MAELNA · A Estrela do Amanhecer e a Missa Negra ... 1 O termo Ácido Paulistânico foi título de...
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Maelna &
A Presença de Lúcifer
AMAURI CASAGRANDE
Maelna
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Maelna & A Presença de Lúcifer,
Casagrande, Amauri
DIREITOS RESERVADOS
BIBLIOTECA NACIONAL ESCRITÓRIO DE DIREITOS AUTORAIS
PROTOCOLO 010376-V01
Registro 499.988
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Índice
1. O Acidente ............................................................................. 5
2. Ponto de Partida ................................................................... 14
3. Razões para que perdesse a razão............................................... 18
4. Semeando uma mente confusa ..................................................... 23
5. Divagações ............................................................................ 27
6. Estranha Literatura ................................................................ 30
7. A Garota Gótica ................................................................... 43
8. O Senhor Macau .................................................................. 54
9. No Ibirapuera ........................................................................ 58
10. A Estrela do Amanhecer e a Missa Negra .................................. 64
11. Sucubus ............................................................................... 77
12. Mágica! ................................................................................ 89
13. Traviere ............................................................................... 97
14. Boris ................................................................................. 106
15. O Aprendiz de Bruxo ............................................................ 112
16. No Bar Sombrio .................................................................. 118
17. Caçando Almas .................................................................... 122
18. A Medicina dos Deuses ......................................................... 126
19. Nota de Falecimento ............................................................. 132
20. Better Man ........................................................................ 138
21. O Grande Ritual ................................................................. 146
22. Os Primeiros Soldados do Exército Sombrio ............................. 161
23. Luxúria (Tina) .................................................................... 168
24. A Hierarquia ....................................................................... 173
25. A Entidade ......................................................................... 178
26. Na Biblioteca de Macau ........................................................ 186
27. A Princesa do Passado (Débora) ............................................ 195
28. A Princesa do Presente ........................................................ 206
29. As Pichações ...................................................................... 223
30. A Roqueira de Satã ............................................................. 227
31. A Espiã ............................................................................. 233
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32. Vestígios da Noite ................................................................ 254
33. O Detetive Lucas ................................................................ 256
34. Cão Acuado .......................................................................... 263
35. Bardanis .............................................................................. 268
36. Entre Nous ......................................................................... 275
37. A Derradeira Tentativa .......................................................... 297
38. O Pregão ........................................................................... 301
39. A Missão de Álvaro .............................................................. 308
40. A Opção de Álvaro ............................................................... 317
41. A Princesa do Futuro ............................................................ 322
42. Pontes que caem ................................................................... 338
43. A Vingança de Bardanis ......................................................... 341
44. Sob o desejo de Lúcifer .......................................................... 348
45. Abominação .......................................................................... 357
46. A Primeira Revelação de Maelna ............................................. 364
47. 1400 hp’s de Adrenalina ............................................................ 368
48. A Segunda Revelação de Maelna ............................................. 374
49. A Igreja do Falso Testemunho ................................................ 382
50. A Décima Oitava Chave ........................................................ 385
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1. O Acidente
De pé, em frente ao espelho de seu modesto closet, Álvaro
exercitava algumas formas de melhorar sua aparência. Tinha saído
do banho, vestido e se preparado para a noite de sexta. Um leve
traço de “Malbec” exalava de sua nuca.
Seus quarenta e oito aniversários já vencidos sob o ácido
paulistânico1 eram óbvios ao espelho, e mesmo que ele tentasse se
convencer do contrário, sua feição áspera talvez lhe acrescentasse
até mais idade do que tinha. Uma vida cheia de histórias, sucessos
e insucessos. Uma ou outra cilada, das quais não saiu ileso. O
pouco que lhe restava era um carro necessitando urgente de trocar
de dono, e um apartamento em um bairro de classe média nas
imediações do Brooklin Paulista, onde morava sozinho, na grande
metrópole de céu cinzento.
Na sala cultuava através de um painel, com uma grande
foto em branco e preto, uma deusa do rock do início dos anos
oitenta, que para ele era o modelo de beleza absoluto.
