 41: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

32

Berger & Luckman vão dizer que as instituições surgem para tipificar

os indivíduos e que, “pelo simples fato de existirem, controlam a conduta

humana estabelecendo padrões previamente definidos de conduta, que a

canalizam em uma direção por oposição às muitas outras direções que

seriam teoricamente possíveis"47, transformando todo aquele que sair da

‘norma’ no marginal.

A proibição às drogas adiciona ao elenco de anormais, herdado do século

XIX, a figura do ‘viciado’. Ele, contudo, não é identificado pelo poder

como alvo independente; antes, o usuário de drogas proibidas é

enxergado pelos corpos sãos da sociedade justamente entre os

insuportáveis anômalos de sempre. Imigrantes e minorias vêem seus

hábitos de intoxicação potencializarem-se em ‘grandes afrontas à

sociedade sadia.48

Isso vai ocorrer devido a necessidade da manutenção do universo

simbólico que, tentando legitimar a definição oficial de realidade,

desenvolverá formas de controle dos desviantes; utilizando seus guardiães

que invariavelmente empregam procedimentos repressivos. Ciampa

comentando sobre esse fenômeno coloca:

Os seus guardiães empregam normalmente certos procedimentos repressivos, já

que o desafio desses grupos heréticos não é apenas uma ameaça teórica, mas

também uma ameaça prática para a ordem institucional legitimada pelo

universo teórico em questão. Como essa repressão precisa ser legitimada, vários

47 Peter L. BERGER & Thomas LUCKMANN, Modernidade, pluralismo e crise de sentido: a

orientação do homem moderno, p. 80. 48 Thiago RODRIGUES, Política e drogas nas Américas, p. 35.

Page 42: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

33

mecanismos conceituais são acionados para preservação do universo oficial, o

qual nessa nova legitimação também é modificado.49

Com isso, a partir do século XIX, a regulação do uso de drogas

psicoativas se encaixa no quadro maior representado pelo agir estratégico

que o Estado desenvolve, da excessiva intervenção saneadora da sociedade,

que priorizava o controle do regime urbanístico, os espaços de trabalho, os

hábitos de higiene e os costumes sociais referentes aos cuidados de si.

TRANSFORMAÇÕES DO CONCEITO “DEPENDÊNCIA DE

DROGAS”

Segundo Toscano Jr e Seibel, “o conceito de adição como doença ou

transtorno só veio a se desenvolver ao longo dos últimos 200 anos, num

contexto de mudança gradativa dos construtos da medicina clínica, da

psiquiatria e da saúde pública”50, porém, essas mudanças seguiram o

caminho da lógica instrumental. Desde 1950, a Organização Mundial de

Saúde – OMS havia sugerido uma definição da Toxicomania, que implicava

nos seguintes termos: 1) desejo ou necessidade incontrolável de continuar

consumindo a droga ou de buscá-la por todos os meios; 2) tendência a

aumentar as doses (tolerância); 3) dependência psíquica e, geralmente,

física em relação aos efeitos da droga; 4) efeitos nocivos ao indivíduo e à

sociedade.

Com o decorrer dos anos, os peritos da OMS perceberam que estas

diferentes definições não se aplicavam a todas as drogas e, em 1963, as

49 Antonio da C. CIAMPA, Identidade Social e suas relações com a ideologia, p. 31. 50 Alfredo TOSCANO JR & Sérgio D. SEIBEL, Dependência de drogas, p.19.

Page 43: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

34

categorias de adição e hábito foram substituídas pelas ainda mais genéricas

dependências física e psicológica.

Isso contudo, não possibilitou que o conhecimento se libertasse do

interesse, esse fato fica mais claro na medida em que não existia uma

distinção farmacológica que sustentasse o proibicionismo; de que ‘não

tinham sido toxicólogos, químicos ou sequer médicos que haviam posto em

marcha a legislação proibicionista da OMS51(através de Comitê); e que as

drogas legalizadas foram àquelas produzidas nos países desenvolvidos.

O Comitê da OMS teve o papel de formular de um repertório

terapêutico que guiasse as medidas legais internacionais da ONU, na

criação de material ‘cientifico’ que associasse o uso de drogas à doença

física e psicológica.

Ainda, segundo os autores, é fácil constatar o caráter vago de tal

definição, que traduz bem a incapacidade dos peritos da OMS em

determinar as razões, não necessariamente médicas, que levam as

sociedades a colocar certos produtos sob controle. O termo

farmacodependência, definido pela OMS em 1969, veio, então, com a

pretensão de ser mais preciso: Estado psíquico e, algumas vezes, também

físico, resultante da interação entre um organismo vivo e um medicamento,

caracterizando-se por modificações do comportamento e outras reações, que

incluem tomar o medicamento de maneira contínua ou periódica, com o fim

de reencontrar seus efeitos psíquicos e, algumas vezes, evitar o mal-estar

ocasionado pela abstinência. Este estado pode acompanhar-se, ou não, de

51 Organização Mundial da Saúde.

Page 44: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

35

tolerância. Um mesmo indivíduo pode ser dependente de vários

medicamentos.

Podemos ver claramente a contradição resultante da cultura de

especialistas que, ao possibilitar um maior cuidado à determinada ‘doença’,

impede os indivíduos de assumirem um auto-cuidado responsável sobre a

própria vida, ou seja, “a transposição, sem mediação, do saber especializado

para as esferas privadas e públicas do cotidiano pode, por um lado, pôr a

autonomia e o sentido próprio dos sistemas de saber em perigo e, por outro

lado, ferir a integridade dos contextos do mundo da vida.”52

O campo de conhecimento referente a ortopedia social, da correção

da saúde corporal e moral transfere-se do edifício do direito para o

conhecimento clínico. A chamada medicina social começa a ditar os

parâmetros de normalidade, criando a linha tênue que separa o indivíduo

saudável, do doente, do que é correto e o que é desviante.

Uma vez estabelecidas as normas, o Estado, garantia da saúde social,

identifica os indivíduos insubmissos aos ditames normalizadores e põe

em movimento, através dos dispositivos de segurança, a estratégia da

prevenção geral, ou seja, perseguição, eliminação ou confinamento do

inimigo social interno, que vem a ser os pobres, os criminosos, os

desviados e os anormais; numa palavra, os instabilizadores da ordem..53

52 Jürgen HABERMAS, Discurso filosófico da Modernidade, p. 312. 53 Thiago RODRIGUES, Política e drogas nas Américas, p. 25. (grifos do autor)

Page 45: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

36

Em 1974, o comitê de especialistas da OMS em dependência de

drogas, acrescenta à definição de farmacodependência a conceituação de

dependência física e psíquica.

A dependência física é caracterizada pela adaptação do organismo à

droga e se manifesta por alterações físicas quando o uso desta é

interrompido. Assim, a retirada da droga ocasiona síndrome de

abstinência, um quadro de sinais e sintomas que podem ser aliviados com

a administração da droga. Já a dependência psíquica decorre da sensação

de prazer e bem-estar ou da necessidade de evitar o mal-estar provocado

pela falta da droga, requerendo, assim, o uso periódico ou contínuo.54

O Manual Diagnóstico e Estatístico de Perturbações Mentais – DSM-

IV55 estabelece critérios para o diagnóstico de dependência de substâncias,

abuso de substâncias, intoxicação por substância e abstinência por

substância. O diagnóstico de dependência de substâncias baseia-se na

presença de, no mínimo, três dos seguintes critérios: 1) a substância é

tomada em quantidades maiores ou por mais tempo do que a pessoa

pretendia; 2) desejo persistente, uma ou mais tentativas fracassadas de

cessar ou controlar o uso da substância; 3) muito tempo gasto em atividades

necessárias para obter a substância, usá-la ou recuperar-se dos efeitos

desta; 4) intoxicações freqüentes ou sintomas de abstinência, competindo

com as obrigações da pessoa, também quando o uso da substância é

fisicamente perigoso; 5) atividades sociais, ocupacionais ou recreativas

importantes são deixadas de lado ou diminuídas, devido ao uso da

substância; 6) uso contínuo da substância, apesar do reconhecimento de 54 Manuel M. REZENDE, Uso, abuso e dependência de drogas: delimitações sociais e científicas,

Psicologia & Sociedade, 12 (1/2), p. 144-155.

Page 46: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

37

haver problemas ocupacionais, sociais, psicológicos ou físicos, de maneira

persistente ou recorrente, causados ou exacerbados pela substância; 7) clara

tolerância; 8) sintomas característicos de abstinência; 9) uso da substância

para aliviar ou evitar sintomas de abstinência.

Entre os transtornos causados por substância, o DSM-IV relaciona

desde aqueles ligados ao abuso de uma droga, inclusive o álcool, até os

efeitos colaterais de um medicamento, bem como a exposição à toxinas. As

substâncias que fazem parte desta classificação são agrupadas em 11

classes: Álcool; Anfetaminas ou Simpaticomiméticos de ação similar;

Cafeína; Canabinóides; Cocaína; Alucinógenos; Inalantes; Nicotina;

Opióides; Fenciclidina (PCP) ou arilciclohexilaminas de ação similar;

Sedativos (hipnóticos ou ansiolíticos).

Rezende comenta que o DSM-IV considera como característica

essencial da dependência, a presença de um conjunto de sintomas

cognitivos, comportamentais e fisiológicos indicando que o indivíduo

continua utilizando uma substância, apesar de problemas significativos

relacionados a ela, considerando que:

(...) se para os farmacologistas, as drogas psicoativas podem ser

categorizadas de acordo com seu potencial farmacológico (leves e

pesadas), do ponto de vista psicológico, podemos estabelecer como

critério classificatório de dependência o significado e a intensidade da

relação do indivíduo com a droga. Deve-se considerar, principalmente, a

55 DSM-IV: Manual diagnóstico e estatístico de perturbações mentais.

Page 47: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

38

vivência psicológica que o usuário configura diante da falta da ação

psicofarmacológica da droga.56

Uma publicação da United Nations Educational, Scientific and

Cultural Organization – UNESCO57, distingue quatro tipos de usuários de

drogas: 1)Usuário Experimentador: limita-se a experimentar uma ou várias

drogas, por diversos motivos, como por exemplo, curiosidade ou desejo de

ter novas experiências. Na grande maioria dos casos, o contato com a droga

não passa das primeiras experiências; 2)Usuário Ocasional: utiliza um ou

vários produtos de vez em quando, se o ambiente for favorável e a droga

disponível. Não há dependência nem ruptura das relações afetivas,

profissionais e sociais; 3)Usuário Habitual: faz uso freqüente de drogas.

Em suas relações já se observam sinais de rupturas. Mesmo assim, ainda

“funciona” socialmente, embora de forma precária e correndo riscos de

dependência; 4)Usuário Dependente (Toxicômano): vive pela droga e para

a droga quase que exclusivamente. Como conseqüências, rompem-se os

seus vínculos sociais, o que provoca isolamento e marginalização,

acompanhados eventualmente de decadência física e moral.

Como já foi visto anteriormente, as mudanças referentes ao

fenômeno das drogas são acompanhadas de uma produção acentuada dessas

substâncias, desde o aperfeiçoamento da indústria farmacêutica, cujo

consumo, venda e produção contavam, até então, com pouco ou nenhum

controle por parte do Estado. Entretanto, Rodrigues vai dizer que as

questões referentes ao uso de drogas:

56 Manuel M. REZENDE, Uso, abuso e dependência de drogas: delimitações sociais e científicas,

Psicologia & Sociedade, 12 (1/2): 144-155, p. 154. 57 Ibid., p. 154.

Page 48: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

39

(...) foram rapidamente incorporadas ao campo do direito, primeiro com

a formalização da mediação médica entre indivíduos e drogas, em

seguida, com banimento do uso de produtos amplamente desejados. Na

América, os Estados Unidos tomam a dianteira na perseguição do uso

hedonista de drogas psicoativas, construindo arcabouços legais que

vedavam o livre acesso a substâncias, como a cocaína e o ópio, e

incentivando a elaboração de regras do direito internacional público que

produzissem um consenso global quanto à proibição das drogas. Nos

países latino-americanos, dinâmicas locais conduziram a ritmo próprio

medidas proibitivas e incriminadoras do uso inúmeras substâncias.58

Surgindo então, o proibicionismo latino americano gerado pelo

modelo burocrático e administrativo do Estado que começa a ganhar corpo

nas primeiras décadas do século XX, “não mais aquele liberal, que

preconiza mínima ou nenhuma intervenção estatal na sociedade e nos

assuntos econômicos, mas o que passa a perseguir com constância uma

formula de atuação mais presente e reguladora”59, expande para os países

da América-Latina, promovendo o modelo burocrático-sanitário.

O USO DE DROGAS NO BRASIL

Em 1890 os Estados Unidos desenvolve sua própria dinâmica

regulatória, instaurando mecanismos normatizadores. O Brasil, neste

momento, reflete a semelhança dessa natureza normativa, do cotidiano

econômico e social, ancorada nas leis sanitárias escritas nesse período. A

preocupação com as substâncias psicoativas se materializava em lei,

58 Thiago RODRIGUES, Política e drogas nas Américas, p. 33. 59 Ibid., p. 93.

Page 49: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

40

fazendo com que seja instituída a polícia sanitária. Assim, o “Regulamento

Imperial de 1851, que instituía a polícia sanitária e disciplinava a venda de

remédios. Não há referência explícita à proibição da fabricação ou do

consumo de drogas, mas sim recomendações legais que encontram

ressonância nas antigas Ordenações Filipinas.”60

A economia brasileira, impulsionada pela produção de um

estimulante (cafeína), criava no Sudeste, principalmente em São Paulo, um

pólo de desenvolvimento dinâmico e cosmopólita.

Neste ambiente, não tardou a chegada do hábitos sofisticados europeus,

tanto na moda quanto no comportamento social. A inauguração do Teatro

Municipal de São Paulo, em 1911, é o marco desse espírito progressista

que tomava conta das elites cafeicultoras brasileiras naquele momento.

Os costumes chics, que são consumidos com avidez pelos ricos oligarcas,

envolvem o uso de substancias alteradoras do comportamento, os

chamados ‘venenos elegantes’. No principio da década de 1910, o uso

desses venenos, principalmente éter, lança-perfumes, ópio e cocaína, era

restrito a alguns círculos de intelectuais, médicos, dentistas,

farmacêuticos (que lidavam diretamente com tais substâncias) e

prostitutas, sem maiores impactos sociais.61

Um ambiente criado pela disciplina capitalista que priorizava a

maximização da capacidade produtiva e da força de trabalho, buscando o

enfraquecimento da capacidade política dos trabalhadores, que tinham suas

movimentações vistas como “caso de polícia” pelo Estado.

60 Thiago RODRIGUES, Política e drogas nas Américas, p. 126-127. 61 Ibid., p. 128.

Page 50: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

41

Nas primeiras décadas do século XX, há o gradativo processo de

institucionalização do saber médico, que se dá pela promulgação dos

códigos sanitários, através dos quais o Estado torna-se receptáculo

legítimo do saber médico cientifico e, portanto, único ente autorizado a

regulamentar a venda de drogas e as políticas de saúde públicas. Institui a

vacinação obrigatória contra a varíola, em 1904, exemplo de prática

governamental inédita sobre a população, geradora da revolta da vacina,

que pode ser interpretada como a resistência difusa do saber local (das

práticas de auto higiene e medicina popular) à imposição sanitadora do

governo. O Estado impunha sua visão de saúde pública e individual

contra as práticas locais em nome da salubridade geral da nação.62

Até o final da primeira Guerra Mundial a utilização de drogas

controladas no Brasil se restringia aos prostíbulos finos e às fumeries

sofisticadas, sendo acessíveis apenas à burguesia. Essa restrição pode nos

levar a pensar que tendencialmente o consumo dessas substâncias tenderiam

a redução, contudo, veremos que isso não aconteceu.

A venda livre de drogas psicoativas é proibida, mas o acesso pelo

receituário médico se transforma em via fácil para obtenção das drogas

desejadas. O tráfico propriamente dito fica restrito a profissionais da área

da saúde, que falsificavam receitas ou desviavam medicamentos sob sua

responsabilidade. Não há, portanto, fabricação clandestina de drogas; da

morfina à cocaína, as substâncias têm origem nos grandes laboratórios

farmacêuticos europeus e norte-americanos. Essas indústrias inundam o

mercado legal e ilegal das substâncias psicoativas, valorizando o valor de

troca em detrimento do valor de uso: na prática, o desejo que demandava

tais drogas dinamizava de tal maneira o setor farmacêutico que as

grandes empresas pouco se preocupavam com a questão do uso não

médico. Na realidade, investiam na pesquisa e no lançamento de novos 62 Thiago RODRIGUES, Política e drogas nas Américas, p. 129.

Page 51: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

42

produtos, panacéias indicadas para a conquista de vitalidade, energia e

felicidade.63

Com o término da primeira Guerra Mundial, em 1918, surgem

campanhas lançadas pelos jornais, destacando o uso de droga não mais

como mero acessório exótico em casos policiais, mas como indutores de

condutas psicopatológicas, passando a tratar os usuários de substâncias

psicoativas como degenerados morais e sociopatas potenciais.

Atualmente para a Organização Mundial da Saúde – OMS droga é

qualquer substância natural ou sintética que, administrada por qualquer via

no organismo, atua no cérebro, modificando seu funcionamento e alterando

as sensações, o grau de consciência ou o estado emocional.

1.2 – AS METAMORFOSES DO “TRATAMENTO”

Da mesma forma que a história do uso de drogas é acompanhada de

mudanças quanto ao seu sentido e significado, as questões referentes as

formas de “tratamento” do uso, abuso e dependência, também sofreram e

sofrem mudanças significativas até os dias de hoje. A própria separação

entre ‘drogado’ e ‘louco’ nos tratamentos é algo recente, surgindo apenas na

segunda metade do século XX.

Ao discutirmos as metamorfoses do tratamento do uso de drogas,

cabe justificar para o leitor de que não se trata de apresentar aqui uma

‘evolução’ linear das formas de cuidado, mas sim uma reflexão à respeito

da tensão existente entre as formas de tratamento ‘tradicionais’ e atuais;

assim como esses métodos são utilizados nos dias de hoje. Esse cuidado 63 Thiago RODRIGUES, Política e drogas nas Américas, p. 130.

Page 52: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

43

torna-se necessário devido ao fato que a “modernidade já não pode

emprestar seus padrões de orientação de modelos de outras épocas. Ela

encontra-se completamente abandonada a si mesma, tem de extrair de si

mesma sua normatividade.”64

Sendo assim, devemos tomar cuidado para não cair em ‘enganos’ que

geralmente nos levam a descreditar o que foi feito no passado e

reforçar/aprovar o que estamos fazendo na atualidade.

Recorrendo a literatura veremos em Foucault, que “antes do século

XVIII, a loucura não era sistematicamente internada; era essencialmente

considerada como uma forma do erro ou da ilusão”65, sendo que se entendia

como terapêutica para esses fenômenos o contato com o real, os “lugares

terapêuticos reconhecidos eram, em primeiro lugar, a natureza, já que era a

forma visível de verdade; tinha em si mesma o poder de dissipar o erro, de

fazer desaparecer as quimeras”66, as prescrições médicas restringiam-se ao

encaminhamento para passeios, viagens, retiros etc.

Também veremos que a partir da sociedade governamentalizada, que

emerge na passagem do século XVIII para o XIX, (e que desloca o

manancial dos repertórios articulados em discursos de verdade no campo do

direito, da lei e da regra, para o repertório da ciência médica), a loucura,

assim como toda forma de ‘desvio’ passa a ser entendida como processo

mórbido.

64 Jürgen HABERMAS, A Nova Intransparência: A crise do Estado de Bem-Estar Social e o

esgotamento das Energias Utópicas, Novos Estudos CEBRAP, 18, p. 103. 65 Michael FOUCAULT, Resumo dos cursos do Collège de France (1970-1982), p. 47. 66 Ibid., p. 47.

Page 53: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

44

Circunstâncias que determinaram a emergência do ‘doentio’ e do

estigmatizado a condição de problema social, justificando as proposições de

criações de instituições para controlá-los e eventualmente ‘tratá-los’, esse

movimento foram semelhantes na Europa do século XVI e no Brasil do

século XIX. A partir de então, a prática do exame médico que identifica os

‘doentes’ e ‘sadios’ preceita tratamentos saneadores e passa a ser utilizada

pelo poder governamental como modelo a orientar as novas estratégias de

controle da população.

Transposto para a política da gestão dos corpos, o procedimento médico-

científico irrompe como poderoso vocabulário que se legitima na

racionalidade de suas técnicas. Além disso, os métodos de catalogação

das doenças, de ordenação do espaço, de combate às epidemias, de

pesquisa em busca de novas curas e de higienização da vida interessam

diretamente ao Estado como instrumentos para o governo dos homens. O

edifício jurídico da soberania não é destruído , tampouco abandonado; de

fato, ele é ocupado por um novo jogo de formulação de verdades

centrado na norma, baseado no modelo médico de afirmação do saudável

e do doentio.67

Dessa forma, a operacionalidade do acordo entre médicos e Estado se

processava na medida que a repressão ao uso não médico de substâncias

fosse gradativamente endurecida. Com relação ao uso de drogas; os

médicos passam a ter o monopólio para lidar com as substâncias

controladas e o Estado conquista dois espaços de intervenção social: um

sobre o mercado legal; outro sobre o mercado ilegal.

67 Thiago RODRIGUES, Política e drogas nas Américas, p. 26.

Page 54: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

45

Sobre o mercado legal, uma vez que a norma regula as substâncias

permitidas e a própria atividade médica em si; outro sobre o mercado

ilegal, que era instaurado pela lei. A proibição da venda livre inaugurava

um campo de ilegalidade extremamente fértil para a atuação estatal, já

que o consumo lúdico, que deveria ser perseguido, permanecia como

prática cotidiana.68

O campo jurídico, importante aliado nesse período, “proporcionava

ao Estado a capacidade ampliada de governamentalização do

comportamento individual, fornecendo instrumentos jurídicos para a

vigilância do mercado legalizado pela lei (o de uso médico) e o ilegalizado

por ela (o de uso lúdico).”69 Legitimando diagnósticos e formas de lidar

com os usuários de drogas.

Em 14 de julho de 1921, é promulgada pelo Congresso Nacional, a

Lei Federal n. 4.294, que apresentava grande mudança no que diz respeito a

burocratização da repressão e ao controle de drogas.

A lei investe na solução carcerária para o condenado por tráfico de

entorpecentes, diferenciando substâncias tóxicas comuns das drogas

psicoativas. (...) A inconsistência classificatória não consegue abalar o

princípio legitimador da nova lei, uma vez que o verdadeiro critério

aglutinador era a capacidade que essas drogas têm de modificar a

percepção da realidade. A punição requer, somente, que um termo com

revestimento técnico-científico abarque toda a gama de substâncias

controladas, ostentando todo o poder classificatório que têm os saberes

sanitário e jurídico estatais.70

68 Thiago RODRIGUES, Política e drogas nas Américas, p. 131. 69 Ibid., p. 131. 70 Ibid., p. 136.

Page 55: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

46

Neste momento a criminalização do vendedor ilegal não se reproduz

sobre o consumidor. A lei de 1921 considera o usuário vítima de seu

próprio vício.

O ato de se envenenar não é, portanto, considerado crime pela legislação

de 1921, mas tipifica um comportamento e uma situação (a de

‘envenenado’ ou ‘viciado’) que sobrecarrega o acusado de estigmas

sociais e o cataloga no âmbito do saber estatístico policial. O hospital,

local para a recuperação, é onde se registram estatisticamente os desvios

comportamentais perigosos à ordem social.71

Rodrigues comenta que, “o decreto-lei de 1921 condensa os juízos

morais sociais contra as drogas, transpondo o nível dessa condenação do

âmbito religioso para o universo técnico-ético e de segurança pública e

sanitária chancelado pelo Estado”72. Em 1932, surgem algumas alterações

do decreto-lei de 1921; embora alterasse muito pouco a lei de 1921, trazia

mudanças com relação ao tratamento do usuário. “Ficavam previstas penas

para quem instigasse o uso de qualquer uma das drogas controladas, bem

como era imposta a obrigatoriedade de notificação dos casos de

dependência para que os toxicômanos fossem tratados, em internações

determinadas pelo juiz responsável pelo processo73.”74

71 Thiago RODRIGUES, Política e drogas nas Américas, p. 136-137. 72 Ibid., p. 137. 73 Surge pela primeira vez no texto jurídico a convocação do cidadão, pelo Estado, a notificar

qualquer caso de “toxicomania” a que venha a ter conhecimento. É, de fato, a instituição da delação

compulsória, já que o chamado estatal coloca a omissão à notificação como atentado ao bem da

saúde pública, condenável não a norma penal, mas eticamente (Capitulo IV, arts. 44 a 50). 74 Thiago RODRIGUES, Política e drogas nas Américas, p. 138.

Page 56: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

47

O Decreto-Lei n. 891, imposto pelo Poder Executivo em 25 de

novembro de 1938, traz novas modificações referentes ao consumo ilegal,

este em si não é mais criminalizado, porém a posse ou uso passa a ser

punido indiretamente já que o decreto de 1938:

(...) reserva seu terceiro capítulo especificamente às medidas de

internação e interdição civil da ‘toxicômanos’. Tanto a intoxicação

habitual quanto a efêmera de drogas controladas são classificadas como

‘toxicomania’, doenças físicas, psíquicas e sociais que devem ser

compulsóriamente notificadas (‘doença de notificação compulsória’ – art.

n. 27) às autoridades sanitárias e policiais. Os toxicômanos, sem exceção,

devem ser encaminhados para tratamento quando o corpo médico-

pericial do Ministério Público assim julgar conveniente.75

A lei de 1938 estava em perfeita adequação aos tratados

internacionais assinados pelo Brasil, principalmente a Convenção do ópio

(1932) e a Convenção sobre o tráfico ilícito (1936), ambas ocorridas em

Genebra, com o patrocínio da Liga das Nações. “Após essa lei, uma

sequência de outras modificará temas específicos do texto, mas nos seus

termos gerais ela vigora até as reformas da década de 1970, que conformam

o atual estatuto jurídico brasileiro sobre o tema.”76 Em 1971 ocorrem mais

mudanças na lei, surgindo o fim do nivelamento penal entre o dependente e

o traficante, regredindo no que se refere a questão da dosemetria penal

instituída em 1938. Rodrigues vai dizer que:

As novidades surgiram já no Capítulo II, que tratava da ‘recuperação de

infratores e viciados’. O termo ‘toxicômano’ é substituído por ‘viciado’,

75 Thiago RODRIGUES, Política e drogas nas Américas, p. 144. 76 Ibid., p. 148-149.

Page 57: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

48

que qualifica os ‘dependentes físicos e psíquicos’ em substâncias

entorpecentes. Esses ‘viciados’ podem ser condenados a crimes

praticados sob efeito de drogas, se o juiz, baseado em laudo pericial,

considerar o réu incapaz de discernir sobre a ilicitude de seu ato (art. n.

10). Se o acusado for considerado ‘semidependente’, sua pena pode ser

diminuída ou substituída por interação, até a recuperação total (categoria

do ‘condenado semi-imputável’, art. n. 11). Consolida-se a visão

epidemiológica sobre a questão das drogas, punindo o criminoso ‘viciado

não com a pena tradicional do encarceramento comum, mas com o

tratamento de desintoxicação compulsório. Continua valendo a lógica da

recuperação ou reabilitação do desviado, do marginal, mas as drogas

apresentam ao direito penal a oportunidade de se criar uma nova

categoria, a do ‘infrator doente’, cujo crime foi motivado ou incentivado

pelo seu vício; portanto, para que sua reinserção à sociedade seja

possível, ele deve ser curado do mal físico, psíquico e social que o

aflige.77

Em 21 de dezembro de 1976, é instituída a chamada Lei de Tóxicos

(Lei n. 6.368, Decreto n. 78.992), que “reunia num único documento todas

as disposições pertinentes à repressão ao tráfico e à prevenção ao uso de

drogas, estipulando com independência as sanções penais para os crimes

previstos”78, trazendo novas disposições sobre a repressão ao uso e ao

tráfico de drogas, novos termos da relação usuário, traficante, dependente.

Investindo também na manutenção de palestras e aulas inclusas no currículo

escolar, buscando convencer os alunos da periculosidade do uso das drogas

proibidas.

77 Thiago RODRIGUES, Política e drogas nas Américas, p. 152. 78 Ibid., p. 156

Page 58: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

49

A lei passa a determinar que os Estados criem clínicas e

ambulatórios, para dar contenção aos usuários de drogas, assim como

pediam que contratassem pessoal especializado no tratamento desses.

Existindo aqui a primeira diferenciação no tratamento daqueles

considerados ‘alienados’ e os ‘toxicômanos’.

Os dependentes não são considerados doentes mentais comuns, passíveis

de internação em manicômios judiciários, mas doentes de classe especial,

vítimas do mal moral, físico, psíquico e social representado pelas drogas.

O uso continua sem ser diretamente incriminado, só o sendo quando o

indivíduo é flagrado portando qualquer quantidade de droga controlada.

O uso não pode ser diretamente punido, porque tal medida criaria um

crime sem corpo de delito, ou seja, sem vítima. Moralmente o usuário é

considerado vítima de seu próprio hábito, ou, ainda mais abstratamente,

vítima das drogas; contudo, tal grau de abstração não poder tipificar um

crime em si. Daí o uso ser condenado indiretamente pela impossibilidade

de se consumir sem comprar, receber ou conservar consigo uma droga

controlada (todos estes atos com sanções previstas).79

Aqui mais uma vez vemos o Estado voltando sua atenção para o

gerenciamento dos corpos, a distinção entre aquilo que é público e aquilo

que é privado passa a ser indiferenciável, “no que se refere às drogas, o

indivíduo não detém a posse sobre seu próprio organismo,

independentemente se o seu hábito é praticado em solidão, sem afetar outro

cidadão ou a coletividade. Como, para lei, a demanda aciona parte da rede

ilegal de produção e tráfico, o consumo, ainda que solitário, ameaça a paz

coletiva.”80

79 Thiago RODRIGUES, Política e drogas nas Américas, p. 158. 80 Ibid., p. 158-159.

Page 59: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

50

O controle sobre os indivíduos que quisessem utilizar qualquer

substância tida como ilícita estava legitimado, fazendo uso dos verbos

“guardar”, “adquirir” e “trazer” consigo, a lei de 1976 continuava a

incriminar seus acusados.

Desta forma, a lei de 1976 consagra a existência de cinco sujeitos

envolvidos em prática ilegais relacionadas às drogas: a) o criminoso,

traficante ilegal ou aquele que pratica qualquer uma das ações previstas

no artigo. 12 da lei (reclusão pelo sistema carcerário); b) o doente,

indivíduo considerado pelo saber jurídico-sanitário como dependente

físico ou psíquico e, por isso, passível de tratamento (reclusão pelo

sistema médico-assistencialista); c) o profissional da saúde que receita

exageradamente ou trafica, rompendo o pacto médico-estatal (reclusão

carcerária e perda do registro profissional); d) o criminoso considerado

semi-imputável ou inimputável por ter praticado a infração sob efeito de

drogas (combinação das sanções carcerária e hospitalar); e) o

experimentador, indivíduo que não é criminoso nem dependente, mas

cujo comportamento é uma afronta, segundo a lei, para ele próprio e para

a sociedade (articula a sanção moral e cadastramento estatístico-

policial).81

Nas décadas de 1960 e 1970, o uso da internação daqueles que

ameaçavam a ordem social vigente passa a se tornar um negócio rentável.

Esse período será conhecido como o da ‘Industria da Loucura”, Resende,

explica que:

81 Thiago RODRIGUES, Política e drogas nas Américas, p. 160. (grifo nosso)

Page 60: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

51

A mudança política operada com a proposta liberal do governo militar, a

política de ampliação de números de leitos com o estabelecimento de

convênios entre hospitais especializados privados e o novo Sistema de

Saúde (INPS), e a introdução de novas tecnologias medicamentosas

(neurolépticos) foram alguns dos pilares sobre os quais, nessas décadas, a

psiquiatria se assentou, caracterizando-se por uma ação em massa.

Investindo no trabalho enquanto foco das políticas sociais, o setor

psiquiátrico recebeu do governo novos investimentos, sobretudo para a

contratação de leitos privados que duplicaram no quinquênio de 1965-70,

passando de 35 mil para noventa mil o número de internações no setor

privado.82

Considerando o aumento abusivo de internos e o interesse elevado no

lucro das internações por parte do setor privado; veremos que essa

estratégia já nasce falida, pois na medida em que o Estado pagava pela

quantidade de internos nos hospitais tornava vantajoso o prolongamento da

internação dos indivíduos e o diagnóstico desviante; já que os ‘desvios’

passam a ser uma mercadoria.

Desse modo, podemos dizer que traçar uma linha direta entre um

determinado regime político e a repressão às drogas não pode ser afirmada,

no entanto, podemos entender que a repressão às substâncias psicoativas vai

ser maior na medida que a repressão social for aumentada.

OS MODELOS DE TRATAMENTO DA ATUALIDADE

Enquanto que nas sociedades pré-capitalistas, aptidão e inaptidão

para o trabalho não era um critério importante na determinação do que era

82 Heitor RESENDE, Política de Saúde Mental no Brasil: uma visão histórica, Cidadania e Loucura:

políticas de saúde mental no Brasil, p. 60-62.

Page 61: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

52

‘normal’ e ‘patológico’, mais tarde, com o crescimento do capitalismo, isso

passa a ser um determinante para o diagnóstico. Impulsionando o

surgimento de diversas instituições que se proporão à tratar o ‘drogado’ e

‘reintegrá-lo’ na sociedade. Essas instituições podem ser divididas,

atualmente, de acordo com sua abordagem de tratamento do usuário de

drogas, em cinco grandes eixos que serão melhor detalhados

posteriormente: 1) Tratamento não medicamentoso – com internação (este

muitas vezes feito em comunidades terapêuticas), tendo como princípio que

o indivíduo não consegue ficar nenhum minuto sem a droga e que é

necessário que este fique em regime de internato; 2) Tratamento não

medicamentoso – Sem internação, Grupos de ajuda mutua (A.A, N.A, entre

outros), psicanálise, cognitiva comportamental, alternativas, cura por meio

da fé; neste eixo, excluindo a psicanálise, todas as ofertas de tratamento são

baseadas na abstinência total, uma abstinência que muitas das vezes é

exigida como uma condição para a entrada no tratamento, constituindo por

si só uma contradição, pois se o sujeito consegue manter-se abstinente não

precisaria entrar em tratamento; 3) Tratamento medicamentoso – Com

internação em Hospital Psiquiátrico, Geral ou clínicas especializadas, um

tratamento com supervisão do médico e sujeito a alta concedida por este; 4)

Tratamento ambulatorial – sem internação, tendo como projeto inicial, a

busca da autonomia do indivíduo, levando em consideração que o mesmo

deve recuperar-se inserido em sua realidade; 5) Programa de Redução de

Danos – sem internação, tendo como objetivo a redução dos danos

causados pelo uso abusivo ou dependente de drogas (injetáveis ou não) e da

contaminação pelo HIV/AIDS e pelas doenças sexualmente transmissíveis –

DST’s; assim como, o reconhecimento da cidadania do usuário. Entretanto,

veremos a seguir que o reconhecimento da necessidade de tratamento do

Page 62: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

53

uso abusivo e dependente de drogas não significou uma mudança

significativa no olhar sobre o problema.

A idéia de que as drogas eram um problema psico-sócio-patológico

legitima a intervenção terapêutica, sem, contudo, desautorizar a punitiva.

Dessa maneira, os Estados signatários encontram suporte para definir que

‘uso indevido’ ou ‘abuso’ era aquele uso não acompanhado/autorizado

pelo Estado; já ‘efeitos nocivos’ eram aquelas conseqüências do uso de

‘drogas perigosas’ que o governo ( com seus ‘órgãos competentes’)

especificava como tais. Drogas subversivas, como as visionárias, foram

classificadas dentre as mais perigosas, apesar de serem, dentre as

listadas, as que apresentavam menos perigo à saúde dos usuários. A

proibição de substâncias menos tóxicas, sob pretexto de não

apresentarem utilidade médica, deixou evidente que a situação de

proibição é que definia a natureza farmacológica de um determinado

composto, e não o contrário.83

Dos modelos não medicamentosos o ‘Alcoólicos Anônimos’ (AA), é

um dos mais antigos (desde 1935) e mais reconhecidos no mundo. Baseia-

se na participação dos usuários em grupos de auto-ajuda, que através do

compartilhamento das experiências de situações de uso abusivo de álcool e

de suas conseqüências sociais, familiares, laborais etc, perseguem a

abstinência como única meta possível, pautando-se na seqüência de seus

“12 passos”, no qual o tratamento moral (exposição das falhas e da culpa do

alcoolista), é a base de trabalho. Utiliza uma racionalidade moralista e

religiosa (a crença em um “poder superior”, independente do credo),

mesclada com uma racionalidade pretensamente científica da psiquiatria (a

concepção do alcoolismo com uma doença crônica e recorrente). Investem

83 Thiago RODRIGUES, Política e drogas nas Américas, p. 83. (grifos do autor).

Page 63: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

54

na certeza da incurabilidade e, portanto, seus membros têm de ser

considerados “usuários em recuperação”, posto a impossibilidade do ex-

usuário.

Da mesma forma, o ‘Amor Exigente’ segue o modelo dos grupos de

auto-ajuda, mas tem variações significativas em relação ao do AA. É uma

proposta de educação destinada a pais e orientadores, como forma de

prevenir e solucionar problemas com os jovens usuários de álcool e outras

drogas, entre outros problemas sociais. Sua atuação é voltada para as

famílias e não exatamente para os pacientes, aproximando-se aqui da

perspectiva sistêmica (que será apresentado a seguir). Traz como conceito

central a necessidade de um "Amor Responsável, que orienta e educa,

desvinculado da obtenção de vantagens e conveniências. Um amor que quer

e luta pelo bem-estar e felicidade do outro "para o outro" em primeiro

lugar!”.

Seus princípios também baseados nos 12 passos, levam em conta as

relações sociais, culturais das famílias e comunidades, como aspectos

constituintes dos comportamentos inadequados aos padrões da sociedade.

Seu horizonte de racionalidade é mitológico ou moralista, sendo que em seu

primeiro princípio é afirmado que “a integridade moral e ética são

imutáveis. O respeito, a compreensão e o Amor devem nortear nosso

relacionamento com o mundo”. Dessa forma, pregam uma moral menos

individualista (do que vemos no AA, por exemplo, de culpabilização do

usuário) e mais coletiva, baseada nos relacionamentos mútuos e na filosofia

do amor como intuição fundamental, mas ainda assim centrada na

perspectiva mítica e moralizadora.

Page 64: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

55

A ‘Abordagem Sistêmica’ compreende que a problemática do uso

abusivo de drogas é indicativo de questões que se relacionam com o

funcionamento do sistema familiar na qual o usuário convive. Utilizam a

noção de “co-dependência”, realizando inclusive internamentos definidos

como domiciliares, em que o usuário em situação de um padrão de uso

nocivo, com riscos para a sua saúde, para seu trabalho e seus

relacionamentos, fica em casa, sob supervisão da família, que também é

trabalhada nesse momento, sendo que inclusive a própria casa passa por um

processo de desintoxicação de substâncias e hábitos nocivos, sob supervisão

da equipe técnica interdisciplinar. A mudança representativa nessa

perspectiva é não culpabilização do usuário e passando a intervir no sistema

social primário na qual ele está inserido.

Já o modelo ‘Médico-Psiquiátrico’ foi constituído por influência da

psiquiatria e neurologia, a partir do início do século XIX. Poderíamos

inferir que, juntamente com as concepções do AA, formam a hegemonia do

tratamento das dependências de álcool e outras drogas. A racionalidade

deste modelo é pautada em estudos e pesquisas científicas, postula a

dependência como um transtorno crônico e recorrente, com uma base

biológica e genética84. O objetivo do tratamento é também a abstinência

total, pois concebem o fenômeno da dependência como incurável, sendo a

internação um dos procedimentos técnicos preponderantes.85 No modelo

84 WHO. Neurociências: consumo e dependência de substâncias psicoativas. Relatório obtido no

site www.who.int em 05/04/2004, WHO Library Cataloguing-in-Publication Data. 85 Como visto anteriormente, do início do século XX até meados da década de 80 este foi o

dispositivo prioritariamente recomendado para o tratamento de qualquer situação de abuso ou

dependência de álcool e drogas. Com o questionamento da perspectiva hospitalocentrica, a partir dos

anos 1980 e 90, ocorrida pelo avanço da ciência psiquiátrica e psicológica, sendo a internação

Page 65: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

56

médico são utilizadas como técnicas auxiliares as psicoterapias, tanto

individuais, quanto familiares e grupais, moldadas por diferentes

abordagens. Sendo a abordagem cognitivo-comportamental a tendência

teórico-metodológica mais preponderante nos tratamentos médico-

psiquiátricos, propondo a modificação de comportamentos por meio da

mudança no sistema de crenças e pensamentos automáticos dos pacientes.

A partir da abordagem cognitivo-comportamental também se utiliza a

técnica de prevenção à recaída. Essa técnica baseia-se nos seguintes

pressupostos: a recaída é parte do processo de recuperação;

comportamentos de adição são hábitos aprendidos que podem ser

analisados e modificados; no contato com certos ambientes e com certas

substâncias há ativação das crenças e dos pensamentos relacionados

especificamente à droga, constituindo-se situações de risco. O objetivo é

evitar a ocorrências de lapsos, seja no começo ou na manutenção do

tratamento, provocados por estas situações e que possam levar o paciente à

recaída. Dessa forma, deve-se ensinar o indivíduo a mudar seu estilo de

vida, adquirindo novos hábitos e comportamentos mais saudáveis, evitando

tais condições de risco e, assim, prevenindo a recaída nas drogas.86

O ‘Modelo Psicossocial’ mantém alguns pressupostos dos modelos

anteriores (a noção de doença recorrente e incurável, por exemplo), mas

concebe a dependência de álcool e outras drogas como um problema de

recomendada somente em casos de maior risco físico, social ou familiar e a perspectiva do tratamento

em ambulatórios, mais próximos da realidade cotidiana do usuário, passa a ser valorizada e

incentivada. 86 G. Allan MARLATT& J. GORDON, Prevenção de Recaída: estratégias de manutenção no

tratamento de comportamentos adictivos.

Page 66: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

57

saúde mental coletiva, com ênfase nas determinantes sócio-psicológicas do

fenômeno da drogadição.

Enquanto que as Comunidades Terapêuticas surgem da experiência

de Maxwell Jones, na Inglaterra em 1959. Uma proposta baseada na

integração dos pacientes em sistemas grupais, em que seus problemas

poderiam ser compartilhados e debatidos socialmente, facilitando com isso

sua recuperação (ressocialização). As críticas a esse modelo “referem-se ao

seu afastamento do plano de realidade sobre o qual vive a sociedade, já que

cria condições ideais dentro de um espaço da instituição que não podem ser

reproduzidos fora dos seus muros.”87

As Comunidades Terapêuticas seguem o chamado modelo

psicossocial, segundo definição da Agência Nacional de Vigilância

Sanitária – ANVISA e Secretaria Nacional Anti-drogas – SENAD88, como

aquele que concebe o uso do álcool e outras drogas como comportamento

humano complexo: considerando desde aspectos psicológicos, sociais,

culturais, ambientais e até familiares. Partindo dessa concepção, a

informação sobre a experiência do usuário de drogas não pode ser por ele

recebida passivamente, mas tem de estar relacionada com a sua mudança de

atitudes, de valores, de estilo de vida.

