Post on 16-Nov-2015
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a natureza quem decide? Reflexes trans* sobre gnero, corpo, e (ab?)uso de substncias
viviane v.
Este artigo pretende apresentar, a partir de vivncias pessoais como mulher transgnera e de
leituras centradas em questes trans*, em corporeidades e no uso de diferentes substncias (como
hormnios e substncias psicoativas), uma perspectiva crtica sobre 'transio', sobre
normatividades corporais, e sobre a relevncia e potenciais riscos no uso de substncias
psicoativas, particularmente no que se refere a resistncias anticoloniais trans*.
Questes a serem desenvolvidas envolvem reflexes sobre meu corpo em 'transio' atravs do
uso de hormnios, sobre eventuais alteraes em minha socializao como consequncia destas
mudanas, e sobre o uso da cannabis como minimizadora de tenses pessoais e como
potencializadora de intervenes acadmicas crticas.
Is it up to nature to decide? Trans* reflections on gender, body, and substance (ab?)use
This article focuses on presenting, based on personal experiences as a transgender woman and on
literature centered in trans* issues, embodiment and the use of different substances (such as
hormones and psychoactive substances), a critical perspective onto 'transition', onto bodily
normativities, and onto the relevance and potential risks involved in the use of psychoactive
substances, particularly concerning anticolonial trans* resistances.
Themes to be developed involve reflections about my 'transitioning' body through the use of
hormones, about changes in my socialization derived from such changes, and about the use of
cannabis as a reducer of personal tensions and as an enhancer of critical academic interventions.
* * *
Trans*sesso #1. Introduo
At que os mais bsicos direitos humanos / Sejam igualmente garantidos a todas pessoas /
Independentemente de raa [e identidades de gnero] / guerra (War Bob Marley, traduo
nossa)
Passeio suavemente os dedos pelos camares verdes acondicionados em um pequeno pote de
vidro. H detalhezinhos laranjas em suas folhas cheirosas, e escolho um camaro encorpado para
preparar, separando-lhe galhos e sementes para o deschave. 'Taba solta bem' 1, disse-me uma
travesti amiga certa vez, e no contato com as folhas e brotinhos, sou obrigada a concordar: taba
solta bem. Giro o deschavador com tranquilidade, algumas sete voltas, e a massa t pronta.
1 Taba o termo proveniente do pajub utilizado entre pessoas trans* para se referir cannabis.
Alcano a seda, aparentemente uma folha orgnica, acondiciono a taba o mais uniformemente
que consigo, e fecho o singelo cigarro.
Figura 01. Tratamentos (thc+th2): seda, deschavador, tesourinha, pilozinho, estradiol.
Fogo na babilnia, dizem, e gosto de imaginar babilnias cis+sexistas3, racistas, classistas,
normativas e inferiorizantes em muitos outros sentidos queimando com a ganja que flui pelo
meu corpo. O som suave, mas Bob fala de guerra, e a viagem das babilnias em chamas me
trazem a viso de uma guerrilheira trans* incendiria: onde jogar meus molotovs, no entanto?
Penso nas realidades a meu redor, e sinto dificuldades para cartografar babilnias, pessoas suas
defensoras ou cmplices, e minhas possveis armas. Talvez este arsenal esteja em tudo que
vivemos, comeando pelos nossos corpos e gritos. E, infelizmente, talvez as babilnias e suas
pessoas defensoras e cmplices tambm estejam em tudo que vivemos, mais prximas do que
imaginamos: no h como se afastar, suspender ou ignorar o cistema4 de maneira irrestrita. Por
isso acredito na importncia dos constantes posicionamentos crticos de nossos corpos e gritos:
mesmo que no saibamos se algum nos escutar quais os limites para aquilo que o cistema-
mundo pode e deseja escutar, afinal5 , mesmo que estas palavras acadmicas no sirvam para
2 'Th' comumente utilizado entre pessoas trans* para se referir a 'terapias hormonais' de 'transio de gnero'.
3 O termo 'cis+sexismo' uma tentativa de caracterizar a complexa interseo entre a normatividade sexista de gnero (produtora cultural das diferenas homem-mulher) e a normatividade cissexista de gnero (produtora cultural das diferenas cis-trans). Ver V. (2013a).
4 Utilizo 'cistema' para enfatizar o carter cis-supremacista do [c]istema-mundo ocidentalizado/cristianocntrico moderno/colonial capitalista/patriarcal (GROSFOGUEL, 2012:339). Este cistema-mundo tambm produz hierarquias epistmicas (ibid.) em que perspectivas no cisgneras so excludas, minimizadas, ou silenciadas.
5 Como pensa Grada Kilomba (2010:28, destaque da autora, traduo nossa) em relao ao racismo nos meios acadmicos, No que ns [pessoas negras] no estejamos falando, mas sim que nossas vozes [...] foram ou [c]istematicamente desqualificadas como conhecimento invlido; ou representadas por [pessoas] brancas que, ironicamente, se tornaram 'peritas' sobre ns mesmas.. Algo similar pode ser pensado na dinmica entre pessoas cis e trans* em meios acadmicos, como faz Katherine Cross (2010).
nada mais que um diploma e um currculo lattes mais 'respeitveis', no podemos nos esquecer de
que este cistema-mundo, quando nos concede a graa da vida, nos quer inferiorizadas,
patologizadas, subalternizadas. Descolonizaes so processos violentos, Fanon diz
inequivocamente, e nestes processos h a exigncia de um reexame integral da situao colonial
(1968:25-27), o que exige grandes esforos analticos, inclusive sobre nossas limitaes polticas,
materiais e existenciais, e 'rexistncias' que se nutram deste reexame integral da colonialidade para
seguir enfrentando cistemas.
