Post on 12-Dec-2015
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL – UFRGS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS (HUM05021-A)
PROFESSOR: JOSE OTAVIO CATAFESTO DE SOUZA
ALUNO: EDUARDO RIBEIRO GONÇALVES (00218637)
Pretendendo concluir o exercício de avaliação proposto em aula, a resenha irá
abordar os textos de Norbert Elias e Edward Said, intitulados, respectivamente, O
Processo Civilizador e Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Os textos
foram analisados aqui de forma simbiótica, não dividindo a resenha em dois tópicos
grandes, mas sim, interligando os dois textos com a finalidade de relacionar as duas
obras. Importante frisar que foram efetuadas apenas as leituras dos capítulos trabalhados
em aula, e não as obras completas.
Durante a leitura dos textos, a relação entre O Processo Civilizador, de Elias
com o Orientalismo, de Said se fez tão evidente que seria um desperdício não aproveitar
a oportunidade proporcionada pela disciplina de Antropologia, desafios
contemporâneos, de efetuar tal síntese. Enquanto Elias nos carrega “pela mão” em uma
viagem ao momento de transição do período conhecido como Idade Média para a
Modernidade, Said nos convida a refletir a respeito de um direcionamento, ou até
mesmo um ponto de efeito específico do mesmo processo civilizador que Elias trata em
sua obra. Essa complementaridade poderia não ser tão evidente se não estivesse tão em
voga ainda no século XXI.
As concepções de Oriente e Ocidente em Orientalismo passam por um processo
de elaboração discursiva e naturalização cultural muito parecidos com os quais
passaram os conceitos de civilizado e não civilizado. Ambos os autores apresentam uma
perspectiva antropológica que, de certo modo, curva-se à história. Não uma concepção
histórica teleológica marxista, onde a economia de mercado não leva em consideração
as relações de parentesco ou as inovações e variações nos projetos de vida de cada
indivíduo, mas uma avaliação microscópica das relações sociais. Porém, o conjunto de
obras de Marx não é necessariamente ignorado ou descartado, apenas são levados em
consideração entre um conjunto teórico mais abrangente.
Norbert Elias, por exemplo, faz uma relação entre a sociogênese e a psicogênese,
afirmando que a história humana e os seus processos é reproduzida pelas pessoas em
um curto espaço de tempo, durante a sua infância. Por exemplo, se na Idade Média era
comum as pessoas comerem diretamente com as mãos, isto é, sem talheres, é natural
que em algum curto momento da infância as pessoas comam com as mãos. Trata-se de
uma sobreposição de fases na vida de uma pessoa que fazem referência a períodos da
história humana, segundo Elias. O Processo Civilizador trata então das transformações
ocorridas no período de transição da Idade Média para a Idade Moderna, através da
analise das mudanças nas práticas de autodisciplina reguladora de diversos aspectos
ligados à concepção do que seriam bons ou maus modos. Elias caracteriza deste modo a
naturalização de práticas que antes eram inconcebíveis em uma sociedade que passou
por um processo de individualização crucial para a configuração do que passou a ser
considerado civilizado ou Ocidental.
Tais transformações não poderiam ser apontadas através de uma perspectiva
funcionalista, mas sim através de um olhar que leve em consideração a amplitude dos
processos históricos. Não necessariamente suas origens, mas os modos como ocorreram
as transformações, as transmutações. Como se alteram as redes sociais e como elas
afetam as sociedades das quais fazem parte. O processo civilizador seria responsável
pelas práticas de autocoerção naturalizadas e introjetadas pelas quais a França, a
Alemanha e a Inglaterra passaram e que influenciaram o restante da Europa. Como parte
dessa bagagem europeia se criou o sentimento de responsabilidade de veiculação da
civilidade até os confins do planeta, onde estariam localizados povos em um estado
infantil, inferiores ou bárbaros, prontos a serem civilizados, se não escravizados.
