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66 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
crime, o de furto, isto é, a subtração de coisa alheia móvel.
Pelo princípio da absorção, ou consunção, se entre as normas que parecem
concorrer na incidência sobre o fato houver uma relação de meio a fim, conteúdo a
continente, parte a todo, fração a inteiro, o crime-fim, o crime-continente, o crime-todo
ou o crime inteiro absorverá o crime-meio, o crime-conteúdo, o crime-parte, ou o
crime-fração. Nesses casos, um dos crimes integra o outro, e por este é absorvido.
O crime de homicídio contém a tentativa, como fase normal ou conduta anterior
de sua realização, contendo, ainda, a lesão corporal, o disparo da arma de fogo –
contravenção penal – e o porte ilegal de arma.
O homicídio, por isso, absorve todos os demais delitos que sejam suas frações,
partes, conteúdos. Se o agente entra à noite na casa alheia para matar a vítima que
dormia só responderá pelo homicídio, que terá absorvido a violação do domicílio.
Também não responderá pelas lesões causadas, nem tampouco pelo disparo da arma e
seu porte ilegal.
Entre o homicídio e o crime de lesão corporal seguida de morte – ofender a saúde
ou a integridade corporal de outrem, resultando-lhe a morte – não há conflito aparente
de normas, daí que não se deve falar na incidência de qualquer princípio para resolver o
que não existe. Não há conflito, porque os fatos são absolutamente distintos.
Fato é, sempre, conduta, resultado e nexo – tratando-se de crimes materiais. Os
fatos são, essencialmente, distintos. O homicídio é um crime puramente doloso, ao
passo que a lesão corporal seguida de morte – indevidamente chamada de homicídio
preterintencional – é um crime preterdoloso.
No homicídio, há dolo de matar. Na lesão seguida de morte, o dolo é
completamente diverso: ferir. As condutas, portanto, são distintas. O resultado, nos
dois crimes, é o mesmo, mas os antecedentes, as condutas são absolutamente distintas,
diametralmente opostas, antagônicas.
Não se pode imaginar duas normas aparentemente ajustarem-se a
comportamentos que, nem de longe, se aproximam, porquanto contendo condutas
antagônicas.
Ao simples exame da conduta, o intérprete afastará qualquer possibilidade de
conflito aparente de normas, já que, concluindo conter ela o dolo de matar, não poderá,
jamais, imaginar a possibilidade de incidência do tipo de lesão corporal seguida de
morte. Se concluir pela existência de uma conduta dolosa, nem de longe passará por
sua cabeça estar diante de um homicídio culposo.
Homicídio - 67
1.2.11 Erro sobre a pessoa e erro na execução
O erro é uma falsa percepção da realidade. É próprio do ser humano e por isso o
Direito dele cuida, nos vários momentos em que surge no mundo jurídico. Há várias
espécies de erro: erro de tipo, erro de proibição, evitável e inevitável, erro sobre a
pessoa e erro na execução do delito. É destes dois últimos que se cuida neste item. Os
demais serão analisados adiante.
Quando o agente comete um homicídio laborando em erro sobre a pessoa que
desejava matar, há erro sobre a pessoa. Quando, por falha na execução do
procedimento típico, mata pessoa diferente da que pretendia, ou obtém, por acidente
ou erro, um resultado diferente do que desejava, há erro na execução.
Essas modalidades de erro – diferentemente do erro de tipo e do erro de
proibição – não isentam de pena, porque não se tratam de erros essenciais, mas
puramente acidentais.
1.2.11.1 Erro sobre a pessoa
Há erro sobre a pessoa quando o agente, desejando matar determinada pessoa,
erra sobre sua identidade ou sua identificação. Não há falha na execução, mas na
percepção da realidade. O agente, à noite, na escuridão, confunde-se e dispara contra
uma pessoa muito parecida com a vítima que pretendia matar.
O dolo abrange o fim, os meios e os efeitos secundários. Por isso, tendo o fim de
matar, nas circunstâncias em que agiu, o dolo abrange todos os efeitos secundários
alcançados pelo processo causal final desencadeado pelo sujeito.
Determina o § 3º do art. 20 do Código Penal que o agente, nessa hipótese,
responderá penalmente como se tivesse praticado o crime contra a pessoa que desejava
atingir, não contra quem efetivamente atingiu.
Se o agente queria matar uma pessoa e, por erro sobre sua identidade, acabou
por matar o próprio pai, não se considerará essa qualidade da vítima real, mas sim as
da vítima virtual. Não haverá agravante da pena. Se queria matar o próprio pai mas,
por equívoco quanto a sua identificação, acabou por matar o tio, irmão gêmeo do pai,
responderá como se a este tivesse matado, tendo, por isso, sua pena agravada nos
termos do art. 61, II, e, do Código Penal.
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1.2.11.2 Aberratio ictus
Aberratio ictus é o erro decorrente de um acidente ou da ineficiente utilização
dos meios escolhidos pelo agente para a realização do procedimento típico. Ocorre
acidente, por exemplo, quando terceira pessoa interpõe-se, inadvertidamente, na linha
de tiro, vindo a receber o projétil destinado a outrem. Também há aberratio ictus quando
o agente, por imperícia, erra o alvo pretendido e atinge outra pessoa, ou quando a arma
apresenta defeito, desviando-se o projétil da direção pretendida.
São duas as modalidades de aberratio ictus: com resultado único e com mais de
um resultado.
Na primeira hipótese, o agente, visando matar determinada pessoa, atinge e
mata apenas a outra, saindo a primeira absolutamente ilesa. Analisando-se
rigorosamente esse fato, dever-se-ia concluir pela existência de uma tentativa de
homicídio contra a pessoa que o agente desejava matar e um homicídio culposo em
relação à vítima atingida.
Não é essa, todavia, a solução preconizada pelo Direito. Manda o art. 73 do
Código Penal que, nesse caso, seja considerada a existência de um único homicídio
doloso. O agente responderá como se tivesse praticado um único homicídio doloso
contra a vítima virtual e não o homicídio realmente ocorrido contra a vítima real, que
foi, na verdade, culposo. A vontade da norma é clara, pois determina que o agente
responderá “como se tivesse praticado o crime” contra a vítima virtual.
A norma considera o dolo do agente – que era o de matar – e o resultado morte
efetivamente alcançado, embora de pessoa diversa, construindo, assim, uma ficção
jurídica.
Outra hipótese é a do agente, além de atingir a vítima que pretendia matar,
atingir também outra pessoa.
Podem ocorrer várias situações, cada qual com sua solução.
Pablo, desejando matar Carlos Alberto, atira e, além de atingir seu desafeto,
atinge também a pessoa de Rogério. A parte final do art. 73 determina que, nesses
casos, deve-se aplicar a regra do art. 70, que define o concurso formal de crimes. Desse
exemplo pode decorrer o seguinte:
a) Carlos Alberto e Rogério morrem. Há um concurso formal entre um homicídio
doloso e um homicídio culposo. A pena será daquele, aumentada de um sexto até
metade;
b) Carlos Alberto é morto e Rogério sofre lesões corporais. Concurso formal entre
Homicídio - 69
um homicídio doloso e um crime de lesões corporais culposas, com aumento da
pena do homicídio, também de um sexto até metade;
c) Carlos Alberto sofre lesões corporais e Rogério é morto. Deve-se considerar o
homicídio como se tivesse sido consumado contra a primeira vítima, embora esta
só tenha se ferido. É o que manda a primeira parte do art. 73. O agente receberá a
pena por homicídio consumado, aumentada de um sexto até metade;
d) Carlos Alberto e Rogério sofrem lesões corporais. Como o agente pretendia,
mas não conseguiu matar, houve uma tentativa de homicídio, formando-se um
concurso formal com uma lesão corporal culposa.
Ainda que não haja regra expressa, vale a observação do parágrafo único do art.
70, segundo a qual a pena não pode exceder aquela que seria aplicada segundo a regra
do concurso material.
Em todos esses casos, o segundo resultado, morte ou lesão da pessoa a que o
agente não visava, deve decorrer de sua negligência, configurando um segundo crime
culposo. Por isso, há concurso formal, pois, mediante uma só conduta, o agente realizou
dois crimes.
Se, todavia, em qualquer daquelas hipóteses, o agente tiver previsto o segundo
resultado e, em relação a ele, tiver-se portado com atitude interna de aceitação ou
anuência, estarão presentes desígnios autônomos, impondo a aplicação da pena
cumulativamente, como manda a última parte do art. 70.
1.2.11.3 Aberratio delicti
Aqui há desvio na execução em relação ao bem jurídico, não de uma pessoa para
outra. O agente, desejando matar alguém, atinge uma coisa material ou, ao contrário,
pretendendo danificar uma coisa, mata uma pessoa.
O agente, almejando quebrar os vidros de uma casa, atira contra eles uma barra
de ferro, vindo a atingir uma pessoa que, ferida na cabeça, morre. Há homicídio
culposo.
Outra hipótese. O agente, buscando matar uma pessoa, atira e erra, atingindo
apenas a vidraça de uma casa. Não existe o crime de dano culposo, por isso só
responderá, em relação à coisa, civilmente. No entanto, houve uma tentativa de
homicídio.
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Uma última. Querendo danificar a vidraça da casa do vizinho, o sujeito atira
uma pedra contra ela, acertando-a e também o rosto de uma pessoa que, caindo e
batendo a cabeça na calçada, morre em virtude das lesões sofridas. Há concurso formal
entre um crime de dano e um homicídio culposo.
É a solução adotada pelo Código Penal, simples e justa, para essas hipóteses:
“Quando, por acidente ou erro na execução do crime, sobrevém resultado diverso do
pretendido, o agente responde por culpa, se o fato é previsto como crime culposo; se
ocorre também o resultado pretendido, aplica-se a regra do art. 70 deste Código” (art.
74, CP).
Se nesses casos o agente não deseja o outro resultado, age, pois,
negligentemente com relação ao bem que não desejava atingir.
Claro que se tiver agido, em relação ao outro resultado, com dolo eventual,
aplicar-se-á a regra do concurso material de dois crimes dolosos, porquanto terão
decorrido de desígnios autônomos (art. 70, caput, parte final).
1.2.12 Erro de tipo
O erro, já foi dito aqui, é uma falsa apreciação da realidade. No dia-a-dia, muitas
vezes o ser humano realiza determinados comportamentos violadores de normas
jurídicas simplesmente por ter examinado a realidade de forma inexata. Essa
apreciação equivocada dos fatos verdadeiros leva-o a comportar-se sem a perfeita
consciência e, de conseqüência, com vontade viciada. Age errando.
Já se falou, linhas atrás, do erro sobre a pessoa e do erro na execução do
procedimento típico, os quais recaem sobre a identificação de uma pessoa ou na
execução de um fato pretendido com o desvio de sua vontade, de uma pessoa para
outra, ou de uma coisa para uma pessoa, ou desta para a coisa.
Os tipos legais de crime são compostos por elementos, ou partes constitutivas.
Elementos objetivos, normativos e subjetivos. No homicídio, um dos elementos é o
alguém. Ser humano nascido de mulher. Só há homicídio doloso quando uma pessoa
destrói, dolosamente, por ação ou omissão, a vida de alguém.
Erro de tipo é aquele que incide sobre um dos elementos constitutivos do tipo
legal de crime. Haverá erro de tipo, em relação ao crime de homicídio, quando o agente
errar sobre o elemento “alguém”, contido no tipo do art. 121 do Código Penal. Ele age
imaginando que está atirando não em uma pessoa, mas noutra coisa ou objeto, num
animal, por exemplo. O agente atira na pessoa por ter apreciado mal a realidade. Viu,
Homicídio - 71
numa pessoa, o que não lhe pareceu ser alguém. Pensou que fosse um animal ou
qualquer coisa, menos uma pessoa. Tivesse percebido que se tratava de uma pessoa,
não teria atirado. Todavia, não viu como deveria ter visto. Não percebeu que a sua
frente, na linha do tiro que disparou, havia uma pessoa. Imaginou que fosse tudo,
menos alguém. É evidente que errou.
Ora, quem assim age não tem consciência do fato que pratica. Ter consciência
do fato é ter consciência da própria conduta, do resultado que pode ser produzido, e ter
consciência do nexo causal entre conduta e resultado. Ter consciência do fato é saber
que, com a conduta, vai produzir o resultado.
Se o sujeito não tem consciência de que, com sua conduta, vai matar alguém,
porque desconhece que na linha do tiro que vai disparar encontrava-se uma pessoa,
não tem, ao agir, nenhuma consciência do resultado que vai causar.
Não sabendo que, com o tiro que vai disparar, irá matar uma pessoa, é óbvio
que também não tem vontade de matá-la. Logo, não está agindo com dolo, pois que
dolo é, sempre, consciência e vontade. Previsão do resultado e vontade de produzi-lo,
ou, pelo menos, aceitá-lo, se ele eventualmente ocorrer.
Por isso, quem age errando sobre o elemento alguém, do tipo de homicídio, age
sem dolo.
Se age sem dolo, deve-se entender, de conseguinte, que age culposamente, isto
é, por negligência, imprudência ou imperícia, causa um resultado lesivo não desejado,
mas que, sendo previsível, podia, nas circunstâncias, ter sido evitado se o sujeito
atuasse com o dever de cuidado objetivo.
É verdade que, na maioria das vezes em que o sujeito erra sobre ser alguém o
objeto ou coisa que atinge, poderia ele, com as cautelas devidas, evitar a morte
indesejada, todavia, sendo negligente, acaba por causá-la. Quando o erro poderia ter
sido evitado, isto é, quando o sujeito nele incorre por negligência, diz-se que agiu por
erro de tipo evitável.
O erro de tipo também pode ser inevitável, quando o resultado for imprevisível.
Erro de tipo inevitável é aquele no qual, nas circunstâncias em que o sujeito se
encontrava, qualquer pessoa normal também incorreria, mesmo utilizando todos os
procedimentos recomendados pela cautela e pelo bom-senso. Mesmo com toda atenção
exigível ao comum dos homens, qualquer um nele incorreria. Se isso acontecer, dir-se-á
que o sujeito age por erro de tipo inevitável.
Ora, viu-se que, agindo por erro sobre o elemento alguém, o sujeito age sem dolo,
mas remanesce a atuação culposa, negligente. Se, porém, o agente adotou todas as
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cautelas, observou o dever de cuidado objetivo, não foi negligente, nem imprudente, nem
imperito, e mesmo assim acabou causando a morte de alguém, só se pode concluir que,
naquelas circunstâncias, em que qualquer um também teria errado, não lhe era possível
alcançar a consciência do fato, isto é, de conduta e resultado. Não era possível antever o
resultado morte, por sua absoluta imprevisibilidade.
Sendo o resultado morte imprevisível, não era possível evitá-lo. Assim, sendo
inevitável o erro, também não haverá culpa, stricto sensu. Nesse caso, não há crime
algum, porque não tendo havido dolo, nem negligência, não há tipicidade.
Há, portanto, duas espécies de erro de tipo. O erro de tipo evitável – aquele em
que o agente erra sobre o elemento alguém, quando podia, com a devida cautela, com a
prudência exigida ao homem médio, tê-lo evitado – exclui o dolo. E o erro de tipo
inevitável – em que qualquer pessoa, mesmo adotando todas as cautelas, ainda assim
nele teria incorrido, por ter sido impossível, naquelas condições, antever o resultado
lesivo indesejado –, que exclui o dolo e a culpa, stricto sensu.
O erro de tipo está no art. 20 do Código Penal: “O erro sobre elemento constitutivo
do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se
previsto em lei.”
Exemplo. O caçador que, em área razoavelmente povoada, onde, pois, era
previsível a presença de pessoas, deveria, ao avistar o vulto contra o qual atirou
imaginando ser uma caça, ser mais cauteloso a fim de certificar-se de que a sua frente
não estava um ser humano. Ao matá-lo, age por erro de tipo evitável. Responderá por
homicídio culposo.
Outro exemplo. Está um homem praticando tiro ao alvo num clube, no qual todos
os cuidados são exigidos, com controle de entrada e saída de pessoas, fiscalização
rígida, enfim, num local onde os disparos de arma de fogo são efetuados dentro da mais
absoluta segurança. Um esporte legalizado, autorizado e fiscalizado rigorosamente pelo
poder público. No momento em que vai efetuar um disparo, contra o alvo de madeira a
sua frente, no stand próprio, uma pessoa surge, inesperadamente, na linha de tiro e
recebe o projétil, vindo a morrer. Não houve dolo, nem culpa, por ser imprevisível e
inevitável a presença daquele estranho, que burlara toda a segurança, e o resultado
morte. Houve erro de tipo inevitável, que, excluindo o dolo e a culpa, stricto sensu,
exclui a própria tipicidade. Não há crime.
1.2.13 Ilicitude
Homicídio - 73
A existência do homicídio não se reduz à verificação da tipicidade do fato. O fato
deve ser também ilícito, isto é contrapor-se à totalidade do ordenamento jurídico,
lesionando o bem jurídico. Deve o fato estar integrado numa plena e total relação de
antagonismo com a ordem jurídica em sua totalidade.
É que, nalgumas situações, especialíssimas, o mesmo Direito que protege os bens
jurídicos permite o ataque à vida humana, de modo que até mesmo é possível a prática
do homicídio com a permissão da ordem jurídica. Isso acontece porque em
determinadas circunstâncias, não há outro meio de proteger um bem jurídico, senão
com a realização de uma ação típica de homicídio.
Homicídios cometidos nessas hipóteses são homicídios lícitos, justificados. Apesar
de serem, a princípio, fatos proibidos pela norma penal incriminadora, podem,
entretanto, ser considerados justos, desde que constituam ações protetoras de bens
jurídicos também importantes.
São só duas as causas de justificação do homicídio, o estado de necessidade e a
legítima defesa.