Esqueo-me um pouco disso, e com a brisa na mente me alivio um pouco. Cuidar de mim mesma
no deixa de significar autopreservao e um ato de guerra poltica, como diria Audre Lorde
(1988, traduo nossa), e sobrevivo estando, volta e meia, lombrada em meu quarto. Lombrada e
pensando. Olho a seda dita orgnica, supostamente produzida a partir de meios 'naturais'
caamo proveniente de agricultura biolgica , e nela h um slogan: a natureza quem
decide (ver Figura 02), fazendo referncia colorao de seu papel estar isenta de
'artificialidades': el color de las hojas puede variar segn las cosechas.
Figura 02. a natureza que decide?
A frase ressoa em minha mente alterada como uma metralhadora que se empunha s mos 6: dela
armada, procuro fazer mais uma reflexo sobre minha existncia trans*+transgnera+travesti,
notando os muitos momentos em que a cannabis me deu a coragem ou indiferena suficiente
em relao a cis+sexismos para sair 'montada' s ruas (nos tempos em que me via como
crossdresser) ou 'como viviane', pensando nos hormnios que, administrados 'clandestinamente' e
sem acompanhamentos de instituies patologizantes, influenciam minha corporeidade, e
considerando a natureza que, enquanto conceito, se constitui em dispositivo de poder em relao
6 Ao cabo de anos e anos de irrealismo, [] [a pessoa] colonizad[a], de metralhadora porttil em punho, defronta enfim com as nicas foras que lhe negavam o ser: as do colonialismo (FANON, 1968:44). E, dando uma gargalhada cada vez que aparece como animal nas palavras do outro [], comea a polir as armas para [fazer sua humanidade] triunfar (ibid.:32).
a corpos e devires trans* e gnero-inconformes os gneros 'naturais' cisgneros em oposio
aos gneros no cisgneros 'fraudulentos', 'doentios' e 'artificiais'. Esta reflexo, constituda por
anlises autoetnogrficas que mesclam 'realidade' e 'fico' com vistas ao maior potencial
antinormativo e anticolonial possvel, tem sua munio em meu corpo, meus gritos, e na
pergunta: afinal, a natureza que decide?
* * *
Trans*sesso #2. Cannabis, 'transio' de gnero, normatividade careta
Talvez parea curioso que este texto escrito por uma pessoa trans* pensando em questes
trans* , se inicie com reflexes sobre a utilizao da cannabis, esta planta feita substncia
ilegalizada: por vezes, tenho a impresso de que minha identidade de gnero autodeterminada e
inconforme se torna um eixo central supervalorizado nos interesses que as pessoas tm por mim,
inclusive entre aquelas com quem tenho relacionamentos exclusivamente acadmicos. No que
isto em si me incomode compreendo meu corpo e minha vivncia trans* como armas
disponveis, tambm, para a descolonizao crtica do cistema , porm no posso ignorar o
incmodo que surge ao perceber o aspecto colonizatrio presente em dinmicas sociais que
'desviam' (insistentemente, no raro) o assunto para minhas vivncias de gnero pessoais, mesmo
quando minhas proposies intelectuais estejam articuladas no sentido de pensar questes
polticas trans* desde um ponto de vista eminentemente social e institucional (no
necessariamente relacionadas, assim, com minhas vivncias pessoais).
Destaco o termo 'desviam', por um momento: desviar o assunto para minhas vivncias pessoais
pode ser compreendido como um efeito de dispositivos de poder normativos e colonizatrios
que performativamente atuam nos sentidos de provocar certo tipo de 'curiosidade+interesse'
pelas corporeidades e identidades de gnero no normativas enfraquecendo, no por
coincidncia, qualquer carter mais poltico de minhas proposies intelectuais anticolonizatrias.
Talvez possamos, assim, pensar tais corporalidades e identidades de gnero a partir do que Michel
Foucault (1988:61-63) pensa para a sexualidade: sendo a confisso a matriz geral que rege a
produo do discurso verdadeiro sobre o sexo, e percebendo que, [p]ela estrutura de poder que
lhe imanente, o discurso da confisso no poderia vir do alto [], mas de baixo, como uma
palavra requisitada, obrigada, podemos refletir sobre como as eventualmente bem-
intencionadas curiosidades sobre minha vida pessoal (gnero-inconforme) configuram mais
instncias em que se pode perceber como a instncia de dominao no se encontra do lado d[a
pessoa] que fala (pois el[a] [a] pressionad[a]) mas do lado de quem escuta e cala. Ou seja:
importante analisarmos como esta 'curiosidade' cumpre o papel social de desviar o foco de lutas
antinormativas atravs de um aparente 'desejo de escutar'. Por sua vez, tambm no posso deixar
de considerar que tal curiosidade pela minha, e no somente minha, trajetria pessoal possa estar
relacionada a processos cis-colonialistas de meios acadmicos, nos quais pessoas trans* e gnero-
inconformes ainda ocupam o lugar da 'outra' extica e diferente, eventualmente servindo de
ferramenta terica ou de humanizao para pessoas acadmicas cisgneras para uma anlise
crtica destes processos, ver artigo de Katherine Cross (2010).
