Post on 18-Nov-2018
1
Universidade Estadual de Londrina
EDIMAR EDER BATISTA
AS [IM]POSSIBILIDADES DA CRÍTICA: O MOVIMENTO DE RENOVAÇÃO DA GEOGRAFIA NO
BRASIL.
LONDRINA
2006
EDIMAR EDER B ATISTA
AS [IM]POSSIBILIDADES DA CRÍTICA: O MOVIMENTO DE RENOVAÇÃO DA GEOGRAFIA NO
BRASIL.
Monografia apresentada ao Curso de Geografia da Universidade Estadual de Londirna como requisito à obtenção do título de bacharel. Orientadora: Prof. Dra.Rosana Figueiredo Salvi.
LONDRINA 2006
EDIMAR EDER BATISTA
AS [IMPOSSIBILIDADES DA CRÍTICA: O MOVIMENTO DE RENOVAÇÃO DA GEOGRAFIA NO
BRASIL.
Monografia apresentada ao Curso de Geografia da Universidade Estadual de Londirna como requisito à obtenção do título de bacharel.
COMISSÃO EXAMINADORA
____________________________________ Prof. Orientador
Universidade Estadual de Londrina
____________________________________ Prof. Componente da Banca
Universidade Estadual de Londrina
____________________________________ Prof. Componente da Banca
Universidade Estadual de Londrina
Londrina, _____de ___________de ____
AGRADECIMENTOS.
Listar todos que de alguma forma contribuíram para a realização deste
trabalho é uma satisfação. Peço desculpas desde já pela possível omissão de algum nome.
Em primeiro lugar, agradeço a Deus pelo dom da vida e pela aptidão intelectual necessária à produção deste trabalho.
Em seguida, agradeço a meus pais, João e Irene, que mesmo sem uma formação escolar a qual todos deveriam ter direito, souberam beber do senso comum baseado na sabedoria popular, a idéia transformada em iniciativa de batalhar para que eu e seus outros filhos tivéssemos a oportunidade de estudar enquanto nossa vontade e capacidade permitisse.
Presença importante nesta caminhada desempenhou também nossa orientadora e amiga, professora Rosana Figueiredo Salvi, que desde o primeiro ano da graduação vem acompanhando-nos com paciência e sabedoria da iniciação científica até a finalização deste trabalho.
Agradeço por fim, a todos os professores e professoras, alguns dos quais podem dignificar-se de ser chamados de “mestres”, que contribuíram para nossa formação ao longo de nossa carreira universitária e, em especial, a alguns professores que de alguma forma estiveram mais presentes nos momentos de realização desta pesquisa: professores Armem e Cláudio, professoras Tânia e Ruth.
BATISTA, Edimar Eder. As [im]possibilidades da crítica: o movimento de renovação da geografia no Brasil.. 2006. 53f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Geografia) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2006.
RESUMO
O presente trabalho procura analisar o movimento de renovação ocorrido na geografia produzida no Brasil nas décadas de 1970 e 1980, denominado por alguns de geografia crítica, por meio das interpretações que atualmente, geógrafos que participaram ou não deste momento histórico fazem em relação ao mesmo. Ao longo do trabalho procura-se analisar, baseando-se no materialismo histórico e na dialética marxista, os contextos sócio-econômicos, políticos e culturais mundiais e nacionais que influenciaram o surgimento de novas formas de se pensar e fazer geografia, baseadas num encontro da teoria marxista com a teoria geográfica. No Brasil, exploram-se também as razões ou possíveis insuficiências que redundaram na dissolução do movimento ao longo da década de 1990: a hegemonia excessiva do marxismo, a institucionalização, a falta de debates teóricos mais aprofundados e a disputa pelo poder dentro das instituições de ensino e pesquisa que suplantaram a concretização das idéias iniciais do movimento. Reconhece-se, contudo, a importância dos acontecimentos e transformações deste período para a geografia e o emprego de teorias marxistas no discurso e produção geográficas que ainda ocorre atualmente. Palavras-chave: geografia, movimento de renovação, AGB, geografia crítica, ciência.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO .........................................................................................................6
1 O CONTEXTO DA SISTEMATIZAÇÃO GEOGRÁFICA ENQUANTO DISCURSO CIENTÍFICO ..........................................................................................12
2 A GÊNESE DO MOVIMENTO DE RENOVAÇÃO DA GEOGRAFIA NO BRASIL................................................................................................................22 2.1 O ENCONTRO DE 1978 E A DEMOCRATIZAÇÃO DA AGB..............................25
3 DESENVOLVIMENTO, INSTITUCIONALIZAÇÃO E ARREFECIMENTO DO MOVIMENTO DE RENOVAÇÃO.........................................................................32 3.1 AS CONTRIBUIÇÕES DO MOVIMENTO DE RENOVAÇÃO..............................43 3.2 AS DENOMINAÇÕES DO MOVIMENTO...........................................................44 CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................48
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .........................................................................52
6
INTRODUÇÃO
Ao longo do percurso de realização deste Trabalho de Conclusão
de Curso, vários caminhos foram trilhados em busca da concretização de algo que
não servisse somente como cumprimento burocrático de uma etapa de formação
universitária, mas que realmente contribuísse com o início de nossa formação
enquanto pesquisador.
Como todo início é um tanto quanto traumático, a inexperiência na
realização de um trabalho científico de maior envergadura, mesmo com o apoio
constante de nossa orientadora, constitui-se num obstáculo a ser superado, mas que
trouxe um amadurecimento em relação às limitações e possibilidades inerentes as
especificidades da pesquisa que se ambicionava realizar.
Este relato faz-se importante, pois, nas etapas iniciais de realização
deste trabalho, a idéia era a concretização de algo muito abrangente: uma análise
de grande parte da produção geográfica concebida no Brasil ao longo das décadas
de 1970, 1980 e 1990 que permitisse, por meio da análise de alguns periódicos e
livros de grande importância nacional neste período, a compreensão de possíveis
fases do movimento de renovação ocorrido na geografia brasileira nas décadas de
1970 e 1980, denominado por alguns de “geografia crítica”, seu início,
desenvolvimento, apogeu e arrefecimento. No levantamento bibliográfico, em razão
da quantidade de material bibliográfico disponível na biblioteca da universidade, tal
idéia começou a se esvaecer.
A idéia seguinte foi a de realizar uma análise semelhante, com base
no material bibliográfico disponível, mas com o foco deslocado para a compreensão
de como os principais geógrafos que comandaram este movimento de renovação da
geografia brasileira analisam-no atualmente em seus avanços, problemas e
perspectivas. Para tanto, pretendia-se realizar entrevistas ou contatos por telefone
ou e-mail com estes geógrafos. Esta idéia também mostrou suas fragilidades na
medida em que, de início, conseguiu-se apenas contato com um destes geógrafos,
assim, tal metodologia pareceu-nos neste momento de nossa formação e dadas as
características do trabalho, de difícil execução.
7
Contudo, esta segunda idéia contribuiu sobremaneira para a
delimitação mais precisa de como, a partir de então, se desencadearia a pesquisa.
O geógrafo mencionado acima com quem consegui-se manter contato foi o
professor Armem Mamigoniam. O contato com o professor Armem ocorreu no
período inicial da pesquisa e, mesmo sem uma delimitação precisa da mesma,
nossas conversas foram de vital importância para a compreensão dos limites e
possibilidades da concretização de nossas idéias. Foi Armem quem indicou-nos uma
dissertação de mestrado em que havia sido feita uma pesquisa semelhante a que
estávamos dispostos a fazer, com base em entrevistas com os principais geógrafos
que participaram das mudanças ocorridas na geografia brasileira ao longo das
décadas de 1970 e 1980.
A partir de então, procurou-se pautar esta pesquisa numa analise
bibliográfica que versasse a respeito de como, atualmente, o movimento de
renovação ocorrido nas décadas de 1970 e 1980 na geografia brasileira,
denominado por alguns autores de “geografia crítica”, tem sido visto, tanto por
geógrafos que participaram deste movimento quanto por pesquisadores que, mesmo
sem ter participado ativamente do mesmo, buscam analisá-lo.
Nosso intuito com o presente trabalho é procurar compreender
como e por que surge um movimento de renovação obstinado a romper com todos
ou com a maioria dos pressupostos teórico-metodológicos em voga até então na
geografia dentro do contexto histórico, político, econômico e social vivido pelo país
Com este trabalho não se pretende elaborar um discurso com status de resposta as
indagações propostas, mas tecer algumas considerações que possibilitem um
melhor entendimento acerca da questão proposta, ou, ao menos, estimular debates
com novas interpretações sobre o tema.
Ao longo da realização deste trabalho uma série de idéias, novas
constatações e confirmação de constatações antigas foram se somando para a
construção deste texto que sintetiza o resultado, diria eu, não final, mas provisório,
de uma série de inquietações surgidas ao longo do curso de graduação. Uso o termo
provisório, pois ao longo do curso, aproximei-me e interessei-me pelas teorias e
ideais marxistas, ou do materialismo histórico e dialético, presentes no discurso
geográfico, cuja assimilação pessoal foi se transformando com o amadurecimento
intelectual alcançado no decorrer de nossa formação. Assim, não consideramos o
presente trabalho como palavra final do autor a respeito do assunto, mas sim, o
8
resultado de pesquisas que devem ser compreendidas no âmbito das limitações de
tempo, acesso à material bibliográfico e formação do autor.
Como alguns geógrafos participantes do movimento de renovação
analisado, o autor também, em seus primeiros contatos com a teoria marxista,
possuía uma postura, de certa forma, dogmática em relação à mesma. Postura que
foi se aperfeiçoando, no sentido de ultrapassar os obstáculos inerentes ao
dogmatismo, com o passar do tempo. Contudo, ainda reconhece-se a importância
que, mesmo atualmente, tais idéias fundamentadas no materialismo histórico e
dialético ainda desempenham no discurso e na produção geográfica realizada no
Brasil.
As inquietações motivadoras da realização deste trabalho foram se
construindo aos poucos, ao constatar-se que muitos estudantes universitários e
mesmo professores tem em relação ao encontro das idéias marxistas com a
geografia, um certo sentimento de “repúdio”. As constatações constantes neste
trabalho, a nosso ver, podem contribuir para uma melhor compreensão dos
acontecimentos ocorridos na geografia em nosso país durante as décadas de 1970
e 1980, permitindo ao leitor um entendimento das relações entre marxismo e
geografia que busque ir além da aparência, procurando a essência dos mesmos.
A importância deste trabalho insere-se, portanto, numa perspectiva
que atualmente vem aos poucos ganhando espaço dentro da produção geográfica
nacional de que, tão importante quanto a produção geográfica em si, é a análise
teórica, filosófica, metodológica ou epistemológica que é feita sobre esta produção.
Com isso a ciência avança de forma mais completa, não apenas produzindo
conceitos, teorias, estudos, mas também refletindo sobre esta produção.
Dessa forma, este trabalho procura elaborar uma reflexão acerca
deste movimento de renovação citado anteriormente, contrapondo idéias de
geógrafos que participaram do mesmo e análises feitas após a década de 1990,
quando o movimento passou a perder espaço dentro da geografia em prática no
Brasil, por estes mesmos geógrafos ou por outros geógrafos que buscam analisar
este período de produção geográfica nacional mesmo sem ter participado
ativamente do mesmo.
Espera-se, portanto, que este trabalho insira-se dentro das recentes
produções que procuram elaborar uma releitura da geografia brasileira, constituindo-
se em mais uma fonte de pesquisa entre as já existentes sobre o assunto.
9
Pode-se destacar como principal característica deste trabalho a
linguagem direta, sem muitos rodeios, que procura informar o leitor, com um texto
enxuto, acerca das origens, desenvolvimento e abrandamento deste movimento de
renovação, procurando atrelar, sempre que possível, os acontecimentos aqui
analisados aos contextos sócio-econômicos, políticos e culturais mundiais e
brasileiros que simultaneamente influenciam e são influenciados por estes
acontecimentos.
Como dito anteriormente, este trabalho não pretende adquirir o
status de palavra final acerca do movimento e do período histórico analisados, mas
sim, contribuir com a diversidade de abordagens já existentes sobre a temática em
questão. Isto deve ser destacado, pois a leitura realizada neste trabalho, é a leitura
dialética do materialismo histórico presente em grande parte dos “construtores desta
geografia crítica”. Assim, as análises aqui realizadas podem ser contestadas ou
mesmo refutadas, dependendo da formação filosófica e posicionamento ideológico
do leitor, sendo, pois, uma das formas de análise possíveis, sem pretensões de ser
única, melhor ou pior que as já existentes, apenas diferente.
Feitos estes esclarecimentos que julgamos importantes para uma
leitura mais completa e atenta do trabalho, pode-se então falar sobre a estrutura do
mesmo.
O trabalho está dividido em três capítulos. No primeiro capítulo,
procura-se realizar um breve histórico da sistematização da geografia enquanto
discurso científico, enquanto ciência, procurando estabelecer relações entre os
contextos que moldam esta sistematização e suas conseqüências para a evolução
da geografia enquanto conhecimento científico. Busca-se também, a explicação das
transformações ocorridas no capitalismo a nível mundial e suas repercussões no
modo de fazer ciência da geografia, analisando-se então o surgimento da
quantificação em geografia e a posterior decadência destas idéias quantitativas com
o surgimento nos EUA e Europa de interpretações geográficas baseadas na teoria
marxista.