87 Paulo AMARANTE, Revisando os Paradigmas do saber psiquiátrico: tecendo o percurso do

movimento da reforma psiquiátrica, Loucos pela vida: A trajetória da Reforma Psiquiátrica no

Brasil, p. 32. 88 ANVISA & SENAD, Exigências Mínimas para o funcionamento de serviços de atenção a

pessoas com transtorno decorrentes do uso e abuso de substâncias psicoativas. (ANVISA – Agencia

Nacional de Vigilância Sanitária, SENAD – Secretaria Nacional Anti-Drogas)

Page 67: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

58

Geralmente as Comunidades Terapêuticas são localizadas em

fazendas, ou em alguma residência urbana que possa abrigar um conjunto

de pessoas, mas com isolamento do convívio social cotidiano. As

comunidades terapêuticas se caracterizam pela internação, por um período

pré-estabelecido, de um grupo de usuários de álcool e/ou drogas, tendo no

aprendizado da vida comunitária e na ‘laborterapia’ (terapia pelo trabalho)

um dos seus principais métodos de intervenção.

A solução apresentada por esse método parece simples: ‘remoção’

dos elementos perturbadores da ordem social, em um primeiro momento; e

sua re-educação para o trabalho, pelo trabalho em um segundo momento, ou

seja, o tratamento da alienação pelo trabalho alienado.

Com relação às ‘Fazendas de Recuperação’, falta uma bibliografia à

respeito, com isso nossa discussão terá que ser feita por meio de materiais

de divulgação, que segundo os mesmos, funcionam desta maneira: regime

de espiritualidade e trabalho, disciplina, um período mínimo de 60 dias de

internação (trabalho baseado no modelo Pineliano), Grupos de ajuda mutua,

disciplina severa e paternal, religião, o medo e o trabalho, a família como

fator de mudança. A metodologia utilizada geralmente é a do Amor

Exigente, 12 passos ou ensinamentos bíblicos, tem como segunda fase do

tratamento um plano de 9 meses a seguir (simbolizando a gestação de uma

nova vida). Os indivíduos na instituição são vistos como membros, não

como pacientes.

Page 68: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

59

De Leon89 vai nos alertar que nem toda Fazenda de Recuperação

pode ser considerada uma Comunidade Terapêutica, pois muitas não

seguem a concepção e o método por elas previstos. A própria Agência

Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA90, aponta que a “admissão de

pessoas não deve impor condições de crenças religiosas ou ideológicas”,

nem tampouco permitir a prática “de castigos físicos, psíquicos ou morais”.

Em alguns casos, nas fazendas de recuperação parece haver um

descumprimento dessas normas.

A proposta da Redução de Danos surge em 1926, na Inglaterra, em

um relatório médico que propunha o uso de opióides como a melhor forma

de tratamento de outras drogas91, a partir do final dos anos 1980 a Redução

de Danos passou a ser muito utilizada como forma de prevenir a expansão

da epidemia de HIV/Aids, principalmente entre os usuários de drogas

injetáveis, que têm no compartilhamento de agulhas e seringas um alto risco

de contaminação pelo vírus.

O Programa de Redução de Danos seguindo um modelo teórico mais

geral caracterizado como sócio-cultural, contradiz totalmente a concepção

da drogadição como doença crônica (típica do modelo médico), bem como

a concepção moralista e religiosa (típica do AA e das Comunidades

Terapêuticas). Opondo-se, também, à política repressiva, centrada no lema

da “guerra às drogas”, típica do Estado, bem como a chamada “pedagogia

89 George DE LEON, Comunidades Terapêuticas: teoria, modelo e método. 90 Cf. ANVISA & SENAD, Exigências Mínimas para o funcionamento de serviços de atenção a

pessoas com transtorno decorrentes do uso e abuso de substâncias psicoativas. 91 SENAD, Formação de Multiplicadores de Informações Preventivas sobre Drogas.

Page 69: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

60

do terror”, que é referendada pela maioria das Comunidades Terapêuticas,

alguns ambulatórios, hospitais e grupos de ajuda-mútua.

Uma das suas estratégias mais utilizadas foi a proposta de “troca de

seringas”, oferecida por alguns serviços públicos de saúde e Organizações

Não Governamentais (ONGs), para que os usuários evitassem o

compartilhamento. A ênfase central é intervir com ações que minimizem os

riscos ou danos envolvidos no uso das substâncias psicoativas, tanto no que

se refere às suas formas de uso (injetável, cachimbo do crack etc), como no

padrão de uso nocivo, visando a prevenção de danos crônicos e a promoção

da saúde.

Considera, assim, o usuário responsável pela modificação de seu

comportamento, podendo contribuir na implementação de programas de

redução de danos junto a seus pares. Esse modelo não defende a abstinência

como meta, mas sim a minimização dos danos em situação de uso de

drogas, até mesmo por que compreende que sempre existiu o uso de

substâncias ativas na sociedade humana, o que certamente continuará a

ocorrer, como demonstram as questões em torno das drogas lícitas.

A redução de danos ainda encontra grandes dificuldades de aceitação

social, seja porque a distribuição de seringas ou a idéia de diminuição

gradual do uso de substâncias ainda é inaceitável por grande parte dos

indivíduos – afinal, como aceitar que um indivíduo que era visto como

‘anormal’ e incurável possa controlar o objeto que o controlava? – , seja por

que se tem uma crença que a distribuição de seringas incentive o consumo

de drogas injetáveis por parte daqueles que ainda não utilizam esse tipo de

drogas – como se os indivíduos de uma hora para outra fossem pegar uma

Page 70: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

61

seringa e injetar cocaína nos braços, pelo simples fato de ter acesso a

seringas. É possível que na medida em que esse programa for implantado

observemos um aumento no número de usuários de drogas injetáveis nas

estatísticas – afinal o indivíduo que compartilhava seringas nos ‘mocós’ ou

embaixo de pontes, utilizando água do esgoto ou empoçadas, passará a

utilizar os serviços de saúde – mas é interessante apontar que isso não

significa que serão novos usuários.

Um olhar crítico sobre os modelos apresentados pode apontar uma

similaridade, ou ainda, uma proximidade entre as propostas de ‘tratamento’,

fundamentos, ideologia e visão de mundo, que tem o indivíduo como

incapaz de escolha e de mudanças, na dependência do outro, neste caso (um

técnico ou religioso). Com Foucault aprendemos que a “história do

‘cuidado’ e das ‘técnicas’ de si seria, portanto, uma maneira de fazer a

história da subjetividade; porém, não mais através da separação entre loucos

e não loucos, doentes e não doentes, delinqüentes e não delinqüentes, não

mais através da constituição de campos de objetividade científica, dando

lugar ao sujeito que vive, que fala e que trabalha.”92

Desse modo, esses tratamentos com o objetivo de domesticar o

indivíduo, reeducando-o moral e religiosamente, fortalecidos pelo controle

heterônomo da instituição ou do grupo, foram e ainda são, muito utilizados.

Contudo, atentemos a colocação de Passetti que lembra:

(...) o uso de drogas leva também a movimentos libertadores,

agenciamentos inevitáveis que ultrapassam o campo das resistências. São

movimentos que inventam formas de vida, expressam suas artes,

comportamentos, deslocamentos, instabilidades e suas preciosas éticas

92 Michael FOUCAULT, Resumo dos cursos do Collège de France (1970-1982), p. 111.

Page 71: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

62

anunciadoras do inominável, o que é impossível conter. Por mais que as

forças repressivas militares, policiais, religiosas ou salutares procurem

aprisioná-los ou exterminá-los, os movimentos de libertação atuam de

maneira salutífera a cada existência, abalando não só a autoridade

central, mas também a que inventa novas políticas administrativas

descentralizadoras. Estes movimentos afirmam a impossibilidade da

domesticação, do controle definitivo.93

Atualmente, o Ministério da Saúde, diante da diversidade de

tratamentos ao uso de drogas, reconhece que estas práticas têm trazido

muito mais problemas para os indivíduos do que possibilidades de

autonomia – após anos de luta por parte dos usuários de drogas,

principalmente dos militantes do movimento de Redução de Danos –, e

propõe em 2004 a Política de Atenção Integral a Usuários de Álcool e

outras Drogas94.

O projeto apresentado propõe resgatar o compromisso ético nas

práticas de saúde; atualmente o Ministério da Saúde diz ‘assumir’ como

compromisso em sua política de atenção integral a usuários de álcool e

outras drogas, colocando-se na condição de acolhedora, tendo em vista que

cada paciente traz consigo sua história de vida, expressando uma maneira

singular, mas também a expressão da história de muitas vidas, de um

coletivo. Claro que não podemos esquecer que apenas a mudança de uma

política não resolve o problema, na medida em que não é garantia de

mudança intersubjetiva. “Não podemos nos afastar deste intrincado ponto

93 Edson PASSETTI, A arte de lidar com as drogas e o Estado, Política e drogas nas Américas, p.

08. 94 Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, BRASIL, A Política do Ministério da Saúde

para Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas.

Page 72: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

63

onde as vidas, em seu processo de expansão, muitas vezes sucumbem ao

aprisionamento, perdem-se de seu movimento de abertura e precisam, para

desviar do rumo muitas vezes visto como inexorável no uso de drogas, de

novos agenciamentos e outras construções.”95

A política de redução de danos preconizada pelo Ministério da Saúde,

compreende a droga como um problema social e o usuário de drogas como

um cidadão que tem direito de usar o que lhe convier, mas que deve se

conscientizar de sua situação de risco e as implicações para sua rede de

relações. Além disso, deve envolver-se em ações sociais que digam respeito

à sua vida, surge uma questão no ar:

Se esta conquista de Cidadania para o usuário de drogas existe,

(pensando que os modelos anteriores sofreram duras críticas, inclusive dos

órgãos reguladores – ANVISA, MS e OMS), por que será então, mesmo

após dois séculos da primeira reforma proposta por Pinel, esses

procedimentos continuam sendo valorizados? Rodrigues contribuindo com

nossa colocação, ensina que:

A governabilidade instrumentaliza o proibicionismo praticado nas

associações religiosas e de temperança, e incorpora a guerra às drogas

como uma estratégia política de controle social. As leis não suscitam

interesse por elas mesmas, mas sim como condensações do

proibicionismo, não mais aquele praticado de modo difuso na sociedade,

mas o institucionalizado estrategicamente pelo Estado. A condenação

moral fornece a legitimidade necessária para que o Estado se aproprie da

95 Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, BRASIL, A Política do Ministério da Saúde

para Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas, p. 10

Page 73: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

64

função repressora a um problema que, todavia, não se extingue com esse

esforço da perseguição.96

Neste contexto o Estado se envolve e é envolvido, pois não existe

crime organizado sem a participação do Estado. Polícia, na ponta;

Judiciário, na retaguarda, e tantos outros sistemas institucionais a participar

ativamente da corrupção e da criminalidade.

A criminalização do desejo, da demanda inesgotável por substâncias que

alterem a percepção, é fundamental para que a engrenagem do controle

social se movimente. Colocados sob o manto da ilegalidade, a parcela da

população que consome fica passível de punição, assim com a parte que

provê as substâncias desejadas. Deste modo, ficam a mercê da

capacidade governamental de rastrear, perseguir, punir, classificar e

encarcerar um grande número de pessoas envolvidas com todo o leque de

drogas proibidas. As técnicas disciplinares empregadas para a

manutenção da Proibição capturam parcela considerável da população,

submetendo-as a diversos feixes de poder coercitivo. Essas técnicas as

manifestam na medicalização da relação entre médicos e indivíduos

(construção do monopólio médico chancelado pelo Estado sobre as

drogas legais) e na criminalização de um grande número de drogas

amplamente utilizadas, fato que aciona o aparato jurídico-penal-

carcerário, que incide sobre os setores estigmatizados, pobres e

marginalizados da população.97

Essa questão faz com pensemos a sobre legalização ou não das

drogas ilícitas, assim como, nos faz pensar sobre nossa posição. Basta dizer

que acreditamos que o problema não se encontra na legalização ou não das

96 Thiago RODRIGUES, Política e drogas nas Américas, p. 163. 97 Ibid., p. 163.

Page 74: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

65

drogas, pois se esse problema for resolvido apenas de forma estratégica

somente será legitimado qual mercado lucrará mais; o ilícito que continuará

a explorar a mão de obra de crianças, transformando pais de família em

bandidos e financiando o poder paralelo, ou ainda, o lícito que passará a

contar com um arsenal ainda maior de substâncias, que ao utilizar

estratégias de marketing sofrerão um aumento considerável de consumo,

fortalecendo ainda mais a indústria das substâncias psicoativas

(laboratórios, indústria de bebidas e cigarros).

Dessa maneira, os usuários perderiam dos dois lados, na medida em

que ao manter determinadas drogas como substâncias ilícitas, aprisiona-se

indivíduos aos estigmas sociais – a personagem do marginal, do

irrecuperável, do dependente –, impedindo que estes tenham uma real

inclusão social; ao passo que ao transformar as substâncias ilegais em lícitas

provavelmente teríamos um aumento do consumo dos indivíduos que

estariam sujeitos a indústria da drogas, que como vimos, ao mesmo tempo

em que informa os malefícios do uso abusivo de determinada droga,

incentiva seu consumo abusivo utilizando-se da indústria cultural.

Poderíamos pensar também que a associação da droga com a

marginalidade/imoralidade seriam um dos motivos do estigma do uso de

drogas, mas não só o estigma, sobretudo o desvio de atenção social gerando

um falso problema: as drogas, quando o seu consumo abusivo está ligado às

condições precárias da existência e estas acionam as disposições culturais e

existenciais para o consumo.

Assim, vemos que problema surge “quando uma cultura

politicamente dominante da maioria impõe sua forma de vida às minorias e

assim nega uma efetiva igualdade de direitos a cidadãos de outra origem

Page 75: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

66

cultural. Isso diz respeito a questões políticas que atingem a auto-

compreensão ética e a identidade dos cidadãos”98, ou seja, quando o

interesse da razão é invertida em uma razão interesseira e suas ações/idéias

servem apenas para justificar a desigualdade, não considerando as

contradições sociais e o fato de que a realidade é construção, descontrução e

reconstrução constantes. “No nível individual esse processo chama-se

racionalização; no nível da ação coletiva, denomina-se ideologia.”99

Até mesmo a pretensa ‘cura’ do indivíduo institucionalizado, é

passível da crítica, ao passo que de um lado “a pessoa deve obter maior

liberdade de escolha e autonomia, na medida de sua individuação; de outro

lado, essa ampliação dos graus de liberdade cai sob uma descrição

determinista: a própria emancipação em relação à coerção estereotipada de

expectativas de comportamento institucionalizadas é descrita como uma

nova expectativa normativa – como instituição.”100

Tendo apresentado alguns dos principais aspectos relativos ao

fenômeno das drogas, falaremos do Espaço Fernando Ramos da Silva,

instituição pioneira no ABC paulista no que se refere à atenção diferenciada

os usuários de substâncias psicoativas e na utilização de oficinas como

recurso terapêutico.

98 Jürgen HABERMAS, Inclusão: integrar ou incorporar?, Novos Estudos CEBRAP, 52, p. 111. 99 IDEM, Conhecimento e interesse, Coleção os Pensadores – História das grandes idéias do

mundo ocidental, p. 298. 100 IDEM, Pensamento Pós-Metafísico: estudos filosóficos, p. 183.

Page 76: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

CAPÍTULO II

O ESPAÇO FERNANDO RAMOS DA SILVA

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II

Nosso teatro precisa estimular a avidez da inteligência

e instruir o povo no prazer de mudar a realidade.

Nossas platéias precisam não apenas saber que

Prometeu foi libertado, mas também precisam

familiarizar-se com o prazer de libertá-lo. Nosso

público precisa aprender a sentir no teatro toda a

satisfação e a alegria experimentadas pelo inventor e

pelo descobridor, todo triunfo vivido pelo libertador.

Bertolt Brecht

2.1 – O ESPAÇO FERNANDO RAMOS DA SILVA

A Região do ABC Paulista é constituída por sete cidades: Santo

André, São Bernardo do Campo, São Caetano do Sul, Mauá, Ribeirão Pires,

Rio Grande da Serra e Diadema. De acordo com os dados apresentados pelo

Censo 2000/IBGE, Diadema conta com um total de 357.064 habitantes,

sendo 175.109 de homens (49%) e 181.955 (51%) de mulheres, 11,6 mil

habitantes por km², sendo a segunda maior densidade demográfica do

Brasil. 35% dos habitantes vivem com até 2 salários mínimos, sendo que

14% da população vive em situação de total miserabilidade, sem nenhum

rendimento. O município também conta com um índice de violência dos

mais altos do país, tendo como principal causa de mortalidade as causas

externas (assassinatos, acidentes de transito e outras).

Tradicionalmente Diadema é uma cidade na qual a esquerda política

brasileira tem vencido as eleições nos últimos 15 anos; O Partido dos

Trabalhadores – PT, administrou a cidade por 3 mandatos, tendo perdido a

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69

eleição de 1996 para o Partido Socialista Brasileiro – PSB e vencido

novamente em 2001 e 2004.

É nessa realidade que o trabalho de Lima, se desenvolve. Em sua

dissertação de Mestrado intitulada: Espaço Fernando Ramos da Silva; um

projeto de tratamento e prevenção à dependência de drogas em Diadema,

desenvolvida na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a

orientação do Prof. Dr. José Leon Crochik e Prof. Dr. Odair Sass, busca

descrever e analisar a criação e o desenvolvimento de uma instituição de

atendimento a dependentes de drogas em Diadema, interesse que surge após

“um estudo realizado pela Secretaria de Saúde de Diadema – SP, nos meses

de abril e maio de 1996, sobre os atendimentos psiquiátricos do Pronto-

Socorro Central”101

O Espaço Fernando Ramos da Silva foi inaugurado dia 25 de outubro

de 1996, nascendo à partir do modelo de multidisciplinaridade do PROAD

– Programa de Atendimento e Orientação a Dependentes de Drogas da

Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP e de um histórico da

produção e consumo de arte de Diadema. O Espaço Fernando Ramos da

Silva surge homenageando um artista da cidade que teve um fim trágico

como tantos adolescentes dependentes de substâncias psicoativas de

Diadema e do mundo todo. Seu brilhantismo como ator no filme “Pixote –

A lei do mais fraco”, realizado em 1980, de Hector Babenco ficou

esquecido numa fusão entre o personagem e o ator, entre a pessoa e a droga,

101 Sérgio A. LIMA, Espaço Fernando Ramos da Silva: Um projeto de tratamento e prevenção ao

uso de drogas em Diadema, p. 12.

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70

uma sobreposição de papéis que o levou ao seu fim trágico na morte por

assassinato de policiais, que caçavam o Pixote e não o Fernando Ramos.

Os policiais o caçavam pelas ruas da cidade como se ele fosse o

personagem do filme. Essa confusão talvez tenha se estabelecido porque,

numa tentativa de fazer um golpe publicitário, o diretor Hector Babenco

apresentou o ator, antes de iniciar o filme, como se o mesmo fosse um

'‘menino de rua'’ mostrou a sua moradia como sendo na favela que estava

ao fundo desse cena.102

A instituição se propôs a inovar, utilizando-se do tratamento

ambulatorial e de oficinas expressivas que denominou “oficinas

terapêuticas” como forma de intervenção na dependência de drogas, com a

proposta de oferecer um “espaço” no qual os indivíduos que tenham uma

relação problemática com substâncias psicoativas possam procurar. Com o

objetivo de trabalhar com a personagem do artista e não a personagem do

marginal difundida pela cidade.

O EFRS (Espaço Fernando Ramos da Silva) surgiu, assim, como uma

intervenção no problema da dependência de drogas no município de

Diadema, trazendo a idéia de proporcionar um atendimento digno e

capaz de proporcionar uma autonomia àqueles adolescentes e adultos que

sofrem de problemas ligados ao uso lícito e ilícito de substâncias

psicoativas.103

102 Sérgio A. LIMA, Espaço Fernando Ramos da Silva: Um projeto de tratamento e prevenção ao

uso de drogas em Diadema, p. 01. 103 Ibid.,p. 12.

Page 80: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

71

Atualmente a instituição é o ambulatório de referência para o

desenvolvimento de ações de prevenção, tratamento, projetos e pesquisa

relacionados ao uso de substâncias psicotrópicas e redução de danos no

Município de Diadema, tornando-se um CAPSad (Centro de Atenção

Psicossocial ao uso de álcool e outras drogas) em dezembro de 2002. A

instituição procura manter sua proposta inicial; “conseguir mostrar que o

problema não está no uso de drogas, mas sim na maneira como ela é usada e

que este uso reflete positivamente, uma denúncia por parte do indivíduo, de

uma maneira peculiar de a sociedade atual tratá-lo.”104

AS METAMORFOSES NO PROJETO TERAPÊUTICO DO EFRS

No projeto de inauguração o EFRS atendia prioritariamente

adolescentes que utilizavam substâncias psicoativos de modo abusivo ou

dependente. No entanto, este perfil de usuários passou por metamorfoses

radicais desde a fundação da instituição.

No projeto inicial do EFRS não constava um limite de idade, apesar de

ter sido enfatizado que o atendimento seria para adolescentes. De inicio,

em reunião de equipe, estabeleceu-se que o limite para atendimento era a

idade de 18 anos. Posteriormente, esse limite ampliou-se para 21 anos e,

mesmo com esse limite, pacientes de idade superiores estavam sendo

atendidos. Alguns sob a alegação de serem familiares de pacientes e

outros sem uma justificativa aparente. Estes ficavam sendo pacientes de

104 Sérgio A. LIMA, Espaço Fernando Ramos da Silva: Um projeto de tratamento e prevenção ao

uso de drogas em Diadema, p. 65.

Page 81: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

72

exceção, porém o número não era tão pequeno para ser considerado

como tal.105

No ano de 1997, com a nova administração da cidade, foi aceita a

proposta de mudança do modelo de atendimento do EFRS. Em abril deste

mesmo ano o EFRS passou a atender usuários de todas as faixas etárias,

adotando também, novas diretrizes no atendimento e regulamentos, sendo

instituído função de Técnico de Referência.106

Quanto aos regulamentos, já existiam três regras contratuais, discutidas

sempre que o paciente se inseria na instituição: a) Não se podia usar nem

portar droga dentro da Instituição; b) Não se podia passar ou traficar

droga dentro da instituição e c) Não se podia agredir física ou

verbalmente outro paciente ou profissional da equipe técnica.

Obviamente, não podíamos ter regras muito rígidas, mas precisávamos

de normas que preservassem a Instituição como um lugar de tratamento e

que não a reduzissem, nos seus imaginário, a apenas mais um local de

encontro para uso de drogas.107

Os atendimentos consistem em um acolhimento inicial no Grupo de

Acolhimento e posteriormente de uma triagem individual para traçar o

plano terapêutico, que pode contar com: médico, psiquiatra, psicólogo,

assistente social, grupos psicoterapêuticos, grupo de atendimento aos

105 Sérgio A. LIMA, Espaço Fernando Ramos da Silva: Um projeto de tratamento e prevenção ao

uso de drogas em Diadema, p. 14. 106 Profissional da equipe que acompanharia mais de perto o projeto terapêutico de determinado

paciente, sendo a pessoa procurada pelo usuário do serviço caso surgisse alguma questão. Esse

profissional também ficava responsável de apresentar o caso do paciente nas reuniões semanais de

equipe quando necessário. 107 Ibid., p. 16.

Page 82: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

73

familiares e as oficinas terapêuticas, que servem, “como facilitador da

aderência do paciente à instituição e de elemento denunciador de possíveis

conflitos sociais escondidos sob esse problema social: a dependência de

drogas.”108

As mudanças da instituição foram e continuam constantes, a

demanda atendida atualmente é em sua grande maioria composta por

adultos, como aponta os levantamentos feitos pela equipe da instituição à

partir dos prontuários dos usuários desde a fundação do EFRS em 1996 até

junho de 2002.109

Tabela 1 – Mudança referente a Faixa Etária atendida pelo EFRS.

Idade 1996-98 2001-02

10 - 19 anos 39% 17,50%

20 - 29 anos 27% 17%

30 - 49 anos 27% 48%

Fonte: Secretaria Municipal de Saúde / Prefeitura Municipal de Diadema – Espaço “Fernando Ramos da

Silva” - período de outubro/96 a junho/2002

Como mostra a tabela 1, a faixa etária atendida no EFRS mudou

desde 1997, data em que a instituição passou a atender usuários de todas as

faixas etárias, aumentando em 21% o atendimento de adultos acima de 30

anos. Embora vejamos essa mudança no perfil ainda podemos observar que

as faixas entre 10-19 anos e 30-49 anos apresentam-se como mais 108 Sérgio A. LIMA, Espaço Fernando Ramos da Silva: Um projeto de tratamento e prevenção ao

uso de drogas em Diadema, p. 67. 109 Resultados obtidos após levantamento de prontuários dos pacientes ativos na instituição.

Apresentados no I Encontro do Programa URB-AL.

Page 83: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

74

vulneráveis à dependência de drogas, mantendo a representação conjunta de

66% em 1996 e 66,5% em 2002. Observamos também um aumento dos

usuários de álcool e uma diminuição dos usuários de cocaína, como mostra

a tabela 2.

Tabela 2 – Mudança do Perfil dos usuários matriculados no EFRS drogas de uso 1996-98 2001-02

álcool 37% 60,50%

cocaína 41% 4,50%

múltiplas 8,10% 22,50%

Fonte: Secretaria Municipal de Saúde / Prefeitura Municipal de Diadema – Espaço “Fernando Ramos da

Silva” - período de outubro/96 a junho/2002

Da mesma forma, a abertura ao atendimento a todas as faixas etárias

possibilitou uma maior aderencia dos usuários de álcool, principalmente

àqueles individuos que não conseguiam se ‘re-orgnizar’ após as internações,

ou ainda, não conseguiam manter a abstinência absoluta proposta pelos

programas que seguiam os 12 passos. Com relação a mudança no perfil dos

usuários de cocaína é preciso levar em conta duas considerações. A

primeira refere-se novamente amudança de perfil de atendimento, pois

quando o EFRS foi inaugurado e atendia adolescentes, a demanda que

chegava na instituição gealmente tinha envolvimento com o uso de alguma

droga iícita – a maioria dos pais achavam aceitável que o filho chegasse em

casa algumas vezes alcoolizado, da mesma forma que achavam imperdoável

que o mesmo chegasse com a consciência alterada por alguma substância

ilegal. A segunda refere-se ao novo perfil de atendimento, que contava em

sua grande maioria de adultos desempregados, afastados pelo INSS ou

Page 84: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

75

aposentados, que traziam em suas histórias de vida o uso de álcool de forma

‘controlada’ até determinado momento de sua vida – muitos deles tendo

feito o primeiro abuso da substância ainda na adolescencia –; existe ainda

um último fator, que refere-se ao aumento dos usuários de multiplas drogas

– entendido como uso de mais de duas substâncias, de acordo como a OMS

– , contando com usuários que em sua maioria fazem o uso concomitante de

alcool e cocaína, entre outros. É importane destacar que este número seria

maior se fosse associado o uso de tabaco ou de antidepressivos como

segunda substância, haja visto, que é anotado no prontuário apenas a droga

que o indivíduo acredita necessitar de ‘tratamento’ e que muitas vezes esse

usuário faz uso das substâncias citadas anteriormente.

Tabela 3 – Mudança de Gênero dos usuários atendidos no EFRS

Sexo 1996-98 2001-02

Masculino 86% 75,50%

Feminino 14% 24,50% Fonte: Secretaria Municipal de Saúde / Prefeitura Municipal de Diadema – Espaço “Fernando Ramos da

Silva” - período de outubro/96 a junho/2002

A tabela 3 mostra a mudança no perfil de Gênero dos usuários que

procuraram o EFRS de 1996 a 2002; o aumento da porcentagem de

mulheres que procuraram tratamento deve-se principalmente ao

atendimento do uso de sedativos/hipnóticos e cocaína/crack, como fica

explicitado de maneira mais clara na tabela 4 que mostra o perfil atual dos

usuários matriculados no EFRS.

Page 85: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

76

Tabela 4 – Distribuição Local de usuários de drogas por sexo e substância.

Substância Masculino Feminino Total M&F

Álcool 64,60% 46,80% 60,00%

Maconha 6,10% 5,70% 5,90%

Sedativos/hipnóticos 1,70% 13,70% 4,70%

Cocaína / crack 3,60% 7,20% 4,50%

Estimulantes (cafeína) 0,50% 0% 0,40%

Alucinógenos 0,20% 0,70% 0,40%

Tabaco 0,70% 0,70% 0,80%

Solventes voláteis 0,70% 0,70% 0,80%

Múltiplas drogas 21,90% 24,50% 22,50%

100% 100% 100% Fonte: Secretaria Municipal de Saúde / Prefeitura Municipal de Diadema – Espaço “Fernando Ramos da

Silva” - junho/2002.

Os dados levantados no EFRS apontam para a necessidade de

investimento em políticas que incentivem a criação de mais serviços

substitutivos de atendimento ao uso de drogas. Da mesma forma, sabemos

que se os dados colhidos na instituição fossem mais precisos esses

resultados seriam ainda maiores – existe uma grande dificuldade em se

preencher os prontuários por completo por parte dos técnicos da equipe –, a

discussão sobre as dificuldades de registro nas instituições públicas não são

uma novidade (que infelizmente não teremos tempo de apresentar aqui).

Entretanto, os dados colhidos no EFRS apresentam uma visão geral sobre a

realidade na qual estava inserida nossa participante da pesquisa, assim

como, possibilita uma visão geral, mesmo que limitada do problema – pois

se trata apenas de Diadema – das drogas no nosso cotidiano. A seguir

apresentaremos os grupos de acolhimento e as oficinas terapêuticas

Page 86: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

77

desenvolvidas no EFRS, atividades que fazem parte do repertório de

atendimento ao indivíduo que utiliza substâncias psicoativas e procura

‘tratamento’ na instituição.

OS GRUPOS DE ACOLHIMENTO

Os Grupos de Acolhimento do EFRS servem como porta de entrada

para usuários que procuram tratamento das dependências químicas. Um

grupo rotativo em que a permanência do usuário depende da sua vontade

em “tratar-se”, o grupo consiste em trocas de experiências tanto dos usos,

quanto das estratégias para conseguir reduzir ou parar o consumo de

substâncias.

Ao que parece, os Grupos de Acolhimento são um instrumentos

importantíssimos na busca de individuação do dependente de drogas, visto

que em muitos casos o indivíduo – que ao tornar-se o ‘dependente de

drogas’ tem sua identidade reduzida apenas a essa personagem– deixava a

personagem do drogado/alcoólatra, mas não conseguia vivenciar/recuperar

novamente as personagens perdidas: pai, irmão, filho, marido, mulher etc.,

restando muitas vezes como única alternativa a re-posição da personagem

anterior que representava e era reconhecida (dependente/alcoolista), ou

ainda, contentar-se em representar a personagem ex-dependente.

Nos Grupos de Acolhimento, os integrantes trazem fragmentos de

suas histórias de vida, seus períodos de internação, abstinência, recaída e

superação, sendo que nestes espaços são trabalhados outros aspectos da

vida dos pacientes que não estavam relacionados diretamente com o uso de

Page 87: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

78

substâncias, buscando ampliar as possibilidades de troca na vida pública.

Partem da perspectiva do mundo da vida que se articula, ele mesmo, no

médium da linguagem e que “abre para seus membros um horizonte de

interpretação para tudo o que eles podem experienciar no mundo, tudo

aquilo a propósito do que se podem entender e com o que podem

aprender”110, podemos tomar como hipótese que as dinâmicas familiares e

as re-posições das personagens exercidas pelos seus membros – que

prendiam essas famílias a mesmice –, podem ser questionadas e superadas

por àqueles que conseguirem re-pensar suas histórias de vida. Isso ocorreria

na medida em que alguém ao relatar a maneira que encontrou para

modificar sua relação com alguma substância, é reconhecido pelo grupo –

que não é ‘direcionado’ para ver aquele membro como alguém ‘superior’ –

como um outro possível, no sentido meadiano do termo.

AS OFICINAS TERAPÊUTICAS NO ESPAÇO FERNANDO RAMOS

DA SILVA

É importante ressaltar que o nome e o projeto das oficinas

terapêuticas não resultam da experiência do EFRS, elas surgiram do

CAPSI111 – antigo ambulatório de Saúde Mental de Diadema – como

técnica utilizada na socialização de usuários psicóticos e neuróticos graves,

que, segundo Valero, era uma “possibilidade de flexibilizar essa identidade

do louco com a loucura: todo o caminho em oficinas trilhado a partir de

então vai passar por esse balizamento. Como ator, autor, pintor, cantor, etc.

o indivíduo pode deixar a unicidade de ser louco, para a qual parecem

110 Jürgen HABERMAS, Verdade e Justificação: ensaios filosóficos, p. 127. 111 Centro de Atenção Psicossocial Integral

Page 88: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

79

convergir todos os aspectos de sua vida a partir do diagnóstico, ocupando

outro lugar no mundo, que, como qualquer ‘lugar artístico’, pressupõe o

reconhecimento de um público.”112 E que segundo Galetti são, em grande

parte das vezes, “os dispositivos que operam esta relação com a

exterioridade, brecha pela qual os pacientes e os terapeutas encontram

‘saídas além da clínica’.”113

Lima escreve que, “a experiência em outras instituições de

tratamento desses tipos de pacientes era conhecida, pelos técnicos do

CAPSI. Mas, dentro do EFRS estas oficinas vinham com uma nova

proposta, diferente das oficinas terapêuticas do CAPSI, ocupam o lugar

central no projeto terapêutico, pois a todo paciente que lá chega, é proposta

a participação em alguma oficina terapêutica.”114

Ocorreram dificuldades em se instaurar essas oficinas terapêuticas no

EFRS na época de sua fundação devido as mudanças políticas no município

de Diadema, “porque os contratos dos professores de arte eram e são feitos

semestralmente e, a cada renovação, não havia segurança de que os mesmos

professores mantidos.”115 Lima, ainda atribui a falta de treinamento

profissional um dos fatores da dificuldade de trabalho com os usuários do

EFRS e, nos dá como exemplo um fato acontecido com a oficina de teatro:

112 Patrícia V. VALERO, É preciso levar o delírio à praça pública: Sofrimento psíquico, artes

plásticas e inclusão social, p. 78. 113 Maria C. GALLETTI, Oficina em saúde mental: instrumento terapêutico ou intercessor

clínico?, p. 124. (grifos da autora). 114 Sérgio A. LIMA, Espaço Fernando Ramos da Silva: Um projeto de tratamento e prevenção ao

uso de drogas em Diadema, p. 58. 115 Ibid., p. 59.

Page 89: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

80

(...) foi programada uma enquete para ser apresentada numa das festas de

aniversário do EFRS. Os alunos, o professor e o monitor empenharam-se

intensamente fazendo vários ensaios, porém no dia da apresentação

nenhum dos pacientes apareceu, deixando frustrados o monitor e o

professor. O professor negou estar frustado com o não comparecimento

dos alunos, porém esta frustração ficou evidente, pois o mesmo não

retornou mais ao EFRS.116

Goffman ensina que: “se as pessoas estão presentes na situação, mas

não são reconhecidas como participantes do encontro, o nível sonoro e o

espaço físico deverão então ser regulados de maneira a testemunhar o

respeito – e não a suspeita – por essas pessoas imediatamente

acessíveis.”117

Durante a experiência de estágio do Pesquisador no EFRS se pôde

presenciar esse tipo de acontecimento algumas vezes. Uma questão que

surge e que pode ser tomada como hipótese para o ocorrido, seria a maneira

na qual é conduzida a oficina terapêutica e sua apresentação para o público.

Isso nos leva a um questionamento: será que ao invés da enquete ter sido

uma produção do consenso resultante de um agir comunicativo, esta não

estaria sendo trabalhada sob a lógica do agir estratégico voltado para

sucesso? Levando em consideração inclusive a coincidência do final da

contratação do professor? Utilizaremos outro exemplo que talvez possa

deixar mais claro nossa colocação.

116 Sérgio A. LIMA, Espaço Fernando Ramos da Silva: Um projeto de tratamento e prevenção ao

uso de drogas em Diadema, p. 59. 117 Ervin GOFFMAN, A situação negligênciada, Os momentos e os seus homens, p. 153.

Page 90: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

81

Em julho de 2003, por exemplo, os pacientes resolveram fazer uma

Festa Julina118 um evento discutido e elaborado pelos usuários da

instituição, com o acompanhamento do monitor e da professora de teatro.

Esta festa diferenciava-se das anteriores, ocorrendo pela primeira vez fora

dos portões da instituição.

Os pacientes trouxeram para os técnicos da instituição o interesse de

envolver a comunidade na festa; isso em um primeiro momento assustou os

técnicos do EFRS pois imaginavam que talvez os usuários não aparecessem

nas apresentações no dia do evento, todavia, após duas reuniões de equipe

foi acordado que seria possível. Contrariando as expectativas da equipe

técnica, esses pacientes participaram semanalmente das reuniões

preparativas da festa, envolveram inclusive os usuários do CAPSI,

dividindo funções na organização do evento. Sendo acordado entre os

próprios pacientes que estes não fariam uso de nenhuma substância no dia

da festa.

Por outro lado, ocorreu também um evento em que estes foram

“convidados/convocados” pela prefeitura para uma apresentação; sem

nenhuma discussão sobre o interesse dos artistas. Neste episódio no dia da

apresentação todos os participantes faltaram, sendo que os participantes da

Cia. Re-Visão justificaram na semana seguinte que não estavam preparados

para este tipo de apresentação, pois não havia sido feito um ‘convite

antecipado’ e não tinha sido passado o objetivo da apresentação para os

mesmos.

118 Nome dado pelos pacientes por ser realizada em julho.

Page 91: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

CAPÍTULO III

A ARTE COMO RECURSO TERAPÊUTICO AO USO DE DROGAS

Page 92: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

III

1 - OFICINA TERAPÊUTICA: QUE OFICINA É ESSA?

Uma obra de arte não está obrigada a ser entendida e

aprovada em princípio – particularmente – por quem quer

que seja. A função da arte não é de passar por portas abertas,

mas de abrir portas fechadas.

E. FISCHER

No capítulo I procuramos mostrar como ocorreram as transformações

do significado atribuído às drogas desde seu uso pela tradição, até sua

inclusão no mercado e transformação em objeto de consumo, assim como,

apresentamos a ‘evolução’ das formas de tratamento dos problemas

decorrentes do uso e abuso dessas substâncias. No Capitulo II apresentamos

o EFRS, instituição que surge do questionamento aos tradicionais métodos

de tratamento do uso de drogas, utilizando as oficinas terapêuticas como um

diferencial no ‘tratamento’. Vimos que as ‘oficinas’ passaram a exercer um

papel de destaque, tanto como terapêutica quanto promotora da reinserção

social. No entanto ainda nos restam algumas questões: afinal o que é uma

oficina terapêutica? Como distinguir uma oficina terapêutica de uma oficina

de arte? O que se pode ‘trabalhar’ nessas oficinas? Tentando responder a

essas questões, neste capítulo propomos apresentar um breve histórico do

surgimento das oficinas terapêuticas em saúde mental, mas antes,

retomemos o significado dos termos oficina e terapêutica.

Page 93: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

84

Oriundo do Latim, o termo officina tem significações diversas:

oficina, tenda, fábrica, manufatura, forja; oficina onde se cunham moedas'.

O dicionário Houaiss, por exemplo, apresenta várias acepções para o termo.

“s.f. (sXIV cf. FichIVPM) 1 lugar onde se elabora, fabrica ou conserta

algo 1.1 lugar onde se consertam automóveis 1.2 GRÁF JOR numa

gráfica ou empresa jornalística, local onde estão instalados os

equipamentos de composição, clicheria, paginação, impressão e

acabamento 2 m.q. laboratório ('atividade') 3 m.q. workshop ('curso') �

ETIM lat. officína,ae (opificína em Plauto) 'oficina, tenda, fábrica,

manufatura; donde acp. mais precisas em linguagem técnica: galinheiro,

aviário; forja; oficina onde se cunham moedas'; ver ofici- e faz-; f.hist.

sXV ofiçinas � noção de 'oficina', usar suf. –aria.”119

Já o termo terapêutica oriundo do Grego therapeutikê tem entre suas

significações: 'arte, ciência de cuidar e tratar de doentes ou de doenças, que

se refere ao cuidado e tratamento de doenças'; aparecendo no Houaiss

como:

“s.f. (1601 cf. RecCir) MED m.q. terapia ('tratamento', 'intervenção') �

ETIM substv. do gr. therapeutikê (subentendido tékhné)'arte, ciência de

cuidar e tratar de doentes ou de doenças', fem. do adj.gr.

therapeutikós,ê,ón 'que se refere ao cuidado e tratamento de doenças'; ver

terap-; f.hist. 1601 therapeutica ”120

Se no termo ‘oficina’ encontramos expressões que apontam para um

lugar onde se fabricam ou se consertam algo, ou ainda um espaço que serve

119 Antônio HOUAISS & Mauro de S. VILLAR, Dicionário da Língua Portuguesa, p. 2052. 120 Ibid., p. 2699.

Page 94: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

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como laboratório; e no termo ‘terapêutica’ uma expressão que aponta para a

idéia de tratamento, de intervenção; podemos pensar que oficina terapêutica

é o lugar onde se produz um tratamento; um laboratório de intervenção.

Entretando, algumas perguntas ainda insistem: de que ‘tratamento’ e de que

‘intervenção’ estamos falando?

Para tentar responder a mais estas questões voltaremos nosso olhar

para meados do século XVII, antes mesmo da instalação da psiquiatria no

campo médico, período no qual os “inadaptados” às regras sociais e

“desacreditados” eram reunidos nos grandes asilos, sob o cuidado não

médico no qual a utilização do trabalho e da atividade, revelaram sua

função, e a partir daí dividiremos historicamente o uso das oficinas no

campo da saúde mental em três lógicas que até hoje se sobrepõem, como

propõe Guerra.121

A lógica do desvio social: característica do século XVII, quando o

enclausuramento da loucura era visto como punição para os ‘desordeiros da

ordem social’, um “período de condenação burguesa à ociosidade, a loucura

e outras formas de improdutividade as quais tornaram-se caso de polícia.

Não era a intenção a cura, mas antes um imperativo de trabalho que fazia

surgir nesse cenário um grande contingente de casas correcionais de

internamento.”122

121Andréa M. C. GUERRA, Oficinas em saúde mental: percurso de uma história, fundamentos de

uma prática, Oficinas terapêuticas em saúde mental: sujeito, produção e cidadania, p. 26. 122 Ibid., p. 26.