Algum conforto como um bom home theater, e uma
decoração moderna, ainda eram heranças de uma fase de condição
financeira um pouco mais cômoda, que talvez, não fosse o caso no
momento.
Trabalhava como autônomo, (maneira educada de dizer que
estava desempregado e vivendo de “bicos”), pois, depois dos
quarenta, milhões de brasileiros vivem de uma espécie de sentença
de morte dentro do mundo da Consolidação das Leis Trabalhistas.
Mas ainda sim, mantinha seu bom humor. Estava agora
saindo com uma garota com pouco mais da metade da sua idade, e
isso, era muito bom para o ego. Levantava seu astral e sua saúde.
Com o cabelo pronto, deu um sorriso mecânico, verificando
se sua higiene bucal fora eficiente. Em seguida, fechou a mão em
1 O termo Ácido Paulistânico foi título de um livro publicado em 1984 por Oswaldo Rosa, traduz a
aspereza com a qual a cidade de São Paulo trata seus moradores.
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concha, levou-a até a boca entreaberta, e deu uma baforada para
verificar a qualidade de seu hálito.
Conferiu então sua parafernália de utensílios: carteira,
chave do carro, chave do apartamento, celular, óculos, etc.. Abriu a
carteira e folheou algumas cédulas (pensou: algumas coisas só se
paga com dinheiro). Depois abriu um compartimento na face
posterior da mesma, e confirmou ainda a existência de dois de
quatro do pequenino ouro azul que os homens de gerações mais
antigas carregam consigo, em tempos modernos. Eram a garantia
de não se passar por uma situação vergonhosa e ter que se justificar
com frases cretinas como “isso nunca me aconteceu antes”.
Enfim, pronto para a noite, apagou as luzes no caminho até
a porta, e saiu.
***
A Danceteria ficava em algum lugar nas proximidades do
Iguatemi, num setor badalado da noite paulista. A grande
aglomeração de carros e pessoas obrigou-o a deixar o carro em um
estacionamento pago, umas três quadras de distância de seu
objetivo.
Durante a caminhada, ligou para Sara. Como esperado de
noventa por cento das mulheres, a mesma foi só atender lá pela
quarta ou quinta tentativa, bem quando Álvaro já tinha vencido sua
caminhada, e já estava em frente à boate.
Com as palavras misturadas ao grande ruído de fundo, ela
disse que já havia entrado, e que o encontraria próxima ao
“american bar” do primeiro andar.
Foi combinado que entrariam juntos, mas não havia motivo
para se aborrecer, caso novas surpresas não o esperassem. Foi
realmente um trabalho árduo encontrá-la no interior da Danceteria.
Muito grande, muito cheia, vários ambientes. E não estava só.
Havia ido com um grupo de amigos.
Quando finalmente a encontrou, ela lhe deu alguns
beijinhos e rapidamente foi apresentando-o ao grupo. Sara era
muito bonita. Loirinha, cabelos longos, corpo encantador. Um
visual privilegiado. “Um troféu - pensava Álvaro”.
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Ficou perceptível, contudo, um comportamento um pouco
evasivo de sua parte, mas até aí, tudo bem. Ela era de outra
geração. Não tinham um tratamento de compromisso, semelhante
ao que ocorria até limiares da década de oitenta, em sua juventude,
ao qual chamavam de “namoro”. Essa palavra praticamente extinta
e obsoleta há muito vinha sendo substituída por negativas sutis ou
não de compromisso. Ele sempre se lembrava disso: “Estavam
ficando”, ou já “ficaram”. “Houve transa, não houve...”
Era fundamental então que Álvaro pegasse uma bebida,
para ficar, como todos, disfarçando com um copo ou garrafa nos
lábios, os longos momentos em que não havia o que falar. Pegou
logo o uísque mais caro, algum que tivesse mais que doze anos,
não que tivesse sabor melhor ou pior. O custo benefício estava
apenas no “status de alguém saber” e comentar entre o grupo coisas
assim: “O cara tem gosto refinado!”, ou: “O cara tem dinheiro”, ou
“O cara conhece coisas boas”.