O segundo capítulo procura destacar alguns elementos importantes
da geografia praticada no Brasil, demonstrando como a dinâmica geográfica mundial
influencia a dinâmica brasileira, até o ano de 1978, em que ocorre o Encontro de
Fortaleza, no qual o descontentamento com a geografia praticada até então toma
10
feições mais eloqüentes e ações mais diretas. São abordados também as condições
em que ocorre o encontro entre a teoria marxista e a geografia.
No terceiro capítulo são abordados os acontecimentos após 1978,
destacando a hegemonia que o marxismo desempenhou na geografia brasileira a
partir de então. Esta parte do trabalho procura elucidar também as causas do
“estancamento”, se é que pode se dizer assim, do movimento, que surge com uma
crítica feroz e grande fôlego, que aos poucos vai se acabando e cedendo lugar aos
críticos da “geografia crítica”.
Além da estrutura do trabalho, cabe destacar outros elementos que
contribuirão para uma melhor leitura do mesmo. Embora a divisão dos capítulos
procure estabelecer uma seqüência lógica e por vezes cronológica dos
acontecimentos, isso se faz apenas como recurso de organização que julgamos
facilitar o entendimento do trabalho. É evidente que vários temas e acontecimentos
dos capítulos se influenciam e se relacionam, contudo, procurou-se ao longo do
texto destacar estes entrelaçamentos mantendo uma separação básica dos
assuntos abordados por capítulos.
A dissertação de mestrado já citada, de SCARIM (2000), possui
algumas especificidades em suas citações bibliográficas. Este autor realizou neste
trabalho diversas entrevistas com os principais geógrafos participantes do
movimento de renovação da geografia brasileira ocorrido nos anos de 1970 e 1980,
e muitas vezes ele cita trechos destas entrevistas, que estão na íntegra no anexo de
seu trabalho, no corpo do texto do mesmo. Isto impôs-nos a citação de tais trechos
da forma que explicaremos, pelo seguinte: não se pode utilizar o “apud”, pois nestes
casos o autor não está citando uma publicação do autor mais sim uma entrevista
deste que faz parte de sua dissertação. Também seria um erro colocar somente o
nome do autor que concebeu a entrevista, pois assim estaria se atribuindo a ele uma
publicação no referido ano. Optou-se por fazer a citação de tais trechos da seguinte
forma: cita-se o nome do autor e destaca-se “em entrevista a SCARIM” ou
“entrevistado por SCARIM” e depois coloca-se a fonte da citação que é o trabalho de
SCARIM, (SCARIM, 2000, p...).
O último elemento que se destaca refere-se à denominação do
movimento analisado. As duas denominações mais utilizadas neste trabalho são
“movimento de renovação” ou “geografia crítica”, denominando os geógrafos
participantes como “geógrafos radicais” ou “geógrafos críticos” ou ainda
11
“participantes do movimento de renovação”. Este esclarecimento faz-se necessário
na introdução do trabalho, pois, ao contrário de muitos trabalhos em que a
explicação da denominação do que se pretende tratar aparece no início, no caso
deste trabalho, aparece no final.
A explicação de por que a denominação do movimento aparecer
somente no final é a seguinte. Ao longo do texto, procura-se conduzir o leitor ao
entendimento de como o movimento vai se aglutinando, construindo,
paulatinamente. Assim, as denominações elencadas acima são utilizadas de acordo
com a conotação das idéias que estão sendo expressas, com isto, procurou-se não
se prender a uma mesma denominação cuja citação freqüente poderia tornar o texto
de certa forma repetitivo. Outro fator para se tratar da denominação apenas no final
é que existe uma certa polêmica entre os participantes do movimento quanto às
denominações utilizadas e mesmo, quanto a ter existido, realmente, de forma
declarada, por parte dos geógrafos desta geração, este intuito de formação de um
movimento dentro da geografia praticada no Brasil. Além disso, há autores que
julgam que a denominação ou rotulação foi um dos fatores que contribuíram para o
arrefecimento ou mesmo fim do movimento.
12
1 – O CONTEXTO DA SISTEMATIZAÇÃO GEOGRÁFICA ENQUANTO DISCURSO CIENTÍFICO.
Considera-se o início do século XIX como o momento em que a
geografia passa por um processo de sistematização que lhe confere o status de
“saber científico”, de ciência. Para um melhor entendimento do desenvolvimento
posterior desta ciência, cabe, contudo, não apenas aceitar este período da história
como sendo o que marca o nascimento da geografia enquanto ciência, ou de seus
precursores, mas inferir o por que ou os por quês desta sistematização ocorrer neste
período.
As descrições de lugares e paisagens, as descrições de rotas de
comércio e os conhecimentos usados cotidianamente para localização e
conhecimento do espaço podem ser considerados formas de pensamento nos quais,
mesmo implicitamente, o que hoje, de maneira geral, considera-se geografia, estava
presente. Isso ocorre desde os tempos antigos com os gregos.
CLAVAL (apud QUAINI, 1983, p. 36) considera que a geografia
humana nasce não da conjugação de abordagens e conceitos passíveis de uma
articulação lógica, mas de uma “inquietação unificadora” ou de uma “curiosidade
científica” encontrada mais em Ritter, Ratzel e La Blache do que em outros
pensadores dedicados ao estudo dos assuntos que, posteriormente, passaram a ser
considerados geográficos.
Assim, o autor atribui ao desenvolvimento do espírito científico mais
do que ao desenvolvimento dos métodos de abordagem os fundamentos para se
entender o nascimento da geografia humana.
MORAES (1999, p. 33-34) argumenta que até o final do século
XVIII o conhecimento geográfico encontrava-se disperso, sem um conteúdo unitário,
sendo impossível considerar esta disciplina como um todo sistematizado e
particularizado.
13
A sistematização do conhecimento geográfico só vai ocorrer no início do século XIX E nem poderia ser de outro modo, pois pensar a Geografia como conhecimento autônomo, particular demandava um certo número de condições que somente nesta época estarão suficientemente maturadas. Estes pressupostos históricos de sistematização geográfica objetivam-se no processo de avanço e domínio das relações capitalistas de produção. Assim, na própria constituição do modo de produção capitalista. (MORAES, 1999, p. 34).
O referido autor elenca como estes pressupostos o conhecimento
efetivo da extensão real do planeta; a existência de um repositório de informações
sobre variados lugares da Terra; o aprimoramento das técnicas cartográficas, aos
quais denominava pressupostos teóricos e; a discussão da Filosofia; os
pensadores políticos do Iluminismo; os trabalhos desenvolvidos pela Economia
Política e o aparecimento das teorias do Evolucionismo como pressupostos filosóficos e científicos.
MOREIRA constata que estes pressupostos que se pode
denominar também como pressupostos históricos da sistematização da Geografia
enquanto discurso científico estarão suficientemente consolidados somente no início
do século XIX. Neste período, a superfície terrestre estava suficientemente
conhecida com a multiplicação dos mapas que forneciam ao colonizador europeu
informações dos pontos mais variados do nosso planeta, o desenvolvimento da
Filosofia abria possibilidades de explicação racional para qualquer fenômeno da
realidade, as bases da ciência moderna já estavam consolidados e os temas
geográficos estavam legitimados como questões relevantes, sobre as quais cabia
dirigir indagações científicas. (1999, p. 40-41).
Estas condições haviam se constituído no próprio processo de formação, avanço e domínio das relações capitalistas. Tal processo realiza tanto os pressupostos matériais, quanto os vinculados à evolução do pensamento. A sistematização da Geografia, sua colocação como uma ciência particular e autônoma, foi um desdobramento das transformações operadas na vida social, pela emergência do modo de produção capitalista. E mais, a Geografia foi, na verdade, um instrumento da etapa final deste processo de consolidação do capitalismo, em determinados países da Europa. (MORAES, 1999, p. 41-42, grifo nosso).
O referido autor ainda salienta que neste contexto histórico
característico da sistematização geográfica, tais pressupostos se forjaram no
período da transição da fase heróica da burguesia, em que esta adotava uma atitude
progressista de luta contra os resquícios do feudalismo, para o período de
14
consolidação deste grupo social e do próprio capitalismo. A sistematização
propriamente dita da geografia ocorre já num momento de pleno domínio das
relações capitalistas em, que a burguesia abandona sua atitude progressista, visto
que, suas ações como classe então dominante visava agora a manutenção da
ordem social existente. (1999, p. 42).
Este contexto histórico que possibilita a realização tanto dos
pressupostos materiais quanto os vinculados à evolução do pensamento, e,
portanto, a sistematização dos conhecimentos geográficos em um saber científico,
também condiciona a Geografia a uma evolução teórico-metodológica comprometida
com a manutenção da ordem social vigente. O surgimento da Geografia enquanto
ciência tem, pois, íntimas relações com fins políticos, a ponto de Milton Santos
considerá-la, de início, uma forma de ideologia. “De fato, a geografia oficial foi desde
os seus começos, mais uma ideologia que uma filosofia,” (SANTOS, 2002, p. 29).
Uma ideologia criada pelo capitalismo em sua fase de implantação/consolidação
para servir de sustentáculo às necessidades expansivas deste sistema.
Este período que vai da sistematização dos conhecimentos
geográficos até a Segunda Guerra Mundial, aproximadamente, é denominado por
alguns autores (como MORAES, 1999) de Geografia Tradicional e é marcado pela
“atitude principista”, em que alguns princípios considerados inquestionáveis atuaram
como um receituário de pesquisa. As máximas e os princípios elaborados então, por
serem tidos como incontestáveis, dificultavam ou mesmo obstaculizavam o
aparecimento e a disseminação de novas idéias e métodos como fica claro no trecho
a seguir:
[...] a atitude principista restringiu uma verdadeira discussão de metodologia, dando margem para a diversidade de posições também nesse nível. A generalidade de princípios permitia que posicionamentos metodológicos antagônicos convivessem em aparente unidade. As máximas e princípios são os responsáveis pela unidade e continuidade da Geografia. (MORAES, 1999, p. 26).
Veremos no capítulo três que a falta de discussões teóricas mais
aprofundadas dentro do movimento de renovação da geografia brasileira propiciou
também uma diversidade de posicionamentos teóricos e metodológicos e que, por
fim, tal falta de discussão pode ser considerada uma das causas do arrefecimento
ou mesmo fim deste movimento.
15
Além das máximas e dos princípios, os postulados do positivismo
davam unidade filosófica à Geografia Tradicional. “Assim, a unidade do pensamento
geográfico tradicional adviria do fundamento comum tomado ao positivismo,
manifesto numa postura geral, profundamente empirista e naturalista.” (MORAES,
1999, p. 24).
QUAINI ao tratar das origens do pensamento geográfico mesmo
antes da sistematização do século XIX aponta duas orientações praticadas nos
estudos de caráter social, a orientação utópica ou subversiva e a orientação
estatística.
De fato, é a partir do Renascimento que se nota a diferenciação de duas fundamentais orientações das “ciências sociais” – uma diferenciação que continuará a persistir até o fim do século XIX – que passa através da “geografia”, ou melhor, da reflexão das relações entre sociedade e território: a orientação utópica ou (para usar uma palavra moderna) “subversiva” e a orientação estatística, no sentido etnológico de informações sobre os Estados e para o Estado. (QUAINI, 1983, p. 139).
Uma destas duas orientações apontadas por QUAINI, à estatística,
assemelha-se bastante à concepção de Geografia dos Estados Maiores, de
LACOSTE.
A orientação subversiva dedicava-se à análise de temas hoje
corriqueiros e amplamente aceitos no discurso científico, como, por exemplo, o
papel do Estado nas relações sócio-espaciais, e os primeiros estudos voltados à
análise das modificações espaciais provocadas pelo processo de urbanização, mas
que, na época não se enquadravam no esqueleto de pesquisa pautado nas
abordagens principistas (baseada nas máximas e princípios) e positivistas. A
orientação estatística valia-se de dados e descrições em suas teorias e servia mais
a possíveis interesses dos Estados.
LACOSTE analisava a Geografia como dividida em Geografia dos
Professores e Geografia dos Estados Maiores. A Geografia dos Professores, ao
nível de ensino, constituía-se em uma disciplina escolar simplória e enfadonha
pautada na memorização de nomes e dados, cuja função era mascarar ou esconder
as reais funções e potencialidades políticas e estratégicas da Geografia (utilizadas
pelos Estados). A Geografia dos Estados Maiores utilizava os dados e os estudos
geográficos com fins estratégicos e políticos.
16
A geografia dita “subversiva”, como aponta QUAINI, neste
emaranhado de máximas e princípios da Geografia Tradicional, que no fundo
mascaravam a real função e utilização da geografia acabou esvaindo-se, mesmo
porque, se tal orientação se desenvolvesse, além de estar em contradição com a
tendência científica geográfica (dominante) de então, poderia de alguma forma,
trazer a tona questões de relevância ao domínio popular que até então só eram
tratados no âmbito da Geografia dos Estados Maiores, pelos e para os dirigentes
dos Estados.
Pode-se considerar, pois, que a Geografia, enquanto conhecimento
ou discurso científico, concebida no âmbito da evolução histórica das ciências em
geral, nasce e desenvolve-se condicionada por determinadas conjunturas históricas
e socioeconômicas que delimitarão o amadurecimento científico deste ramo do
saber.
Esta delimitação faz com que, paulatinamente, por conta dos
interesses aos quais ela encontra-se presa e pelo afã de ser aceita plenamente
como uma ciência, dentro do rol das ciências, a Geografia pouco evolua ou se
desenvolva no sentido de buscar compreender e/ou explicar a realidade em sua
contínua mudança e processualidade. Isto ocorre, porque foi mais importante para a
Geografia, naquele momento histórico, estabelecer-se definitivamente como uma
ciência positivista com leis e métodos “próprios”, mesmo que isto obstaculizasse sua
capacidade de evolução teórica e metodológica em consonância com as
modificações sócioespacias ocorridas no mundo como um todo, mas, principalmente
na Europa.
