Post on 16-Jan-2016
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Rudimar dos Santos RiesgoDoutor em Pediatria (UFRGS)Preceptor da Residência em Neuropediatria: Hospital de Clínicas de Porto AlegreFellow em EEG Pediátrico (Miami Children’s Hospital – USA)
Capítulo 16 – TRANSTORNO DA MEMÓRIA
16.1 – INTRODUÇÃO
Este capítulo visa detalhar as possíveis relações entre os transtornos da
memória e os da aprendizagem. Para tanto, faz-se necessário revisar alguns
conceitos básicos.
O que e memória? Para começar, não existe uma única memória senão um
conjunto de memórias. Existem memórias simples e complexas. Existem
memórias visuais, auditivas, somestésicas, cinestésicas, olfativas, emocionais,
complexas e muitas outras. Existe uma memória para cada uma das funções
corticais e existem tantas memórias quantas experiências tivermos tido a
oportunidade de viver.
A fase de recepção de estímulos novos, que são aqueles que geram
mudanças nos processos mentais prévios, corresponde a primeira das três fases
do fenômeno mnemônico. Esta é a definição neurobiológica de aprendizagem.
Antes de descrever os transtornos da memória e suas relações com o
processo da aprendizagem, é necessário que alguns conceitos básicos sejam
revisados. Mas existe uma tarefa que é ainda anterior a esta. Antes mesmo de
descrever pelo menos cinco conceitos básicos, no que tange a memória, alguns
mitos devem ser de pronto desfeitos.
O mito mais difundido é o de que usamos apenas uma pequena porção da
nossa capacidade cerebral. Não é verdade, pelo menos no que se refere à
memória. Na realidade, para dar conta das atividades do dia a dia, e em especial
daquelas relativas ao aprendizado, é necessário que lancemos mão de toda a
nossa capacidade disponível de memória, que precisa ser ocupada até que se
chegue próximo do limite de praticamente todo espaço mnemônico à disposição,
para o bom desempenho de cada atividade.
Esta informação possivelmente seja pouco difundida. Entretanto, por
paradoxal que pareça, para um bom funcionamento da memória, é importante que
esqueçamos algumas informações, de tal sorte que volte a sobrar espaço na
memória para o registro dos próximos eventos que estão constantemente
chegando. Em suma, no que se refere à memória, o Sistema Nervoso Central
(SNC) funciona “à todo vapor”, caso contrário, não haveria espaço suficiente para
guardar todas as novas informações que ele recebe a cada instante.
O segundo mito certamente está ligado ao primeiro supracitado, e diz
respeito ao medo que todos temos de esquecer as coisas. Contudo, é saudável
que esqueçamos algumas informações, em especial aquelas que tenham
conteúdo traumático ou negativo. Se uma pessoa perdesse a capacidade de
esquecer, poderia entrar em surto psicótico, tal a tormenta crescente de
informações com as quais teria que lidar e conviver diariamente até o final da vida.
Desfeitos os mitos, pode-se então trabalhar com aos conceitos. Eles
facilitarão o entendimento dos processos mnemônicos, dos distúrbios da memória
e das suas possíveis repercussões sobre o processo da aprendizagem.
O primeiro conceito básico sobre memória, em realidade, é a sua própria
definição. Segundo Izquierdo (2002), memória é um evento divisível em três fases:
a) aquisição, b) consolidação e c) evocação das informações. Uma outra forma de
definir a fase de aquisição das memórias, é a de chamá-la simplesmente de
aprendizado. Ou seja, só fica gravado aquilo que foi aprendido.
O segundo conceito básico é o que trata da relação entre memória e
aprendizagem, visto que são dois processos intimamente ligados. Em suma, são
indivisíveis, pois um evento está “embutido” no outro, já que aprendizagem é a
primeira fase do processo mnemônico.
Os próximos conceitos têm relação ao que poderia ser denominado de
fatores moduladores da memória. Eles são muitos, contudo os mais importantes
são basicamente três: atenção, motivação e nível de ansiedade.
O terceiro conceito que merece ser tratado, é o da relação entre memória e
atenção. Obviamente que uma criança desatenta pode ter dificuldades na coleta,
análise e classificação das informações novas. Ou seja, uma criança desatenta
pode ter dificuldades na aquisição das informações, o que também corresponde
ao primeiro evento mnemônico. Os transtornos da atenção serão detalhados nos
capítulos 17, 18, 19, 20 e 21 deste livro.
O quarto conceito se refere à relação entre memória e motivação. Uma
criança deprimida ou desmotivada não irá ter uma boa atenção. E novamente
fecha-se o circulo vicioso. Não tendo motivação, não tem atenção, não tem boa
aquisição de novas informações, não tem formação de memórias, e pode não ter
um bom aprendizado.
O quinto e ultimo conceito é aquele que descreve as possíveis
conseqüências entre o nível de ansiedade e a performance do SNC em adquirir e
consolidar memórias. Está bem comprovado que um determinado nível de
ansiedade é salutar para que os eventos mnemônicos ocorram com a máxima
performance, ao passo que um elevado nível de ansiedade faz com que caia
drasticamente a capacidade em adquirir e principalmente consolidar memórias.
Neste capitulo, vamos repassar cada um destes conceitos, bem como
aprofundar a análise sobre a relação entre os transtornos da memória e o
processo da aprendizagem. A seqüência será a mesma adotada nesta introdução.
16.2 – CONCEITO DE MEMÓRIA
Antes da pura e simples conceituação do que seja memória, é importante
uma breve revisão da história e dos personagens que estiveram envolvidos no seu
estudo. Pela revisão da literatura, pode-se concluir que os fatos mais marcantes
dentro das pesquisas na área da memória, ocorreram dentro do século XX.
Até meados do inicio do século passado, pouco se sabia sobre as bases
neurobiológicas da memória. A escola do psicólogo experimental americano Karl
Lashley (1890-1958) usava o termo "engrama", definido como a unidade básica da
memória. Estas concepções, descritas como antilocalizacionistas, acabaram por
serem derrotadas mais tarde.
Merece destaque um discípulo de Lashley, chamado Donald Hebb (1904-
1985), que avançou nas concepções do seu mestre. Na década de 40, este
canadense imaginou que cada evento registrado pelo SNC teria uma rede neural
correspondente. A circuitaria envolvida no evento seria então reativada em cada
vez na qual a memória tinha de ser evocada, rememorada. Naquela época, as
sinapses eram ainda apenas fruto da especulação.
Ebbinghaus e William James participaram dos primórdios das pesquisas
sobre os mecanismos da memória. Além deles, dois outros pesquisadores, ambos
ganhadores do Prêmio Nobel de Medicina, também estiveram envolvidos no
estudo tanto da memória quanto do aprendizado. Estes pioneiros são Ramón y
Cajal e Pavlov.