Isto posto, preciso dizer que a cannabis tem representado um importante componente em
minha 'transio' de gnero, e em realidade pode muito bem ser interpretada como uma
antecessora ('porta de entrada'?) minha terapia hormonal trans* com estradiol. Vejo potenciais
deslocamentos ao pensar a ganja desta forma, desestabilizando narrativas trans* dominantes
constitudas+constrangidas junto ao regime confessional mdico (crticas s violncias deste
regime podem ser vistas, por exemplo, em STONE, 1991), e supercentradas em seus produtos e
servios (terapias hormonais e procedimentos cirrgicos). E, de fato, minhas primeiras sadas 'en
femme'7 foram em parte viabilizadas pela brisa da ganja, espcie de 'dose de coragem' para me
apresentar socialmente 'como mulher'. E, em certo sentido, a cannabis segue sendo instrumento
pessoal de enfrentamento aos cis+sexismos que me deixam insegura e temerosa ao me
autodeterminar socialmente como viviane.
Para alm disso, tambm quero pensar na cannabis enquanto inserida em um contexto histrico
de ilegalizaes. Corro os dedos pela massa solta soteropolitana, trafego pela memria
(sequelada?) da weed canadense 'para fins mdicos' , lembro-me (ainda) da prensada de So Paulo,
e no posso evitar pensamentos sobre o 'Norte' grandes promotores da 'guerra contra as
drogas' e tambm os locais onde se conseguem brisas mais gostosamente 'naturais' , e sobre o
'Sul', onde se localiza parte significativa da brutalidade desta guerra 'nortea' e dos produtos de
exportao economicamente inviveis e qualidades duvidosas. A ilegalizao da cannabis me faz
pensar, por sua vez, sobre uma certa normatividade careta, que posiciona a sobriedade enquanto
uma premissa de racionalidade e 'naturalidade' (o que configura o 'natural', afinal), legitimando
tambm, em algum grau, as no sobriedades que sejam referendadas pelo cistema atravs de
instituies mdicas, indstrias farmacuticas, e ordenamentos jurdicos. O 'norte' dominante no
somente ilegaliza a ganja, como tambm marginaliza os conhecimentos potencialmente advindos
a partir dos usos de substncias ilegalizadas: talvez pensar nas toxicoanlises de Freud e Walter
Benjamin, conforme B. Preciado analisa (2008:248-255, traduo nossa), possa servir de memria
e inspirao histrica para resistncias a normatividades caretas acrticas.
Normatividade careta... essa ideia, essa pressuposio de que as epistemologias possveis,
desejveis, ideais, melhores, superiores, sejam aquelas legitimadas por um conjunto de dispositivos
7 Sair 'en femme' um termo comumente utilizado entre pessoas crossdressers para designar momentos de vivncia mais prximos ao feminino culturalmente constitudo.
de poder relacionados aos estados mentais humanos. E interessante perceber que tal
normatividade no atua, prpria ou necessariamente, no sentido de posicionar como normativos
os estados mentais 'naturais', ou isentos de quaisquer substncias 'artificiais': a ela, tambm
podem se alinhar determinados estados mentais sob a influncia de substncias cistemicamente
legitimadas, como aquelas receitadas por instituies mdicas. Penso, em particular, naquelas que
tm funes, em uma leitura um tanto marxista, de manuteno e promoo da produtividade da
fora de trabalho (e consumo) nos cistemas capitalistas contemporneos, como antidepressivos e
outras substncias. Neste sentido, preciso dizer enfaticamente que esta anlise parte de uma
perspectiva antinormativa em relao caretice.
'Norte', 'Sul' e caretices desembocam em um pensamento arejado por um beck de prensada:
perdida em emaranhados sociais cistmicos embebidos em injustias incluindo-se, a, a
economia poltica deste consumo ilegalizado , questiono-me, por um lado, sobre as
im+possibilidades de enfrentar e destruir o cistema de formas intersecionalmente efetivas, e, por
outro, de maneira mais especfica, sobre como minha atividade acadmica autoetnogrfica
maconheira pode se constituir em uma voz (entre diversas outras vozes) antinormativa e
anticolonial, particularmente em relao a gneros no normativos. Evidentemente, tal
pensamento dialoga com desinteresses e apropriaes acadmicas diante da incipiente e precria
insero de pessoas trans* neste espao (outrora?) colonialista, incluindo-se nisto algumas
experincias pessoais recentes.
[Bad trip] Por ocasio do Seminrio Internacional Desfazendo Gnero, resolvi escrever, em 19 de
agosto de 2013, uma breve crtica a algumas instncias ocorridas durante o evento (ver V., 2013b).
Critiquei, em particular, as maneiras exotificantes (e eventualmente ofensivas) que foram e so
utilizadas em parte das anlises sociais que se posicionam 'sob a influncia' dos estudos queer, e
em como algumas destas epistemologias, metodologias e formas de apresentao de trabalhos
seriam incompatveis ou redutoras dos potenciais antinormativos e anticolonizatrios de uma
proposta de estudos queer nos trpicos, em minha humilde opinio enquanto pessoa acadmica.
Aps a publicao do pequeno texto, preocupei-me profundamente com a possibilidade de
minha breve crtica ao Seminrio estar entre as razes para os lamentos de uma eminente e
consagrada pessoa pesquisadora, publicados pouco depois de minha interveno: seria
preocupante que meus esforos acadmicos, ao fim e ao cabo, fossem algum tipo de projeto-
desejo politicamente mope e intelectualmente desprezvel, e, talvez pior, que eles reforassem
esteretipos patologizantes contra mim mesma.