Com o avanço e desenvolvimento do próprio sistema capitalista,
ocorrem sucessivas e importantes mudanças que tornam a Geografia Tradicional, de
certa forma obsoleta frente ao novo contexto sócio-econômico, advindo das
sucessivas transformações e reestruturações capitalistas.
Os diversos tipos de mediação, entre os quais é preciso considerar as técnicas políticas, financeiras, comerciais ou econômicas no sentido amplo do termo, dão as relações homem-meio uma outra dimensão, que exclui a rigidez de uma geografia regional do tipo clássico e o mecanismo de suas relações com a chamada geografia geral. Não se pode estabelecer uma teorização válida que seja fundada sobre o ‘princípio da causalidade”. O fato de que não há autonomia regional é paralelo a falência da geografia regional considerada em termos tradicionais. (SANTOS, 2002, p. 41).
17
Segundo MOREIRA, na virada do século (XIX para o XX) toda uma
representação de mundo assentada na exatidão físico-matemática entra em ruína.
Isso ocorre porque se abre o debate do estatuto da verdade científica e de todo o
universo paradigmático de representação clássica nela referenciado, em que críticas
surgem de campos do conhecimento até então pouco ou marginalmente ouvidos,
como os da filosofia e das artes. (2004, p. 51).
A respeito destas mudanças ocorridas no mundo e que a Geografia
Tradicional não mais dava conta de explicar, a Segunda Guerra Mundial constitui-se
num momento histórico muito importante para o entendimento da geografia anglo-
saxã. Mesmo antes da eclosão do conflito armado mundial, nas décadas de 1930 e
1940 o mundo ocidental já vivenciava, de certa forma, uma crise social, política e
econômica que transmite este clima de crise para as idéias desenvolvidas no século
XIX. As exigências do planejamento regional e urbano, as necessidades de
reestruturação do pós-guerra aliados à problemática do subdesenvolvimento, da
descolonização e da nova ordem mundial, juntamente com os desenvolvimentos
tecnológicos acelerados no período de guerra que derivam em potentes
instrumentos de tratamento de informação, certamente “[...] propiciaram mudanças
técnicas e metodológicas nas disciplinas, que delimita a crise das concepções
historicistas e o advento do neopositivismo.” (SCARIM, 2000, p. 62).
O conhecimento científico produzido no século XIX não consegue,
pois, responder aos impasses do mundo atual, pós-guerra, a geografia não escapa
deste contexto,
É preciso ordenar o espaço, compreender a proliferação das grandes cidades, das acumulações industriais, das metrópoles ou megalópoles. Aqui é preciso lutar contra o subdesenvolvimento, ali contra o hiperdesenvolvimento onde a multiplicação dos homens e das atividades provoca perigosas poluições. As paisagens que outrora faziam o encanto dos campos e que representam um patrimônio insubstituível estão ameaçadas. A geografia praticada desde o início do século não responde a nenhum dos problemas. (Claval apud SCARIM, 2000, p. 62-63).
O grande desenvolvimento dos instrumentos de tratamento de
informações cria um contexto em que se busca tratar os problemas científicos no
marco de teorias mais gerais, assim, a visão sistêmica, a utilização de modelos e
mesmo uma submissão à lógica matemática penetram fortemente nas ciências
naturais e sociais, a partir de 1950. Passa-se a conceber então, que existe na
18
natureza mais ordem que o aparente caos da realidade, mas que somente
descobriremos se estivermos armados de teoria. Assim, inverte-se a ordem do
trabalho científico e primeiramente elaboram-se hipóteses e teorias e somente no
final, vai-se a campo. Estas tendências, na Geografia, receberam dentre outras
denominações, a de “Geografia Quantitativa”.
A então aparente neutralidade e objetividade científicas alcançadas
por esta visão sistêmica e modelística da Geografia Quantitativa, que se apregoava
o fato de, com o tratamento matemático livrar-se dos subjetivismos, começa a ser
questionada, a nível mundial, na década de 1960, com um renascimento das idéias
marxistas, propiciado por um contexto mundial marcado pelas mudanças nos países
do terceiro mundo, com as descolonizações, os movimentos revolucionários na
China, Argélia e Cuba, a derrota americana no Vietnã, os protestos decorrentes das
intervenções norte-americanas nos países do terceiro mundo, além do nascimento
de inúmeros movimentos sociais urbanos, por melhores condições de vida,
ecológicos, de contra cultua, libertários, a crise energética de 1973-74. Mas o que se
questiona de fato?
Se questiona, portanto, o otimismo desenvolvimentista científico, que esta na base dos supostos ideológicos do positivismo e do neopositivismo. É a dúvida do sentido da racionalidade científica e da justificativa da obsessão do domínio da natureza própria do homem ocidental. (SCARIM, 2000, p. 71).
Assim, quanto mais as relações espaciais vão se construindo pela
técnica, no tempo, mais a história vai se tornando espaço que tempo, numa
crescente densificação histórica do espaço ou densificação espacial da história. “A
chamada crise ambiental é o momento de virada desta troca de sinais entre as
categorias do espaço e do tempo. (MOREIRA, 2004, p. 59). A Geografia vai, aos
poucos, se dando conta de que poderia desempenhar papel importante no
entendimento e/ou busca de explicação destas transformações.
Nos EUA e na Europa, “Desse contexto surgem as novas
tendências que se auto intitulam radicais” (SCARIM, 2000, p. 72), e mais, “Na
Europa a geografia radical chegou quase simultaneamente que a geografia
quantitativa [...]” (SCARIM, 2000, p. 78), sendo que na França, em grande parte
resultando dos movimentos derivados de maio de 1968, a crítica radical absorve um
19
viés mais político, enquanto nos EUA, mais econômico, derivado em grande parte
das leituras marxistas via economia.
Aos poucos, na geografia, o movimento radical vai se delineando
melhor em torno do marxismo,
A partir de 1973 e 1974 a geografia radical se confunde cada vez mais com a geografia marxista, [...] e neste momento também descobrem a tradição da ciência social francesa, italiana, alemã, espanhola...(Lefebvre, Althusser, Poulantzas, Castels, Samir Amim, Horkheimer, Gramsci... (SCARIM, 2000, p. 79).
Sendo que, deste encontro da teoria radical com a teoria marxista
surgiram duas principais tendências: uma crítica dos paradigmas existentes na
geografia até então produzida e outra, a extração de uma teoria geográfica da
literatura marxista.
Dentro destas tendências radicais, SCARIM (2000, p. 74) aponta
que não foi somente o marxismo que se opôs ao neopositivismo, mas também as
correntes da fenomenologia e do existencialismo, principalmente quando esta última
abandonou a preocupação típica com as essências e a transcedentalidade e se
interessou mais pela natureza e o sentido da existência humana e pelo modo de ser
do homem no mundo. Capel (apud SCARIM, 2000, p. 74) chega mesmo a afirmar
que “Foi também por este descobrimento da dimensão pessoal e subjetiva que a
geografia quantitativa começou a ser destruída em seus fundamentos.”
No começo da década de 1970 a insatisfação com a corrente
quantitativa se alastrou tanto pela geografia que até autores importantes desta
corrente, como HARVEY, começaram a mudar de posicionamento, demonstrando as
rápidas transformações pelas quais passava a geografia neste período..
[...] é possível concluir que ao longo da década de 1970 um cruzamento entre várias perspectivas teórico metodológicas acontece. Neste, um embate de “titãs” com suas estratégias, mútuas influências, confrontos diretos, pessoais até, povoaram as instâncias da comunidade geográfica, os encontros, os departamentos das universidades, as revistas e os livros. A efervescência deste momento faz com que busque um enriquecimento teórico cada vez maior, como condição mesmo de participação no debate. O contato com outras áreas do conhecimento, o usufruir de várias fontes filosóficas e a influência de vários movimentos políticos traz para a geografia da época um ativismo político intelectual, talvez sem precedentes na história desta disciplina. (SCARIM, 2000, p. 84).
20
Pode-se perceber, portanto, que tal momento histórico adquire uma
dinâmica, poderíamos dizer, própria, em que os acontecimentos vão surgindo de
forma que, mesmo sem haver um grupo de pessoas guiando de forma intencional e
consciente tais situações, estes acontecimentos de certa maneira se
complementavam e propiciavam uma evolução quase que espontânea. Estes momentos abrem múltiplas possibilidades de pensamento e de ação, e a relação com a sociedade mais aproximada. Desta forma a ciência se nutre de questões presentes nos vários poros da sociedade, renovando os temas das análises geográficas. Novas categorias, noções e conceitos começam a fazer parte do vocabulário geográfico. Dar conta de articular estes embates, teorias, práticas, temas e conceitos com um arcabouço acumulado pela história do pensamento geográfico foi o desafio deste momento. Seus limites e sua riqueza derivam exatamente deste desafio. (SCARIM, 2000, p. 84).
Estas duas citações são muito importantes por traçarem um quadro
geral dos acontecimentos da década de 1970, dos contextos que influenciaram
estes acontecimentos e das conseqüências destes acontecimentos para o futuro da
geografia. A linguagem e alguns termos utilizados pelo autor conferem ao trecho
uma certa ambigüidade, tornando difícil definir se o mesmo está tratando da
geografia somente a nível mundial ou também a nível brasileiro. Pode-se considerar
que está se tratando dos dois. Assim, este panorama geral pode ser adaptado à
compreensão das transformações ocorridas no Brasil no mesmo período.
No final da última citação, deve-se destacar que tal momento
histórico acabou por configurar-se num desafio para os geógrafos de então. Tal
desafio irá caracterizar os limites e a riqueza deste momento e acrescentaria eu, as
possibilidades e impossibilidades vivenciadas pelo movimento de renovação da
geografia ocorrido no Brasil.
Gostaria de fazer aqui uma citação de uma entrevista de CORRÊA
a SCARIM em que estão flagrantes tanto a fragilidade da Geografia Quantitativa ou
New Geography e o alvorecer das idéias marxistas em geografia.
21
Mas no momento em que esta nova geografia chega ao Brasil (68/69) nos EUA e na Inglaterra já começava a sua crítica, na verdade o Brasil está recebendo uma sucata. Quando Lobato esteve em Chicago, soube através da aula de Willian Pattinson, de uma tal de geografia radical, que queria mostrar o outro lado da sociedade, e que a NEW justificava a prática dominante, o que foi uma grande surpresa, principalmente por perceber que marxismo e geografia não são opostos. Assim, os anos de 1975, 76 e 77 foram ‘dramáticos” pois tinha feito enorme investimento intelectual de algo que já não aceitava na íntegra. Com muita dificuldade passou a ter visão positivista, e agora é necessário uma visão dialética.. (SCARIM, 2000, p. 54).
MONTEIRO (2002, p. 24) destaca que as técnicas quantitativas
eram preparatórias de uma globalização mantenedora de grandes desigualdades
onde os grupos hegemônicos manteriam o poder assentado em modelos únicos, a
eles favoráveis. O autor aponta, contudo que mesmo nos centros hegemônicos de
poder e de saber ergue-se uma oposição comandada pelas camadas socialistas de
esquerda que, no âmbito da geografia, gerarão as geografias marxistas, de
esquerda.
Até então, procurou-se tecer algumas breves considerações a
respeito da sistematização da geografia enquanto conhecimento científico e das
diversas transformações sócio-econômicas e culturais ocorridas no mundo,
objetivando compreender como tais transformações influenciaram as concepções
filosóficas, teóricas e metodológicas na geografia a nível mundial. A seguir, realizar-
se-á uma análise da geografia no Brasil, procurando compreender como estas
transformações a nível mundial repercutiram e transformaram a geografia praticada
no Brasil.
22
2 - A GÊNESE DO MOVIMENTO DE RENOVAÇÃO DA GEOGRAFIA NO BRASIL.
Qualquer análise da evolução da Geografia em nosso país tem que
se pautar em três instituições que muito contribuíram para o desenvolvimento da
Geografia no Brasil, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as
universidades e a Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB). Contudo, mesmo
antes da criação destas instituições, no início do século XX, já havia um razoável
acervo de conhecimentos acumulados sobre nosso país, tanto ligados às ciências
humanas quanto às ciências da terra, advindas em grande parte das missões de
cientistas estrangeiros ao Brasil.
Embora não houvesse formação acadêmica especialmente dirigida à Geografia, membros das ciências afins – naturais e sociais – já se aglutinavam numa Sociedade de Geografia, fundada em 1883, posteriormente intitulada Sociedade Brasileira de Geografia, que, entre outras atividades, iniciou e manteve a tradição de realizar os Congressos Brasileiros de Geografia, inaugurados em 1909. Até a instituição das universidades e a criação da Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB) já haviam sido realizados, neste início de século, oito congressos. (MONTEIRO, 2002, p. 5-6).
Na década de 1930 surgem a Universidade de São Paulo (USP) em
1934, a Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB) em 1935 e o Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE) em 1937. A AGB, nascida junto à USP teve
atividade irregular e incipiente durante seus dez primeiros anos. Com o crescimento
da comunidade geográfica (geógrafos licenciados na universidade, técnicos e
professores de ensino médio), em reunião da AGB realizada no Rio de Janeiro, em
1945, decidiu-se pela realização de assembléias anuais em diferentes pontos do
país.
