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| 6 GVEXECUTIVO • V 19 • N 3 • MAIO/JUN 2020 • FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS
CE | COVID-19: O QUE ESPERAR DO FUTURO? • UM PROBLEMA PARA A GESTÃO PÚBLICA
UM PROBLEMA PARA A GESTÃO PÚBLICA
GVEXECUTIVO • V 19 • N 3 • MAIO/JUN 2020 7 |
| POR CARLOS IVAN SIMONSEN LEAL
O combate à Covid-19 é um proble-ma não só médico, mas também de gestão pública. Sem a existência, até agora, de uma vacina ou remédio comprovadamente eficaz, a ques-tão de como proceder para reduzir o número de mortos pela doença é,
simplesmente, como garantir que o sistema de saúde possa atender aos casos mais graves com os tratamentos pertinentes.
Ora, no curto prazo, a capacidade de ampliação da ofer-ta de tratamento é, na prática, limitada. Em muitos países, como no caso do Brasil, o sistema público, o Sistema Úni-co de Saúde (SUS), carece do investimento pretérito que poderia ter assegurado uma folga operacional a ser utiliza-da agora, sem falar na baixa organicidade e nas limitações quanto aos fornecedores de equipamentos. Assim, para re-duzir o número de mortes pela Covid-19, é imperativo pro-curar a qualquer custo diminuir a velocidade de propagação da doença por meio do chamado achatamento.
A ideia do achatamento é muito simples: limitam-se as interações entre as pessoas, com o objetivo de distribuir a contaminação ao longo do tempo, ordenando a fila dos que precisarão de tratamento hospitalar e aumentando as suas chances de sobrevivência.
Esse processo tem, no entanto, grandes custos econômi-cos e sociais. O produto interno bruto (PIB) poderá cair, a distribuição de renda poderá piorar e o caos social adviria como consequência. No limite, sabe-se também que a que-da do PIB pode causar mortes, seja por fome, por aumen-to da criminalidade, ou por outros fatores que prejudiquem as condições de saúde da população.
Análises técnicas deverão embasar difíceis escolhas po-líticas, mas é preciso entender que a natureza do proble-ma biológico em questão indica fortemente a necessidade da adoção de uma estratégia para maximizar os resultados dada a pior situação possível.
AS TRÊS PARTES DO PROBLEMAO problema do administrador público é conceitualmen-
te divisível em três partes, a serem executadas sobre gran-de estresse e incertezas.
Primeira parte: o administrador público procura reduzir o número de mortes. A menos que se tenha uma vacina ou medicamento comprovadamente eficaz, a única ferramen-ta que possui é utilizar alguma forma de confinamento.
No desespero de conter a doença, os administradores pú-blicos ao redor do planeta têm utilizado um confinamento
No combate à Covid-19, o administrador público tem como desafio seguir uma estratégia baseada em análises técnicas, mas incertas,
para fundamentar difíceis escolhas políticas.
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amplo e não seletivo. Parte da população não entende no primeiro momento e se sente incomodada. A questão dei-xa, imediatamente, de ser apenas sanitária e passa a ser po-lítica também.
Nesse caso, a compreensão de duas vertentes é fundamen-tal para se entender as diferentes reações que a crise da Co-vid-19 tem causado ao redor do mundo.
Em primeiro lugar, diferentes sistemas políticos geram re-ações diversas. Quanto mais desconcentrado o poder deci-sório, mais conflitos surgirão no momento de se tomar uma decisão que, pela sua natureza, envolve aspectos de gover-nança fragmentados entre várias camadas semi-indepen-dentes de governo. Assim, é natural que a China consiga implementar uma reação mais rapidamente do que os ou-tros países. O preço disso é o seu regime político. É de se esperar também que países parlamentaristas sem problemas graves de federalismo reajam de maneira mais ágil e conca-tenada do que Estados Unidos e Brasil, onde se pode obser-var a clivagem entre a gestão federal e a estadual.
Em segundo lugar, aspectos culturais influenciam enor-memente. No Ocidente, a ideia de democracia tem como base o individualismo do livre-arbítrio. No Oriente, as ideias de Lao-Tsé e do confucionismo geram uma reação menos adversa e rebelde àquilo que é visto como redução das li-berdades individuais.
Seja como for, após um curto intervalo de tempo come-çam os protestos pela queda da renda, destruição de empre-gos, falta de bens etc. Isso acirra ainda mais os ânimos. A preocupação não é mais só o número de mortes pela doen-ça, mas os efeitos, dificilmente reversíveis a curto prazo, de um confinamento cujo fim não se vê.
Em tese, o governo deveria fixar uma queda máxima po-liticamente aceitável do PIB e torcer para, até o momento em que chegar a esse limite, ter controlado a difusão da do-ença. Medidas fiscais expansionistas deveriam ser inicial-mente usadas, mas, dependendo do tamanho dessas medi-das, da cultura do povo e da fidúcia depositada ou não no governo, o processo pode não ser sustentável.