1.2.13.1 Estado de necessidade
O estado de necessidade é uma situação de perigo para um bem jurídico, em
que uma pessoa, para salvá-lo do perigo, não tem outro meio senão causar a lesão a
outro bem jurídico18.
Quando o Direito não puder proteger um bem jurídico que esteja prestes a
sofrer uma lesão, pela presença atual de um perigo de lesão, deve permitir que seja
sacrificado outro bem, de valor menor ou relativamente igual, ainda que de um
inocente, desde que não haja outra saída. Há, portanto, dois bens como se, em rota de
colisão. Os dois em perigo de lesão. Um deles poderá ser sacrificado, se não for possível
ao Direito salvar os dois.
Até mesmo uma vida humana pode ser sacrificada, para salvar outro bem
jurídico? É possível matar alguém em estado de necessidade? Mesmo um inocente?
Para se encontrar a resposta, é preciso conhecer quais os pressupostos exigidos
para a caracterização do estado de necessidade. Sua definição está no art. 24 do Código
Penal:
18 cf. DAMÁSIO DE JESUS. Direito penal. Op. cit. v. 1, p. 322.
74 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
“Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de
perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo
evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era
razoável exigir-se. § 1º Não pode alegar estado de necessidade quem tinha o
dever legal de enfrentar o perigo. § 2º Embora seja razoável exigir-se o
sacrifício do direito ameaçado, a pena poderá ser reduzida de um a dois terços.”
Deve o intérprete extrair da norma os requisitos, objetivos e subjetivo, para a
verificação do estado de necessidade e de sua aplicabilidade ao homicídio.
Cuidando-se de homicídio, dentre os pressupostos contidos na norma, o
primeiro a ser examinado é o da inexigibilidade do sacrifício do bem em perigo, contido
na locução “cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se”. Em outras
palavras, só há estado de necessidade se os bens em rota de colisão guardarem, entre si,
uma relação de proporcionalidade valorativa que os situe num mesmo patamar. Assim,
só é possível reconhecer o estado de necessidade na conduta de alguém que mata outra
pessoa, quando o fizer para salvar outro bem jurídico de valor proporcionalmente
equivalente à vida que destruiu. Só haverá homicídio lícito por estado de necessidade,
se tiver sido praticado para salvar outra vida humana da destruição ou, no mínimo, de
uma lesão muito grave, daquelas bem próximas da própria morte. Não se pode
imaginar a justificação de um homicídio para salvar um bem material, ainda que de
valor muito grande. Nem a de vários e muito valiosos bens materiais, pois que, a vida
humana – o bem mais importante de todos – só pode ser comparada com outra vida,
ou com a integridade desta, não com qualquer outro bem.
Nem quando esse bem seja propriedade de uma pessoa muito importante, que a
ele dedique uma consideração maior que a dedicada a uma pessoa humilde. Não é justo
matar um simples gari, para salvar a vida do animal de estimação da primeira-dama do
país. Porque vida humana é sempre, para o Direito, o mais importante de todos os
bens.
Evidentemente, que na situação concreta, devem concorrer os demais requisitos
dessa excludente de ilicitude.
Deve haver uma situação de perigo atual, não causado dolosamente pelo agente
que não tinha o dever legal de enfrentá-lo e que, nas circunstâncias em que agiu, não
podia ter evitado a prática do homicídio.
Perigo é um trecho da realidade. É a situação concreta que antecede a lesão, a
qual reúne as condições indispensáveis à produção de um resultado lesivo, perceptível
pelo sujeito. O perigo deve ser concreto, real, e não apenas uma representação psíquica.
Homicídio - 75
Há de ser uma probabilidade concreta.
E o perigo deve ser atual. Deve estar acontecendo. Não pode ser um perigo já
passado, nem um perigo ainda futuro, nem tampouco iminente, mas necessariamente
atual. Se for passado, já não é perigo. Foi perigo. Já passou. O bem jurídico já terá sido
lesionado – e não há mais o que salvar –, ou não o foi por alguma razão, e já não corre
qualquer risco de o ser. Superado o perigo, não há autorização legal para a ação típica.
Se o perigo for apenas iminente, se está ainda prestes a instalar-se, equivale a
um perigo futuro, que pode inclusive não se atualizar, isto é, não se concretizar. É
preciso que se aguarde sua atualização, para então agir. Somente quando a lesão
tornar-se provável, convivendo com a situação de perigo, é que o sujeito pode atuar,
salvando o bem e sacrificando o outro.
O exemplo clássico de homicídio em estado de necessidade é o que acontece
com os perdidos na selva, nas cavernas, nos Andes, enfim, seres humanos isolados do
mundo, sem alimento, sem possibilidade de serem socorridos, instalando-se uma
situação de perigo para a vida de todos, que podem morrer de fome. Enquanto a fome
não atinge o limite máximo, em que começam a faltar as energias mínimas para a
sobrevivência, nenhum deles pode praticar homicídio para alimentar-se do corpo do
morto.
Ademais, a situação de perigo não pode ter sido provocada dolosamente pelo
agente. Se este tiver criado, intencionalmente, o perigo, não pode invocar a causa de
justificação. É justo. Se o sujeito criou, com consciência e vontade, a situação de perigo
para o bem jurídico, não pode, ao depois, para salvá-lo do perigo que provocou,
lesionar outro bem e, ainda, ter justificada sua conduta.
Se criou, culposamente, a situação de perigo, poderá ser amparado por essa
excludente. Tendo contribuído por negligência, poderá ter seu gesto justificado.
Outro requisito indispensável. O agente não pode ter o dever legal de arrostar
o perigo. Algumas pessoas, por força de lei, exercem atividades que são perigosas por
sua própria natureza. Policiais e soldados do corpo de bombeiros, enfermeiros,
médicos, em seu dia-a-dia profissional, estão sujeitos a se defrontarem com situações
de perigo para bens jurídicos, próprios ou de terceiros, e por isso não podem, em
momentos desses, lesionar outro bem jurídico, pois seu dever exatamente é o de
enfrentar situações perigosas.
A lesão do bem jurídico deve ser inevitável. Havendo uma possibilidade,
qualquer que seja, inclusive a fuga, de salvar o bem em perigo sem causar a lesão no
outro bem, esta deve ser evitada. Não será apenas porque há o perigo atual que o
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sujeito poderá matar alguém para salvar um bem valioso, ainda que outra vida humana,
quando lhe for possível, por outra maneira, salvar o bem ameaçado de lesão. Só quando
for inevitável, poderá ser praticado o homicídio.
O sujeito deve estar consciente da situação de perigo concreto e deve atuar
com a vontade de proteger o bem jurídico. Deve estar atuando conforme o Direito, daí
que não bastam os requisitos objetivos.
Se, porém, o agente, diante da situação de perigo para determinado bem
jurídico, ultrapassa os limites da excludente, matando uma pessoa para salvar um bem
de menor valor, sua conduta não será considerada lícita, porque não restou satisfeito o
requisito da “inexigibilidade do sacrifício do bem em perigo”. Nessas circunstâncias,
era exigível que ele deixasse perecer o bem e não se voltar contra uma pessoa,
matando-a. Não há estado de necessidade. Conquanto haja, nessas circunstâncias, a
presença de outros dos requisitos, manda a lei que a pena seja reduzida, de um a dois
terços, reconhecendo, assim, uma diminuição da culpabilidade do sujeito.
Na vida real, não é fácil a ocorrência de homicídio doloso em estado de
necessidade. As hipóteses clássicas, do náufrago na tábua de salvação, dos exploradores
de caverna, dos sobreviventes do acidente aéreo nos Andes, não acontecem
costumeiramente. Mormente hoje, num mundo globalizado, tais situações dificilmente
ocorrem.
Imagine-se uma situação de alvoroço num teatro, cinema ou estádio de futebol,
causada por um incêndio ou desmoronamento. Dezenas ou centenas de pessoas
procurando fugir do perigo, empurrando-se, uns querendo ultrapassar os outros no
rumo da única saída. As chamas, o calor, os escombros em movimento, os
desmoronamentos, tudo isso permite a instalação de uma situação perigosa. Uma
situação induvidosa de perigo atual. Penso que se alguém, nessas condições, matar
outra pessoa para salvar-se de uma lesão grave, ou da própria morte, impedindo, por
exemplo, que ela chegue, a sua frente, até a única porta de saída, que está prestes a ser
obstruída pelo fogo, com certeza estará agindo em estado de necessidade, desde que se
comprove a inevitabilidade da morte do outro.
O estado de necessidade, assim como qualquer excludente de ilicitude, só
ocorrerá quando estiverem satisfeitos todos os seus pressupostos, os quais devem ser
rigorosamente verificados. Havendo excesso, como adiante se verá, descaracterizada
estará a causa de justificação.
1.2.13.2 Legítima defesa
Homicídio - 77
A legítima defesa é a outra causa de justificação possível em casos de homicídio,
mais ocorrente na vida real.
É a repulsa a uma agressão injusta realizada contra um bem jurídico, com a
utilização moderada dos meios necessários. Diante de uma agressão atual ou iminente,
qualquer pessoa poderá atuar no sentido de proteger o bem jurídico e chegar até
mesmo a realizar um homicídio.
Sua presença só é verificável quando o fato realizar todos os pressupostos legais
insertos no art. 25 do Código Penal:
“Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios
necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de
outrem.”
É um direito do sujeito porque, ao agir em legítima defesa, está realizando a
vontade do Direito, que é proteger o bem jurídico agredido. Ao mesmo tempo, deve ser
justificado um homicídio nessa situação porque, se o Estado não está presente para
impedir a agressão ao bem jurídico, pode o indivíduo – o cidadão que, em sociedade,
criou o Estado para protegê-lo, e que falhou – retomar o poder-dever estatal e defender
o bem agredido.
Seria um Direito falido, ou não seria Direito, aquele que não facultasse ao ser
humano defender a vida ou a de seu semelhante, numa situação em que nenhuma outra
força é presente e capaz de defendê-la.
Toda causa de justificação exige a realização de determinados pressupostos. Aqui
não é diferente. Na norma do art. 25 do Código Penal, o julgador os encontra e deve
examinar, diante de um caso concreto de homicídio, se incidem sobre a totalidade do
fato. Se estiverem presentes, será um homicídio lícito. Não haverá crime.
Agressão injusta, atual ou iminente, a direito, próprio ou de outrem: eis o
primeiro requisito, que, apenas para a melhor compreensão do leitor, deve ser
decomposto.
Para existir legítima defesa um direito deve ser objeto de uma agressão.
Qualquer direito, qualquer bem jurídico. Vida, integridade corporal, saúde,
propriedade, liberdade, honra, são todos bens jurídicos. De quem quer que seja. Do que
vai repelir a agressão, ou de outra pessoa.
O que se deve entender por agressão? NELSON HUNGRIA responde que é
“toda atividade tendente a uma ofensa, seja ou não violenta”19. Outro grande mestre,
19 Comentários....., Op. cit. v. 1, p. 286.
78 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
DAMÁSIO, ensina que é “a conduta humana que ataca ou coloca em perigo um bem
jurídico”20. É, pois, um ataque ao bem jurídico, é o comportamento humano dirigido à
lesão de um bem jurídico. Só pode ser compreendida, portanto, levando-se em conta o
bem jurídico agredido.
Partindo da consideração sobre a natureza e as características de determinado
bem jurídico é que se pode verificar se ele foi atacado, ofendido, ou exposto a perigo.
Não se agride a liberdade individual ou a integridade corporal com ofensas verbais.
Contudo, a honra e a dignidade pessoal podem ser agredidas não apenas com palavras,
gestos, imagens ou representações teatrais, mas também por disparos de arma de fogo
ou queima de fogos de artifício, em frente à casa de alguém que atravessa um profundo
estado de tristeza e depressão, em razão de uma decepção amorosa.
A agressão que pode justificar a repulsa por meio de um homicídio deve ser um
ataque real e concreto a um bem jurídico. Uma ação ou omissão de uma pessoa, ainda
que utilizando um animal bravio, adestrado ou não, ou manipulando uma força natural,
que signifique a colocação do bem jurídico numa situação concreta de perigo de lesão.
Não é indispensável que a agressão seja uma ação ou omissão violenta, embora, na
prática, ela quase sempre seja. A omissão daquele que tinha o dever de impedir o
resultado, permitindo, pois, a ocorrência do perigo de lesão é, geralmente, um
comportamento não violento. DAMÁSIO dá como exemplo de agressão omissiva não
violenta à liberdade individual a recusa do carcereiro de libertar o preso beneficiado
com alvará de soltura.
Só há legítima defesa de agressão injusta. Injusta no sentido de ser contrária ao
Direito, ilícita, não necessariamente do ponto de vista penal. Não precisa ser um fato
típico e ilícito, o injusto penal. Pode ser tão-somente ilícito, desautorizado pelo
ordenamento jurídico. Um comportamento desconforme com a ordem jurídica estatal.
É que existem agressões lícitas, aceitas e adequadas socialmente, as quais, por
isso, não podem ser objeto de repulsa justificada. Agressão à liberdade imposta pelos
pais aos filhos menores, como castigos por transgressões a ordens razoavelmente
estabelecidas na convivência familiar, como, por exemplo, proibir a ida a determinados
lugares ou em determinadas ocasiões, não pode ser repelida sob o manto da legítima
defesa. Os chamados corretivos constituem fatos atípicos, por isso não proibidos,
porquanto aceitos e adequados socialmente.
Palmadas, leves agressões físicas a infantes, com exclusiva finalidade corretiva, 20 Direito penal, v. 1, p. 386.
Homicídio - 79
são ofensas absolutamente atípicas e, portanto, também lícitas, que não podem
autorizar a repulsa legítima.
A prisão em flagrante ou mediante mandado judicial expedido,
fundamentadamente, pela autoridade judiciária competente constitui agressão à
liberdade de ir e vir, porém justa. De conseqüência, não agirá sob o pálio da causa de
justificação aquele que, na iminência de ser preso, numa dessas situações, reage e mata
o executor da prisão.
Munido do respectivo mandado de demolição, o oficial de justiça pode, dentro dos
limites estabelecidos na ordem judicial, destruir a cerca, o muro, a edificação, não
constituindo seu comportamento uma agressão injusta ao patrimônio. É agressão, não há
dúvidas, mas é justa. Não é, portanto, autorizadora da reação lícita.
Além de injusta, a agressão deve ser atual ou iminente. Atual é a agressão
presente, que está acontecendo. Que já se iniciou e que, por isso, já constitui um ataque
ao bem jurídico, que já está sendo lesionado. Por isso pode ser repelida a fim de que
cessem seus efeitos, suas conseqüências.
Iminente é a agressão que está prestes a acontecer, que vai, imediatamente, em
instantes, tornar-se atual, presente. Não está lesionando o bem jurídico, mas já é a
ameaça concreta de lesão, o perigo de lesão, que pode ser evitado. A repulsa visa
impedir que ela se atualize. Não se poderia exigir da pessoa que esperasse a agressão
tornar-se atual, porque se assim fosse o perigo de lesão se tornaria ainda mais concreto.
Por isso, desde que a agressão já seja iminente, o Direito autoriza já a repulsa
conferindo, assim, maior proteção ao bem jurídico.
Se a agressão é já passada, não pode ser repelida, porque não mais existe. O bem
jurídico já foi lesionado e nada mais resta a fazer, senão procurar, quando possível,
evitar-lhe ou minorar-lhe as conseqüências. Não pode ser repelida a agressão que já
aconteceu, que se encontra apenas na memória. Não é mais um ente concreto. Foi. E o
Direito não poderia justificar um ataque a algo inerte, morto, incapaz de causar qualquer
lesão, até porque já a causou. Não mais causará. Seria a homenagem à vingança, que não
pode ser consagrada por um Direito moderno e humanitário.
Também não pode ser uma agressão futura. Aquela que só existe na mente das
pessoas, que não está acontecendo, nem prestes a ocorrer, mas constitui mera
expectativa, uma representação mental. Não pode alguém se antecipar, como se fosse
possível prever o futuro e matar aquele que, possivelmente, poderia agredir um bem
jurídico.
Diante, pois, de uma agressão dessas – injusta, atual ou iminente, a um direito,
80 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
próprio ou de outrem – o ser humano pode agir com vistas em sua repulsa. É a reação.
Esta, todavia, está, também sujeita à observância de determinadas limitações.
A repulsa deve ser executada com os meios necessários, utilizados
moderadamente. A defesa é, sempre, também um ato de força, normalmente violento e
também agressivo, por isso que o Direito impõe limites visando à busca, tão-somente,
da realização do que é justo, mas de uma justiça sobretudo humana e respeitável, que
se contenha dentro dos limites da pura necessidade de proteção do bem jurídico, nada
além disso.
Os meios de que trata essa norma permissiva não se referem exclusivamente aos
instrumentos empregados na defesa, mas devem ser entendidos, num primeiro
momento, em seu sentido mais amplo, incluindo, antes, o modo ou a maneira e a
forma como a reação é exercida, e depois, também, é claro, as armas ou mecanismos
utilizados para executar a repulsa. Querem dizer, portanto, como a defesa é realizada e
com que é executada. Dizem, pois, respeito à qualidade da defesa, em seu sentido lato,
e em seu sentido estrito.
Para considerar a necessidade, no sentido amplo, dos meios empregados pelo
defendente, deverá o julgador examinar a natureza do bem jurídico que é objeto da
agressão.
Conquanto possa ser exercida defesa legítima de qualquer direito, de qualquer
bem jurídico, o ataque repulsivo deverá ser avaliado também em sua qualidade, o qual
não se pode dirigir contra qualquer direito ou bem do agressor.
Deve a repulsa voltar-se para a ação agressiva, visando obstá-la. O fim da
defesa deve ser a reação ao ataque, não à pessoa que ataca. Legítima defesa não é
“licença para matar”, mas ordem para defender, autorização para repelir uma ação
agressiva e, apenas se necessário, matar. Somente quando necessário, quando não
houver outra saída, outro meio qualitativamente considerado, pode a reação do
defendente recair sobre a vida do agressor.