Neste momento a AGB estava estruturada numa composição de
membros com duas ordens de qualificação: os sócios efetivos, eleitos com uma
certa titulação universitária e produção de trabalhos geográficos e os sócios colaboradores, aceitos entre os interessados em geografia e ciências afins,
auxiliares de geógrafos, estudantes universitários e professores secundários de
geografia.
23
As reuniões de Lorena (1947) e do Rio de Janeiro (1948) ensaiaram um modelo de reunião que além da apresentação de comunicações – submetida a séria análise crítica de relatores mais experimentados, o que era uma prática muito estimulante e científica – havia realização de trabalhos de campo, efetuados durante três dias, por grupos trabalhando sob orientação de um coordenador, dois deles trabalhando nas vizinhanças da cidade hospedeira, voltados a problemas significativos, e o terceiro dedicado ao estudo da própria cidade. (MONTEIRO, 2002, p. 15).
Neste período de intensa atividade da AGB, realizou-se
praticamente uma verdadeira “cruzada agebeana” - como denomina MONTEIRO -
de divulgação científica e difusão profissional da Geografia pelo território nacional.
Em relação às influências teóricas e filosóficas, até a década de
1960 a tendência dominante da geografia praticada no Brasil era a francesa, visto
que, vieram deste país os primeiros professores das universidades brasileiras. Esta
situação passa a mudar durante a década de 1960, pois a reestruturação européia
do pós-guerra canaliza para a geografia, então, a importância do planejamento,
principalmente do planejamento urbano, que repercutiria também no planejamento
econômico. “O que era reconstrução na Europa repercutia como soerguimento ou
desenvolvimento econômico para o Terceiro Mundo.” (MONTEIRO, 2002, p. 14).
Nesta década de 1960, sob o governo militar, o país acolhe com
entusiasmo as propostas das ciências econômicas e suas teorias localizacionais. O
discurso geográfico passa a ser muito influenciado pelas análises matemáticas e
informatizadas. Os redutos principais das idéias desta geografia chamada de
Geografia Quantitativa ou Pragmática foram o Departamento de Geografia da
UNESP de Rio Claro e o IBGE.
Em 1967 o IBGE é transformado em Fundação e incluído na
estrutura do Ministério do Planejamento. O governo militar enfatiza o
desenvolvimento econômico e a modernização do país e nesta instituição efetiva-se
a adesão da geografia oficial aos métodos quantitativos.
Este período consolida a idéia de que a organização territorial não
mais estava presa ou primordialmente condicionada pelos fatores naturais, mas
pelos fatores econômicos. A incorporação dos conceitos econômicos de polarização,
a dinâmica das redes de transportes e fluxos de insumos, contribui para a visão ou
divisão do território nacional através das microrregiões homogêneas, Neste contexto
“[...] os geógrafos passam a coadjuvar os economistas [...] A partir daí o geógrafo da
24
Fundação IBGE passa a igualar-se a sociólogos, economistas, funcionalmente
considerados analistas de sistemas.” (MONTEIRO, 2002, p. 22).
Esta geografia muito apegada aos métodos quantitativos, de
inspirações estadunidense, que aos poucos vai rivalizando com a produção
geográfica baseada nos moldes franceses, do ponto de vista de grande parte dos
geógrafos críticos que participaram do movimento de renovação da década de 1970-
1980, não representa grande evolução ou amadurecimento da geografia praticada
no Brasil. Tais autores demonstram que a Geografia Quantitativa é tão ou mais
condicionada sócioeconomicamente que a Geografia Tradicional, e que, portanto,
constitui-se numa mera mudança metodológica em relação a esta última.
Pode-se considerar como MORAES que o planejamento neste
período constitui-se mesmo nova função posta para as ciências humanas pelas
classes dominantes e até mesmo que este é um instrumento de dominação a
serviço do Estado burguês. (1999, p. 101). Para o autor, quanto aos seus propósitos,
Geografia Tradicional trazida e praticada no Brasil pelos franceses e Geografia
Pragmática não diferem muito uma da outra.
Passa-se de um conhecimento que levanta informações e legitima a expansão das relações capitalistas, para um saber que orienta esta expansão, fornecendo-lhe opções e orientando as estratégias de alocação do capital no espaço terrestre. Assim, duas tarefas diferentes, em dois momentos históricos distintos, servindo a um mesmo fim. Nesse sentido, o pensamento geográfico pragmático e o tradicional possuem uma continuidade, dada por seu conteúdo de classe – instrumentos práticos e ideológicos da burguesia. (MORAES, 1999, p. 101).
As críticas feitas pelos geógrafos “ditos críticos” ou radicais a esta
geografia quantitativa foram muitas, destacando-se as relacionadas ao
empobrecimento que ela introduz na reflexão geográfica. MORAES considera que
este empobrecimento advém do anti-historicismo, das teorizações genéricas e
vazias, distantes da realidade que caracterizam a Geografia Pragmática, que é
acompanhada de uma sofisticação técnica e lingüística que, contudo, confere a esta
geografia uma concepção de espaço menos rica que a da Geografia Tradicional
(1999, p. 110).
SANTOS considera que esta Nova Geografia não é um paradigma,
mas apenas uma metodologia, na medida em que este movimento de quantificação
25
seria apenas um instrumento que desconhece o tempo e suas qualidades essenciais
e é incapaz de apreender o tempo em movimento. (2001, p. 69-75).
Há autores como MORAES que consideram a Geografia Crítica
e a Geografia Pragmática como duas vertentes de um mesmo movimento de
renovação contrário à Geografia Tradicional (1999, p. 99). Contudo, a Geografia
Crítica é contrária tanto à Geografia Tradicional quanto à Geografia Pragmática. Ao
longo dos anos de 1960 e 70, este movimento crítico vai se formando
dispersamente, com atitudes individuais que aos poucos vão se aglutinando,
inclusive na AGB.
2.1 – O Encontro de 1978 e a democratização da AGB.
Voltando a falar de AGB, conforme destaca MONTEIRO (2002)
deve-se considerar que com o aumento dos cursos de graduação e pós-graduação
em Geografia pelo Brasil, o número de participantes dos encontros anuais desta
entidade aumentou significativamente. A partir de 1969 têm-se encontros cada vez
maiores, com mais de 1000 e 2000 participantes. Com isso, os encontros passaram
a ser bianuais, devido ao maior tempo necessário à sua organização e passando a
ocorrer em grandes cidades. Com isso, os estudantes perdem as oportunidades de
participação em trabalhos de campo e elaboração de relatórios e discussões mais
árduas entre os participantes, como ocorria até 1969.
Ainda assim, a AGB continuava com o poder centralizado nas mãos
de uns poucos associados efetivos.
[...] mas acontece uma pressão de baixo para cima, onde vários jovens buscam projeção e acontece também o aumento do número de participantes e de trabalhos apresentados. Na assembléia de Montes Claros, dirigida por Ney Strauch, decidiu-se reformular os estatutos que acontece em uma reunião no estado de São Paulo, onde desaparece a figura do sócio efetivo e passa-se a ser sócio titulares todos os profissionais, professores e planejadores e permanecem como sócio colaboradores os estudantes e os não geógrafos interessados em geografia.. (SCARIM, 2000, p. 22-23).
26
Em 10 de julho de 1970 reune-se em caráter extraordinário em São
Paulo uma Assembléia Geral da AGB que institui quatro categorias de sócios:
titulares, honorários, cooperadores e correspondentes.
Neste momento que se inicia em 1970, a AGB toma uma atitude democratizante, ao estender a condição de sócio titular a todos os profissionais, e assim, não tiveram mais os jovens formados que passarem por uma barreira difícil e muito séria. Ao mesmo tempo a AGB vai perdendo o caráter de instituição que ministrava cursos, que formava geógrafos, primeiro porque não podia concorrer com os cursos de pós graduação, e em segundo porque com a participação de centenas ou de milhares de pessoas inviabilizou aquele modelo, como os grupos de pesquisa de campo, relatórios, etc. (por exemplo já em Presidente Prudente tivemos perto de 1000 participantes). O crescimento desta base da AGB provoca novas inquietações no seio da AGB ao longo da década de 1970. (SCARIM, 2000, p. 23-24, grifo nosso).
Este crescimento das bases se dá, pois, como descrito acima, aos
poucos. A AGB, ao se democratizar, permite uma atuação mais presente e forte, em
seu seio, de recém formados e dos estudantes.
Estas inquietações e transformações que ocorreriam na AGB estão
ligadas ao fato de que no final da década de 1960 e início da década de 1970 um
novo perfil de geógrafos começa a surgir no Brasil. Estes geógrafos de posturas
políticas mais declaradas, juntamente com os estudantes vão fazer com que a
década de 1970 seja marcada por desestruturações e reestruturações na AGB. São
características importantes deste novo grupo de geógrafos, além da participação
política, uma postura de esquerda, influenciada ou mesmo próxima das idéias e
conceitos marxistas.
No Brasil, a atuação destes geógrafos cuja postura ideológica
identificava-se com a linha marxista, de acordo com SCARIM (2000), embora não
omissa, não chegou a gerar um sério conflito em razão da repressão do governo
militar. “Foi algo que se foi aumentando, pouco a pouco, para desencadear-se no
final dos anos 70.” (MONTEIRO , 2002, p. 25).
A respeito dos acontecimentos ocorridos em 1978, no Encontro
Nacional de Geógrafos em Fortaleza, ao qual o autor acima refere-se, deve-se
considerar, como SCARIM (2000) e MONTERIO (2002) que os acontecimentos de
1978 não foram uma explosão sem precedentes, nem o auge do debate, mas um
encontro de idéias. Antes de 1978 a insatisfação entre alguns geógrafos já ocorria e
a divulgação de novas idéias, mesmo de forma tímida dadas às circunstâncias,
27
também. As pessoas com posicionamentos semelhantes muitas vezes não se
conheciam ou não mantinham contato escrito e na universidade o debate não
aflorava. Deve-se destacar também que a ditadura militar que ocorria no Brasil
compunha-se em um obstáculo às atividades dos intelectuais de esquerda, dentre
os quais alguns geógrafos se enquadram.
CAMPOS salienta que a elaboração de uma teoria geográfica com
base na metodologia marxista, que na década de 1970 era uma novidade no Brasil,
não era na Europa, destacando que na segunda metade do século XX, neste
continente, o marxismo manifestava uma pluralidade de orientações, divergentes,
inclusive, quanto às preocupações básicas. Neste contexto, “[...] geógrafos,
notadamente europeus, já procuravam refletir sobre as questões geográficas à luz
da dialética marxista, mas, em virtude de divergências internas, não conseguiram
formar um grupo coeso.“ (CAMPOS, 2001, p. 15). DINIZ FILHO constata que
diversos geógrafos anglo-saxões, em especial os norte-americanos pretendiam
construir uma “geografia marxista” de fato, pois, se propuseram a elaborar uma
perspectiva de análise do espaço baseada essencialmente no instrumental teórico e
metodológico fornecido pelo marxismo. (2004, p. 78).
MORAES aponta que a geografia crítica tem suas raízes na ala
mais progressista da Geografia Regional francesa salientando também, que estes
autores que poderíamos chamar de “precursores de uma geografia crítica ou
radical”, como Pierre George, por exemplo, não formavam ainda um grupo coeso
com tendências teóricas e metodológicas claras e conciliáveis. “Poder-se-ia dizer
que estes autores tinham uma ética de esquerda, porém instrumentalizada numa
epistemologia positivista. Daí sua posterior superação..” (MORAES, 1999, p. 120).
MOREIRA ainda destaca que “[...] a renovação da geografia nasce tatibitateando a
linguagem de Lefebvre, Althusser, Gramsci e Lukács.” (2000, p. 35).
Este encontro ou diálogo entre a geografia e o marxismo no Brasil,
tornava-se difícil, visto que, em nosso “passado geográfico” (geografia francesa no
caso da Geografia Tradicional e geografia anglo-saxã no caso da Geografia
Quantitativa), as influências marxistas nunca fizeram parte do discurso geográfico.
MORAES lembra que “[...] na verdade discutíamos marxismo, discutíamos
problemas que estavam postos pela conjuntura política do país, mas fora da sala de
aula.” (SCARIM, 2000, p. 167). Percebe-se assim que o discurso marxista, no caso
da geografia, não fazia parte da universidade. O marxismo está muito ligado às
28
idéias políticas de esquerda e, em fins da década de 1970 havia uma grande
separação entre geografia universitária e participação política. Assim, os geógrafos
críticos: “[...] independentemente de serem geógrafos faziam militância política, e na
militância política tinham um acesso à teoria marxista. Então não tivemos assim na
verdade um acesso a teoria marxista pela via acadêmica” (GONÇALVES em
entrevista a SCARIM – SCAIM, 2000, p. 165).
MOREIRA, entrevistado por SCARIM aponta que “[...] a Geografia
não tinha em seu interior nenhuma ponte para as categorias do marxismo”
(SCRAIM, 2000, p. 166). Aí reside um dos grandes obstáculos enfrentados pelos
geógrafos que participaram do movimento de renovação. Aqueles que queriam
construir uma geografia de cunho social, tendo como base o viés marxista,
construíram uma leitura marxista fora da geografia e não identificavam nesta
disciplina a possibilidade de união. Sobre esta separação entre marxismo e
geografia universitária, há que se considerar ainda o seguinte “Se por um lado havia
esta separação, por outro já havia professores e autores que já buscavam uma
leitura crítica, mas principalmente já havia insatisfação no seio da comunidade
quanto a esta separação.” (SCARIM, 2000, p. 169).