Enfim, atrelado, prisioneiro assim como noventa e cinco
por cento das pessoas a esses clichês, Álvaro de forma alguma
podia nadar contra a corrente...
Não é preciso comentar que o “doze anos” era falso, isso
não importava.
E com o suposto “doze anos” nos lábios, e sozinho, ele às
vezes sorria a flashes de conversas cruzadas, pequenos fragmentos
de assuntos que o grupo falava. Eram nove pessoas, cinco homens
e quatro mulheres, e que pareciam dispor de um entrosamento
médio, nada íntimo.
Quanto a Sara, havia apenas uma colega mais próxima, uma
morena magrinha de cabelos longos e muito bonita, que
conversava bastante com ela, de modo que Álvaro rapidamente
percebeu uma amizade mais definida, e uma certa cumplicidade.
Ela fora apresentada com o nome de Marina.
Como falar ou se aproximar de Sara logo se mostrou uma
atividade meio complexa, ele buscou conversar com os demais,
pegar algum gancho, puxar assunto, ser sociável.
Álvaro estava um pouco confuso. Houve uma mudança
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total de comportamento na relação de Sara para com ele. Foi
compreensivo, talvez no sentido, de que estando com seu grupo de
amigos, seria ideal que se comportasse assim.
Mas o tempo passou, e gradativamente alguns sinais
apelaram para seu lado “desconfiado”, ou para seu lado “se toca,
amigo, tem algo errado”.
Uns minutos depois de sua chegada, um homem
cumprimentou Sara, e algumas pessoas do grupo, mas não ficou
para conversar. Ficou, contudo, em local não muito distante,
observando de forma insistente.
E em um dado momento, Sara e a amiga mais próxima, a
moreninha, a Marina, pediram licença para ir ao toalete. Na entrada
do toalete foram abordadas por ele. Trocaram algumas palavras e
foi só.
A estada no toalete foi longa, e o tempo foi longo a ponto
de constrangê-lo. A moreninha voltou sozinha. Mas não para o
grupo. Pegou a mão de Álvaro, de modo a distanciá-lo dos demais,
e falou em seu ouvido:
- Álvaro, a coisa ta meio pesada para Sara. Tem um assunto
mal resolvido aqui hoje, e não está muito legal, e ela não está
querendo te expor.
Álvaro pediu:
- Me explique melhor, talvez eu possa ajudar.
A menina falou:
- Bem que podia, mas acho que não vale à pena. Sabe, ela
tem de longa data uma “transa esquisita” com um “carinha” que
sempre “está no pé dela”. E ele está aqui.
Álvaro perguntou:
- Ele está incomodando Sara?
A menina riu meio sem graça. Estava tão pertinho. Ele
podia sentir seu cheiro adocicado, ou às vezes o contato dos seios
dela contra seu corpo. Ela disse:
- Não é tão simples. Você parece ser um cara legal. Então
vou lhe dizer o que fazer. Arrume qualquer desculpa e vá embora.
Algum dia, agente vai tomar uma “gelada” em algum lugar, e você
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vai me agradecer.
O assunto se encerrou por aí. Sara estava de volta. Álvaro
disse:
- Puxa, demorou!
Ela respondeu:
- Tinha fila lá dentro.
Marina se distanciou dos dois e se juntou ao grupo.
Finalmente podendo conversar com Sara em privacidade
moderada, perguntou:
- Algum problema?
Ela demorou a responder, mas finalmente:
- Não, nenhum problema. Só vou te pedir um favor, e
depois te explico. Hoje somos apenas amigos. Você “tá” livre
inclusive para beijar alguém, se quiser.
As palavras soaram estranhas aos ouvidos fatigados pelo
retumbante trance ambiente. Ele franziu as sobrancelhas, depois de
um longo tempo, apenas disse:
- Não estou entendendo.
Ela mudou o semblante para um pouco agressivo e disse:
- Olha, não temos nada sério entre nós. Saímos algumas
vezes. Não estamos grudados um no outro. Estou com meus
amigos e quero que respeite isso.