Se este utiliza um cão bravio adestrado para agredir a integridade corporal de
alguém, deve o defendente repelir a agressão matando o animal, e não matando o
homem que o açulou. Até porque o animal poderá continuar o ataque. A não ser
quando for impossível direcionar a reação exclusivamente contra o ataque, poderá ela
mirar a pessoa que domina a ação agressiva do animal, fulminando-a por via indireta.
Ao que agride a honra, com gritos e gestos ofensivos, não se repelirá com o tiro na boca,
matando-o para calá-lo. Mas será lícito esbofeteá-lo. E se ele continuar ofendendo, pode-
se continuar a repulsa. E se o ofensor reagir agredindo a integridade corporal? Aí a
Homicídio - 81
natureza da agressão já será outra, e o meio necessário, igualmente, deverá ser
diferente.
A necessidade dos meios, portanto, deve ser avaliada, no primeiro momento, no
sentido amplo, tendo em vista a natureza da agressão, do bem jurídico atacado e do
bem jurídico que vai ser atingido com a repulsa.
NELSON HUNGRIA aponta o caminho para, no segundo momento, o intérprete
verificar a necessidade dos meios defensivos, em seu sentido estrito. Isto é, para saber
se os instrumentos ou mecanismos utilizados foram, efetivamente, os necessários para
a repulsa: “A atualidade ou iminência da agressão é que serve de medida única à
necessidade da defesa.”21 A repulsa deve ser feita com o uso do meio necessário para
fazer cessar a agressão atual, ou para impedir que uma agressão iminente se torne
atual.
Fazer cessar a agressão atual ou impedir que a agressão iminente se torne
atual: essa a tarefa do defendente. O meio a ser usado deve ser o necessário para o
alcance de um desses fins.
Não será um meio aquém dessa necessidade, porque se o defendente utilizá-lo
realizará uma defesa ineficaz e o bem jurídico será, inevitavelmente, atacado. Não terá
havido defesa. O Direito será derrotado, com a vitória da agressão.
Não pode ser um meio além do necessário, porque aí haverá uma exacerbação
da violência, abrindo caminho para a execução de atos dominados por sentimentos
como o do ódio ou da vingança. O defendente não julga nem pune o agressor, mas
apenas deve proteger o bem agredido, por isso que não pode ir além da necessidade
tutelar. Quando o que repele a injusta agressão usa meio além do necessário, torna-se,
igualmente, um agressor injusto, porque impõe uma força repulsiva excessiva, a qual,
por sua qualidade ou quantidade, constitui outra agressão tão ilícita quanto a que
buscou repelir.
Quando, no caso concreto, o julgador defrontar-se com o exame do meio
empregado pelo que invoca a legítima defesa, deve, antes de exarar o seu
entendimento, perguntar: quais meios estavam à disposição do defendente?
Para responder à indagação sobre se o agente usou dos meios necessários, é
preciso antes indagar sobre quais deles estavam a seu dispor. Eram vários e ele
escolheu exatamente um dos que, por sua natureza, era além do necessário? Ou, apesar
21 Comentários... Op. cit. v. 1, p. 288.
82 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
de ser o meio além do necessário, era o único do qual podia dispor?
A necessidade dos meios está necessariamente vinculada à disponibilidade dos
meios. Por exemplo: Eduardo está na iminência de desferir um golpe de mão, no rosto
de Gustavo, de compleição física mais frágil que o agressor. Gustavo vê, a seu lado,
sobre a mesa, um revólver. Nada mais. Nem um pedaço de pau. Nem uma barra de
ferro. Nem uma faca. Nada, absolutamente nada. Está só e a seu dispor apenas o
revólver.
A princípio, é de se imaginar que usar uma arma de fogo para repelir uma
agressão manual seja um meio defensivo além do necessário. Tal raciocínio não é,
mesmo, desarrazoado, todavia, é de se analisar o conjunto do fato, com todas as suas
circunstâncias. O agressor é mais forte que o defendente. Este não tem, a sua
disposição, nenhum outro instrumento que não a arma de fogo. Noutras circunstâncias,
seria um meio além do necessário, todavia, não havendo outro menos gravoso, é o
necessário, porque aí o que importa é a necessidade da defesa, é a proteção do bem
jurídico injustamente agredido.
A norma que autoriza a defesa legítima não exige que entre agressão e repulsa
haja exata proporcionalidade. Fala apenas em necessidade e moderação.
Em seu Trattato di diritto penale italiano, MANZINI ensina que
“para medir a adequação ou demasia da defesa, não se deve fazer o confronto
entre o mal sofrido e o mal causado pela reação, que pode ser sensivelmente
superior ao primeiro, sem que por isso fique excluída a justificativa. O confronto
deve ser feito entre os meios defensivos que o agredido tinha à sua disposição e
os meios empregados. Se estes eram os únicos que in concreto tornavam possível
a repulsa da violência de outrem, não haverá excesso, por maior que seja o mal
sofrido pelo agressor.”22
Também não recomenda a norma que o agredido procure evitar, fugindo ou se
escondendo, porque, como está na lição magistral de NELSON HUNGRIA:
“A lei não pode exigir que se leia pela cartilha dos covardes e pusilânimes. (...)
Embora não seja um dever jurídico, a legítima defesa é um dever moral e
político que, a nenhum pretexto, deve deixar de ser estimulado pelo direito
positivo.”23
22 Apud HUNGRIA, Nelson. Comentários... Op. cit. p. 297.
Homicídio - 83
Os meios necessários devem, ademais, ser utilizados com moderação.
Além de limitar a defesa impondo a escolha, pelo defendente, dentre os meios
disponíveis, daquele necessário para fazer cessar a agressão atual ou para impedir a
atualização da agressão iminente, exige a norma que ele o utilize com moderação.
Moderação não é sinônimo de generosidade, mas de comedimento. Moderação
não é gentileza ou educação. Quer dizer suficiência. Diz respeito à quantidade da
defesa, e também deve ser interpretada em comparação com a quantidade da agressão.
Esta pode ser medida em sua intensidade e também em seu tempo de duração. Pode ser
mais ou menos intensa, e pode ser rápida ou duradoura.
A repulsa, portanto, para ser eficaz, deve corresponder à agressão em
intensidade e em duração, superando-a. Enquanto não cessa a agressão, a reação deve
continuar. Obstada a agressão, deve o defendente encerrar sua conduta reativa. A
moderação está relacionada aos conceitos de intensidade e extensão. Haverá
moderação no uso dos meios necessários quando a repulsa for de intensidade e
extensão suficientes para fazer cessar a agressão atual, ou aptas a impedir a atualização
da agressão iminente.
Claro que a defesa deverá ser um pouco mais intensa que a agressão e deve
durar até que a agressão termine. Não fosse assim, não seria eficaz. Todavia, se o agente
utiliza o meio necessário com intensidade excessiva ou se, mesmo depois de finda a
agressão, continua agindo, aí não haverá moderação. Aí surgirá o excesso no uso dos
meios necessários – adiante comentado –, que será intensivo ou extensivo,
descaracterizando a causa de justificação.
Evidente que aquele que se encontra na situação de defender um bem jurídico
injustamente agredido não está, por força das próprias circunstâncias, em plenas
condições de apreciar e discernir, com frieza e precisão absolutas, sobre a necessidade
do meio utilizado, nem tampouco de avaliar e controlar a intensidade e a extensão da
reação que vai imprimir. Por isso, ao julgador caberá uma avaliação objetiva e
ponderada de todas as circunstâncias do fato, para encontrar uma equação entre a
agressão e a repulsa dentro de parâmetros de razoabilidade, não de frieza matemática.
O último pressuposto da legítima defesa é o elemento subjetivo: o agente deve
ter consciência e vontade de agir conforme o Direito, protegendo o bem jurídico
agredido. Só é justa a destruição de uma vida humana quando seu destruidor tiver
atuado com consciência de que realiza o fim da norma jurídica e com a vontade de
23 Comentários... Op. cit. v. 1, p. 288.
84 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
proteger, repelindo a agressão a outro bem jurídico.
1.2.13.3 Legítima defesa da honra
Ainda se invoca, aqui e ali, a legítima defesa para justificar a prática de
homicídio contra a mulher que traiu o marido.
A legítima defesa busca a proteção do bem jurídico contra uma agressão injusta.
A traição e o adultério, com certeza, constituem comportamentos ilícitos do cônjuge. O
adultério é crime tipificado no Código Penal. São transgressões ao dever mútuo de
fidelidade (Código Civil, art. 1566, I).
Se se entender a infidelidade como agressão, só se poderá considerá-la como
voltada, exclusivamente, contra o direito à fidelidade. Não à honra. Esta pode, quando
muito, ser apenas afetada indiretamente pela conduta do infiel. Não sofre ataque
direto, como na ofensa verbal ou escrita, diretamente a seu titular ou por divulgação a
terceiros.
Assim, a primeira observação é a de que aquela ação do cônjuge é um ataque ao
direito à fidelidade, não à honra.
É induvidosamente uma agressão injusta, ilícita, porque a lei civil impõe, aos
cônjuges, o dever de fidelidade recíproca.
Sendo atual ou iminente, pode ser repelida, também não há dúvidas. Há os que
sustentam, nos casos de adultério ou de infidelidade continuada, a permanência da
agressão e, portanto, sua atualidade, pois o que se perpetua é, necessariamente, atual –
raciocínio não desarrazoado.
Até aqui, portanto, a legítima defesa parece apresentar-se. Todavia, legítima
defesa é, como já se disse, mais do que isso.
Qual o meio necessário para fazer cessar a agressão ao direito à fidelidade?
Matar o cônjuge infiel?
O direito à fidelidade deve ser compreendido em sua exata dimensão e também
em comparação com todos os bens e interesses tutelados pelo ordenamento jurídico.
Sua importância é menor, comparada com outros tantos bens, como a vida, a liberdade,
a integridade corporal, a dignidade e a liberdade sexuais.
Até mesmo a honra tem mais valor que o direito à fidelidade. O crime de
adultério é punido com detenção de 15 dias a seis meses. A injúria, o menos grave dos
delitos contra a honra, é punido com detenção de três meses a um ano, e multa.
Homicídio - 85
Ora, repelir uma agressão ao direito à fidelidade voltando-se o defendente
contra a vida do agressor, o bem jurídico mais importante de todos, é,
inequivocamente, usar um meio muito além, excessivamente além, do necessário. A
qualidade da agressão e a do bem jurídico atacado são, sem sombra de dúvidas,
inúmeras vezes inferiores à qualidade de uma repulsa dirigida contra a vida humana.
Dispõe o art. 1.571, III, do Código Civil, que a sociedade conjugal termina com a
separação judicial que poderá ser proposta, por qualquer dos cônjuges, imputando ao
outro “qualquer ato que importe grave violação dos deveres do casamento e torne
insuportável a vida em comum”. O dever de fidelidade está contido no art. 1.566, I, do
estatuto civil. Logo, verificada a infidelidade, tem o outro cônjuge o direito à separação
judicial.
Ademais, o direito à fidelidade nasce do casamento. Não é um direito inerente à
pessoa, mas derivado de um contrato entre duas pessoas. É um direito, assim dizer,
menor. Situá-lo no mesmo patamar do direito à vida é, induvidosamente, um equívoco
magistral.
Não pode ser reconhecida, portanto, num homicídio praticado para repelir uma
agressão a um direito dessa natureza, a indispensável presença do requisito da
necessidade do meio, em seu sentido amplo.
Falta, porém, ainda outro requisito: o elemento subjetivo. Quem mata nessas
situações não age com o fim de realizar o fim do Direito, o de proteger o bem jurídico
agredido, porque o Direito já sanciona tal situação com a autorização para a pretensão
da separação judicial.
Aquele que mata o cônjuge infiel age, na verdade, por puro egoísmo, movido
pelo sentimento de posse sobre pessoa, de dominação sobre o ser querido, por ciúmes,
não para proteger o bem próprio agredido.
Mata por vingança ou como castigo pela conduta alheia que não aceitou. Mata
para satisfazer um sentimento interno desprezível. Mata porque não pode conviver com
a realidade, nua e crua, da própria incapacidade de ser respeitado. Mata, na verdade,
para que os outros pensem que não é um derrotado. Mas é. E não será a morte de quem
quer que seja que o redimirá. Não tem, portanto, o cônjuge traído ou enciumado o
direito de matar. Não há, no Direito brasileiro, a chamada legítima defesa da honra.
Sua conduta típica é ilícita.
Poderá, nalgumas situações, o agente de um crime dessa natureza ser, todavia,
desculpado, se tiver agido por erro de proibição inevitável, adiante discutido, ou, então,
merecer reprovação menos severa, quando estiver sob o domínio de violenta emoção,
86 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
logo após injusta provocação da vítima, tema já abordado, linhas atrás, neste manual.
Contudo, um homicídio desses jamais será justificado. Não pelo Direito
brasileiro.
1.2.13.4 Questões diversas sobre legítima defesa
A embriaguez do agressor deve ser analisada com cautela, pois a agressão que
justifica a repulsa há de ser idônea, e não uma simples provocação.
Também a embriaguez do defendente deve merecer reflexão, porquanto deve
atuar com consciência e vontade e, para tanto, não pode ele encontrar-se em tal estado
de ebriez que importe na ausência desse elemento subjetivo.
Entre legítima defesa e estado de necessidade, há algumas diferenças que aqui
devem ser ressaltadas.
Na legítima defesa, deve existir agressão, ataque ao bem jurídico, oriundo de
uma pessoa, ainda que por meio de um animal, e a repulsa deve voltar-se contra o
agressor, preservando o bem do agredido. No estado de necessidade, exige-se a
situação de perigo, que pode resultar de um comportamento humano, de um animal ou
de um fenômeno natural, e o sujeito pode voltar-se contra qualquer bem, de qualquer
pessoa, sacrificando-o em benefício do bem em perigo.
Na legítima defesa, a agressão deve ser, necessariamente, injusta, ao passo que
no estado de necessidade a situação de perigo não precisa resultar de um ato ilícito, de
modo que podem existir duas pessoas simultaneamente em estado de necessidade,
cada qual tendo o direito de atuar contra a outra, para se salvar. É a situação dos dois
náufragos na tábua de salvação. Qualquer deles, para se salvar, pode sacrificar a vida do
outro.
Não há legítima defesa contra legítima defesa. Quem reage a uma agressão
injusta realiza uma agressão justa. Logo, o agressor inicial não pode repelir o ataque
praticado pelo defendente. Se o fizer, terá cometido crime.
Aquele que, ao repelir a agressão, não atingir o agressor, mas, por erro na
execução, matar pessoa diversa, mesmo assim estará em legítima defesa, porque o erro
não altera seu comportamento, não elimina a agressão ou a necessidade dos meios
utilizados em sua repulsa, nem tampouco a moderação com que foram utilizados.
O erro acidental não retira a licitude da conduta, pois que realizada com a
consciência dos fatos e o fim de realizar a vontade do Direito.
Homicídio - 87
Obstáculos, armadilhas, cercas eletrificadas, lanças pontiagudas em cercas,
presença de cães de guarda, enfim, engenhos utilizados para a proteção da propriedade
imobiliária, constituem, dentro dos limites adequados, exercício regular de direito.
Quando tais mecanismos de defesa são ativados, causando a morte do invasor, pode
haver legítima defesa, chamada pré-ordenada, desde que todos os pressupostos
objetivos e subjetivo da excludente estejam presentes.
1.2.13.5 O excesso
Como foi dito anteriormente, para praticar um homicídio justificado, deve o
agente realizar todos os pressupostos, ou requisitos, da causa de justificação.
Pode, entretanto, ocorrer que ele, ao atuar para a proteção do bem jurídico,
ultrapasse os limites estabelecidos pela norma permissiva, não cumprindo, assim,
rigorosamente a permissão legal. Haverá excesso, que descaracteriza a excludente. O
fato é ilícito.
O excesso pode ocorrer tanto nos casos de estado de necessidade quanto nos de
legítima defesa.
1.2.13.5.1 No estado de necessidade
No estado de necessidade, um dos pressupostos é a inevitabilidade do sacrifício
do bem jurídico. Se o agente, diante da situação de perigo, puder evitar a prática do
homicídio ou se tiver alguma possibilidade de agir de outro modo, não terá sua conduta
justificada. Se com o modo de agir para salvar de perigo o bem ameaçado empregar um
meio desproporcionado ou excessivo, terá excedido os limites da causa de justificação.
Também haverá excesso quando, apesar da inevitabilidade da conduta, o agente
atuar com intensidade maior do que a necessária para salvar o bem da situação de perigo.
Bastando ferir quem a sua frente obstruía a saída do local onde se instalara um incêndio,
o agente mata-o, desnecessariamente.
Nessas situações, o sujeito encontrava-se, inicialmente, numa situação fática de
perigo, porém, ao atuar para salvar o bem exposto, acaba por ultrapassar os limites da
justificativa, os quais devem ser avaliados, sempre, dentro de critérios de razoabilidade.
Excedendo-se o agente, desobedecendo aos ditames da norma que permitia a prática do
fato típico, sua conduta não será justificada. Se, inicialmente, estava em estado de
necessidade e, por essa razão, sua conduta típica seria considerada lícita, não será,
entretanto, em razão do excesso cometido, merecedor da justificação que a norma
88 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
pretendia lhe dar. O fato típico é ilícito.
Em qualquer caso, o excesso poderá ser doloso, culposo ou acidental, que serão,
adiante, comentados.
1.2.13.5.2 Na legítima defesa
O excesso na legítima defesa poderá ocorrer em razão da escolha, pelo agente,
dos meios empregados na defesa ou pelo uso imoderado dos meios necessários. Poderá
ser intensivo ou extensivo.