Figuras 03 e 04. Reflexes sobre o Desfazendo Gnero, I e II
Mope? Desprezvel? Releio meu texto, e noto como me ocupei em tentar apontar os problemas
de exotificaes acadmicas efetivadas, em particular naquilo que se refere mais diretamente a
questes de identidade de gnero: para alm de constatar as instncias problemticas em si, creio
que cabe a preocupao crtica com o fato de o 'Norte' cisgnero tambm presente nos
trpicos, alis constranger de formas acriticamente problemticas as pouqussimas vozes trans*
que se alevantam para dizer 'trpicos de quem, cara plida cis queer'? Neste sentido, acho melhor
seguirmos na graa e segurana de mandar beijos crticos nos ombros para quem est
incomodado, ao invs de feliz, com nossa presena trvica pelos corredores das torres de marfim
colonizatrias (V., 2013c), e nos organizarmos independentemente das atuaes de pessoas ditas
aliadas, resistindo em espaos academicamente legitimados somente na medida em que os
consideremos como possibilidade de potencializao antinormativa isto , na medida em que a
academia nos for til para nossos projetos descolonizatrios. [/Bad trip]
Deixo desinteresses, exotificaes e apropriaes acadmicas de lado: a brisa tambm 'sria', e
na cannabis tenho encontrado um certo alvio anticissexista e uma inspirao para minhas
reflexes acadmicas, que, enfim, parecem incomodar certos ncleos acadmicos de poder.
Reflito, tambm, sobre os porqus de ter sentido a necessidade destes 'pegas' em tantas de
minhas sadas ocasionais 'en femme', um perodo interessante em minha vida durante o qual
passei de uma identificao crossdresser para uma crescente identificao como uma mulher trans*,
bem como conforme se vai intensificando, performativamente, minha vivncia como viviane. O
que me levava, e o que me leva, a esta necessidade ocasional?
Ao tentar responder a esta pergunta, no deixo de me sentir mal por considerar a cannabis uma
forma de resistncia ou alvio pessoal diante do cistema, estando eu, afinal, to privilegiada nele
em tantos sentidos. Penso nisso com a brisa de alguns 'peguinhas' e um comprimido de estradiol
debaixo da lngua. reconsiderando este incmodo pessoal ao reconhecer que, apesar de minha
posio enquanto pessoa trans* ser relativamente bastante privilegiada, h uma significativa
influncia do cis+sexismo estrutural como um fator significativo em meu uso teraputico da
cannabis.
Paro, entretanto, este raciocnio que me envolve em culpa: o cistema, afinal, quer que nos
sintamos mal ao nos indignarmos com as injustias por que passamos enquanto h 'quem sofra
mais que ns', mas no devido sua preocupao com estas outras violaes de direitos
humanos, e sim por temer as potncias de nossas indignaes rizomticas, mltiplas,
contingenciais. Diante do mundo arranjado pelo colonialista, [a pessoa] colonizad[a] a todo
momento se presume culpad[a], diria Frantz Fanon (1968:39). No acredito que devamos deixar
nossas leituras crticas de lado por 'haver gente em pior situao que ns', talvez pelo contrrio:
estas leituras crticas devem se tornar mais potentes a partir das interaes empticas e solidrias
com quem percebamos estar nestas piores situaes problematizando, inclusive, a prpria ideia
de hierarquizar sofrimentos, sem que isso signifique deixar de olh-los criticamente, e de maneira
intersecional a outros posicionamentos normativos.
Neste sentido, tambm interessante pensar criticamente sobre as instncias em que nos
utilizarmos de um posicionamento normativo como autodefesa diante de outras normatizaes
em que somos inferiorizadas enquanto pessoas. Por vezes, sinto uma certa frustrao ao perceber
o quanto meu agenciamento e empoderamento enquanto pessoa trans* acaba estando
relacionado ao quanto eu seja 'passvel' como pessoa cis, ou privilegiada em outros quesitos
como classe social e raa-etnia.
Entretanto, uma anlise crtica desta 'frustrao' passa pela compreenso dos riscos envolvidos na
dependncia de uma posio normativa (da respeitabilidade ou passabilidade, por exemplo) para
que se possa afirmar uma posio no normativa (uma vivncia trans*, digamos). Dois riscos
possveis seriam a possibilidade de se incorrer em normatizaes relativas a partir desta posio
normativa, e, por outro lado, a iluso de que as posies normativas poderiam ser um bom
alicerce de autoafirmao e descolonizao o que me parece ser um erro, particularmente se
procuramos desconstruir, intersecionalmente, todas normatividades.
Finalmente, a partir da busca crtica constante em relao aos riscos apontados, necessrio
reconsiderar a ideia de culpa ou frustrao por conta de determinada posio normativa,
ressignificando-a como uma ferramenta possvel nas lutas antinormativas que deve ser
constantemente avaliada para que seu uso no incorra nestes riscos. Minha ganja, significada por
mim de maneira crtica, arma de resistncia trans* a babilnias brutalizantes e patologizantes, e
no fraqueza de algum politicamente mope e intelectualmente desprezvel.
* * *
Trans*sesso #3. Terapia hormonal, prostituio, autoetnografia
[23-10-2013]. Fumo um beck ou, mais precisamente, dois teros de beck contendo uma
'poeira' e toques de tabaco antes de uma aula de 'Teorias da Cultura'. Tendo ido primeira aula e
faltado segunda, e no ter me impressionado muito positivamente, infiro que abstrair um pouco
pode ser saudvel. Estou no Sistema Agroflorestal (SAF) da Ufba: h rvores, plantas e
mosquitinhos ao redor, e a fumaa vai aquecendo o peito. So 14:06, j estou atrasada a aula se
inicia s 14h. Caminho sala sob sol forte de dia lindo, a brisa mediana, confirmando a menor
qualidade da 'poeira'. As atividades esto para comear sob intenso ar-condicionado.