Ele se surpreendeu. Pensou bem. Demorou a responder:
- Lamento que pense assim. Lamento mesmo. Tinha planos
para hoje. Mas tudo bem, se preferir vou embora.
Ela o conduziu para um pouco mais longe dos colegas, e
mesmo em meio ao barulho se certificou que ninguém ouvia.
Disse-lhe então:
- Você sai como se fosse ir embora. Aguarda-me em frente
ao Linus Bar, daqui uns quinze minutos. Então eu saio e me
encontro com você. Depois te explico tudo com mais calma, ok?
Álvaro estranhou, na verdade, não gostou, mas como as
informações ainda estavam parcialmente omitidas, talvez
compensasse dar um voto de confiança e fazer conforme ela estava
pedindo. Então concordou.
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Logo que ele saiu, Sara foi então a procura do homem que a
havia abordado em sua entrada ao banheiro. Não precisou procurar
muito, na verdade, ele já estava observando-a, no bar mais
próximo, apoiado ao balcão.
Ela se aproximou, com um olhar visivelmente furioso e
falou:
- Já lhe disse para me dar sossego. Não temos mais nada um
com o outro, “me deixa” em paz.
Com um sorriso sínico, ele falou:
- Que eu sei, aqui não é sua casa. Mas tu és realmente uma
vagabunda. Foi logo eu virar as costas e já tá dando para outro. Tá
a perigo, hein. Agora arrumou um velhinho?
Sara avançou sobre ele, para lhe dar um tapa no rosto. Não
completou a ação, ele a segurou antes disso, e de forma
surpreendente beijou-a e segurou-a apertando seu corpo contra si.
Algumas pessoas em volta perceberam que algo estava
errado. Bom de observar, porém quem se importa?
Sara poderia ter recusado de alguma forma a continuidade
do beijo, que foi longo. Mas enfim quando a liberou, ela cuspiu no
chão, e disse, ainda com expressão enraivecida:
- Você não vale nada. “Me deixa” em paz! “Me deixa”
gostar de alguém que vale a pena.
Ela tentou se retirar, mas Marcos (esse era seu nome) a
segurou fortemente pelo braço:
- “Galinha”! Depois que ele descobrir quem você é,
esquece... Aí, tu voltas com o “rabinho entre as pernas” para o
“papai” aqui.
Ele finalmente a liberou e ela se distanciou, voltando até a
presença dos amigos.
Após a infeliz cena, Marcos pagou a conta e saiu
rapidamente da boate.
***
Álvaro acabou sentando-se em uma mesinha do Linus Bar.
No avançar da noite, a movimentação começava a declinar.
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Infelizmente, os quinze minutos que Sara pediu já estavam
extrapolados de forma bem significativa. Álvaro deu uma cédula
ao garçom; tinha tomado apenas uma água. Pegou o celular, e
tentou falar com ela. Chamou até cair.
Levantou-se, e começou uma caminhada de volta até a
porta da danceteria. Havia, então, poucas pessoas na rua, e para
São Paulo, isso é sempre bastante preocupante.
Enquanto caminhava, tentou novamente o celular. Meio
distraído, começou a atravessar a rua. Foi tudo muito rápido. Mal
escutou o cantar de pneus, a caminhonete preta já estava sobre ele.
A surpresa foi tamanha, que seu único gesto foi olhar para dentro
do veículo e perceber no volante alguém que não lhe era estranho.
Sentiu algo bater ferozmente em suas pernas. Seu corpo inclinou-se
sobre a tampa do motor, e em seguida foi jogado a vários metros de
distância. E então, desligou-se, perdeu a consciência.
O corpo inerte ficou estendido no asfalto, enquanto uma
pequena poça de sangue começou a se formar.
O veículo sumiu, e os sons distantes da noite voltaram a ser
ouvidos. Ao longe, o som da danceteria.
O celular caído no chão completara a ligação. Uma voz
feminina falou algumas vezes “Alô”, mas como ninguém
respondesse, desligou pela quinta ou sexta vez.