A divisão entre Ocidente e Oriente como aponta Said, é muito anterior ao
conceito de civilização como o conhecemos hoje. No que se refere às obras literárias,
em um retorno a Homero, passando à analise de Flaubert (um importante romancista
francês), Balfour (estadista britânico envolvido nas aspirações sionistas de criação do
estado judeu na Palestina) e Delacoix (pintor envolvido na propaganda política dos
Bourbons da França no século XIX) Said nos mostra que a invenção do conceito de
Oriente pelo Ocidente é muito mais antiga do que parece, mas que pode ser traçada e
historicamente localizada. Sua proposta é analisar a forma como o Oriente e os orientais
são representados em obras ocidentais, principalmente no que tange à França, à Grã-
Bretanha e aos Estados Unidos, sob o que o autor observa como signo do exotismo, da
inferioridade e da incapacidade que os orientais teriam de falarem por si mesmos.
Reverberando em produções artísticas, literárias, políticas e científicas, o estigma do
Orientalismo se fez presente no Ocidente desde o momento em que precisou se
diferenciar do que era considerado o outro, exótico, desconhecido e/ou estranho.
As concepções de incivilizado e oriental estão intimamente relacionadas. A ideia
de levar o processo civilizador ao Oriente era frequentemente utilizada em discursos
políticos para legitimar o poderio da sociedade europeia. A conceituação se baseia na
comparação e no preconceito entre diferentes sociedades, aqueles que não eram
europeus, necessariamente não eram civilizados. A definição de civilité analisada por
Elias nos escritos de Erasmo de Rotterdam, especificamente no De civilitate morum
puerilium, estaria vinculada à maneira de se vestir, caminhar e de portar-se à mesa.
Estes hábitos definiriam um “grau de espírito” em uma pessoa, enquadrando nessa
classe ou na outra. Segundo Elias, Erasmo não vê preceitos como dirigidos a uma classe
particular. Afirma que, tirando certo preconceito quanto aos camponeses e pequenos
negociantes, seu tratado se diferenciaria dos que o sucederam justamente por não ver
nas classes mais baixas uma orientação social específica que caracterize os “maus
costumes”. Afirma também que “um companheiro não lhe deve ser menos querido
porque tem piores maneiras”. (ELIAS, 1993. P.92). Desta forma, poderíamos supor que
as apropriações feitas da compilação de Erasmo construíram, ou melhor, naturalizaram
a autocoerção no sentido de “civilizar” a pessoa incivilizada.
Essa conceituação baseada na comparação também foi veiculada pelos ideais
iluministas, através do empirismo e posteriormente pelas interpretações da teoria
evolucionista de Charles Darwin. A existência de um discurso progressista acabou por
obscurecer as vinculações da revolução científica da “era moderna” com o sistema
mercantil escravista. O mercado escravo foi justificado pelo racismo que, por sua vez,
ganhou apoio intelectual de alguns dos maiores pensadores modernos.
A ideia central dos “esclarecidos” com a Revolução Científica consistia em
submeter a natureza às aspirações do homem. Porém, a racionalidade não se distinguia
por completo da tradição hermética da qual os pensadores faziam parte. Kepler, por
exemplo, foi astrônomo e astrólogo ao mesmo tempo, sendo que seus trabalhos com
horóscopos lhe proporcionaram capital para sua sobrevivência até sua morte em uma
situação precária.
O próprio Iluminismo, portanto, não se configurou de forma homogênea em toda
a Europa, estando vinculado intrinsecamente às condições sociopolíticas de cada país. E
cada pensador se relacionou com a nova racionalidade e com seu país também de forma
distinta. Kant defendia a monarquia prussiana e sua modernização. Acreditava que a
razão era um privilégio de poucos. Em contrapartida, Rousseau colocou o Antigo
Regime como algo extremamente irracional e que deveria ser combatido. Contudo, até
mesmo os mais revolucionários se mantiveram conservadores, até certo ponto. E,
querendo ou não, a atmosfera intelectual europeia foi, de certo modo, patrocinada pelo
sangue e suor de humanos negros, transformados em escravos.