Page 95: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

86

Podemos inferir aqui, que o uso da atividade e do trabalho não nasce,

portanto, no território psiquiátrico, e que sua função era a manutenção do

status quo da ordem social. A burguesia pretendia utilizar o trabalho

alienado, como terapêutica da alienação; no entanto, esse modelo fracassou

devido, “sobretudo, à instabilidade econômica e ao desemprego gerados nas

regiões circunvizinhas em virtude do trabalho gratuito e obrigatório

realizado nessas casas” 123; porém esse labor, sem utilidade nem proveito

será utilizado posteriormente enquanto recurso terapêutico pela psiquiatria.

Philippe Pinel, considerado o pai da psiquiatria, participante da

Revolução que derrubou Luis XVI, movido pelos movimentos libertários da

época, acreditava na idéia de “anormalidade” e “animalidade” do Louco,

separando os pobres dos loucos, vendo esses últimos como doentes. Pinel

promoveu a primeira mudança no tratamento dos transtornos mentais, sendo

o pioneiro ao soltá-los dos grilhões de La Salpêtrière e de La Bicêtre,

porém, contraditóriamente, com essa conquista colocou os “anormais” nos

Hospícios.

Neste período surge o tratamento moral – um nome dado ao

tratamento que tinha como foco central a formação de grupos que

encorajariam o sentimento de auto-respeito e dignidade. Pinel acreditava

que era preciso isolar o indivíduo numa instituição-especial, primeiro para

retirá-lo de suas percepções habituais, que teoricamente teriam gerado o

problema, para depois poder controlar suas condições de vida. “No

tratamento moral, o hospital era o centro organizador da terapêutica, e o

123 Andréa M. C. GUERRA, Oficinas em saúde mental: percurso de uma história, fundamentos de

uma prática, Oficinas terapêuticas em saúde mental: sujeito, produção e cidadania, p. 27.

Page 96: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

87

médico, a autoridade para o paciente”124, a idéia de isolar o ‘desviante’ e

‘ensinar-lhe’ como viver novamente na comunidade, é utilizado

posteriormente nas colônias terapêuticas (agrícolas), cujo objetivo era

produzir a vida de uma comunidade rural e a “forma terapêutica”, utilizada

era a praxiterapia (ou laborterapia), o trabalho como fator de cura. Isso faz

das colônias de tratamento atuais, anacrônicas, pois como seria possível

utilizar o trabalho alienado para ‘curar’ o alienado?

De acordo com Guerra, “se o século XVII foi marcado pelo grande

internamento e o século XIX pelos manicômios, o século XX surge como o

século da invenção no campo terapêutico da agora não mais psiquiatria, mas

saúde mental”125, sobretudo a partir da segunda metade do século, devido

“à ineficácia terapêutica somada à denúncia sociopolítica sobre o

desrespeito aos direitos básicos do interno (...)”126, no qual o modelo

psiquiátrico tradicional passa a ser visto como segregador e reforçador da

exclusão social, surgindo a tentativa de superação dos desvios da ortopedia

psiquiátrica clássica, culminando assim, no movimento da reforma

psiquiátrica, com a assistência reorganizada a partir de modelos abertos e

dispositivos reabilitadores de tratamento. Nesse novo modelo, as ‘oficinas’

aparecem como promotoras da individuação, da cidadania e da reinserção

social.

124 Andréa M. C. GUERRA, Oficinas em saúde mental: percurso de uma história, fundamentos de

uma prática, Oficinas terapêuticas em saúde mental: sujeito, produção e cidadania, p. 28. 125 Ibid., p. 29. 126 Ibid., p. 29.

Page 97: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

88

Contudo, a reformulação referente à reabilitação e ao trabalho

somente ocorreu concretamente na Itália com o movimento antimanicomial

da Psiquiatria Democrática Italiana. Essas mudanças culminaram no que

hoje se denomina 'reforma psiquiátrica', que tem como pressuposto,

questionar a normatização e o controle psiquiátrico. A reforma tem como

projeto a transformação do modelo clássico da psiquiatria e a reivindicação

da cidadania do estigmatizado. Sendo que essa transformação deve ser

obtida pela desinstitucionalização.

Desse modo, o que se procura é um trabalho prático de transformação

que pretende desmontar a lógica manicomial para remontar o problema,

modificando o modo como são 'tratadas' visando a transformação do

sofrimento.

Não interessava mais otimizá-lo (o manicômio) para torná-lo ‘terapêutico’, pois

evidenciava-se que sua própria lógica de funcionamento aprisiona, não apenas

fisicamente, mas subjetivamente, a expressão livre do homem. Nasce, então, a

idéia de superar com o manicômio, em sua forma material e simbólica,

substituindo-o por outros dispositivos abertos e socializantes.127

Não queremos fazer aqui uma leitura ‘romântica’ da reforma

psiquiátrica, pois sabemos que as coisas não funcionaram/funcionam de

uma forma tão contínua assim. Pois se de um lado tínhamos a reivindicação

do fechamento dos manicômios e da reinserção social do ‘anormal’ na

sociedade, de outro, encontramos uma grande resistência por parte dos

empresários médicos, o despreparo das famílias para acolher novamente o

127 Andréa M. C. GUERRA, Oficinas em saúde mental: percurso de uma história, fundamentos de

uma prática, Oficinas terapêuticas em saúde mental: sujeito, produção e cidadania, p. 30-31.

Page 98: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

89

ex-paciente e da sociedade que continua enxergando estes indivíduos como

não humanos.

Sem contar que a desconstrução do modelo asilar não ocorreu/ocorre

concomitantemente com a criação de serviços substitutivos, ficando os

estigmatizados muitas vezes abandonados à própria sorte, perambulando

pelas ruas. Sendo que mesmo a criação dos atuais serviços substitutivos,

gerenciados muitas vezes por profissionais que acreditavam/acreditam no

modelo asilar, acabam transformando os serviços de saúde mental em

manicômios à céu aberto, colaborando com a indústria da loucura, na

medida em que utilizam medidas paliativas de inserção social, como por

exemplo: vales transportes, cestas básicas etc., tornando o indivíduo

dependente da unidade de saúde mental, ou ainda, dependente dos remédios

(drogas), que utiliza para ser anestesiado e contido socialmente.

Neste contexto de criação e reconstrução de novos modos de atenção

aos indivíduos que necessitavam de cuidados; muito mais política do que

clínica, a ‘oficina’, enquanto fazer artístico, aparece com uma nova

proposta, que preconiza o aspecto criativo e inventivo, questiona a

iatrogênia do ambiente asilar-excludente (que utilizando a laborterapia,

estaria explorando a mão-de-obra dos indivíduos ou mantendo-os

ocupados). Assim como a própria noção de terapêutico também acaba

passando por metamorfoses ideológico-conceituais, “da idéia (pineliana)

originária de se ‘curar a doença mental’, passando pelo conceito de

‘promoção da saúde mental’ (psiquiatria comunitária), até chegar à noção

de ‘ampliação das possibilidades de trocas na vida pública’, associando o

Page 99: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

90

caráter político ao clínico democrático”128, reconhecendo com isso, a

pluralidade das formas de vida.

A ARTE COMO POSSIBILIDADE TERAPÊUTICA

Com o intuito de apresentar um melhor entendimento das

metamorfoses teóricos-conceituais ocorridas no uso de técnicas artísticas

enquanto terapêutica na saúde mental, traremos algumas contribuições

importantes, como a encontrada em Valero, que nos traz em seu trabalho

que o uso da arte no âmbito da psiquiatria e psicologia, surge somente após

a segunda metade do século XIX, embora o interesse dos artistas pela saúde

mental existisse há muito mais tempo. A mesma autora coloca que as

primeiras pesquisas da relação entre Arte e Psiquiatria foram realizadas por

Max Simon, no final do Século XIX; posteriormente diversos autores, como

“Lombroso, Morselli, Dantas, Fursac, Ferri e mesmo Charcot se

interessaram pela produção ‘artística’ dos doentes mentais com objetivos

nosológicos e diagnósticos. Mohr, em 1906 fez um estudo comparativo das

produções de doentes mentais, pessoas ‘normais’ e grandes artistas, no qual

percebeu a manifestações de histórias de vida e conflitos pessoais, donde a

possibilidade de investigação da personalidade a partir de desenhos abrirá

campo para a formulação de diversos testes psicológicos (Rorscharch, TAT

etc).”129 Freud também trabalhou com o tema da arte, referindo-se a esta

128 Andréa M. C. GUERRA, Oficinas em saúde mental: percurso de uma história, fundamentos de

uma prática, Oficinas terapêuticas em saúde mental: sujeito, produção e cidadania, p. 31. 129 Patrícia V. VALERO, É preciso levar o delírio à praça pública: Sofrimento psíquico, artes

plásticas e inclusão social, p. 60.

Page 100: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

91

como satisfações substitutivas130, utilizando a Psicanálise para analisar

obras de arte.

No Brasil uma das pioneiras em trabalhos com oficinas artísticas no

campo da saúde Mental foi Nise da Silveira, que em 1946, as utiliza, “como

uma técnica a mais nos hospitais públicos sempre povoados, onde a

psicoterapia individualizada é impraticável, além de ser o menos

dispendioso para a economia hospitalar.”131

Introduziu no âmbito da saúde mental, a noção de atelier, retirada dos

domínios artísticos. Nesses ateliers eram desenvolvidos trabalhos de pintura

e modelagem, sendo privilegiada a criação espontânea, sem interferência de

qualquer tipo por parte de técnicos, sejam eles psicólogos, psiquiatras,

monitores, etc. Silveira, rejeitou a denominação “arteterapia” em seu

trabalho, dizendo que o terapeuta não pode esperar que seu paciente

produza obras de arte.

O atelier era lugar agradável, amplo espaço com janelas sempre abertas

deixando ver velhas árvores. O recinto do atelier foi muitas vezes

espontaneamente escolhido como motivo para pinturas, o que indica

quanto este lugar era significativo para os seus frequentadores.132

Silveira desenvolve seu trabalho, sob influência da teoria junguiana,

fundando o Museu de Imagens do Inconsciente, um lugar que se constituiu

como núcleo de estudos e pesquisa da esquizofrenia, com trabalhos que

130 Sigmund FREUD, O Mal estar na Civilização. 131 Nise da SILVEIRA, O mundo das imagens, p. 16. 132 Nise da SILVEIRA, Imagens do Inconsciente, p. 37.

Page 101: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

92

interessaram muitos críticos e artistas brasileiros pela qualidade estética das

obras.

Outro trabalho significativo no âmbito do desenvolvimento do uso da

arte como método terapêutico é o de Andrade, que em sua tese intitulada:

Terapias Expressivas: uma Pesquisa de Referenciais Teórico-Práticos, traz

um histórico do surgimento e uma afirmação do que acredita ser a função

social e simbólica da arte, “criando substitutos da vida sem nunca ser uma

descrição do real. Permite ao homem expressar e ao mesmo tempo perceber

os significados atribuídos à sua vida. Na sua eterna busca de um tênue

equilíbrio com o meio circundante.”133

Valero critica em parte o trabalho de Andrade, dizendo que “a

conceituação da arteterapia parte, todavia, de uma concepção de arte mais

própria do classicismo, de narrativa, de obra de arte como efeito de uma

causa que é o autor e seu mundo psicológico. Parte ainda de uma

idealização, que é ao mesmo tempo um reducionismo, da obra como

salvação: esta seria o produto de um ensaio de resolução de conflitos,

experiência que instrumentalizaria o autor a lidar melhor com as

vicissitudes da vida.”134

A análise do fazer artístico também foi realizado pelos teóricos da

Escola de Frankfurt, dentre eles Adorno, Horkheimer e Marcuse; este

133 Liomar Q. ANDRADE, Terapias Expressivas: uma pesquisa de referenciais teóricos-práticos,

p. 06. 134 Patrícia V. VALERO, É preciso levar o delírio à praça pública: Sofrimento psíquico, artes

plásticas e inclusão social, p. 64.

Page 102: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

93

último traz uma contribuição significativa com relação ao potencial político

da arte em seu trabalho sobre a Dimensão Estética:

(...) vejo o potencial político da arte na própria arte, na forma estética em

si. Além disso, defendo que, em virtude da sua forma estética, a arte é

absolutamente autónoma perante as relações sociais existentes. Na sua

autonomia, a arte não só contesta estas relações como, ao mesmo tempo,

as transcende. Deste modo, a arte subverte a consciência dominante, a

experiência ordinária.135

Fazendo uso da Psicanálise e da Teoria Crítica, Marcuse procura

demonstrar como a obra de arte pode ser revolucionária, se representar a

predominante ausência de liberdade, rompendo assim com a realidade

social mistificada e abrindo os horizontes da mudança. Isso seria possível

pelo fato da arte refletir o mundo tal qual aparece na própria obra.

Marcuse acredita que existe uma verdade na arte, e que esta “reside

no seu poder de cindir o monopólio da realidade estabelecida (i. e., dos que

estabeleceram) para definir o que é real. Nesta ruptura, que é a realização da

forma estética, o mundo fictício da arte aparece como verdadeira

realidade”136, porém uma realidade que contraditóriamente questiona a

realidade existente. “A ficção cria a sua própria realidade que permanece

válida mesmo quando negada pela realidade estabelecida. O bem e o mal

dos indivíduos confronta-se como bem e o mal social.”137

135 Herbert MARCUSE, A Dimensão Estética, p. 11. 136 Ibid., p. 22. 137 Ibid., p. 38.

Page 103: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

94

Fala sobre o potencial emancipatório da arte, que mesmo como arte

burguesa desvela a opressão sofrida pelos indivíduos, ou seja, de forma

contraditória “a arte inevitavelmente parte do que existe e só como parte do

que existe fala contra o que existe.”138 Utilizando-se da Psicanálise irá dizer

que o Belo da arte reside no domínio de Eros, representando o ‘princípio da

prazer’, revoltando-se então contra o ‘princípio da realidade’ massacrante

na qual estamos inseridos. Sendo assim, a “obra de arte fala a linguagem

libertadora, invoca as imagens libertadoras da subordinação da morte e da

destruição da vontade de viver. Este é o elemento emancipatório na

afirmação estética.”139

Também encontramos em Bastidas140 uma análise refinada e

cuidadosa acerca dos limites da Psicanálise na análise da arte e do belo.

Este autor, fazendo a análise da obra literária japonesa “Sol e Aço” de

Yukio Mishima141, ensina que os conceitos psicanalíticos (desenvolvidos

sob influência do pensamento ocidental), não servem como modelo de

análise universal e que, se estes fossem utilizados, tais análises, seriam

leituras superficiais. Sua constatação nos interessa pelo fato de lembrar

sobre a importância da reflexão acerca dos limites interpretativos, visto que,

sempre partimos de nossos pressupostos para realizar análises dos objetos,

tendendo muitas vezes a um reducionismo dos fenômenos.

138 Herbert MARCUSE, A Dimensão Estética, p. 50. 139 Ibid., p. 70. 140 Cláudio BASTIDAS, A outra Beleza: o estudo da beleza para a Psicanálise. 141 Yukio Mishima, descendente de uma família de samurais, formado em Direito, que dedicou-se

as Artes (literatura e Artes marciais), sendo também ator de cinema e cantor. Cometeu o ‘seppuku’

(suícidio), após invadir um quartel das forças armadas japonesas e ler um texto que criticava a

ocidentalização.

Page 104: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

95

Sua análise de Sol e Aço, trata da visão de um japonês, descendente

de samurais, frente à beleza; fazendo a seguinte pergunta: “como a

psicanálise pode tratar da Beleza das moscas no sangue de um soldado

ferido de morte, da obra de Mishima, sem apelar para suas teorias

psicopatológicas?”142 Bastidas vai dizer que essa análise tenderia a uma

psicopatologização da personagem, caso fosse realizada uma transposição,

sem as devidas adequações do método Psicanalítico e da contextualização

histórica a qual este indivíduo está inserido. Bastidas trás uma contribuição

que nos parece bastante importante para pensarmos o manejo das oficinas

terapêuticas, visto que encontramos nessas, uma pluralidade de formas de

vida, não podendo, nas atuais condições da modernidade, avaliar um

trabalho sem entender seu sentido para o indivíduo.

Com isso, Bastidas mostra que a apreensão de uma atividade artística,

só é possível para o pesquisador que entenda o sentido da obra para seu

autor, ou seja, do lugar da arte na história de vida do indivíduo, pois no

“processo de criação ocorreria (...), a transformação dos pré-objetos em

objetos, do pré-verbal no verbal.”143

Outra importante contribuição é encontrada em Moreno, que

analisando as possibilidades criativas do teatro, também apresenta

referenciais para pensarmos as oficinas terapêuticas, sobretudo aquela que

será nosso foco (oficina terapêutica de teatro). Moreno investe na

142 Cláudio BASTIDAS, A outra Beleza: o estudo da beleza para a Psicanálise, p. 68. 143 Ibid., p. 76.

Page 105: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

96

importância da espontaneidade, um lugar em que segundo esse autor, “a

própria vida é testada.”144

Na concepção de Moreno, no teatro “todos os homens são

mobilizados e se deslocam do estado de consciência para o estado de

espontaneidade, do mundo dos feitos reais, dos pensamentos e sentimentos

reais, para um mundo de fantasia que inclui a realidade potencial.”145 Vai

dizer que o teatro terapêutico é aquele que emprega os pressupostos de um

teatro da espontaneidade para fins terapêutico, ou seja:

Os padrões que os atores envidam produzir ou são situações e papéis que

eles próprios desejam produzir e que poderão estar em seu interior

vivendo em certo grau de desenvolvimento, ou então situações e papéis

dos quais possuem pouca ou nenhuma experiência.146

Para Moreno, existem três relações possíveis entre um ator e seu

papel, que são compatíveis com a concepção de identidade desenvolvida

por Ciampa, que discutiremos adiante. “Na primeira, ele se trabalha dentro

do papel, passo a passo, como se tratasse de uma individualidade diferente.

Quanto mais o ator extinguir seu self particular, mais se capacita a ‘viver ‘o

papel (é identidade pressuposta, re-posta, como negação da totalidade –

AFL) Neste caso, o papel é como a personalidade de alguém que o ator

poderia desejar ter, ao invés da sua mesma. Sua atitude para com seu papel

é de identidade. Na Segunda relação, o ator faz uma média entre sua

concepção do papel e a veiculada pelo autor; neste segundo caso, sua

144 Jacob L. MORENO, O teatro da espontaneidade, p. 45. 145 Ibid., p. 45-46. 146 Ibid., p. 53.

Page 106: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

97

atitude é de integração sintética. (mantendo a mesmice, a re-posição da

identidade pressuposta – AFL) Na terceira, desgostoso, o ator força o papel

específico sobre sua própria individualidade, e distorce as palavras descritas

pelo dramaturgo, criando um estilo pessoal de sua lavra (o ator se torna

também autor de sua história, busca emancipação – AFL).”147

Isso que Moreno ensina e que seria vivenciado pelos participantes do

teatro terapêutico, vai se aproximar daquilo que Glusberg denomina como

performance. Para esse último: “A performance é um questionamento do

natural e, ao mesmo tempo, uma proposta artística. Isso não deve causar

surpresa: é inerente ao processo artístico o colocar em crise os dogmas –

principalmente os dogmas comportamentais – seja isso mediante sua

simples manifestação ou através de ironia, de referências sarcásticas etc.”148

Parece que entender a performance na oficina terapêutica de teatro,

mostrará como os conteúdos criativos do indivíduo, por não ter tipificações

ou estereótipos, podem ser espontâneas e/ou verdadeiras. A performance, ao

que nos parece, possibilitaria a quebra da re-posição e da mesmice, na

medida que propõe uma nova realidade tanto para o ator, quanto para a

platéia.

Recentemente encontramos o trabalho desenvolvido por Vaisberg,

responsável pelo Ser e Fazer149, que é denominado: Oficinas

Psicoterapêuticas. Vaisberg vai partir de uma visão psicanalítica

147 Jacob L. MORENO, O teatro da espontaneidade, p. 56. 148 Jorge GLUSBERG, A Arte da Performance, p. 58. 149 Desenvolvido no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.

Page 107: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

98

winnicottiana, “segundo a qual a psicopatologia psicanalítica deve ser

considerada teoria do sofrimento humano”150, dizendo que aquilo

denominado como Psicanálise, não seria “um conjunto doutrinário que

engloba teorias sobre o aparelho psíquico, a angustia, o narcisismo, o

Édipo, as posições, as pulsões, o simbólico, o real e o imaginário – ou tantas

outras”151, mas sim, da recuperação da Psicanálise como método de

pesquisa do fenômeno humano. Vaisberg amarra o uso do método

psicanalítico winnicottiano com a filosofia Marxista de Politzer e procura

fazer uma análise Materialista das oficinas. A indagação de sua proposta

terapêutica é: “como facilitar, se é que existe realmente essa possibilidade,

que alguém, que sente existir apenas desde um ponto de vista exterior,

possa vir a transformar seu posicionamento existencial de modo a perceber-

se personalizado e integrado a partir de sua própria visão de si e do

mundo?”152

Desse modo, se a experiência estética é incorporada no contexto das

histórias de vida individuais, se são utilizadas para elucidar situações ou

esclarecer determinados problemas de vida, se são impulsos comunicativos

das formas de vida coletiva, então a arte entra no jogo de linguagem que

não se distancia da crítica estética, mas que são antes práticas

comunicativas da vida cotidiana.

150 Tânia A. VAISBERG, Ser e fazer: enquadres diferenciados na clínica winnicottiana, p. 09. 151 Ibid., p. 10. 152 Ibid., p. 51.

Page 108: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

99

A DIFERENÇA ENTRE ARTE E FAZER CRIATIVO

Relacionando tudo o que foi exposto até agora, torna-se necessário

fazer uma distinção entre fazer artístico e fazer criativo, uma separação que

possibilita uma reflexão sobre o papel das oficinas terapêuticas no

tratamento do uso de drogas. Para tanto, buscamos motivos no trabalho

“interesse científico da psicanálise” escrito em 1913 por Freud. Neste

trabalho o pai da Psicanálise vai nos dizer que o “objetivo primário do

artista é libertar-se e, através da comunicação de sua obra a outras pessoas

que sofram dos mesmos desejos desenfreados, oferecer-lhes a mesma

libertação. Ele representa suas fantasias mais pessoais plenas de desejo

como realizadas;”153 e nos alerta ao fato que uma criação não é

automaticamente reconhecida como arte, pois somente “se tornam obra de

arte quando passaram por uma transformação que atenua o que nelas é

ofensivo, oculta sua origem pessoal e, obedecendo às leis da beleza, seduz

outras pessoas com gratificação prazerosa.”154

Isso nos leva a pensar em um primeiro momento que atribuir o termo

“arte” para designar atividades que envolvam o fazer criativo sejam

inadequadas, ao passo que o que é produzido pelos indivíduos envolvidos

neste processo nem sempre contará com o reconhecimento de sua obra.

Contudo, a idéia de ‘arte’ trazida por Fischer nos parece bastante apropriada

para falar do fenômeno que ocorre nas oficinas terapêuticas; a arte

entendida como ‘substituto da vida’, “concebida como o meio de colocar o

153 Sigmund FREUD, O interesse científico da psicanálise, Obras Psicológicas completas de

Sigmund Freud, p. 189. 154 Ibid., p. 189.

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100

homem em estado de equilíbrio com o meio circundante – trata-se de uma

idéia que contém o reconhecimento parcial da natureza da arte e da sua

necessidade.”155

O trabalho de Fischer, assim como o de Glusberg, direciona a

trabalhar com as oficinas terapêuticas como Arte Performática, lembrando

que a performance é como uma arte de fronteira; “no seu contínuo

movimento de ruptura com o que se pode ser denominado ‘arte

estabelecida’, a performance acaba penetrando por caminhos e situações

antes não valorizadas como arte.

Da mesma forma, acaba tocando nos tênues limites que separam a

vida e arte.”156 A performance está ligada a um movimento que encara a

arte como live art. “A live art é a arte ao vivo e também a arte viva. É uma

forma de se ver a arte em que se procura uma aproximação direta com a

vida, em que se estimula o espontâneo, o natural, em detrimento do

elaborado, do ensaiado.”157

Isso nos aproxima do que entendemos por oficina terapêutica, que

para Lopes engloba “todos os dispositivos terapêuticos que usam de alguma

forma o trabalho como instrumento terapêutico”158, é um dispositivo quase

sempre experimental que “não segue uma fundamentação teórica rígida

nem um modelo padrão de funcionamento, um dispositivo que é

155 Ernst FISCHER, A necessidade da arte, p. 11. 156 Renato COHEN, Performance como linguagem, p. 38. 157 Ibid., Performance como linguagem, p. 38. 158 Márcia C. R. LOPES, A contribuição paulistana à Reforma em Saúde Mental brasileira, p.82.

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101

essencialmente construído no quotidiano por seus pacientes e técnicos.”159

localizadas “num campo híbrido, móvel, instável, sem identidade, feito de

experimentações múltiplas e aberto à intersecção com vários campos e

saberes, o que pode garantir a elas um espaço menos restrito – como o de

especialidade em saúde mental – e mais efervescente quanto às

problematizações e descontinuidades produzidas, criando, assim, uma nova

cultura de intervenções, escavada por essas experiências que pouco se

intimidam com o discurso técnico vigente e que tentam escapar do modelo

terapêutico normatizador.”160

É um movimento dialético, na medida em que tira a arte da posição

‘sacra’, inatingível, de um lado e, vai buscar expressar a ‘ritualização’ dos

atos comuns da vida cotidiana, como comer, beber, movimentar, do outro; e

questiona os saberes da clínica e dos diagnósticos. Lembrando que ao

entender as oficinas terapêuticas como oficinas de performance

aproximamo-nos do que poderia ser caracterizado como expressão

anárquica que visa escapar de limites disciplinares. “Ideologicamente, a

performance incorpora idéias da Não-Arte e da chamada Arte de

Contestação.”161 É a experiência criativa e expontânea que dispensa

preparação, como a criaturgia apresentada por Moreno. O artista recriando

imagens, personagens e objetos continua sendo aquele “ser que não se

159 Márcia C. R. LOPES, A contribuição paulistana à Reforma em Saúde Mental brasileira, p.78. 160 Maria C. GALLETTI, Oficina em saúde mental: instrumento terapêutico ou intercessor

clínico?, p.36 161 Renato COHEN, Performance como linguagem, p. 59.

Page 111: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

102

conforma com a realidade. Nunca a toma como definitiva. Visa, através do

processo alquímico de transformação, chegar a uma outra realidade (...).”162

Todavia, o fato de não adotar os pressupostos do fazer ‘artístico’, não

significa dizer que o que é feito na performance, no ato criativo, não tenha

uma objetividade, pois a “eliminação de um discurso mais racional e a

utilização mais elaborada de signos fazem com que o espetáculo de

performance tenha uma leitura que é antes de tudo uma leitura emocional.

Muitas vezes o espectador não ‘entende’ (porque a emissão é cifrada) mas

‘sente’ o que está acontecendo.”163 Isso pôde ser experiênciado pelo

pesquisador diversas vezes nas apresentações que fez com a Cia. Revisão

(principalmente nas performances de teatro mudo). Sendo assim, dado a

rotatividade de participantes das oficinas de teatro – pelo menos é o que se

espera de uma oficina em saúde mental –, a performance aparece como uma

prática interessante, na medida em que cada apresentação acaba sempre

sendo também uma despedida do usuário do grupo, e uma retomada de sua

vida pós instituição.

Desse modo, acreditamos que o conceito de performance permite que

façamos a diferenciação do fazer artístico e do fazer criativo, sabendo de

antemão que este último pode ou não ser reconhecido como ‘arte’ na

medida que está sujeito as regras estéticas. Assim como, aponta para uma

forma de manejo em oficinas terapêuticas que priorizem a ‘criação’ à ‘obra’

desenvolvida, fugindo assim de práticas que reproduzam a lógica do

desempenho, da produção, como é visto em algumas instituições que ainda

162 Renato COHEN, Performance como linguagem, p. 61. 163 Ibid., p. 66. (grifos do autor)

Page 112: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

103

associam o trabalho desenvolvido nas oficinas terapêuticas com a venda

em espaços públicos. Antes de encerrarmos este capítulo, acreditamos que

seja válido apresentar um esquema sobre as diferenças que encontramos

entre o fazer artístico e o fazer criativo no teatro:

Tabela 5 – Diferenciação entre Fazer Artístico e Fazer Criativo.

Teatro

(modelo estético)

Teatro espontâneo

Performance

Elemento Ator Performer

Sustentação Representação Live Art

Construção Personagem Idiossincrasia

Técnica Lógica de Ação

hierarquização

Livre-associação

Indeterminação

Ênfase Dramaturgia

Crítica sócio-política

Terapêutico

Plástico, Poético

Contestativo

Local de apresentação Edificios

Teatro

Praças públicas,

Escolas,

Teatros etc.

Tempo da apresentação Temporada Evento

Como vimos nem todos os indivíduos que participam de experiências

expressivas podem produzir obras de arte. No entanto, podemos inferir que

todos os indivíduos podem desenvolver experiências que envolvam o fazer

criativo, seja utilizando o que apresentamos como performance, ou ainda, a

criaturgia apresentada por Moreno; sendo que a própria idéia de ‘criação’

implica desenvolvimento, crescimento e vida; consequentemente não

existindo lugar para metas estabelecidas a priori e alcances mecânicos. O

indivíduo envolvido no fazer criativo é impelido a agir. Um agir que pode

Page 113: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

104

apontar uma tendência emancipatória, na medida em que questiona a si

mesmo e apresenta-se para um outro, não como uma personagem que

substitui a anterior, mas como ‘mais uma personagem’ que soma à sua

identidade e que ao mesmo tempo questiona sua identidade pressuposta,

que até então estava sendo re-posta.

Com isso retomamos o objetivo das oficinas terapêuticas. Utilizando

novamente as contribuições de Galletti; que vai defender que o objetivo das

oficinas terapêuticas é, “em primeiro lugar, a produção de sentido, isto é,

trata-se de encontrar modos de produção que singularizem existências,

permitam o surgimento de processos criativos e, fundamentalmente, que

legitimem a pluralidade da vida”164, assim, as oficinas não seriam apenas

instrumentos aplicáveis a serviço de um projeto, mas “um espaço que

mobiliza novas práticas e outras formas de organização.”165

Da mesma forma que o fato das oficinas terapêuticas não terem uma

teoria própria ou uma normatização de funcionamento, não significa que as

mesmas situam-se numa espécie de limbo, sem limite ético, onde tudo pode

acontecer. “Ao contrario, a precariedade constitutiva desses dispositivos –

construídos na conexão de diversos saberes – e o extravasamento das

fronteiras científicas pretendem elevar a experiência clínica a seu mais alto

164 Maria C. GALLETTI, Oficina em saúde mental: instrumento terapêutico ou intercessor

clínico?, p. 38. 165 Ibid., p. 91.

Page 114: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

105

grau, quer dizer, romper a barreira que separa a clínica e o social, o

tratamento e a vida.”166

Desse modo, esperamos que essas páginas, longe de esgotar o

problema, tenham gerado provocações no leitor, possibilitando que as

oficinas terapêuticas possam ser objeto de estudo por outras pessoas no

futuro, pois como vimos o termos oficina e terapêutica têm sido utilizados

para descrever algumas atividades que acontecem nas estruturas de

atendimento preocupadas em romper com o modelo asilar, mas que seu

sentido, entretanto, tem sido o mais aberto possível. Também entendemos

que a interdisciplinariedade presente nessas oficinas propõem outras formas

de intervenção, que possibilitam a expressão da individualidade por meio

do fazer criativo. O sentido das oficinas terapêuticas será retomado no

Capítulo V, quando Lou-Lou nos contar sua experiência na oficina

terapêutica de teatro do EFRS, mas antes apresentaremos nosso referencial

teórico de analise que, assim como tudo o que foi mostrado até agora, será

utilizado para analisarmos a história de Lou-Lou.

166 Maria C. GALLETTI, Oficina em saúde mental: instrumento terapêutico ou intercessor

clínico?, p. 123.

Page 115: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

CAPÍTULO IV

A IDENTIDADE COMO METAMORFOSE HUMANA EM BUSCA

DE EMANCIPAÇÃO

Page 116: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

IV

De perto, talvez ninguém seja normal, por outro lado, de

perto, de muito perto, talvez o diabo não seja tão feio

como se pinta. O difícil é olhar de perto, afinal a

exclusão esconde o insuportável.

Tarcísio Matos de Andrade

4.1 – A CONCEPÇÃO TEÓRICA DE IDENTIDADE DE ANTONIO

C. CIAMPA

Como dito anteriormente, a concepção de identidade que utilizamos

resulta de um processo histórico que articula toda nossa vivência. Não

sendo definida como uma característica inata do indivíduo, ou ainda,

concluída nos primeiros anos de vida, mas sim, resultado da humanização

do indivíduo que em um primeiro momento seria apenas um organismo

biológico. Essa identidade “é construção, reconstrução e desconstrução

constantes, no dia-a-dia do convívio social, na multiplicidade das

experiências vividas.”167 É o que estou-sendo, uma identidade que me nega

naquilo que também-sou-sem-estar-sendo, na medida em que sempre

compareço como representante de mim mesmo perante o outro.

Essa concepção de Identidade foi apresentada por Ciampa em sua Tese

de Doutorado: A Estória do Severino e a História da Severina – um ensaio

de psicologia social. Ao introduzir o conceito de identidade, sob o ponto de

167 Helena M. KOLYNIAK & Antonio da C. CIAMPA, Corporeidade e Dramaturgia no cotidiano,

Discorpo, 2, p. 09.

Page 117: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

108

vista da psicologia social, como uma questão teórica, Ciampa nos diz que

“cada indivíduo encarna as relações sociais, configurando uma identidade

pessoal. Uma história de vida. Um projeto de vida. Uma vida que nem

sempre-é-vivida, no emaranhado das relações sociais.”168

Ciampa ensina que a identidade é a articulação tanto entre diferença

e igualdade (ou semelhança), como entre objetividade e subjetividade, pois

“sem essa unidade, a subjetividade é desejo que não se concretiza, e a

objetividade é finalidade sem realização”169, e nos diz que é impossível

falar de identidade sem falar em metamorfose, como um processo que se dá

desde o nascimento do indivíduo até sua morte, podendo ultrapassar esses

limites biológicos, buscando a superação do individualismo nos moldes da

sociedade de massa, que pode ser obtida pela criação ou transgressão, essa

última como uma possibilidade humana nem sempre tão negativa como se

apresenta.

Para o autor a identidade se expressa empiricamente através de

personagens, e a articulação dessas personagens é que vai compor a

identidade do indivíduo. E entendendo a metamorfose como

desenvolvimento do concreto, “podemos dizer que as personagens são

momentos da identidade, degraus que se sucedem, círculos que se voltam

sobre si em um movimento, ao mesmo tempo, de progressão e de

regressão.”170 Identidade é história, e como toda história (ao menos história

168 Antonio da C. CIAMPA, A estória do Severino e a história da Severina, p. 127. 169 Ibid., p. 145. 170 Ibid., p. 198.

Page 118: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

109

humana), torna-se impossível sem personagens; “o ator é o eterno dar-se: é

o fazer e o dizer.”171

Como é óbvio, as personagens são vividas pelos autores que as encarnam

e que se transformam à medida que vivem suas personagens. Enquanto

atores, estamos sempre em busca de nossas personagens; quando novas

não são possíveis, repetimos as mesmas; quando se tornam impossíveis

tanto novas como velhas personagens, o ator caminha para a morte,

simbólica ou biológica.172

Logo, é impossível viver sem personagens pois sempre me apresento

como representante de mim mesmo perante os outros, sendo que a “cada

momento, é impossível expressar a totalidade de mim; posso falar por mim,

agir por mim, mas sempre estou sendo o representante de mim mesmo. O

mesmo pode ser dito do outro frente ao qual compareço (e que comparece

frente a mim).”173 Um jogo de interação que estabelece uma complexidade

que impede a possibilidade de estabelecer um fundamento originário para

cada personagem.

Ciampa também explica que existe a necessidade de normatização de

determinadas personagens, que por outro lado, servem para conservar as

identidades produzidas. Um fenômeno que funciona por meio da re-posição

que pode ser tanto positivo quanto negativo, na medida em que possibilitam

um sentido de direção para os indivíduos (primeiro caso), ou ainda, podem

reduzir o indivíduo a uma única personagem acabando assim com a

articulação da igualdade e da diferença.

171 Antonio da C. CIAMPA, A estória do Severino e a história da Severina, p. 155. 172 Ibid., p. 157. 173 Ibid., p. 170-171.

Page 119: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

110

IDENTIDADE COMO METAMORFOSE HUMANA

É justamente esse trabalho de re-posição que cria a aparência de não

metamorfose e impede muitas vezes que vejamos as metamorfoses da

identidade; para nos ajudar a entender como ocorre esse processo, Ciampa

propõe dois movimentos na identidade, que caracteriza como mesmice e

mesmidade. A mesmice decorreria da re-posição da identidade que pode se

dar como consciente busca de estabilidade ou inconsciente compulsão à

repetição; é pré-suposta como dada permanentemente e não como re-

posição de uma identidade que um dia foi posta.

Outros são levados a essa situação, involuntariamente, quando seu

desenvolvimento é de alguma forma prejudicado, barrado, impedido; na

nossa sociedade, encontramos milhões de exemplos de pessoas

submetidas a condições sócio-econômicas desumanas, impedidas de se

transformar, são forçadas a se reproduzir como réplicas de si,

involuntariamente, a fim de preservar interesses estabelecidos, situações

convenientes, interesses e conveniências que são, se radicalmente

analisadas, interesses e conveniências do capital (e não do ser humano

que assim permanece um ator preso à mesmice imposta).174

Contudo, evitar a transformação é impossível, o que é possível, com

muito trabalho é a conservação da mesmice. Sendo que pode haver interesse

em que uma mesmice mude de forma para uma mais conveniente;

utilizando um exemplo na questão do uso de drogas – a substituição da

personagem drogado pela do adicto em recuperação – que pressupõe um

174 Antonio da C. CIAMPA, A estória do Severino e a história da Severina, p. 165.

Page 120: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

111

indivíduo com predisposição à dependência e que para adequar-se deve

manter-se abstinente, o que por sua vez não significa uma mudança na

relação que o mesmo mantém com a substância.

O que sustenta a mesmice é o impedimento da emancipação; a plena

concretização da mesmice é aquilo que Ciampa chama de fetichismo da

personagem, que vai explicar “a quase impossibilidade de um indivíduo

atingir a condição de ser-para-si, ocultando a verdadeira natureza da

identidade como metamorfose e gerando o que será chamado identidade

mito”175, o mundo da mesmice (da não-mesmidade) e da má infinidade (a

não superação das contradições), em que a própria atividade que serve de

base para a personagem deixa de ser desempenhada: Severina é lavrador

mas já não lavra.

A idéia de ser-para-si é buscar uma autodeterminação (que não é a ilusão

de ausência de determinações exteriores; “tornar-se escrava de si

própria” (que de alguma forma é tentar tornar-se sujeito); procurar a

unidade da subjetividade e da objetividade, que faz agir uma atividade

finalizada, relacionando desejo e finalidade, pela prática transformadora

de si e do mundo.176

Todavia, o impedimento da emancipação e a manutenção da mesmice

não se constituem em algo inevitável, na medida em que a impossibilidade

de viver sem personagens e a idéia de ser-para-si possibilita a alterização da

175 Antonio da C. CIAMPA, A estória do Severino e a história da Severina, p. 140. 176 Ibid., p. 146.

Page 121: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

112

identidade, que por sua vez se torna possível por meio da negação da

negação, nas palavras de Ciampa:

A negação da negação permite a expressão do outro outro que também

sou eu: isso consiste na alterização da minha identidade, na eliminação

de minha identidade pressuposta (que deixa de ser re-posta) e no

desenvolvimento de uma identidade posta como metamorfose constante,

em que toda a humanidade contida em mim se concretiza. Isso permite

me representar (1o sentido) sempre como diferente de mim mesmo

(deixar de presentificar uma representação de mim que foi cristalizada

em momentos anteriores, deixar de repor a identidade pressuposta).177

Ciampa nos alerta sobre o termo alterização, no qual se quer

expressar “a idéia de uma mudança significativa – um salto qualitativo –

que resulta de um acumulo de mudanças quantitativas, às vezes

insignificantes, invisíveis, mas graduais e não radicais.”178 Tudo isso indica

uma possibilidade e uma tendência, da conversão das mudanças

quantitativas em mudanças qualitativas. Sendo que sua realização se dá sob

condições históricas e materiais determinadas.

A alterização se expressa por meio da mesmidade, que se refere à

superação da personagem vivida pelo indivíduo; é a expressão do outro

outro que também sou eu. Que se torna possível a partir da possibilidade de

formular projetos de identidade, cujos conteúdos não estejam prévia e

autoritariamente definidos. “Identidades que se definam pela aprendizagem

de novos valores, novas normas, produzidas no próprio processo em que a

177 Antonio da C. CIAMPA, A estória do Severino e a história da Severina, p. 181. 178 Ibid., p. 184.

Page 122: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

113

identidade está sendo produzida, como mesmidade de aprender (pensar) e

ser (agir).”179 Sabemos que a criação de novas normas, novos valores e

projetos na esfera universal encontram grandes dificuldades de

concretização e superação no nível coletivo, entretanto, no nível individual

essa transformação torna-se mais facilmente possível, ainda que, muitas

vezes, de forma parcial ou fragmentada.

POLÍTICAS DE IDENTIDADE E IDENTIDADES POLÍTICAS

Outra contribuição de Ciampa para a análise que faremos no nosso

trabalho refere-se à questões das Políticas de Identidade e das Identidades

Políticas; o autor nos alerta que mais do que simples trocadilho, essas duas

definições podem nos ajudar a discutir aspectos, tanto regulatórios como

emancipatórios, dadas as análises do poder presentes nas relações sociais.

A questão das políticas de identidade de grupos envolve a discussão

sobre a autonomia (ou não), que se transforma para indivíduos em

indagações sobre a autenticidade (ou não) de individualidades políticas,

talvez refletindo duas visões opostas, dependendo de se colocar a ênfase

na igualdade – uma sociedade centrada no Estado – ou na liberdade –

uma sociedade composta de indivíduos.180

Ciampa vai nos dizer que, “uma identidade coletiva é quase sempre

referida a uma personagem: nos exemplos, fala-se no singular de ‘negro’,

‘trabalhador’, ‘mulher’, ‘sem-terra’, ‘gay’ etc., cada um correspondendo a

179 Antonio da C. CIAMPA, Políticas de Identidade e Identidades Políticas, Uma Psicologia que se

interroga: ensaios, p. 241. 180 Ibid., p. 134.

Page 123: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

114

um ou mais movimentos.”181 O ‘movimento anti-proibicionista` e o

´movimento de redução de danos`, são exemplos de movimentos sociais

que lutam pelos direitos de utilização de qualquer substância psicoativa e de

acesso a seringas e agulhas descartáveis para o uso de drogas, assim como,

o reconhecimento dos direitos dos usuários de drogas.