***
Algumas vezes a consciência voltava. Vinha carregada pela
dor das pernas moídas pelo impacto. Eventualmente, um carro ou
outro passava. Não que as pessoas não vissem Álvaro agonizante
próximo ao meio fio. “È que daria muito trabalho ajudar alguém...
– pensou - Chamar polícia, ambulância... Simplesmente tocar em
alguém ensangüentado, e levá-lo onde pudessem lhe dar socorro.”
Ele não sabe como, mas se arrastou até próximo a um poste,
onde apoiou a cabeça. Não, não estava morto. “O celular? – se
lembrou - onde está? Parece que perdi...”
“Parece que não sobrou muita coisa... Maldito!!! Maldito!!!
Maldito canalha!!! Se eu sair dessa, vou te perseguir até o inferno!”
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A dor vinha em ondas, e às vezes era maior do que podia
suportar. Álvaro ficou por horas jogado na calçada. Nos momentos
de consciência, que eram cada vez menores, sentia frio e desolação.
Certa vez se lembrou de um cão atropelado... Não por ele,
ele não o abandonaria daquele jeito. Ao passar pela pobre criatura
moribunda, viu em seu olhar uma súplica, um pedido silencioso de
ajuda, enquanto, o sangue e as tripas saiam por sua barriga. Devia
ter sido atropelado por algo bem pesado. Maldito! Atropelou e se
foi. E o que ele podia fazer... Estava com pressa, estava indo para o
trabalho... O bicho estava morrendo mesmo... Pra que ajudar? Não
tinha mais jeito... Mas aqueles olhos de piedade do pobre animal...
Ignorar foi fácil, esquecer, não.
Enfim deixou o cão agonizando e se foi. Por quanto tempo
será que o animal sofreu até que uma alma piedosa lhe deu a
dignidade da morte?
“É o que preciso agora – pensou – a dignidade de morrer,
rápido. Mas eu não fui capaz de fazer o mesmo. Eu deixei o bicho
lá no chão, sofrendo... Não tive nem a capacidade de tirá-lo da rua,
para evitar que outro carro passasse em cima. Sou exatamente
como essas pessoas miseráveis de humanidade, que passam por
mim, no conforto de seus carros, e não se envolvem... Envolver em
acidente é “fria”... São iguaizinhos a mim... Assim como eu fui
incapaz de socorrer uma criatura que sofria, elas também são
incapazes de fazer algo por mim...”
Estranhos delírios passavam por seus olhos. Álvaro via
imagens distorcidas, uma rápida sucessão de lembranças. Não via
mais a rua, nem qualquer carro passando. Viu-se, de repente, em
meio a um silêncio muito estranho.
Toda a dor começou a ser substituída por um
formigamento, e uma sensação estranha, talvez de leveza. “Estou
morrendo – pensou. Que bom. “Parem o bonde que eu quero
descer... Quem será que disse isso? É isso que eu sinto,
exatamente. Eu quero deixar esse mundo.”
“Não, eu não quero morrer! Eu quero viver, mas viver
direito! Droga, como se eu tivesse escolha!”
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Agora, o formigamento se misturava à dor, e corpo esfriava.
Estava muito frio. É o que sentia. Estava ficando cada vez mais
gelado.
Alguém vinha em sua direção. Um homem alto, de roupa
escura. Ele não conseguia ver direito. Também, sua voz não saia.
Era como um sonho ruim, um pesadelo, daqueles que não se tem
controle. Álvaro tentava articular algum som. Precisava pedir ajuda
ao homem que se aproximava. Mas nada, nada saía.
O homem caminhou até ele, e ao seu lado, ajoelhou e pegou
sua mão. E com palavras de conforto, disse:
- Relaxa, ainda não chegou sua hora.
Ele já não distinguia a realidade do delírio.
Em instantes, viu luzes girando em volta, e toda uma
movimentação barulhenta ao seu redor. Era uma grande
ambulância vermelha. Paramédicos. Corpo de bombeiros.
E o homem? O estranho homem?
Não o viu de novo.
Estavam enrolando-o em alguma espécie de papel alumínio.