A pessoa docente prope uma exposio sobre as pessoas 'castrati'. Comeo ouvindo o que se
diz com ateno: segundo ela, estas pessoas passavam por procedimentos cirrgicos logo em sua
infncia, de maneira a promover determinadas possibilidades vocais. Nos termos problemticos
empregados pela pessoa docente, eram 'meninos' que eram 'castrados', passando por uma
interveno em seus testculos para que seu canto fosse mais 'feminino'. Relevo por um momento
a terminologia, acreditando que sejam vivncias e fenmenos culturais interessantes para se
pensarem questes intersexo e trans*, porm a pacincia esbarra logo em seus limites quando a
pessoa docente passa a descrever certas modificaes e processos corporais em direes no
cisnormativas como indesejveis, como deformidades ou transtornos (V., 2013d). Algumas
das 'deformidades' descritas, afinal, eram justamente algumas das mudanas pelas quais meu
corpo estava passando com a terapia hormonal: redistribuio de gorduras pelo corpo em um
sentido socialmente tido como 'feminino', mudanas na textura da pele e no formato dos seios,
entre outras. Aparentemente, corpos que a pessoa docente compreende como sendo de 'homens'
no deveriam almejar tais alteraes, sob pena, possivelmente, de passarem a ocupar uma zona de
ininteligibilidade em relao s humanidades reconhecidas por esta pessoa. Afinal, a definio de
humanidade, pensando a partir de Judith Butler (2004:57, traduo nossa), tem sua inteligibilidade
condicionada por normas e prticas que, para a pessoa docente em questo, provavelmente
recusam as alteraes corporais pelas quais pessoas 'castrati' ou trans* passaram ou almejam
passar como algo pertencente ao campo do humano.
O que conta como uma pessoa? [] O mundo de quem legitimado como real? (ibid.:58)
Pego o nibus aps passadas rpidas e irritadas at o ponto. Congestionamentos e sol na Avenida
Cardeal da Silva: motorista e cobrador conversam sobre como algumas marcas de roupa vo
sendo apropriadas por ditos 'marginais'. Um deles diz, Eu at usava bermuda da Cyclone8 antes,
mas hoje todo marginal que voc v por a t usando isso. O outro acrescenta alguns comentrios
no mesmo sentido. Reflito brevemente sobre como nossas expresses e formas de apresentao
corporal no podem ser restritas a uma s dimenso, como a identidade de gnero, cultura, raa-
etnia, classe, etc., demandando um olhar intersecional para um pensamento crtico descolonial. J
vou chegando em casa, deso no prximo ponto.
Ligo o computador, e logo chega uma mensagem: e ai mulher ta fazendo o que??.
Eu: oie! to em casa...! e vc?
to aqui em casa tambm com as meninas, fumamos aqui e tamo atrs de algum pra a gente
poder compartilhar.. rsrs vc tem? rs
hahaha tou com um camaro aqui, sem companhia, rs subo a?
venhaaa =D
Escrevo algumas linhas deste artigo, separo um camaro e subo. Nada como um grupo de
pessoas queridas, de pessoas que nos trazem boas energias. Somos cinco mulheres eu, a nica
mulher trans* entre elas , nos sentamos no sof e cho da sala. Enquanto um fino fechado,
trocamos ideias cotidianas, e em dado momento se iniciam conversas sobre menstruao,
depilaes, prticas sexuais... apesar de, no geral, me sentir um pouco desconfortvel com estas
conversas, em parte porque, com certa frequncia, so feitas associaes cis+sexistas a estes
assuntos , fico tranquila naquele contexto a ponto de participar da troca de ideias.
Comeo a pensar, ento j com o beck rodando , em como venho tentando articular minhas
vivncias enquanto pessoa trans* aos meus trabalhos intelectuais, e em como isto dialoga com o
princpio autocobaia, pensado por B. Preciado (2008:248) como modo de produo de saber e
transformao poltica [] decisivo na construo das prticas e discursos do feminismo, dos
movimentos de liberao de minorias sexuais, raciais e polticas. Se tratar [] de uma forma
modesta, corporal, implicada e responsvel de fazer poltica.
Considero este conceito e sua perspectiva poltica bastante importantes, e procuro analis-las em
relao s propostas autoetnogrficas que, pouco a pouco, venho tentando construir, refletindo
sobre duas questes principais: (1) no quanto a perspectiva de autocobaia, por poltica que seja
e Preciado enfatiza este carter com eloquncia, estejamos conscientes disto , traz consigo
potenciais de exotificao e alterizao das vivncias a serem realizadas, na medida em que
8 Cyclone (www.cyclone.com.br) uma marca de surfwear brasileira.
http://www.cyclone.com.br/
dialoga, at mesmo terminologicamente, com epistemologias e metodologias racionalistas e
laboratoriais, historicamente inferiorizantes racistas, especistas, heterossexistas, cis+sexistas, etc.
Analiso esta perspectiva comparativamente a como percebo os esforos autoetnogrficos,
centrados e fortalecidos a partir de vivncias agenciadas da pessoa autoetngrafa, porm em um
dilogo epistemolgico e metodolgico que considero distinto entre esta pessoa ('cobaia') e suas
vivncias e interaes sociais ('laboratrio'). (2) Em um sentido prximo, penso que o princpio
autocobaia pode potencialmente privilegiar um sujeito 'de fora' de determinada experincia que,
fazendo-se 'cobaia', dela supostamente se aproxime, desta forma arriscando-se
epistemologica+metodologicamente a limitaes e problemas que podem ser encontradas em
produes intelectuais colonialistas, to comuns na literatura sobre questes trans* produzida por
pessoas cisgneras, e assim afastando a anlise dos eventuais insights e riscos pessoais advindos,
por exemplo, de um uso agenciado de substncias que esteja alm de uma perspectiva de
'experimento' como, por exemplo, minha terapia hormonal cotidiana que dialoga
profundamente com minha compreenso enquanto mulher trans*. Autoetnografias, por sua vez,
me parecem deslocar hierarquias epistemolgicas dominantes que valorizam o experimentador
(homem, cis, hetero, branco, cristo, ) em detrimento da 'pessoa nativa', vista de formas mais
ou menos explcitas como 'envolvida demais'.