As Políticas de Identidade servem à formação e manutenção dessas

identidades, e podem ser tanto emancipatórias quanto regulatórias;

emancipatórias quando ampliam a possibilidade de existência na sociedade,

garantindo direitos para os indivíduos, ou regulatórias, quando criam regras

normativas que muitas vezes impedem que o indivíduo consiga sua

diferenciação e, “aparece na orientação feita ao estigmatizado no sentido de

que se ele adotar uma linha correta ele terá boas relações consigo e será um

homem completo, um adulto com dignidade e auto respeito”182. Aqui

aparece outra questão complicada quando pensamos nas políticas de

identidade que, ao trabalhar com a idéia de identidade coletiva, trabalham

com a heteronomia do indivíduo, negam a experiência individual e atribuem

um sentido a priori que, se este aceita, pode ser uma experiência “não eu”.

Tudo porque prevalece o interesse da desrazão, a razão interesseira – que

demonstra a irracionalidade em que vivemos, um mundo que não merece

ser vivido, pois ameaça a autoconservação da espécie, na medida em que

cada singular, em vez de devir homem – como a metamorfose é

inevitável –, devém não-homem, inverte-se em seu contrário; em vez de

proprietário das coisas, estas é que o têm como propriedade; em vez de

181 Antonio da C. CIAMPA, Políticas de Identidade e Identidades Políticas, Uma Psicologia que se

interroga: ensaios, p. 141. 182 Ervin GOFFMAN, Estigma: Notas sobre a manipulação da Identidade Deteriorada, p. 134.

Page 124: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

115

fazer uso das coisas, estas é que o usam; em vez de trabalhar com

ferramentas, com seus instrumentos, estes é que trabalham com o homem

como ferramenta, instrumentalizando-o.183

As Identidades Políticas surgem quando os indivíduos criam uma

concepção de identidade para si mesmos, podendo em um primeiro

momento se valer das políticas de identidade para fazer valer seus direitos e

num segundo momento encontrando novas possibilidades de

reconhecimento.

Esperamos que essas Políticas de Identidade, referentes à questão do

uso de drogas tenham ficado claras ao longo do nosso trabalho; nesse

sentido, basta dizermos que vivemos sob políticas que não nos deixam

concretizar nossa autonomia e que “a relação real entre o homem e seu

mundo é invertida na consciência. O homem, o produtor de um mundo, é

apreendido como produto deste, e a atividade humana como um

epifenômeno de processos não humanos.”184

Se entendemos bem o pensamento de Ciampa podemos inferir que

somos animais humanizáveis; que na medida em que temos nossos

impulsos socializados, nos singularizamos, podendo ou não nos

individualizarmos. O autor também nos mostrou que esse processo não

ocorre sem conflitos; nas palavras de Ciampa:

183 Antonio da C. CIAMPA, A estória do Severino e a história da Severina, p. 227. (Grifos do

autor). 184 Peter L. BERGER & Thomas LUCKMAN, A Construção Social da Realidade: tratado de

sociologia do conhecimento, p. 123.

Page 125: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

116

(...) a realidade, sendo sempre síntese do subjetivo e do objetivo,

determina que os conflitos sempre se expressem (e sempre sejam

decididos) sob formas históricamente dadas, levando-nos a recusar o

modelo biológico da filosofia da história (passando então a ser

importante explicitar o que queremos dizer quando falamos em

sociedade ou em cultura). A liberdade para virmos a ser humanos (não a

liberdade vazia de qualquer coisa), recusando a coerção (uma

objetividade em que subjetividade não se reconhece), cria o interesse de

garantir a autoconservação da espécie, o interesse pela libertação – um

interesse racional e não uma razão interesseira –, o interesse pela

progressiva humanização da espécie humana, que se elevou acima das

condições da existência animal. Esse interesse é que determina o que

merece ser vivido nas condições dadas.185

É importante destacar que esses conceitos têm sofrido metamorfoses

conceituais desde A Estória do Severino e a História da Severina. Sendo

que o marco dessas metamorfoses ocorreu no Encontro Nacional da

ABRAPSO de 1999, quando Ciampa propôs ampliar a concepção

identidade-metamorfose através do sintagma Identidade-Metamorfose-

Emancipação. Com isso fica claro que a identidade precisa ser entendida

como metamorfose humana em busca de emancipação, que pode ser

conquistada ou não, na medida em que está sujeita ao desenvolvimento da

identidade pós-convencional como possibilidade universal. Precisa ser

entendido também que uma emancipação total do indivíduo na sociedade

não se torna possível na atualidade, contudo, no nível individual os

“fragmentos de emancipação” apresentam-se como uma possibilidade a ser

observada. 185 Antonio da C. CIAMPA, A estória do Severino e a história da Severina, p. 209-210. (Grifos do

autor).

Page 126: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

117

A ampliação da concepção identidade-metamorfose-emancipação é

resultado da influência dos trabalhos de Habermas na concepção de

Identidade desenvolvida por Ciampa, que aparece ainda de forma modesta

na Tese de Doutorado devido ao fato de Ciampa entrar em contato com a

filosofia habermasiana no término do seu doutoramento. Habermas ao fazer

a releitura do Materialismo Histórico e da teoria de George Mead amplia a

possibilidade de estudo da identidade desenvolvido por Ciampa,

principalmente no que se refere à teoria de sociedade, a importância da

simultaneidade da socialização e da individualização e a diferenciação entre

interiorização e internalização; aspectos pouco explorados nos estudos de

Berger & Luckmann e Sarbin & Scheibe, teóricos utilizados na dissertação

de Mestrado do autor.

Na dissertação de Mestrado, Ciampa afirma que “compreender a

identidade é compreender a relação indivíduo-sociedade”186, e para discutir

essa relação utiliza o trabalho: Construção social da realidade de Berger &

Luckmann, assim como as leituras que esses teóricos trazem da realidade

social, tomando como base os processos de exteriorização, objetivação e

interiorização. Berger & Luckmann utilizam a psicologia Social de Mead

para explicar a formação da realidade subjetiva a partir de sua socialização.

Ciampa também apresenta a influência do pensamento ‘meadiano’ nos

trabalhos de Scheibe, apontando a diferença na noção feita por Berger &

Luckmann, que estaria na importância dada por Scheibe ao

desenvolvimento de ‘valores’ na socialização.

186 Antonio da C. CIAMPA, Identidade Social e suas relações com a ideologia, p. 19.

Page 127: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

118

A escolha dos autores ocorreu devido ao fato destes fazerem na época

uma releitura da teoria de George Mead que possibilitava pensar a questão

da Identidade Social e sua relação com a ideologia para a Psicologia Social.

Isso acontece também em sua Tese de Doutoramento, desta vez

Ciampa utiliza os conceitos desenvolvidos por Habermas para trabalhar

algumas deficiências que encontrava nos autores utilizados anteriormente,

que no caso de Berger & Luckmann foi à alternativa encontrada para a

concepção fenomenológica da sociedade que atribuía um caráter ontológico

para a mesma e para Scheibe uma nova leitura de Mead que diferenciava da

leitura metafísica da identidade que permitia atrelar a teoria de Mead com a

teoria analítica de Jung. É importante destacar que alguns conceitos destes

autores, principalmente Berger & Luckmann, continuam sendo utilizados

por Ciampa para estudar o sintagma identidade-metamorfose-emancipação.

Entendendo a importância e a riqueza do pensamento de George

Mead na concepção de identidade-metamorfose-emancipação desenvolvida

por Ciampa, apresentaremos uma visão acerca de suas idéias principais, que

serão retomadas a seguir, quando apresentarmos a teoria de Habermas, que

por sua vez, trará contribuições importantes para o estudo do sintagma

identidade-metamorfose-emancipação; no que se refere às re-leituras do

Materialismo Histórico, da socialização e individuação, assim como, o

paradigma da linguagem e o pensamento pós-metafísico.

Page 128: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

119

4.2 – SIMULTANEIDADE DA SOCIALIZAÇÃO E INDIVIDUAÇÃO

DA IDENTIDADE EM G. H. MEAD

George Mead conseguiu desenvolver múltiplos conceitos a fim de

assegurar uma melhor compreensão da relação entre o indivíduo e a

sociedade. Sua teoria envolvendo a compreensão do processo de interação

social, da importância da linguagem e dos objetos físicos do mundo

material tornaram-se elementos centrais no processo de entendimento da

formação do self e da construção das identidades sociais. Assim como o

conceito de Outro generalizado, que caracteriza a teia coletiva, também

propicia saber como o indivíduo internaliza as regras sociais, garantindo sua

inserção na comunidade.

Para Mead o comportamento encontra sentido dentro do indivíduo;

quando se exterioriza, torna-se disposição para conduta. Para o autor, o

duplo caráter da experiência individual é o ato completo, que culmina com

a manifestação exterior da ação – o comportamento e sua extensão.

Somente ao adotar as condutas dos “outros” o indivíduo se socializa e pode

conseqüentemente se individualizar.

A consciência para Mead é social, sendo uma função e não uma

substância desenvolvida no cérebro. No início da socialização, o sujeito

compartilha um mesmo conceito dos objetos e isso possibilita a ação na

sociedade. Entende-se o enunciado de um objeto, porque existe uma

convenção de que o objeto é aquilo mesmo e isso faz com que as ações

dentro da sociedade sejam coerentes e organizem a vida social.

Page 129: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

120

Sass, descrevendo esse processo, nos ensina que a diferença entre

uma criança e um cão no processo de condicionamento é que a criança

participa, atua no processo.187 Ao receber um estímulo, ela o utiliza

emitindo um som vocal e provocando reações em si mesma.

Em outras palavras, o cão pode responder ao estímulo verbal "cadeira"

mas não pode ele mesmo participar, por assim dizer, do condicionamento

de seus próprios reflexos; seus reflexos podem ser condicionados por

outro, mas não pode fazê-lo por si mesmo.188

Se entendemos a proposta do autor, em Mead o gesto estimula uma

reação em cadeia, pois a ação de um sujeito provoca a reação de outro que,

ao agir, provoca a ação de outro e assim sucessivamente. Desse modo, a

pessoa, somente ao criar e adotar uma certa atitude comportamental em seu

meio social, é capaz de gerar mudanças.

A linguagem e os gestos tem um lugar de destaque na obra de Mead,

pois criam um campo comunicacional que gera as informações necessárias

para o sujeito viver em sociedade e, assim, formar sua consciência.

Portanto, a comunicação entre sujeitos não aconteceria numa esfera mental,

mas nesse campo comunicacional, resultante da complexidade dos

processos sociais em que os indivíduos estão imersos.

Para Mead, a linguagem é algo que faz parte da conduta social.

Basicamente, ele procura mostrar como, a partir dos gestos, surgem os

187 Odair SASS, Crítica da razão solitária: a psicologia social de George Herbert Mead 188 Ibid., p. 136.

Page 130: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

121

sinais e os símbolos e, posteriormente, as convenções semânticas válidas

intersubjetivamente.189

Dentro desse processo de compartilhamento de "convenções

semânticas válidas intersubjetivamente", o sujeito vai se constituindo como

tal e, certamente, a apropriação dos significados das palavras se dá na

relação com o outro generalizado e na adoção das atitudes do outro.

Mead também traz a sua contribuição para que possamos entender

os papéis sociais; ao nos referirmos ao termo "papel social", é válido

respeitar as ressalvas feitas por Sass ao uso dessa expressão, pois se pode

cair em outras interpretações diferentes daquela proposta por Mead.

A referência de Mead ao papel (role) como uma atitude do ator, portanto,

como uma representação, não é casual. O termo não descreve

corretamente o que o autor quer dizer porque a representação de um

papel supõe um sujeito oculto que 'controla' o papel a ser representado;

quando a posição, ao contrário, é a de que o desempenho do papel é

constitutivo do sujeito, não há um sujeito oculto.

Evidentemente, em suas brincadeiras, a criança que desempenha

os papéis de mãe, pai, professor, médico, bandido ou mocinho, encarna

tais papéis em sentidos muito distintos daqueles adotados pelo adulto ou

pelo ator.190

Para Mead, é nos jogos infantis que a criança cria seus personagens

imaginários. Ao olhar para um pano e fazer uma boneca ou um gato, utiliza-

189 Rodrigo M. FERREIRA, O modelo do EU produzido socialmente em G.H. Mead, Psique, 9,

(15), p. 78. 190 Odair SASS, Crítica da razão solitária: a psicologia social de George Herbert Mead, p. 202.

Page 131: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

122

se de suas próprias reações aos estímulos para formar seu self, assim como

nos momentos em que a criança fala consigo mesma, imita os pais, os

parentes, os professores e os amigos. É por meio dos jogos que a criança

internaliza os papéis e organiza suas experiências numa seqüência temporal.

Essas breves observações são suficientes para introduzirmos a tese

central formulada por Mead acerca da adoção da atitude do outro pela

criança: as formas distinguíveis de apropriação do outro pela criança

decorrem da organização das suas atividades sociais e não por um

suposto material amadurecido biológico e intelectivo.191

Mead divide em duas etapas esse amadurecimento da criança, na

primeira fase, a criança entra em relação e se apropria do outro através de

suas próprias atitudes, não entrando em contato com o outro generalizado,

posteriormente a criança desenvolveria o jogo com regras, fase que é

marcada pela introdução dos regulamentos nos jogos da criança.

Essa etapa é conhecida por games justamente pela inclusão das

regras que determinam os padrões de comportamento dos participantes do

jogo. A regra, ao ser internalizada, faz com que o indivíduo funcione por si

só e que os participantes consigam atingir seus objetivos em conjunto e não

mais individualmente, não sendo mais necessária a regra coletiva para que

ela se estabeleça, pois é criada e mudada pelo próprio indivíduo.

Identificado também nas crianças de idade mais avançada, o jogo, tal

como é realizado no esporte, exige um nível mais complexo de

organização do self do que aquele exigível nas brincadeiras infantis

(play).

191 Odair SASS, Crítica da razão solitária: a psicologia social de George Herbert Mead, p. 213.

Page 132: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

123

Este é o segundo ardil que o homem aplica à natureza, porque não

mais se relaciona com seu outro 'fantasiado', um doublé, mas com um

seu outro organizado e generalizado.192

Dessa maneira, a atividade de interpretar os vários personagens

decorrentes de um jogo cumpre a função de organizar e estruturar o meio

exterior através de suas próprias reações e de ajustar a partir de si as

interpretações construídas, as quais não estão necessariamente ligadas à

representação do papel vivido por um adulto. Nessa etapa (game), a criança

organiza e estrutura o outro como um outro generalizado.

O EU E O MIM

Como apresentado anteriormente, o processo de socialização obteve

considerável destaque na obra de George Mead, que se dedicou

sobremaneira à compreensão das tramas sociais e da inserção do sujeito na

comunidade da qual faz parte.

O indivíduo socializado, integrado à realidade social, possui um self,

cuja manifestação se dá na afirmação de si ou na identificação do indivíduo

com o contexto coletivo. O self, desse modo, assegura a incorporação das

atitudes sociais, o que possibilita a socialização do indivíduo e a

constituição da sociedade.

Entendemos com o autor que para pertencer a um grupo social, todo

indivíduo reproduz gestos, símbolos e valores compartilhados socialmente.

192 Odair SASS, Crítica da razão solitária: a psicologia social de George Herbert Mead, p. 205.

Page 133: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

124

Essa capacidade de responder as condições sociais somente torna-se

possível a partir do desenvolvimento do self. Para Mead:

O self a que nos temos referido surge quando a conversão de gestos é

incorporada à conduta da forma individual. Quando essa conversão de

gestos pode ser incorporada à conduta do indivíduo, de modo que a

atitude das outras formas possa replicar com seu gesto correspondente e

de tal maneira provocar a atitude do outro em seu próprio processo, então

nasce um self.193

Sendo assim, definitivamente o self é a internalização das

experiências sociais – incorporação das regras sociais – moldando nosso

comportamento; e ao mesmo tempo, é ligado à consciência, sendo seu

caráter essencialmente cognitivo.

Mead entende que o self possui dois componentes que são

indissociáveis, o “eu” e o “mim”. O “mim” refere-se a internalização das

normas sociais, enquanto que o “eu” refere-se ao espontâneo, criativo. E seu

desenvolvimento ocorre na media em que tomamos a consciência de si e

temos o reconhecimento do outro. Então, “quando a reação do outro se

converte em parte essencial da experiencia ou conduta do indivíduo; quando

193 George H. Mead, Mind, Self and Society, p. 167. Tradução nossa: "The self to which we have

been referring arises when the convrsation of gestures is taken over into the conduct of the individual

form. When this conversation of gesture can be taken over into the individual´s conduct so that the

attitude of the other forms can effect the organism, and the organism can reply with its corresponding

gesture and thus arouse the attitude of the other in its own process, then self arises."

Page 134: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

125

adotar a atitude do outro se torna parte essencial de sua conduta, então o

indivíduo aparece em sua experiencia como o self.”194

O “eu” é a reação espontânea frente a novas situações “é portanto

graças ao “eu” que dizemos nunca ter consciência plena do que somos , que

nos surpreendemos com a própria ação.”195 Sass vai dizer que o “eu” é a

fase: “que se exterioriza, reagindo à atitude dos outros”, enquanto que o

“mim” é a fase “que internaliza àquelas atitudes.”196 Enquanto o "mim"

exprime a convencionalidade, a tradição e a adaptação, o "Eu" indica a

novidade, a transgressão e a originalidade. “o ‘mim’ é o conjunto

organizado das atitudes dos outros que o indivíduo adota para si mesmo. As

atitudes dos outros constituem o mim organizado e então o indivíduo reage

a elas como um ‘eu’.”197

O self de Mead articula o passado, o presente e o futuro. “A sua fase

expressa pelo ‘mim’ está voltada ao passado; o ‘eu’ é a expressão presente

do que o sujeito projeta como futuro.”198 Sendo assim, o indivíduo não se

194 George H. Mead, Mind, Self and Society, p. 195, tradução nossa: "When the response of the

other becomes na essencial part in the experience or conduct of the individual; when taking the

attitude of the other becomes an essencial part in his behavior – then individual apperars in this own

experience as a self.” 195 Ibid., p. 174. Tradução nossa: "It is because of the "I" that we say that we are never fully aware

of what we are, that we surprise ourselves by our own action." 196 Odair SASS, Crítica da razão solitária: a psicologia social de George Herbert Mead, p. 231. 197 George H. MEAD, Mind, Self and Society, p. 175. Tradução nossa: ""me" is the organized set of

the attitudes of the others which one himself assumes. The attitudes of the others constitute the

organized "me", and then one reacts toward that as an "I"." 198 Odair SASS, Crítica da razão solitária: a psicologia social de George Herbert Mead. p. 234.

Page 135: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

126

encontra completamente preso às determinações sociais, nas palavras de

Mead:

Em uma sociedade, deve encontrar-se em todos uma série de hábitos de

reações comuns, de qualquer maneira, pois a forma em que os indivíduos

atuam é o que origina todas as diferenças individuais que caracterizam as

diferentes pessoas. O fato de que tenham que atuar de certa maneira

comum, não as priva de originalidade.199

Mead também escreveu sobre as patologias do comportamento. Para

o autor, na medida em que o movimento do self é produzido pelo confronto

do “Eu” com o “Mim” – que ‘deveria’ ocorrer de forma que produza uma

unidade – , e que essa unidade nem sempre é possível – devido tanto às

condições externas, quanto as do próprio indivíduo – , sempre há o risco de

ocorrer dissociações da personalidade.

A razão não pode se tornar impessoal a menos que adote uma atitude

objetiva, uma atitude não afetiva para si; do contrário, nós temos

comente consciência e não consciência de si. É necessário a conduta

racional para que o indivíduo adote uma atitude objetiva e impessoal para

si mesmo, que se converta em objeto para si. Para o organismo individual

é obviamente um fato importante e essencial ou um elemento constituinte

da situação empírica em que ele atua; e sem adotar uma perspectiva

199 George H. MEAD, Mind, Self and Society, p. 198. Tradução nossa: “In a society there must be a

set of common organized habits of response found in all, but the way in which individuals act under

especific circumstances gives rise to all of individual differences which characterize the different

persons. The fact that they have to act in a certain common fashion does not deprive them

originality."

Page 136: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

127

objetiva de si mesmo como tal, não pode agir inteligentemente ou

racionalmente.200

Sass vai inferir que os chamados “‘comportamentos desviantes’

podem ser analisados da óptica da história social”201, do modelo social do

self, contrariando a redução explicativa preponderante dos impulsos

sexuais.

O OUTRO GENERALIZADO

O conceito de outro generalizado desenvolvido por Mead, diz

respeito a influência da sociedade no desenvolvimento do self, essa

exercendo um controle sobre as condutas dos indivíduos e da introjeção

dessa influência nos indivíduos, sendo um movimento tanto externo,

quando interno. Dessa forma, é no pensamento abstrato que o indivíduo

adota a atitude do outro generalizado.

Portanto, é através da atividade abstrata do pensar que o indivíduo

estabelece uma conversação interna consigo mesmo, e relaciona-se

200 George H. MEAD, Mind,Self and Society, p. 138. Grifos do autor. Tradução nossa: "Reason

cannot become impersonal unless it takes an objective, non-affective, impersonal attitude toward

itself; other-wise we have just consciousness, not self-consciouness. And it is necessary to rational

conduct that the individual should thus he ism is obviously an essential and important fact or

constituent element of the impirical situation in which it acts; and without taking objective account of

itself as such, it cannot act intelligently, or racionally." 201 Odair SASS, Crítica da razão solitária: a psicologia social de George Herbert Mead, p. 243.

Page 137: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

128

diretamente com o ponto de vista do outro generalizado (que serve como

uma espécie de referencial de interlocução).202

Assim sendo, a criança reproduz comportamentos de grupos

organizados, internaliza atitudes particulares de indivíduos que participam

do ato social assim como, propiciando o pleno desenvolvimento do self,

incorpora e organiza a atitude do outro generalizado. Pelo fato de a criança

interpretar os papéis sociais e repeti-los para si mesma, ela forma o seu self.

Acrescente-se, agora, que o pai somente se realiza enquanto tal, na

particularidade do filho ou dos filhos; não há pai sem filho. Mas o filho

particular é concretamente um filho generalizado, posto que ele é

refletido pelo pai como um ser único na sua unidade é comparável a

todos os outros filhos, a começar por ele mesmo, pai, que outrora foi

filho.203

Para Mead as atividades lingüísticas seriam a última atividade na

organização do self, se referindo às construções simbólicas elaboradas pelo

sujeito através do gesto vocal e implicando a formação do pensamento. Nas

palavras de Sass:

Este é o terceiro ardil humano, que incorpora os anteriores e permite ao

homem internalizar conscientemente o mundo exterior, e suplantar a si

mesmo, convertendo a si mesmo, como consciência de si, no seu outro. É

o que Mead, e outros autores denominam de diálogo interiorizado.204

202 Rodrigo M. FERREIRA, O modelo do EU produzido socialmente em G.H. Mead, “Psique” 9

(15), p. 83. 203 Odair SASS, Crítica da razão solitária: a psicologia social de George Herbert Mead, p. 245. 204 Ibid., p. 205.

Page 138: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

129

Quanto à sua natureza, o outro generalizado pode ser: 1) um

indivíduo que encene uma função da sociedade, 2) um agrupamento social e

até mesmo, 3) objetos físicos205, os dois primeiros casos foram explicitados

nas páginas anteriores, este último refere-se a materialidade.

A MATERIALIDADE EM MEAD

Para Mead, a resistência do corpo humano assemelha-se à

resistência da coisa material. O homem interioriza o objeto concreto,

tornando o “eu” um ser físico, um “self-coisa”, materializado. Ele só

consegue perceber-se como provável “coisa” física, quando age sobre os

objetos e experimenta a resposta que eles dão no momento em que são

pressionados.

A capacidade do ser humano ver-se a si mesmo como objeto no campo

de sua própria experiência, assim como sua habilidade para raciocinar ou

pensar se dá inelutavelmente na intersecção que se estabelece entre três

sistemas os estratos de realidade: o inorgânico, o orgânico e o sistema

social humano. Os objetos são relevantes porque permitem a definição de

um self encarnado ou corporificado dentro de um ambiente concreto.206

205 Odair SASS, Crítica da razão solitária: a psicologia social de George Herbert Mead, p. 246. 206 Miquel DOMÉNECH, Lupicinio IÑGUEZ & Francisco TIRADO, George Herbert Mead y la

Psicologia Social de los objetos, “Psicologia & Sociedade”,15, (1), p: 22. Tradução nossa: “la

capacidad del ser humano para verse a sí mismo como objeto en el campo de su propia experiencia,

así como su habilidad para razonar o pensar se da ineluctablemente en la intersección que se

estabelece entre tres sistemas o estratos de realidade; lo inorganico, lo organico y el sistema social

humano. Los objetos son relevantes porque permiten la definición de un ‘self’encarnado o

corporeizado dentro de um ambiente concreto.”

Page 139: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

130

É a ação que incide sobre o objeto que o traz à existência. Ele se

torna real nos atos sociais, visto que nessas circunstâncias é percebido e

manipulado. Ele só existe quando é tocado pelas mãos humanas. O ato

coletivo o materializa, caracterizando, dessa forma, uma experiência

imediata. No entanto, mesmo o objeto que não se faz presente, que se

encontra distante fisicamente, sendo inacessível à manipulação física, pode

entrar em contato com o sujeito por meio da ação reflexiva, baseada na

percepção que resulta do ato presente. O corpo distante é convertido num

corpo próximo e presente. O indivíduo pode, portanto, viabilizar uma

experiência de contato com um objeto fisicamente distante, quando assume

uma atitude reflexiva, que torna a matéria real.

Na experiência de contato, o objeto é alcançado pelo ato, mesmo que

esteja localizado num passado longínquo e num lugar inacessível. O

indivíduo pode se aproximar dele, porque a temporalidade e a espacialidade

não constituem obstáculos ao contato com o objeto. É desse encontro

possibilitado pelo ato humano que a coisa adquire materialidade, passando a

existir. A constituição do self e a formação das identidades sociais, por sua

vez, são decorrência do agir material mediado pela linguagem, que fornece

contornos físicos ao corpo humano e ao self.

A possibilidade de consciência individual de si mesmo como entidade

separada e localizada em um tempo e um espaço emerge quando esta se

confronta com o mundo dos ‘outros’ e o mundo das coisas.207

207 Miquel DOMÉNECH, Lupicinio IÑGUEZ & Francisco TIRADO, George Herbert Mead y la

Psicologia Social de los objetos, “Psicologia & Sociedade”,15, (1), p. 23. Tradução nossa: “La

Page 140: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

131

Com isso, apresentamos as principais idéias de Mead acerca da

socialização e individuação. Mas antes de prosseguir nosso trabalho –

trazendo inclusive as contribuições de Habermas a respeito da obra de

Mead –, vale a pena trazer as considerações feitas por Sass referentes à

teoria social desenvolvida por Mead. Segundo Sass, a teoria de Mead torna-

se “sugestiva porque torna indissociável o desenvolvimento do indivíduo e

a organização democrática da sociedade. A liberdade e o pleno

desenvolvimento do indivíduo pressupõem instituições sociais democráticas

que impulsionaram e favorecem a perseguição àquelas utopias do

homem.”208 Sendo assim, o autor vai concluir que “a dimensão psicológica

do homem é constitutiva da ordem social e não um simples atributo

opcional ou algo exterior às análises sobre a sociedade.”209

Tendo apresentado, mesmo que de forma não aprofundada, algumas

das principais idéias da teoria de Mead, traremos as contribuições de Jürgen

Habermas. Segundo este autor, “a única tentativa promissora de apreender

conceitualmente o conteúdo pleno do significado da individualização social

encontra-se na psicologia social de G. H. Mead”210 e observa que “no

campo da moral, se Dewey tivesse levado em conta as considerações de seu

amigo George Herbert Mead sobre a assunção de perspectivas nas

possibilidad de conciencia individual del mismo como entidad separada y localizada en un tiempo y

un espacio emerge cuando ésta se confronta com el mundo de los ‘otros’ y el mundo de las cosas.” 208 Odair SASS, Crítica da razão solitária: a psicologia social de George Herbert Mead, p. 255-

256. 209 Ibid., 256. 210 Jürgen HABERMAS, Pensamento Pós-Metafísico: estudos filosóficos, p. 185

Page 141: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

132

interações sociais, teria podido ir mais longe.”211 Contudo, mesmo

entendendo a importância das contribuições de Mead, Habermas apresenta

algumas ressalvas à teoria, que serão colocadas a seguir.

4.3 – A APROPRIAÇÃO DOS CONCEITOS DE MEAD POR J.

HABERMAS

Antes de continuarmos é importante explicitar que as críticas feitas

por Jürgen Habermas ao trabalho de Mead, não têm o intuito de ‘superar’ a

teoria, mas sim ‘atualizá-la’, para que possa ser introduzido na teoria da

ação comunicativa, desenvolvida pelo autor e que será apresentada ainda

neste capitulo.

Primeiramente a ressalva feita por Habermas é direcionada para o

termo “behaviorismo social”, dado pelo próprio Mead. Habermas diz que o

modelo pelo qual Mead desenvolve sua teoria não é do comportamento de

um organismo que reage a estímulos a sua volta, mas sim o da interação

entre dois organismos reagindo um ao outro, tornando inadequada essa

denominação. Em segundo lugar, quando Mead refere grande importância

ao efeito de conduta do grupo social, na identidade e conduta do indivíduo,

Habermas comenta que Mead deixa transparecer um certo condutivismo

social em seu pensamento, dando ênfase no peso que o social teria na

constituição do self; obviamente Mead percebeu também a importância das

atitudes individuais e os reflexos na sociedade, mas para Habermas, este

não teria explorado muito este viés, correndo o risco de trazer a metafísica

pela porta de trás. 211 Jürgen HABERMAS, Era das transições, p. 181.

Page 142: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

133

Habermas, diferente de Mead, nos mostra que existe um “equilíbrio”

no desenvolvimento do indivíduo e da sociedade, inovando quando

apresenta a simultaneidade desse processo, por meio do médium da

linguagem.

Outra ressalva dirigida ao trabalho de Mead feita por Habermas,

dirige-se ao modo como o autor considera a comunicação lingüística. Nesse

ponto, Habermas diz que Mead privilegia os aspectos da coordenação da

ação e de socialização dos indivíduos, se esquecendo do “consenso”

apresentado pela linguagem.

Desta maneira, a diferença entre Habermas e Mead sobre a teoria da

comunicação lingüística aconteceria na medida em que este último

considera a comunicação sob dois aspectos (interação social e socialização

individualizada), enquanto Habermas, além desses aspectos, considera o

“consenso” como mantenedor e renovador do saber cultural.

Para Habermas, Mead consegue apresentar uma alternativa para a

individuação, que em Hegel dependeria da subjetivação crescente do

espírito, caindo assim na metafísica; quando propõe que o indivíduo seria

resultado da socialização e individuação e que esse processo aconteceria

mediado pela linguagem, através de abstrações, expectativas múltiplas e

contraditórias, dando uma diferenciação do indivíduo, pois “a linguagem

presta-se tanto à comunicação quanto a representação; e o proferimento

lingüístico é, ele mesmo, uma forma de agir que serve ao estabelecimento

Page 143: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

134

de relações interpessoais.”212 Assim, ao aprender a seguir normas de ação e

ao adotar cada vez mais papéis, adquire a capacidade generalizada de

participar em interações normativamente reguladas.

Habermas diz ainda que Mead tem outro mérito, o de ter acolhido

certos motivos encontrados em Humboldt e Kierkegaard, que “a

individuação não é representada como a auto-realização de um sujeito auto-

ativo na liberdade e na solidão, mas como um processo lingüisticamente

mediado da socialização e, ao mesmo tempo, da constituição de uma

história de vida consciente de si mesma.”213 Possibilitando entender a

Identidade como resultante da simultaneidade socialização e individuação

desenvolvida por meio lingüístico com outros e no meio do entendimento

intra-subjetivo-histórico-vital consigo mesmo. Portanto, uma

individualidade que “forma-se em condições de reconhecimento

intersubjetivo e de auto-entendimento mediado intersubjetivamente.”214

A concepção de self, assim como, as noções de ‘mim’ e de ‘eu’

desenvolvida por Mead também contribuíram para compreensão de

desenvolvimento individual da Identidade feita por Habermas. “Por via da

internalização dos papéis sociais se forma uma estrutura de super-ego cada

vez mais integrada, que permite ao agente orientar-se por pretensões

normativas de validez. Ao tempo este super-ego – o mim – se forma o Eu –

o eu –, o mundo subjetivo das vivências com que cada um tem acesso

212 Jürgen HABERMAS, Verdade e Justificação: ensaios filosóficos, p. 09. 213 IDEM, Pensamento Pós-Metafísico: estudos filosóficos, p. 186. 214 Ibid., p. 187.

Page 144: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

135

privilegiado.”215 Essa tensão entre o ‘mim’ e o ‘eu’ faz com que seja

impossível pensarmos em identidade estática, ou idêntica a si mesma.

Apresentada a importância dos conceitos desenvolvidos por Mead na

teoria de Habermas, falaremos sobre a guinada lingüística, a teoria do agir

comunicativo e o pensamento pós-metafísico, dentro da perspectiva

habermasiana.

A GUINADA LINGUISTICA E O PENSAMENTO PÓS-

METAFÍSICO

A guinada lingüística trazida por Habermas refere-se a substituição

do paradigma da consciência, pela linguagem como critério de

racionalidade por excelência. No trabalho “Técnica e ciência enquanto

ideologia”216, aponta o lugar central que a linguagem viria a ocupar em sua

teoria. O motivo dessa mudança teria sido pelo fato do autor buscar outra

forma de racionalidade que fugisse da unilateralidade da dimensão

cognitiva e permitisse estabelecer um conceito mais amplo de razão. Uma

razão que, por ser comunicativa, somente poderia se apresentar como uma

pluralidade de funções e apresentando pretensões de validade diversas.

215 Jürgen HABERMAS, Teoria de la Acción Comunicativa. Tomo II, p. 62-63. Tradução nossa:

“Por vía de internalización de roles sociales se forma una estructura de super-ego cada vez más

integrada, que permite al agente orientarse por pretensiones normativas de validez. El tiempo que

este super-ego – el Me – , se forma el yo – el I – , el mundo subjetivo de las vivencias a las que cada

uno tiene acceso privilegiado.” 216 Jürgen HABERMAS, Técnica e ciência enquanto ideologia, Coleção os Pensadores – História

das grandes idéias do mundo ocidental. (publicado originalmente em 1968)

Page 145: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

136

Para a realização desse projeto Habermas assume um “conceito de

razão cético e pós-metafísico, mas não derrotista”, “(...) em continuidade

com a tradição kantiana e um nível filosófico lingüístico”217, buscando uma

posição intermediária entre o fundamentalismo metafísico e o relativismo

contextualista. A racionalidade para Habermas não é uma obrigação.

“Mesmo à vista da conduta moral ou legal, a suposição de racionalidade

não tem o sentido de cumprimento das normas a que a outra se sente

obrigada; lhe é imputado apenas um saber do que significa agir

autonomamente.”218 Por metafísica, Habermas entende o pensamento desde

Platão que trabalha com a “doutrina da unidade do todo; a teoria tem como

alvo o uno na condição de origem e fundamento do todo.”219, base das

filosofias do sujeito e da consciência. O aspecto pós-metafísico da filosofia

de Habermas deriva principalmente de sua disposição em empregar uma

estrutura intersubjetiva, tendo o ‘mundo da vida’ como referente onde se

fazem as normas e é gerada a verdade.

A TEORIA DO AGIR COMUNICATIVO

O processo de modernização, segundo Weber, havia se caracterizado

pela dominância da razão instrumental da ciência e tecnologia sobre as

outras esferas sociais. Habermas, buscando uma saída para esse pessimismo

demonstra como o potencial racional implícito na fala, a partir das

condições formais de entendimento, foi reprimido sistematicamente pelos

imperativos sistêmicos. Propondo a utilização do paradigma da linguagem

217 Jürgen HABERMAS, Pensamento Pós-Metafísico: estudos filosóficos, p. 152. 218 IDEM, Agir comunicativo e razão destrancendentalizada, p. 50. 219 IDEM, Pensamento Pós-Metafísico: estudos filosóficos, p. 151.

Page 146: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

137

em substituição ao paradigma da consciência, utilizado até então pelos

teóricos da Escola de Frankfurt. Essa tomada de decisão foi fundamental

para que o autor pudesse constituir sua teoria de sociedade que é

apresentada, principalmente, em sua obra: Teoria da Ação Comunicativa de

1981. Neste trabalho Habermas discute, entre outros aspectos, os quatro

modos de ação: 1) teleológico, 2) regulado por normas, 3) dramatúrgico e

4) comunicativo.

1) Ação Teleológica é desenvolvida quando um ator realiza um fim

ou faz que se produza o estado de coisas utilizando meios racionais e

aplicando-os de maneira adequada. “O conceito central é o de uma decisão

entre alternativas de ação, endereçada a realização de um propósito, dirigida

por máximas e apoiadas em uma interpretação da situação.”220 O agir

teleológico se amplia e se converte em agir estratégico quando o cálculo de

um agente faz com que seu êxito intervenha nas expectativas de decisões de

ao menos outro agente, ou seja, quando a ação passa a ser voltada a fins. 2)

Ação regulada por normas não se refere ao comportamento de um ator

solitário, mas sim, de um ator com membros de um grupo social que

orientam sua ação por valores comuns. “O ator particular observa uma

norma (ou a viola) tão pronto como uma situações dada se dão as condições

a que a norma se aplica.”221 3) A Ação Dramaturgica, “não faz referencia

primariamente nem a um ator solitário nem ao membro de um grupo social,

senão a participantes em uma interação que constituem de uns para os

220 Jürgen HABERMAS, Teoria de la Acción Comunicativa. Tomo I, p. 122. Tradução nossa: “El

concepto central es el de una decisión entre alternativas de acción, enderezada a la realización de un

propósito, dirigida por máximas y apoyada en una interpretación de la situación.” 221 Ibid., p. 123. Tradução nossa: “El ator particular observa una norma (o la viola) tan pronto como

en una situación dada se dan las condiciones a que la norma se aplica.”

Page 147: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

138

outros um público ante ao qual se põe a si mesmos em cena.”222 O ator

suscita uma determinada imagem para o público, uma determinada

impressão de si mesmo, tentando desvelar o propósito de sua subjetividade.

4) Ação Comunicativa que se refere a “interação dos mesmos dois sujeitos

capazes de linguagem e de ação que (seja com meios verbais ou com meios

extra verbais) enquadram uma relação interpessoal.”223 Os atores buscam

entender-se sobre uma situação de ação para poder assim coordenar de

comum acordo seus planos de ação e com ele suas ações.

Com isso Habermas nos mostra que além da razão instrumental

apontada por Weber, haveria uma razão comunicativa, fundada na

linguagem, que se expressaria na busca do consenso entre os indivíduos,

por intermédio do diálogo.

Com Max Weber, podemos de modo geral definir as ações sociais pelo

fato de agentes, na perseguição de seus próprios planos de ação, também

se orientarem pelo agir esperado de outras pessoas. Falamos então de agir

comunicativo quando agentes coordenam seus planos de ação mediante o

entendimento mútuo lingüístico, ou seja, quando eles os coordenam de

tal modo que lançam mão das forças de ligação ilocucionárias próprias

dos atos de fala. No agir estratégico esse potencial de racionalidade

222 Jürgen HABERMAS, Teoria de la Acción Comunicativa. Tomo I, p. 123. Tradução nossa: “no

hace referencia primariamente ni a un actor solitario ni al miembro de un grupo social, sino a

participantes en una interacción que constituyen los unos para los otros un público ante el cual se

ponen a si mesmo en escena.” 223 Ibid., p. 124. Tradução nossa: “interacción de a lo menos dos sujetos capaces de lengueje y de

acción que (ya sea com medios verbales o com medios extra-verbales) entablan una relación

interpesonal.”

Page 148: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

139

comunicativa permanece inutilizado, mesmo quando as interações são

lingüisticamente medidas.224

Mesmo no agir comunicativo podemos encontrar dois sentidos, um

sentido fraco e um sentido forte. Por agir comunicativo no sentido fraco,

Habermas entende que ocorre quando “o entendimento mútuo se estende a

fatos e razões dos agentes para suas expressões de vontade unilaterais”225, e

refere-se ao agir comunicativo no sentido forte “tão logo o entendimento

mútuo se estende às próprias razões normativas que baseiam a escolha dos

fins.”226

Na base do agir comunicativo em sentido fraco está a suposição de um

mundo objetivo que é o mesmo para todos; no agir comunicativo em

sentido forte, os envolvidos contam ademais com um mundo social

intersubjetivamente partilhado por eles.227

No agir comunicativo no sentido fraco, os agentes são orientados

apenas pelas pretensões de verdade e veracidade, ao passo que, no agir

comunicativo de sentido forte, é atribuído a esses elementos as pretensões

de correção intersubjetivamente reconhecidas. “Nesse caso, pressupõe-se

não só livre-arbítrio, mas também autonomia no sentido de liberdade e de

determinar a vontade própria com base em discernimentos normativos.”228

224 Jürgen HABERMAS, Verdade e Justificação: ensaios filosóficos, p. 118. 225 Ibid., p. 118. 226 Ibid., p. 118. 227 Ibid., p. 120 228 Ibid., p. 118

Page 149: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

140

O contraste entre a forma de racionalidade cognitivo-instrumental e

uma racionalidade comunicativa só aparece quando alguém se apega ao

aspecto puramente descritivo do conhecimento, sem levar em conta todo o

trabalho interpretativo que pode revelar a maior ou menor racionalidade das

expressões.

Os indivíduos agindo comunicativamente se tratam literalmente

como falantes e destinatários, nos papéis da primeira e segunda pessoa, no

mesmo nível de olhar. “Contraem uma relação interpessoal, na qual se

entendem sobre algo no mundo objetivo e admitem os mesmos referentes

mundanos. Nessa posição performativa, diante do pano de fundo de um

mundo da vida intersubjetivamente compartilhado, fazem simultaneamente,

uns para os outros, experiências comunicativas entre si.”229

Os modos de ação se distinguem segundo orientações básicas que

correspondem à coordenação por interesses e por acordos normativos.

Esquematicamente, Habermas os apresenta da seguinte maneira:

Tabela 6 – Tipos de Ação230

Orientação da ação Situação da ação

Ação orientada ao êxito

Ação orientada ao entendimento

Não-Social

Ação Instrumental

____________

Social

Ação estratégica

Ação Comunicativa

229 Jürgen HABERMAS, Agir comunicativo e razão destrancendentalizada, p. 53. 230 Figura 14 apresentada em Jürgen Habermas, Teoria de la Acción Comunicativa, p. 366.