Mais recentemente, as teorias hebbianas voltaram a ganhar força, de tal
modo que se tornou possível confirmá-las através de modernos experimentos em
laboratório. Evidentemente, esta é uma área fértil para a pesquisa de base, em
modelos animais.
Do ponto de vista dos mecanismos básicos, a memória dos humanos é
parecida com a dos outros mamíferos. Mas o conteúdo é diferente. Portanto,
existem marcadas diferenças, quando formos comparar nossas memórias com as
dos demais mamíferos. A principal delas é que muitas das nossas memórias são
codificadas em um sistema denominado linguagem.
Linguagem é a capacidade da espécie humana em se comunicar através de
um código simbólico adquirido, que transforma emoções, pensamentos e idéias
em eventos passíveis de serem transmitidos por meio de signos. Existem três
tipos de linguagem: a falada, a escrita e a gestual.
Em se tratando de aprendizado, linguagem é um assunto dos mais
importantes. A maioria das informações que os humanos recebem vem em um
código lingüístico. As relações entre a linguagem e o aprendizado serão
aprofundadas no capítulo 11.
A linguagem decididamente é um divisor de águas, tanto na comparação
entre humanos e os demais mamíferos quanto na nossa própria ontogenia.
Nossas memórias anteriores aos 3 anos de idade não são fáceis de descrever em
termos lingüísticos. O máximo que podemos lembrar deste período são puramente
sensações que são difíceis de expressar em palavras exatas.
O que se constata, portanto, é que existe uma nítida ontogenia também
para a memória. A primeira das memórias que começa a funcionar, é a chamada
memória operacional. Ela inicia sua maturação entre 1 e 2 anos de idade e só
atinge seu apogeu em torno dos 5 anos de idade. É uma memória de curtíssima
duração, que não deixa rastro bioquímico e se extingue em segundos.
A memória operacional também é conhecida como memória de trabalho ou
até de memória imediata, variando a denominação conforme o autor. Ela funciona
como uma interface entre as informações que chegam pelos cinco sentidos e a
formação e a evocação de memórias. Este tipo de memória não forma arquivos.
Funciona como uma memória RAM (Random Access Memory) dos computadores.
Do ponto de vista neuropediátrico, é bem importante o marco maturacional
dos 3 de idade. Quando a criança consolida sua linguagem, nesta faixa etária, se
dá um evento eminentemente lateralizador, no que se refere às funções corticais.
Nos futuros destros, as informações com maior cunho verbal vão sendo estocadas
no hemisfério cerebral esquerdo, enquanto que as não verbais vão ficando no
hemisfério direito.
Não deve ser por acaso que a idade de 3 anos foi também escolhida como
referencial pelo DSM-IV, na definição dos Transtornos Globais do
Desenvolvimento, e dentre eles, o autismo infantil. Nestes transtornos, um dos
principais problemas diz respeito às dificuldades na comunicação, no
relacionamento e também de um repertório restrito de interesses, dentre outros.
As crianças autista também têm problemas mnemônicos, como por exemplo
falhas no reconhecimento de rostos humanas, cujo concomitante neuroanatômico
seria a face externa e inferior dos lobos temporais dos hemisférios cerebrais.
Fica evidente a importância da linguagem no dia a dia, nas primeiras
relações sociais da criança e também no processo de aprendizagem. Antes dos 3
anos, o aprendizado possivelmente use mais códigos não verbais, ao passo que
após os 3 anos, use muito mais os verbais.
Dito de uma forma extremamente simplificada, este é o conceito de
memória. Ela é um evento que consta de, pelo menos, três fases: a) aquisição –
que corresponde ao que chamamos de aprendizado -; b) formação e
consolidação; c) evocação. É durante estas três operações que a informação é
manuseada pelo SNC.
Entretanto, além do conceito clássico de memória supracitado, existe um
outro tipo de evento que também poderia ser admitido como mnemônico. Trata-se
daquilo que em inglês se chama insight e não tem tradução adequada na nossa
língua. Um insight é uma memória gerada internamente, sem a participação dos
sentidos. Eles ocorrem pelo reprocessamento de memórias consolidadas prévias,
surgem espontaneamente e de forma abrupta, durante o estado de vigília.
Outro fato mnemônico interessante pode ocorrer não durante a vigília, mas
sim durante o sono. É clássica a noção de que o sono é importante para a saúde
física, ao passo que o sonho o é para a psíquica. Este aprendizado pode
acontecer mais especificamente no transcorrer da fase REM (Rapid Eye
Movements) dos sonhos. São típicos aprendizados “endógenos”, durante os quais
também não há a participação dos cinco sentidos. Nos cães, por exemplo, eles
são facilmente observáveis. Estes animais são expostos a situações oníricas, nas
quais têm que lutar ou fugir sem terem passado pela situação real, e o
aprendizado acaba se constituindo num nítido “auto-aprendizado”, como se
programas comportamentais inteiros fossem sendo “descompactados” durante o
sonho.
Izquierdo (2002) prefere estabelecer diferenças entre "memória" e
"memórias". Com muita propriedade, o autor prefere reservar o termo "memória"
como um conceito geral e abrangente, que corresponde à capacidade do cérebro
para executar as três operações mnemônicas, ou seja: aquisição, consolidação e
evocação. Por seu turno, o termo "memórias" ficaria reservado para designar cada
uma ou cada tipo delas, quer sejam memórias visuais, olfativas, gustativas,
somestésicas, cinestésicas, emocionais, mistas e assim por diante.
As memórias podem ser classificadas de várias maneiras. De forma
simplificada, as duas grandes formas de classificá-las são: ou pelo seu conteúdo
ou pela sua duração.
No que se refere ao conteúdo, as memórias podem ser declarativas ou
procedurais. As declarativas são descritíveis através da linguagem e se dividem
em memória semântica – que se referem a fatos e conhecimentos -, e memória
auto-biográfica. Já as memórias procedurais dizem respeito a procedimentos
motores ou sensoriais, como andar de bicicleta ou digitar, por exemplo.
Com exceção da memória de trabalho, todas as demais efetivamente
formam arquivos. Antes do arquivamento, elas passam por uma fase de
consolidação, onde ficam residindo em um “endereço provisório”, no hipocampo..
O processamento das memórias declarativas ocorre no hipocampo, que é
uma parte dos lobos temporais. Evidentemente, outras áreas também podem estar
envolvidas, tais como o córtex entorrinal e outras partes do SNC, na dependência
do conteúdo. Se houver um forte componente emocional, por exemplo, a
consolidação é mais reforçada e são também recrutadas partes do sistema límbico
cerebral. Estas memórias fortemente emocionais são mais facilmente evocáveis.