Quanto à escolha dos meios necessários, lato sensu ou stricto sensu, o excesso
será intensivo. Diante de uma agressão a determinado bem jurídico, o defendente
utiliza um meio de intensidade muito além do que seria necessário para obstá-la.
Por exemplo, quando repele uma agressão verbal a sua honra com um disparo
de arma de fogo contra o rosto do ofensor. À intensidade de uma agressão verbal à
honra respondeu com uma agressão violenta muito mais intensa e contra um bem
muito mais valioso. E o fez com um instrumento muito mais lesivo – a arma de fogo –
que o utilizado pelo agressor – a voz.
A intensidade da repulsa ultrapassou a necessidade, e a essa conclusão se chega
facilmente considerando-se a qualidade do bem jurídico atacado e a natureza da
agressão.
A repulsa deveria ter-se amoldado a essas duas categorias jurídicas, guardando,
com elas, um mínimo de proporcionalidade. Tanto o bem jurídico do agressor que será
atingindo com a repulsa, quanto a forma como esta se dará, deverão guardar, com o
bem agredido e a forma da agressão, uma relação de proporcionalidade razoável. Do
contrário, haverá excesso e, portanto, a repulsa não será legítima. Porque, repita-se, a
legítima defesa é puramente um instituto jurídico tutelar, protetor do bem jurídico, não
uma ordem legal para extravasar sentimentos internos, ainda que respeitáveis.
Há, no Direito pátrio, quanto aos meios escolhidos e à forma com que foram
utilizados, excessos intensivos de defesa, de duas naturezas.
Um, quando a repulsa se volta, desnecessariamente, contra um bem de valor
muito superior ao bem agredido. Matar, repelindo uma agressão verbal à honra. O
defendente poderia ter atacado outro bem, não a vida, destruindo-a.
O outro, quando a repulsa, embora voltada contra um bem do agressor que se
pode considerar o necessário para obstá-la, é realizada com instrumento de potencial
lesivo muito além do que era indispensável para obstar a agressão. Disparar um tiro de
Homicídio - 89
revólver contra um homem frágil que, simplesmente, empurrou o defendente, de
compleição física avantajada. Bastava um safanão, outro empurrão, mas ele escolheu
usar a arma de fogo. Como se viu, contra uma agressão corporal, a repulsa voltou-se
também contra o corpo do agressor, todavia, por meio do disparo da arma de fogo, é
excessiva, produzindo uma lesão muito mais grave do que o necessário para eliminar a
sofrida.
O excesso também poderá ocorrer em relação à utilização dos meios
necessários, adequadamente escolhidos. Selecionando o agente os meios necessários
para realizar a defesa, pode, entretanto, exceder-se, intensiva ou extensivamente, ao
executar o procedimento repulsivo. Aqui se cuida da quantidade da defesa, que pode
ser mais intensa ou mais extensa do que precisava ser.
Haverá excesso intensivo quanto à utilização do meio necessário, quando este é
usado de modo mais forte, mais grave, mais violento, mais eficaz do que o suficiente
para obstar a agressão.
Será extensivo o excesso quando a repulsa prolongar-se no tempo, depois de
cessada a agressão. No primeiro momento, o agente usa o meio necessário e consegue
obter o fim da agressão, mas, em vez de concluir a repulsa, nela continua, atuando contra
o bem daquele que já não mais agredia. Estende, portanto, no tempo, os atos
inicialmente defensivos.
É de todo óbvio que o defendente não está obrigado a formular um juízo
perfeito, exato, preciso, acerca da qualidade e da quantidade da defesa que deve
empregar para proteger o bem jurídico agredido. As circunstâncias em que vai atuar
afetam, necessariamente, sua capacidade de discernimento, por isso que ao julgador
não é dado realizar uma interpretação rigorosa quanto à necessidade dos meios e à
moderação em seu uso.
Havendo excesso, não há legítima defesa, porque seus pressupostos não estão,
integral e totalmente, ajustados ao fato. Haverá homicídio ilícito.
O excesso será doloso, culposo ou acidental.
1.2.13.5.3 Excesso doloso e excesso culposo
O excesso, no estado de necessidade e na legítima defesa, extensivo ou
intensivo, relativo à escolha dos meios, ou a seu uso, deve ser analisado
cuidadosamente pelo julgador, em toda a sua totalidade.
90 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
Não basta apenas a análise de sua objetividade, que é fundamental, mas, no
moderno direito penal inaugurado pelo finalismo e pelo princípio da culpabilidade, o
intérprete deve perquirir também sobre o conteúdo da vontade do agente que,
inicialmente, encontrava-se numa situação concreta em que tinha todas as
possibilidades de agir conforme o Direito.
Por que, então, terá havido o excesso?
São três as possibilidades: dolo, culpa stricto sensu, ou mero acidente.
Há excesso doloso de legítima defesa, em relação à escolha dos meios ou a seu
uso, intensivo ou extensivo, quando o agente, consciente do fato – da agressão, de sua
natureza, qualidade e quantidade, bem como da repulsa que realiza, com os meios que
escolhe e na qualidade e quantidade que imprime, e também do resultado que poderá
causar e do nexo causal –, tem vontade de, ainda assim, buscar a realização da defesa,
na forma ou da maneira e com as características todas que concebeu e executou.
Excede porque, conscientemente, escolhe o meio inadequado, além do
necessário para vencer a agressão, dirigindo seu ataque ao bem mais valioso do
agressor. Excede porque utiliza um instrumento desproporcionalmente mais vantajoso
que o adequado para superar e eliminar a atitude agressiva colocada a sua frente, ciente
de sua lesividade superior. Também quando exagera, deliberadamente, na intensidade
da força imprimida com a utilização de um meio adequado. Este será um excesso
intensivo.
ALBERTO SILVA FRANCO, o grande mestre, ensina que
“é indispensável, portanto, em face do vigente texto legal, verificar antes de mais
nada se o excesso foi doloso, ou melhor, se o agente, valendo-se da situação
vantajosa de defesa em que se achava, excedeu-se conscientemente, isto é,
‘escolheu ex professo o meio desproporcionado (preferindo este a outro menos
prejudicial do que podia dispor) ou quis o plus da reação, agindo por ódio ou
vingança (e não mais defensionis causa)’ (Nélson Hungria, Comentários ao
Código Penal, vol. I, t. II/300, 3ª ed.,1955). Neste caso, a vontade do agente não
se acomoda mais ao dado de subjetividade próprio da justificativa, ou seja, ao
animus defendendi, consciência e vontade da descriminante legal”.24
Inicialmente, o agente encontrava-se amparado pela excludente da ilicitude,
mas, conscientemente e com vontade, não atua conforme os limites estabelecidos pela
24 Código Penal e sua interpretação jurisprudencial. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. v. 1, p. 370.
Homicídio - 91
norma permissiva. Usa deliberadamente um meio além do necessário ou o faz sem a
moderação exigida. Porque assim quer.
No excesso doloso, apesar de buscar, inicialmente, a proteção do bem jurídico, o
agente, no curso do processo executório da repulsa até então lícita, afasta-se, logo após,
do Direito, deixando de simplesmente repelir a agressão injusta para, tanto quanto o
agressor inicial, atacar de modo injusto o bem jurídico alheio. Por isso que nesse caso
sua conduta será ilícita, injustificada, injusta, proibida. Responderá por homicídio
doloso.
Nessa situação, a circunstância de ter o agente estado, inicialmente, numa situação
de legítima defesa, em face da agressão injusta da vítima, deverá ser considerada uma
atenuante da pena na forma do art. 65, III, c, parte final, do Código Penal.
O excesso extensivo também impede o reconhecimento da causa de exclusão da
ilicitude. Nele, o agente que inicialmente encontrava-se em legítima defesa consegue
repelir, eficazmente, a agressão injusta. No entanto, sem que exista qualquer outro ato
agressivo, prolonga a reação, continuando o ataque que fora, a princípio, defensivo. Ao
fazê-lo, não estará mais defendendo nenhum bem jurídico, porque a agressão já se
findara, exatamente por sua repulsa. A defesa lícita, é certo, deve durar mais do que a
agressão, mas só um pouco mais. Deve-se exaurir logo em seguida à cessação da
agressão.
Não é possível imaginar defesa contra nenhuma agressão. O agente agiu
licitamente, até fazer cessar a agressão. Em seguida, torna-se um agressor injusto,
possibilitando até mesmo outra reação contra seu comportamento que, sendo injusto,
porque não é mais repulsa de uma agressão, pode, igualmente, ser repelido
legitimamente. É o que a doutrina chama de legítima defesa sucessiva: a do agressor
inicial contra o defendente inicial, que por continuar seus atos, torna-se, pelo excesso
extensivo, um agressor injusto.
São duas fases distintas. A primeira vai da agressão praticada pela vítima, até a
sua conclusão, por força da repulsa do agente. Encerrada a agressão inicial, exauriu-se a
legítima defesa. Se o então defendente prosseguir com os atos originariamente
repulsivos, inaugurará uma segunda etapa. Esta é ilícita porque não é reação legítima.
É ação primeira, injusta. É fato novo.
Os atos praticados enquanto havia a agressão original serão todos justificados.
Um tiro, dois tiros, não importa quantos, desde que necessários e suficientes para
obstar a agressão inicial, estarão acobertados pelo manto da legítima defesa. Todavia,
uma vez a vítima caída, inerte, incapaz de qualquer gesto, não pode mais o que,
92 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
inicialmente, protegia o bem jurídico, realizando o fim do Direito, realizar qualquer
outro ato agressivo. Se o fizer, estará inaugurando outro fato, porque o primeiro já fora
concluído. A ordem jurídica, o Direito, já cumprira sua missão. O bem jurídico fora,
pelas mãos do cidadão, realizado.
Daí para frente, se o agente resolver atacar o bem do agressor neutralizado, que
não mais representava qualquer perigo para qualquer interesse relevante, estará
cometendo um novo fato, que, ajustado a algum tipo, assim será considerado. Se matar,
será homicídio doloso.
Nessa situação, de excesso extensivo, nem se pode falar em reconhecer aquela
circunstância atenuante aplicável nos casos de excesso intensivo, porque a ação
executada não foi provocada por ato injusto da vítima caída, inerte.
Noutras situações, o excesso decorre tão-somente de imprudência, negligência
ou imperícia. É o excesso culposo.
É o excesso derivado da ausência da observância do dever de cuidado objetivo.
Nele, o agente não tem a intenção de ir além do necessário, nem de ultrapassar o
quantum defensivo que deve utilizar, mas, por não avaliar corretamente ou não
mensurar adequadamente sua maneira de reagir, acaba por lançar mão de um meio
desproporcional, dirigir seu ataque a um bem muito mais valioso do que o agredido, ou
utilizar o meio necessário de modo impróprio, imprimindo uma força mais intensa ou
extensa do que a indispensável para a supressão da agressão injusta.
Não há intenção de atuar em desconformidade com o Direito. Embora seja
previsível, o sujeito, no entanto, não realiza a previsão da totalidade do fato que está
praticando, com as conseqüências decorrentes de sua conduta, e por isso impulsiona
voluntariamente sua conduta com o fim, lícito, de proteger o bem jurídico,
ultrapassando, todavia, as determinações impostas pela norma permissiva. Sua reação
não será lícita, mas, como em todas condutas culposas, negligentes, merecerá
reprovação mais branda.
Responderá por homicídio culposo, quando seu excesso derivar de negligência,
imprudência ou imperícia.
Em conclusão: o excesso desnatura a excludente de ilicitude. Inicialmente
amparado por uma situação de fato que justificaria o estado de necessidade ou a
legítima defesa, o sujeito, no entanto, não realizando, integralmente, seus pressupostos,
por atuar além do permitido, não age conforme quer o Direito, por isso que sua conduta
é ilícita. O fato típico não é justificado. Ilícito continua sendo.
O excesso derivado de medo, surpresa ou perturbação psíquica, chamado
Homicídio - 93
excesso exculpante, é objeto de comentários que serão feitos no âmbito da
culpabilidade do sujeito, adiante.
1.2.13.5.4 Excesso acidental
O excesso, na legítima defesa como no estado de necessidade, pode não decorrer
de dolo, nem de culpa, stricto sensu, do sujeito ativo do homicídio, mas de uma
situação acidental, totalmente imprevisível, inevitável.
Tudo que não puder ser previsto não pode ser evitado. Se não pode ser evitado,
a ninguém pode ser atribuído, nem àquele que o tiver causado. Segundo o ordenamento
jurídico, os fatos típicos só podem ser atribuídos a alguém por dolo ou por culpa, stricto
sensu, não por mero nexo de causalidade.
Se o agente não quis exceder-se na repulsa, nem se excedeu por negligência, o
excesso a ele não pode ser atribuído, mas a uma força estranha, fortuita. Isso pode
acontecer, de verdade, no dia-a-dia.
1.2.14 Culpabilidade
Há crime de homicídio quando o fato praticado por um imputável ajustar-se
perfeitamente ao tipo – simples, privilegiado, qualificado ou qualificado-privilegiado –,
contrariar a ordem jurídica em sua totalidade e, ao mesmo tempo, merecer a
reprovação do Direito.
O fato típico ilícito, o injusto penal, não é, ainda, o crime. É tão-somente um
ilícito penal. É o injusto.
Só pode haver crime quando o injusto penal – fato típico ilícito – tiver sido
praticado por um imputável – capaz de entender a ilicitude e de determinar-se
conforme o Direito – e culpável.
Se inimputável por qualquer causa, o agente da conduta não poderá ser
apenado. Se for menor, receberá medida socioeducativa. Se maior, medida de
segurança.
Imputável o agente do injusto, que praticou conduta típica não justificada, pode
ser culpado ou não.
Culpabilidade é a reprovabilidade da conduta do sujeito imputável que, com
potencial consciência da ilicitude, podia, nas circunstâncias em que agiu, ter agido de
94 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
outro modo. É um juízo normativo de censura.
A culpabilidade – censurabilidade, reprovabilidade – é o terceiro elemento –
característica – do crime. Penso que o mais importante deles.
A todos os fatos ilícitos o Direito impõe uma sanção. Só para o crime ela é
diferente. Grave, severa. Suprime a liberdade, bem maior, ainda que por tempo certo.
Da sanção penal, ainda que a só restritiva de direitos ou multa, decorrem profundas
conseqüências. A infâmia, ainda que não seja pena legal, é pena social. Má-fama. O
estigma de criminoso, delinqüente, ausente na sentença penal condenatória, não se
apaga. Adere até ao espírito do condenado.
Crime não é, portanto, um ilícito qualquer. Não é um simples fato descrito em
norma legal que lesiona ou expõe a perigo de lesão um bem jurídico. Todos os fatos que
contrariarem a vontade da sociedade expressa na norma e lesionarem um bem
importante são ilícitos. Mas nem por isso têm, como conseqüência, a supressão da
liberdade, nem a pecha de crime. Criminoso ou delinqüente é o agente de um ilícito
diferenciado. Não o de qualquer comportamento contrário ao Direito, mas daquela
conduta que vai merecer, de toda sociedade, a repulsa mais grave, a censura mais
gravosa, a consideração mais reprovável.
Segundo o ordenamento positivo, a conseqüência jurídica de um
comportamento ilícito, lesivo, será sempre a reparação do dano causado, do prejuízo
sofrido. Se, porém, esse ilícito for um crime, não bastará a indenização, pois que o
criminoso deverá sofrer a pena criminal. Perder a liberdade, em regra.
Excepcionalmente continuará livre, indo e vindo, mas não livre do estigma, do sinal, da
marca indelével.
O que distingue o crime dos demais fatos ilícitos é o plus que só ele tem: a
culpabilidade.
Crime, por isso, não pode ser apenas o fato ilícito que se amolda a um tipo,
porque nele há algo mais, a culpabilidade.
Haverá culpabilidade quando o agente do homicídio tiver agido com, pelo
menos, a possibilidade de conhecer a ilicitude de seu comportamento e em
circunstâncias tais que dele possa se exigir comportamento diverso do que praticou.
Culpabilidade, pois, é: consciência, ainda que só potencial, da ilicitude e exigibilidade
de conduta diversa. São dois elementos normativos. Dependem, pois, da valoração
feita pelo julgador acerca de sua existência, quando do exame do fato praticado pelo
agente.
Ausente um dos dois elementos da culpabilidade – potencial consciência da
Homicídio - 95
ilicitude e exigibilidade de conduta diversa –, o fato será desculpado, porque crime não
haverá, devendo o agente ser absolvido, porque não é merecedor de qualquer sanção
penal. O fato é típico de homicídio, é ilícito, o dano deverá ser reparado, mas a sanção
penal não será imposta.
O Código Penal brasileiro definiu algumas situações nas quais um desses
elementos da culpabilidade estão ausentes, chamando-as, a doutrina, de causas de
exclusão da culpabilidade ou dirimentes. Também são denominadas excludentes da
culpabilidade. Estão contidas em normas penais exculpantes. As que se aplicam ao
homicídio, doravante examinadas, são as seguintes: o erro de proibição inevitável, a
legítima defesa putativa, o estado de necessidade putativo e a coação moral irresistível.
A doutrina construiu as chamadas causas supralegais de exclusão da
culpabilidade – a inexigibilidade de conduta diversa e o excesso exculpante de legítima
defesa –, que também serão objeto de estudo.
Realizando os pressupostos de uma dessas causas, o agente de um homicídio
ilícito não comete crime, porque o fato não será culpável, apesar de injusto. Será
absolvido.
1.2.14.1 Erro de proibição
Já se falou dos erros acidentais – sobre a pessoa e na execução – e também do
erro de tipo. O erro de proibição, diferentemente, é aquele que vai incidir sobre a
ilicitude do fato, sobre a proibição.
Só pode merecer reprovação penal aquele que ao realizar o injusto tenha
consciência, pelo menos potencial, de sua proibição.