Page 150: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

141

Sendo explicado da seguinte forma: 1) Ação orientada ao êxito que é

chamada instrumental ocorre quando é observado o baixo aspecto das

regras de ação técnica e avaliamos o grau de eficácia dessa intervenção nos

diferentes estados e coisas; se esta ação for direcionada para o êxito com

uma baixa observância de regras e avaliamos que seu grau de influência nas

decisões sobre outros indivíduos é alta, negando muitas vezes, ou ainda

manipulado a vontade desses, essa forma de ação passa a ser entendida

como estratégica. Já as ações comunicativas são desenvolvidas quando

planos de ação dos atores implicados são coordenados entre si mediante o

entendimento. 2) Orientação voltada para o êxito vs. Orientação voltada

para o entendimento: ao definir ação estratégica e ação comunicativa como

dois tipos de ação distintos, não se pretende designar somente “dois

aspectos analíticos de uma mesma ação que podem explicar como um

processo de recíproca influência por parte de oponentes que atuam

estrategicamente, de um lado, e como processo de entendimento entre

membros de um mesmo mundo da vida, de outro.”231 Mas sim, que são as

ações concretas que podem distinguir-se segundo as perspectivas que os

participantes adotem, “ou bem uma atitude orientada ao êxito, ou bem uma

atitude orientada ao entendimento; devendo estas atitudes, nas

circunstancias apropriadas, poderem ser identificadas à base do saber

intuitivo dos participantes.”232

231 Jürgen HABERMAS, Teoria de la Acción Comunicativa. Tomo I, p. 367. Tradução nossa: “no solamente pretendo designar dos aspectos analíticos bajo los qe ma misma acción pudiera descrebirse como um processo de recíproca influencia or parte de oponentes que actúan estratégicamente, de un lado, y como proceso de entendimiento entre miembros de uns mismos mundo de la vida, de outro.”

232 Jürgen HABERMAS, Teoria de la Acción Comunicativa. Tomo I, p. 367-368. Tradução

nossa: “o bien una actitud orientada al éxito, o bien una actitud orientada al entendimiento; debiendo

Page 151: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

142

Ao propor a Razão Comunicativa, Habermas pressupõe um mundo da

vida compartilhado, evidente ou preconcebido, e que implica um certo grau

de entendimento. A reificação ou a ‘colonização do mundo da vida’

ocorrerá na medida em que o espaço da experiência seja reduzido e, mais

ainda, quando existir uma menor capacidade de questionar o consenso

adquirido.

O MUNDO DA VIDA

A condição de existência do entendimento e a fonte de racionalização

comunicativa são desenvolvidas em um mundo intersubjetivo,

implicitamente consciente em cada indivíduo. Esse mundo é denominado

por Habermas como "mundo da vida"; que é constituído pelos elementos da

cultura, sociedade e personalidade. A Cultura como reserva do

conhecimento alimentada pelas interpretações lingüísticas e pela tensão

entre os conteúdos da tradição e da modernidade; a Sociedade233 composta

de ordens legítimas, as quais os participantes de processos comunicativos

regulam seu pertencimento a grupos sociais e Personalidade como um

conjunto de motivações que inspiram o indivíduo à ação e produz

Identidade.

estas actitudes, en las circunstancias apropiadas, poder ser identificadas a base del saer intuitivo de

los participantes mismos.” 233 Utilizada por Habermas tanto para designar a formação social como um todo, quanto para se

referir a parcela que esta ocupa na produção da solidariedade.

Page 152: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

143

O mundo da vida apresentado por Habermas é uma espécie de pano

de fundo compartilhado intersubjetivamente. Estruturado através das

tradições, instituições, identidades surgidas a partir dos processos de

socialização e individualização e mediadas pela linguagem.

Habermas também vai dizer que o mundo da vida sofre uma forte

influência de uma razão instrumental que predominaria no "sistema", isto é,

nas esferas da economia e da política (Estado) que, no processo de

modernização capitalista, acabou dominando e "colonizando" o mundo da

vida. Os termos ‘pano de fundo’ , ‘primeiro plano’ e ‘recorte do mundo da

vida relevante para a situação’, só fazem sentido se adotarmos a perspectiva

de um falante que deseja entender-se com outro sobre algo no mundo e que

pode apoiar a plausibilidade da oferta de seu ato de fala sobre uma massa de

saber não temático, partilhado intersubjetivamente.

Os componentes do mundo da vida resultam da continuidade do saber

válido, da estabilização de solidariedades grupais, da formação de atores

responsáveis e se mantém através deles. A rede da prática comunicativa

cotidiana espalha-se sobre o campo semântico dos conteúdos simbólicos,

sobre as dimensões do espaço social e sobre o tempo histórico,

constituindo o meio através do qual se forma e se produz a cultura, a

sociedade e as estruturas da personalidade.234

Isso não quer dizer que interações estratégicas não possam surgir no

interior do mundo da vida, principalmente quando se tratam de ações

comunicativas fracassadas.

234 Jürgen HABERMAS, Pensamento Pós-Metafísico: estudos filosóficos, p. 96.

Page 153: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

144

Quando isso ocorre o mundo da vida que serve como pano de fundo é

neutralizado, principalmente “quando se trata de vencer situações que

caíram sob imperativos do agir orientado pelo sucesso; o mundo da vida

perde sua força coordenadora em relação à ação, deixando de ser fonte

garantidora do consenso.”235

Tendo clareza dessas dificuldades, o projeto filosófico de Habermas é

tentar resgatar o potencial emancipatório da Razão. Defende que a

Modernidade é um projeto inacabado236 e recusa a redução da idéia de

racionalidade à racionalidade instrumental-cognitiva da ciência que

dominaria as esferas da racionalidade prático-moral (direito) e da

racionalidade estético-expressiva (arte). Para ele, é necessário fazer cessar a

"reificação" e a "colonização", exercida pelo "sistema" sobre o "mundo da

vida", mediante a lógica dialogal da ação comunicativa.

Para isso Habermas, apresenta uma síntese sobre a eticidade que as

instituições devem apresentar, quando pretendem ter uma

representatividade pública, “a eticidade substancial das instituições pretende

ter autoridade superior à das simples idéias e interpretações das pessoas

morais individuais. E a forma pior de hipocrisia se dá, quando um sujeito

obnubilado, apelando para uma ‘vontade que é somente para si mesma’,

luta contra o bem objetivamente existente.”237

Visualizar a sociedade enquanto esfera simultaneamente pública e

política, na qual a explicação da ação social se articularia com o movimento

235 Jürgen HABERMAS, Pensamento Pós-Metafísico: estudos filosóficos, p. 97. 236 IDEM, Modernidade um projeto inacabado, Um ponto cego no projeto moderno de Jürgen

Habermas: Arquitetura e dimensão estética depois das vanguardas. 237 IDEM, Era das transições, p. 83.

Page 154: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

145

político de defesa da sociedade contra a penetração dos subsistemas nas

formas comunicativas de ação, faz o autor inferir que:

(...) a questão consiste, precisamente, em saber como as formas de

representação e as práticas de instituições contemporâneas afetam os

ânimos: se as encenações simbólicas conseguem criar obrigatoriedades

através de suas ficções normativas, ou se elas apenas reforçam pretensões

de validade normativas, ou seja, contribuem para que certas idéias

obtidas de modo racional lancem raízes nos motivos e na consciência dos

participantes.238

Essa preocupação torna-se necessária para Habermas na medida em

que “o poder comunicativo somente é formado nos espaços públicos que

estabelecem relações comunicativas sobre a base de um reconhecimento

recíproco e que possibilitam o uso de liberdades comunicativas, quer dizer,

posicionamentos espontâneos de tipo positivo/negativo, respeito aos temas,

razões e informações a tratar.”239 Assim, quando as relações comunicativas

são impossibilitadas e as formas individualizadoras de uma subjetividade

são diminuídas “surgem massas de indivíduos isolados, ‘abandonados uns

dos outros’ que, precisamente então, tornam-se susceptíveis de ser

doutrinados e postos em movimento por chefes plebicitários e ser movidos

a ações de massa.”240

238 Jürgen HABERMAS Era das transições, p. 86. 239 IDEM, Más allá del Estado Nacional, p.160. Tradução nossa: El poder comunicativo sólo se

forma en espacios que estabelecen relaciones comunicativas sobre la base de un reconocimiento

recíproco y que possibilitan el uso de libertades comunicativas, es decir, posicionamentos

espontáneos de tipo positivo/negativo, respecto a los temas, razones e informaciones atratar. 240 Jürgen HABERMAS, Más allá del Estado Nacional, p. 161. Tradução nossa: surgen massas de

individuos aislados, “abandonados unos de otros que, precisamente entonces, resultan susceptibles de

Page 155: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

146

A CONCEPÇÃO DA IDENTIDADE EM HABERMAS

Sendo um pensador com origens na Escola de Frankfurt, Habermas

apresenta um grande interesse no indivíduo. Apropriando-se das críticas

feitas por Adorno à Psicanálise e de Marcuse no que se refere ao conceito

freudiano no qual os controles sociais provinham da tensão entre

carecimentos pulsionais e os carecimentos sociais, ou seja, “as pulsões

como motor da história”; “teria esquecido que acabamos de adquirir

privativamente o conceito de impulso pulsional, única e exclusivamente, a

partir da deformação da linguagem e da patologia do comportamento.”241

Habermas vai dizer que foi “precisamente essa batalha intrapsíquica que se

tornou obsoleta na sociedade totalmente socializada, que – por assim – evita

a família e imprime diretamente na criança os ideais coletivos do Eu.”242

O autor infere que de modo semelhante Adorno já havia argumentado

que a “psicologia não é de modo algum uma reserva do particular protegida

contra o universal. Quanto mais crescem os antagonismos sociais, tanto

mais perde evidentemente sentido o próprio conceito – inteiramente

individualista e liberal – da psicologia. O mundo pré-burguês ainda não

conhece a psicologia; o mundo totalmente socializado não a conhece mais.

(...) O poder social não tem praticamente mais necessidade das mediações

do eu e da individualidade. Isso se manifesta precisamente na forma de um

ser adoctrinados y puestos en movimiento por cadillos plebiscitarios y ser movidos a acciones de

masas. 241 Jürgen HABERMAS, Para reconstrução do Materialismo Histórico, p. 207. 242 Ibid., p. 51.

Page 156: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

147

incremento da chamada psicologia do Eu, enquanto, na realidade, a

dinâmica psicológica individual é substituída pela adaptação, em parte

consciente, em parte regressiva, do indivíduo à sociedade.”243 Não iremos

discutir aqui a tese do fim do indivíduo, o interesse em trazer as

contribuições de Adorno acerca da identidade e Psicanálise devem-se a

retomada desses conceitos por Habermas na sua concepção de Identidade.

Diferente de seus antecessores Adorno e Horkheimer, que segundo

Habermas: “se deixaram seduzir – levados por uma percepção

excessivamente rica e por uma interpretação excessivamente simplificadora

de certas tendências – pela tentativa de desenvolver um pendant da

esquerda à teoria (popular na época deles) do poder totalitário”244; investe

seus estudos na emancipação social, na autonomia do Eu e apontando a

importância da psicanálise como uma análise da linguagem que

possibilitaria compreender a intersubjetividade dos atos.

Habermas entende que o conceito de Identidade do Eu não tem um

sentido descritivo, indicando uma organização simbólica do Eu, que, por

um lado, reclama uma normatividade que possibilite soluções dos

problemas, mas que por outro, não se instaura de modo regular, dificultando

um ‘equilíbrio’ no desenvolvimento.

243 Theodor W. ADORNO, Acerca de la relación entre sociologia y psicologia, Teoria Crítica del

Sujeto, p. 73. Tradução nossa: “La psicologia no es ninguna reserva de lo particular resguardada de lo

general. Cuanto más crecen los antagonismos sociales, tanto más evidentemente pierde sentido el

concepto individualista y liberal de punta a cabo de la misma psicologia. El mundo preburgés no

conocía aún la psicologia; el totalmente socializado no la conoce ya. (...) El poder social ya casi no

necesita las agencias mediadoras del yo y la individualidad, lo cual se manifesta precisamente en el

crecimiento de la llamada psicologia del yo, mientras, en realidad, la dinâmica psicológica individual

es sustituida por la adaptacíon, en parte consciente y en parte regressiva, del individuo a la sociedad.” 244 Jürgen HABERMAS, Para a Reconstrução do Materialismo Histórico, p. 51.

Page 157: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

148

Ou seja, “o transito desde a interação mediada simbolicamente a

interação regulada por normas não só possibilita passar a um entendimento

modalmente diferenciado. Não só significa a construção de um mundo

social, mas também a reconstrução simbólica dos motivos de ação. Desde o

ponto de vista da socialização da criança, este processo de socialização

(Vergesellschaftung) se apresenta como formação de uma identidade.”245

Habermas vai explorar o conceito de Identidade em Para

Reconstrução do Materialismo Histórico, texto que também pode ser visto

como uma ‘releitura’ do Materialismo Histórico, ao apontar a evolução da

ação simbólica ou das estruturas de comunicação que agora

complementariam o desenvolvimento dos modos de produção ou das

esferas instrumentais de ação; neste trabalho vai desenvolver sua leitura

acerca da identidade do Eu, após estudar três diferentes tradições teóricas:

“psicologia analítica do Eu (H. S. Sullivan, Erikson); na psicologia

cognoscitiva do desenvolvimento (Piaget, Kohlberg); e na teoria da ação

definida pelo interacionismo simbólico (Mead, Blumer, Goffman etc)”,

concluindo que apesar dessas concepções de base convergentes tentarem

demonstrar uma teoria do desenvolvimento, nenhuma dessas apresentou-a

de modo convincente, de modo que permitisse definir de modo exato e

empiricamente a identidade do Eu. Habermas também vai afirmar que as

patologias da modernidade seriam resultantes das distorções lingüísticas.

245 Jürgen HABERMAS, Teoria de la Acción Comunicativa. Tomo II, p. 62. Tradução nossa: “El

tránsito desde la interacción mediada simbólicamente a la interacción reguilada por normas no sólo

posibilita el paso a un entendimiento modalmente diferenciado. No sólo significa la construcción de

un mundo social, sino también la reestructuración simbólica de los motivos de la acción. Desde el

punto de vista de la socialización del niño, este lado del proceso de socialización

(Vergesellschaftung) se presenta como formación de una identidad.”

Page 158: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

149

Neste sentido aponta a importância da Psicanálise como análise da

linguagem, que por sua vez possibilita compreender a intersubjetividade dos

atos. presenta então, o modelo de desenvolvimento moral desenvolvido por

Kohlberg246, cujas noções segundo Habermas “satisfazem as condições

formais de uma lógica do desenvolvimento”247, nos dizendo que “o

discurso prático é um processo, não para a produção de normas justificadas,

mas para o exame de validade de normas consideradas hipotéticamente.”248

Para Kohlberg o desenvolvimento moral ocorreria em três níveis, passíveis

de verificação, são eles: 1) Nível Pré-Convencional: no qual o ‘correto’ é a

obediência literal às regras e à autoridade, evitar o castigo e não fazer mal

físico; 2) Nível Convencional: no qual o ‘correto’ é desempenhar o papel de

uma pessoa boa (amável), é preocupar-se com as outras pessoas e seus

sentimentos, manter-se leal e conservar a confiança dos parceiros e estar

motivado a seguir regras e expectativas e 3) Nível Pós-Convencional: onde

as decisões morais são geradas a partir de direitos, valores ou princípios

com que concordam (ou podem concordar) todos os integrantes compondo

ou criando uma sociedade destinada a ter práticas leais e benéficas.

Habermas também apresenta o desenvolvimento da identidade Eu;

que passaria por três momentos distintos: identidade natural, identidade de

papel e identidade do Eu. A identidade natural seria referente ao primeiro

estágio do desenvolvimento; a “criança, abandonando a fase simbiótica e

tornando-se (num primeiro momento, na perspectiva da penalidade e da

246 Um detalhamento dos níveis de desenvolvimento moral pode ser encontrado em Jürgen

HABERMAS, Consciência Moral e Agir Comunicativo, p. 152-154. 247 Jürgen HABERMAS, Para a Reconstrução do Materialismo Histórico, p. 55. 248 IDEM, Consciência Moral e Agir Comunicativo, p.148.

Page 159: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

150

obediência) sensível a pontos de vistas morais, aprendeu nesse momento a

distinguir entre si e seu corpo e o ambiente, embora não seja ainda capaz de

separar rigorosamente, nesse ambiente, os objetos físicos dos objetos

sociais”249, nesse primeiro nível os atores ainda não estariam inseridos no

universo simbólico, sendo que suas ações podem ser imputadas.

Habermas diz que na medida que a criança é socializada, e incorpora

o universo simbólico intersubjetivo, de papéis fundamentais de seu

ambiente natural (filho, irmão, neto, etc), e mais tarde grupos mais amplos

(vizinho, amigo, aluno), superpõe-se a sua Identidade Natural a Identidade

de Papel. Embora esse nível já aponte uma diferenciação frente aos outros

indivíduos, “os atores revelam-se como pessoas de referência dependentes

de papéis e, mais tarde, também como anônimos portadores de papéis.”250

Ao buscar a independência da Identidade de Papel, o sujeito desenvolve a

Identidade do Eu, que se expressa deforma paradoxal na medida que “o Eu,

como pessoa em geral, é igual a todas as pessoas, ao passo que – enquanto

indivíduo – é diverso de todos os demais indivíduos.”251

Habermas entende que somente neste terceiro nível “os portadores de

papéis se transformam em pessoas, que podem afirmar a própria identidade

independente dos papéis concretos e de sistemas particulares de normas”252,

transformando-se de fato em autores de sua história de vida, podendo dizer

‘eu’ de si mesmas.

Ao Articular estas duas concepções de desenvolvimento individual,

Habermas apresenta um esquema no qual adiciona mais um nível de

249 Jürgen HABERMAS, Para a Reconstrução do Materialismo Histórico, p. 62. 250 Ibid., p. 64. 251 IDEM, Para Reconstrução do Materialismo Histórico, p. 69. 252 Ibid., p. 64.

Page 160: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

151

desenvolvimento na teoria do desenvolvimento moral, pois acredita que o

mesmo é incompleto ao não diferenciar o que pode ser “verdadeiros”

interesses.

Tabela 7 – Consciência Moral e Competência de Papel253

níveis de idade nível de comunicação

exigência de reciprocidad

e

níveis de consciência

moral idéia de vida boa esfera de

validade reconstruções

filosóficas

níveis de

idade

reciprocidade incompleta

1 maximizar o

prazer/evitar a dor através da

obediência

I ações e

conseqüências de ações

prazer/desprazer

generalizados reciprocidad

e completa 2

idem, através de trocas

equivalentes

ambiente natural e

social hedonismo ingênuo

IIa

papéis 3 eticidade

concreta de grupos primários

grupo de pessoas de referência primário

II

sistemas de normas

necessidades culturalment

e interpretadas

(deveres concretos)

reciprocidade incompleta

4 eticidade

concreta de grupos

secundários

pertencentes ao grupo público

pensamento concreto e de

ordem

IIb

prazer/desprazer

generalizados (utilidade)

deveres universais

5 liberdade civis,

beneficência pública

todos os associados jurídicos

direito natural racional

6 liberdade moral

todos os homens

enquanto pessoas privadas

ética formalista III Princípios

interpretações

universalizadas dos

carecimentos

reciprocidade completa

7 liberdade moral e pública

todos enquanto

membros de uma fictícia sociedade mundial

ética universal da linguagem

III

Para Habermas uma identidade bem-sucedida do ‘Eu’ seria aquela

que conseguisse manter sua autenticidade perante as mudanças sociais.

Sendo assim:

253 Esquema 4. apresentado em Jürgen HABERMAS, Para Reconstrução do Materialismo

Histórico, p. 68.

Page 161: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

152

Quando criança (o indivíduo) incorpora as universalidades simbólicas

dos papéis menos fundamentais de seu ambiente familiar e, mais tarde, as

normas de ação de grupos mais amplos, a identidade natural acoplada a

seu organismo é substituída por uma identidade constituída por papéis e

mediatizada simbólicamente. A continuidade devida à identidade baseada

em papéis apóia-se, então, na estabilidade das expectativas

comportamentais que, através do ideal do Eu, terminam por se fixar na

própria pessoa.254

Este estágio de consciência de si, no qual o indivíduo pode referir a si

mesmo por meio da reflexão sofre forte influência da construção hegeliana

de identidade. Que por sua vez diferencia essa em duas instâncias; a

singularidade e a individualidade. Enquanto singularidade o indivíduo é

indiferença de todas as determinidades, de modo que se exibe enquanto

totalidade. Ao passo que enquanto individualidade, esse é a diferença de

todas as determinidades, é um vivente formal e reconhece-se como tal. Nas

palavras de Hegel:

(...) o indivíduo como tal é pura e simplesmente um com a vida, não

apenas em relação com ela, (...) o indivíduo não é um tal indivíduo, mas

sim um sistema absoltamente total, por conseguinte, a sua singularidade e

a vida são postas como uma coisa, como algo particular. (...) a vida é a

mais alta indiferença do singular, mas ao mesmo tempo é pura e

simplesmente algo de formal, porquanto é a unidade vazia das

determinidades singulares, e não se põe assim nenhuma totalidade e

nenhuma integridade reconstruindo-se a partir da diferença. Enquanto é

254 Jürgen HABERMAS, Para Reconstrução do Materialismo Histórico, p. 79.

Page 162: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

153

o absolutamente formal, a vida é também justamente por isso a

subjetividade absoluta, é a pessoa.255

A singularidade nos diferencia enquanto sujeitos, ao mesmo tempo

nos iguala nas expectativas em relação a sociedade, enquanto que a

individualidade sendo a negação de todas as determinidades nos dá acesso a

subjetividade e possibilita uma reconstrução do Eu a partir das diferenças.

O Eu portanto, está além da linha constituída por todas as normas e

papéis sociais; tendo de estabilizar-se na capacidade de representar a si

mesmo, em qualquer situação, inclusive diante de expectativas de papel

contraditórias. “No adulto, a identidade do Eu se confirma na capacidade de

construir novas identidades, integrando nelas as identidades superadas e

organizando a si mesmo e às próprias interações numa biografia

inconfundível.”256

AS PATOLOGIAS DA MODERNIDADE PARA HABERMAS

No entanto, Habermas entende que o desenvolvimento da Identidade

do Eu está sujeita as imposições da sociedade que, por sua vez podem ser

conflituosas e, que em certas circunstâncias tais conflitos podem representar

uma carga demasiada forte para o indivíduo, resultando no que ele

denomina uma identidade danificada, identidade integrada coercitivamente

ou identidade cindida. Isso sem contar que a colonização (subordinação à

lógica sistêmica) do mundo da vida traz uma série de distúrbios igualmente

255 Georg W. F. HEGEL, O sistema da vida ética, p. 34-35. (grifos nosso). 256 Jürgen HABERMAS, Para Reconstrução do Materialismo Histórico, p. 80.

Page 163: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

154

indesejáveis neste nível. Isso faz com que o autor aponte algumas

patologias sociais; a perda de sentido das tradições culturais (na reprodução

social), anomia (interação social) e psicopatologias e distúrbios de formação

da identidade (socialização e individuação). Esses fenômenos são

entendidos por Habermas como distorções sistemáticas de comunicação,

sendo que “tais patologias da comunicação podem entender-se, com efeito,

como resultado de uma confusão entre ações orientadas para o êxito e

ações orientadas para o entendimento.”257

A manipulação dos atos comunicativos, ao contrário do tipo de

solução inconsciente de conflitos que a Psicanálise explica por meio dos

mecanismos de defesa, acabam produzindo perturbações na comunicação,

simultaneamente no plano intrapsíquico e no plano interpessoal. “Em tais

casos, ao menos um dos participantes se engana a si mesmo ao não dar-se

conta que está atuando em atitude orientada ao êxito e mantendo uma

aparência de ação comunicativa.”258 Esquematicamente a comunicação

sistematicamente distorcida é apresentada por Habermas da seguinte

maneira:

257 Jürgen HABERMAS, Teoria de la Acción Comunicativa. Tomo I, p. 425. Tradução nossa:

“Tales patologias de la comunicación pueden entenderse, en efecto, como resultado de una confusión

entre acciones aorientadas al éxito y acciones orientadas al entendimiento.” 258 Jürgen HABERMAS, Teoria de la Acción Comunicativa. Tomo I, p. 425. Tradução nossa: “En

tales casos, al menos uno de los participantes se engaña a si mesmo al no darse cueta de que está

actuando en actitud orientada al éxito y manteniendo solo una aparencia de acción comunicativa.”

Page 164: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

155

Tabela 8 – Distorções sistemáticas da comunicação259

Ações sociais

Ação comunicativa Ação estratégica

Ação estratégica Ação

abertamente

encoberta estratégica

Engano inconsciente Engano consciente

(comunicação sistematicamente (manipulação)

distorcida)

Habermas acredita que da mesma forma que a “crítica das auto-

ilusões e dos sintomas de uma forma de vida forçada ou alienada mede-se

na idéia de uma vida vivida de modo consciente e coerente”260, as

patologias da modernidade podem ser medidas pela impossibilidade de

viver um vida ‘boa’261, de se separar do grande número, de viver uma vida

autentica. “Aqui, a autenticidade de um projeto de vida, analogamente a

pretensão de veracidade de atos expressivos de linguagem, pode ser

compreendida como uma pretensão de validade de grau mais elevado.”262

Partindo da Psicanálise Social de Alexander Mitscherlich, vai dizer que

“cada vez mais as relações se transformam em mercadorias ou em objetos

das administrações e dos especialistas. Um exemplo disso é a interferência

259 Figura 18 apresentada em Jürgen Habermas, Teoria de la Acción Comunicativa. Tomo I, p. 426. 260 Jürgen HABERMAS, A Inclusão do Outro: estudos de teoria política, p. 41. 261 O conceito de ‘vida boa’ refere-se a forma de vida escolhida de forma não coercitiva. 262 Jürgen HABERMAS, A Inclusão do Outro: estudos de teoria política, p. 41.

Page 165: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

156

que se produz entre os imperativos econômicos e as necessidades de um

entorno urbano.”263

Da mesma forma encontra em Mitscherlich uma substituição do

conceito tradicional de razão pela capacidade de autocrítica do eu e uma

identidade flexível do eu que possibilita imaginar alternativas para os

indivíduos. “Esta se constitui em comunicações articuladas de sorte que os

participantes, seja na infância, seja na enfermidade, seja na pratica da vida,

aprendam a não desejar-se fazer prisioneiros pelas encontradas pretensões

da natureza interna e da sociedade, senão posicionar-se frente a elas sem

prejuízos com sim ou com um não.”264

Habermas mostra como a Psicanálise – que tenha como foco as

questões semânticas – pode auxiliar na desconstrução das distorções de

comunicativas, pois na medida que esta “é um processo de ampliação da

percepção e de correção da percepção. Ela comporta novas experiências de

comunicação que libera passo a passo seu paciente da escrava dependência

de um jogo de repertório previamente dado, mas não para que possa dispor-

se à vingança, mas para que possa se obrigar a ideais mais ilustrados como

263 IDEM, Textos y Contextos, p. 200-201. tradução nossa: “cada vez más relaiones se transforman

em mercancías o em objetos de las administraciones y de los expertos. Um ejemplo de ello es la

interferencia que se produce entre los imperativos económicos y las necessidades de um entorno

urbano.” 264 Alexander MITSCHERLICH apud Jürgen HABERMAS, Textos y Contextos, p. 196. Tradução

nossa: “Ésta se constituye em comunicaciones articuladas de suerte que los participantes, sea em la

niñez, sea em la enfermedad, sea em la prática de la vida, aprendan a no dejarse hacer prisioneros por

las encontradas pretenciones de la natureza interna y de la sociedad, sino a posicionarse frente a ellas

sin prejuicios com um si o com um no.”

Page 166: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

157

são a consideração e o respeito, o colocar-se no lugar do outro e a

compreensão.”265

Desse modo, se entendermos que a economia de mercado capitalista e

a burocracia são formas ‘normais’ da Modernidade; somente poderemos

falar em ‘patologias’ quando existir uma transgressão da racionalidade

instrumental nas fronteiras do sistema e ocorrer uma penetração nas esferas

simbólicas do mundo da vida, ou seja, na compreensão mútua entre os

indivíduos. Da mesma forma, essas distorções de comunicação

poderiam/deveriam ser desfeitas ao passo que fossem desveladas as

influências da lógica sistêmica na conduta de vida dos indivíduos e que

estes pudessem atribuir outro sentido a realidade vivida.

265 Ibid., p. 194. tradução nossa: “es um processo de ampliación de la percepción y de corrección de

la percepción. Ello comporta nuevas experiencias de la comunicación, em especial de la

comunicación entre médico y paciente... El esfuerzo del psicoanalista se endereza a estabelecer uma

comunicación que libere paso a paso su paciente de esclava dependencia de um juego de rol

previamente dado, pero no para que pueda disponerse a la venganza, sino para que pueda obligarse a

ideales más ilustrados como son la consideración y el respecto, el ponerse em lugar del outro y la

comprensión.”

Page 167: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

CAPÍTULO V

A HISTÓRIA DE LOU-LOU

Page 168: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

V

5.1 – A HISTÓRIA DE LOU-LOU

“A História de Vida torna-se o principio da individuação, mas

para que isso aconteça, precisa ser transladada, através de

tal ato de auto-escolha, para uma forma de existência auto-

responsável.” J. HABERMAS

Até aqui apresentamos o referencial teórico no qual nos apoiamos e o

contexto no qual está inserido nossa participante da pesquisa; agora

apresentaremos nosso problema: Qual o sentido da oficina terapêutica de

teatro na metamorfose da identidade da pessoa que passou por tratamento

da dependência química em ambulatório de atendimento a usuários de

drogas?

Para responder essa pergunta apresentaremos Lou-Lou, uma

personagem real, embora de nome fictício, que fará um relato

autobiográfico que será analisado à luz do referencial teórico apresentado

ao logo dessa dissertação. Dessa maneira, a narrativa da história de vida de

Lou-Lou será analisada na tentativa de apreender o sentido que esta atribui

a sua participação na oficina terapêutica de teatro, buscando verificar se o

processo de metamorfose ocorrido nas diversas personagens de sua vida

evidencia a presença de fragmentos de emancipação, bem como discutir se

essa identidade pode ser considerada Pós-Convencional.

Page 169: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

160

A escolha da narrativa da história de vida de Lou-Lou como material

empírico da pesquisa se deu observando o método utilizado por Ciampa na

pesquisa de Identidade, a qual se entende que:

O singular materializa o universal na unidade do particular. Se tudo isso

é verdadeiro, e não mero filosofema, a análise do desenvolvimento

histórico – tanto a ontogênese quanto a filogênese – deve revelar, seja no

caso do individual, seja no caso do social, um nexo entre si, além de,

consequentemente, um nexo também entre seus estágios de

desenvolvimento.266

Assim, a utilização da narrativa de história de vida deve possibilitar

que observemos as metamorfoses do indivíduo, como é apresentado por.

Canetti, no discurso proferido em Munique, em 1976, no qual esse diz que:

“Só pela metamorfose (no sentido extremo em que essa palavra é usada

aqui) seria possível sentir o que um homem é por trás de suas palavras: não

haveria outra forma de apreender a verdadeira consistência daquilo que nele

vive”.267

Vale lembrar que para Ciampa, “a realidade é movimento, é

transformação”. Assim como, “quando um momento biográfico é

focalizado não é para afirmar que só aí a metamorfose está se dando; é

apenas um recurso para lançar mais luz no episódio onde é mais visível o

que se está afirmando”268 e que dado nosso referencial teórico, entendemos

que a identidade se expressa empiricamente por meio de personagens, da

266 Antonio da C. CIAMPA, A estória do Severino e a História da Severina, p. 213-214. 267 Elias CANETTI, O ofício do poeta, A consciência das palavras, p. 282. 268 Antonio da C. CIAMPA, A estória do Severino e a História da Severina, p. 41.

Page 170: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

161

articulação das personagens que vai compor a identidade da pessoa

estudada nos diversos momentos de sua vida.

Ao analisar as personagens encarnadas dentro da narrativa a seguir,

verificaremos a articulação dessas personagens entre si, como realidade

subjetiva, constituída a partir da internalização e da interiorização, assim

como, com outros atores sociais, como realidade objetiva, que envolve a

normatividade e a intersubjetividade. A articulação dessas personagens

desvelará como ocorrem a re-posição, como a superação de personagens

corporificadas pelo indivíduo.

Vamos, portanto, analisar pela dialética. Temos que partir do empírico,

mas a reflexão teórica vai ser fundamental para acompanhar o concreto,

do contrário, não se sai do empírico. O empírico tem que se converter em

concreto e o concreto em múltiplas determinações, determinações não

casuais, mas categorias. Eu só posso apanhar o concreto se eu apanho

cada uma das suas determinações ou categorias – é uma propriedade

essencial desse concreto.269

A entrevista foi realizada com os devidos cuidados, na residência da

participante. Com a transcrição da entrevista passamos a identificar as falas

que se referem aos eixos temáticos da investigação: A socialização e a

individuação, a relação com as drogas, o tratamento no ambulatório de

atenção ao uso de drogas: Espaço Fernando Ramos da Silva – EFRS, o

sentido da oficina terapêutica de teatro e a Identidade (verificando se esta se

expressa como uma Identidade Pré-Convencional, Convencional ou Pós-

269 Iraí CARONE, Análise epistemológica da tese de doutoramento de Antonio da Costa Ciampa, p.

09.

Page 171: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

162

Convencional). A questão do sigilo e a privacidade tiveram grande ênfase e

importância, evitando a possibilidade de perda de anonimato do

participante, sendo que isso estende-se às pessoas citadas por Lou-Lou

durante a entrevista (psicólogos, médicos, enfermeiros etc).

ONDE APRESENTAMOS LOU-LOU E ESSA NOS CONTA SUA

HISTÓRIA

Nesta parte da dissertação Lou-Lou conta sua história de vida, uma

história que assim como a de Fernando Ramos da Silva é a de uma luta

constante contra o estigma do marginal, do drogado, do louco, do

desacreditado. Para nos dizer quem é, Lou-Lou inicia pelo relato da

infância-que-não-teve em Diadema, essa resultante das limitações sócio-

econômicas de sua família. Conta que era a sexta filha de uma família de

sete irmãos, sendo quatro mulheres e três homens. Seu pai trabalhava em

uma fábrica da cidade e sua mãe era dona de casa. Para Lou-Lou a classe

social na qual estava inserida era muito desfavorável. Ao descrever seu pai

tenta explicar a carência matérial e afetiva na qual este estava inserido:

Era um assalariado, trabalhava em fábrica, então já vivia naquele

cotidiano de ir pruma fábrica, acordar todo dia muito cedo, voltar sempre

tarde, chegar em casa ter muitas crianças. Acho que era um tanto quanto

maçante pra ele (...) muitos problemas pouca grana, (...) é uma vida de

casais assim, já era cada vez mais restrita, eu nunca via muito mais meu

pai e minha mãe juntos abraçados, nunca consegui enxergar essa questão

de carinho enquanto casal, sabe, foi uma coisa que... eu posso dizer que

tudo que aprendi na vida e tudo que eu sou, eu fui de uma forma muito

autodidata, porque eu não tive muitos exemplos a seguir (...)

Page 172: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

163

Sua mãe trabalhava desde muito jovem, “...uma pessoa que sempre

foi muito oprimida pelo pai (...) não poder sair. (...) primeiro namorado que

teve já se casou, (...) aquelas gerações mais antigas...”, sendo que a única

educação que teve foi para ser dona de casa.

O pai era o provedor da família, sendo que a exploração sofrida na

fábrica em que trabalhava fazia com que este não conseguisse ser um pai

presente. É neste ambiente que Lou-Lou foi socializada. E como se pode

ver, seu primeiro contato com as drogas ocorrerá na própria esfera privada,

entendendo seu uso como um anestésico para uma realidade opressora; isso

aparece na justificativa que faz do uso de álcool pelo pai.

Meu pai sempre bebeu, ele bebia muito (...) é um ambiente já um pouco

complicado que... claro! Pra ele de uma certa forma a vida devia ser

muito fudida então tinha que se entorpecer mesmo porque viver naquele

contingente de São Paulo...

Para localizar o lugar de Lou-Lou na família vamos seguir as

explicações da mesma, que começa dizendo que seus irmãos nasceram com

um intervalo médio de dois anos, sendo que após o nascimento do quarto

filho ocorre um intervalo de sete anos, nascendo os outros três.

Eu estou nesta daí, a penúltima (...) das meninas eu sou a caçula e daí era

muito fogo porque era bem assim. (...) dessa última minha irmã que

depois teve este prazo de sete pra mim já são dez anos de diferença,

então quando eu estava nascendo minha irmã já estava com dez anos,

outra já tava com treze, outra já tava com quinze e eu estava com três,

então eram muitos universos vivendo dentro de um espaço físico comum,

com toda essa relação do cotidiano.

Page 173: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

164

Quando Lou-Lou nasceu, sua mãe, que tinha quarenta e dois anos

sofre uma depressão após o parto. Nessa época a mãe de Lou-Lou ainda

amamentava o irmão que nascera anteriormente, fato que se repete com o

último filho que, ao nascer tem que dividir o peito com Lou-Lou. Esse

episódio sempre foi algo que marcou muito Lou-Lou, nas suas palavras:

Não sei, pode ser que eu até seja mimada, mas falar pôxa nem uma teta

eu tive só para mim, você tá me entendendo? Não querendo justificar

muito o que não tive, mas assim pôxa tudo eu tive que dividir todo o

tempo quando eu fui pequena, tudo, tudo... Então assim era tudo muito

controlado até mesmo por causa que a realidade... imagina uma família

com sete filhos é uma família que consome muitas coisas (...) básicos (...)

então acabava (...) tendo uma vida bem restrita às vezes (...) era tudo

meio que controlado pra se ter pra todo mundo, não faltar nada pra

ninguém (...) eu não podia querer ter. Ah! Vou querer ter aquele negócio,

vou querer ter aquele outro, então vamos improvisar, vamos criar, vamos

fazer, vamos, então desde pequena sou assim (...).

Lou-Lou não lembra ter presenciado momentos de lazer com os pais

durante a infância, “...meu pai então já não podia fazer coisas de lazer pras

crianças... Ah! Vou te levar no parque, vou te levar no zoológico ou vem

aqui vamos brincar... difícil, não tinha tempo pra isso, meus irmãos estavam

num corre de estudar, trabalhar...” Por conta disso sempre brincava na rua,

o único lazer possível na realidade em que estava inserida; lembrando

dessas brincadeiras conta mais uma de suas lembranças:

Lembro que tinha um circo em frente da casa da minha mãe que ele era

tudo pra mim. Era minha maior diversão, ser amiga da dona do circo, a

filhinha do circo (...) e daí a gente descia (...) tinha muito essa coisa de

Page 174: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

165

brincar na rua, de andar de skate, descer ladeira com carrinho de rolemã,

empinar pipa, andar de bicicleta. Ah! Não tem uma bicicleta então deixa

eu dar uma volta na sua... era muito feliz sabe.

Criava alternativas para lidar com a falta de lazer que não vivenciava

na família. Sendo que essa possibilidade de brincar com outras crianças é

vista por Lou-Lou como elemento essencial na constituição de sua

identidade, algo que, segundo a mesma, ainda utiliza nos dias de hoje.

Eu preservei acho que pela minha vida toda isso daí, de querer de falar

com qualquer pessoa e não ter medo esse lado meio destemido da

criança, de falar com qualquer pessoa (...) estar em qualquer lugar, estar

comigo do jeito que eu sou e foda-se! Se eu não tenho isso, eu não sou

aquilo. (...) Isso era muito importante pra mim e ainda é, então eu

preservando isso me abriu muitas portas sabe (...).

Vivendo em uma família formada com diversos integrantes fez com

que as possibilidades identificatórias de Lou-Lou fossem ampliadas, isso

fica mais claro quando a mesma conta a diversidade cultural presente em

sua casa.

Tinha um irmão mais velho que já gostava de disco e ouvia ABA e ouvia

esses sons QUEEN (...) como eu tinha minhas irmãs que já ouviam

samba tal, meu pai ouvindo moda de viola, que ele já tinha cantado em

rádio tudo, tinha cultura de folia de reis que já era uma coisa dos avós,

que todo ano até hoje vai na casa da minha mãe, então eu tinha uma

cultura folclórica além pra acrescentar aquele tumulto diário ali, pra

deixar mais divertido (...) tenho os meus irmãos que são fruto dessa

eloquência, porque eles aprenderam tocar instrumentos com o

cavaquinho da folia de reis, tenho um irmão que ele era Punk nos anos

Page 175: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

166

oitenta né, e que todo esse pessoal Punk vinha e freqüentava a casa da

minha mãe (...) já era um negócio assim de ver alfinetes na cara, de ver

tatuagem, cabelo colorido, cabelo espetado (...) era uma coisa muito

radical, então conviver com o diferente, de uma certa forma, era minha

realidade normal (...).

A realidade “normal” era o pluralismo existente em sua casa. Isso

fica evidente dada a diversidade de ritmos musicais presentes na família,

que por sua vez atribuía uma identidade para cada um de seus membros.

Essa questão será melhor explicada adiante, momento em que Lou-Lou irá

contar sobre suas primeiras identificações.

O fato de pertencer a uma família de baixa renda trouxe

responsabilidades ainda muito cedo para Lou-Lou. Aos 10 anos já começa a

trabalhar; passa a cuidar do sobrinho para a irmã poder trabalhar, passa

então a ter que administrar o brincar, o estudo e o trabalho.

Eu não tinha muita opção, podia até brincar e tudo mais eu tinha uma

responsabilidade de uma certa forma. Porque olhava e me sentia

angustiada de ver minha mãe sem nunca poder ter tempo, às vezes eu

queria sentar e conversar com ela, às vezes eu só queria que ela pegasse

na minha mão e me levasse pra dar uma volta sabe e... não rolava.

Até então Lou-Lou vivia a personagem da Garota-Morna que, presa

ainda em um hedonismo ingênuo, procurava minimizar as possibilidades de

punição sendo a boa-moça. Essa personagem também é representada na

escola que era vista como um lugar de liberdade neste período. Não

freqüentou a pré-escola indo direto para a primeira série, não encontrando

dificuldades na adaptação ao meio escolar. Diz que o fato de representar a

Page 176: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

167

Garota-Morna na escola, não causando problemas, possibilitou, segundo a

mesma, “assimilar e conseguir um amor, conforto às vezes, uma

tranquilidade, um silêncio que me faltava na minha casa. Eu tava

aprendendo coisas e aquilo pra mim eu intrigante...”, em outras palavras, ao

re-por a Garota-Morna significava ter ganhos secundários, evitava a

possibilidade de lidar com o confronto.

Eu queria sempre fazer alguma coisa que chamasse a atenção, tá

entendendo? pra eu ser elogiada, pra poder ter uma atenção um carinho

extra sei lá.. uma vontade de ter alguém assim te protegendo... então

sempre ia bem, ia bem em tudo, me dava bem, me desempenhava legal

nas matérias, tirava notas boas e ai aquilo era assim... como eu não tinha

problema na escola, os outros que tinham era o maior problema.

Abria mão da sua espontaneidade para ser amada, aceita, na escola.

Após os 11 anos, a Garota-Morna sente necessidade em saber mais sobre

questões da sexualidade, dada as mudanças que estavam ocorrendo em seu

corpo provocadas pelos hormônios da adolescência. No entanto, não

encontrava quem satisfizesse seu interesse em sua família:

Nunca ninguém falava de sexualidade (...) ninguém nunca chegava

falava mesmo. Eu tendo as irmãs maiores elas não estavam pensando no

que que a gente ia viver.. elas já tavam aprendendo lá fora isso, de uma

certa forma.