A consolidação das memórias de procedimento ocorre predominantemente
no cerebelo, núcleos da base e muitas relés intermediárias do chamado sistema
extra-piramidal. Portanto, as memórias procedurais têm um outro modo de
processamento. Esta é uma das explicações para a expressão popular “é como
andar de bicicleta, depois que aprendeu, nunca mais esquece”. As memórias
motoras usam diferentes caminhos, quando comparadas com as não motoras.
Aparentemente, elas são mais difíceis de esquecer.
Quanto à duração das memórias, elas também são divididas em dois
grandes grupos: as de curta duração e as de longa duração. Estas últimas são
muito importantes para o aprendizado. Elas permitem que o aprendiz possa
evocá-las, depois que sua versão definitiva estiver totalmente consolidada. Por
outro lado, a memória de curta duração é crucial para o entendimento da
linguagem oral e escrita e também, em última análise, para o aprendizado em si.
16.3 – RELAÇÂO ENTRE MEMÓRIA E APRENDIZAGEM
Esta parte do capitulo é a mais voltada para o foco do livro, que é a
abordagem neurobiológica da aprendizagem e seus transtornos. Desde os tempos
de Pavlov, já está bem clara a relação entre memória e aprendizagem,.
A aprendizagem corresponde à primeira das três etapas dos fenômenos
mnemônicos. Quando chega uma informação ao SNC e ela é “antiga” e
conhecida, ela gera uma lembrança. Mas quando chega uma informação “nova” e
desconhecida, ela gera uma mudança: isto é aprendizado.
Esta seria uma outra forma de definir aprendizado, através da abordagem
neuropediátrica. Obviamente, dentro das neurociências e também dentro da área
da educação, existem várias outras formas de definir aprendizagem.
Através do olhar neurobiológico, o que se verifica é que existe uma espécie
de “filtro”, com função de classificar as informações em conhecidas ou
desconhecidas. É justamente aqui que reside a relação entre memória e
aprendizado. É na distinção entre informações já consolidadas e as inteiramente
novas.
Onde então estaria localizado este “detetor de novidades”? A estrutura que
reconhece se uma informação é antiga ou inteiramente nova fica localizada nas
regiões anteriores dos lobos frontais e certamente têm muitas conexões, em
especial com os quadrantes posteriores dos hemisférios cerebrais e também com
o tronco encefálico. Esta é uma descrição puramente neuroanatômica.
Do ponto de vista do funcionamento do SNC, na realidade, tal “detetor de
novidades” nada mais é do que a própria memória operacional. Esta é uma das
atribuições da chamada memória de trabalho ou memória operacional. Como ela é
basicamente elétrica e instantânea, desaparecendo em alguns segundos, alguns
autores chegam até a não considerá-la como sendo uma memória.
Mas por mais fugaz que seja sua ação, não há dúvidas de que a memória
operacional seja uma memória. Possivelmente talvez seja a mais importante de
todas elas, visto que é aquela que gerencia todas as demais memórias.
Dentro dos modelos animais experimentais, está fartamente documentada a
relação entre memória e aprendizagem. A memória dos humanos ou dos animais
não depende de uma única estrutura nervosa isolada, mas sim da integração entre
várias delas.
No estudo da memória, o modelo animal mais simples possivelmente seja o
chamado esquiva inibitória. Ele acaba provocando todos os três mecanismos
mnemônicos. O animal é exposto a um estímulo aversivo, acaba por fazer um
aprendizado, consolida a informação e quando é novamente exposto ao mesmo
tipo de informação, evoca a memória e adequa seu comportamento, passando a
evitar o estímulo.
Está bem claro que diferentes tipos de memória usam diferentes
mecanismos de aquisição, consolidação e evocação. Por exemplo, nas memórias
de curta duração os passos são diferentes dos das de longa duração, o que é bem
razoável.
Na prática neurológica, é possível encontrar pacientes que têm dissociação
entre suas memórias. Por exemplo, na demência, fica totalmente prejudicada a
memória de curta duração, mas preservada a de longa duração. É comum o fato
de alguns idosos lembrarem em detalhes fatos muito antigos mas sem
conseguirem lembrar o que ocorreu ontem.
Fica fácil entender que a aquisição das memórias visuais usa suas próprias
vias, que são diferentes das da aquisição das memórias auditivas, e assim
sucessivamente. Este entendimento vem das informações da neuroanatomia.
As informações, por mais complexas que sejam, são como que fracionadas
em seus componentes. O contingente visual vai para o sulco calcarino do lobo
occipital, o auditivo vai para o giro temporal superior. A parte somestésica vai para
a parte anterior do lobo parietal. A porção cinestésica via para o cerebelo e todas
suas conexões. Após chegarem nas áreas cerebrais primárias, vão para as
secundárias e terciárias correspondentes.
Tais informações podem vir a ser consolidadas ou simplesmente
esquecidas, deletadas. O segundo passo mnemônico é chamado de consolidação
ou formação das memórias. A consolidação das memórias declarativas, por
exemplo, ocorre numa pequena porção do lobo temporal, chamada de hipocampo.
É para ele que todos os componentes da informação têm de convergir para que
ocorra o fenômeno da consolidação, que pode durar algumas horas.
O passo seguinte, que corresponderia ao terceiro e último dos eventos
mnemônicos, é o chamado de evocação das memórias. Nossos conhecimentos
não ficam todos arquivados em escaninhos, classificados por assunto ou ordem
alfabética. Quando uma informação é rememorada, é necessário que todos os
seus componentes sejam localizados, onde quer que estejam estocados. Ela é
remontada e possivelmente não “volta à tona” exatamente como foi arquivada.
Às vezes ocorre até um bloqueio na evocação. Um exemplo bem comum
pode ocorrer na área do aprendizado. Não é raro uma pessoa ter estudado e estar
dominando uma quantidade enorme de informações, que até estavam
consolidadas. Contudo, quando há muita ansiedade, por exemplo, pode ocorrer o
chamado “branco”, e não ser possível evocar quase nada do que foi estudado.
Conclui-se que nós estamos sempre mudando e nunca somos iguais ao
que imaginávamos ser, pelo menos no que diz respeito à memória. Se nosso
estado emocional pode variar, nossas memórias também podem variar, quando
forem evocadas.
Ou seja, nem a própria pessoa consegue manter imutável todos os seus
conhecimentos ou memórias de longa data. Este conceito vale para a chamada
memória autobiográfica. À cada rememoração, pode a informação sofrer algumas
mudanças. Ocorre que neste passo também podem agir os chamados
moduladores das memórias, tais como a atenção, a motivação e o nível de
ansiedade. Em suma, nunca somos iguais à nós mesmos, no que se refere à
evocação das memórias.