O estradiol e a ganja de que fao uso, neste sentido, so constituintes de minha autopercepo e
autoafirmao como mulher trans*, e sendo assim so substncias cujo uso, para mim, teriam
seus significados reduzidos caso fossem tomadas como mero 'experimento cientfico-acadmico'.
As mudanas corporais por que passo a partir da th os seios que crescem, o rosto que se afina,
a gordura corporal que se redistribui no se podem limitar, conceitualmente, a um experimento
direcionado a uma proposta terico-poltica: so mudanas que me afetam existencial e
socialmente enquanto pessoa humana, e que formam parte de um processo pessoal de
descolonizao de gnero que, no raro, doloroso e coloca em xeque tais esforos por minha
autonomia de gnero. por isso que me afetam muito profundamente comentrios como os da
pessoa pesquisadora Figura 04, de que h pessoas 'atacando' e 'reforando esteretipos
patologizantes contra si-mesmxs': minha preocupao est alm do intelecto, e dialoga com o
espectro da patologizao trans* que ainda ronda nossas vidas trans*. Portanto, acredito e me
inspiro na proposta do princpio autocobaia como uma possibilidade antinormativa crtica, porm
penso que pode haver um dilogo construtivo entre esta proposta poltica e uma perspectiva
autoetnogrfica que se fortalece a partir de vivncias pessoais agenciadas, autonomizadas e
criticamente analisadas.
[07-11-2013]. Saio da Sesso Cinema do Desbunde, exibida no ltimo dia do IX Festival
Panorama de Cinema. Um dos curtas da sesso, Mata Adentro9, me interessa de maneira
particular, apresentando um corpo trans* que sensualiza de forma agenciada, em oposio a parte
considervel das representaes miditicas, exotificantes e inferiorizantes. sada, encontro
pessoas amigas para uma rodinha de ganja: gastamos conversas e risadas com uma vista
maravilhosa da Baa de Todos os Santos. Tenho, diante de mim, um curioso sentimento, pouco
depois de sair do cinema, esperando ao ponto de nibus Praa Castro Alves. A brisa continua, e
boa. Um homem, talvez 50 e poucos anos, fuma um cigarro meio amassado apoiado em seu
txi: ele parece me olhar com aquele teso descompromissado que homens cis por vezes
ostentam. Vejo o incio da avenida Carlos Gomes, e sei que em breve haver algumas travestis por
ali, e mais acima, e tambm no ncora do Marujo um dos espaos voltados a vivncias trans*
na cidade de Salvador , mais tarde.
Prostituir-se parece to fortemente constitutivo dos devires trans*, particularmente entre aqueles
que se aproximem de feminilidades, e isto evidentemente construdo (junto a outros elementos
constitutivos) a partir de uma significativa presena da prostituio enquanto ocupao
econmica de pessoas trans*, particularmente entre aquelas mais identificadas, digamos, com
'feminilidades'. Sim, a linguagem colonial a partir da qual constitumos nossas
identidades+identificaes nos limita. Penso nos privilgios que informam este curioso
sentimento que parece, em algum grau, 'romantizar' a ideia de me prostituir. No acredito que
seja um sentimento acrtico em relao s realidades de violncias no trabalho do sexo uma
varivel que penso ser significativa para se pensarem as vulnerabilidades de pessoas trans* a
assassinatos e agresses violentas , porm no deixa de ser uma viso 'externa' que, por suas
caractersticas, deixe de se dar conta de muitos aspectos das diversas brutalizaes e violncias,
uma vez que estas so minimizadas ou invisibilizadas em minha anlise sentimental, pelo fato de
no ser uma vivncia cotidiana, na carne.
Considero, tambm e em um tom mais racional (e por isso mesmo, talvez, um tanto suspeito),
que exista uma perspectiva de interesse intelectual e existencial nesta minha atrao pela pista. As
pessoas trans* ativistas que tiveram experincias no trabalho do sexo e com quem tive a
oportunidade de aprender no me deixam iludir com qualquer glamourizao deste trabalho, e
exatamente por desconhecer tal insero econmica historicamente precarizada e violenta em
minha vivncia que me vejo limitada em minhas atuaes anticolonizatrias centradas em
questes polticas ligadas a identidades de gnero. Sou uma mulher trans* transfeminista no
heterossexual com uma vivncia relativamente privilegiada em comparao a parte significativa da
9 O curta, de Claudia Priscilla, Hilton Lacerda e Rodrigo Bueno, tem como descrio Personagens transitam na subjetividade do desejo (ver http://www.janeladecinema.com.br/2013/mata-adentro/).
http://www.janeladecinema.com.br/2013/mata-adentro/
'populao trans*', e necessrio estar(mos) atenta(s) a isto a nossos lugares de fala se
pretendemos pensar descolonizaes de gneros inconformes.