Ter consciência é apreender, ter consigo, assenhorear-se do conhecimento de
alguma coisa. É ter penetrado em suas entranhas, desvendando suas características,
todas as suas particularidades. É conhecer, é saber, é discernir. É dominar.
Ilicitude é a relação de antagonismo entre um fato típico e todo o ordenamento
jurídico. É a relação de contrariedade do fato com o Direito.
Potencial é o que exprime a possibilidade de algo.
Potencial consciência da ilicitude é a possibilidade de se conhecer que o fato é
contrário ao Direito, ilícito, proibido, colide com a ordem jurídica.
Para que se possa reprovar a conduta de alguém, é necessário e indispensável
que ele, quando a realizou, tivesse, pelo menos, a possibilidade de saber que seu
96 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
comportamento era proibido. Se não lhe fosse possível atingir esse conhecimento, não
tinha, então, nenhuma razão para deixar de realizar a conduta.
Ter consciência da ilicitude é, portanto, saber que o fato que vai praticar é
proibido.
Quando o sujeito tem consciência da proibição que recai sobre sua conduta, e
mesmo assim a realiza, deve ser reprovado. É culpado porque agiu com consciência real
da ilicitude. Também será culpado quando tinha a possibilidade de conhecer a
proibição, mas, por displicência, por leviandade, descuido ou negligência, não se
esforça para alcançar aquela consciência. É culpado também, em menor grau é claro,
porque agiu com potencial consciência da ilicitude. Podia ter percebido a ilicitude de
seu ato, mas não se esforçou para tanto.
Não se deve confundir ignorar a lei com desconhecer a ilicitude. Lei é a norma
escrita. Ilicitude é a relação de contrariedade entre um fato e a totalidade do
ordenamento jurídico. É possível conhecer a lei e ignorar a relação de contrariedade
entre um fato e o Direito. O desconhecimento da lei não será excludente da
culpabilidade, mas o da ilicitude, sim.
O desconhecimento da ilicitude pelo agente imputável só pode decorrer de erro
que ele realiza ao apreciar a situação em que se encontra.
O erro de proibição está previsto no art. 21 do Código Penal: “O
desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável,
isenta de pena; se evitável, poderá diminuí-la de um sexto a um terço.”
Tratando-se de homicídio, o agente deve ter incidido num erro sobre a
proibição, imaginando que, nas circunstâncias em que se encontrava, era-lhe permitido
matar a vítima.
Haverá erro de proibição quando o agente imaginar a existência de uma
excludente de ilicitude não contemplada no ordenamento jurídico. Também há erro de
proibição quando o sujeito não tem compreensão perfeita acerca dos limites de uma
causa de justificação, errando sobre a necessidade dos meios ou sobre a moderação,
exigidas para a configuração da legítima defesa, por exemplo.
Pode estar agindo por erro de proibição o homem rude, nascido e criado numa
pequena cidade, em quem foram introjetados valores culturais retrógrados, machistas,
dentre os quais o de que “a honra do marido ultrajado será lavada com o sangue da
mulher adúltera” e que, encontrando sua esposa nos braços do amante, mata-a por
acreditar que está em legítima defesa da honra.
Homicídio - 97
Também poderia existir erro de proibição na prática da eutanásia, quando o
sujeito mata o velho pai, a seu pedido, por imaginar que tal comportamento seja lícito.
Para ter sua culpabilidade excluída, entretanto, deve ser um erro absolutamente
invencível, inevitável, no qual qualquer pessoa que se encontrasse nas mesmas
circunstâncias em que estava o agente também incorreria. Somente o erro de proibição
inevitável exclui a culpabilidade.
O erro de proibição é evitável “se o agente atua ou se omite sem a consciência
da ilicitude do fato, quando lhe era possível, nas circunstâncias, ter ou atingir essa
consciência” (parágrafo único do art. 21 do Código Penal), hipótese em que terá
reconhecida em seu favor a diminuição da pena, por ter menor culpabilidade. É que, na
verdade, agiu sem consciência da ilicitude. Não pode ser equiparado ao que agiu com
consciência da ilicitude. Como poderia, entretanto, ter alcançado aquela consciência e
não o fez, por displicência ou leviandade, por isso será reprovado menos severamente.
É dos mais intrincados problemas para o julgador. Não basta que o réu declare,
em juízo, ter praticado o fato por o ter imaginado lícito, ou não proibido. Nem que a
defesa invoque a dirimente para obter a exclusão da culpabilidade.
O reconhecimento do erro de proibição deve ser feito com base na compreensão
total do fato concreto, mas também na consideração sobre as características pessoais,
inclusive históricas, do agente, para que se possa concluir pela real existência de erro. A
culpabilidade é do sujeito, mas pelo fato que praticou, daí que ambos, fato e agente,
devem ser objeto da análise do julgador.
Tão ou até mais difícil quanto descobrir se, efetivamente, o agente atuou em
erro de proibição, será qualificar o erro, descobrir se era ou não evitável.
São ambos juízos de valor normativo. O julgador deve ter grande sensibilidade
jurídica e muito maior senso de justiça, porque estará exarando uma decisão sobre um
fato praticado por um homem. Fato e homem serão avaliados. O fato em toda sua
extensão e profundidade, com todas as suas circunstâncias. O homem, igualmente, em
todo seu caráter e observando a sua história de vida.
O Direito, é certo, exige de todos certo grau, mínimo ou adequado, de
compreensão da vida, da realidade, das normas sociais e jurídicas e, de conseqüência,
uma concepção, ainda que apenas profana, do justo e do injusto, mas não se deverá
querer enquadrar todos num esquema inflexível de comportamento médio normal,
como se fosse possível amoldar qualquer indivíduo a determinado esquema ideal de
pessoa comum.
A conduta do indivíduo, especialmente aquela típica ilícita, deverá ser aferida,
98 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
no momento do exame da culpabilidade, com o maior cuidado possível, tendo em conta
não apenas todos os seus antecedentes causais e psicológicos, mas, fundamentalmente,
as características pessoais do sujeito, sua história de vida, as quais exercem enorme
influência sobre suas decisões.
Descobrir se uma conduta foi ditada por erro sobre a relação de antagonismo
entre fato e Direito e, principalmente, discernir sobre sua evitabilidade, é enigma que
só um julgador humano pode decifrar.
A obediência hierárquica é uma espécie de erro de proibição, definida no art. 22
do Código Penal: “Se o fato é cometido (...) em estrita obediência a ordem, não
manifestamente ilegal, de superior hierárquico, só é punível o autor (...) da ordem.”
O sujeito recebe uma ordem que, a seu ver, é legal, quando não era, e pratica um
fato típico. Deve ser uma ordem não manifestamente ilegal, do superior hierárquico.
Poderia um soldado que, atendendo a uma ordem de seu superior hierárquico, matasse
o fugitivo, ser desculpado com base nessa dirimente.
Outras espécies de erro de proibição são a legítima defesa putativa e o estado de
necessidade putativo, abordados a seguir.
1.2.14.2 Legítima defesa putativa
O legislador brasileiro colocou no art. 20 do Código Penal – encimado pela
rubrica “erro sobre elementos do tipo” – as chamadas descriminantes putativas, no §
1º, assim: “É isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias,
supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. Não há isenção de
pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo.”
A inserção das descriminantes putativas no artigo que trata do erro de tipo é
responsabilidade dos redatores da Reforma Penal de 1984, adeptos da teoria limitada
da culpabilidade.
Segundo essa teoria, quando o agente erra sobre um pressuposto fático de uma
excludente de ilicitude, haverá erro de tipo, que exclui o dolo, se evitável, e também a
culpa, se inevitável. Daí que, sendo evitável o erro, restaria perfeito um crime culposo.
Por isso, a colocação do conceito de descriminantes putativas no artigo que trata do
erro de tipo que, como já se viu, exclui, mesmo, o dolo.
Penso, entretanto, que, apesar da colocação topográfica no art. 20, as
descriminantes putativas são, sempre, espécies de erro de proibição, filiando-me,
portanto, à teoria extremada da culpabilidade, defendida por WELZEL, MAURACH,
Homicídio - 99
ARMIN KAUFMANN, MUNHOZ NETO, HELENO FRAGOSO, HEITOR COSTA
JÚNIOR, LUIZ LUISI, LEONARDO LOPES, WALTER COELHO e tantos outros.
O que é descriminante putativa?
É uma excludente de ilicitude irreal, imaginária, que só existe na mente do
agente, em virtude do erro que ele comete ao apreciar a realidade. Fale-se aqui de uma
delas, a legítima defesa putativa.
Para existir legítima defesa, deve haver uma agressão injusta, atual ou iminente,
a qualquer direito.
Essa agressão, portanto, é pressuposto fático da legítima defesa. Sem ela, não
pode haver reação lícita.
Se o agente erra ao apreciar a realidade, supondo a existência de uma agressão,
pode convencer-se de que será lícito repeli-la, ao amparo da excludente do art. 25 do
Código Penal. Porque vê, onde não existe, uma agressão injusta, atual ou iminente,
reage e mata o imaginado agressor.
É o caso do que vê um antigo desafeto – que já o agredira dias atrás – levantar-
se nervosamente da cadeira onde estava sentado, levando à mão à cintura, gesto
idêntico ao do que vai sacar uma arma de fogo. No instante seguinte, vê o inimigo
andando rapidamente em sua direção. Imagina que está sendo vítima de uma agressão
iminente. Reage matando-o. Morta a vítima, descobre-se que nenhuma arma ela
portava e, em sua mão, é encontrado o lenço que estava tirando do bolso, no momento
em que recebeu o tiro.
O sujeito atuou com a convicção plena de que se encontrava numa situação de
legítima defesa. Mas não estava. Errou ao apreciar o fato criando, na mente, a idéia de
que estava sendo agredido. Se o seu desafeto estivesse, realmente, prestes a sacar uma
arma, a reação seria lícita. Mas agressão não houve. Apenas foi imaginada pelo sujeito,
por um erro que, para isentá-lo da pena, deve ser daqueles plenamente justificáveis
pelas circunstâncias.
Essa é a legítima defesa putativa, imaginária. Só existe na cabeça do agente. Não
é legítima defesa.
Pois bem, quando o sujeito disparou aquele tiro, agiu dolosamente? A teoria
limitada da culpabilidade entende que não, pois considera que, nesse caso, houve erro
de tipo, que manda excluir o dolo.
Examine-se com mais cuidado a conduta desse agente. Evidente que ele errou
imaginando a existência da agressão, que era nenhuma. Em sua mente, porém, ela
100 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
existia, fruto de seu erro.
Ora, em que isso afeta a presença do dolo? O dolo está no interior do tipo. No
homicídio, é seu elemento subjetivo. No fato, ele está na cabeça do agente. Está na
conduta. O dolo consiste na representação do resultado morte e na vontade de, com a
conduta, produzi-lo, ou em sua aceitação, se ele acontecer.
Quem repele uma agressão inexistente matando o que supunha ser o agressor
age, é de todo óbvio, com dolo. Logo, este não pode ser excluído. Sua conduta não deixa
de ser dolosa em virtude do erro em que incorrera. O que o erro afeta é exatamente a
consciência do agente, impedindo que ele pudesse conhecer a realidade – a de que não
existia agressão nenhuma. Soubesse da realidade, não teria reagido. Só reagiu por
desconhecê-la.
O erro não incidiu sobre a vontade de realizar o tipo de homicídio. Incidiu, antes,
sobre a consciência do agente. Não a consciência do fato típico que iria realizar, mas a
consciência sobre o caráter ilícito do mesmo fato. É erro sobre a ilicitude e não sobre
elemento constitutivo do tipo legal de crime. É erro de proibição, portanto.
É só perguntar: o agente, ao imaginar a existência da agressão e disparar o tiro
contra aquele que supunha vir em sua direção com um revólver, age sem previsão do
resultado morte? Ou age sem vontade de matar? Ou age acreditando que não poderia
matar? É de toda obviedade que age com dolo.
Por isso, a teoria extremada da culpabilidade, que considera as descriminantes
putativas sempre um erro de proibição, é a correta. Não é porque o legislador as
colocou no mesmo artigo que trata do erro de tipo que elas poderão ser erro de tipo. A
legítima defesa putativa é erro de proibição, porque quem mata supondo a existência de
um pressuposto fático da legítima defesa – a agressão, por exemplo – age
inequivocamente com dolo de matar, porém, sem a consciência da ilicitude.
O erro do legislador não é capaz de, ainda que esta tivesse sido sua vontade,
transformar um erro de proibição num erro de tipo.
Para incidir essa dirimente, é indispensável que o erro seja daqueles inevitáveis.
Em que qualquer pessoa, nas mesmas circunstâncias, incorreria. Não será toda vez que
alguém levar a mão à cintura, que um outro poderá nela atirar, por achar que tal gesto é
uma agressão. O conjunto das circunstâncias deve justificar o erro.
Se o sujeito, ao apreciar os fatos, erra por negligência, por leviandade, por
displicência ou descuido e repele uma agressão inexistente, sua conduta não será
desculpada, porque, se tivesse atuado com a prudência e a cautela exigidas a todos,
poderia ter evitado o erro e, portanto, não teria agido.
Homicídio - 101
Nesse caso, haverá culpabilidade, porém menor. É que ele agiu sem consciência
real da ilicitude, mas havia possibilidade de conhecê-la. Há, portanto, potencial
consciência da ilicitude, e por isso, há culpabilidade, há crime.
Manda a norma do § 1º do art. 20 que, nessas situações, o agente seja punido
com a pena do crime culposo. Foi outro equívoco do legislador, inspirado pela teoria
limitada da culpabilidade. Mandou punir um crime doloso com a pena do crime
culposo. Foi a forma que escolheu para, na prática, punir menos severamente aquele
que é menos culpado, mas o correto teria sido, como fez no art. 21, determinar a
diminuição da pena. A solução, apesar de equivocada, é mais benéfica para o acusado,
pois a pena máxima do homicídio culposo é menor que o redutor máximo previsto para
o erro de proibição.
Haverá legítima defesa putativa não só quando o agente tiver imaginado a
existência de uma agressão. Também quando seu erro incidir sobre a injustiça dessa
agressão. Vendo, a distância, um homem levantar a mão para desferir, numa criança,
um golpe, supõe o agente que está diante de uma agressão injusta e, por isso, reage
atirando contra ele. Verifica-se, depois, que era o pai do menor, aplicando-lhe uma
simples palmada.
Nesse caso, havia uma agressão, porém, justa, mas o agente errou a seu
respeito, supondo que o pressuposto da legítima defesa existia, autorizando a repulsa
que empregou.
Demonstrando-se que tal erro era plenamente justificado pelas circunstâncias, o
agente será desculpado, por não ter qualquer possibilidade de conhecer a ilicitude de
seu gesto. Se tiver laborado em erro evitável, por descuido, terá sua culpabilidade
diminuída, apenado com a pena do homicídio culposo.
Evidente que, para incidir a dirimente ou a diminuição da culpabilidade, o
agente deve ter, efetivamente, errado sobre o pressuposto fático da legítima defesa e,
ademais, realizar seus outros elementos caracterizadores: repulsa com os meios
necessários, moderadamente.
1.2.14.3 Estado de necessidade putativo
Haverá homicídio inculpável por estado de necessidade putativo se o agente
errar sobre o pressuposto fático que justifica a conduta necessária: a situação de perigo
para um bem jurídico. Se imaginou o incêndio no teatro, o desmoronamento ou o
desabamento da arquibancada no estádio de futebol, sendo plenamente justificado seu
102 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
erro, do qual decorreu o homicídio que praticou, desde que presentes os demais
requisitos do estado de necessidade real, será igualmente excluída sua culpabilidade, ou
diminuída, se o erro decorreu de apreciação negligente.
1.2.14.4 Coação moral irresistível
A culpabilidade estará presente não apenas quando o sujeito tinha consciência
da ilicitude de sua conduta, ou quando lhe era possível alcançá-la. A potencial
consciência da ilicitude é apenas um dos elementos da culpabilidade.
Para que o imputável seja considerado culpado, censurado, reprovado pelo que
fez, é indispensável que, nas circunstâncias em que se encontrava, tivesse a
possibilidade de comportar-se de acordo com o Direito. Essa possibilidade de agir de
modo diferente do que agiu é outro juízo valorativo que o julgador fará acerca da
conduta do agente, denominada exigibilidade de conduta diversa.
O Direito exige de todos os indivíduos, em circunstâncias normais, que atuem
conforme as normas, cumprindo seus mandamentos. FRANCISCO MUÑOZ CONDE
explica:
“Em princípio, o ordenamento jurídico fixa uns níveis de exigência mínimos, que
podem ser cumpridos por qualquer pessoa. Fala-se, nesses casos, de uma
exigibilidade objetiva, normal ou geral. Além dessa exigibilidade normal, o
ordenamento jurídico não pode impor o cumprimento de suas determinações.
(...) O direito não pode exigir comportamentos heróicos, ou, em todo caso, não
pode impor uma pena quando, em situação extrema, alguém prefere realizar
um fato proibido pela lei penal a ter que sacrificar sua própria vida ou sua
integridade física.” 25
No art. 22, o Código Penal brasileiro prevê uma das hipóteses em que, por não
haver a exigibilidade de conduta diversa, deve ser excluída a culpabilidade. É a
chamada coação moral irresistível: “Se o fato é cometido sob coação irresistível (...) só
é punível o autor da coação.”
O agente realiza um fato típico e ilícito, com consciência de sua ilicitude, mas
sob uma força moral a que não pode resistir. Cuida-se aqui de coação moral, não a
coação física que, na verdade, atua de modo extremo sobre a vontade do sujeito,
anulando-a por completo. Na coação física absoluta, não há conduta, por faltar
25 Teoria geral do delito. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1988. p. 161-162.
Homicídio - 103
vontade. Nem típico o fato é, porque este só existirá se houver conduta voluntária.