As idéias marxistas, portanto, não penetravam na geografia
universitária brasileira no princípio da década de 1970, principalmente por dois
motivos: não havia na geografia brasileira uma tradição marxista e o momento
político ditatorial vivido pelo país impossibilitava que tais idéias se difundissem fora
de seus redutos já conhecidos (dentro das universidades, nos cursos de sociologia,
por exemplo). Uma das saídas encontradas pelos geógrafos críticos foi a formação
de grupos de estudo para a discussão da teoria marxista. Nestes grupos tanto
professores de formação puramente acadêmica quanto aqueles professores vindos
do movimento político de esquerda participavam.
Estes grupos foram se multiplicando pelo Brasil, mas, sem se
conhecer, sem troca de informações, visto que, na universidade não havia espaço
para eles. O Encontro de Fortaleza foi realmente um local de encontro, de se
conhecer e se reconhecer.
29
“[...] o encontro foi rigorosamente um encontro, no sentido de reunir pessoas que tinham pensamentos críticos e sobretudo os marxistas, e que não tinham contato entre si, se olharam, foi um espelho múltiplo, quase um caleidoscópio, ou talvez um labirinto de espelhos. E a partir daí escancara a porta, as pessoas se conhecem, o encontro junta pessoas e faz com que estas se sintam fortalecidas.” (SCARIM, 2000, p. 179).
MOREIRA, em entrevista a SCARIM, destaca que “A força do
encontro de 78 em Fortaleza veio exatamente desta movimentação, deste rio
subterrâneo, não das academias...” (SCARIM, 2000, p. 180).
Para explicar o que ocorreu em 1978 em Fortaleza e em seguida,
gostaria de fazer uso, de certa forma abusivo, de citações. Faço-o por entender que
tais depoimentos são mais francos na íntegra e demonstram claramente o que se
deseja mostrar, um momento ímpar na história da geografia brasileira, em que,
professores com idéias de esquerda e posicionamento político forte, descontentes
com os rumos da geografia no Brasil, juntamente com estudantes, muitos também
de esquerda, aproveitaram um momento de relativa reabertura política do país e de
também relativo espaço na AGB, para provocar, incitar, cobrar o início de mudanças
profundas na geografia brasileira, tanto a nível teórico quanto na questão política da
representatividade e participação dentro da Associação dos Geógrafos Brasileiros.
À medida que passava o regime militar, desgastado pelos seus desacertos, pelo insucesso do “milagre” e abrandamento da repressão, aumentava a adesão dos jovens universitários às idéias democráticas e de justiça social, aumentando as fileiras ideológicas de esquerda e de adesão à Geografia Crítica que progrediu no campo do Radical. Na comunidade nacional de geógrafos isso iria ficar bem marcado no Encontro de Fortaleza (1978). É indispensável que não seja imputado tudo o que ocorreu naquele evento à vigência de um viés ideológico. Há que reconhecer que a AGB havia crescido consideravelmente, sobretudo pela presença de estudantes universitários que, naquele regime de repressão tinham nas reuniões científicas – como naquelas da SBPC – ensejo de aglomerar-se e protestar. Naquela então vigorava ainda na AGB a hierarquia que concedia voto nas decisões apenas aos “sócios efetivos”. Assim, em Fortaleza, os participantes universitários, apoiados e mesmo insuflados por alguns professores (sócio efetivos), geraram um grande tumulto que, entre vaias e apupos, resultou na desorganização do evento e forçou a mudança radical que eliminava hierarquia entre sócios. Tornava-se, assim, uma associação democrática. (MONTEIRO, 2002, p. 27).
Como já foi dito, tais acontecimentos, mesmo espontâneos, sem
um planejamento prévio, afloraram não por obra do acaso,
30
Do ponto de vista de Milton Santos, 1978 “foi a eclosão de um movimento que vinha se gestando há mais tempo e que havia uma fermentação extremamente bem orquestrada. Não foi obra do acaso nem foi erupção espontânea. Não houve apenas gratuidade. Havia um grupo de geógrafos brasileiros preocupados com a geografia brasileira dispostos a mudar seu rumo no sentido acadêmico, na construção de uma nova teoria geográfica, uma nova posição que fosse também ao mesmo tempo, política e acadêmica, dentro da geografia...Eu fui instrumental a esse movimento.” (SCARIM, 2000, p. 31).
A situação de “tumulto” então criada em Fortaleza, refletindo a
necessidade de reforma do estatuto da AGB, provocou a convocação de uma
“assembléia geral específica” no ano de 1979 no Departamento da Geografia da
USP, em São Paulo. Nesta assembléia ocorreu o seguinte, na opinião de Manuel
Correia de Andrade:
Em 1979, recorda Andrade, “os sócios colaboradores conseguiram, com o apoio de alguns sócios efetivos, controlar a assembléia, em grande parte formada por estudantes, provocando uma ruptura e a transformação da AGB em uma sociedade em que os estudantes passaram a ter verdadeiro controle dos destinos da mesma”. Manuel chama esta pressão aos poucos sócios titulares presentes de “golpe de força”, onde a diretoria se viu numa difícil situação, ou renunciava ou entrava na justiça, e desta forma reunida resolveu renunciar e entregar a AGB aos “revolucionários”, que elegeram Armen Mamigoniam como presidente.(SCARIM , 2000, p. 34-35
Esta ação denominada por ANDRADE como golpe de força marca
um momento de grandes transformações dentro da AGB, que passa, a partir de
então, a ser mais democrática, possibilitando a ação mais efetiva dos estudantes.
Marca também uma “certa vitória” dos geógrafos marxistas ou radicais que
tumultuaram o Encontro de Fortaleza exigindo mudanças radicais e fundamentais, a
seu ver, nos rumos da geografia brasileira.
Pode-se considerar, portanto, que o Encontro de Fortaleza em 1978
constitui-se num marco de início do movimento de renovação, enquanto ação
coletiva organizada com o objetivo de transformar a geografia brasileira, mesmo
havendo, nos anos anteriores, a insatisfação e a busca de mudanças por parte de
alguns geógrafos. O Encontro, no entanto, ao aglutinar as insatisfações e concretiza-
las em ações práticas de professores universitários e estudantes inaugura um novo
“ciclo” se é que assim se pode dizer, na geografia em produção no Brasil.
31
A democratização da AGB talvez seja o resultado prático mais
expressivo, naquele momento histórico, da força e obstinação dos geógrafos e
estudantes envolvidos neste “clima de mudança”.
32
3 – DESENVOLVIMENTO, INSTITUCIONALIZAÇÃO E ARREFECIMENTO DO MOVIMENTO DE RENOVAÇÃO.
Deve-se exaltar o seguinte, estamos falando sobre as relações
entre o marxismo e a geografia por que esta vertente do pensamento, mesmo dentro
da pluralidade de orientações do discurso geográfico crítico, gozava de certa
predominância em relação às outras orientações ou posicionamentos filosóficos e
ideológicos.
Não há dúvida de que a assimilação do marxismo foi a pedra angular na edificação da chamada geografia crítica, influenciando de modo intenso todos os seus aspectos teórico-metodológicos e ideológicos. Houve diferenças significativas nas formas dessa assimilação, dependendo do país, instituições ou mesmo das interpretações particulares de cada geógrafo sobre a obra marxiana, mas é inegável que o marxismo constituiu a principal fonte da geografia crítica ou radical. (DINIZ FILHO, 2004, p. 77).
Contudo, mesmo predominante, dada a diversidade do movimento,
não houve uma forma única ou preponderante de encaminhamento da geografia em
direção ao marxismo, até por que, o próprio marxismo e suas interpretações são
bastante heterogêneas (MOREIRA, 2000; SCARIM, 2000). A formação dos
envolvidos neste processo era muito diferente, havia conhecedores do marxismo e
mesmo desconhecedores. Com isso, o discurso geográfico crítico se vestiu com as
categorias do discurso marxista nem sempre, contudo, compreendendo-as e
adequando-as às análises realizadas. MOREIRA, falando sobre os anos de 1978 a
1988 nos dá uma noção da imprecisão do movimento.
A leitura minuciosa dos trabalhos produzidos no decurso do período, leva-nos a indagar se sempre se soube da coisa posta, se está claro de que questão está se falando e da pertinência da fala. A impressão mais forte que emana das leituras é a de uma intelectualidade sem a lista transparente dos problemas que enfrenta. [...] os autores desses textos mais lembram navios a busca de um rumo, que baterias de fogo concentrado sobre alvos perfeitamente definidos. (MOREIRA, 2000, p. 28)
Como causa ou conseqüência desta imprecisão apontada por
MOREIRA, o movimento de renovação da geografia brasileira que se inicia em fins
da década de 1970 é muito plural. De maneira geral os geógrafos se caracterizavam
por terem posicionamento político de esquerda e por flertarem com o marxismo.
33
MORAES argumenta que os geógrafos ditos “críticos” caracterizam-se por uma
postura frente à realidade e à ordem constituída, que pensam seu saber como uma
arma no processo de transformação da realidade social, assumem o conteúdo
político do conhecimento científico propondo uma geografia militante que lute por
uma sociedade mais justa. (1999, p. 112).
É um movimento plural que apresenta como traços comuns o
discurso crítico e uma unidade de propósitos dada pelo posicionamento social.
“Assim há uma unidade ética, substantivada numa diversidade epistemológica.”
(MORAES, 1999, p. 127).
A influência do marxismo na grande maioria dos autores desta
geografia crítica é destacada por DINIZ FILHO (2003) e CAMPOS (2001), sendo que
este último ainda afirma que: “A Geografia Nova, Crítica, Radical ou Dialética
afirmando possuir como base a dialética marxista – mas sem adotar integralmente o
marxismo -, vai colocar como objeto da Geografia a sociedade e a transformação da
mesma, como seu objetivo.” (CAMPOS, 2001, p. 11).
Dentro da diversidade teórico-metodológica dos autores deste
movimento, podemos citar além do marxismo em suas várias nuances, o
estruturalismo e o existencialismo, “[...] há marxista, quem passe ao largo do
marxismo e mesmo anti-marxistas entre os envolvidos no processo de reformulação
da geografia [...] o que verdadeiramente há é um movimento plural, convergente
apenas no descontentamento com o discurso geográfico vigente. “ (MOREIRA,
2000, p. 34).
Armando Corrêa da Silva fez uma detalhada análise dos trabalhos
geográficos ligados ao movimento de renovação da geografia brasileira entre os
anos de 1976 e 1983 destacando como as categorias mais utilizadas pelos
geógrafos críticos e radicais em sua linguagem: sociedade, classes sociais, homem,
forças produtivas, trabalho, prática, urbanização, práxis, valor, valor do espaço,
forma, processo, relação, determinação, movimento, objeto, teoria, ideologia,
linguagem, método, real, totalidade, natureza, espaço, espaço geográfico, arranjo
espacial, lugar, formação econômico-social, modo de produção, capitalismo,
produção, formação social, mercadoria, país subdesenvolvido, função, capital e
Estado-Nação. (SILVA, 1984 p. 132). O autor destaca que a maioria das categorias
pertence ao marxismo, mas que existem também categorias do liberalismo, do
positivismo, do neopositivismo, do empirismo, do estruturalismo, do naturalismo e do
34
existencialismo, o que demonstra o quão plural é a matriz teórico-metodológica dos
autores deste movimento, destacando por fim que: “A situação do discurso crítico
radical é, então, o de uma frente ideológica polarizada pelas categorias do
materialismo histórico e dialético.” (SILVA, 1984, p. 133).
Esta decisiva influência do marxismo na gênese e desenvolvimento
da geografia crítica, conforme aponta DINIZ FILHO (2004, p. 83) em razão das
diferentes formas de assimilação manifestou-se em quatro esferas complementares
de produção geográfica: a) no plano epistemológico: contribuindo para a
redefinição do objeto da disciplina, fornecendo um método de análise que procura se
aplicar a este objeto, método marxista este cercado por um discurso que lhe atribuía
uma cientificidade inquestionável; b) no plano teórico: por oferecer uma teoria
crítica ampla do capitalismo e um sistema de conceitos e teorias passíveis de serem
aplicados no estudo de temas geográficos; c) na esfera ideológica: moldando e ao
mesmo tempo se amoldando à visão de mundo dos geógrafos, orientando seus
posicionamentos políticos e d) no plano deontológico: estabelecendo a existência
de um estreito vínculo entre ciência, ética e política, enfatizando a necessidade da
ação militante para a transformação da ciência em algo socialmente transformador.
Neste contexto, em que muitos dos geógrafos brasileiros que
assumiram estas posturas radicais buscavam no marxismo a possibilidade de
encontro com a construção de uma teoria geográfica crítica, como não existia no
conhecimento geográfico acumulado até então, no Brasil, nenhuma ponte para o
marxismo, como já foi demonstrado anteriormente. Estes autores, então jovens
geógrafos, retornavam à “cadeira” para estudar o marxismo e mesmo aqueles que
tinham contato com o “marxismo militante” não sabiam fazer a ponte com a
geografia. Neste momento, como constata SCARIM (2000, p. 88) assume
importância figuras mais amadurecidas, como Milton Santos, que por possuir um
acúmulo de leituras, participação em instituições de pesquisa, passam a representar
um novo perfil de geógrafos em fins da década de 1970, marcados por um
aprofundamento teórico do marxismo e uma postura crítica frente à realidade
nacional e internacional.