Na escola a Garota-Morna também não encontrava ninguém que

discutisse esse tema, até que “veio uma professora maravilhosa, uma

física... que ela falava tudo.. tudo.. tudo o que a gente não aprendia em casa,

a gente aprendia com ela na escola. É ótima! Tudo ela falava... tudo, tudo,

Page 177: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

168

tudo e aí sempre tinha uma ou outra menina que já tinha feito sexo e daí

sabia e falava alguma coisa e tal (...) Mas o que eu aprendi nessa área de

sexualidade era aquilo que eu lia em revista e lia livros.” Assim, a Garota-

Morna estava se transformando na Garota-Adolescente, que contava agora

com uma ampliação daquilo que entendia sobre sexualidade.

LOU-LOU CONTA COMO A GAROTA-MORNA PASSA A SER

VISTA COMO GAROTA-PERDIDA QUANDO SE TRANSFORMA

NA ANARCOPUNK

A Garota-Morna estava se tornando a Garota-Adolescente, ocorre a

diferenciação da identidade de papel atribuída pelos pais e encontra uma

outra personagem possível no irmão Punk. Identificando-se com seu irmão,

começa a delinear-se uma nova personagem para sua identidade, a Irmã-

Punk.

Ouvir músicas mais rápidas e Hard Core era uma coisa pra mim natural

do mesmo jeito que meu pai ouvia um breganejo dele, o sertanejo dele,

eu ouvia hard core (...) é... era, era um lance natural eu ia em show Hard

Core (...).

Mas até esse momento a Garota-Adolescente que queria ser Punk não

saía com essas pessoas – não era reconhecida como a Irmã-Punk – fato que

tornava seu envolvimento ‘tolerável’ perante a família. Contudo, a Garota-

Morna gosta do movimento Punk e começa a frequentá-lo. Essa atitude vai

trazer algumas conseqüências; na medida em que assume perante a família

sua escolha passa a ser estigmatizada por ela. Lou-Lou dando um exemplo

dessa situação comenta: “aí eu comecei a sair com aquelas pessoas, e aquilo

Page 178: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

169

pra minha mãe era um absurdo, terrível (...) mal... tinha um filho perdido e

agora tinha uma filha perdida.”

Aqui Lou-Lou aponta uma questão importante, o fato de escolher ser

diferente da personagem que representava (Garota-Morna), faz com lhe

seja atribuída a personagem: Filha-Perdida, que era vista agora por sua

família como a totalidade de sua identidade. Sendo que ao vivenciar essa

nova personagem passa a ser vista como alguém que cumprirá um script a

priori já elaborado, que tem dentro de suas premissas o uso de drogas. Lou-

Lou justifica esse fenômeno da seguinte maneira:

É muito fogo esse lance de se associar, tá andando com um grupo mais

marginalizado logo vai usar droga, não é bem assim. Porque antes disso

eu já fumei cigarro quando estava no colégio, quando estava com minhas

amigas de escola, via uma mulher vamos comprar uma carteira de cigarro

e dividir.. Ah! Então vamo... aí comprava dividia.

Lou-Lou lembra então que sempre conviveu com Punks, não sendo

dessa forma novidade, porém o fato de assumir-se participante do

movimento lhe conferia outras possibilidades até então não vivenciadas.

Vamos voltar a Lou-Lou e deixar que esta conte isso com suas palavras:

Sempre convivi com o pessoal Punk desde de pequena (...) não era muito

absurdo, só que eu fui viver a minha história (...) não as histórias que eu

via.. fui viver a minha história... então eu sempre ia em show... meu

irmão tinha banda também, (...) sempre quando ele tocava eu ia assim,

sempre ele tocava naqueles manifestos da CUT lá em São Bernardo

assim aqueles... nossa milhares de anos antes do Lula se eleger agora no

que é, que ele ficava lá sempre fez comícios.

Page 179: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

170

Ser Punk era transformar-se em outra, era ser diferente, era poder

vivenciar coisas até então não permitidas. Assim, quanto mais internalizava

o movimento Punk como um outro generalizado, mais incorporava as

atitudes particulares de indivíduos que participavam desse movimento,

desenvolvia seu self e diferenciava-se cada vez mais dos membros de sua

família. Agora a Adolescente-Punk, buscava reconhecimento em um outro

lugar.

Você se apaixona por alguém, difícil né? Você se simpatiza com alguma

pessoa, cria outros amigos, se põe numa condição de ver, de tá lá, vendo

todo mundo fudido junto proletário. (...) gosta de andar diferente, se

assimila em termos culturais (...) e em termos sociais, culturais, e era

massa... ia pra festa de rock pra se libertar era bem isso mesmo (...) era

uma coisa muito legal e eu não usava drogas de imediato.

O que Lou-Lou procura alertar é o fato que sua aproximação com as

drogas não foi concomitante à sua participação no movimento Punk; até

então o uso de substâncias psicoativas não tinha sentido algum para a

mesma, visto que seu maior interesse era a relação com as pessoas do

movimento em que estava inserida.

Com o passar do tempo toma conhecimento de um novo tipo de

discurso, conhece o Anarquismo. A ideologia anarquista começa a fazer

muito mais sentido para Lou-Lou do que a vivenciada no movimento Punk.

Consegue aderir a esse movimento sem a necessidade de deixar a antiga

personagem, transforma-se na Anarcopunk. Ao justificar sua escolha, tenta

explicar a proposta do novo grupo que passa a freqüentar:

Page 180: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

171

Diferente dos outros Punk, de gangue tudo, eles estavam aleatórios

daqueles lance, por isso que eu me identificava, porque eu também não

queria ficar naquele negócio de gangue, eu queria saber de futuro, eu

queria... gostava, já tinha um gosto bem peculiar, sobre arte, sobre

cultura (...) eu queria estar com aquelas pessoas e ai pô anarquismo, isso

tem a ver comigo, acho a idéia uma idéia legal sabe... então fui procurar

saber de anarquismo, e aí o pessoal: Ah! Vamos fazer uma manifestação!

Porra isso tem a ver comigo, querer mudar as coisas, querer lutar por um

dia melhor, (...) fui assimilando aquilo como uma essência minha, por

que talvez isso sempre esteve dentro de mim, (...) Mais eu fui

assimilando, pôxa isso tem a ver comigo, então logo fui atrás de pessoas,

me identificava, elas se identificava comigo.

Pensava no futuro, identificava-se com o anarquismo e era

reconhecida por estes, ao ponto do movimento passar a ser parte da sua

Identidade, que até então era vista pela mesma como essência, como algo

que a priori já estava dentro de si, esperando para ser libertada.

A ANARCOPUNK CONTA COMO SURGE A ADOLESCENTE-

EXPERIMENTADORA QUE POSSIBILITARÁ SUAS PRIMEIRAS

EXPERIÊNCIAS COM A PERCEPÇÃO

Lou-Lou já havia falado anteriormente que o início do seu uso de

drogas não se deu no movimento Punk; aqui ela irá contar como

inesperadamente surgirá uma nova personagem, que possibilitará suas

primeiras experiências com as drogas. E ao contrário do que se podia

imaginar, as primeiras experiências com substâncias psicoativas feitas por

Page 181: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

172

Lou-Lou ocorreram junto às amigas da escola, com substâncias lícitas e em

ambientes públicos. Lou-Lou vai dizer agora como esse processo ocorreu:

Eu fui beber bem maior, (...) tava eu e umas amigas e a gente foi numa

casa tal que morava uma galera. Claro, quando junta juventude, não

importa de grupo que você tá, essas coisas elas vão estar interligadas,

sexo, droga, isso vai ser uma coisa que faz parte da diversão (...).

Lou-Lou está lembrando do fato que em nossa sociedade, na qual o

mercado tem uma forte influência na socialização e individuação das

pessoas, o consumo de mercadorias, de substâncias, de corpos e de si

mesmo, estão intimamente ligados com a “indústria do entretenimento”,

sendo difícil diferenciar consumo de diversão. Nesta festa fez uso de algo

que jamais havia imaginado que alteraria sua percepção pela primeira vez:

Aí tinha um menino cheirando spray... aí eu falei: meu, isso daí não é pra

pintar faixa? Ah! tá mais é, mais isso aqui serve pra dá uma luz. Ah!

mais como assim? Ah! Não sei prova.. qué provar tal? Ah! Não sei (...)

se acha engraçado como que pode um negócio tal... Ah! tá bom então,

comecei lá cheirando spray quando vi não tinha nada do spray, minha

calça estava toda suja de vermelho, minha calça (...) pô e agora minha

calça toda manchada... mais aí descobri né meu, aí cheguei em casa tinha

thinner, tinha milhares de outras coisas (...) aí minha amiga que tava

comigo na casa dela também tinha cola, ela tinha outras coisas aí foi os

inalantes (...) aí começamos.

A personagem Adolescente-Experimentadora entra em cena. Ao ser

apresentada aos inalantes conhece aquelas que serão as primeiras (das

muitas) drogas que utilizará junto com as amigas.

Page 182: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

173

Aí eu me lembro, pôxa preciso tirar essa marca de spray que eu larguei

na minha calça, com que que eu tiro? Com thinner, peraí com thinner

também tal... e aí foi benzina eu lembro que a gente usava, lembro que aí

depois tal.. aí começamos.

Com as vizinhas passa a experimentar diversas substâncias que

alteram sua consciência e comportamento. Assim, “a descoberta de drogas,

(que Lou-Lou passa a fazer nessa época), no grupo das minhas amigas que

tinha na época, eu descobri muito mais com elas, que eu era a única Punk

(...) do que com os próprios Punks, porque com eles eu tinha outras coisas

pra tratar além de querer consumir drogas.” Novamente, Lou-Lou lembra

que procurava outras coisas no movimento Punk, algo que lhe trazia muito

mais prazer do que qualquer substância utilizada até então:

Preferia ir encontrar as pessoas pra conversar com elas, trocar idéias de

política, conversar sobre cultura, falar de música, ouvir música, pintar,

fazer alguma coisa ou fazer um visual, (...) Fazer uma tela, ir atrás de

banda, divulgar show, do que ficar pensando nisso (...).

Entretanto, o fato de conviver nesses dois grupos, as amigas de um

lado e os anarcopunks do outro, trazia grandes conflitos para Lou-Lou.

Nesse último, ao representar a Anarcopunk podia vivenciar outras

realidades e possibilidades de ser, com as amigas podia vivenciar a

Adolescente-Experimentadora, que compartilhava as descobertas da

puberdade. Contudo, diferente da relação que tinha com as amigas, ser a

Anarcopunk possibilitava conhecer outras formas de existência, que por sua

Page 183: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

174

vez deixava a questão da sua Identidade, de quem gostaria de ser, ainda

mais complexa:

Dentro desse grupo existiam pessoas de todas as idades, até podia ter eu

que era a nova com quinze, dezesseis anos, (...) e tinham pessoas que

tinham trinta... então assim, até pessoas hoje que poxa, que tão aí no

CCS, pessoas que são do Centro de Cultura Social que são dos

anarquistas eu conheci (...), eu tive um contato com pessoas que foram

muito importantes pra minha vida, (...) então enquanto estava um

prestando vestibular, um outro tendo uma relação diferente (...) daquela

que estava costumado a viver.. enquanto tinha uma menina que já tinha

filho (...) eu tinha quinze anos, então já era um monte de coisa lá fora.. se

tá entendendo? Eu tava convivendo com pessoas com idades diferentes,

realidades diferentes e que viviam de forma alternativa, se agrupavam

pra morar junto, tinham abandonado a família, e que então viviam

independente e a vida era muito foda. E eu quando me juntava com

minhas outras amigas ia pra outro lugar ia pro Retrô, ia pro Urbânia (...).

Vivenciava duas personagens conflitantes, quando estava com os

anarquistas envolvia-se com os problemas político-sociais, queria mudar o

mundo; quando estava com as amigas ia consumir drogas nas boates,

participava do ritual mercadológico. Podemos pensar que talvez o fato de

ser a Anarcopunk-que-Dependia-dos-Pais neste período tenha sido um dos

fatores (mas não o único, como se verá adiante) responsáveis por não

conseguir se reconhecer totalmente como Anarcopunk; nas palavras de

Goffman, 'não era um ator sincero', era uma Anarcopunk-Não-Verdadeira,

nas palavras de Lou-Lou:

Tava na casa dos meus pais... não era como eles ali... vivendo sozinhas.

Então eu tava protegida de uma certa forma (...) não que eu estava

Page 184: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

175

protegida, mas estava cheia de limites, eu tinha horários, eu tinha

comida, eu tinha roupa, eu tinha escola, (...)de uma certa forma eu estava

protegida, (...) não estava tão jogada assim, não que aquelas pessoas

estivessem.. não estava precisando cobrir tudo sozinha... eu tinha

respaldo.

A questão que carregava nesta ocasião era: Como ser Anarcopunk se

não podia encarnar corretamente a personagem? Essa era uma resposta que

Lou-Lou não tinha e enquanto não a encontrava, continuava vivendo as

duas personagens.

Aos 17 anos já freqüentava outros lugares (tanto com os anarquistas,

quanto com as amigas), conhecendo, concomitantemente, outras

substâncias:

Cheirava cola às vezes... eu lembro que a gente ia num lugar que era um

lugar muito louco que ficava uma galera cheirando cola e eu me lembro

que várias vezes antes eu ia e os outros usavam e eu ficava olhando, eu

ficava rindo de ver a galera alucinada (...) Eu ficava na minha, não usava

nada, bebia (...) ou às vezes nem usava nada ficava comendo chocolate,

vendo a galera, conversando, ficando junto, o legal era tá junto, um grupo

de identidade (...) ficava ali... e eu tinha vários amigos que passavam

mal, com problemas de stress quando bebia caíam tinha o baque e era

muito foda, às vezes bêbado já e aí aquela pessoa quando caía e tal todo

mundo se move em torno daquilo e levam pro hospital.

Na companhia das amigas, a Adolescente-Experimentadora

encontrava maneiras de utilizar tudo que pudesse alterar a consciência,

tendo na casa das mães dessas amigas o ponto de encontro para as

Page 185: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

176

experiências com a consciência. Lou-Lou, explicando como isso ocorria

conta que se encontravam na casa de uma das amigas cuja mãe trabalhava:

Era tipo num corticinho assim um lance meio assim, tinham várias casa

no quintal, então assim a menina ficava lá e aí como ela não tinha mãe

nem nada ela que era como tipo dona da casa, já criança assim que nem

doze, onze anos sei lá por aí e a gente ia pra lá eu e mais uma outra que

também a mãe nunca tava em casa super religiosa, a gente ia se

encontrava na casa dessa e comprava uma carteira e passava a tarde

fumando vinte cigarros. Numa tarde.. o que a gente se encontrava pra

fazer era fumar cigarro.. (...) ficava fumando um cigarro atrás do outro,

ascendendo cigarro, tentando fazer bolinha, tudo isso (...) e às vezes

comprava o pior que existia (...) porque não tinha dinheiro, (...) cê é uma

criança vai comprar cigarro (...) e aí ia sempre a maior, que ela tinha o

corpo mais formado... Vai lá compra pra gente!

Fumar cigarro nessa época significava liberdade, contravenção etc,

no entanto, as reuniões na casa das mães das amigas possibilitaram acesso

aos medicamentos, tornando as experiências muito mais sofisticadas:

Aí me lembro uma vez quando uma figura me falou pra tomar Benflogin

com bebida e aí começa, claro se vai sair o pessoal se une pra beber, o

pessoal vai conversar vamos tomar uma cerveja. (...) aí a gente começou

entra nessa onda do Benflogin misturado com bebida... então ia em

boate... Ah! vamo toma o gildo. A gente zoava, comprava uma cartela de

Benflogin dividia com as amigas. Os remédios a gente sempre acha que

os remédios tão ali é pra salvar, só que eles são muito mais acesso pra

você se enlouquecer... porque quase toda mãe usa um calmante, quase na

casa de toda pessoa tem remédio pra alguma coisa, tarja preta, ou até esse

Benflogin que até hoje eu não sei direito pra que que serve isso, tá

entendendo?

Page 186: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

177

Aqui aparece uma primeira dica para pensarmos a dependência de

drogas, a alienação do uso de drogas, da utilização de uma substância, que

também é uma mercadoria, a qual não se sabe o verdadeiro sentido de uso e

que justamente por essa ausência de sentido pode levar o indivíduo à

repetição e à compulsão. Assim, Lou-Lou mostra como o acesso aos

medicamentos das mães das amigas e a descoberta de seu potencial de

alucinação, possibilitaram ao mesmo tempo integração e desintegração

social.

Diazepan (...) ou então que nem essa minha amiga era gordinha (...) ela

tomava Eribex, cê tá entendendo? Então Eribex já tinha um câmbio (...)

Ah! já ouvi dizer que porra... se soubesse que alguém tinha Eribex...

aquilo lá pra mim era ouro né meu, Artamia também é ouro, então era

uma busca atrás dessas psicotrópicos (...) ficá tomando remédios (...) é

uma loucura que é muito de... se sair total do ar.

Lou-Lou conta que, junto das amigas, vai viver sua adolescência

acompanhada pelas drogas. Entretanto, isso não significa que as coisas

saiam sempre como o esperado; sua primeira “má viagem” com as drogas

ocorre no banheiro de uma danceteria. Vamos deixar explicar como foi essa

experiência:

Era muito rústico o chão, tudo de cimento chapiscado e o banheiro era

muito rústico. E eu entrei no banheiro todo chapiscado, (...) eu encostei

na parede, aquela parede era um pouco (...) e fica muito mal. Seu

estômago.. acaba com seu estômago fica horrível... aí eu com a mão (...)

quando olhei parecia que eu estava numa parede de inseto. Aquele

cimento se juntava com o outro, era um monte, e eu já tum... parecia que

Page 187: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

178

ia cair... eu ia fazer xixi, parecia que tava trasbordando assim.. eu parava,

abria e fechava o olho (...) muito foda esse dia... muito, muito mesmo, as

luzes (...) o cigarro fazendo orbital verde eu me lembro (...) que era uma

coisa de louco assim... olhava pra todo mundo e era incrível porque

muitas pessoas tavam ali (...) nessas mesmas condições totalmente

entorpecidas não importa do que.

Nessa época a Anarcopunk-Adolescente-Experimentadora se

apaixona e começa a namorar. É interessante notar que a descoberta da sua

sexualidade vai ocorrer concomitantemente com a descoberta das drogas

ilícitas (maconha e cocaína). Também se pode notar que até esse momento

o uso de drogas era sempre realizado junto com um outro, sendo que a

motivação para estes usos estavam diretamente ligados a essa relação. O

uso de drogas era voltado para uma melhor relação com as amigas ou, neste

caso, com o namorado. Vamos deixar Lou-Lou contar como foi esse novo

período de sua vida:

Quando eu comecei a ficar com essa figura que eu namorei durante anos,

tive algumas experiências de drogas. (...) comecei a fumar mais maconha

(...) mesmo assim eu fumava mais no final de semana. E porque era

quando eu estava mais com essa pessoa, (...) que também morava em São

Paulo era longe da minha casa e durante a semana eu já ia pro colégio e

pra estudar, no que eu estudava era tão incrível tinha um pé de maconha

plantado dentro da escola.. era incrível.

Começava a tomar contato com as drogas ilícitas até dentro da escola.

Contudo, o uso de drogas ficava restrito apenas aos momentos em que

estava com o namorado e, embora essas mudanças possam parecer

Page 188: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

179

pequenas ou irrelevantes, irão refletir de forma significativa na sua

identidade.

QUANDO A EX-GAROTA-MORNA, QUE TINHA SE

TRANSFORMADO NA ANARCOPUNK-ADOLESCENTE-

EXPERIMENTADORA COMEÇA A NAMORAR E TRANSFORMA-

SE NA ALUNA-REBELDE

Lou-Lou que na escola sempre se apresentava como Garota-Morna,

começa a colocar em questionamento essa personagem, passa a representar

a Anarcopunk; que na escola passa a ser reconhecida como Aluna-Rebelde.

Sempre tive nota, eu não vou ficar reprovando, reprovando, então até que

eu queria fazer faculdade, (...) eu não vou ficar me matando a vida

inteira.. porque eu tenho que poupar meu pai e minha mãe que me

educaram a vida inteira, vai pra isso, faz isso, faz aquilo... deixa eu fazer

logo... e... me destacar, não sei... sair bem, ter inteligência de... sabe ,

empregar minha mente, ter conhecimento. Aquilo pra mim era o mais

importante, ter conhecimento. Então eu saia e sempre retornava em casa.

Ah! Eu nem posso ler um livro aqui porque já tem criança sempre, ou

então cada um fazendo... não pode fazer... e pedir é não! Estava no

colégio, tinha biblioteca, então tinha que estudar lá. Isso pra mim era

muito massa, levava muito a sério, eu gostava muito (...) não tinha

problema de nota.. só que daí já começou a entrar essa história.

Lou-Lou passa a re-presentar a Aluna-Rebelde, começa a cabular

aulas, apresentando uma questão: como não cabular aulas se o barzinho em

frente à escola podia ser um lugar mais prazeroso para os alunos?

Page 189: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

180

Beber, porque na frente do colégio tinha um bar e a gente ia lá e ficava

falando um monte de coisas. Também que estavam ligadas naquilo que

estávamos aprendendo, só que daí já tava envolvida com bebida, (...) aí

bebia, às vezes a gente saía (...).

Nessa época a Adolescente-Experimentadora ainda se reunia com as

amigas para fazer uso de drogas. Até que um dia, enquanto bebiam vinho na

casa de sua amiga de “beque” (maconha), algo inesperado aconteceu: “a

mãe dela chegou, ficando todo mundo duro, estático e aí a gente saiu assim

e a mãe dela puxou ela e abriu uma bolsinha que ela tinha maconha... e deu

o maior reboliço aquele dia, porque daí eles ligaram pra mãe de uma outra

amiga deu o maior blá, blá, blá...”

Tinham sido descobertas e, devido à pressão dos familiares, o grupo

de amigas não teve outra alternativa senão o afastamento. Lou-Lou que já

era vista como a Garota-Perdida pela família não foi punida; seu pai,

inclusive, não a recriminou. Acredita que isso tenha ocorrido devido ao fato

da própria condição do pai, pois este último “chegava bêbado (...) tinha sido

um cara da boêmia, tocava, bebia, tipo um cara que bebia e se ligava nas

paradas e ele jogava futebol, (...) e no campo de futebol baseado é mato”,

sendo assim, podia entender melhor o envolvimento da filha com a

maconha.

QUANDO SURGE A VENDEDORA-DE-CACHORRO-QUENTE NA

VIDA DE LOU-LOU

Como a personagem Adolescente-Experimentadora fora descoberta –

e impedida de ser re-posta, restou para Lou-Lou a re-presentação da

Page 190: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

181

Anarcopunk; resolve buscar uma maior autonomia, queria ser uma

Anarcopunk-Verdadeira. Pensa em trabalhar no mercado formal mas

começa a entender que este solicitava uma Identidade que ela não estaria

disposta a vivenciar. Não queria ser explorada, nem ser massificada, então

pensa como ser o que gostaria e decide tornar-se Vendedora-de-Cachorro-

Quente.

Ah! Eu não quero trampar pra ninguém quero ser do meu jeito.. quero ter

tatuagem, (...) pra eu ser do meu jeito eu tinha que ter autonomia de ter

meu trabalho. Porque como vou conseguir emprego sendo tão diferente?

(...) Eu quero ter cabelo rosa, quero ter um moicano, quero ter tatuagem,

quero ter piercing, então vou trabalhar pra mim.. o que vou fazer? Vou

ter um cachorro quente!

Foi a Vendedora-de-Cachorro-Quente durante três anos, namorava,

mantinha suas amizades e utilizava maconha nos finais de semana. Assim,

“ganhava dinheiro, era legal e era aquilo (...) chegava no final de semana e

fumava mais beque, de noite encontrava essa minha amiga e a gente ia... era

muito legal! A gente fumava um beque e comia um pote de sorvete junto,

(...) ficava lá em casa... coisa de menina, não tinha nada de mal e eu ia

fazendo milhares de outras coisas (...) aí... fiquei com essa pessoa (o

namorado) quase cinco anos da minha vida e com ela eu fumava mais.”

Nessa época não fez uso das substâncias que utilizava anteriormente, porém

passa a utilizar maconha com maior intensidade, associando com cigarro e

bebida.

Eu já fumava mais maconha. Eu comecei a fumar cigarro e comprar

cigarro (...) virar fumante. Já fumava maconha, bebia... mas nunca

deixava de fazer outras coisas, eu fazia tudo que queira (...) era uma coisa

Page 191: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

182

que eu controlava, ou não tinha tanto valor assim... e era bem legal,

porque eu tinha uma autonomia, vivia do meu jeito... tinha

responsabilidade.

Ou seja, fazia uso de múltiplas substâncias mas não sentia-se

impedida de realizar suas atividades. Logo, ser a Vendedora-de-Cachorro-

Quente trazia uma sensação de independência para Lou-Lou. Entretanto,

contraditóriamente representar essa personagem lhe trazia a sensação de

solidão, pois:

Corria atrás só que era sozinha... (...) era uma batalha já fudida. De fazer uma

parada sozinha (...) de comprar, de trazer, de levar, trabalhar todo dia... mas eu

vivia... continuava tendo uma vida, estudava, trabalhava, namorava, só que eu

fiquei com medo... social.

Tinha medo de se assumir completamente independente, o que

implicaria na profunda transformação na sua Identidade, que se mantinha na

mesmice por conta do contexto na qual estava inserida. Entretanto, essa

condição não é sustentada por muito tempo, pois é surpreendida pelo

namorado que resolve mudar de Estado, uma decisão que abala Lou-Lou,

que não achava-se preparada para mudar para outro lugar. O namorado por

outro lado, tinha planos diferentes, essa pessoa:

Foi viver a vida dela e ai nessa nova vida dela, tanto eu não estava

incluída, como eu não queria me incluir dentro de uma coisa, que era

uma pessoa indo pra outro lugar, tendo que começar a vida dentro de um

outro lugar de uma forma autônoma.

Page 192: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

183

A separação do namorado vai fazer Lou-Lou recusar boa parte da

realidade que estava envolvida, a ponto de ficar um ano sem sair de casa.

Ele quis viver outra história da vida dele, eu quis viver a minha e ele

mudou de Estado... eu fiquei, depois que eu terminei com ele... eu fiquei

um ano sem namorar ninguém. Um ano sem olhar pra ninguém. Um ano

sem ter vontade nenhuma, só ficava em casa, não tinha vontade de sair

(...) tipo assim, perdi o sabor dessa história.

A possibilidade de encarar a mudança para outro Estado a deixou

desesperada; tinha se dado conta que não era tão autônoma quanto

imaginava, tinha se transformado em uma Garota-Isolada, se recolhe para

recobrar as força e repensar sua vida.

O MOMENTO EM QUE A GAROTA-ISOLADA COMEÇA A

ENCONTRAR OUTRA PERSONAGEM

O rompimento com o namorado a tinha enfraquecido, fazendo com

que se transforme na Garota-Isolada. Foi então que Lou-Lou conhece o

Feminismo e entende que este movimento pode enriquecer à sua Identidade;

essa aproximação vai proporcionar o surgimento de uma nova personagem

na história de Lou-Lou: a Anarcofeminista.

Eu fiquei (..) meio que perdida... sem saber o que fazer da vida, porque

eu estava há anos com essa figura (o namorado), então fiquei meio que

abalada... continuei levando meus dias... continuei fazendo as minhas

coisas (...) também eu já tinha participado de alguns grupos de mulheres,

porque daí eu comecei a me envolver um pouco com o feminismo, me

envolvi bastante daí quando eu me envolvi com o feminismo, já tinha me

Page 193: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

184

envolvido antes com o anarquismo (...) como já tava tendo uma vertente

muito grande desse movimento feminista (...) já existiam muitas pessoas

falando: Ah! Olha meu existem mulheres que foram anarcofeministas, aí

tá... isso aí que eu gosto... anarcofeminismo (...).

Participar do movimento anarcofeminista proporcionou para Lou-Lou

a possibilidade de discutir algo que desde o início de sua adolescência a

intrigava: sua sexualidade. Lou-Lou lembra como esse assunto era tratado

como tabu pelas irmãs, “eu fui crescendo e acho que ausência de tudo me

moveu tanto que eu fui tanto atrás disso que eu cheguei a dar palestras pra

pessoas falando sobre corpo feminino, anatomia feminina, sobre

sexualidade, sobre preservativos, com pessoas menos privilegiadas.”

Aqui Lou-Lou diz que o fato de não ter sido esclarecida sobre as

questões que envolvem a sexualidade fez com que buscasse nos livros algo

que suprisse essas lacunas. Queria representar a Anarcofeminista-

Orientadora-Sexual, pretendia participar de um projeto, ser reconhecida

como alguém que podia ensinar algo, ser vista além das tatuagens e dos

piercings; isso por si só já compensava o investimento.

Era uma coisa muito legal, (...) a gente chegava, ia no posto de saúde

explicava do nosso projeto, perguntava se eles não tinham como ceder

Diafragma, DIU, pra gente poder estar fazendo uma divulgação de

contraceptivo no colégio e aí a gente tinha um vinculo legal com o

pessoal (...) eles todos ficavam admirados. Como vocês tão jovens estão

interessados em fazer isso? Geralmente as pessoas que fazem isso já

viveram muitas coisas antes, (...) e vocês tão jovens fazendo... e a gente

pô... batalhava pra caramba, fizemos algumas palestras prum grupo de

mulheres e era uma força tão forte mesmo, que a gente que nem.. tinha

Page 194: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

185

uns grupos, assim de... que iam em escola, igrejas, pra fazer... cortar

cabelo, dar alimentos, essas coisas pra comunidade, pras famílias

inscritas, iam homens, mulheres e crianças e a gente ficava. E agora é

hora da gente fazer um grupo com as mulheres, venham... e aquilo era

maior intriga, porque o marido perguntava.. o que é que vocês vão fazer

com a minha mulher, vocês vão envenenar minha mulher, e ali a gente

chegava, falava uma palestra sobre todos os anticonceptivos, mostrava,

distribuía... podia ter meninas de quinze a sessenta e cinco, setenta,

noventa (...) a gente tinha camisinha feminina e pra uma mulher de

setenta anos aquilo, nossa (...) era muito gratificante... porque a gente

tinha uma vida social.. sem estar participando... sem estar participando de

nada, por uma necessidade nossa de estar podendo proporcionar... é... um

bem estar pra alguém, porque a gente tinha um conhecimento e não

precisava resguardar só pra gente (...).

Podia viver sua história, ser ela mesma e ter o reconhecimento do

outro, isso sem contar que o fato de participar do movimento

anarcofeminista a aproximou de outras mulheres, minimizando o

sentimento de estar perdida que sentia em momentos anteriores.

Eu não estou perdida, existem várias! (...) eu tinha contato com as

pessoas do México, pessoas da Espanha, pessoas de muitos lugares...

com realidades diferentes, com grupos de mulheres que viviam coisas

muito loucas, tá entendendo? então o que a gente foi fazendo cada vez

é... fazendo um desenvolvimento melhor desses conceitos que a gente

tinha enquanto mulher e organizando, fazendo grupo, fazendo encontro

nacional, (...) fizemos muitas coisas legais, muitas coisas, muito boas

mesmo.

Page 195: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

186

Relacionar-se com outras mulheres, envolver-se com o

anarcofeminismo, identificar-se com os ideais do grupo, distanciou cada

vez mais Lou-Lou de sua família; não queria mais se subordinar à

dominação masculina em sua casa.

Eu passava cada vez menos tempo ali já... era... tedioso já. Tenho um

irmão assim que é meio violento (...). rolou muitas histórias meio que

foda (...). aquilo era muito, machista, muito prepotente, então esses

valores me incomodavam sabe, de você não poder resistir. Você tá num

lugar, se você der sua opinião, sua mãe vira e fala: fica quieta pra não dar

confusão, isso eu já não agüentava mais ouvir: fica quieta! fica quieta!

Não queria mais ser tratada como a Garota-Perdida-Rebelde-

Dominada-pelos-Irmãos, então, começa a ficar mais tempo na comuna.

Vamos dar a voz novamente para Lou-Lou e deixar que ela conte mais

sobre isso:

Fui vivendo um monte de coisas legais, toquei em banda, participei

desses grupos. Existia um racha muito grande dentro do grupo que a

gente convivia (...) porque eu vivia mais fora de casa ainda, do que

dentro, já podia tá lá tipo uma semana, sem parecer em casa... quinze

dias, um mês... já saia, vou viajar pra tal lugar e já ficava um mês fora de

casa e quando eu tava distanciada neste um mês, a diversão da maioria da

galera.

Lou-Lou se apresentava como a Anarcofeminista, lutava pelos

direitos das mulheres, participava de movimentos sociais; conta que neste

momento seu uso tinha a ver com o prazer e a contestação social.

Page 196: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

187

Quando eu fui pra marcha dos cem mil era incrível a quantidade de gente

usando drogas (...) o que tinha de gente fumando maconha, bebendo e

usando droga... era muito meu, era muito mesmo. Dentro do busão, todo

mundo (...) Vamo fumando... tudo é legal, tá entendendo? (...) você

encontra o que as pessoas dizem.. Ah! Não pode? Então vamos fumar, tá

entendendo? Então era assim, você encontra a galera todo mundo fumava

maconha.. Você acostumava com os maconheiros também, era legal!

Então vamos fumar, vamos enlouquecer, vamos dar risada.

Até aqui o uso de drogas é descrito como algo que acompanha os

movimentos sociais de que Lou-Lou participa, sendo que da mesma

maneira que é utilizada para anestesiar o corpo e transcender, também era

utilizada para encorajar os embates contra o Estado.

Você é contra essas paradas de Governo e você vai pra cima. Uma vez

nos fomos contra a Bolsa de Valores de São Paulo, em prol do Jamal, (...)

mas sempre existe umas figuras como em qualquer lugar. Tem black

blocking, um pessoal que quebra tudo, tem um pessoal que gosta de

incendiar mesmo, tem gente que é kamikaze, (...) não é só por que é

kamikaze, alguém tem que fazer as coisas, achar também que tudo tá

ruim. Que nós vamos pra uma manifestação, que as pessoas vão ouvir,

nem sempre as pessoas te ouvem... te escutam. Ah! vamos ouvir, vamos

reivindicar. Não! Eu tenho que quebrar o pau e isso não é de hoje.

A ANARCOFEMINISTA É SURPREENDIDA PELO RETORNO DA

ADOLESCENTE-EXPERIMENTADORA

Estar inserida no movimento anarcofeminista não distanciou Lou-Lou

do uso de drogas, como ocorria quando era Anarcopunk, pelo contrário, os

momentos de prazer só faziam sentido com o uso dessas é neste momento

Page 197: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

188

que reaparece a personagem Adolescente-Experimentadora; retoma o uso

dos remédios e conhece novas substâncias que até então não tinha

experimentado.

Depois eu voltei essa onda usar comprimidos, porque daí eu já conseguia

outros comprimidos que até então eu não tinha usado Diazepan... eu tinha

um amigo que trabalhava numa farmácia, na parte do estoque, imagina

ele tinha caixas e caixas de Diazepan, tinha Prozac, tinha Eribex, tinha

Ciclopérgico, colírio Ciclopérgico, ele tinha muitas coisas... Artâmia...

não é qualquer um que chega na farmácia e consegue comprar um

Artâmia... eu tinha vidros de Artâmia.

Lou-Lou conta que nesta época começa a utilizar drogas para tudo o

que ia fazer. Podemos perceber que, a partir de então, a relação com as

substâncias começa a se inverter; se em um primeiro momento Lou-Lou

usava drogas para viver, agora vivia para usar as drogas.

Às vezes a gente bebia cem cervejas, tá entendendo? Era a maior galera,

(...) só que nunca era aquelas cem cervejas. Ah! Vamos tomar uma

caipirinha, vamos tomar, vai misturando, vai misturando, daí a pouco...

Ah! Vamos fumar um beque... (...) tá muito chapado? Vamos dar um teco

pra melhorar.. Então começa, a hora que você tá bem, você já vê que

você já usou quatro, cinco, três, quatro, cinco substâncias na mesma

noite, você já fumou você já tomou coisa, já tomou outra pra reparar, já

bebeu mais, já voltou, melhorou, bebeu de novo, fumou de novo, (...) até

acabar a noite às vezes você já usou muita coisa, (...) daí vai indo, vai

indo, e vai indo (...)

Page 198: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

189

E vai indo até conhecer os ácidos e junto a esses passa por

experiências até então não vividas. Para Lou-Lou essa foi a substância que

ampliou sua percepção.

Você descobre que... sabe, aquelas coisas que você tinha de usar antes

quando você descobre outras, elas começam a ser cada vez mais

irrisórias, então.. quando eu.. depois eu.. comecei a usar microponto,

microponto, star point, aí eu me alucinei, eu tomei ácido e me alucinei.

(...) é uma droga que a gente usa muito em festa... que é caro (...) quando

você toma assim, você alucina, você muda... a diferença da droga... é

uma droga de percepção, (...) ela vai ampliar sua percepção.

O que Lou-Lou está dizendo é que diferente dos remédios, do álcool,

do cigarro, da maconha; os ácidos vão entrar em sua vida ocupando um

lugar que nenhuma das anteriores tinham tocado: sua percepção. E para

tentar explicar essa nova experiencia com os ácidos recorre ao livro: “As

portas da Percepção”, de Huxley:

As portas da percepção” é um livro que todo mundo devia ler, quem usa

drogas (...) do mesmo jeito que você tá no céu primeiro, você vai

começar a descer no inferno. E a hora que você tá vendo o céu... nossa. É

lindo! As cores nossa, ficam um deslumbre de cor, um deslumbre de

sabor. (...) fica vivo né, e você se sente... não sei, dá um negócio por

dentro e você se sente bem... você fica acordado, você fica com seu

pensamento a mil por hora, com a percepção aguçada (...).

Lou-Lou-de-hoje esta se referindo a algo que a Anarcofeminista que

tembém era a Adolescente-Experimentadora começa a descobrir e que, até

então, ninguém havia lhe contado: “você vai guardando, guardando,

Page 199: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

190

guardando, guardando nos seus arquivos até uma hora que no computador

não cabe mais arquivos. Você vai precisar de um outro computador, só que

cérebro você só tem um.” Neste momento, Lou-Lou descobre que o

problema das drogas que utiliza reside no tipo de uso que faz destas. Assim

como descobre que existe uma linha tênue entre o uso “integrador” e o

“desintegrador” dessas substâncias. Do uso “integrador” realizado de forma

compartilhada pelos grupos que participava e que tinha como significado

um uso lúdico, de descontração e socialização; para um uso “desintegrador”

decorrente do uso continuado e abusivo das substâncias, que por sua vez

passa a excluir o indivíduo cada vez mais da cena social e possibilita que

lhe seja atribuída personagens como: dependente, drogadito, adicto etc.

Chega inclusive a procurar tratamento nessa época; tenta encontrar

saídas para seu problema e procura um Médico. Entretanto, ao passar com o

médico se surpreende com o diagnóstico, pois esse último atribui uma

personagem que Lou-Lou não queria assumir: a Depressiva-Dependente-

de-Drogas, que agora lhe aparecia como uma identidade pressuposta, a ser

constantemente reposta.

O psiquiatra me falou: você sofre de depressão e você consome drogas

(...) isso que o psiquiatra sempre me dizia... Ah! Seu problema é

depressão e a primeira coisa que você vai fazer é usar droga (...).

Ao procurar o médico buscava tornar-se “normal”, tentava se adequar

novamente; no entanto, o diagnóstico feito pelo mesmo causa conflitos em

Lou-Lou, pois, como iria se curar se quem a tratava acreditava que seu

problema não tinha solução? Se a tristeza que sentia em alguns momentos

era depressão e se as primeiras coisas que faria era usar drogas, então não

Page 200: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

191

tinha saída. Neste sentido, a palavra do 'especialista' aprisionava Lou-Lou

na personagem que não desejava encarnar.

Infelizmente o diagnóstico médico que recebeu não é uma “falha”,

uma exceção, pois esse tipo de diagnóstico tem uma utilidade na

manutenção da realidade. Berger & Luckmann vão dizer que as teorias do

desvio, da patologia, serve para apontar as tentativas de mudança da

realidade objetiva; logo, ao preocupar-se “com os desvios das definições

‘oficiais’ de realidade, deve criar um mecanismo (o especialista) conceitual

para explicar esses desvios e conservar as realidades assim ameaçadas.”270

Contudo, Lou-Lou não conseguia internalizar esse diagnóstico; algo

mais a intrigava:

Quer dizer, porque você tanto aumenta meu remédio em vez de

diminuir? Ele nunca me explicava. Só aumenta por quê? A Fluoxetina

pra ela diminuir tem que aumentar total, pra depois diminuir, nunca

ninguém me disse isso. Então o que eu fiz? Eu parei de tomar meu

remédio. Eu não quis o tratamento. De repente eu estaria tomando até

hoje (...).

A Lou-Lou-de-hoje comenta a decisão da Lou-Lou-de-ontem dizendo

que não teria sentido se tratar do uso de drogas, substituindo-as por outras

que já havia utilizado quando incorporava a personagem Adolescente-

Experimentadora; isso fica mais claro na colocação a seguir, na qual

justifica sua decisão:

270 Peter L. BERGER, & Thomas LUCKMANN, A Construção Social da Realidade: tratado de

Sociologia do Conhecimento, p. 153.

Page 201: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

192

Eu não queria me dopar de remédio (...) porque já tinha tomado muito

remédio pra me dopar e a maioria dos remédios que eu tinha que tomar

pra me acalmar era remédio que antes eu tomava, tá entendendo? Então

claro, me acalmava... só que eu ia nos hospitais eles me mandavam

morder Diazepan. Eu chegava tendo crise de ansiedade, tremendo,

desesperada... pra mim eu tava morrendo.

Sentia-se morrendo por causa das drogas, ficava deprimida e ainda

lidava com o fato de ter que utilizar drogas para curar a depressão; nesse

momento decide procurar um sentido próprio para sua doença.

Então a depressão é uma questão física, mental, psicológica? sim, tá! É a

falta de serotonina? É a falta... é a falta de você ter amor? É a falta de

você ter amor, sabe. É falta, das coisas dando errado pra você é a falta de

não ter conhecimento. Porque algumas pessoas são mais alegre e outras

mais tristes (...) Porque às vezes as pessoas podem ser trastes e continuar

a levar a vida numa boa e porque outras não conseguem? Então assim,

antes eu olhava pra mim e me achava legal, uma vez eu fui olhar algumas

coisas e que eu observei assim... tiveram dias que eu escrevia: hoje não

foi legal, ontem não foi legal. Porque? (...) eu nunca tinha observado isso

aqui, demorei tanto tempo, (...) Acho desde pequena já fui melancólica,

mesmo, meio depressiva (...).

Nessa época começou a se dar conta que mesmo quando viva a

personagem Garota-Morna não era tão feliz, pois tinha que abrir mão do

que queria para ser amada, estava presa a uma orientação de busca do

prazer através da obediência, que possivelmente estaria entre os níveis 1 ou

3 do esquema 4 apresentado por Habermas271.