Segunda parte: o administrador público precisa analisar os efeitos do confinamento, além do controle da pandemia. O confinamento causa impacto em variáveis econômicas e sociais, podendo implicar também outras mortes. Um bom parâmetro para medir esse impacto é a queda do PIB, em-bora essa não seja a única medida que devesse ser conside-rada. Uma análise mais completa contempla outros indica-dores, como o coeficiente de Gini, que mede a concentração de renda, e o índice de desenvolvimento humano (IDH).
A escolha social entre as mortes pela Covid-19 e as provo-cadas pela deterioração de uma série de indicadores, em fun-ção do confinamento, mistura-se com inúmeras outras ques-tões, tais como: fiscalidade, federalismo, interação entre os três poderes, geopolítica etc. Será um período de escolhas mui-to difíceis em que a liderança do Executivo é fundamental.
O administrador público terá de olhar para os patama-res factíveis e socialmente aceitáveis de mortes pela Co-vid-19. A identificação dos patamares socialmente aceitá-veis é feita quase que por tateamento. Ela se reveste de um aspecto terrível: qual é o critério para se fazer a escolha en-tre mortes pela doença e por outros indicadores socioeco-nômicos? Não é absolutamente clara a resposta.
Terceira parte: é preciso fazer uma escolha em pata-mares que sejam ao mesmo tempo factíveis e socialmen-te aceitáveis.
Na experiência observada ao redor do mundo, as três par-tes não são sucessivas nem bem definidas. O número de pa-cientes precisando de tratamento intensivo em determina-do período é a variável de controle mais importante e deve ser redesenhada à medida que o tempo passa e a infecção evolui. Para tal, a testagem dos indivíduos é fundamental, porém aí existem dois graves problemas: • O número de testes disponíveis é limitado;• A confiabilidade dos testes é baixa.
O primeiro ponto é difícil de superar no curtíssimo prazo. O segundo indica que precisamos de mais testes. As duas coisas parecem incompatíveis.
Qual é o critério para se fazer a escolha entre mortes pela Covid-19 e por outros indicadores socioeconômicos?
Não é absolutamente clara a resposta.
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De fato, temos os seguintes aspectos que impedem o de-senho completo do problema para o administrador público: • Apesar de sabermos a forma geral do processo de difusão
da doença, conhecemos mal os seus parâmetros. Supõe-se que o número de pessoas que precisam de tratamento in-tensivo em determinado período seja um percentual cons-tante do número de pessoas com a doença, o que pode ser apenas uma aproximação da realidade;
• O número de pessoas que precisam de tratamento inten-sivo tem relação com a queda do PIB e com outros indi-cadores socioeconômicos. Ou seja, não se tem uma es-timativa boa. Certamente, há uma grande diferença nas expectativas dos agentes econômicos antes de a doença começar e depois, o que deve afetar sobremaneira como eles reagem à situação. A propósito de expectativas, essa é uma questão fundamental em tudo nessa crise. Expec-tativas de uma solução menos dolorosa adiam o confina-mento. A demora sobre o fim do confinamento causa de-semprego imediato. A baixa coordenação entre os agentes federativos causa conflito. A demora de um retorno às condições pregressas impede a sua volta;
• A volatilidade da opinião pública e o desespero daque-les que mais sofrem com a contração econômica forçarão os políticos a reagirem, procurando outro patamar social-mente aceitável, que não o ótimo no sentido econômico da palavra, o que não necessariamente será feito de for-ma eficaz. A estimativa errada do que seria factível pode levar a um grande número de mortes. Resumindo, o roteiro é mais ou menos o seguinte:
• A Covid-19 começa e o número de doentes é dado pela biologia, pela demografia e pela dinâmica das interações sociais;
• Os governantes acordam para o problema e adotam al-gum tipo de confinamento;
• Posteriormente, há fortes razões para se alterar ou se aca-bar com o confinamento;
• Pode ocorrer também que, em algum momento, haja ra-zões para se adotar novo confinamento, mais restritivo. Se a queda no PIB for muito grande, haverá grande abalo
social e político, afora profundo desgaste nas expectativas econômicas, com possível volta ao confinamento.
CONCLUSÃOA crise da Covid-19 é sanitária, mas também da adminis-
tração pública. Ela traz à tona vários problemas solúveis e outros insolúveis. No caso do Brasil, as características de gestão do setor público e o excesso de comportamento não cooperativo na sociedade somam-se a uma situação polí-tica mal resolvida. Sofreremos, mas é provável que, como sociedade, aprendamos algo.
Por outro lado, os nossos imensos problemas não são só nossos. O Brasil está no planeta Terra, e todos os países do mundo também foram afetados pelo fenômeno. A crise econômica e geopolítica está apenas começando. E ela não será simples de reverter.
O mundo não deve voltar a funcionar do mesmo jeito; o isolamento social acelerou outro fenômeno, cuja percep-ção ainda não é clara.
As interações complexas envolvendo grande número de pessoas passaram a ser mais fáceis e eficazes usando-se novos softwares e tecnologias. Comando, controle, comunicação, informação e a interpretação desta colapsam-se. Um mundo completamente novo surge. Nesse contexto, a competição aumentará a sua ferocidade enormemente, porém várias das desvantagens do Brasil podem ser zeradas e, se o país souber se reestruturar, poderá procurar um futuro melhor.
CARLOS IVAN SIMONSEN LEAL > Professor da FGV > [email protected]