A respeito desta ligação entre marxismo e geografia, no campo
teórico, MOREIRA (2000) argumenta que é com Lacoste, Milton Santos e Quaini que
a Geografia descobre Marx, constatando ainda que Milton Santos com o livro “Por
uma Geografia Nova” traz para o movimento aquilo que lhe faltava: a base de
35
sistematização das idéias. “Há um processo de crítica que antecede a 1978, cresce
e se auto-alimenta no seu próprio movimento. Mas o movimento é vago e o protesto
é genérico. Falta-lhe o conteúdo que o explique. É isso que lhe traz o livro de Milton
Santos.” (MOREIRA, 2000, p. 33).
Este livro de SANTOS “Por uma Geografia Nova” foi sem dúvida o
mais “encorpado” no sentido de fazer uma crítica da Geografia, mas de, também
propor uma sistematização teórica que até então faltava ao movimento de
renovação, que talvez, mesmo sem esta consciência de um movimento, já se
constituía num.
SANTOS destaca-se dos demais geógrafos brasileiros de então,
por procurar conferir autonomia epistemológica à Geografia a partir da proposição
de que o objeto desta disciplina deveria ser o espaço.
Mas o autor nunca teve a intenção de realizar esta tarefa mediante a construção de uma geografia crítica marxista, visto que suas formulações teóricas revelam nitidamente um elevado ecletismo epistemológico. Ainda assim, sua produção intelectual das décadas de 70 e 80 atribuía grande importância a teorias e conceitos de extração marxista, tais como o conceito de formação econômico-social e a definição de espaço com “acumulo desigual de tempos de trabalho” – a qual influenciou em muito Messias da Costa e Robert Moraes. (DINIZ FILHO, 2004, p. 81).
Mas mesmo com todo ecletismo e refinamento teórico, DINIZ
FILHO insiste no fato de que “não há como negar que sua visão crítica da sociedade
capitalista sempre esteve afinada com teorias e ideologias marxistas.” (2004, p. 82).
O autor ainda complementa afirmando que do ponto de vista político ideológico a
única diferença entre Milton Santos e a maioria dos intelectuais marxistas, geógrafos
ou não é que este se recusa a desempenhar qualquer tipo de militância.
Continuando a falar acerca dos livros do período, sobre a
importância das publicações nos processos de ruptura, MOREIRA (2000, p. 32)
aponta que os livros constituem-se nos grandes corpos de batalha, “exércitos
clássicos”, pesados que precisam do trabalho leve dos pequenos e ágeis “grupos de
guerrilha” que são os textos de revistas. Considera que as revistas cumprem o papel
de agitar as idéias, reciclar o vocabulário e ecoar os paradigmas, mobilizando os
intelectuais para a novidade dos debates.
Além do livro de SANTOS já citado, tiveram importância neste
período, de final dos anos 70 e início dos anos 80 os livros De LACOSTE “A
36
Geografia Serve Antes de Mais Nada Para Fazer a Guerra” de 1977, com uma
edição brasileira em 1988, de Quaini, “Marxismo e Geografia” (1979), e “A
Construção da Geografia Humana” de 1983, as coletâneas de artigos organizados
por Ruy Moreira no livro “Geografia Teoria e Crítica” e por Milton Santos no livro
“Novos Rumos da Geografia Brasileira”, ambos em 1982, além dos textos
publicados no número especial da “Revista de Cultura Vozes”, pela AGB no
“Borrador” e na “Seleção de Textos”, no “Boletim Paulista de Geografia”, na revista
“Terra Livre” e no questionado mas muito lido livro de Moraes, “Geografia Pequena
História Crítica”.
Após toda a ebulição e as transformações decorrentes do Encontro
de 1978, mesmo com o livro de SANTOS e as publicações já citadas não houve
avanços significativos no campo teórico-metodológico. Como já foi exposto, o
marxismo, ou a dialética, constitui-se na corrente filosófica predominante entre os
geógrafos radicais (ou críticos), contudo, este período foi marcado por grande
efervescência de posicionamentos e pluralidade de formações filosóficas que, no
entanto, se aglutinavam na crítica da situação posta e num forte comprometimento
social, “Neste primeiro momento as diferenças ficaram em segundo plano dentro
deste movimento de renovação da geografia brasileira” (SCARIM, 2000, p 187).
OLIVEIRA, entrevistado por SCARIM, aponta que a geografia crítica foi um “guarda-
chuva” que, do ponto de vista político ideológico, representou um marco de ruptura,
sendo um recurso que todos usavam sem questionar, mas que, no fundo, serviu
mais para esconder do que para mostrar o debate, exibir as diferenças.
Mesmo tendo um sentido de pertencimento, esse movimento era um sentimento difuso, de todos que se colocavam contra uma geografia tradicional, uma crítica ao positivismo, sendo mais um clima na criação de um clima favorável a mudança, do que uma mudança. (SCARIM, 2000, p. 187).
Assim, o autor aponta que o movimento de renovação possuía uma
forma muito tênue de pertencimento, que gerou todo um clima favorável às
mudanças almejadas do que propriamente concretizou a realização destas
mudanças.
Contudo, pode-se considerar que na virada da década de 1970-
1980, nesse movimento ou entre os geógrafos que compartilhavam destes ideais
críticos, era mais importante defender suas concepções teóricas, filosóficas e
37
ideológicas com o intuito de tornar aceitas e reconhecidas as transformações
ocorridas na geografia, que uma problematização ampla e profunda das
possibilidades e da forma como seria construída esta nova forma de fazer geografia
que se pretendia criar com base ou muito influenciada pelos conceitos e teorias
marxistas e de esquerda. A crítica era, portanto, neste contexto, feroz tanto para
desestruturar a geografia praticada até então quanto para se defender de possíveis
questionamentos.
Com o passar do tempo,
As questões colocadas pela nova teoria e que foram sendo abandonadas ao longo da sedimentação, possuem uma explicação, seja pelos limites teóricos, pelas falsas questões ou porque a nova teoria foi perdendo energia. Talvez estes abandonos são sintomáticos para o entendimento das reais intenções e possibilidades desta teoria, onde talvez as questões frágeis na qual naquele determinado momento a teoria não consegue resolver é melhor que seja congelada do que expor a fragilidade. (SCARIM, 2000, p. 170).
Mas por que a mudança completa não ocorreu, por que o debate foi
escondido, ou não existiu com a profundidade necessária?
Pelo exposto até então e, pelo posterior e rápido esmorecimento
deste movimento de renovação da geografia brasileira, pode-se considerar que
existem duas formas de se analisar a questão. Considerando-se que entre os
geógrafos críticos ou radicais, até mesmo pela pluralidade e diversidade
apresentadas, nunca houve a intenção deliberada da formação de um movimento
destinado a transformar profundamente a geografia brasileira, a diluição das idéias
críticas ao longo da década de 1990 pode ser vista como uma conseqüência normal
dos acontecimentos. A aceitação e propagação de tais idéias pode, até mesmo ser
compreendida com um “modismo”.
No entanto, quando se considera, como no caso consideramos, que
mesmo dentro desta pluralidade teórica e filosófica marcada até por adeptos
modistas e geógrafos pouco conhecedores da teoria marxista, existia, mesmo que
implicitamente, entre certo número de geógrafos, o intuito, ou melhor, a motivação,
da construção de algo novo, de uma espécie de um “projeto unitário” que fornecesse
à geografia novas bases e fundamentos filosóficos, teóricos e metodológicos para a
construção de uma “teoria geográfica crítica”, que mesmo com outra ou sem
denominação representasse um nova forma de pensar, de conceber e fazer a
38
geografia no Brasil, há que se questionar o por que ou os por quês da não
concretização de tais anseios e idéias.
Para tanto, procurou-se não apenas formular uma resposta, mas
tecer algumas considerações acerca de como, atualmente, alguns dos geógrafos
que participaram ativamente da geografia brasileira nas décadas de 1970 e 1980,
vêem o desfecho de tais acontecimentos.
Após 1978 deveria se provar que o marxismo e a dialética se
incorporariam à geografia, proporcionando a criação de uma nova teoria crítica que
teoricamente e metodologicamente se mostrasse como uma evolução em relação à
geografia quantitativa. Contudo, a construção desta teoria crítica unindo o arcabouço
teórico da geografia com o arcabouço teórico do marxismo não se concretizou
(SANTOS 2000). Uma das razões para esta não concretização foi a falta de debates
mais aprofundados.
Com o passar do tempo, o debate político ideológico do início da
década de 1980 começa a arrefecer e ganha força o debate teórico, metodológico e
filosófico dentro da geografia. Contudo, este debate não é aprofundado, pois, o
movimento de renovação começa a se institucionalizar dentro das universidades. A
respeito, MOREIRA em entrevista a SCARIM considera que:
[...] “Não se sacramentou um casamento propriamente do marxismo com a Geografia.” O motivo para isso foi que quem acabou assumindo a hegemonia do movimento que emerge em 1978, eram pessoas de esquerda, mas que faziam parte da academia, foram professores universitários, viventes da academia, e que levaram para dentro do movimento de renovação, ou “de um casamento entre o marxismo e a geografia”, todos os vícios da academia. Um destes vícios é que a academia não polemiza, a academia não discute, a academia esconde segredos, “ela até receia que uma idéia que surgiu na sua cabeça seja apropriada por outras, isso é coisa de academia, ambiente de academia”, não intercambia, desta forma não houve interlocutores, “tivemos por interlocutores nós mesmos”. (SCARIM 2000, p. 197).
Aqui, deve-se destacar que, como já abordado, o marxismo entra
na geografia pela via da militância por meio de professores e estudantes que
trouxeram para a academia os ideais de esquerda de sua atuação política. Não
havia, pois, um arcabouço teórico dentro da geografia que pudesse acolher tais
idéias e conceitos, isto teve que ser construído aos poucos. A questão colocada por
MOREIRA em entrevista a SCARIM (2000) é que, paulatinamente, são os
“professores de academia” e não os “professores militantes” que passam a
39
capitanear este processo, agregando uma série de vícios e incoerências próprias da
academia.
OLIVEIRA também entrevistado por SCARIM aponta que em 1982
“havia um excesso de discurso, o que significava excesso de ideologia e muita
pouca pesquisa.” (SCARIM, 2000, p. 196).
Outro aspecto que pode ser apontado como razão deste não
casamento entre geografia e marxismo e do posterior esgotamento do movimento é
que o marxismo, foi utilizado por grande parte dos autores de forma dogmática.
Pode-se mesmo afirmar que o “pecado original” da geografia marxista, responsável maior pelos seus equívocos político-ideológicos e insuficiências epistemológicas, foi a leitura dogmática das obras de Marx e dos clássicos do pensamento marxista, conforme já começa a ser reconhecido por alguns autores. (DINIZ FILHO, 2004, p. 84).
Acerca da influência que os paradigmas exercem na evolução do
conhecimento ou das idéias, SPÓSITO considera que
[...] “os paradigmas contém suas componentes ideológicas e doutrinárias e são por sua força filosófica em designar os parâmetros para a produção científica e filosófica e para a reflexão epistemológica do conhecimento elaborado, condicionantes e entraves para a liberdade de pensamento. (2004, p. 67).
Assim, as idéias marxistas podem ser consideradas, pelo exposto,
simultaneamente um anseio de libertação que acabou se transformando na própria
prisão da geografia.
Passada uma primeira fase (início dos anos de 1980) em que a
geografia crítica funcionava como um guarda chuva político ideológico, começou a
haver divergências entre os “geógrafos críticos”. Uma destas divergências, como
aponta GONÇALVES – em entrevista a SCARIM (SCARIM, 2000, p. 196) é que
estas divergências derivam em duas geografias distintas, uma que vai privilegiar o
espaço com categoria da Geografia, e outra, o marxismo das relações de produção,
que vai privilegiar a categoria de território.
Além disso, com a institucionalização, ou oficialização, a geografia
crítica passa a gozar de uma hegemonia, pois parece que todo mundo é de
esquerda, conforme aponta OLIVERIA, em entrevista a SCARIM (2000). Com este
processo de hegemonização do marxismo na geografia brasileira, dentro das
40
universidades, ocorrem dois processos: um de uso da lógica partidária nas
instituições (SCARIM, 2000, p. 200) e outro caracterizado pela fogueira de vaidades,
pela disputa teórica e pessoal, que se misturam e se confundem, impedindo a
coesão do movimento. SANTOS –em entrevista a SCARIM- constata que: “[...] o
poder passa a ser mais importante, mas não aquele de formular um projeto para a
geografia, para o departamento, mas simplesmente o poder pelo poder.” (SCARIM,
2000, p. 39). Aqui, quando Santos usa o termo “projeto”, pode-se entender este
projeto como um projeto unitário, o que confirma a idéia de construção de um
“movimento de renovação da geografia brasileira” no período em análise.
Do ponto de vista de Moraes, ao longo dos anos 80 há um inchaço da esquerda geográfica, chega uma hora em que todo mundo aparentemente é de esquerda, dando a impressão de que não tem ninguém com outra posição, e em certo momento, acendem a fogueira das vaidades, ocorrendo um fracionamento discutível deste movimento, ele já havia cumprido também o que seria a sua meta, e esta geração começa a se institucionalizar, com tudo que vem junto com isso, os interesses acadêmicos, profissionais e as institucionalizações. (SCARIM, 2000, p. 200-201).
E qual seria esta meta já cumprida, segundo MORAES? A crítica
geral tanto da ciência quanto em relação ao funcionamento da universidade e da
AGB? O autor não evidencia o conteúdo desta meta em seu texto. Mais a frente
apontaremos as contribuições do movimento de renovação para a geografia.