Sob coação moral há vontade, ainda que viciada mas, agindo o sujeito sob seu
domínio, realiza um comportamento, uma ação ou uma omissão, voluntariamente.
Realiza um movimento corporal ou dele se abstém conscientemente e com a vontade
dirigida a um fim que, na verdade, não era o que ele desejaria ter realizado, mas que,
por força da coação a que está submetido, acaba por realizar. É que a força moral que
sobre sua mente atua é tamanha que ele não tem a possibilidade de agir como gostaria
de ter agido.
A coação moral é o emprego, por outra pessoa, de uma grave ameaça contra o
sujeito, com o fim de que este faça ou deixe de fazer alguma coisa, geralmente um
procedimento típico e ilícito. Deve ser uma força irresistível, capaz de atuar sobre a
vontade do sujeito de modo insuperável, invencível, tal a violência moral e o perigo que
significaria caso a ela não se submetesse.
Para haver coação moral irresistível, deve existir, necessariamente, o coator e o
coagido e, em algumas situações, um terceiro sobre o qual recairá a ameaça. Esta pode
dirigir-se ao próprio coagido, que acaba por ceder aos ditames do coator.
O coator deve ser uma pessoa. Não se pode aceitar a alegação de que as
condições sociais, a miséria, o desemprego, a fome, as adversidades, a sociedade toda
possam exercer coação moral impelindo alguém a praticar um fato típico e ilícito. Se
isso fosse reconhecido, milhares e milhares de delinqüentes no Brasil deveriam ser
desculpados, porque quase todos estão na senda do crime por força das perversas
condições de vida a que foram submetidos, desde que nasceram.
Sob coação moral irresistível, a conduta é voluntária, mas o Direito não exige do
sujeito o comportamento heróico, de resistir ao coator, colocando em grave risco
direitos e interessantes relevantes.
Seria possível um homem matar outrem sob coação moral irresistível?
No sistema penitenciário brasileiro, situações como essa são muito comuns. Em
quase todo presídio há organizações criminosas, bandos ou quadrilhas que impõem
regras de convivência entre os condenados. Os conflitos são muitos, de todas as
naturezas. Execuções existem a todo tempo. Não raro determinado condenado é
coagido, por um membro de uma dessas organizações, a matar um terceiro preso, sob
as mais diversas e graves ameaças, especialmente a da própria morte. Mate-o ou será
morto. Ou será violentado sexualmente.
Se na vida em liberdade uma coação dessa natureza teria a força indispensável
para aniquilar a vontade do agente, dentro de um presídio ela é muito maior,
104 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
especialmente quando parte de quem tem o verdadeiro comando da vida social dentro
da prisão.
Para desculpar o agente de um homicídio a ameaça deve ser de gravidade
extrema, não podendo ser desculpado aquele que matou porque alguém o ameaçou de
causar um mal menor ou em relação a um bem jurídico, próprio ou de terceiro, de
menor importância. “Mate-o, se não eu vou matar o seu cachorro de estimação”.
“Mate Fulano, se não eu danificarei seu automóvel.” Tais ameaças não são de
gravidade tal que não se possa exigir do agente conduta diversa. São coações, porém,
perfeitamente resistíveis.
Por isso, para considerar a coação irresistível deve o julgador analisar a
natureza do interesse jurídico colocado sob ameaça de lesão, bem assim a qualidade da
lesão prometida, caso o agente não atenda aos desígnios do coator. Somente quando
houver uma ameaça muito grave, a um bem jurídico muito importante, próprio ou de
terceiro, o Direito não poderá exigir do sujeito não se submeter ao coator, correndo o
risco de ver o bem ameaçado sucumbir.
Se a coação não for irresistível, se o agente puder vencê-la, superá-la, porque
sua força moral não era das maiores, a culpabilidade restará íntegra e o agente será
culpado, todavia poderá incidir a circunstância atenuante prevista no art. 65, III, c, do
Código Penal.
1.2.14.5 Inexigibilidade de conduta diversa
As causas de exclusão da culpabilidade examinadas até aqui – erro de proibição
inevitável, obediência hierárquica, legítima defesa e estado de necessidade putativos e
coação moral irresistível – estão todas descritas em normas penais exculpantes. São
chamadas excludentes legais da culpabilidade.
A doutrina tem construído outras causas que excluiriam a culpabilidade.
Todavia, em face do que dispõe o art. 484, III, do Código de Processo Penal, há dúvidas
sobre se, não tendo sido previstas em lei, expressamente, poderiam elas ensejar a
exclusão da culpabilidade.
A norma processual citada, vinda ao mundo jurídico no longínquo ano de 1941,
há mais de meio século, não pode, como norma meramente instrumental que é,
impedir o reconhecimento, pelo Tribunal do Júri – único competente para julgar os
homicídios dolosos –, da incensurabilidade de uma conduta típica e ilícita, por qualquer
razão, porquanto acima daquela norma está o preceito constitucional que consagra a
Homicídio - 105
soberania dos veredictos do júri popular.
A mais importante das causas elaboradas doutrinariamente, ditas supralegais de
exclusão da culpabilidade, é a inexigibilidade de conduta diversa.
Inexigibilidade de conduta diversa é um juízo valorativo que o julgador faz sobre
a conduta típica e ilícita do agente imputável, consistente na impossibilidade de
considerar exigível comportamento diferente do que aquele que o agente realizou.
Foi dito, linhas atrás, que o Direito – a sociedade, portanto – exige de todos os
indivíduos que ajam conforme as normas vigentes. Todos devem respeitar a ordem.
Todos devem obediência às normas legais. Todos devem respeitar os bens jurídicos. A
ninguém é dado transgredir os mandamentos legais. A todos é, normalmente, exigido o
respeito à integridade dos valores ético-sociais colocados sob a proteção do direito.
A imposição de uma conduta, pela proibição contida no tipo, só é feita porque é
possível exigir de todos atuar conforme a vontade da lei. Matar alguém é conduta
proibida exatamente porque o Direito pode exigir, de todos, que não matem seus
semelhantes. Somente são tipificadas condutas quando for possível exigir do indivíduo
comportamento diverso delas. Jamais se tipificaria uma conduta generosa, amistosa,
amorosa, porque a sociedade não pode exigir de alguém que deixe de ser bom, de ser
amigo ou de amar.
Matar alguém em legítima defesa não é proibido exatamente porque o Direito
não pode exigir, do que se encontra em situação de legítima defesa, que não repila a
agressão injusta ao bem jurídico, desde que usando do meio necessário
moderadamente.
Matar alguém por erro plenamente justificado pelas circunstâncias – supondo
a existência de uma situação de fato que, se existente, tornaria o fato típico lícito –
torna o agente inculpável exatamente porque – nas circunstâncias em que ele atuou,
ignorando, por erro invencível, a ilicitude de seu comportamento – dele não se poderia
exigir outro comportamento.
Só há crime, portanto, quando se puder exigir do indivíduo comportamento
diferente daquele considerado crime.
A exigibilidade de conduta diversa – um dos elementos da culpabilidade – é, na
verdade, muito mais do que isso. É a própria essência do crime. É sua alma. Seu cerne.
Seu elemento fundamental. Só há crime se se puder exigir do ser humano comportar-se
de modo diferente. É o princípio que inspira a construção de comportamentos
considerados crimes.
106 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
A lei só cria tipos quando a sociedade entender possível exigir das pessoas
comportarem-se de modo diverso da descrição típica.
A lei só cria excludentes de ilicitude quando verificar que não poderia, em suas
circunstâncias, exigir, das pessoas, comportamentos conforme o mandamento contido
na norma incriminadora.
A lei só considera inimputáveis aqueles dos quais, por suas condições pessoais,
não poderia exigir comportamento diverso.
A lei só considera não culpados os que, apesar de capazes, e de terem realizado
comportamento proibido, não poderiam ter agido de outro modo.
A exigibilidade de conduta diversa é o elemento fundamental do crime – da
tipicidade, da ilicitude e da culpabilidade. É o princípio geral que fundamenta a
construção dos tipos penais e, ao mesmo tempo, impede a exclusão da proibição, e que,
por último, sustenta a reprovabilidade, a culpabilidade.
A inexigibilidade de conduta diversa – a impossibilidade de se exigir do sujeito
outro comportamento – é, inversamente, o princípio geral de exclusão do crime.
A inexigibilidade de conduta diversa não é, por isso, apenas uma causa de
exclusão da culpabilidade, é um princípio geral de exclusão do crime, ora excluindo a
tipicidade, ora a ilicitude, ora a culpabilidade. “A idéia da inexigibilidade de outra
conduta não é privativa da culpabilidade, mas um princípio regulador e informador
de todo ordenamento jurídico.”
Toda vez, portanto, que o julgador defrontar-se com um fato típico e ilícito e
verificar que, nas circunstâncias em que se encontrava o agente, não era possível exigir
dele conduta diversa, deverá considerá-lo não culpado pelo que fez.
Um homicídio ilícito, não desculpável por ter sido praticado por erro de
proibição – inclusive a legítima defesa putativa –, nem sob coação moral irresistível,
pode ser desculpado, por inexigibilidade de conduta diversa. Ainda que o fato não se
ajuste perfeitamente a qualquer causa legal de exclusão da ilicitude ou da culpabilidade,
se o júri entender de não reprová-lo, por considerar que, nas circunstâncias
especialíssimas em que se encontrava o agente, não podia dele exigir conduta diversa,
não haverá culpabilidade. Não será crime.
A culpabilidade, que recai sobre o agente, mas pelo fato praticado, é puro juízo
de valor realizado pelo julgador, que representa a sociedade. É censura que só será feita
MUÑOZ CONDE. Op. cit. p. 162.
Homicídio - 107
quando se puder exigir, dele, outro comportamento.
Veja-se a hipótese: Ricardo, policial militar aposentado, armado, chega a sua
casa e depara-se com o seguinte quadro. Sua filha, de 12 anos, acaba de ser estuprada.
Ainda chega a ver o estuprador fugindo pela janela. Após verificar, rapidamente, que
sua filha estava fisicamente bem e deixá-la sob os cuidados de Gerson, médico, que com
ele estava, vai ao encalço do estuprador. A perseguição dura algum tempo no qual
Ricardo, por diversas vezes, teve a oportunidade de atirar, preferindo, todavia,
continuar a perseguição a fim de conseguir prender o delinqüente. Nesse ínterim, uma
viatura policial, que passava pelas imediações incorpora-se à perseguição, que perdura
por mais alguns minutos. Até que, finalmente, conseguem, Ricardo e os dois policiais,
prender o estuprador. No momento em que os policiais o identificam, para certificarem-
se de que estavam, efetivamente, efetuando uma prisão legal em flagrante, ele responde:
“Fui eu mesmo! Estuprei a filha desse ‘babaca’, e achei muito gostoso!.” E, virando-se
para Ricardo, completa: “Sua filhinha é muito gostosa... pena que você chegou para
atrapalhar.” Incontinenti, Ricardo saca de seu revólver e dispara um tiro contra ele,
matando-o.
Analisando o fato, chega-se à conclusão de que é típico de homicídio, bem assim
que Ricardo não atuou sob o manto de qualquer excludente de ilicitude. É típico e
ilícito. Ricardo é imputável. Não havia legítima defesa putativa, nem erro de proibição,
porque Ricardo tinha consciência da ilicitude. Sabia que não era permitido matar. Não
houve coação moral irresistível. Logo, não há qualquer causa legal de exclusão da
ilicitude e nem da culpabilidade.
Numa situação dessas, a doutrina tradicional diria que Ricardo terá cometido
um homicídio privilegiado, por estar sob o domínio de violenta emoção, logo após
injusta provocação da vítima. Seria culpado, porém teria sua pena diminuída.
Antes, porém, há de se perguntar: nas circunstâncias em que atuou, era exigível
de Ricardo conduta diversa?
Analise-se seu comportamento. Viu sua filha caída, ferida e para ela voltou sua
atenção. Deixou-a sob cuidados do médico amigo. Viu o estuprador saltando a janela e,
apesar de ser um policial aposentado e estar armado, não atirou contra ele. Na
perseguição, teve várias oportunidades de atirar e não o fez. Acompanhou a prisão e
não esboçou nenhum gesto agressivo. Sua reação somente ocorreu após os comentários
jocosos e de escárnio que o estuprador lhe dirigiu. Diante de todas essas circunstâncias
é que o julgador responderá a pergunta crucial: pode-se exigir desse homem
comportamento diverso do que ele realizou?
108 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
Pode o Direito, a sociedade ou a ordem jurídica exigir-lhe ainda mais equilíbrio
do que demonstrou nos momentos anteriores? Ferido, magoado, pela ação criminosa
consumada contra sua filha, menor de 14 anos, uma criança ainda, e execrado pelas
palavras do estuprador, ainda assim, pode-se exigir dele um comportamento exemplar,
exatamente conforme o ordenamento jurídico?
Não se trata, relembre-se, de justificar sua conduta. É ilícita. Não se discute isso.
O que se quer discutir é sobre a reprovabilidade de sua conduta. A resposta está com o
julgador. Nas circunstâncias em que ele se encontrava, poder-se-ia exigir-lhe outro
comportamento?
Com a palavra a sociedade.
Culpabilidade é, exatamente, isso. Reprovabilidade que o Direito, em nome da
sociedade e segundo sua vontade, faz àquele que praticou o injusto penal.
Se a sociedade entender que não podia exigir, do agente, conduta diversa, deve
desculpá-lo, independentemente de existência prévia de qualquer norma expressa
nesse sentido.
O Direito é vontade da sociedade e crime só haverá se o agente praticar um
injusto culpável.
1.2.14.6 Excesso exculpante de legítima defesa
O excesso na legítima defesa pode, nalgumas situações concretas, ter derivado
de medo, susto, perturbação ou da confusão que domina o agente por causa da injusta
agressão sofrida.
Quando isso acontece, o defendente perde a capacidade de dominar as reações
psicológicas desencadeadas pela agressão, em face, ainda, da expectativa do perigo para
o bem jurídico atingido, e acaba por ultrapassar os estreitos limites da legítima defesa,
ora escolhendo meio além do necessário, ora atuando imoderadamente.
O Código Penal alemão estabelece, no § 33, sob a rubrica excesso de legítima
defesa, uma causa de exclusão da culpabilidade, nestes termos: “Ultrapassando o agente
os limites da legítima defesa por perturbação, medo ou susto, não será ele punido.”
Trata-se de uma causa inspirada pela situação de inexigibilidade de conduta
diversa. No ordenamento positivo brasileiro, não há causa semelhante contida,
expressamente, em nenhum dispositivo legal, mas nada impede que seja aplicada ao
caso concreto, pois o princípio geral da inexigibilidade de conduta diversa, de que é
uma espécie, deve incidir sempre, para que se busque a realização da verdadeira justiça.
Homicídio - 109
Entende-se que só é possível reconhecer a exculpação quando se tratar de excesso
intensivo de legítima defesa. É que, argumentam os que assim pensam, no excesso
extensivo a defesa já se exauriu, a agressão já cessou, inaugurando o até então
defendente um novo fato, distinto do primeiro iniciado com a agressão injusta.
Penso que, nada obstante a razoabilidade desse argumento, pode acontecer que
a perturbação, confusão, medo ou o susto que influenciou o comportamento defensivo
do agente pode perdurar inclusive após a cessação da agressão, por algum tempo ainda
influindo em sua mente, de modo a mantê-lo ainda descontrolado. Se sua reação é
extensiva por essa razão, não vejo como não reconhecer, também aí, a presença da
inexigibilidade de outra conduta.
1.3 HOMICÍDIO CULPOSO
O Direito Penal deveria, a rigor, preocupar-se apenas com as lesões dolosas dos
bens jurídicos, porquanto são os comportamentos intencionais os que efetivamente
representam aquela atitude interna do homem que deve ser proibida e receber, como
conseqüência jurídica, a severa sanção penal.
É na conduta dolosa que se encontra a desconsideração do sujeito para com os
bens jurídicos alheios.
A missão do Direito Penal, entretanto, é proteger os bens jurídicos mais
importantes das lesões mais graves e, para alcançar esse fim, é necessário sancionar
outras condutas, não dolosas, mas que causam resultados lesivos e que, por sua
previsibilidade, poderiam ter sido evitadas.
Dessa necessidade nasceu a construção dos tipos culposos.
1.3.1 Tipicidade
A objetividade jurídica – vida humana extra-uterina – e os sujeitos do
homicídio culposo são os mesmos do homicídio doloso, já comentados.
A diferença é que aqui há um crime sem o elemento subjetivo que caracteriza
aquele, o dolo. No lugar do dolo, existe a culpa, em sentido estrito. A estrutura do
homicídio culposo é absolutamente distinta do homicídio doloso.
1.3.1.1 Conceito
110 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
Modernamente, a culpa, stricto sensu, é considerada um elemento normativo
do tipo. Melhor seria denominá-la simplesmente negligência, expressão mais técnica e
que evitaria confusões desnecessárias.
O tipo de homicídio culposo está contido no § 3º do art. 121 do Código Penal:
“Se o homicídio é culposo: pena, detenção de 1 (um) a 3 (três) anos.” É, portanto, um
tipo aberto, cabendo ao intérprete cerrá-lo com base no conceito de delito culposo,
extraído da norma do art. 18, II, do Código Penal: “Diz-se o crime: (...) II – culposo,
quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia.”
Com base nessa norma, pode-se definir culpa, stricto sensu, como a falta de
cuidado do agente, numa situação em que poderia prever a causação de um resultado
danoso, que ele não deseja, nem aceita, e às vezes nem prevê, mas que, com seu
comportamento produz e que poderia ter sido evitado.
Homicídio culposo, portanto, é causação da morte previsível da vítima, por
conduta voluntária de uma pessoa, que nas condições em que atuou poderia, com o
cuidado devido, tê-la evitado.