Do ponto de vista neurobiológico, os principais sistemas moduladores das
memórias são formados por neurônios que atuam via neurotransmissores
GABAérgicos. O Ácido Gama Amino Butírico (GABA, da sigla em inglês) é um
neurotransmissor do tipo inibitório em vários eventos do sistema nervoso, inclusive
nos fenômenos mnemônicos. Existem também neurotransmissores excitatórios,
como o Glutamato, por exemplo.
No caso das memórias declarativas, os neurônios GABAérgicos atuam no
hipocampo, córtex entorrinal, córtex cingulado, córtex parietal e amígdalas. No
caso das procedurais, eles agem nos núcleos da base e cerebelo. No caso da
memória de trabalho, agem no córtex pré-frontal. Existe uma segunda linha de
moduladores, que são as vias que usam como neurotransmissor a dopamina, a
noradrenalina, a serotonina e a acetilcolina.
16.4 – RELAÇÃO ENTRE MEMÓRIA E ATENÇÃO
O que é atenção? Quais estruturas estariam envolvidas neste evento tão
importante para o aprendizado?
Ter atenção não é somente o fato de estar desperto e vigil. Certamente o
estado de vigilância também deve se acompanhar da plena capacidade em saber
selecionar quais das informações que estão chegando ao SNC são relevantes
para aquele instante.
A quantidade de informações às quais estamos expostos é enorme e não
há dúvidas de que a maioria é redundante ou desnecessária. Há necessidade de
aprender a lidar com esta torrente de impulsos, para somente utilizar aqueles que
tenham validade para o propósito do aprendizado ou da reação. Se todas as
experiências fossem consolidadas ao mesmo tempo, haveria uma saturação das
memórias, por absoluta falta de espaço para sua estocagem.
No atual mundo moderno, esta assertiva fica cada vez mais verdadeira.
Pois o que se observa é um aumento quase que exponencial da quantidade de
informações que nos rodeia.
A atenção dá o suporte neurobiológico para o primeiro passo mnemônico.
Sem atenção não há como haver adequada aquisição da informação. E aquisição
de novas informações é sinônimo de aprendizado. Sem aquisição de memórias
não vai haver nem a consolidação e nem a possibilidade de evocação de memória
alguma.
Dentro do esquema proposto por Luria (1966), a primeira Unidade
Funcional a amadurecer na criança é justamente aquela que tem a ver com o ciclo
sono-vigília e também com a atenção. Do ponto de vista neuroanatômico, ela
estaria localizada no Tronco Cerebral, numa área chamada Sistema Reticular
Ativador Ascendente, e teria conexões com as áreas frontais, além doutras. Do
ponto de vista ontogenético, ela completa seu ciclo maturacional
aproximadamente 12 meses após a concepção. Disfunções na Primeira Unidade
Funcional de Luria podem trazer como conseqüência a desatenção.
Portanto, eventos que possam causar disfunção no SNC, tendo ocorrido
durante a janela maturacional na qual consolida a primeira Unidade Funcional de
Luria, podem trazer como conseqüência a desatenção. De uma forma geral, em
termos de respostas aos insultos orgânicos, o SNC tem um comportamento quase
que estereotipado, de tal sorte que não importa tanto o que aconteceu, mas sim
quando foi que aconteceu.
Todo profissional que se dispõe a trabalhar com crianças deveria dominar
toda a seqüência dos marcos maturacionais. Esta ação facilitaria muito o
entendimento da abordagem neuropediátrica dos problemas do desenvolvimento
bem como os problemas do aprendizado, dentro da visão ontogenética.
A análise das bases neurobiológicas de um transtorno bastante prevalente
nas crianças em idade escolar, atualmente conhecido como Transtorno de Déficit
de Atenção com Hiperatividade (TDAH), pode fornecer algumas pistas sobre a
relação entre a memória e a atenção. Não é surpreendente a associação entre
este transtorno específico e dificuldades no aprendizado.
Uma das primeiras teorias neurobiológicas para explicar o TDAH era
baseada na disfunção dum único sistema atencional. O sistema atencional anterior
ficaria localizado nos lobos frontais e suas conexões subcorticais com o sistema
límbico. A visão mais recente admite dois centros atencionais, um anterior,
predominantemente dopaminérgico e outro posterior, com forte influência dos
neurotransmissores noradrenérgicos.
Uma extrapolação destas teorias poderia nos levar a considerar que as
disfunções no centro atencional anterior podem estar mais associadas ao sintoma
hiperatividade, pois o “freio inibitório” - e a modulação do humor e o planejamento
da fala - estão no lobo frontal e suas conexões. Por outro lado, disfunções no
centro atencional posterior podem estar mais associadas à desatenção e também
às dificuldades no aprendizado, pois a aquisição e o manuseio das memórias
declarativas ocorrem mais nos quadrantes posteriores dos hemisférios cerebrais.
Os aspectos neurobiológicos da atenção serão abordados no capítulo 17, a
avaliação psicológica deste fenômeno no 18, o diagnóstico neurofisiológico no 19
e as comorbidades no capítulo 20.
16.5 – RELAÇÃO ENTRE MEMÓRIA E MOTIVAÇÃO
Juntamente com a atenção e o nível de ansiedade, a motivação também
exerce forte influência modulatória nos fenômenos mnemônicos. Motivação é algo
difícil de se definir. É o entusiasmo e a vibração em relação à determinado
assunto.
Das três operações da memória, a motivação pode atuar com maior
intensidade basicamente nas 2 primeiras, ou seja, na aquisição e na consolidação.
Muito provavelmente, a maior influência da motivação seja na fase de
consolidação das memórias, que é o mais importante dos passos mnemônicos.
A motivação certamente está ligada ao humor de base. Do ponto de vista
neuroanatômico, o controle do humor está nos lobos frontais e suas conexões
com as porções mesiais dos lobos temporais, estas últimas muito relacionadas
com a parte comportamental e das emoções.
Os transtornos do humor trazem consigo um considerável componente
genético, mas obviamente só se externarão se houver algum fator desencadeador
durante a biografia da criança. Se o humor de base estiver desviado para o lado
da depressão, ficam prejudicados os eventos mnemônicos iniciais e também o
aprendizado. Se o transtorno for sustentado, o prejuízo pode estender-se aos
demais eventos mnemônicos. Pode aumentar a ansiedade de base e cair a auto-
estima, além de prejudicar a consolidação e a evocação das memórias, numa
retroalimentação perniciosa para um bom aprendizado.