MOREIRA argumenta ainda sobre os bloqueios que o marxismo
transformado em modismo e a rotulação do movimento de renovação como
“geografia crítica” trouxeram:
Primeiro criou-se uma imagem de que a geografia que estava em renovação era sinônimo de geografia marxista, e segundo criou-se uma terminologia simpática, que combinava este engano com uma espécie de modismo, estou me referindo a chamada geografia crítica. Então isso bloqueou a possibilidade de se desenvolver o marxismo a sério na geografia, é por que de repente todo mundo virou marxista, e ao mesmo tempo impediu que junto com marxismo uma outra pluralidade surgisse. Primeiro não houve o casamento entre marxismo e Geografia, o que houve foi a produção de alguns ensaios que buscavam estabelecer este casamento.” MOREIRA – entrevistado por SCARIM - (SCARIM, 2000, p. 188).
Se quisermos explicitar uma análise mais drástica, SANTOS – em
entrevista a SCARIM - chega a concluir que o marxismo nunca entrou na geografia
brasileira.
41
[...] ele é superficial como a água sobre as pedras, realmente não entrou. Ficam algumas pessoas falando que são marxistas, mas de um modo geral, salvo algumas, muito poucas exceções, não houve essa entrada do marxismo na geografia brasileira, ficou simples, externo. Ele foi um adereço; a maior parte dos marxismos apregoados pela maioria dos geógrafos que se imaginam marxistas fez a disciplina andar para traz; porque não foi capaz de penetrar na constituição das situações. Não se tornou instrumental na análise, então ele permanece como um adereço.” (SCARIM , 2000, p. 191).
Nos anos de 1990 tem-se, pois, um cenário marcado por uma
crescente insatisfação com os rumos tomados por esta “geografia crítica”(DINIZ
FILHO, 2004). Isto sem dúvida, influenciado pela derrocada do socialismo real, após
a queda do muro de Berlin, fato que desconstrói um dos pilares da teoria marxista,
um de seus pressupostos fundamentais, que numa análise crítica da sociedade
capitalista procurava demonstrar a “inevitabilidade de uma crise fatal do capitalismo”,
na qual esse modo de produção iria sucumbir sob o peso das suas próprias
contradições.
Hoje, os geógrafos que invocam o marxismo o fazem a partir de uma perspectiva muito mais limitada, como uma filiação ideológica ou como uma inspiração de ordem geral. De qualquer forma, não existe mais a crença em uma via metodológica única que será aquela da “verdadeira” geografia, e se reconhece a importância e a riqueza de outras condutas possíveis para a geografia. Assim, a pretensa revolução do saber geográfico pela teoria e prática marxista mostra claramente sinais de esgotamento. Trata-se, portanto, uma vez mais, de uma revolução científica da modernidade geográfica. Como as outras, esta revolução quis, em seus primórdios, apresentar-se como a ruptura definitiva e final, sucumbindo em seguida pelo peso das expectativas, e acabando, como as outras, por ser substituída por uma nova novidade. (GOMES apud DINIZ FILHO, 2004, p. 85).
Esta novidade pode ser representada pelo atual pluralismo teórico e
metodológico da geografia no Brasil. Contudo, como o autor deixa claro no início da
citação, mesmo após seu fracasso, as teorias e os conceitos de Marx e de seus
contemporâneos ainda são utilizados, diria eu com salutar importância ainda hoje.
Sobre esta influencia que o marxismo ainda exerce na geografia
brasileira, DINIZ FILHO aponta que a “visão de mundo” dos geógrafos continua
sendo moldada basicamente pelo discurso político e ideológico marxista, que
continua sendo abundante a presença de certas categorias e teses fundamentais da
teoria econômica marxista nos trabalhos de geografia, assim como o uso do
42
conceito de ideologia como “falsa consciência” da realidade, vinculada à interesses
de classes ou grupos sociais dominantes. (2004, p. 86).
A respeito desta continuidade da presença do marxismo na
geografia e suas relações com o atual pluralismo teórico-metodológico, o referido
autor conclui que:
O que é problemático nessa continuidade da influência sobre a geografia brasileira, porém, é que o marxismo que informa o trabalho de muitos geógrafos ainda é o mesmo marxismo vulgar e dogmático característico das décadas de 70 e 80. Tudo se passa como se a única insuficiência da geografia marxista daquele período estivesse na desconsideração da importância do indivíduo e de sua dimensão subjetiva, ou ainda de certos tipos de relações de poder que extrapolam a luta de classes e a geopolítica dos Estados nacionais. Ao invés de uma “fertilização” mútua de influencias marxistas, fenomenológicas e de outras fontes, o que se tem é apenas uma alternância de categorias e perspectivas teóricas de gênese bastante diversas para explicar os problemas da sociedade contemporânea, sem que se questione a visão que a maioria dos geógrafos tem a respeito do capitalismo atual. (DINIZ FILHO, 2004, p. 86).
Assim, este atual pluralismo e esta ainda presente influência
marxista, podem causar sérios problemas à geografia, pois esta postura pluralista
pode deixar a geografia ainda mais desarmada frente aos riscos de um ecletismo
mal conduzido que acabe sacrificando a própria coerência do discurso, que, também
pode ser usado para dar sobrevida a certas teorias marxistas que, embora
importantes nos anos 60 e 70 encontram-se hoje desacreditadas. (DINIZ FILHO,
2004, p. 95).
De forma clara e objetiva não é isso que ocorre atualmente na
geografia? Apesar de todas as críticas elaboradas em relação ao marxismo na
geografia, o século XXI começa ainda com certa influência das teorias e conceitos
marxistas no discurso geográfico. E este marxismo, salvo raras exceções ainda se
caracteriza pelo dogmatismo.
E o que dizer sobre a postura teórico-metodológica e filosófica da
geografia atual. Vive-se um momento de pluralidade e diversidade, mas existe uma
hegemonia ou uma predominância de uma determinada vertente paradigmática na
geografia produzida no Brasil nos últimos anos? Isto é bom ou ruim para a
Geografia? Procurar responder estas perguntas foge aos propósitos deste trabalho,
mas a ausência de um foco principal na produção geográfica brasileira recente
parece estar aos poucos se concretizando.
43
Mas, neste contexto, como se situa o dito movimento de
renovação? Embora a dialética, o materialismo histórico e muitas das teorias
marxistas característicos do movimento de renovação ainda persistam nas análises
e produções geográficas atuais e, apesar das contribuições marcantes e duradouras
que os acontecimentos do período histórico analisado deixaram para a geografia,
pode-se considerar que o movimento em si arrefeceu-se sobremaneira.
Houve este arrefecimento dos ideais iniciais de alguns geógrafos de
construir algo totalmente novo, houve um arrefecimento da importância do marxismo
dentro da geografia brasileira e o mais importante, houve um arrefecimento dos
propósitos de construção de uma teoria geográfica que conciliasse os arcabouços
teóricos do marxismo e da geografia em uma teoria geográfica que se auto-
afirmasse ou se auto-legitimasse pela importância que teria frente ao conhecimento
geográfico acumulado até então.
Todo movimento é caracterizado pela processualidade, tem um
início, um desenvolvimento e um fim. Os elementos que aglutinaram certo número
de geógrafos brasileiros na busca de certos ideais de profundas transformações na
geografia de nosso país, que permite considerar a existência de um movimento de
renovação na geografia brasileira não mais existem ou encontram-se muito
dispersos. Permanece, contudo, dentro das possibilidades e impossibilidades
vivenciadas neste determinado período histórico algumas contribuições importantes
que elencamos a seguir.
3.1 – As contribuições do movimento de renovação.
De maneira geral o movimento de renovação fez duras críticas aos
conhecimentos sistematizados cientificamente pela geografia até então, grosso
modo, Geografia Tradicional e Geografia Quantitativa (ou Teorética ou Pragmática).
Tais críticas concentravam-se na contestação da neutralidade científica até então
propalada; na acusação de que as questões políticas, econômicas e até mesmo o
desenvolvimento histórico, em sua processualidade, foram negligenciados no
discurso geográfico e na denúncia de que o espaço, o espaço geográfico, não era
analisado a contento, sendo apenas um elemento paisagístico.
44
Ao falar sobre as contribuições do movimento de renovação da
geografia para esta ciência no Brasil, talvez o principal a se destacar é que muitas
destas contribuições estão dispersas nas grandes transformações na postura dos
geógrafos frente à realidade que confluíram para uma nova concepção da geografia
enquanto uma ciência social.
Dentre as contribuições que o movimento de renovação deixou
como legado para a geografia, pode-se citar a introdução da preocupação acerca da
reflexão sobre os fundamentos éticos do trabalho científico, através do
questionamento da utilidade social do saber geográfico e das funções ideológicas
que este saber pode cumprir.
Segundo SANTOS o movimento de renovação cumpriu vários
papéis, entre os quais o de influir sobre outras ciências sociais, abrir espaço na
opinião pública e de renovar a clientela da própria geografia, influindo cada vez mais
fora da disciplina. (SCARIM, 2000, p. 216). BATISTA destaca ainda que com a
eclosão da geografia crítica, a ação do Estado e das forças políticas na organização
espacial da sociedade passou a ser desvendada, que o conhecimento geográfico
passou a buscar o equacionamento e a solução dos problemas sociais e que a
concepção de cientificidade passou a mudar. (2002, p. 337).
3.2 - As denominações do movimento.
A denominação do movimento de renovação da geografia ocorrido
no Brasil, nas décadas de 1970 e 1980, como Geografia Crítica é atribuída a Antônio
Carlos Robert de Moraes. Tal autor considera que esta denominação advém de uma
postura crítica radical frente à Geografia existente, Tradicional ou Pragmática, que
conduziu a uma ruptura com o pensamento anterior. Constata ainda que o
designativo de crítica diz respeito a uma postura de transformação frente à realidade
social e à ordem constituída. (1999, p. 112).
Esta denominação do movimento de renovação e mesmo a
intencionalidade dos participantes deste em estabelecer uma nova vertente de
análise geográfica é questionado por DINIZ FILHO, que considera:
45
[...] que a postura dos geógrafos que há cerca de vinte anos empreenderam uma renovação profunda da Geografia brasileira nunca foi a de estabelecer uma nova vertente de análise geográfica designada pelo termo “crítica”, pois o que havia de comum nos trabalhos produzidos entre o final dos anos 70 e início dos 80 seria apenas “uma certa criticidade”, isto é, um espírito crítico na análise da produção geográfica realizada até então e dos problemas da sociedade capitalista. (2003, p. 308).
Conclui então que a “Geografia Crítica” não se configurava como
uma postura explícita e consistente de edificação de uma nova corrente da
geografia, sendo tão somente o mais usual dos rótulos usados para designar a
mudança que vinha sendo operada na maneira de produzir conhecimento geográfico
até aquela época. (2003).
Dentre estas rotulações ou denominações, MOREIRA (2004 p. 47)
considera que o movimento de renovação ocorrido nos anos 70 obteve diversos
nomes: “geografia nova” denominação de SANTOS em contraposição à nova
geografia (denominação também dada à geografia teorético-quantitativa), “geografia
libertária” por OLIVEIRA, “geografia crítica” por MORAES e COSTA e “geografia
marginal” proposta por MOREIRA embora este autor tenha adotado a terminologia
elaborada por SILVA, “renovação”.
Quem lecionou ou estudou Geografia no final da década de 1980 e
início da de 1990 deve se lembrar bem da coleção de quatro volumes de livros de
Geografia para o Ensino Fundamental de José W. Vessentini, intitulada “Geografia
Crítica”.
Segundo CAMPOS (2001), uma das explicações para a
consolidação desta expressão como a de uso mais freqüente no Brasil para
denominar a Geografia de então, está no sistema de ensino. O autor afirma que o
uso da Expressão Geografia Crítica no sistema de ensino iniciou-se no período de
1983-1987 com a reforma educacional promovida a partir da proposta elaborada
pela Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas (CENP) do governo do
estado de São Paulo, salientado que a expressão “Geografia Dialética” era inclusive
mais utilizada, mas que tal expressão poderia dificultar ainda mais a aprovação da
proposta da CENP que enfrentava resistência por parte do corpo docente e da
própria mídia.
Um autor muito contrário à denominação ou rotulação deste
movimento de renovação como “Geografia Crítica” é MOREIRA, em entrevista a
SCARIM, é contrário a idéia de que esta Geografia Crítica ou este movimento de
46
renovação constituíssem-se numa “nova época” na história da Geografia,
salientando que ele, o autor, nunca teve esta pretensão. Pelo contrário, considera
que “[...] Então a geografia crítica não abre, não cria, não inicia nada, ela inaugura o
fim de um processo. Eu não diria que ela prenuncia o esgotamento de um
movimento, mas de certo modo ela expressa uma situação assim [...]” (SCARIM,
2000, p. 189-190).
MOREIRA, entrevistado por SCARIM, conclui que a denominação
restringe o movimento, impedindo-o de avançar, pois, sob o rótulo de Geografia
Crítica, evita-se esclarecer o que criticam os geógrafos críticos.
[...] Para Moreira a partir deste livro (Geografia Pequena História Crítica, de Moraes) cristalizou-se uma situação que foi a pá de cal em qualquer tentativa de se renovar a geografia no Brasil, “esta coisa da chamada geografia crítica”. Primeiro por que a palavra crítica é “uma palavra de muito agrado das pessoas que querem se apresentar como contestadores mas não estão na obrigação de ter compromisso com contestação nenhuma [...] (SCARIM, 2000, p. 193, a parte entre parênteses é uma explicação nossa).