Desse conceito extraem-se os elementos, ou requisitos, para a verificação da
tipicidade do homicídio culposo, que o juiz fará com base na valoração do fato concreto.
1.3.1.2 Elementos do homicídio culposo
Uma conduta voluntária – ação ou omissão – dirigida geralmente a um fim
lícito, nunca ao de produzir a morte, é o primeiro elemento.
A morte da vítima deve ser conseqüência da conduta, por ter o agente se
comportado sem o dever de cuidado objetivo, por imprudência, negligência ou
imperícia. O nexo causal, portanto, é indispensável.
Só haverá, todavia, homicídio culposo, se a morte da vítima for previsível, ainda
que o agente não a tenha previsto.
Além, portanto, da conduta, do resultado e do nexo causal que deve existir entre
eles, só há homicídio culposo quando houver previsibilidade objetiva do resultado
morte e inobservância, por parte do agente, de seu dever de cuidado objetivo, atuando
com imprudência, negligência ou imperícia.
O dever de cuidado objetivo é uma exigência que o Direito faz a todas as pessoas
para que se comportem, em seu dia-a-dia, de modo a não causar danos aos bens
jurídicos alheios. Exigem-se, de todos, comportamentos cautelosos, prudentes e
Homicídio - 111
cuidadosos, de modo a preservar a integridade dos direitos das pessoas com as quais
convivem. As condutas imprudentes, negligentes ou imperitas são reveladoras do não-
cumprimento desse dever geral. Para haver homicídio culposo, a morte da vítima deve
resultar de um comportamento desses.
A imprudência é a prática de um fato perigoso. É uma ação. Negligência é a
ausência de precaução, a omissão, a não-realização de um movimento que poderia ter
sido realizado. É o descuido. A imperícia é a falta de aptidão ou destreza para o
exercício de determinada arte ou profissão.
As três modalidades são, na verdade, uma só: negligência. A imperícia só ocorre
quando o agente foi negligente, deixando de observar a norma técnica a que estava
obrigado. A imprudência é uma ação que nasce da ausência de cautela, da omissão
negligente.
Há negligência, em qualquer de suas formas, nas seguintes condutas. Manusear,
com o fim de limpar ou fazer reparos, uma arma de fogo, na presença de outras
pessoas, sem se certificar o agente de que a mesma não esteja municiada, ou realizar as
operações de carregá-la, dando causa a um disparo, matando um dos circunstantes.
Previsibilidade é a possibilidade de o agente, nas condições em que se encontra,
antever a morte da vítima. Nem todas as lesões não dolosas a bens jurídicos podem ser
evitadas. Só aquelas que puderem ser antevistas pelo agente. Por uma razão muito
simples: não sendo possível prever, que com a conduta que está realizando poderá
causar a morte, o agente não tem como evitá-la. Se não é possível prever, não será
possível evitar.
Essa previsibilidade, durante a aferição da tipicidade do fato, é puramente
objetiva. É a previsibilidade normal, exigível ao comum dos homens. Não é a
previsibilidade daquela pessoa extremamente prudente, nem dos chamados
paranormais. É um juízo normativo, portanto, que o julgador fará acerca das
circunstâncias em que atuou o agente, para concluir se, em circunstâncias idênticas,
qualquer pessoa comum, normal, poderia antever o resultado lesivo. Não se trata,
repita-se, da culpabilidade subjetiva do agente, que será valorada no âmbito da
culpabilidade, como adiante se comentará.
No exame da tipicidade, importa saber se há previsibilidade objetiva. Esse é o
ponto nuclear do fato culposo, porque sem a convicção de que era, ali, possível para o
agente, antever que sua conduta causaria a morte da vítima, não se pode concluir pela
evitabilidade do resultado. Todas as circunstâncias fáticas devem ser consideradas,
porque muitas vezes um único dado é suficiente para elidir a possibilidade da previsão
112 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
da morte. Mormente nas mortes no trânsito de veículos, esse tema será de crucial
relevância, como se verá adiante. Se a morte for imprevisível, é inevitável, por isso não
haverá culpa.
Imagine-se a seguinte situação. O agente que mora sozinho num apartamento,
no qual não tem o costume de receber visitas de parentes, nem tampouco de
crianças, chega à noite em casa, deixa sua arma no coldre em cima de um móvel,
enquanto vai para a cozinha, preparar seu jantar. Segundos depois, ouve um disparo
e, quando volta à sala, encontra caída uma criança – filha do vizinho que no mesmo
dia se mudara para o mesmo edifício – que ali entrara, sem que ele percebesse, e,
tomando posse da arma, sem querer, dispara contra si mesma, morrendo.
Considerando objetivamente todas as circunstâncias, pode-se concluir que era
impossível, para o agente, prever que uma criança ali entraria, e que utilizaria a arma
deixada sobre o móvel. Os dados objetivos são determinantes para a verificação da
previsibilidade. Se se alterar um único deles, a conclusão deve ser outra. Bastaria que
fosse comum ou habitual a presença de menores naquela residência – sobrinhos,
amigos, filhos de amigos ou o próprio filho do agente –, para que se pudesse, a partir
daí, formular um juízo de presença da previsibilidade objetiva. Reitere-se, outra vez,
que esse juízo de previsibilidade é puramente objetivo. Ao analisar a tipicidade, não se
examina a previsibilidade pessoal, subjetiva, do agente, mas apenas as circunstâncias
objetivas.
Ausente a previsibilidade, ainda que a conduta do agente seja negligente, não
haverá tipicidade. Imagine-se o condutor de um veículo dirigindo numa rodovia, em
velocidade incompatível, com imprudência. No percurso, há um viaduto sobre a pista e,
no momento em que seu veículo vai passar por baixo do viaduto, uma pessoa cai deste,
não se ferindo na queda, mas é colhida pelo veículo, vindo a morrer em virtude dos
sofrimentos causados pela colisão. A queda era imprevisível. De conseqüência, ainda
que o agente dirigisse com cautela e prudência, não poderia evitar a colisão e a morte.
Não há homicídio culposo.
Do mesmo modo, ainda quando presente a previsibilidade, mas tendo o agente
atuado com o dever de cuidado objetivo, também não haverá homicídio culposo. Veja-
se o exemplo: numa rua de uma das grandes cidades brasileiras, trafega um veículo na
faixa de rolamento à esquerda da destinada ao tráfego de ônibus, um pouco antes do
ponto de parada, onde está estacionado, para descida e subida de passageiros, um
desses veículos de transporte coletivo. É previsível, nessa circunstância, que um dos
passageiros que do ônibus tenha descido atravesse a via pública, pela parte da frente do
mesmo, estando, instantes antes, fora do raio de visão do condutor daquele veículo.
Homicídio - 113
Este adota todas as cautelas, reduzindo a velocidade e olhando com toda a atenção na
direção que prevê a passagem do passageiro imprudente, a fim de evitar um possível
atropelamento. Não obstante toda essa conduta cautelosa do condutor, o passageiro
atravessa e surge a sua frente, sendo atingido, ferido e morto em razão dos ferimentos
decorrentes da colisão. A colisão e a morte eram previsíveis, o condutor fez a previsão,
tanto que adotou todas as cautelas recomendadas pelas normas do trânsito, mas, ainda
assim, o resultado aconteceu. Não tendo havido negligência, não há fato típico culposo.
A verificação da tipicidade do crime culposo, portanto, depende da certificação
da presença de todos os seus elementos. Ausente um deles, qualquer um, não haverá
homicídio culposo.
1.3.1.3 Espécies de culpa
Sendo o fato previsível, o agente, entretanto, nem sempre realiza a previsão.
Quando não faz a previsão, mas realiza a conduta no rumo do resultado que não desejava, diz-
se que sua culpa é inconsciente. É a chamada culpa sem previsão. É inconsciente, porque o
agente, mesmo sendo possível prever a morte, não fez a previsão.
Jairo, policial, chega em casa e, negligentemente, deposita sua arma, municiada,
sobre a mesa da sala. Em seguida, vai para seu quarto. Tendo um filho de seis anos de
idade, é previsível que a criança, que estava na sala, pudesse pegar a arma. Jairo,
todavia, despreocupado, nem se lembrou dessa possibilidade. Apesar de previsível uma
lesão de um bem jurídico, ele, por estar preocupado com outros problemas, de seu
trabalho ou qualquer outro, não prevê essa possibilidade. É surpreendido quando ouve
o disparo e, desesperado, encontra seu próprio filho ferido com sua arma. Havia
previsibilidade, houve negligência, mas não houve previsão. Há fato culposo e a culpa é
inconsciente.
Se o agente prevê o resultado, poderá aceitá-lo, se ele ocorrer, e aí sua conduta
será dolosa, com dolo eventual, já abordado linhas atrás. Quando prevê a morte da
vítima, mas age acreditando que não ocorrerá, sua culpa é consciente.
No mesmo exemplo anterior, o mesmo policial, Jairo, após chegar a seu quarto,
pode, por estar atento, fazer a previsão de que seu filho possa se apoderar da arma e
com ela causar algum dano, inclusive a si próprio. Todavia, Jairo, levianamente, pensa
consigo mesmo: “Não, não vai acontecer nada. Ele nem viu a arma.” Por essa razão,
ele continua em seu quarto, confiando que nada vai acontecer, quando ouve o disparo,
ao qual se segue a morte da criança. Nesse caso, há culpa consciente. Houve previsão da
morte, porém nela o agente não consentiu, não acreditou que ocorreria, não admitiu
114 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
que se tornasse real.
1.3.1.4 Concurso de pessoas
É possível co-autoria ou participação em homicídio culposo?
Autor do crime é quem possui domínio final da ação. No crime culposo, a
conduta dirige-se, normalmente, para um fim lícito, porém é realizada com
inobservância do dever de cuidado objetivo, causando a morte previsível de alguém.
Ora, se duas ou mais pessoas realizam condutas descuidadas e, com elas,
causam a morte previsível de uma pessoa, é óbvio que a causaram negligentemente. Se
dois homens, do alto de um edifício, atiram ao chão um objeto pesado que vem a cair
sobre um transeunte, matando-o, são, ambos, co-autores de um homicídio culposo.
O engenheiro e o mestre de obras, responsáveis pela fiscalização da execução da
construção de um edifício, que permitem, negligentemente, que um operário trabalhe
sem o cinto de segurança e que, em razão desse descuido, vem a cair e morrer em
virtude dos ferimentos sofridos, são co-autores, por omissão, de homicídio culposo.
A co-autoria em crime culposo existirá sempre que os agentes tenham o
domínio sobre suas condutas, positivas ou negativas. Se puderem decidir sobre as
condutas, sobre sua realização, interrupção ou modificação e as realizarem no rumo de
outro fim, mas delas decorrer o mesmo resultado indesejado, serão co-autores do
homicídio culposo.
Participação culposa em crime culposo é inadmissível, porque a participação é
sempre dolosa. Para alguém ser partícipe de um crime, é necessário que tenha
consciência de que o autor irá cometê-lo e vontade de contribuir para sua realização,
sem poder de decisão. No crime culposo, o autor não deseja realizá-lo, logo é impossível
que outra pessoa possa conhecer uma intenção inexistente, para com ela contribuir. Só
é possível a participação dolosa.
O pai que entrega o veículo automotor ao filho menor que, dirigindo-o pela via
pública, vem matar, culposamente, um pedestre não é co-autor nem partícipe do
homicídio culposo. Não é co-autor do homicídio culposo, porque não realizou a
conduta negligente causadora da morte da vítima. Não tinha domínio sobre a conduta
do filho na condução do veículo.
Apesar de atuar com imprudência ao entregar-lhe o veículo e até mesmo de
poder considerar-se previsível que o filho viesse a atropelar e matar uma pessoa, não
poderá ser reconhecida sua participação, porque não há nexo causal entre sua conduta
Homicídio - 115
– de entregar as chaves do veículo – e a morte da vítima.
Há nexo causal entre a morte do pedestre e, tão-só, a conduta do condutor do
veículo que o atropelou. Não se pode regredir aquém da conduta do agente, pois se
assim fora também o vendedor do veículo e seu fabricante deveriam ser
responsabilizados, o que seria um absurdo. Há nexo causal apenas entre a conduta do
pai e a conduta do filho de dirigir o veículo.
1.3.1.5 Culpa própria e culpa imprópria
Culpa própria é a culpa de que aqui se está dizendo, a culpa propriamente dita,
em que o agente dá causa à previsível morte da vítima por negligência, imprudência ou
imperícia.
O que a doutrina chama de culpa imprópria é, na verdade, dolo. Como já foi
dito, ao tratar-se da legítima defesa putativa, o legislador brasileiro, no caso de uma
situação de erro evitável sobre os pressupostos fáticos de uma excludente de ilicitude,
manda puni-lo com a pena do crime culposo.
O crime é doloso, mas a lei manda considerá-lo como se culposo fosse. Assim, o
que se chama de culpa imprópria não é culpa, é equiparação do dolo à culpa.
1.3.1.6 Compensação e concorrência de culpas
Enquanto a lei civil admite a compensação de culpas, quando a vítima contribui,
culposamente, para o resultado lesivo, o Direito Penal não a contempla. O agente que
tiver atuado culposamente, mesmo quando a vítima tenha também colaborado com o
resultado, será, ainda assim, responsabilizado integralmente pela conduta. Ou seja, a
culpa da vítima para o evento não elide a culpa do agente. Somente quando houver
culpa exclusiva daquela, é óbvio, não haverá tipicidade da conduta do sujeito. O
comportamento culposo da vítima será, todavia, levado em conta pelo juiz, no
momento da fixação da pena-base, como circunstância judicial, nos termos do que
dispõe o art. 59 do Código Penal.
Concorrendo duas pessoas para o mesmo evento culposo, laborando ambas com
negligência, numa situação de previsibilidade objetiva do resultado, demonstrando-se
que contribuíram para o resultado morte, as duas responderão. Numa esquina, dois
veículos se chocam, causando a morte de um pedestre. Se se provar que os dois
motoristas agiram culposamente, os dois responderão pelo homicídio.
116 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
1.3.2 Aumento de pena
No § 4º do art. 121 estão definidas quatro circunstâncias que impõem o aumento da
pena para o homicídio culposo, em exatamente um terço. Será de um ano e quatro
meses, no mínimo, até o máximo de quatro anos, se presente uma das causas especiais
de aumento de pena.
O homicídio culposo praticado na direção de veículo automotor é um tipo
autônomo, definido no art. 302 da Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997, o Código
de Trânsito, para o qual é cominada pena de detenção de dois a quatro anos, mais outra
pena restritiva de direito, objeto de comentários adiante expostos.
São as seguintes as causas especiais de aumento de pena do homicídio culposo.
1.3.2.1 Inobservância de regra técnica
A pena será aumentada, se o crime resulta de inobservância de regra técnica
de profissão, arte ou ofício. Para incidir esse aumento, o agente deve ter omitido o
dever de obedecer a uma regra técnica própria de sua profissão, arte ou ofício, portanto
só poderá ser aplicado a profissionais e pessoas que se dedicam a uma dessas
atividades.
Não se deve confundir essa causa de aumento com a imperícia, que é uma das
modalidades de culpa, integrante, portanto, do próprio núcleo do tipo culposo. Na
imperícia, o sujeito demonstra falta de destreza na execução de um procedimento que
deveria executar, como profissional. Imperícia é inabilidade na realização de seu ofício.
É a falta de capacidade técnica. Nessa causa de aumento, o agente nem chega a executar
um procedimento exigido por uma regra técnica ou conforme esta. Ele pode, inclusive,
ser um expert na realização do procedimento; todavia, simplesmente não o realiza.
Essa circunstância de aumento de pena deriva da necessidade de se exigir maior
cuidado dos profissionais, na realização de ações perigosas, como na intervenção
médica, na edificação de prédios, na manipulação de substâncias químicas, todas, por
sua natureza, capazes de causar danos às pessoas.
1.3.2.2 Omissão de socorro
Manda a norma que a pena seja aumentada se o agente deixa de prestar imediato
socorro a vítima. É dever do agente que realiza uma conduta negligente, percebendo
Homicídio - 117
que ela deu causa a um resultado não desejado, procurar, imediatamente, prestar-lhe o
socorro para, se possível, evitar sua morte. Se ele se omite, deverá merecer pena mais
severa.
Se, entretanto, após atingir a vítima, o agente deixar de socorrê-la por ter
percebido que se tratava de um seu desafeto, passando a desejar sua morte, e se se
demonstrar que a morte poderia ter sido evitada, responderá por homicídio doloso,
porque, tendo criado o risco do resultado, passa a ter o dever de agir para impedi-lo.
Só haverá aumento de pena se a vítima ainda estiver viva, é de todo claro, posto
que se houve morte imediata não era mais possível prestar qualquer socorro.
A Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997, chamada Código de Trânsito
Brasileiro, criou no art. 302 a figura típica do homicídio culposo na direção de veículo
automotor, e no art. 304, a figura típica de omissão de socorro nos acidentes de
trânsito, que serão comentadas adiante.
1.3.2.3 Omissão de solidariedade
Se o agente não procura diminuir as conseqüências de seu ato, também terá sua
pena aumentada. O dever geral de solidariedade mostra-se aqui ainda maior, cabendo a
quem deu causa à morte da vítima procurar, por todos os modos possíveis, minorar as
conseqüências de sua conduta. Se outro tiver prestado socorro à vítima, o agente deve
colaborar, auxiliando, enfim, procurando, por todas as maneiras, solidarizar-se com o
vitimado.
1.3.2.4 Fuga para evitar prisão em flagrante
Por fim, a fuga do agente, para evitar prisão em flagrante, é causa de aumento
da pena. A fuga deve ser, necessariamente, motivada pela vontade do agente de evitar a
prisão, e não pode ser considerada quando ele o faz por medo de alguma represália por
parte de parentes da vítima ou de circunstantes, nem quando se apavora e perde a
capacidade de discernimento quanto a seu dever de permanecer no local.