O diagnóstico de depressão na infância nem sempre é óbvio e fácil de ser
feito. Às vezes ela se manifesta por irritabilidade exagerada, baixo limiar às
frustrações e até certo nível de ansiedade de base. O mais comum é imaginar
uma criança triste e pouco ativa.
Contudo, às vezes, uma criança deprimida não é hipoativa, pelo contrário.
Pode-se ter o que chamamos de “depressão mascarada” por uma hiperatividade
compensatória. Na prática neuropediátrica diária, deve-se prestar atenção para
não confundir um caso desta natureza com um de TDAH. Eventualmente estas
crianças deprimem ainda mais quando recebem Metilfenidato, que age melhor
sobre a desatenção do que sobre a hiperatividade, e só melhoram do humor e da
ansiedade quando ocorrer a troca por Fluoxetina.
Outra situação clínica que não é infreqüente diz respeito àqueles casos de
crianças com problemas de aprendizagem e múltiplas reprovações. É
imprescindível que se tenha uma boa noção sobre qual é o potencial cognitivo
deste grupo em particular. São crianças que podem ter baixo potencial cognitivo.
Podem ficar deprimidas porque foram reprovadas e/ou porque se dão conta das
suas próprias limitações e dificuldades em acompanhar os colegas.
E novamente forma-se outro ciclo vicioso que se retro-alimenta sem parar,
a menos que algum profissional intervenha. Ele se iniciaria por um baixo potencial
cognitivo, seguido por falhas em dar conta das demandas que vão surgindo
durante a aprendizagem, com conseqüente baixa progressiva na auto-estima, que
por sua vez diminui a motivação, que por sua vez prejudica o aprendizado, e
assim sucessivamente.
Por outro lado, é óbvio que crianças com um bom potencial cognitivo
também podem ser reprovadas por uma série de motivos, e dentre eles a
desmotivação. O que comumente se observa, nestas situações, é que os pais
podem estar agindo como superprotetores. Uma das molas mestras para a
motivação é a necessidade. Ora, se estas crianças têm uma agenda superlotada
de atividades de suporte ao seu aprendizado, não são instigadas pela
necessidade. Sem necessidade fica difícil estabelecer-se a motivação.
Se a desmotivação não estiver associada à baixa auto-estima e/ou à
depressão, e a criança tem boas condições cognitivas, porque não deixá-la passar
por algum grau de necessidade? Esta seria uma forma de se tentar
“despatologizar” os problemas leves da aprendizagem e permitir que este grupo
específico de crianças consigam caminhar pelas suas próprias pernas.
16.6 – RELAÇÃO ENTRE MEMÓRIA E ANSIEDADE
A ansiedade da criança que está aprendendo pode ser endógena ou pode
advir do quão ansiogênicos são os seus pais, seu educadores ou até o próprio
ambiente. O grau máximo de ansiedade é chamado de Transtorno de Ansiedade
Generalizada (TAG).
Fazem parte deste espectro várias situações neuropsiquiátricas, tais como
as fobias, os medos e até mesmo a chamada síndrome do pânico. Nas crianças,
por exemplo, pode ser detectada a fobia escolar.
A ansiedade pode interferir em qualquer um dos três passos mnemônicos,
mas seus efeitos parecem ser mais deletérios na fase de consolidação, em
especial das memórias de longo prazo.
O conceito de ansiedade parece estar bem próximo do de estresse. Neste
último, o organismo reage de uma forma exagerada aos estímulos externos, como
se todos eles fossem realmente ameaçadores.
Se a situação estressante, ainda que irreal, for sendo mantida através do
tempo, se estabelecem alterações neuro-endócrinas que só fazem perpetuar tal
estado. As glândulas supra-renais liberam os hormônios do estresse que agem no
cérebro. A maioria deles facilita, mas os glicocorticóides, quando em excesso,
sabidamente dificultam de sobremaneira vários eventos cerebrais, principalmente
os mnemônicos.
Nos pré-escolares, quando têm seu primeiro encontro com uma escola,
pode ocorrer uma angústia de separação, que até pode se perpetuar, na
dependência de uma série de eventos psicodinâmicos. Nos escolares que têm
baixo limiar para frustrações e para seus próprios erros, pode surgir uma pressão
por resultados, em especial na época das provas.
No consultório neuropediátrico, o usual é a chegada destes casos, a
maioria carregada de ansiedade e premência, na metade do segundo semestre do
ano letivo, com os pais angustiados, querendo uma solução de curto prazo para
um problema que pode ter suas raízes muitos anos antes da sua constatação. No
mais das vezes, a pressão vem dos pais e até da própria escola, e a criança, por
ser imatura, pode não dispor de todos os recursos para lidar com sua ansiedade
de base.
Segundo Izquierdo (2004), existem basicamente três linhas de moduladores
da memória, do ponto de vista dos neurotransmissores. A primeira e mais
abrangente é a GABAérgica. A segunda usa vários neurotransmissores, tais como
a dopamina, a noradrenalina, a serotonina e as vias colinérgicas. A terceira e
última linha neuromoduladora atua praticamente só sobre a consolidação das
memórias de longo prazo.
A relação entre a performance da memória e os níveis de ansiedades é
bem interessante. Este fenômeno ficou bem comprovado na chamada "Curva de
Yenkes-Dodson", conforme pode ser observado na figura 16.1.
Inserir por aqui a figura 16.1 (legenda, referência e figura em anexo)
16.7 – TRANSTORNO DA MEMÓRIA E APRENDIZAGEM
A forma mais didática de abordarmos os transtornos da memória,
correlacionando-os com a aprendizagem, é fazendo uso do conceito de memória.
Como foi descrito que memória é um evento que consta de três distintas fases,
poder-se-ia então admitir três diferentes tipos de transtornos das memórias, a
saber: transtornos na aquisição, na consolidação ou na evocação das memórias.
Amnésia corresponde à ausência total de memória. Nos traumatismos
craniencefálicos, por exemplo, pode ocorrer perda dalgumas informações que
estavam já consolidadas. Trata-se da chamada amnésia global transitória,
causada pelo edema uni ou bilateral na ponta do lobo temporal. Pode ocorrer o
fenômeno denominado de amnésia retrógrada, ou seja, esquecimento dos eventos
que antecederam ao acidente. Por seu turno, amnésia anterógrada corresponde
ao esquecimento dos fatos ocorridos logo após o acidente. Ambos componentes
da amnésia global transitória vão se reduzindo com o passar do tempo até quase
desaparecerem. Fica algum resíduo de amnésia retrógrada, restrito a minutos ou
horas que antecederam ao trauma craniano, ao passo que a amnésia anterógrada
pode desaparecer totalmente.