Falando sobre o termo “crítica” que parece ser o mais utilizado e
conhecido para denominar a geografia produzida no Brasil nas décadas de 1980 e
final de 1970, sem pretender esgotar a questão, mas apenas a título de curiosidade
ou de um pequeno esclarecimento, segundo SPÓSITO, (2004, p. 64) qualquer
dicionário de filosofia esclarece que a palavra crítica é originária do grego kritiké, que
significa arte de julgar, mas que, por outro lado, e que, conforme JAPIASSU (1989)
na própria filosofia, quando a palavra crítica incorpora um sentido kantiano ela
possui “um sentido de análise”. Este último ainda destaca que crítica significa “juízo
apreciativo” seja do ponto de vista estético, lógico ou intelectual (filosófico ou
científico).
Pelo exposto, pode-se constatar que a questão da denominação
das transformações ocorridas na geografia praticada no Brasil nas décadas de 1970
e 1980 não é nada simples. Além da questão de, se existiu ou não, de forma
declarada por parte dos geógrafos a intencionalidade da construção de um
movimento dentro da geografia; existe o fato de que toda denominação, de certa
forma, restringe, generaliza ou caracteriza o fato denominado de forma marcante.
Isso tem suas vantagens e desvantagens, dependendo do ponto de vista da análise
realizada.
47
Contudo, consideramos que mais importante que a denominação
do movimento em si, é o entendimento claro de como e por que o mesmo surgiu, de
suas possibilidades e impossibilidades e de como se lidou com isto. Com o presente
trabalho espera-se ter contribuído se não com todas as respostas, mas com o
despertar de novas dúvidas que instiguem à novas interpretações.
48
CONSIDERAÇÕES FINAIS.
Talvez a constatação mais expressiva deste trabalho seja de que
ainda hoje as idéias marxistas, mesmo sem que muitos admitam, possuem certa
relevância e importância para a geografia brasileira. É claro que atualmente, tal
fundamentação teórica ou filosófica não desfruta mais da hegemonia alcançada em
décadas anteriores. No entanto no pluralismo de abordagens presentes hoje em dia
na geografia produzida no Brasil, o marxismo ainda encontra espaço.
O movimento de renovação das décadas de 1970 e 1980, portanto,
deixou marcas significativas na geografia brasileira. Este movimento não se
constituiu, como analisado, em algo planejado. Foi fruto de um descontentamento
geral, que na década de 1970 foi se avolumando, contra a geografia praticada até
então e suas relações com o poder e com a manutenção do status quo, contra uma
AGB em que a participação era restrita, contra o sistema ditatorial em vigência no
país.
Talvez resida neste contexto parte das causas do pluralismo teórico
metodológico do movimento. Como este descontentamento foi se gerando aos
poucos e cada geógrafo procurava, de acordo com sua formação teórica e filosófica,
instrumentalizar sua crítica por meio de sua produção científica, a gama destas
produções era muito diversificada. Some-se a isto o fato de que, o marxismo,
mesmo quando considerado como preponderante entre as outras correntes teórico-
filosóficas, dentro destas produções, não possuía na geografia produzida até então
no Brasil nenhuma ponte ou abertura para ligação com as teorias marxistas, o que
se tem antes de 1978 é uma grande “colcha de retalhos”. Situação que na visão de
muitos autores não foi superada ao longo dos anos de 1980. Ou seja, apesar de o
movimento ter uma unidade ética, de contestação, a efetivação deste
descontentamento em forma de uma sólida teoria que substituísse as até então
existentes não ocorreu, ou começou e ficou inacabada.
Talvez a única tentativa bem sucedida de procurar dar uma unidade
teórica aos descontentamentos e as transformações que surgiam, com o objetivo de
propor algo novo, mas assentado em um cabedal de conhecimentos articulados
segundo uma certa lógica sistematizada seja o livro “Por uma Geografia Nova” de
SANTOS. Contudo, com o passar dos anos, vão surgindo “grupos” dentre os
49
geógrafos que capitanearam as mudanças ocorridas nas duas décadas
mencionadas, sendo que cada grupo pretendia “trilhar um caminho teórico”.
Caminhos estes que foram muitas vezes divergentes de grupo para grupo. Com
isso, o projeto de SANTOS expresso no livro não teve muitos interlocutores
dispostos a colocá-lo em prática e mesmo em contribuir para aperfeiçoá-lo, numa
progressiva e contínua busca teórica e epistemológica.
Nas décadas de 1980 e 1990 assiste-se então ao fracionamento da
relativa unidade que congregava os geógrafos no que se poderia denominar de
“movimento de renovação” ou “geografia crítica”. Vários elementos podem ser
apontados para explicar tal fato. O marxismo ao tornar-se hegemônico dentro do
movimento adquiriu um ar de “verdade” que num certo momento, a impressão era de
que na geografia brasileira todos eram marxistas, pois mesmo aqueles que eram
contrários aos rumos tomados pela geografia não se manifestavam, ou não
conseguiam espaço para se manifestar, dado o “prestígio” alcançado pelos
geógrafos críticos. Essa falta de contestação ao marxismo dentro da geografia, fez
com que este encontro entre geografia e marxismo não avançasse na produção de
uma teoria que realmente procurasse articular de forma consistente os dois acervos
teóricos historicamente acumulados.
O marxismo em voga então, passou a ser um marxismo dogmático,
que, salvo raras exceções, como no caso de Milton Santos, não conseguiu penetrar
teoricamente na geografia ou permitir o contrário. Assim, o marxismo era
amplamente aceito, mas na verdade, poucos eram os geógrafos que realmente
dominavam teoricamente o marxismo ou o materialismo histórico e dialético a ponto
de se dedicar a esta árdua e de certa forma solitária empreitada de tentar construir
uma teoria que aglutinasse harmoniosamente, ou pelo menos satisfatoriamente o
materialismo histórico com a geografia, criando um possível “materialismo histórico e
geográfico” com aponta SOJA (1993).
Se o diálogo não ocorria com os possíveis opositores dos rumos
que a geografia estava tomando, dentre os geógrafos ditos críticos ou radicais, os
debates também eram escassos e pouco aprofundados. Assim, a impressão que se
tem é de que sem a proposição e o acolhimento da idéia de que era necessário uma
postura mais preocupada com a edificação de uma teoria que se auto-sustentasse e
que combinasse ou amalgamasse as leis e teorias geográficas com as leis e teorias
marxistas, o que de certa forma ocorreu durante as décadas de 1980 e 1990 foi uma
50
produção geográfica que ia adaptando como podia a geografia ao marxismo e vice-
versa.
Neste trabalho, procurou-se destacar a importância que os
contextos históricos, políticos, econômicos e culturais representam para a evolução
das idéias e, portanto, da ciência, no caso a ciência geográfica. Persistindo com esta
forma de raciocínio, há que se considerar também como elementos responsáveis
pela perda de importância da geografia crítica ao longo da década de 1990 o fato de
que, os professores que primeiro buscaram um contato entre geografia e marxismo
foram geógrafos militantes. O marxismo que penetrou nas teorias geográficas, em
grande parte não era um marxismo de academia, mas um marxismo militante.
Quando, com o passar do tempo, as idéias do movimento de renovação passaram a
ser amplamente aceitas e até mesmo pouco contestadas, o movimento se
institucionaliza e com a institucionalização, a crítica se retrai, pois como iria se
criticar ou gerar polêmica agora que os geógrafos críticos buscam galgar posições
em instituições e começa uma certa disputa pelo poder, como criticar algo no qual se
está inserido.
O marxismo ao se “academizar” e perder alguns traços de sua
militância, não o fez sob uma evolução que superasse o dogmatismo. O que houve
foi um acirramento das disputas pessoais e pelo poder dentro das instituições de
ensino e pesquisa que, juntamente com a falta de diálogo, a superação da crítica
feroz e o aparecimento de outros posicionamentos e/ou fundamentações teóricas e
filosóficas dentro da geografia brasileira, acabou por desmontar a hegemonia
alcançada pelas idéias e teorias marxistas na geografia. No entanto, mesmo sem ser
hegemônico, o velho marxismo dogmático ainda persiste, mesmo que implicitamente
e a contragosto de alguns, na geografia praticada no Brasil.
Há que se registrar, contudo, a importância deste movimento de
renovação ocorrido na geografia brasileira, pois houve uma renovação de fato.
Renovação de idéias, renovação na participação estudantil nas instituições de
ensino e na AGB, renovação nas formas de posicionamento político e ético e talvez
o mais importante, renovação da geografia enquanto ciência, tanto em relação às
outras ciências quanto em relação á sociedade. A geografia, após o período
histórico em questão, passou a dialogar com muito mais propriedade com as outras
ciências e passou a ter um “sentido social” além de servir para memorizar aspectos
do relevo, clima ou as capitais de estados e países. A geografia passou a procurar
51
explicar os acontecimentos com base em sua repercussão no seu objeto de estudo,
o espaço geográfico, isto muito contribuiu a nível educacional para que a geografia
deixe, paulatinamente, de ser considerada aquela disciplina simplória e enfadonha
da qual nos lembra LACOSTE.
Na tentativa de fazer um “balanço” deste movimento de renovação,
pode-se considerar que dentre as múltiplas possibilidades criadas a partir de então,
nem todas foram devidamente exploradas ou aproveitadas, ou seja, que o
movimento poderia ter representado algo ainda maior e de mais significância para a
geografia brasileira. Contudo, há que se elaborar uma análise teórica e
epistemológica que procure extrair as reais contribuições que este encontro entre
geografia e marxismo trouxe para a geografia e tentar equacionar tais contribuições
com os novos posicionamentos teóricos, metodológicos e filosóficos atuais para que
a geografia, mesmo plural, construa uma base teórica e metodológica sólida que
fundamente sua participação no entendimento, explicação e proposição de soluções
para os impasses atuais, espaciais em sua grande maioria.
Assim, com o título deste trabalho “As [Im]possibilidades da crítica”
e ao longo do texto, procurou-se elaborar uma argumentação que desperte no leitor
algumas dúvidas, curiosidades e também alguns esclarecimentos acerca das
possibilidades e impossibilidades deste movimento de renovação. Possibilidades e
impossibilidades estas que podem ser concebidas tanto como criadas pelo próprio
movimento quanto fazendo parte das dinâmicas sócioespacais, econômicas,
políticas e culturais características do Brasil e do mundo no período analisado.
Com o presente trabalho, procurou-se contribuir para uma releitura
da geografia produzida no Brasil, no período em questão. É evidente, como já
exposto, que outras leituras e releituras podem e devem ser realizadas para que se
consiga uma ligação mais íntima entre a evolução da ciência como um todo e uma
reflexão teórica, conceitual e metodológica que torne esta evolução mais plena. O
convite está feito, para quem se habilitar espero que este trabalho constitua-se numa
contribuição.
52
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BATISTA, Edimar E; SALVI, Rosana F. Mudanças paradigmáticas: a geografia
crítica e o momento histórico do seu surgimento. GEOGRAFIA. Londrina, v. 11 n. 2,
p. 329-337 jul/dez. 2002.
CAMPOS, Rui R. de. A geografia crítica brasileira na década de 1980: Tentativas de
mudanças radicais. GEOGRAFIA, Rio Claro, v. 26 n.3 p. 5-36 dez. 2001.
DINIZ FILHO, Luis L. A geografia crítica brasileira: reflexões sobre um debate
recente. GEOGRAFIA, Rio Claro, v. 28 n. 3 p. 307-321 set/dez. 2003.
DINIZ FILHO, Luis L. Certa má herança marxista: elementos para repensar a
geografia crítica. In: KOZEL, Salete; MENDONÇA, Francisco. (org). Elementos de epistemologia da geografia contemporânea. Curitiba: Ed. da UFPR, 2004. p. 77-
108.
LACOSTE, Yves. A Geografia isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra. Trad. Maria C. França. 4. ed. Campinas: Papirus, 1997.
MORAES, Antônio C. R. Geografia pequena história crítica. 17. ed. São Paulo:
Hucitec,1999..
MONTEIRO, Carlos A. F. A geografia no Brasil ao longo do século XX: um
panorama. BORRADOR. n. 4 São Paulo: AGB, jul 2002.
MOREIRA, Ruy. Assim se passaram dez anos: a renovação da geografia no Brasil
no período 1978-1988). GEOgraphia. Niterói, ano II n. 3 p. 27-49 jul. 2000.
MOREIRA, Ruy. Velhos temas, novas formas. In: KOZEL, Salete e MENDONÇA,
Francisco. (org). Elementos de epistemologia da geografia contemporânea. Curitiba: Ed. da UFPR, 2004. p. 47-62.
QUAINI, Massimo. A construção da geografia humana. Trad. Liliana Laganá
Fernandes. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.
SANTOS, Milton. Por uma geografia nova: da crítica da geografia a uma
geografia crítica. São Paulo: Edusp, 2002.
SILVA, Armando Corrêa da. A Renovação geográfica no Brasil – 1976/1983 (as
geografias crítica e radical em uma perspectiva teórica). Boletim Paulista de Geografia. São Paulo: n. 60. p. 73-140. jul 1983 /jun 1984.
53
SCARIM, Paulo César. Coetâneos da crítica: contribuição ao estudo do
movimento de renovação da geografia brasileira. 2000. Dissertação (Mestrado em
Geografia) Universidade de São Paulo, São Paulo.
SOJA, Edward W. Geografias pós-modernas: a reafirmação do espaço na teoria
social crítica. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1993.
SPÓSITO, Elizeu S. Pequenas argumentações para uma temática complexa. In:
KOZEL, Salete e MENDONÇA, Francisco. (org). Elementos de epistemologia da geografia contemporânea. Curitiba: Ed. da UFPR, 2004. p. 63-76.