1.3.3 Homicídio culposo praticado na direção de veículo
automotor
118 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
1.3.3.1 Forma típica
A Lei nº 9.503/97, o Código de Trânsito, definiu no art. 302 a seguinte figura
típica: praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor, cominando pena
de detenção, de dois a quatro anos e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou
a habilitação para dirigir veículo automotor.
Andou mal o legislador ao construir essa figura típica, pois, como lembrou
DAMÁSIO com propriedade, a descrição típica do homicídio exige o uso do verbo
matar. Discute-se, ainda, sobre a propriedade da cominação de pena privativa de
liberdade mais severa do que a relativa ao homicídio culposo do Código Penal, além da
restritiva de direito. Segundo MAURÍCIO ANTONIO RIBEIRO LOPES, essa
exacerbação da pena é inconstitucional:
“Nada justifica que para a mesma figura penal a pena-base seja diversa. Tal
ofende o princípio constitucional da isonomia e o conseqüente direito subjetivo
do réu a um tratamento igualitário.”26
São justas as duas críticas. Um homicídio culposo praticado na condução de um
veículo automotor não é diferente dos demais homicídios culposos. Em qualquer caso
será, sempre, a causação involuntária da morte previsível de um homem, por
negligência. Não são crimes diferentes, por isso que não podem ter penas diferentes.
Quando muito, pode-se admitir uma causa especial de aumento de pena, mas nunca a
construção de uma figura típica autônoma, porque a estrutura de ambos os fatos é a
mesma, nas duas situações.
Esdrúxula a solução quando se vê que só será apenado mais severamente o
homicídio cometido na direção de veículo automotor e não quando, em via pública, a
morte é causada por um ciclista imprudente que atropela a vítima, causando-lhe lesões
letais. Se a intenção era a de punir mais severamente o homicídio culposo cometido no
tráfego de veículos, a inserção, no tipo, do elemento objetivo veículo automotor não
atendeu, satisfatoriamente, àquela vontade, porque não alcançou todos os veículos em
circulação.
Por outro lado, a maior ou menor gravidade dos crimes culposos não reside no
meio utilizado para sua concretização, mas no grau da previsibilidade objetiva e na
qualidade da inobservância do dever de cuidado objetivo. Esses são os elementos que
podem tornar um homicídio culposo mais reprovável do que outro. Quanto mais
previsível o resultado, maior deve ser a pena. Quanto mais negligente tenha agido o
26 Crimes de trânsito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 204.
Homicídio - 119
sujeito, maior sua reprovação.
Qual homicídio culposo é mais grave: o do pai que brinca com um revólver
municiado na presença de várias crianças vindo a dispará-lo, por imperícia ou
imprudência, matando um infante, ou o do condutor de um veículo automotor que
atropela e mata um pedestre? É claro que o pai agiu numa situação de previsibilidade
mais acentuada e com negligência superior à do motorista. Não só por ser pai, mas por
estar diante de crianças indefesas e brincando com uma arma de fogo, própria para
tirar vidas.
Havendo outras formas de punir mais severamente o condutor de veículos no
trânsito, como a construção de agravantes ou de causas especiais de aumento de pena,
melhor teria feito o legislador se as criasse, não inventando um tipo especial de
homicídio culposo que, por sua autonomia e características peculiares, delito
excepcional que é, não admite formas típicas especiais.
Feitas essas observações, analise-se o tipo. Seus elementos são: causar a morte
previsível de alguém, por negligência, imprudência ou imperícia, na direção de
veículo automotor.
O único elemento a ser analisado nesta quadra, porque os demais já o foram
anteriormente, é o especializante: “na direção de veículo automotor”.
Só haverá esse crime se o agente estiver dirigindo, conduzindo, o veículo automotor.
Estar na direção significa estar no comando, ao volante, dominando os mecanismos de
aceleração, frenagem e sentido dos movimentos do veículo. Se estiver empurrando um
veículo automotor que, por falta de combustível, não dispõe, no momento, de força
propulsora própria, e vem a provocar uma colisão da qual resulta a morte de alguém, o
agente que o empurrava só poderá responder pelo crime do art. 121, § 3º, do Código
Penal.
O Código de Trânsito define, no Anexo I, veículo automotor:
“Todo veículo a motor de propulsão que circule por seus próprios meios e que
serve normalmente para o transporte viário de pessoas e coisas, ou para a
tração viária de veículos utilizados para o transporte de pessoas e coisas. O
termo compreende os veículos conectados a uma linha elétrica e que não
circulam sobre trilhos (ônibus elétrico).”
São veículos automotores o automóvel, a motocicleta, motoneta, ciclomotor,
trator, ônibus, ônibus elétrico, caminhão, caminhão trator, caminhonete, microônibus,
motor-casa (motor-home) e utilitário.
120 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
A bicicleta, o bonde, o carro de mão, a carroça, e a charrete não são veículos
automotores; logo, se alguém, na direção de um desses veículos, causa a morte de
outrem, em qualquer lugar, inclusive em vias e áreas de pedestre, por mais
movimentada e perigosa que seja, responderá pelo tipo do art. 121, § 3º.
Na definição legal de veículo automotor não se incluem, ainda, os trens,
inclusive os de metrô, daí que o homicídio culposo cometido pelo maquinista
imprudente ou imperito ajusta-se ao tipo do Código Penal, não ao do Código de
Trânsito.
Na verificação da tipicidade desse homicídio culposo especial, valem todas as
observações feitas acerca do homicídio culposo do art. 121, § 3º, do Código Penal.
Além da pena de detenção, o agente será punido com a suspensão ou a
proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor, por
tempo de, no mínimo dois meses, e no máximo cinco anos. Essa pena será aplicada
cumulativamente com a pena de detenção.
1.3.3.2 Causas de aumento de pena
A pena de detenção será aumentada, de um terço até metade, se o agente: (a)
não possuir permissão para dirigir ou carteira de habilitação; (b) tiver cometido o crime
em faixa de pedestre ou na calçada; (c) deixar de prestar socorro à vítima, quando for
possível fazê-lo sem risco pessoal; (d) estiver, no exercício de sua profissão ou
atividade, conduzindo veículo de transporte de passageiros.
A primeira causa de aumento de pena absorve o crime do art. 309 do Código de
Trânsito – dirigir veículo automotor, em via pública, sem a devida permissão para
dirigir ou habilitação, gerando perigo de dano.
Para incidir a segunda causa de aumento, as lesões causadoras da morte da vítima
devem ter sido provocadas pela conduta do agente na faixa destinada à travessia de
pedestre, ou na calçada, isto é, a colisão ou o choque do veículo com o corpo da vítima
deve ter-se dado num destes locais. Também a omissão de socorro, como causa de
aumento de pena, absorverá o crime do art. 304 do Código de Trânsito.
As causas de aumento de pena do § 4º do art. 121, é óbvio, não se aplicam ao
homicídio culposo cometido na direção de veículo automotor.
1.3.4 Ilicitude
Homicídio - 121
Também nos delitos culposos o agente pode, apesar de realizar um fato típico,
agir em conformidade com o Direito, desde que realize os pressupostos de uma causa
de justificação, dando causa, por negligência, ao resultado não desejado.
Costuma-se dizer que não é possível alguém cometer um homicídio culposo em
legítima defesa, porquanto é da essência desta a repulsa à agressão, que é,
necessariamente e sempre, um comportamento defensivo doloso, em que o defendente
reage com o fim de obstar a agressão, querendo ferir ou matar o agressor, ou pelo
menos agindo com dolo eventual em relação a essa morte. Não se poderia, por isso,
afirmar que os ferimentos causados no agressor, que sejam causa de sua morte, tenham
sido produzidos por conduta negligente, imprudente ou imperita do defendente.
Correto esse pensamento.
Há, porém, uma situação em que não se pode afirmar a impossibilidade da
excludente conviver com o homicídio culposo. É quando alguém em legítima defesa,
defendendo-se de acordo com a norma permissiva, realizando todos os pressupostos
objetivos e o subjetivo, atirar e, por erro de execução, atingir pessoa diversa do
agressor. É, inequivocamente, um caso de homicídio culposo lícito, por legítima defesa,
porque, conforme manda o art. 73 do Código Penal, deve o agente responder como se
tivesse agido contra a pessoa visada, a chamada vítima virtual, não a que, realmente, foi
atingida. Se, em relação ao agressor, sua conduta foi lícita, deve-se entender que, em
relação àquele que ele não desejava atingir, foi igualmente justa.
A essa conclusão se chega, também, pela interpretação da norma do art. 25 do
Código Penal, que considera lícita a repulsa necessária e moderada a uma agressão
injusta, atual ou iminente. O preceito exige que a repulsa se dirija ao agressor, é óbvio –
e no caso ela se voltou, desviando-se para um terceiro, porém, por erro na execução –,
mas não impede o reconhecimento da licitude, que está na conduta e não no resultado.
Aliás, é sempre bom lembrar que a legítima defesa não é licença para matar, mas
autorização para a defesa, para a repulsa, pouco importando qual venha a ser resultado,
que até pode ser a morte, do agressor ou de terceiro, desde que a vontade tenha-se
concentrado na repulsa e a conduta tenha-se realizado com observância rigorosa aos
pressupostos da causa de exclusão da ilicitude.
Pode também ser praticado um homicídio culposo estando o agente em estado
de necessidade. Um exemplo é sempre bom. Vive o agente uma situação de perigo
atual, atacado por um cão bravio, que se soltou do canil onde era guardado. Para livrar-
se do perigo, estando armado, atira contra o animal, vindo o projétil ricochetear e
matar uma pessoa que se encontrava próxima. Não há dúvidas de que agiu ao amparo
da excludente do art. 24 do Código Penal. Nesse caso, agiu sem dolo de matar quem
122 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
quer que seja e, admitindo-se previsibilidade e negligência, haverá homicídio culposo,
mas lícito porque a conduta voltou-se para a salvação de um perigo, cumpridos os
demais requisitos do estado de necessidade.
Outro exemplo: o agente, dirigindo seu veículo, vê a sua frente um caminhão
desgovernado vindo em sua direção. Para evitar a colisão, realiza uma manobra
desviadora de seu percurso, mas, por imperícia, acaba por atropelar um pedestre.
Considerando que era previsível e evitável o atropelamento, não se irá negar que o
condutor agiu em estado de necessidade, por ter atuado com o fim de salvar de perigo
atual – que não provocou por sua própria vontade, nem podia, de outro modo, evitar –,
sua própria vida ou sua integridade corporal, ou a dos que com ele estivessem no
mesmo veículo. Conquanto tenha agido com imperícia, matando alguém, terá havido,
nitidamente, um homicídio culposo lícito.
Assim, verificada a presença dos pressupostos da causa de justificação,
especialmente o elemento subjetivo, e podendo-se afirmar, com segurança, que a morte
não foi desejada nem aceita, às vezes nem prevista pelo sujeito, haverá homicídio
culposo lícito.
1.3.5 Culpabilidade
A culpabilidade, viu-se, é a reprovação do fato praticado pelo agente imputável
que, com possibilidade de conhecer o injusto, poderia ter agido de outro modo.
Será culpável o homicídio culposo praticado pelo imputável que tinha a
possibilidade de conhecer a injustiça do fato que praticou, e de ter agido de forma
diferente.
No tipo de homicídio culposo, diferentemente do doloso, há dois elementos
normativos: a inobservância do dever de cuidado objetivo e a previsibilidade objetiva
do resultado, que orientam a valoração feita pelo julgador acerca do fato culposo.
Havendo conduta negligente causadora de um resultado lesivo não desejado, mas
previsível objetivamente, haverá fato típico de homicídio culposo.
O primeiro desses elementos – em qualquer de suas modalidades, redutíveis à
negligência – é elemento integrante do tipo, inerente à conduta, mas que se projeta na
ilicitude, como, aliás, toda a norma incriminadora, a qual, é sabido, contém a proibição,
excluída apenas em situações excepcionais, por uma causa de justificação.
O segundo elemento, a previsibilidade objetiva do resultado, que também
integra o tipo, vai projetar-se na culpabilidade de forma diferenciada, não mais como
Homicídio - 123
aquela previsibilidade geral, considerada normal, exigível do homem médio, mas como
previsibilidade do sujeito do fato concreto objeto da apreciação do julgador. É a
previsibilidade subjetiva.
Para formular o juízo de culpabilidade de um crime culposo, deve o intérprete
verificar se o agente, imputável, tinha a possibilidade de conhecer que sua conduta era,
mesmo, negligente, isto é, ilícita. Em outras palavras, se, nas condições em que se
encontrava, era possível alcançar a consciência de que sua conduta consistia na
inobservância do dever geral de cuidado objetivo.
Assim, também em relação ao delito culposo, pode incidir sobre o fato uma
excludente de culpabilidade, afetando a potencial consciência da ilicitude ou a
exigibilidade de conduta diversa.
Para discernir sobre a possibilidade de agir de outro modo, no crime culposo,
deve o julgador verificar a incidência dessa exigência normativa não somente em
relação à conduta em si, mas, antes, sobre o próprio processo de formação do
conhecimento do injusto.
É possível que o desconhecimento incida sobre o próprio dever de cuidado.
Pode, por erro, necessariamente inevitável, ignorar o dever que tinha de atuar com
prudência.
Noutras situações, a inconsciência do ilícito decorrerá da falsa apreciação da
realidade fática.
Nas duas situações, o sujeito terá atuado sem ter possibilidade de atingir ou
alcançar a consciência da ilicitude.
Tome-se o exemplo dado daquele que, diante do cão bravio solto, atirou, para
salvar-se do perigo, e acabou por, sem dolo, atingir uma pessoa próxima e matá-la.
Matou culposamente, mas agiu ao amparo da excludente do estado de necessidade.
E se o cão, efetivamente, não era bravio mas, ao contrário, um animal
adestrado, que, sem que o agente pudesse perceber, estava em treinamento, com seu
adestrador colocado a certa distância, controlando-o, e não representava, por isso,
qualquer perigo? Um caso de estado de necessidade putativo, com morte culposa. Se as
circunstâncias evidenciarem que não era possível para o agente atingir ou alcançar a
consciência de que sua conduta não era lícita, por não se encontrar, realmente, em
estado de necessidade, não será reprovado. Se não seria reprovado caso tivesse agido
com dolo, com muito mais razão não será reprovado quando tiver dado causa ao
resultado por negligência.
124 – Direito Penal II – Ney Moura Teles
Se, estando o agente em legítima defesa putativa, errar, no momento da execução,
atingindo um terceiro, e não o imaginário agressor, o homicídio culposo que praticou
será desculpado, por não ter tido a possibilidade de conhecer o injusto.
Por fim, a culpabilidade será afastada pela incidência do princípio da
inexigibilidade de conduta diversa, independentemente da previsibilidade, objetiva ou
subjetiva, nem da possibilidade de conhecimento da ilicitude.
Veja-se o exemplo: o condutor do veículo é abordado por delinqüentes em fuga
de um assalto, que entram no carro e o obrigam a empreender determinada rota de
fuga, impondo-lhe, por meio de ameaças graves, com uso de armas, imprimir
velocidade excessiva, imprudente, vindo ele a atropelar e matar um pedestre. Evidente
que agiu sob coação moral irresistível. Há consciência real da ilicitude, consciência de
estar atuando com inobservância do dever de cuidado objetivo, previsibilidade objetiva
e subjetiva, mas, ainda assim, não se pode exigir dele outro comportamento senão o de
atender a vontade de seus coatores.
Haverá, aí, homicídio culposo inculpável. Não há crime, devendo o agente ser
desculpado com a absolvição.
1.3.6 Perdão judicial
Nenhuma pena criminal será aplicada sem que haja necessidade e suficiência
para prevenir e reprovar o crime. Porque a pena não é vingança nem pode ser aplicada
sem uma utilidade ética, o Direito impõe ao julgador, em determinadas situações,
deixar de aplicar a pena, porque ela seria absolutamente desnecessária, sem qualquer
sentido ético, sem qualquer função preventiva ou de reprovação.
Às vezes, as conseqüências materiais ou morais do homicídio culposo atingem
seu agente de forma tão grave, que a sanção penal torna-se absolutamente
desnecessária. Pense-se no pai ou na mãe que, culposamente, na condução de um
veículo em via pública, provoca acidente causando a morte do próprio filho. A perda do
ente querido, mormente quando infante, por ato negligente, traz profundo sofrimento
moral, o sentimento de culpa que perdurará por muito tempo, quando não por toda a
vida. A lembrança de sua conduta causadora de tão grave resultado vai atingir muito
gravemente a consciência desse agente. Impor-lhe pena criminal não será reprovação
maior que a já sofrida com a perda. O fim de reprovação já terá sido alcançado com a
consumação desse crime.
Noutras situações, o próprio agente causador de uma morte não desejada sofre
Homicídio - 125
lesões corporais graves, com importantes conseqüências para a sua saúde física,
restando tetraplégico ou passando por inúmeras cirurgias curativas e recuperadoras,
com sofrimento físico e mental indizível, que, para o Direito, não é mais necessário
impor qualquer sanção penal.
Por isso, o Código Penal, no § 5º do art. 121, faculta ao juiz, na hipótese de
homicídio culposo, não de homicídio doloso, deixar de aplicar a pena cominada.
O perdão judicial será aplicado apenas na hipótese de que o juiz reconheça a
tipicidade, a ilicitude e a culpabilidade do agente, pois se houver alguma causa
excludente do crime, não se iria impor pena alguma, por não ter havido crime. Assim,
reconhecida a prática de crime, e verificando a desnecessidade da imposição de pena, o
juiz concede o perdão judicial, que é uma causa extintiva da punibilidade, consoante a
Súmula 18 do Superior Tribunal de Justiça: “A sentença concessiva do perdão judicial
é declaratória da extinção da punibilidade, não subsistindo qualquer efeito
condenatório.”