271 Tabela 7 apresentada no capitulo 4 da dissertação.

Page 202: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

193

Hoje, no entanto, discute a influência da sociedade em seus sintomas,

assim como as questões econômicas ajudam ou impedem novas

personagens.

Se sua vida tá boa você consome drogas, se seu dinheiro não falta, não

tem muitos problemas, você pode continuar a vivendo num ritmo meio

assim, porque até sua memória estimula, você tá entendendo? Agora, se

você tá sem trabalho, (...) se você tem que comprar comida, se você,

sabe... está vivendo numa vida mais precária, mais ainda você consome

drogas, consome mais, não deixa faltar (...) depois que cai sua

consciência numa realidade, (...) eu tenho que comer, pô (...).

Lou-Lou mostra que o consumo de drogas quando perde seu

significado cultural tradicional e passa a ser determinado pelo mercado de

consumo, favorece que os indivíduos a utilizem forma desintegradora.

Também diz que se tivesse feito suas experimentações dentro de um

contexto, em que o sentido fosse dado pelo xamanismo, talvez sua história

com as drogas fosse outra.

Só que a gente não tem o Xamã, a gente não tá no meio de uma tribo

indígena, na onde tem cogumelo que deixam as mulheres levitar. Eu não

tô no meio de um ritual que vai me levar tanto, porque, porque vai ter um

desgaste físico, porque vai ter uma energia e alguém pra te ajudar a

caminhar, pra você não se perder. Não! cê tá viajando e o outro fica ali!

Aqui Lou-Lou expõe uma das dificuldades encontradas pelo usuário

de drogas na Modernidade; ao utilizar substâncias fora de um contexto

trancendental, elas são consumidas como se fossem mercadorias estranhas,

passando então a utilizá-las para negar/denunciar uma realidade em que não

Page 203: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

194

se reconhece. No caso de Lou-Lou, esta utilizava as drogas para sair da

realidade objetiva/opressiva na qual estava inserida; claro que nem sempre

esse uso saía como planejado e nesses momentos tinha que lidar com seus

sentimentos frente ao inesperado, ao mistério do auto-desconhecimento.

A mente humana é uma incógnita pra qualquer pessoa. Ninguém

conhece, porque não dá pra você abrir sua cabeça quando você tá

pensando e tá vendo tudo que tá acontecendo, porque tem coisa que não

tão ligada, tem coisas que são ligadas com sentimento, aquilo que você

viveu, (...) e ninguém é igual, todo mundo é diferente. Se existe a melhor

forma de você consumir isso, se existe uma forma ideal, seria através de

um Xamã.

As colocações de Lou-Lou nos fazem refletir sobre a falibilidade dos

programas de prevenção ao uso de drogas, que baseados no agir estratégico,

acreditam que a disseminação de informações, proibição e repressão do uso

possam fazer com que os indivíduos não experimentem, ou ainda, não

continuem o uso de determinada substância.

Você um dia tem muitas coisas pra ler, só ler, só saber não adianta,

porque não é uma questão de você ter só o conhecimento, é uma questão

muito mais forte, porque daí por mais cético que você seja, vai despertar

sua espiritualidade. Porque? Porque você sente saindo do seu corpo, você

sente seu corpo inteiro... uma explosão de sentimento, você consegue

sentir cada partícula do seu corpo... você consegue tocar no seu rosto e

sentir todo o formato do seu crânio, você consegue quase enxergar quase

todas as microparticulas que é feito, então é uma coisa que é muito

ritualística (...).

Page 204: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

195

Aqui Lou-Lou aponta mais uma outra questão sobre o uso de drogas

e que contradiz o que é vinculado pelos agentes institucionais mais

conservadores que pretendem impedir o consumo uso de drogas. Como

fazer com que um jovem que experimenta as sensações descritas por Lou-

Lou acredite no discurso de que as drogas não são boas, ou ainda que estas

matam? Lou-Lou, tentando descrever esse sentimento de onipotência

experienciado pelo usuário de substâncias psicoativas, explica que:

Ao mesmo tempo que você vê tudo lindo, você vê a natureza e sente-se

parte dessa natureza, (...) você consegue enxergar isso... uma coisa tão...

sabe... muito bom, dentro desse lado humano, dentro desse lado foda pra

caralho de existência, (...) eu sou como uma flor, um bicho, sabe... você

quase que vira um Deus, meu... você vira um Deus dentro daquele sonho

encantado.

Fazendo novamente referencia ao livro de Huxley, descreve dois

universos simbólicos vivenciados pelo uso de drogas: Céu e Inferno. Assim,

conta que quando estava no Céu, teve experiências maravilhosas com as

drogas, tendo vivênciado aquilo que descreve como elevação espiritual.

Para tentar explicar essa elevação espiritual recorre a mais um episódio:

Eu tomei ácido e saí no centro de São Paulo andando pra ver como era a

experiência (...) como era o olhar das pessoas, como era isso, com era

aquilo. Como era eu olhando o mundo daquele jeito e tudo isso

acompanhada de muita leitura, da mais diversa possível... lendo muitos

poetas, vendo muitos filmes.

Page 205: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

196

APARECE A BRUXA-DA-ILHA-DA-MAGIA NA ESTEIRA DA

ANARCOFEMINISTA-QUE-NÃO-ERA-MAIS-ATIVISTA DEPOIS DO

RISCO DE SE TORNAR A DEPRESSIVA-DEPENDNTE-DE-

DROGAS

A busca de sentido para a vida, como usuária de drogas, faz com que

Lou-Lou queira cada vez mais encontrar um Xamã para orientar sua

elevação espiritual. Essa busca pelo Xamã vai fazer Lou-Lou mudar-se para

Florianópolis, para a Ilha do Bob272. Lou-Lou busca uma vida fora dos

padrões de São Paulo, pretendia viver em contato com a natureza, porém

mais uma vez Lou-Lou verá que a questão não se limita apenas ao lugar

onde estava vivendo, mas sim a maneira que está vivendo em determinado

lugar. Lou-Lou-de-hoje descrevendo seu modo de vida na Ilha da Magia

fala que:

Não sei, tem umas coisas aqui que não é como em outros lugares, a

natureza é muito forte. As próprias plantas, você convive numa realidade

de relação com a natureza, então assim... tá chato? você pega um ônibus,

você dá um rolê. Só de você ver, só que se você não tem pra pegar o

ônibus, a praia pode estar do seu lado e às vezes não vai ter o mesmo

efeito. Porque você está procurando um trampo, você esta andando a pé,

você é descriminado, a cidade é pra quem tem carro... você vai querer

ganhar dinheiro no cambio negro é tudo uma máfia fudida. Todo mundo

sabe quem é todo mundo... é uma certa maneira pequeno, (...) O que você

272 Fazendo referencia a Bob Marley e da associação da ilha com o uso de maconha, também

conhecida como Ilha da Magia.

Page 206: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

197

faz, se você tem grana, se você não tem (...) dependendo você é tratado

de um jeito ou de outro.

Está dizendo que as condições objetivas dadas na Ilha do Bob não

possibilitavam que essa pudesse viver-a-vida-que-queria. Novamente se

depara com dificuldades concretas; as regras do jogo eram outras e Lou-

Lou ainda não as conhecia.

Todo mundo fala que ama a gente, tá entendendo? Só que esse mais lento

faz você ter um jogo mais de cintura, você tem que andar como se

estivesse dançando regaee na história, porquê é livre. Você tem que ser

bem maleável, muito maleável. No inverno fica todo mundo que nem

urso, porque, porque vive de turismo, no inverno o inverso do verão, faz

muito frio... como é uma ilha, muita água, sabe... vai ter muita umidade...

(...) tem aquele frio muito úmido e não consegue secar nada, as coisas

emboloram, você vive um processo de natureza, você tá entendendo?

Que faz você ficar de uma outra forma.

As dificuldades fossem apenas o processo da natureza, seria apenas

uma questão de adaptação ao eco-sistema. Entretanto, as coisas não eram

apenas uma questão de adaptação ao meio, como vai ser apontado por Lou-

Lou ao apresentar sua a crítica à política de Florianópolis, que priorizando o

desenvolvimento turístico desenvolve uma política de exclusão que,

segundo a mesma, contribui para o desenvolvimento da miséria nas

periferias.

Ah! vem muito maluco de todo de tudo quanto é lado, cola muito

mochileiro, artesão, cola gente louca de tudo quanto é lado, (...) vamos

pegar e limpar a cidade... porque? Porque, é uma cidade que vive do

Page 207: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

198

turismo, a gente não quer esse turismo, queremos o turismo dos

argentinos, o turismo dos espanhóis, dos americanos, a gente quer o

turista que renda muita grana (...) as pessoas tem que poder andar com

essas câmeras de ultima geração penduradas no pescoço... só que nem

tudo se controla... porque do mesmo tempo que está crescendo isso que

eles querem, do outro lado tá crescendo o que? A miséria

descontroladamente (...).

Lou-Lou está se referindo a lógica sistêmica, na qual uma minoria

dominante impinge às minorias suas formas ideais de vida, negando a

efetiva igualdade de direitos. Entretanto, a privação das condições de

desenvolvimento econômico não impedia Lou-Lou de se relacionar com

outros indivíduos – com suas diversidades culturais –; esse fato ocorreu

devido ao caráter predominantemente turístico de Florianópolis, que

também facilitou que conhecesse outros tipos de substâncias.

Eu tomei êxtase (...) Haxixe marroquino de Canabis Seap, (...) o que rola

na Europa, rola aqui. (...) você conhece pessoas, você conhece gente que

fornece, gente que viaja, cheio de turista, tem gente do mundo inteiro,

você quer usar droga boa aparece na praia mole, vai num campeonato de

surfe, todo mundo vai tá fumando... vai na festa todo mundo vai fumar,

só Haxixe... sempre tem.. esses caras do circuito internacional tudo usa

Skank, só fuma do melhor.

Viver na Ilha da Magia aproximou Lou-Lou daquilo que há muito

vinha buscando: o lado místico da droga.

Se existe um lado que é dessa realidade? Eu não nego, porque o meio

cósmico é (...) que não é regido por ninguém branco, por essa história

que eu vejo de religião, alias eu não consigo me identificar com religião,

Page 208: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

199

porque a partir do momento que eu começo me aprofundar um pouco

mais na religião, aquilo em vez de me encher, me dá mais desilusão, me

dá tristeza... eu não consigo, eu começo... esse negócio de ficar adorando,

esse negocio não é pra mim. (...) isso não é o que eu venha buscar. Eu

posso achar uma divindade bonita, algumas coisas legais, por isso que eu

começo a me encontrar mais pro lado dos orientais, negócio meio que de

meditação, negócio.

Agora a Anarcofeminista-Que-Não-Era-Mais-Ativista, na busca de

um sentido de vida mais integrador, começa a investir no lado místico e

ritualístico das drogas; transforma-se na Bruxa-da-Ilha-da-Magia e com

essa nova personagem busca novamente sentido para o uso de drogas, que

agora estava ligado aos rituais de elevação espiritual. Fez uso de drogas

ligado a rituais por algum tempo; porém, certo dia esse equilíbrio é

quebrado, após ingerir uma grande quantidade de ‘chá de cogumelo’ em

uma festa. Esse fato faz com que Lou-Lou encontre àquilo que descreve

como o inferno das drogas. Lou-Lou descreve assim esse episódio em sua

história de vida:

Teve uma vez que a gente cheirou cocaína, fumou maconha e chegamos

numa festa e já tava travados por que já tinha andado quatro

quilômetros... e travado. A hora que cheguei, lembro que um menino me

deu um chá e tinha chá de erva cidreira, era uma festa junina, pensei: é

chá de erva cidreira, tomei um golão meu, muito nervoso.. e era um

cogumelo com cidreira... e aí foi muitas coisas, a gente tinha usado

muitas coisas num dia só. Cada uma um efeito diferente, aí depois já

comecei ficar meio estranha, (...) e daí que foi o único cogumelo que eu

não gosto muito de ter tomado, porque ele me causou... porque ele não

foi feito por nenhuma pessoa que a gente sempre fazia, porque querendo

Page 209: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

200

ou não a gente tinha o nosso ritual e a energia que a gente usava, era a

energia daquelas pessoas que sempre eram amigas.

Havia tomado ‘chá de cogumelo’ fora do contexto ritualístico, em um

lugar estranho, longe dos amigos; isso era algo que Lou-Lou não conseguia

“absorver” adequadamente; a partir de então sua relação com as drogas

toma outro rumo; vivenciaria o Inferno.

Assim, após esse episódio a Bruxa-da-Ilha-da-Magia perde seus

poderes; tinha se intoxicado e não podia mais confiar nas pessoas. Todavia,

diferente das outras vezes – em que se isolava para se recuperar – descobre

um outro significativo em quem poderia apoiar.

Eu tinha um amigo muito mágico, lembro que sempre ele tirava meu I-

Ching, ele era uma pessoa de uma energia muito boa e aí ele ficava:

intoxicaram essa menina. Trouxe muitos chás de desintoxicação, pra

jogar pra fora alguma coisa porque eu tava intoxicada, mais não jogava

nada pra fora.. e eu fumava um beque e ficava muito mais delirando (...)

fiquei totalmente depressiva e todo mundo estava tudo bem, lindo,

maravilhoso, e eu estava muito mal, assim... muito mal... medo eu tinha

(...) todo mundo tem medo, só que você deixar aflorar todos os seus

medos, você começa a não viver mais nada, você só vai ter medo, medo,

medo, medo e insegurança.. você só vai ficar trancada dentro de casa,

você só vai... mais e quando você tem medo de você mesmo? (...) acho,

que a maior resposta vai tá aí.. e quando você começa a ter medo do que

você pode ser capaz de fazer.. quando você começa a ter medo de você,

do humano assim, quando você vê que você é capaz de fazer.. e o outro...

(...) a gente teve muita experiência de cogumelo, (...) mesmo entre

amigos, assim.. e teve viagens maravilhosas mas.. não.. não dá pra negar

do Huxley, que é a porta da percepção que é o céu e o inferno.

Page 210: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

201

Estando no inferno não lhe restava outra alternativa senão conhecê-lo

e lidar com o que estava vivenciando; que era associado na mesma

intensidade àquilo que experienciou quando estava no Céu. Dessa maneira,

explica que: “do mesmo que você sobe, você desce sempre tem o inferno.. e

dentro desse meu inferno, eu dei corda pra esse inferno. Porque? Quis

buscar o inferno também, não só por querer buscar o inferno... porque ele

existe.” O inferno é onde somos consumidos pelo fogo sem morrer!

QUANDO APARECE MAIS UMA PERSONAGEM NA HISTÓRIA

DE LOU-LOU

Ao bater nas portas do inferno Lou-Lou depara-se com uma personagem

inesperada e embora não tivesse batido nessa porta por sua própria vontade

a mesma já estava aberta não tinha como voltar atrás. Lou-Lou aprendeu

que transcender a realidade tem um preço: bater em portas desconhecidas,

que podem tanto levar ao paraíso quanto ao inferno. Isso coloca mais uma

complexidade no uso de substancias psicoativas: a busca do prazer e da

transcendência também pode levar às portas do desprazer e da loucura e que

isso não tem com algo que possa ser evitado a priori.

Simplesmente ela existe... só que ela precisa ser despertada, não sei se é

bem isso, mas... Eu imagino que é um estado do seu cérebro, da sua

cabeça, que está adormecido, o lado psicótico também... se você for

entrar nessa porta, você bateu na porta errada, às vezes... da percepção

(...) se você bater na porta errada.. Ops! Desculpe! Não era aqui mas eu

queria entrar, você já abriu a porta (...).

(...) quando você chega perto do suicídio talvez você viva um pouco

desse inferno, que seria após a morte em vida. Eu acho que de uma certa

Page 211: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

202

forma (...) chegou não só eu, como outros dessa experiência que

vivíamos algumas experiências juntos, a gente chamou muitas energias

sem ter o conhecimento... a gente brincou com coisa que a gente não

sabia... porque a gente era ingênuo.

Tendo adentrado às portas do inferno sofre uma nova transformação:

vivenciaria a Louca-Suicida que, no processo de vida-e-morte, sentia a

proximidade de chegar a Zero. Embora aparentasse estar saudável, estar

fisicamente linda, trabalhando, fazendo atividades físicas etc., o uso de

drogas neste momento da sua vida era de desintegração, de negação de si

mesma:

A gente dizia vamos usar mais um pouco... porque quando você chega

perto do suicídio, é uma coisa muito forte, você está querendo causar sua

própria morte, (...) se você quer buscar sua própria morte, você tem que

tá numa frieza, numa repugnância ou você mesmo, numa apatia, que

nada mais é importante... nada mais é importante, porque perdeu o brilho,

tudo perdeu o brilho... tudo fica cinza... (...) você não tende mais a querer

viver, sente só uma tristeza... que era tanta, tão dilacerante.. que nada vai

fazer contrapor... então eu vivi um momento que era muito delicado na

minha vida (...).

Foi então que, assim como a Severina pesquisada por Ciampa, Lou-

Lou tendo incorporado a personagem Louca-Suicida chegou ao zero e ardeu

em chamas.

Acabei metendo minha cabeça no fogo, porque não agüentava mais

pensar. Porque não conseguia mais controlar meu pensamento, porque

minha cabeça era tão acelerada que eu queria dormir e não dormia, eu

achava que o mundo inteiro conspirava contra mim, que a comida que

Page 212: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

203

tavam me dando estava me envenenando, a pessoa que mais me amava,

eu desconfiava de todo mundo. Eu não conseguia confiar em ninguém..

eu me fechei, me fechei, me fechei.. tanto, tanto, tanto, que eu não

conseguia fazer nada, eu não conseguia ficar sozinha. Eu não conseguia

nem falar, eu não conseguia expressar nada, porque eu fiquei numa

viagem.. muito foda, (...) Eu recebi muitas coisas anarquistas e por muito

tempo me envolvi com isso, mas li muito niilismo e niilismo, claro você

tem uma proposta, mas assim... ele acaba com todas as propostas, não é

que ele acaba, mas esclarece na tora essas paradas. Então você esclarece

(...) fica muito descarado, você já tomou drogas de percepção que já

ajudou você a mexer com um lugar que tava meio que intocado e ajudou

com outras coisas em você (...).

O RETORNO DA DEPRESSIVA-DEPENDENTE-DE-DROGAS QUE

AGORA TAMBÉM ERA LOUCA-SUICIDA

Lou-Lou tinha chegado a zero, estava inutilizada. De acordo com o

diagnóstico médico dado anteriormente era uma Depressiva-Dependente-

de-Drogas; agora tinha incorporado à sua identidade também a personagem

Louca-Suicida. Se antes contava com algumas personagens para se

diferenciar em distintos espaços, agora não as tinha mais; não era a

Anarcofeminista, nem a Adolescente-Experimentadora, nem a Bruxa-da-

Ilha-da-Magia; tinha sido reduzida à personagem Dependente-de-Drogas-

Louca-Suicida, ou seja, era apenas uma doente que necessitava de

tratamento, de adequação novamente. Indefesa, é levada para a casa dos

pais e retoma o lugar da Garota-Morna. Esse período foi muito difícil para

Lou-Lou, como pode ser verificado abaixo:

Page 213: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

204

Às vezes eu não podia expressar aquilo que estava sentindo, às vezes eu

queria berrar eu não podia com medo de incomodar alguém ou então

assim: porque você está chorando? A gente faz tudo pra você melhorar e

você não esta melhorando. Porque? (...) não queria estar chorando, mas

eu tava chorando naquele momento e eu não sei o que era e é muito foda.

A Lou-Lou-de-hoje reflete sobre o momento em que sua identidade

foi reduzida à personagem Dependente-de-Drogas-Louca-Suicida.

Você está no auge da sua vida e estar vivendo uma vida sedentária,

precisando de uma mãe pra alimentar (...) precisando do meu pai porque

não conseguia andar sozinha. Tinha que tomar remédio pra anemia. Era

incrível, chegava nos lugares e perguntava, mas porque tenho que tomar

esse remédio? Estou anêmica? Vocês fizeram exame de sangue? Eu não

entendia porque eu tomava, porque falavam que eu estava anêmica, só

porque eu sou vegetariana.

Tinha perdido a possibilidade de escolha, era vista como incapaz, de

pensar e ser. De volta à casa dos pais, foi encaminhada para o CAPSI de

Diadema, que se recusa a tratá-la pois, segundo a instituição, Lou-Lou teria

surtado por conta do uso de drogas, logo, seu tratamento teria que ser

realizado no Espaço Fernando Ramos da Silva. Em outras palavras, como

tinha sido dependente de drogas antes de ser psicótica tinha que ser 'tratada'

em uma instituição para usuários de drogas. Sob essas circunstâncias as

cinzas da Louca-Suicida foram levadas para o EFRS, sendo que a ajuda da

mãe de Lou-Lou foi essencial nesse processo.

Minha mãe mais uma vez ela me renasceu, me deu vida de novo, porque

ela me abrigou nos braços e cuidou de mim que nem um bebê; eu

Page 214: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

205

cheguei e não conheci ela (...) o que me fez bem, porque eu tava vivendo

aquele negocio de usar drogas.

É levada pela mãe para fazer 'tratamento' no EFRS. Entretanto, o fato

de ter vivenciado a rotina dos diagnósticos médicos durante toda sua vida,

ter lido sobre exclusão, sobre o desrespeito aos direitos dos ‘desviantes’, fez

com que tivesse medo do EFRS em um primeiro momento.

Eu tinha esse lado muito de.. radical dos lances. Você tá entendendo?

Então eu não tomava nada de remédio, de repente tive que tomar

remédio, aí porra... nem aqueles remédios eu queria mais tomar... E foi o

que eu fiz; parei de tomar aqueles remédios. Porque aquele remédio cria

inibição sexual, engorda, te dá um monte de contra indicação (...)

ninguém tá preocupado com essas outras coisas, só tá preocupado que

você tem que melhorar e tomar o remédio. E daí como eu já tinha tomado

um vidro de remédio e feito lavagem estomacal, conclusão era total

controlado na casa da minha mãe, só me dava um comprimido e pronto,

eu tive que enganar ela (...) não podia acreditar naquilo, eu quis acreditar

em outras coisas.

Queria acreditar em outras coisas mas ficava num impasse; queria se

tratar, mas todos os tratamentos pareciam ameaçadores. Só que desta vez

não tinha como se rebelar contra os remédios; estava nas 'mãos' de sua

família; então, teve que lidar com diversos conflitos durante seus primeiros

meses no EFRS.

A primeiro momento eu tinha medo de todo mundo e assim indiferente

se era homem ou mulher, de às vezes alguém se aproximar com segunda

intenção, sabe... e você tipo ali marcando, porque... por isso que rola

muito esse lance de estuprar pessoas loucas, né? Porque elas ficam que

Page 215: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

206

nem criança (...) Eu não sei o que rola.. você fica desprendido desse

mundo, dessa maldade.

No EFRS teve contato com a oficina terapêutica de teatro de imediato

e, ao contrário do que podia imaginar, seu primeiro contato com essa

oficina não foi muito prazeroso para ela. Vamos deixar que Lou-Lou conte

como aconteceu:

Logo quando eu cheguei rolou uma parada lá na Câmara de Diadema, eu

fui pro Coral, eram muitas pessoas, muita coisas e a (Psicóloga) gritando:

Merda!, e eu aí... onde eu tô?, o que tá acontecendo? Porque foi muito

fogo, porque é desse jeito e em São Paulo é muito maior o ritmo. Quando

eu cheguei lá, aí mudou muito meu, tinha muita gente surtada... muita

polícia, muita polícia, muita polícia, muita, então eu ficava: meu que que

é isso? Eu já tava louca ainda naquele lugar, com a cabeça toda queimada

(...).

Contraditóriamente, esta vivência na instituição, em um primeiro

momento, possibilitou uma nova experiência para Lou-Lou.

Meu surto não é igual ao do outro, mas de repente tem uma coisa em

comum... aquela peça lá, aquela dança que era, como era mesmo o

nome.,. grupo da (Psicóloga), aquele pessoal do CAPSI, Mu-Dança..

aquilo é lindo meu! A forma que foi feito, aquelas pessoas que fizeram,

não estou querendo, designar que um trabalho é mais bonito que o outro,

porque o trabalho artístico, a dança, o teatro, envolve um sofrimento

fudido, então não tem como você ficar diante de uma coisa tão linda e

falar que não te causa um efeito emocional, é um bagulho muito forte (...)

E a forma como foi captada a mensagem é uma forma muito legal!

Page 216: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

207

Após esse primeiro contato com as oficinas terapêuticas começou a

participar de diversas atividades no EFRS; até então, era levada pelos pais

que participavam ativamente do processo de recuperação. Lou-Lou passou

por atendimento psicológico, psiquiátrico, pelo Grupo de Acolhimento de

Mulheres e pelas oficinas terapêuticas de artes-plásticas e teatro. Esta traz

um pouco da experiência em cada um desses lugares; encontrando no

atendimento médico e psicológico algo que não presenciara em nenhum

outro lugar, que se diferenciava, das tentativas de 'tratamento' anteriores, no

qual o psiquiatra a priori já a via como a Dependente-de-Drogas-

Depressiva. Lou-Lou descreve essa outra relação com os técnicos do EFRS

da seguinte forma:

Como a (Psicóloga), (Médico) que era um psiquiatra de outro tipo. Uma

pessoa muito mais aberta, muito mais emocional.. como contato que eu

estou tendo com você.. estar interagindo. E esse lance de integridade,

todo mundo de uma forma horizontal é uma coisa que te faz crescer,

porque te faz lembrar como é aqui fora, não da pra você ficar ali dentro

sendo tratado como um doente (...) Ah! você é um doente, você é aquilo,

não! O que vão querer saber é o que você sabe pra você. Não quero que

uma pessoa carimbar: você e uma psicótica, você tentou se matar, não

preciso de alguém ficar toda hora me lembrando... Ah! Porque você é

uma burra, porque você tentou queimar seu cabelo? Porque você surtou?

Você é uma louca! (...) Eu já ouvi isso algumas vezes na vida e é foda.

Essa ‘relação terapêutica’ vivida por Lou-Lou proporcionou uma

quebra na re-posição da personagem Dependente-de-Drogas-Louca-

Suicida, ou seja, a quebra da perda de liberdade proporcionada pela doença

psíquica. Aproximando-se daquilo que Mitscherlich entende como objetivo

da terapia, que seria um autoconhecimento, que “frequentemente não passa

Page 217: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

208

da transformação da doença em sofrimento, porém num sofrimento que

eleva o grau de Homo Sapiens, pois não aniquila sua liberdade.”273 Assim,

ser reconhecida como alguém que era outra que não a Dependente-de-

Drogas-Louca-Suicida que precisa buscar uma saída para seu sofrimento,

parece ter feito a diferença no tratamento de Lou-Lou, porém não só isso,

como será apresentado na continuidade de sua história. Essa relação será

reforçada no Grupo de Acolhimento de Mulheres, um local na qual pode

resgatar a Anarcofeminista.

O grupo de mulheres foi essencial enquanto mulher, porque? Porque

quando você está com outras mulheres que passam problemas parecidos

com você, em termos físicos, emocional (...) você se sente que num

grupo de amigas é uma boa forma de você se inserir novamente (...) Dá

uma segurança legal. Dentro disso no grupo de mulheres, a (Assistente

Social), a (Psicóloga) e a... esqueci o nome dela... branquinha de cabelo

preto.. (Enfermeira). Elas são mulheres muito fortes (...) Muito

interessantes, (...) ajudaram muito, foi uma coisa essencial e de você vê e

de estar desenvolvendo algum conhecimento seu, enquanto mulher, com

outras mulheres, dentro daquele período, (...) eu naquele momento.. de

tudo eu tinha medo, depois eu comecei. Não sei eu fui voltando.

A Anarcofeminista começa a se fortalecer novamente e resolve

investir no 'tratamento'. Neste as oficinas terapêuticas terão um papel

fundamental, pois, por meio da oficina terapêutica de teatro Lou-Lou

colocará em questão o papel de Dependente-de-Drogas-Louca-Suicida e

como a Fênix pode ressuscitar das cinzas.

273 Alexander MITSCHERLICH apud Jürgen HABERMAS, O futuro da natureza humana: a

Page 218: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

209

Teatro muito fudido, porque ele mexe com o corpo, ele mexe com a

emoção, faz resgatar de novo esse lance de auto-estima, te empurra,

teatro já tinha assim, um desenvolvimento legal! (...) teatro misturado

com uma fonoaudióloga é foda pra caramba (...) você enquanto pessoa

capaz de produzir.. isso te dá vida, isso te traz calor, isso é humano. A

(Oficineira): olha nós somos de uma companhia... vamos lá, vamos

ensaiar, vamos fazer, sabe... vamos se pintar, vamos por peruca, vamos

criar o absurdo.. e é isso.

O que Lou-Lou está querendo dizer é que ao fazer parte de uma

companhia de teatro já começava a questionar sua identidade pressuposta,

que estava sendo re-posta, como visto anteriormente. Essa possibilidade

parece ser devido ao próprio potencial da arte que “jamais é uma mera

descrição clínica do real. Sua função concerne sempre ao homem total,

capacita o “Eu” a identificar-se com a vida de outros, capacita-o a

incorporar a si aquilo que ele não é, mas tem possibilidade de ser.”274

Assim, o fetiche da personagem vivenciado por Lou-Lou não pode ser re-

posto na apresentação da oficina terapêutica de teatro, pois como ensina

Glusberg:

(...) é impossível uma repetição tipo cópia-carbono de uma outra

performance; em primeiro lugar, porque as condições psicológicas

vinculadas com as representações subjetivas do performer, sempre

variam, não são imutáveis; em segundo lugar, porque o tempo real que

separa uma performance de outras vai incidir sobre sua produção

caminho de uma eugenia liberal?, p. 07-08. 274 Ernst FISCHER, A necessidade da arte, p. 19.

Page 219: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

210

concreta, como que determinando o tempo psicológico da execução, o

tempo de colocação em cena.275

Sendo muitas vezes espontânea, a apresentação da oficina terapêutica

de teatro aproxima-se do conceito de Criaturgia276 proposto por Moreno e

seria a alternativa para uma criação própria do drama, não estando

preocupada com os eventos contidos nele, nem com as leis que possam ser

dele extraídas.

Moreno explica a diferença entre Criaturgia e Dramaturgia da

seguinte maneira:

Enquanto o drama se constitui, dentro da mente do autor, como único ato

unificado de criação, no caso do Improviso, aquilo que até então vinha

sendo apenas assumido cobra sua realidade; cada ator de Improviso é

verdadeiramente o criador de seu personagem dramático, e o produtor de

improviso (aliás, o autor) deve sintetizar dentro de um novo todo os

processos de cada personagem dramático.277

Então, ao resgatar a Anarcofeminista, Lou-Lou reúne forças para

ressuscitar das cinzas, surgindo uma nova Fênix capaz de criar novas

personagens; representar aquilo que a negava, aquilo que gostaria de ser e

apresentar para o mundo aquilo que realmente era.

É aqui que Lou-Lou conta um dos segredos da oficina terapêutica de

teatro:

275 Jorge GLUSBERG, A Arte da Performance, p. 68. 276 Nome dado por Moreno para contrapor 'Dramaturgia'. 277 Jacob L. MORENO, O teatro da espontaneidade, p. 62.

Page 220: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

211

Ah! Mas é só um personagem! Mas aquilo é a gente, você é capaz de ser

a gente, é capaz de ser feliz, dar risada, de fazer as pessoas rirem e isso,

esse retorno é muito fudido (...) sentir perante as pessoas que convivem

com a gente, que a gente foi capaz de proporcionar uma emoção muito

forte nelas. Porque a gente tá vivo. Então a gente tem um respaldo

enquanto pessoa... de falar: Pô, você fez aquele teatro muito legal! (...)

aquilo é muito foda (....) aquilo foi a minha vida. (...) resgatou minha

vida de um jeito... e a forma de organizar um Sarau (...) eu gostava muito

de estar ali participando.

Por meio do teatro pôde questionar a personagem Dependente-de-

Drogas-Louca-Suicida e apresentar um novo “Eu” que podia ser re-

conhecida pelo outro. Utilizando novamente a contribuição de Moreno

podemos inferir que quando é “permitido a um ator uma espontaneidade

completa de sua própria autoria, seu próprio mundo particular, seus próprios

problemas, seus próprios conflitos, seus próprios fracassos e sonhos

passaram para o primeiro plano.” 278 Logo, na oficina terapêutica de teatro

Lou-Lou passa da condição de ator para a condição de autor da sua própria

história.

Sua vivência na oficina terapêutica de teatro demonstrou que esta

“pode elevar o homem de um estado de fragmentação a um estado de ser

integro, total” 279e, mais do que isso, “capacita o homem para compreender

a realidade e o ajuda não só a suportá-la como a transformá-la, aumentando-

278 Jacob L. MORENO, O teatro da espontaneidade, p. 120. 279 Ernst FISCHER, A necessidade da arte, p. 57.

Page 221: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

212

lhe a determinação de torná-la mais humana e mais hospitaleira para a

humanidade.”280

Foi nesse momento que Lou-Lou, vivenciando a Fênix ressurgida das

cinzas, despediu-se do EFRS; entretanto, sua despedida não foi um simples

adeus; da mesma forma que sua mudança começou após um espetáculo

teatral, neste mesmo lugar pôde avaliar sua própria ‘mu-dança’.

Quando eu assisti pela primeira vez o Mu-Dança (...) muitas coisas vi

viajando total e a última vez que eu fui, foi pra poder sair e ir sozinha de

ônibus, me encontrar. Poder sair sozinha de novo, aquilo foi lá no

Mackenzie, aquilo me deu uma vida, eu entendi o negócio. Sabe... as

coisas que eu gosto, tenho que retomar as coisas que eu gosto, tenho que

retomar minhas coisas, cadê minhas musicas, cadê meus livros, cadê

meus discos (...).

O que Lou-Lou esta contando confirma algumas coisas que Mead já

havia nos mostrado: Só podemos desenvolver um self na medida em que

conseguimos expor nossa espontaneidade e somos reconhecidos pelos

outros; assim, na oficina de teatro “os artistas também revelam conteúdos

que representam uma expressão emocional mais ampla”281, não redutíveis

às análises externas.

Sendo a performance na oficina terapêutica de teatro um ato de

comunicação e, logo, sujeita às regras do agir comunicativo, sua recepção

será sempre a busca de um consenso sobre a validade ou não da

apresentação. Essa transformação é conseguida “através de uma

280 Ernst FISCHER, A necessidade da arte, p. 57. 281 George H. MEAD, Mind, Self and Society, p. 240.

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213

remodelação da linguagem, da percepção e da compreensão, de modo a

revelarem a essência da realidade na sua aparência: as potencialidades

reprimidas do homem e da natureza.”282 Essa metamorfose da linguagem

busca uma racionalidade, que por sua vez, reivindica validade. Isso implica

em dizer que a racionalidade de um ato de fala: “aquilo que sabemos,

fazemos e dizemos só é racional quando sabemos ao menos implicitamente

por que nossas opiniões são verdadeiras, nossas ações corretas e nossas

expressões linguísticas válidas (ou ilocucionariamente promissoras ou

perlocucionalmente eficazes).”283

INESPERADAMENTE SURGE UM NOVO PROBLEMA E LOU-

LOU MOSTRA QUE JÁ NÃO É MAIS A MESMA LOU-LOU QUE

PROCUROU TRATAMENTO

Quando Lou-Lou estava prestes a deixar o EFRS é surpreendida pela

morte do namorado, que é vitima de um acidente rodoviário. Entretanto,

diferente das outras vezes, em que um problema fazia com que tentasse

fugir da realidade e/ou se isolasse do mundo, resolve encarar o problema.

Eu não pude acabar de certa maneira, eu tive que sair de minha

expectativa até quando estava me tratando porque, porque a pessoa com

quem me relacionava morreu (...) a pessoa que mais me ajudou de certa

forma, fora minha família, morreu... eu não pude dizer pra ela que eu

tava numa boa, que eu tava melhorando, ela morreu..(...) aí eu tive que

voltar a viver na marra (...) ganhar dinheiro, pagar conta, porque fiquei

sete meses sem precisar fazer nada.

282 Herbert MARCUSE, A Dimensão Estética, p. 21. 283 Jürgen HABERMAS, Verdade e Justificação, p. 100.

Page 223: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

214

Tinha ficado sem fazer nada, ficava re-pondo a personagem

Dependente-de-Drogas-Louca-Suicida que negava sua totalidade e agora

precisava vivenciar outras coisas, precisava ser outra. Talvez aqui possamos

considerar a “recaída” dos usuários de drogas como uma impossibilidade de

ser reconhecido em um outras personagens (pai, filho, irmão, trabalhador

etc), e um retorno à antiga personagem que era/é re-conhecida como a

verdadeira essência do indivíduo. Da mesma maneira, a oficina terapêutica

de teatro apresentou-se como um recurso no qual Lou-Lou pôde se

apropriar e apresentar uma outra que não ela mesma, negando sua

identidade pressuposta; tendo na sua performance o reconhecimento e

validação de um novo projeto de vida.

Desse modo, a autonomia se concretiza na inclusão do outro, no

reconhecimento das diferenças que o indivíduo pode apresentar, “os

participantes precisam criar suas formas de vida integradas socialmente

reconhecendo-se reciprocamente como sujeitos capazes de agir

autonomamente e, além disso, como sujeitos que são responsáveis pela

continuidade de sua vida, assumida de maneira responsável.” 284

Contudo, o fato de se apresentar por meio de uma nova personagem e

ser reconhecido como um outro outro não significa que não haverá

momentos em que antigas personagens serão solicitadas. Esse fenômeno é

descrito por Lou-Lou da seguinte maneira:

284 Jürgen HABERMAS, Pensamento Pós-Metafísico, p. 233.

Page 224: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

215

Assim, abalou muito eles, né? Quando veio a história à tona, veio tudo à

tona (...) Então a sua imagem vira mosaico, né? (..) é fogo isso, porque as

pessoas, por mais que gostem de você, elas vão lembrar disso. Elas vão

lembrar de todas as outras coisas legais, elas vão lembrar disso também,

mais isso vem na tora. Minha mãe até hoje vem: Ah! Você tá usando

drogas? Como se isso sempre fosse... ela não conseguiu entender.

Tendo contado sua história, Lou-Lou descreve novamente quem é;

dessa vez começa dizendo: “Eu sou o que eu gosto”, e com isso explica que

o “eu é o que você faz, você é o que você come, e por ai vai, é todo esse

conjunto de coisas que te rodeia e que você faz pra viver, então não tem

tanta explicação pra gente o que é humano.” Ser o que pensa e faz. Aqui

Lou-Lou mostra como passa a ser a autora de sua própria história; diferente

das personagens anteriores quando atuava conforme o que era atribuído pela

sociedade e/ou grupos de que participava; começa a entender o espetáculo

que está encenando e conta algumas coisas que descobriu nesse processo.

Quando você decide viver e não ser só expectador, só personagem. Ou

então quando você pelo menos assume tudo o que você vive, mesmo que

seja o mais cabuloso e, pensa sobre aquilo, por mais que doa a ferida, que

você cave ela, pensa, é fogo meu (...) pensar é ótimo, pensar demais é

ruim, não pensar é ruim, então o caminho é pensar.

Assim como a Severina, “atinge o ponto que torna qualquer ator um

ator convincente e digno de admiração: espontaneidade. Já não representa

obedecendo ordens: age por sua própria vontade (sponte sua); é

espontânea!”285 Entretanto, Lou-Lou lembra que esse processo não foi

tranqüilo, sendo ‘passível de prova’ em um primeiro momento.

285 Antonio da C. CIAMPA, A Estória do Severino e a História da Severina, p. 116.

Page 225: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

216

Eu não vou dizer que depois que eu sai de lá eu nunca mais usei. Não!

Eu cheirei cocaína uma vez e comprovei, não é minha praia, não foi a

melhor viagem que já tive, não curti... tomei um acido uma vez tipo, só

mais uma vez e deu, e quando eu acostumei foi muito massa. Mas antes

de eu usar de novo eu tinha muito medo, eu fumei maconha várias vezes,

cânhamo, haxixe e agora não estou usando mais nada, e aí beber eu parei

de beber.

Entendendo agora que a concretização humana se dá no devir

humano, compreende que as mudanças que ainda virão são coisas que terá

que lidar, porém, assim como a Severina (que conhece as regras do jogo de

xadrez e sabe lidar com as pedras), ela passa a preparar projetos para o

futuro.

Minha vida de uma forma não muito centrada, eu não sou uma pessoa

que posso ser tida como exemplo de organização, de horário, sei lá,

amanhã vou entrar numa escola e me formar (...) não tenho muitas metas

especificas, eu vivo sempre em função de que a qualquer momento pode

mudar tudo. Claro, tenho alguns objetivos que sempre almejo (...) não

sou assim, também não sou oca, não sou vazia, mas só que assim.. eu já

me preparo antes que aquilo pode vir a não acontecer, pra não me frustrar

tanto se aquilo não acontecer.

Lou-Lou preparava seu retorno para a sociedade, já imaginando que

esta tarefa não seria fácil. Pois, se anteriormente, o fato de ter tatuagens e

piercings já tornava difícil sua inclusão no mercado de trabalho, agora tinha

certeza que não teria chances. Dessa vez, Lou-Lou conta como foi que

vivênciou essa questão:

Page 226: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

217

É um lance muito fudido, você volta para o mercado competitivo, como

antes, quando você estava normal. Ninguém liga quem você é. O

Governo te assegura de você ter uma estabilidade quando você passa por

uma situação difícil? Ele quer que você se foda, ele quer que você morra,

sabe... então assim... foda-se! Você vai se reabilitar, você se reabilitou.

Lou-Lou aponta algo pouco levado em consideração pelas

instituições de ‘tratamento’, que baseiam a efetividade de seus tratamentos

na inclusão/adaptação do indivíduo no mundo capitalista. Em outras

palavras, tratar a dependência de drogas tornando o indivíduo novamente

apto para ser depende do mercado.

Aqui aparece mais um elemento para pensarmos as patologias da

Modernidade, na qual a racionalidade voltada para fins e voltada para o

princípio do desempenho apresenta os parâmetros de normalidade, ao passo

que não estar trabalhando e dependendo de outros para consumir, passa a

ser a medida para diagnosticar o ‘doente’ que precisa ser ‘tratado’, para ser

incluído novamente no mercado.

A imagem de inclusão, própria da teoria do sistema, nada mais é do que

o indivíduo isolado e solto, que se descobre em múltiplos papéis e se vê

confrontado com múltiplas possibilidades de escolha; e ele precisa tomar

essas decisões sob condições do sistema, das quais não pode dispor.

Como membro da organização, co-participante do sistema, o indivíduo

atingido pela inclusão subjaz a um outro tipo de dependência. O

(membro) incorporado precisa ajustar-se a meios de direção, tais como, o

dinheiro e o poder administrativo. Estes exercem um controle do

comportamento que individualiza, de um lado, por se adequar a escolha

Page 227: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

218

do indivíduo singular, dirigido através de preferências; de outro, o

controle de comportamento também estandardiza porque só permite

possibilidades de escolha numa dimensão dada anteriormente (do ter ou

do não-ter, do mandar ou do obedecer).286

Como dito anteriormente, agora Lou-Lou tinha uma maior clareza de

como as coisas funcionavam, entendia a lógica do sistema. Sabia que não

podia depender somente da participação nos grupos para se diferenciar, que

mesmo entre os estigmatizados existem categorias que excluíam os

indivíduos que não representavam bem o papel do ‘desviante’. Começa,

então, a elaborar um outro projeto de vida, buscando uma descrição do que

seja bom para si mesma e retomando aquilo que fez a Fênix renascer, a

possibilidade ser reconhecida como um outro outro que não o

desacreditado; trazendo com isso mais uma das coisas que pode re-

significar no período em que esteve no EFRS.