Vem o nibus, 'Vilas do Atlntico'. Ele passar pela Ufba, prximo minha casa no Rio
Vermelho, e depois pela Pituba. Pelo caminho, vou ponderando se, e como, poderia tentar
conhecer a pista de Salvador; lembro-me de uma amiga que, em dado momento, me diz que
poderia me ajudar a comear no 'lance', e penso que esperar um contato dela seria mais prudente
que simplesmente descer do nibus na Pituba bairro em que h uma presena social de pessoas
trabalhadoras do sexo trans* s noites e ali erraticamente pedir informaes a respeito. Deso
perto do largo da Dinha: bares, acaraj da Dinha, Beiju do Pao, cigarros, entre outras coisas. Ali,
certa vez, flertei com um cara que, ao saber de minha identidade de gnero trans*, considerou sua
atrao por mim um equvoco (ver V., 2013a). Subo a ladeira at minha casa, com um pouco de
fogo no cu frustrado, e com a relativa despreocupao privilegiada de no ter na prostituio uma
das muito restritas possibilidades econmicas, diferentemente da maioria das vivncias trans*:
tendo apoio financeiro familiar e o horizonte de um emprego no setor pblico, tal atividade
econmica poderia ser vista por mim mais como uma possibilidade de experimentao
autocobaia.
Sendo assim, no h relatos autoetnogrficos sobre prostituio no dia 7 de novembro de 2013.
Acendo um beck e ouo Jezebel na voz de Sade: a cano que escutei enquanto, em 2012, fazia
meu primeiro furo na orelha com uma amiga querida. mais, mais que somente um sonho.
* * *
Trans*sesso #4. Por outras epistemologias e estratgias anticoloniais
Voc no pode, voc no pode utilizar o fogo de outrem. Voc somente pode utilizar o seu
prprio. E, para fazer isso, primeiramente voc deve ter a disposio de acreditar que voc o
tem. (Audre Lorde, em BYRD, COLE, GUY-SHEFTALL, 2009:3, traduo nossa)
[20-12-2013]. Acordo pela manh, e aps algumas interaes sociais atravs de computador e
telefone celular, decido iniciar o ritual praticamente dirio de controle esttico de meus pelos
corporais. Lembro-me, por um instante, da primeira vez em que depilei os pelos de minha perna,
aos 24 anos, e dos tratamentos com laser que fiz em meu rosto para reduzir os pelos faciais. Tais
procedimentos trouxeram e trazem consigo um misto da alegria da autoafirmao de gnero com
a frustrao das normatividades corporais que, quando desrespeitadas 'demais', lanam abjeo
sobre meu corpo e deslegitimao sobre meu gnero autoafirmado.
Figura 04. Processo de criao e reviso acadmica (foto: Juh Almeida)
Aps o uso do depilador eltrico e da pina, decido correr pela orla. O tempo est nublado, e a
chuva potencial me faz pensar em mame Oxum. No quarto, preparo um fino com a poeira que
resta e algumas ervas compradas na Alemanha. Coloco um cd que ganhei de um colega da ps-
graduao, Mestre Moraes10. Em No final, diz-se quando eu morrer / No quero fita
amarela / Qualquer cor d alegria / No lugar pra onde eu vou. Acendo o beck e imagino se,
quando eu me for, terei minha identidade de gnero respeitada... vm-me mente trechos do
curta 'Sapatos de Aristeu'11: terei sido, sou, serei viviane? O esquecimento diante da imensido do
universo meu melhor consolo... qualquer nome d alegria, no lugar pra onde eu vou.
Chove, e chove forte. Estou animada com a gua doce que cair sobre mim. Saindo de casa,
lembro-me de um ttulo de capitalizao, feito poca de minha ltima experincia profissional
(analisada em V., 2013a), disponvel para resgate. Pego a carta do banco que me avisa desta
disponibilidade, e saio de casa para encontrar a rua j alagada. Uso um shortinho e tnis da seo
feminina, e uma camiseta de futebol da seleo nigeriana, proveniente da seo masculina.
O cansao j se faz sentir no primeiro quilmetro... aps trs semanas sem muitos exerccios
fsicos, sinto-me obrigada a caminhar mais lentamente. Vou chegando Pedra da Sereia, onde h
uma bica em que, certo dia, vi Oxum se banhar com seu espelho. Tomo, como sempre fao ao
passar por l, sete goles de sua gua. Volto a correr, e passo pela quadra de Ondina onde j joguei
algumas partidas de futsal (ibid.), e tambm por uma santa supostamente catlica onde
derramei vrias lgrimas ateias. Ajoelho-me diante dela, e reflito sobre alguns (bons e maus)
10 O cd do Grupo de Capoeira Angola Pelourinho, 'Ligao Ancestral'. Aqui reforo a gratido ao Mestre pelo presente que me foi dado, herana daquelas pessoas que atravs do canto, diziam o que no lhes foram dadas as condies necessrias para escreverem (citao do encarte do cd).
11 Para mais informaes sobre o curta, ver http://portacurtas.org.br/filme/?name=os_sapatos_de_aristeu .
http://portacurtas.org.br/filme/?name=os_sapatos_de_aristeu
acontecimentos em minha vida desde que decidi me identificar socialmente como uma mulher
trans*: relaes familiares, de amizade, acadmicas, profissionais. A chuva se mistura s lgrimas.
Vou subindo por Ondina, passando pelo Jardim Apipema, e inicio a descida para a Barra. Vejo, ao
longe, o Morro do Cristo. Decepciono-me com a quantidade de smbolos coloniais que
permeiam nossas vidas e s vezes so as nicas ferramentas mo para nos explicarmos
existencialmente, e o Farol da Barra que surge ao longe somente se soma decepo. Desvio do
caminho usual de corrida para ir ao banco resgatar o dinheiro do ttulo de capitalizao, chegando
porta do estabelecimento completamente molhada, e me deixo secar um pouco do lado de fora
sem muito sucesso. Passa, por mim, uma insegurana sbita de entrar naquele recinto, no
somente molhada mas tambm com uma apresentao pessoal em trajes no to explicitamente
femininos, sem qualquer maquiagem que poderia ser estranhada em eventuais agresses
cis+sexistas. Abro a porta de vidro, caminho at a porta de segurana ao lado da qual um
funcionrio e um segurana conversam, e o funcionrio me pergunta sobre o que vim fazer. Ele
se refere a mim como 'senhora', inicialmente, e frisa o 'senhor' aps escutar minha voz, instantes
depois. Sigo at uma pequena fila de 'Servios Diversos' para solicitar o resgate.