Dentro desta mesma linha de raciocínio, e baseado em parâmetros
etimológicos, seria lícito denominar os distúrbios da memória de dismnésias, visto
que neles não se tem perda total da informação, apenas um distúrbio. Até porque,
em se tratando dos transtornos da aprendizagem, o que comumente ocorre é uma
perturbação dos mecanismos mnemônicos.
16.7.1 – Transtornos da aquisição da memória
Este tópico, que tratará da aquisição da memória, será mais extenso que os
próximos. A razão é muito simples: este é o evento mnemônico cuja conceituação
está mais próxima do que a neuropediatria considera como aprendizado.
A aquisição das memórias inicia-se pela ativação da memória de trabalho
ou de curta duração. Existem várias causas que podem redundar em transtornos
da aquisição da memória, tais como problemas na atenção, na motivação, nos
cinco sentidos ou até na cognição, mas ainda assim, antes das experiências se
transformarem em memórias, é imprescindível a ação da memória de trabalho.
Como ela é que gerencia as demais memórias, pode toda a consolidação
posterior das memórias ficar prejudicada, se houver problemas no primeiro dos
eventos mnemônicos. Por exemplo, uma lesão ou disfunção no córtex pré-frontal
na sua porção ântero-lateral pode prejudicar a memória de trabalho. O paciente
pode ter dificuldades em estabelecer juízo de valores, em avaliar conseqüências
dos seus atos e até em delimitar aqueles que serão dos que não virão a ser
prejudiciais.
A aquisição das memórias segue as vias sensitivas, todas já descritas em
detalhes nos capítulos da primeira parte. Podem ser memórias visuais, auditivas,
olfativas, gustativas, táteis e assim por diante. Também podem ser memórias
complexas, resultantes da a junção de várias formas individuais. Um passeio em
um jardim, por exemplo, pode gerar memórias complexas, que até podem
consolidar, num misto de informações, tais como a cor e o contorno das árvores e
das demais plantas, o som do vento e do canto dos pássaros, o estado de espírito
naquele dado momento e o cheiro das flores.
As considerações supracitadas valem para as memórias declarativas.
Contudo, no aprendizado inicial do ato de escrever, por exemplo, também entram
em jogo as memórias de procedimentos, cujas vias são totalmente diferentes das
anteriores.
Os transtornos na aquisição da memória podem decorrer de várias causas.
Eles poderiam ser divididos em dois grandes grupos. Os transtornos da aquisição
das memórias declarativas, que têm forte influência dos eventos sensitivos, e os
da aquisição das memórias de procedimento, estes últimos com um maior
contingente de eventos motores.
Esta é evidentemente uma divisão arbitrária. Um ato motor é indissociável
de uma informação sensitiva. Os eventos psicomotores sempre serão um misto de
informações sensitivas e motoras. As praxias dependem das gnosias e vice-versa.
Ao analisarmos em detalhes os transtornos da aquisição das memórias
declarativas, do ponto de vista didático, o mais adequado seria seguir a via
aferente dos cinco sentidos. Se houver, por exemplo, uma hipoacusia ou até uma
surdez, ficam prejudicadas as aquisições das memórias auditivas, quer sejam de
conteúdo verbal, quer sejam de conteúdo não verbal.
Por suposto, o mesmo raciocínio fica válido para qualquer diminuição ou
ausência na performance dos demais sentidos, tais como visão, olfato, paladar e
tato. Qualquer deficiência em um ou mais dos sentidos por certo trará transtorno
na aquisição das memórias declarativas correspondentes.
Na primeira consulta neuropediátrica de uma criança com dificuldade do
aprendizado, é importante obter-se a certeza de que a criança ouça e enxergue
adequadamente. Os problemas auditivos podem ser suspeitados na época da
aquisição da linguagem. Os visuais, por seu turno, podem passar despercebidos.
Por isso, devem ser triados em todas as crianças que estão entrando na primeira
série do ensino regular, com ou sem queixas de audição ou visão.
No processo “formal” de aprendizagem, ou seja, aquele que ocorre nas
salas de aula do ensino regular, possivelmente tenha equivalente importância
tanto as informações visuais quanto as auditivas, com suas respectivas memórias.
Evidentemente que o tato e os demais sentidos também complementam os
aprendizados, notadamente aqueles mais precoces da criança, que transcorrem
na sua primeira infância e na fase pré-escolar, tais como, conhecer texturas e
cheiros, por exemplo.
Não há de se desconsiderar a importância das memórias de procedimentos,
obtidas através do treinamento motor. Os primeiros jogos motores, o manuseio do
lápis e da tesoura, o treinamento da escrita, etc.
Ocorre que quase toda a informação manuseada na escola vem codificada
no que chamamos de linguagem. Portanto, passa a ser imprescindível o domínio
da arte da leitura e da escrita, caso contrário, toda a performance acadêmica
posterior poderá vir a ser prejudicada.
Na prática diária do consultório neuropediátrico, o que se observa é um
certo grau de pressão para que as crianças aprendam o quanto antes a ler e
escrever. Porque só a partir do domínio, ainda que parcial, destas duas atividades,
é que todo o restante da aprendizagem formal poderá se consolidar.
Do ponto de vista neuromaturacional, é mais fácil ouvir do que falar, é mais
fácil falar do que ler, e é mais fácil ler do que escrever. O ato da escrita envolve
uma total coordenação entre músculos agonistas e antagonistas, além de um bom
embasamento conhecimento prévio dos grafemas, fonemas e seus sons.
Enquanto que na leitura estão mais envolvidas as memórias declarativas,
por seu turno, na escrita estão tanto as declarativas quanto as procedurais. Para
escrever, são recrutadas informações do cerebelo, da córtex e dos núcleos da
base do encéfalo.
Alguns transtornos dos sentidos são passíveis de correção através de
próteses. Por exemplo, no caso dos visuais, pode-se lançar mão dos óculos ou
das lentes corretivas. No caso dos auditivos, pode-se usar aparelhos para surdez
ou até implantes cocleares.
Os transtornos visuais podem trazer repercussões mais precoces, visto que
a janela maturacional da visão abre e fecha mais cedo do que a da audição, após
o nascimento. Se há um problema na aquisição da informação visual, tudo o que
mais tarde vier a consolidar em termos visuais pode então começar a ser
distorcido.
A via visual completa seu ciclo maturacional aproximadamente aos 2 anos
de idade. Contudo, entre os 2 e os 4 anos, a visão é muito importante para
complementar o equilíbrio e a coordenação dos movimentos. A noção de onde
está cada parte do nosso corpo sem o auxílio da visão, o que é chamado de
propriocepção consciente, só consolida aos 4 anos de idade. Por isso é que as
crianças desta faixa etária têm maior facilidade em subir do que em descer
escadas, pois para descer é mais necessária a informação proprioceptiva,
originária dos tendões, músculos e ângulos entre as articulações.