A escravidão africana deve muito às explicações “racionais” que comparavam a
história social humana à evolução natural. O otimismo científico que cavalgava lado a
lado com a ideia de progresso carregava um ideal de erradicação das injustiças e um
aperfeiçoamento da moral das sociedades. A construção racional de uma realidade
social superadora de todos os problemas das crises de ordem estamental eram o foco da
utopia iluminista. Valorizar a propriedade, o trabalho físico, a formação escolar e a
planificação estrita da educação eram características desta cultura protoburguesa. A
ordem racional traria paz, mas continuaria fora de cogitação para as classes populares.
Entre as discussões que formaram a ideia do progresso proveniente da
Revolução Científica, está a formulação de uma concepção de histórica da origem da
civilização como a emersão de uma sociedade primitiva que se civilizaria. A história
fundamentaria as diferenças entre os primeiros habitantes da terra e os homens
civilizados. O desenvolvimento estaria ligado ao crescimento do saber e da técnica
científica, que inevitavelmente guiaria ao progresso moral e político.
Obviamente, os “não europeus” não detinham o dom da razão, sob a perspectiva
racional iluminista dos séculos XVII e XVIII. Seria um dever, então, do homem já
civilizado levar a razão aos outros povos, e eventualmente dominar e conquistar cultural
e militarmente os bárbaros e primitivos.
A justificativa racista para a escravidão passou por um processo de naturalização
que foi veiculada, principalmente pelo discurso racional liberal proveniente da
Revolução Científica. Após a Revolução Gloriosa na Inglaterra, o comércio de escravos
arrecadou o capital necessário à Revolução Industrial que serviria de modelo às outras
potências.
É importante termos em mente que o sistema que financiava o contexto
econômico e cultural que possibilitou o florescimento do pensamento científico
moderno tinha como base o tráfico de humanos negros transformados em escravos. As
revoluções burguesas, tanto a Gloriosa quanto a Francesa, acabaram posteriormente no
século XIX, apoiando parcialmente o fim da escravidão, baseando agora a exploração
da mão de obra barata dos operários, que formaram um mercado consumidor
controlável e promissor. Estas novas relações diminuíam também as responsabilidades
dos patrões para com os novos trabalhadores, resumindo-as ao pagamento de um
salário. O racismo surge então como uma justificativa do sistema comercial de escravos
negros. Ele não seria um acidente no desenvolvimento do capitalismo, mas o seu motor
propulsor que garantia mão de obra a baixos custos. (WILLIAMS, 2012. P. 146)
Relacionando o processo civilizador posto em prática nas relações discursivas
entre Ocidente e Oriente com o Orientalismo, nota-se a permanência de certos ideais
modernos que se baseavam em um sistema comercial escravista e sanguinário. Ignorar
este aspecto da história do pensamento Ocidental é manter uma série de mitos e
aspirações que podem se apresentar como revolucionárias, mas que se revelam
conservadoras. Porém, negar os aspectos positivos do iluminismo, como os direitos
humanos, seria cair e, uma espécie de ignorância histórica.
As obras de Said e Elias nos proporcionam uma perspectiva sobre estes usos e
desusos da construção de uma memória histórica, que influencia largamente nas
mudanças culturais e políticas dos grupos humanos. Nenhuma das duas obras pretendeu
esgotar os temas, mas por outro lado, ambas se mantêm como leituras obrigatórias nos
estudos sociais, antropológicos, históricos e filosóficos contemporâneos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, v.1, 1990, Cap.2,
p.65-95.
SAID, Edward. Introdução e 1) O Âmbito do Orientalismo. In: Orientalismo: o Oriente
como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 09-81.
WILLIAMS, Eric. Capitalismo e Escravidão. São Paulo: Cia. das Letras, 2012. 89-159