A pessoa atendente atenciosa, e ao saber de minha solicitao me pede um documento de
identificao. Forneo-lhe meu registro de economista, bem como a carta do banco me
informando da disponibilidade do resgate. Ela, ento, procura uma colega sua para dirimir
alguma dvida acerca do resgate, que deveria ser feito em espcie por eu no ser mais correntista
do banco, e ento se refere a mim no masculino. Interrompo-a, ela se espanta com a interrupo,
e eu lhe digo que Por favor, refira-se a mim no feminino. Ela diz Ah sim, desculpe, para em
seguida evitar usar alguma referncia generificada comigo, como ao substituir um casual ' para
ela aqui' por um ' aqui, pra c', apontando-me. Pelo jeito, haver dificuldades no resgate, diz a
colega. E h.
A colega vai parte de trs do banco para fazer alguma consulta, e volta em cinco minutos com a
informao de que seria necessrio esperar a volta de uma pessoa funcionria devido a uma
questo contbil. Levaria alguns 15, 30, 45 minutos a colega se 'atrapalhou' para me dar uma
estimativa. E ento ela tambm se refere a mim no masculino, e tambm a interrompo, para ela
tambm se espantar com a interrupo que foi sucedida por Sou mulher, por favor se refiram a
mim no feminino. Ela pede desculpas condescendentes, e eu as aceito sem acreditar muito.
Peo, ento, maiores detalhes sobre a necessidade de esperar ali na agncia, visto que uma
regularizao contbil poderia ser feita sem minha presena. A colega me fala, como a uma
criana falaria, que Ento, eu preciso de uma informao daqui deste cistema para poder fazer o
seu resgate, filho. Peo, ento, que enquanto espero eu possa ligar para a ouvidoria. A colega
segue conversando com a atendente, como quem no houvesse ouvido o que disse. Repito-lhe o
pedido pelo nmero da ouvidoria, a atendente desconversa, e uma terceira vez peo, e ento esta
me mostra o nmero em um folheto informativo. Vou at uma mesa de atendimento prxima,
disco o nmero, e a colega se aproxima de mim para dizer Olha, eu vou ver se consigo entregar
seu dinheiro. Dois minutos depois, a atendente me chama. Desligo, e ela me diz que eu posso ir
at a fila do caixa fazer o resgate a fila tem algumas 15 pessoas esperando. Pergunto-lhe se no
seria possvel, devido fila, que ela fizesse isso diretamente, de maneira que eu no precisasse
esperar tanto tempo. Ela diz, Vou ver. Volto ao telefone, e minutos depois recebo o dinheiro do
resgate. Continuo linha, reclamo dos empecilhos colocados ao resgate, mas no sei como
articular uma queixa sobre a instncia cis+sexista que acabara de acontecer. Que mundo
legitimado como real?
Retomo, gradualmente, a corrida em direao ao Farol da Barra. Em poucos metros, j sinto
pontadas altura do estmago. As pernas doem, os msculos parecem no responder como
outrora (seriam a idade, os hbitos, a th, o thc?). No sei se estaria assim, se tivesse treinado mais,
se no tivesse 'transicionado', se tivesse fumado menos. Talvez. Talvez no estivesse viva, ainda.
O farol se aproxima lentamente: aquela imagem em minha mente me faz pensar no quanto as
lutas anticoloniais so difceis: o farol slido, indestrutvel diante de minha capacidade blica
pouco mais que um punho cerrado , e a percepo de que nossos corpos colonizados, tantas
vezes feridos, tantas vezes inferiorizados, tantas vezes violentados, infelizmente nem sempre
(quase nunca) chegam s linhas de frente anticoloniais com fora mxima, fortes e dispostos.
Muitas vezes, chegamos maltrapilhos, e em farrapos somos levados a guerrear enquanto corpos,
nmeros, crebros em batalhas por migalhas de dignidade humana. Chegamos ali como pessoas
cotidianamente inferiorizadas, sob a luz forte do farol restaurado e mantido pelo cistema que nos
desarticula e nos faz sentir impotentes. Penso nas estruturas de poder acadmicas ao norte e ao
sul, e vejo vivncias ao sul do sul, cur, transfeministas, precrias, fracassadas, ojerizadas. E com
meu pensamento afetivo nelas que encerro este texto:
Olhemos nos fundos dos olhos do cistema. Encaremos seus faris. Ergamos autoestimas
maltratadas, por todos meios necessrios. Todos os meios necessrios. Com ou sem th. Com ou
sem thc. Parafraseando dead prez em 'Don't waste it', uma pessoa guerreira no foge s lutas, ela
as incorpora em si, em sua vida. Sabendo, sempre e a todos momentos, que algumas destas
batalhas ns no vencemos. Mas algumas delas, sim. (Audre Lorde, em BYRD, COLE, GUY-
SHEFTALL, 2009:106)
* * *
Referncias
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_____. Algo cheira mal nos trpicos, ou: Ciscos em sapatos trans* . Disponvel em:
http://transfeminismo.com/2013/08/19/algo-cheira-mal-nos-tropicos-parte-i/ , 2013b.
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