Os problemas visuais podem passar despercebidos por anos. Estes
transtornos, às vezes só são descobertos quando a criança está entrando no
ensino regular, ou quando já apresenta dificuldade no aprendizado. Algumas
vezes são suspeitados quando as crianças iniciam a avaliação psicopedagógica.
Não há dúvidas que a visão é importante não só para a leitura, mas
também para a escrita. A noção de profundidade e a observância dos limites do
espaço disponível para escrever dependem de uma complexa interação entre
informações visuais e proprioceptivas, além da evocação de memórias de
procedimento, obtidas após sucessivos exercícios da escrita.
O treinamento constante dos movimentos necessários à escrita propicia a
consolidação da memória procedural. Ficam facilitadas as vias para que os
movimentos correspondentes a cada grafema sejam cada vez mais aperfeiçoados.
Esta circuitaria acaba por certo mielinizando através do uso continuado.
É o que ocorre, por exemplo, com os digitadores, habituados a repetir o uso
das teclas durante sua rotina de trabalho. Quando determinadas palavras
começam a ser digitadas, já há um bom grau de automação nos movimentos que
devem se seguir aos iniciais, graças à memória de procedimentos. Então as
palavras podem começar a serem digitadas de forma voluntária e terminar de
forma automática, graças à ação do sistema extra-piramidal.
Os transtorno auditivos são muito importantes, em especial na linguagem e
no relacionamento. Se a criança ouve mal, pode falar mal. Se fala mal, pode vir a
ter dificuldades na leitura e escrita, mais tarde. Existe um transtorno muito mais
grave que pode decorrer de problemas sensoriais, em especial dos referentes à
linguagem: são os chamados Transtornos Globais do Desenvolvimento, que
englobam várias situações clínicas, das quais a mais conhecida é o autismo
infantil.
Chegada a informação ao SNC e estando hígidos os cinco sentidos, passa
então a ser importante o nível cognitivo da criança. Parte do potencial intelectual é
herdado, mas parte também depende de uma gestação e primeira infância sem
insultos orgânicos e emocionais ao SNC. Sem cognição não há como haver um
bom aprendizado, nem das memórias declarativas e nem das procedurais, por
mais que os todos os sentidos funcionem a pleno.
Assim como a memória, a função cognitiva como um todo também sofre
influência dos mesmos fatores moduladores. Ela também depende do nível de
atenção, da motivação e da quantidade de ansiedade, além da bagagem genética
e da biografia da criança. Testagens formais do potencial cognitivo de crianças
deprimidas, desatentas ou muito ansiosas podem trazer informações incorretas.
Mas a inteligência e os cinco sentidos podem estar bem preservados e
mesmo assim haver transtornos na aquisição das memórias. É o que pode
ocorrer, por exemplo, no caso das epilepsias, em especial nas crises do tipo
“ausências”. No caso, a criança tem uma perturbação transitória da aquisição das
informações, fica com olhar fixo e inexpressivo e pode perder partes do discurso
da professora durante uma aula. Este tipo de crise é infreqüente e sutil, e muitas
vezes não é notada, porque pode durar apenas alguns segundos ou minutos. Para
o neuropediatra, o diagnóstico é muito fácil de ser feito e o tratamento pode gerar
uma melhora significativa na performance escolar.
Nos casos de paralisia cerebral, que é um quadro neuropediátrico bem mais
grave, predominantemente motor, ficarão mais evidenciadas as dificuldades na
aquisição da memória de procedimentos, com moderada a severa incoordenação
motora. Como as lesões da paralisia cerebral nem sempre ficam restritas somente
à área motora, obviamente a aquisição das memórias declarativas também pode
sofrer transtornos, tanto em decorrência de eventuais deficiências nos sentidos,
quanto devido aos déficits cognitivos que podem estar associados.
Existe uma situação que Rebollo (1991) descreve como “torpeza motora”,
na qual a criança em idade escolar é “desajeitada”. Seria uma forma muito mais
branda do que a descrita no parágrafo acima. Estas crianças não têm uma lesão,
mas sim uma disfunção, que no caso é do hemisfério cerebral direito. Como o
hemisfério cerebral direito inicia antes seu processo maturacional, fica mais tempo
exposto às eventuais injúrias. Por isso as disfunções direitas são mais freqüentes
do que as esquerdas.
A torpeza motora é um dos três tipos de disfunção hemisférica direita,
caracterizada pela dificuldade da criança em mover-se no espaço, tanto no
corporal como no espaço gráfico. Ocorrem dificuldades na integração entre as
informações que chegam, que são as gnosias, e as que devem sair após um
processamento central, que são as praxias.
As crianças ditas “torpes” usualmente não tiveram nenhum retardo nos
marcos iniciais do desenvolvimento neuropsicomotor, pelo contrário. Podem, por
exemplo, ter caminhado antes do esperado. Contudo, tropeçam com freqüência e
derrubam coisas ao se movimentar. Quando começam a manusear instrumentos,
o fazem de forma inadequada, tal como talheres, tesouras e lápis. Podem vestir
roupas ao contrário e ter dificuldades nos jogos de bola e também nos de
construção.
Em realidade, fica difícil imaginar movimento sem o aporte sensorial, nem a
percepção sem que ocorra um movimento. Ao perceber, o SNC registra o
movimento ou as diferenças entre cada uma das informações que vão se
sucedendo. Se não houver diferenças, pode não haver registro. Por isso, as
gnosias poderiam ser chamadas de gnosopraxias e as praxias de practognosias.
16.7.2 – Transtornos da consolidação da memória
A fase de consolidação das memórias possivelmente seja um das mais
importantes eventos mnemônicos, caso contrário, as informações iriam sendo
todas perdidas. O paciente seria capaz de cuidar de atividades básicas do dia a
dia, mas não conseguiria ter memória de longa duração.
Parece que a maior fragilidade, em termos de consolidação, ocorre logo
após a aquisição, nas primeiras horas ou minutos. Quanto mais tempo decorrer da
aquisição, mais duradoura é a consolidação da experiência.
Diferentes tipos de memória consolidam de diferentes modos. As memórias
declarativas usam vários neurotransmissores, tais como GABA, dopamina,
noradrenalina, serotonina e acetilcolina. Com exceção do GABA, os demais
neurotransmissores não têm nenhuma influência na consolidação das memórias
de procedimento.
Memórias de curta duração consolidam de modo diferente, quando
comparadas com memórias de longa duração. Existem pelo menos seis passos
para as de curta e nove passos para a consolidação das de longa duração. São
vários eventos bioquímicos de razoável complexidade.