Que bizarro! Estava sobre uma maca. Estavam colocando-o na
ambulância...
“Blackout”.
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2. Ponto de Partida
Era uma segunda-feira. No Departamento de Investigação
da Delegacia de Polícia de São Paulo, a pressão e correria
começavam cedo. Muito trabalho, e uma equipe numericamente
abaixo da demanda.
Um experiente detetive, de nome Daniel Silva, recebeu em
sua mesa, mais uma “possível” tentativa de homicídio.
A primeira atitude de Daniel, na praxe de suas atribuições,
foi buscar antecedentes de Marcos. A placa denunciada, carro em
propriedade da mãe do suspeito, montava pelo menos oito multas
distribuídas entre excesso de velocidade, ultrapassagem em lugar
proibido, e uma conversão irregular, isso tudo em três meses.
Houve, no ano anterior, duas denúncias que foram
arquivadas, nas quais estaria supostamente envolvido com
agressão. Em uma delas, ele e mais três rapazes foram indiciados
por violência quase mortal a uma prostituta. Não houve reclusão,
apenas fiança.
Pelo perfil do acusado, a denúncia do acidentado Álvaro
ganhava uma boa base pra um inquérito. A falta do flagrante,
contudo, e principalmente a falta de testemunhas impactaram
bastante no interesse da polícia civil pelo assunto.
Fazendo um estudo mais profundo do passado de Marcos, o
Detetive Daniel concluiu se tratar de um jovem de classe média
alta, de caráter bastante questionável, mas bem apadrinhado.
Com bastante tristeza, percebia que era mais um daqueles
casos em que seria muito difícil levá-lo a um tribunal criminal.
Tinha inclusive parentes dentro da própria Polícia Federal, e do
Poder Legislativo.
A situação financeiramente debilitada da vítima, e o próprio
passado um tanto obscuro de Álvaro, entre outras coisas, e também
o fato de estar desempregado contribuíam negativamente nesse
aspecto.
Daniel sabia que comprar uma briga poderia trazer mais
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prejuízos que propriamente benefícios a Álvaro.
A conversa que teve com a “amiga” da vítima, Sara deixou
claro que estariam sozinhos. Pouca gente gostaria de ter Marcos e
sua poderosa família como inimigos, principalmente se fosse
apenas para ajudar terceiros. A polícia só tem força para agir,
nesses casos, quando há subsídio das pessoas envolvidas.
Havia uma pilha de papéis sobre sua mesa, e em uma
avaliação fria, preferiu focar sua atenção em outros casos onde
havia melhor chance se sucesso.
***
Não que tenha ficado precisamente aleijado. Podia andar
normalmente, embora tenha ficado com uma das pernas
ligeiramente menor. Segundo os médicos, por ter estado muito
próximo da morte, era mais importante trazê-lo de volta, de modo
que sua estética ficaria certamente para uma segunda ocasião,
quando estivesse totalmente livre de perigo, e que também,
certamente, pudesse pagar por ela, o que não seria responsabilidade
da saúde pública. Não naqueles dias, com seus hospitais de pronto
socorro abarrotados de acidentados ou doentes emergenciais
desprovidos de recursos financeiros.
Já podia contar uns dois meses do acidente. Álvaro estava
em forma, já de volta ao seu cotidiano, aos pequenos trabalhos
como “free-lance”, e a infindável busca por um emprego de
verdade. Ele ainda não tinha se dado conta de que algumas coisas
estavam mudadas. Ele agora mancava, e tinha cicatrizes no rosto
que o tornavam um modelo de pessoa com uma aparência bem pior
que antes. Tinha também um desvio de coluna que o mantinha
visivelmente corcunda. Talvez a pessoa não tivesse falado por
maldade...
No preciso horário da entrevista, lá estava ele. Pesquisou
sobre a empresa na internet, mandou um currículo, e logo em
seguida lhe chamaram para conversar. Era um belo prédio
comercial, um desses centros empresariais nas imediações da Faria
Lima, e a empresa que visitava, uma multinacional, ocupava