Eu vivi outra realidade, vi uma energia muito boa e um trabalho muito

fudido e me recuperei de uma certa forma rápido (...) e tudo que eu

passei até chegar alí (...) acho que era pra eu tá viva. Existem coisas que

não tem muita explicação, ela precisa de lição. Era pra eu tá viva, era pra

eu passar por essa penúria, porque às vezes as pessoas que morrem

mesmo vê a loucura e eu não tô livre, se eu posso viver amanhã ou

depois (...) esse é um preliminar, que toda minha vida vou afastar e é uma

coisa que é emocional. E é uma coisa que a qualquer momento pode virar

(...) eu tive remédios, e ao mesmo tempo não quis. Porque eu achei que

não era aquilo que fazia curar, era outra coisa. Acreditei na psicoterapia

em vez dos remédios (...) porque eu vi o outro lado do remédio, eu inchei

quinze quilos meu, sabe o que é isso, quinze quilos. Tive uma vida total

286 Jürgen HABERMAS, Pensamento Pós-Metafísico, p. 230.

Page 228: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

219

sedentária, eu fiquei sete meses trancada... minha mãe tinha que

caminhar de mão dada pra me levar, tinha que pegar ônibus com alguém

(...) então depois eu vi que... eu passei por tudo isso e agora estou no

mundo.

O MOMENTO EM QUE LOU-LOU SE TORNA MÃE E MUDA SUA

FORMA DE ENCARAR O MUNDO

Lou-Lou pós a alta do EFRS retorna para o mundo, resolve voltar

para Florianópolis para assumir as coisas que tinha deixado para trás. Após

algum tempo conhece uma pessoa, com quem passa a viver junto, decidindo

se tonar Mãe. Essa nova experiência vai mudar ainda mais sua forma de

entender a vida.

Agora me deu uma perspectiva melhor porque eu tive um filho, então

isso mudou muito assim, de uma certa forma. Tanto que meu filho fez eu

parar de fumar cigarro, que era um dos meus vícios mais peculiar, dez

anos fumando. Fiquei grávida parei de fumar (...) eu fiquei tanto tempo

me tratando tomei remédio e não parei de fumar cigarro, você tá vendo

como é o lance e daí um mês eu engravidei, eu parei de fumar cigarro,

então o negócio é falar, eu vou fazer tal coisa e faço.

Agora também era Mãe, preocupa-se com a educação de seu filho,

sabendo que não será uma tarefa fácil, pois não se considera uma mãe

convencional, nas suas palavras: “porque você é diferente de uma realidade

de uma certa forma e é a sua realidade, então como vou querer falar que é

errado? O que de repente é um controle de uma forma geral pra muitas

pessoas pra mim não é porque já fui contra aquele controle.”

Page 229: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

220

Poderíamos tentar discutir sua preocupação; entretanto, qualquer

colocação sobre como será o resultado dessa educação seria mera

especulação, haja visto que isso somente seria possível empiricamente

acontecendo, mas aí já seria presente. No presente temos que valorizar a

formula de Lou-Lou: “tento educar ele da melhor forma possível”, e isso já

está de bom tamanho.

QUANDO LOU-LOU NOS ENSINA QUE A MELHOR VIDA É

AQUELA QUE PODE SER VIVIDA

Lou-Lou-de-hoje conta que agora entende a vida como um incessante

movimento de diversas personagens, o que significa conviver com o fato de

que essas podem/poderão surgir contra sua vontade, ou ainda, que poderão

ser escolhidas, possibilitando a discussão sobre a Identidade Pós-

Convencional.

Eu acho que não posso dizer hoje em dia, eu sou bem extremamente

feliz, eu estou bem, mas tem dia que uso uma maquiagem, tem dia que

tenho um dia bem neurótico, tem dia que eu tô muito mal, tem dias que

eu caio numa depressão fudida e aí o que eu penso? Se eu escolhi não

tomar remédio, então tenho que escolher o que? Tentar dar a volta

comigo mesma!

Demonstra que consegue refletir sobre o sentido do uso de drogas que

fazia: buscava saídas para suas angústias existenciais no êxtase das

substâncias que utilizava, sendo que ao entender o sentido desse uso não-

racional passa a saber como lidar com as angústias. E também passa a

entender que o consumo de drogas é um fenômeno que não se aplica

Page 230: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

221

somente às substâncias, perpassando todas as relações humanas, na medida

em que os indivíduos consomem e também são consumidos.

Então assim, só que fico vendo o quanto é volátil isso, as pessoas estão

tristes vão lá e consomem.. só que este consumo é fugaz, porque se

consumiu, se gastou tudo e ai vem o arrependimento, vem a tristeza. E é

assim em tudo (...) e consumir as pessoas, o que a gente faz é isso, em

tudo, esse consumo é em tudo, então a gente consome tanto que se

esgota, tanto a si quanto ao outro (...) eu acho que a questão humana de

você viver bem (...) se tem um segredo? Tem! Mas qual é esse segredo?

O que faz isso, qual é uma proposta de uma vida realmente boa, o que

você tem que fazer pra realmente viver bem? Sabe, ter felicidade (...) é

um mistério, a gente não sabe tudo. Então é viver, é tentar ser harmônico,

o que não depende só de você, mas também do meio que você vive.

Podemos entender que Lou-Lou está falando que o desenvolvimento

de normas intersubjetivas válidas e a progressiva concretização da

identidade humana depende das possibilidades de acesso à liberdade de

escolha do que seja uma vida boa para cada um, logo, a concretização da

identidade será sempre uma questão política. Lou-Lou reflete a “liberdade

moral”, apontada por Habermas e explicada por Ciampa, na qual “o nível

mais elevado de desenvolvimento da consciência moral significa a máxima

valorização da liberdade (moral e política) e a máxima valorização da

igualdade (toda a humanidade)”287; isso abre espaço para a mesma falar

sobre a hegemonia do cinismo presente na questão das drogas:

Ninguém te fala: consuma drogas! Só que também elas existem, ninguém

combate o trafico de drogas, porque é uma lavagem de dinheiro fudida

287 Antonio da C. CIAMPA, A Estória do Severino e a História da Severina, p. 218.

Page 231: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

222

(...) não querem ter uma política antidroga, só que a maconha é uma

coisa natural? É, só que ninguém devia usar maconha pra tudo que vai

fazer. Ela também tem um ritual, ele também tem uma forma sagrada, ele

respeita a natureza, tá entendendo? Então não é pra usar de forma

desenfreada.

Lou-Lou-de-hoje sabe que mesmo conseguindo aquilo que desejava,

isso não significa sua plena liberdade, na medida em que ao fazer uma

escolha têm de abrir mão de outras coisas; uma felicidade completa é algo a

ser buscado, mas impossível de ser alcançado. O que se quer dizer com isso

é que a identidade humana, que é metamorfose, vai ser concretizada em um

movimento “progressivo” e “regressivo”. Vimos que quando Lou-Lou era

pequena, por exemplo, ela dizia: “era uma coisa que eu reclamava muito, de

viver num lugar que às vezes não pode ter seu espaço, ou que você não

pode ter suas decisões”; cresce, vive diversas personagens em busca de

autonomia, “só que eu queria ter um namorado, ter uma nova vida”, então

vai morar junto com essa pessoa, decide ter um filho, tem que dividir as

coisas novamente, sua autonomia utópica fica comprometida, porém, agora

sabe que “essa insatisfação também é do humano”, e nos oferece novamente

sua contribuição:

Por isso as pessoas buscam drogas.. pra sair da realidade mesmo. Porque

nada vai te satisfazer 100%, nem você, nem os outros nem uma droga,

nada.. porque uma hora você dá de cara e vê que não existe. Sabe, e não

adianta querer viver esse clima, então e por isso, ai está a questão: se

você viver sempre dopado, sempre, ai você não precisa também ter mais

vida, uma vida social, ninguém... porque nunca vai estar normal, vai estar

sempre dopado (...) Então assim, ou você vai passar dormindo.

Page 232: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

223

NEM ADICTA, NEM EX-DROGADA, LOU-LOU ESÁ APENS

SENDO A LOU-LOU-DE-HOJE, RENOVADA A CADA NOVO DIA

Apresentamos a narrativa da História de Vida de Lou-Lou e vimos

como as diversas personagens apareceram como momentos de progressão e

regressão na formação de sua identidade, sendo influenciadas pelos fatores

tanto internos quanto externos. Vimos que essas personagens em alguns

momentos puderam ser escolhidas, porém sem que necessariamente

pudessem ser concretizadas, assim como, outras surgiram inesperadamente,

ou ainda atribuídas, como no caso da Dependente-de-Drogas-Louca-

Suicida. Também, presenciamos Lou-Lou apresentando-se como outro

outro por meio da oficina terapêutica de teatro, podendo questionar sua

identidade pressuposta e que isso foi possível pelas condições dadas no

EFRS, resultando no desenvolvimento de uma Identidade Pós-

Convencional. Essa mudança qualitativa na vida de Lou-Lou pode ser

explicada por Habermas da seguinte maneira:

Uma vez que agora se articula uma identidade-eu através de uma

pretensão incondicionada de singularidade e de insubstituibilidade, a qual

não se prende mais exclusivamente ao ‘tipo social’, sendo, pois, pós-

convencional, também desta vez entra em jogo um momento de

idealização. Esse momento não se refere somente ao círculo virtual que

abrange todos os destinatários, a comunidade ilimitada de comunicação,

mas à própria pretensão de individualidade; ele diz respeito à garantia

que eu assumo conscientemente em relação à continuidade de minha

história de vida, à luz de um projeto de vida individual e refletido.288

288 Jürgen HABERMAS, Pensamento Pós-Metafísico, p. 220.

Page 233: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

224

Mas a história de Lou-Lou ainda não acaba por aqui, ainda falta um

pouco mais, falta Lou-Lou dizer como ela quer ser, como lida com o fato de

ter passado pelo ‘tratamento’. Novamente apontamos a importância de

discutir esse ponto, haja visto que muitos indivíduos ao deixarem as

instituições de tratamento do uso de drogas levam consigo a identidade do

‘ex-dependente’, adicto etc, mas vamos deixar Lou-Lou falar sobre isso:

Eu não sou uma ex-dependente química, hoje não digo desta água não

mais beberei. Então assim... não tô usando nada, tento combater minha

ansiedade às vezes eu vejo que tem gente que busca comida, busca

aquilo, outros pontos de ansiedade que é muito foda (...) Tem que buscar

atividades o tempo todo, assim.. acho que sobrevivente, guerreira... acho

que não era.. acho que tudo tem uma explicação ou pra tudo não precisa

explicação.

Não se reconhece como adicta ou Ex-Drogada, quer se ver, não em

termos convencionais, mas como Guerreira-Sobrevivente que a todo dia

tem que criar um novo projeto de vida para si mesma; Lou-Lou-de-hoje,

que no início de sua narrativa nos apresenta uma identidade que buscava

maximizar o prazer e evitar o sofrimento da re-posição através da

personagem Garota-Morna, experimenta diversas experiências até viver a

re-posição da Dependente-de-Drogas-Louca-Suicida; evolui e após a

apresentação do seu outro outro na oficina-terapêutica de teatro, busca

assumir uma condição possível, por isso relativa, de liberdade moral e

política para todos, abandonando a orientação de um hedonismo ingênuo na

direção de uma ética universalista da linguagem, nas suas palavras:

Eu busco um mundo melhor, então se eu estou vendo que uma coisa não

tá me fazendo bem, eu tenho que deixar. Mas será que ela só não tá me

Page 234: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

225

fazendo bem pelo ritmo que eu to levando? Também o ambiente que eu

to vivendo não tá me oprimindo ao fato de quando eu usar isso eu estar

me sentindo mal? Porque se eu der uma volta na praia, tiver um dia super

gostoso e de repente fumar um, posso me sentir muito melhor? Mas de

repente eu pensei: meu, porque há necessidade de eu estar usando? Se de

repente eu posso fazer um vasto de muitas coisas que eu também gosto,

que me dá prazer, sem eu precisar usar isso (..) todas as pessoas em geral,

acabam passando por essas condições difíceis de surtar, de depressão, de

se sentir muito mal, por isso... porque lhe faltam coisas que faziam elas

viver, faziam elas felizes, então, às vezes um cara surta porque trabalha

tanto, trabalha tanto, trabalha tanto, e nunca pode descansar, e nunca

pode fazer nada do que ele gosta, chega uma hora que ele pensa: o que eu

gosto?

A LOU-LOU-DE-HOJE FALA DE PLANOS PARA O FUTURO

Lou-Lou agora quer prestar o vestibular, mas ainda não sabe qual

profissão seguir; enquanto não se decide vai continuar pintando seus

quadros, vendendo seus livros e colocando piercing, vamos dar a voz a ela

mais uma vez:

Às vezes eu penso Psicologia, mas eu penso é uma coisa muito foda,

porque tem toda essa questão de gesto, de observação, vai me

enlouquecer muito mais, né? E artes-plásticas eu acho que me daria

muito bem.. é uma das coisas, só que daí.. há! mais não vai ter campo.

Pelo lado do campo... eu penso assim, eu gosto de fazer piercing, essa é

minha vida. Eu penso em fazer (a universidade) mais pelo prazer, daquilo

que eu gosto, do que eu gosto, do que aquilo que vai me sustentar.

Porque já não tá mais essas coisas... claro, você tem um diploma, você

tem uma estabilidade que talvez você possa vir a ter, não é uma coisa

garantida. Então assim, daqui a dois anos de repente, eu pensava em

Page 235: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

226

fazer, né... mais agora, com o (filho) eu tenho que esperar um tempinho

mais (...) até porque eu não tenho uma pessoa pra cuidar dele.

Pensar a Lou-Lou-de-hoje como expressão de uma Identidade Pós-

Convencional fortalece a possibilidade apresentada por Ciampa desde a

estória do Severino e a História da Severina, de que essa seria possível

como uma “identidade não determinada previamente nos seus conteúdos e

independente de organizações específicas.” 289 Ao recusar se submeter a

uma política de identidade que lhe atribuiria uma identidade de ex-

dependente, Lou-Lou escolhe poder desenvolver sua identidade política, sua

própria identidade, como concretização do projeto de vida de uma

“guerreira”.

Foi tudo muito rápido quero um dia voltar lá (São Paulo) dar uma

gratificação, conversar com as pessoas. Eu gostaria de me envolver mais

nessa causa, tenho comigo minhas idéias, acho que a gente também as

vezes não pode mudar o mundo, mas a gente se revoluciona e que isso

faz da gente ser o que é (...) tudo isso aconteceu. Mais eu tive que existir

mais que tudo pra poder resistir a isso, tudo com muito esforço.

Se conseguiu em muitos aspectos a própria revolução, porque não

revolucionar um pouco o mundo? Se este projeto vai ser concretizado ou

não só veremos com o tempo. No momento, a única coisa que podemos

fazer é nos despedir da Lou-Lou-de-hoje e deixar que outras Lou-Lou-de-

hoje no futuro apareçam. Mas antes, vamos dar as últimas palavras para

Lou-Lou, que se despede, pedindo desculpas por aquilo que não pode

mostrar:

289 Jürgen HABERMAS, Para Reconstrução do Materialismo Histórico, p. 103. (grifos nosso)

Page 236: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

227

Talvez eu possa estar esquecendo alguma coisa, resumindo coisas talvez,

esqueci algumas. Claro poderia ficar horas detalhando algumas coisas

que vivi, mas acho que de uma forma geral é isso. Existem coisas que são

só nossas, então assim, eu fico vendo de uma forma de quem já passou

por isso (...) Não de quem tá vivendo isso. Então quando a gente tá

vivendo a história é de um jeito.

5.2 - QUANDO RESGATAMOS A HISTÓRIA DE LOU-LOU MAIS

UMA VEZ, AGORA PARA INTRODUZIRMOS NOSSAS

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Vimos que a identidade é o que estou-sendo, uma identidade que me

nega naquilo que também-sou-sem-estar-sendo; na história de Lou-Lou essa

articulação da identidade ficou evidente a nosso ver, até o ponto que esta

chegou a zero (na incineração da fênix), sendo atribuída a ela a personagem

Dependente-de-Drogas-Louca-Suicida, e depois quando por meio da

oficina terapêutica de teatro pôde apresentar-se como outro outro, e que isso

ocorreu porque sempre comparecemos como representante de nós mesmos

perante o outro, podendo negar assim nossa identidade pressuposta, que

deixa então de ser reposta.

Se entendermos que ao me representar (no 1º sentido – representante de

mim) transformo-me num desigual de mim por representar (no 2º sentido

– desempenho de papéis) um outro que sou eu mesmo (o que estou sendo

parcialmente, como desdobramento de minhas múltiplas determinações,

e que me determina e por isso me nega), veremos que ao representar (no

3º sentido – re(a)presentar, repor no presente) estou impedido de

expressar o outro outro que também sou eu (o que sou-sem-estar-sendo).

Page 237: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

228

Ou seja, se deixasse de representar (no 3º sentido), expressaria o outro

outro que também sou eu, então negaria a negação de mim, (indicada

pelo representar no 2º sentido).290

Lou-Lou mostrou que hoje, com mais autonomia e individualidade,

vive outras personagens, e tem a clareza de que sua história seria diferente

se fosse contada em uma outra ocasião, pois não se vê (e não é vista) mais

como a mesma, (deixa de se re(a)presentar como Dependente-de-Drogas-

Louca-Suicida); podemos dizer que sua metamorfose inclui um salto

qualitativo no nível de consciência, bem como significativas mudanças de

suas ações.

Mas para não sermos injustos, vamos refazer seu caminho

esquematicamente. Quando criança Lou-Lou representava a garota-morna,

estava presa no hedonismo ingênuo e procurava a maximização do prazer

evitando a punição. Ao iniciar sua busca pessoal fica dividida entre as

personagens Adolescente-Experimentadora e a Punk, que se tornaria mais

tarde a Anarcopunk. Já no final da adolescência começa a namorar e

transforma-se na Aluna-Rebelde, que descobre que para poder trabalhar

tinha que ser autonoma; torna-se a Vendedora-de-Cachorro-Quente. Vai re-

por essa personagem durante três anos, até que se separa do namorado e

vivencia a Garota-Isolada ficando em casa durante um ano. Ao voltar para

o mundo, desorientada, retoma suas leituras e descobre o anarcofeminismo,

transformando-se então na Anacofeminista-Ativista, sem considerar que no

decorrer dessa atuação re-apareceria a Adolescente-Experimentadora que

começa a tomar parte cada vez maior nas suas atuações. Pela primeira vez

procura ajuda especializada, numa tentativa frustrada pois o psiquiatra

acaba fazendo um amalgama dessas personagens e atribuí para Lou-Lou a 290 Antonio da C. CIAMPA, A Estória do Severino e a História da Severina, p. 180.

Page 238: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

229

personagem Dependente-de-Drogas-Depressiva. Não aceita tomar drogas

(remédios) para se curar do uso de drogas e acaba se mudando para

Florianópolis, onde procura elevação espiritual e equilíbrio no uso das

substâncias, quando se transforma na Bruxa-da-Ilha-da-Magia; entretanto,

a sacralidade da bruxa é quebrada quando em uma festa faz a ingestão de

um chá mágico (cogumelo) que, fora dos rituais habituais, a deixa

desorientada outra vez. Sem conseguir controlar os pensamentos abre as

portas da percepção e encontra a Louca-Suicida; acaba ateando fogo em sua

cabeça. De volta a São Paulo, é levada para o CAPSI que lhe atribuí a

personagem de Dependente-de-Drogas-Louca-Suicida e a encaminha para o

EFRS. No EFRS pôde ser vista como um outro outro pelos técnicos da

instituição e pelo Grupo de Mulheres; essa condição de igualdade confere

uma ambiência favorável para resgatar a personagem Anarcofeminista, já

não mais militante ativista. Na oficina terapêutica de teatro pode

re(a)presentar outros papéis; começa a tomar consciência explícita das

contradições que vive e pode ser reconhecida como humana. Sai do EFRS e

retorna para Florianópolis (após a morte do namorado, que sofre um

acidente durante seu tratamento); retoma sua vida e com o passar do tempo

conhece uma pessoa com quem decide ter um filho. Deixa de usar as

substâncias psicoativas, não por imposição externa, não por se achar uma

Ex-Drogada, mas sim, porque essas perderam o sentido; percebeu que pode

viver sendo ela-mesma. Por fim, presenciamos uma Lou-Lou-de-hoje que

ao se propor normas éticas, com pretensões de validade universal,

apresenta-se com uma Identidade Pós-Convencional, que incluí em seu

projeto de vida o ingresso em uma universidade e o retorno para São Paulo

para se envolver na luta pelos direitos dos indivíduos que utilizam as

instituições de tratamento. Se no futuro só repetir o sucesso desta

Page 239: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

230

personagem, cairá no que descrevemos como mesmice, re-pondo

personagens; mas isso não nos impede de valorizar no momento os

“fragmentos de emancipação” encontrados na história de vida de Lou-Lou.

Podemos dizer que esses “fragmentos de emancipação” apresentados

por Lou-Lou-de-hoje apontam para uma transformação profunda de sua

identidade. Sendo que se recorrermos a Habermas e Mead, veremos que

“uma identidade-eu, pós-convencional, não pode desenvolver-se sem

antecipar estruturas comunicativas modificadas; porém, a partir do

momento em que essa antecipação se torna realidade social, não deixará

intocadas as formas tradicionais de integração social”291; assim, se esta

colocação estiver correta, a história de Lou-Lou aponta uma tendência

surgindo no horizonte, que parece estar se concretizando, por exemplo, no

EFRS.

Quanto à oficina terapêutica de teatro, vimos que a produção estética

em si não foi o mais importante no tratamento de Lou-Lou, mas sim, o

processo criador de espontaneidade que, permitindo o acesso ao outro outro

de Lou-Lou, pôde possibilitar a apresentação do 'Eu'. Aprendemos que a

oficina terapeutica de teatro pode possibilitar a intensificação da percepção

até chegar ao ponto de “distorcer as coisas de modo que o indizível é dito, o

invisível se torna visível, e o insuportável explode. Assim, a transformação

estética transforma-se em denúncia – mas também em celebração do que

resiste à injustiça e ao terror, e do que ainda pode se salvar” 292,

291 Jürgen HABERMAS, Pensamento Pós-Metafísico, p. 234. 292 Herbert MARCUSE, A Dimensão Estética, p. 53.

Page 240: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

231

compartilhando as colocações de Marcuse podemos inferir que a

experiencia estética:

(...) abre uma dimensão inacessível a outra experiência, uma dimensão

em que os seres humanos, a natureza e as coisas deixam de se submeter à

lei do princípio da realidade estabelecida. Sujeitos e objectos encontram

a aparência dessa autonomia que lhes é negada na sua sociedade. O

encontro com a verdade da arte acontece na linguagem e imagens

distanciadoras, que tornam perceptível, visível e audível o que já não é

ou ainda não é percebido, dito e ouvido na vida diária.293

Contribuindo com nossa reflexão, encontramos Habermas que,

partindo da concepção de arte de Jauss, vai discutir o potencial

emancipatório da experiência artístico sob um triplo regime: produção

(poesis), da percepção (aisthesis) e da comunicação (catharsis).

Como poesis a arte é a amancipação na qual o poder do artista é o criar

fora da representação – Idéia, natureza – um mundo onde compreender e

‘construir’ dependem da mesma operação; como aisthesis ela é

desconceitualização do mundo, visão autonôma livre do deja vu (da

anamnese), deve restituir a percepção sensível e ter um efeito crítico

sobre a linguagem, seus automatismos e funcionalidade social, mantendo

presente uma totalidade que a arte está em situação privilegiada de fazer

aparecer; como cattharsis – que é instância estética onde as duas outras

devem culminar – a arte deve restaurar sua função comunicativa, isto é, a

que se abre não apenas para a experiência de si, como também do outro;

esta deve encontrar a identificação espontânea e prazerosa, não se ater à

mera reflexividade (Adorno) e desembocar na ação simbólica orientada

293 Herbert MARCUSE, A Dimensão Estética, p. 78.

Page 241: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

232

para a solidariedade; a arte pode agir sobre a sociedade e ter efeitos

criadores de normas.”294

Desse modo, o usuário de drogas, geralmente reconhecido/reduzido

apenas ao papel de dependente, pode, por meio da apresentação

performática na oficina terapêutica de teatro, ser visto e re-conhecido como

um outro outro pela platéia que o assiste, ou seja, pode acessar a um outro

outro que também é ele. “Dizendo de forma diferente: essa expressão do

outro outro que também sou eu (que) consiste na metamorfose da minha

identidade, na superação de minha identidade pressuposta”295, assim, a

narrativa de Lou-Lou nos mostra que a oficina terapêutica de teatro pode

gerar condições para o desenvolvimento do agir comunicativo, que pode ser

compreendido como “um processo circular no qual o ator é as duas coisas

ao mesmo tempo: ele é o iniciador, que domina as situações por meio de

ações imputáveis; ao mesmo tempo, ele é o produto das tradições nas quais

se encontra, dos grupos solidários aos quais pertence e dos processos de

socialização nos quais se cria.”296

5.3 – QUE POSSIBILITA DISCUTIRMOS A AMPLIAÇÃO DO

CONCEITO IDENTIDADE-METAMORFOSE PARA O SINTAGMA

IDENTIDADE-METAMORFOSE- EMANCIPAÇÃO

Como vimos, desde A estória do Severino e a história da Severina,

Ciampa tem nos mostrado que “só a ampla discussão e reflexão sobre o que

294 Claude AMEY, Experiência Estética e Agir Comunicativo, Novos Estudos CEBRAP, 29, p. 137. 295 Antonio da C. CIAMPA, A Estória do Severino e a História da Severina, p.180. 296 Jürgen HABERMAS, Consciência Moral e Agir Comunicativo, p.166

Page 242: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

233

merece ser vivido nos levará a formular projetos de identidade, cujos

conteúdos não estejam prévia e autoritariamente definidos. Identidades que

se definam pela aprendizagem de novos valores, novas normas, produzidas

no próprio processo em que a identidade está sendo produzida, como

mesmidade de aprender (pensar) e ser (agir)”297. Assim, quando em 1999

propõe, no Encontro Nacional da ABRAPSO, a ampliação da concepção

identidade-metamorfose, para o sintagma: identidade-metamorfose-

emancipação, dá uma guinada no que se refere a metamorfose humana. A

partir de então, a identidade passa a ser entendida como metamorfose

humana em busca de emancipação, que pode ser conquistada ou não, na

medida em que está sujeita ao desenvolvimento das Identidades Pós-

Convencionais, que por sua vez estão sujeitas ao desenvolvimento da

sociedade.

Em sua tese de doutorado Ciampa nos fala de lições que são

mostradas pela história de Severina; da sociedade na qual vivemos como

um “Prometeu moderno que, depois de roubado o fogo dos céus, sofre a

condenação de ser devorado diariamente pela ave de rapinagem, sem

morrer; diariamente, sua vida, sua força de trabalho é reproduzida, para

alimentar a águia que o consome impiedosamente; mostrou-nos também

que o segredo dessa condenação é o de não nos deixarmos morrer, para

continuarmos sendo mastigados vivos.”298 Essas lições fizeram com que

fosse razoável aceitar uma lógica do desenvolvimento individual na qual,

297 Antonio da C. CIAMPA, A Estória do Severino e a História da Severina, p. 241. 298 Ibid., p. 236.

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234

(...) a partir de uma busca de maximizar o prazer e rejeitar a dor através

da obediência, evolui-se para uma busca de liberdade moral e política

para toda a humanidade, caminhando de um hedonismo ingênuo para

uma ética universalista da linguagem. Descobrimos também – e isso é

importante – que o nível mais elevado da consciência moral pressupõe

não um conteúdo normativo erigido em principio, e sim um

procedimento comunitário que permita interpretações universalistas dos

carecimentos.299

Vimos que essas lições foram novamente trazidas por Lou-Lou que

ao contar sua história de vida demonstra como se dá o castigo dos Deuses;

da ‘quebra’ na continuidade do existir humano decorrente de uma

imposição social, em que a identidade do indivíduo é confrontada com

exigências que estão em contradição com as expectativas; ao mesmo tempo

em que busca legitimação nas estruturas de expectativa experimentadas e

assumidas no passado. Dessa forma, Lou-Lou, assim como a Severina,

também ensina que nossas vivências não ocorrerem de forma simples e

independente às experiências, sendo que somente quando buscamos o

entendimento do sentido atribuído às metamorfoses identitárias que

sofremos durante nosso desenvolvimento é que poderemos analisar se as

mudanças foram qualitativas e não apenas quantitativas.

É nesse ponto que passamos a discutir a questão da emancipação, da

domesticação da ave de rapina para que esta trabalhe a nosso favor, a favor

daqueles “que acham que uma vida que merece ser vivida não é nem a da

carniça, nem a da caça que se esconde”300, mas sim, da autonomia, dos

299 Antonio da C. CIAMPA, A Estória do Severino e a História da Severina, p. 220. 300 Ibid., p. 237.

Page 244: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

235

projetos de futuro, da criação. Ao nos referirmos à emancipação recorremos

a uma idéia de vontade de decisão sobre o próprio bem de uma maneira

cada vez mais autônoma, livre da intromissão de interesses externos.

Habermas, discutindo esse conceito, vai dizer que:

(...) é um tipo especial de auto-experiência porque nela os processos de

auto-entendimento se entrecruzam com um ganho de autonomia. Nela se

ligam idéias ‘éticas’ e ‘morais’. Se for verdade que nas questões ‘éticas’

só procuramos obter clareza sobre quem nós somos e quem gostaríamos

de ser, e que na questões ‘morais’ nós gostaríamos de saber o que é

igualmente bom para todos, então é possível afirmar que na

conscientização emancipatória as idéias morais estão conectadas a uma

nova autocompreensão ética.301

Desse modo, podemos inferir com base no que foi apresentado e nos

referenciais teóricos apresentados até o momento, que nas condições da

Modernidade e do Pensamento Pós-Metafísico, o movimento para a

emancipação se dá com o desenvolvimento de uma Identidade Pós-

Convencional. Uma identidade que antecipe uma forma de vida com

valores e normas ainda não estabelecidos, que “só pode estabilizar-se na

antecipação de relações simétricas de um reconhecimento reciproco isento

de coerção”.302 Também podemos inferir que essa Identidade Pós-

Convencional somente torna-se possível quando o indivíduo passa a atribuir

às suas vivências um sentido de auto-determinação e, por outro lado, possa

ser reconhecido como portador de direitos. Todavia, entendemos que o fato

de desenvolver uma Identidade Pós-Convencional não é garantia de uma

301 Jürgen HABERMAS, Passado como Futuro, p. 99. 302 Ibid., p. 222.

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236

emancipação ‘completa’, ou definitiva do indivíduo; isso seria

‘convencionar’/predeterminar o que entendemos por emancipação humana;

ignorando a lógica sistêmica que a todo instante oferece saídas heterônoma

e ilusórias para os indivíduos. Logo, o que se pode observar com a história

de Lou-Lou é a possibilidade de viver-uma-vida-que-merece-ser-vivida,

sendo que isso se torna possível a partir do momento em que o indivíduo

pode afirmar 'Eu' de si mesmo e que pode ser reconhecido como um outro

que não se reduz a qualquer personagem, mas sim, que é a expressão de

uma pluralidade, que por sua vez precisa ser incorporada na comunidade

entendida por meio da construção, desconstrução e reconstrução,

entendendo as mudanças ocorridas com o indivíduo e sua atual condição, ou

seja, incorporando o outro com respeito às diferenças.

Page 246: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

237

CONSIDERAÇÕES FINAIS

_____________________________________________________________

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Os participantes precisam criar suas formas de

vida integradas socialmente reconhecendo-se

reciprocamente como sujeitos capazes de agir

autonomamente e, além disso, como sujeitos que são

responsáveis pela continuidade de sua vida,

assumida de maneira responsável.”

J. Habermas

Vimos que na Modernidade, a intersubjetividade decorre de novas

coordenadas de produção, entre as quais o consumo desempenha um papel

crucial, principalmente pelo aspecto da acessibilidade aos produtos, bens e

serviços, no sentido de que o ato de consumir utilizado pela lógica sistêmica

se reveste da condição de possibilidade para processos de individuação,

principalmente no que tange à tradução de determinados valores do desejo,

articulando deste modo processos que redundam na identidade individual.

Entretanto, essa colonização do mundo da vida não ocorre sem efeitos

colaterais, na medida em que traz consigo a incerteza, insegurança e medo,

sentimentos comuns à maioria da população; diante da desestabilização do

trabalho, da ausência do primeiro emprego, do desemprego, ao mesmo

tempo em que a indústria cultural oferece o entretenimento, convocando

para a encenação da vida repleta de prazeres, na sociedade da

superabundância e de acesso restrito. As promessas da Modernidade jamais

se cumpriram, dentre elas a emancipação do indivíduo; é com esta realidade

que devemos contar; é nela que estamos e é contra ela que devemos agir.

Page 248: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

239

Se entendermos que o uso de drogas, nos primórdios da história da

humanidade, sempre esteve relacionado com a transcendência do espírito

humano, ou ainda, com o anestesiamento do sofrimento corporal e mental,

podemos pensar, observando como o uso de drogas é feito na Modernidade,

que seu uso não mudou muito desde os primeiros relatos de experiências

com essas substâncias. Isso ocorre na medida em que observamos o uso de

drogas relacionado ao ‘ritual’ capitalista; no cafezinho antes do trabalho, na

cerveja do final de semana, nos medicamentos para dormir, para engordar

ou para emagrecer, nas drogas utilizadas nas danceterias, nas escolas etc,

seja para integrar esses grupos, seja para ter alto rendimento, ou ainda, para

fugir da realidade massacrante na qual o indivíduo está inserido.

Aprendemos que não existe uma causa objetiva, uma ou mais

variáveis com as quais se poderia relacionar o fenômeno do uso de drogas,

pois este fenômeno está no indivíduo, em seu sentido existencial, por outro

lado, esse uso também é incentivado pelo mundo concreto das condições

materiais de existência. Há consumidores de drogas em todas as classes

sociais; o que os diferencia, eventualmente, são a qualidade e os tipos de

drogas, em decorrência das capacidades aquisitivas e das distinções sociais.

As drogas são, portanto, combustível e veículo, fonte de energia e

móvel para a ação, voltadas para o lúdico, para a representação de si e do

grupo a que se pertence; também servem para o necessário devaneio, para a

leveza da alma que precisa flutuar e transgredir limites impostos pela ordem

sistêmica que tornam a realidade insuportável.

Page 249: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

240

Nestas condições, as mercadorias – no caso aqui as drogas – são

usadas, consumidas, para marcar diferenças sociais e, assim transmitir

mensagens, que moldam a identidade; essas condições, que aparecem como

catástrofe de proporções epidêmicas têm uma íntima ligação com as

condições do capitalismo. Assim, o sentido atribuído ao uso de drogas

pertence a uma moral vacilante, que em um determinado momento faz com

que sejam incentivadas, liberadas, legalizadas etc. e noutro proibidas, por

serem consideradas perniciosas. O problema não estaria na legalização ou

não dessas substâncias, pois ambos os lados, o lícito e o ilícito,

movimentam um grande mercado – financiam exércitos, compram e

vendem armamentos, geram empregos, patrocinam políticos e sustentam a

existência de diversas organizações. Sendo assim, defende-se a importância

da descriminalização do uso de drogas, enquanto o maior incentivador do

consumo, direta ou indiretamente é o próprio Estado.

Outro aspecto que não podemos deixar de apontar, refere-se às

medidas de tratamento do uso prejudicial de drogas, tão necessárias e ao

mesmo tempo tão insuficientes. Vimos que os tratamentos do uso de drogas

ainda apresentam em sua maioria como indicativo de saúde/alta a

abstinência (evitação da substância) e a não recaída (retorno ao uso), com

isso esquece-se que muitas vezes os indivíduos podem continuar a desejar o

uso, evitando situações em que exista a substância. Nesse caso, vale retomar

Mead que alerta para o fato de que a mera organização do self não significa

necessariamente um self consciente.

Assim, podemos inferir que não se trata de fato de metamorfoses com

sentido emancipatório, pois, ainda que aparentemente vejamos uma

Page 250: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

241

mudança, continua a haver a re-posição e não a superação de personagens

(ex-drogado, ex-alcoolista). Claro que isso não significa que essa superação

não poderá ocorrer a posteriori. A questão seria então, oferecer espaços que

possibilitassem a alterização do indivíduo; espaços em que o indivíduo

poderia ter experiências significativas e atribuir outro sentido para o uso das

substâncias que utiliza/utilizava, ou seja, um contexto no qual se possa

desenvolver a consciência de que existe uma relação entre as experiências e

que existe a possibilidade de se fazer outras escolhas até então nem mesmo

pensadas.

Nesses espaços, as oficinas terapêuticas aparecem como aliadas no

processo de alterização, ao possibilitarem a expressão do outro outro que

também é o indivíduo, logo, a apresentação do ‘Eu’ e a elaboração de novas

realidades possíveis. No caso do uso de drogas essas oficinas podem ajudar

a desvelar cada vez mais as desigualdades e a quase impossibilidade de

existência em um mundo cada vez mais dominado pela lógica sistêmica,

apontando para novas formas de experenciar a realidade – na medida em

que oferecem elementos que demonstram que os indivíduos podem ser

muito mais do que as personagens estigmatizantes que os aprisionam em

determinados momentos de sua vida – passando as patologias (capitalistas),

baseadas na nosologia (psiquiátrica), a serem vistas como patologias da

Modernidade, cuja causa, entre outras coisas, se deve à impossibilidade dos

indivíduos poderem, com autonomia, dizer ‘Eu’ de si mesmos.

Isso nos remete a pensar nas estratégias de prevenção e de

tratamento, na medida em que ao planejar intervenções especificas para

evitar o uso e abuso de drogas, também se deve considerar que a

Page 251: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

242

dependência corresponde a um fenômeno que não se confunde apenas com

o consumo de drogas, mas sim que corresponde ao encontro de um

indivíduo consigo mesmo, com seus valores e crenças; é preciso ver o

produto, a droga, inserida na esfera capitalista, num contexto sociocultural,

que incentiva, carimba e aprisiona o indivíduo na personagem do viciado; é

preciso combater as Políticas de Identidade que servem para manutenção da

realidade do indivíduo, impossibilitando muitas vezes que ele consiga sua

diferenciação, impondo-lhe a heteronomia que nega a experiência e atribui

um sentido a priori para a vida do indivíduo.

Ao contrário das técnicas utilizadas atualmente que preconizam um

agir estratégico de combate e prevenção ao uso de drogas, com ações que

partem do Estado para os indivíduos, colocando a priori qual a “melhor

forma” de evitar o uso de drogas, a alternativa que nos parece mais acertada

seria evoluir de uma política ‘esclarecedora’, para uma política

‘comunicativa’. Ou seja, repensar o modelo de prevenção baseado na

informação, que procura ‘ensinar’ qual o melhor modo de lidar com as

drogas, evoluindo para um modelo que procure mediar o sentido do uso de

drogas, um sentido dado, não pelo sistema, mas pelos indivíduos a partir da

auto-reflexão. Assumir o pressuposto de que nem a atitude

“fundamentalista”, nem a “relativista”, são conciliáveis com a razão

prática. A “relativista” por ser inconsistente por si mesma e a

fundamentalista por ser a negação do fundamental, que é o fato de ninguém

poder dar a última palavra sobre algo.

Sabemos que esta não é uma tarefa fácil, nem tão pouco de uma

única pessoa, organização ou instituição. Contudo, acreditamos que novas

Page 252: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

243

estratégias possam ser pensadas na medida em que entendermos o uso de

drogas como algo da condição humana e que sua importância fica evidente

quando passa a dar sentido à existência dos indivíduos na Modernidade.

Desse modo, a sociedade de massas e de consumo, que procura

moldar o indivíduo aos interesses do capitalismo, apaga as possibilidades de

emancipação.

Acreditamos ter deixado clara a alternativa que apoiamos: é aquela

que fuja de premissas falsas, como a que fetichiza a droga como um agente

– como se fosse um micróbio do qual a pessoa se torna um hospedeiro

passivo – ou ainda a que mistifica a droga quando a coloca como um objeto

a dominar o usuário, trazendo consigo o canto da sereia impossível de ser

recusado. Podemos então dizer que não cabe à Psicologia descobrir como

encontrar um ‘bem-estar’ como se o ‘mal-estar’ da sociedade apontado por

Freud fosse apenas acidental. Cabe à Psicologia resgatar as possibilidades

de realizações humanas que, na atualidade, enfrentem a crescente barbárie

de poderes hegemônicos que hoje ameaçam a humanidade inteira; que

transforme o ‘mal estar’ em ‘bom combate’!

Assim, entendemos que ainda existe a necessidade de buscar uma

psicologia que seja efetivamente social e que estude a questão do

desenvolvimento da Identidade Humana em toda sua abrangência e

complexidade (cognitivo, afetivo, estético, moral, sexual, corpóreo, motor

etc); que considere que o indivíduo, à medida que vai adquirindo a

capacidade de agir e de falar, vai também passando a se reconhecer e a ser

reconhecido pelo outro como alguém que pode afirmar ‘eu’ de si mesmo,

com uma identidade em constante formação e transformação, ou seja, uma

Page 253: Depend.ncia de drogas como um problema de Identidade

244

identidade entendida como metamorfose, que resulta tanto do processo de

socialização como do processo de individuação, em busca de um sentido

emancipatório. Nessa perspectiva, a subjetividade do indivíduo é vista

sempre articulada com a objetividade da natureza, a normatividade da

sociedade e a intersubjetividade da linguagem. O sintagma Identidade-

Metamorfose-Emancipação, assim, seria um conceito que permitiria e, ao

mesmo tempo, exigiria a integração de todos os aspectos do

desenvolvimento humano.

Lou-Lou nos ensinou muitas coisas com sua história de vida, dentre

todas elas fica implícito que talvez tenha chegado a hora de propormos uma

Clínica da Identidade, ou ainda, Clínica da Metamorfose, uma Clínica que

procure compreender a patologia (como expressão individual da opressão

da sociedade capitalista), para escapar da nosologia (como expresão

psiquiátrica de uma concepção cientificista que exclui o indivíduo como

sujeito), resgatando o duplo sentido da clínica: o de ‘inclinar-se’ (klinikós),

acolhendo o indivíduo com sua história e com seu projeto de vida, e o de

produzir um desvio (clinamem), não um desvio que exclua o indivíduo da

sociedade, mas sim para produzir outra história, outra possibilidade de

existência, partindo do pressuposto que nossa identidade não é apenas algo

que assumimos, mas também o projeto de nós mesmos.

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