No caso da consolidação das memórias de longa duração, entram em cena
outros atores, tais como a beta-endorfina cerebral, a vasopressina e os chamados
hormônios do estresse. Estes últimos, quando ocorrem em níveis moderados,
ajudam na consolidação das memórias de longo prazo. Mas quando estão em
doses muito elevadas, como o que ocorre em situações com alto conteúdo
emocional, acabam por prejudicar a consolidação. Por isso é que costumamos
“apagar” aqueles eventos extremamente estressantes de nossos arquivos
mnemônicos.
A fase de consolidação usualmente leva algumas horas. Durante este
tempo, as memórias ficam em um local provisório e são chamadas memórias de
curta duração. A consolidação se dá no hipocampo.
Inserir por aqui a figura 16.1 (legenda, referência e figura em anexo)
Como a consolidação das memórias declarativas se dá nos lobos
temporais, numa área chamada de hipocampo, lesões ou disfunções nestas
regiões podem prejudicar os eventos que têm a ver com a consolidação. Um
exemplo drástico deste fenômeno é bem conhecido, dentro da área médica.
Trata-se do caso do paciente H.M., que foi submetido a uma cirurgia da
epilepsia, na qual lhe foram retiradas as pontas de ambos lobos temporais. Logo
após a cirurgia, ele conseguia fazer todas aquelas atividades que necessitassem
apenas da memória de curta duração. Entretanto, perdeu todas as memórias
declarativas consolidadas antes da cirurgia e se tornou incapaz de consolidar
qualquer nova memória. O paciente dizia: “minha mente é como uma peneira: as
coisas ficam por alguns minutos e depois desaparecem”.
A memória de curta duração ajuda, por exemplo, durante a leitura. Ler é um
evento muito interessante e o ato da leitura pode ser decomposto para uma
análise mais detalhada. É claro que o ideal seria que pelo menos parte do que é
lido consolide como memória de longa duração.
Durante a leitura, é como se os olhos “escaneassem” cada palavra. Cada
varredura, palavra por palavra, é feita em milésimos de segundo. A informação
visual de cada palavra de um texto, que no caso é lingüística, leva em torno de
400 milésimos de segundo para ser decodificada. Inicialmente os olhos se fixam
na palavra, que chega ao córtex cerebral occipital como uma informação bruta. É
comparada nas áreas de associação visual, vai ao lobo frontal (Área de Broca),
onde é feito um esquema mental da sua pronúncia, vai ao lobo temporal (Área de
Wernicke), onde seu som equivalente é imaginado e só então é decodificada,
antes que se passe a varrer a palavra seguinte.
Contudo, para que todo o conteúdo de um livro seja consolidado, é
necessário que decorra algum tempo para a “digestão” das informações. Caso
contrário, elas se perdem junto com a memória de curta duração.
Evidentemente, a atenção é um fator essencial para que a leitura transcorra
sem maiores problemas. Além do treinamento, a criança necessita aprender a
manter o foco da atenção naquilo que está lendo.
Algumas crianças têm uma dificuldade muito maior na leitura e escrita.
Quando este transtorno específico da leitura e escrita é intenso e sustentado,
pode-se ter um quadro de dislexia. Ela é uma condição herdável, possivelmente
relacionada à alterações em genes que estão localizados no cromossomo 6,
ocorrendo em aproximadamente 7% das crianças entre os 6 e os 9 anos de idade.
Na prática neuropediátrica, a dislexia tem sido sub-diagnosticada. O
transtorno específico da leitura e da escrita será abordado em detalhes no capítulo
10.
Diferentes lesões ou disfunções podem causar problemas na fixação de
diferentes memórias. Elas podem estar situadas nas áreas sensitivas primárias,
secundárias ou terciárias, nas vias que as conectam ao lobo temporal para onde
convergem para o fenômeno da consolidação, ou mesmo no próprio hipocampo e
suas conexões, sede da fixação das memórias.
16.7.3 – Transtornos da evocação da memória
Tendo havido a aquisição (aprendizado) e a fixação das memórias, é
importante a possibilidade de resgata-las, reaviva-las, sempre que necessário.
Esta possibilidade passa a ser muito importante, em se tratando do processo de
aprendizagem, na escola. Até porque, este fenômeno é justamente uma das
formas de aferir se houve ou não o aprendizado, durante o ensino formal.
Se a criança mostrar dificuldades em evocar suas memórias, pode ser
julgada incapaz pelos seus professores, mesmo que tenha um bom potencial
cognitivo e tenha conseguido consolidar como memórias de longa duração todos
os conteúdos programáticos passados nas aulas. Ou seja, uma das formas de
aquilatar a performance escolar pode ser pelo quão eficaz for a evocação
daquelas memórias que conseguiram consolidar.
Evidentemente que este terceiro e último passo dos eventos mnemônicos
prescinde muito dos dois primeiros. Se não houve uma boa aquisição, pode não
ocorrer uma adequada consolidação. Se a fixação das memórias não se der de
modo eficaz, fica difícil a evocação das informações arquivadas.
São muitas as estruturas envolvidas no fenômeno da evocação das
memórias, tais como o córtex pré-frontal, o hipocampo, áreas parietais, entorrinais
e do córtex cingulado anterior, além de porções da amígdala do hipocampo. Os
exatos passos moleculares envolvidos na evocação só recentemente foram
identificados.
Para haver a evocação, os eventos mnemônicos mais uma vez se iniciam
pela memória que gerencia todas as demais memórias, que é a de trabalho. É ela
que analisa cada contexto, e ativa todos os demais mecanismos para fazer com
que as informações consolidadas voltem à consciência do indivíduo.
Na evocação das memórias, o nível de ansiedade pode intervir de
sobremaneira. Muita ansiedade de base libera glicocorticóides, que podem
prejudicar a rememoração das informações.
Em realidade, os hormônios do estresse, exceto pelos glicocorticóides, em
geral melhoram a evocação. Eles acabam restaurando o estado original neuro-
humoral vigente na ocasião em que a memória consolidou, ou seja, dão “uma
pista” hormonal ao cérebro, o que facilita a lembrança.
Lesões ou desarranjos no córtex cerebral parietal ou temporal podem ser
seguidas por perdas muito específicas de memórias, de uma forma nitidamente
seletiva. Nestas situações, pode ocorrer, por exemplo, esquecimento do nome das
pessoas.
Disfunções nas amígdalas do hipocampo podem se acompanhar de
dificuldades em identificar os aspectos mais emocionais e também de evocá-las,
quando necessário. São regiões muito circunscritas dos lobos temporais, mas
podem sofrer lesões.
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