Post on 19-Aug-2018
2º Ciclo
Estudos Anglo-Americanos – Tradução
Literária
Tradução e Reflexão Crítica de alguns poemas de Ted Hughes Luís Pereira
M 2017
Luís Francisco Neves Pereira
Tradução e Reflexão Crítica de alguns poemas de Ted Hughes
Dissertação realizada no âmbito do Mestrado em Estudos Anglo-Americanos – Tradução
Literária, orientada pelo Professor Doutor Rui Manuel Gomes Carvalho Homem
Faculdade de Letras da Universidade do Porto
novembro de 2017
Tradução e Reflexão Crítica de alguns poemas de Ted Hughes
Luís Francisco Neves Pereira
Dissertação realizada no âmbito do Mestrado em Estudos Anglo-Americanos – Tradução
Literária, orientada pelo Professor Doutor Rui Manuel Gomes Carvalho Homem
Membros do Júri
Professor Doutor Rui Manuel Gomes Carvalho Homem
Faculdade de Letras - Universidade do Porto
Professor Doutor Maria de Fátima de Sousa Basto Vieira
Faculdade de Letras - Universidade do Porto
Professor Doutor Nuno Manuel Dias Pinto Ribeiro
Faculdade de Letras - Universidade do Porto
Classificação obtida: 14 valores
5
Indíce
Agradecimentos ............................................................................................................................. 6
Resumo .......................................................................................................................................... 7
Abstract ......................................................................................................................................... 8
Lista de abreviaturas e siglas ......................................................................................................... 9
Introdução ................................................................................................................................... 10
Seleção dos Poemas ........................................................................ Erro! Marcador não definido.
Ted Hughes – Nota Biobibliográfica .......................................................................................... 13
Algumas ênfases da obra de Ted Hughes .................................................................................... 22
Ted Hughes como Tradutor......................................................................................................... 29
Traduções .................................................................................................................................... 38
Reflexão Crítica .......................................................................................................................... 74
Conclusão .................................................................................................................................... 83
Referências Bibliográficas .......................................................................................................... 84
6
Agradecimentos
Em primeiro lugar agradeço ao Professor Doutor Rui Carvalho Homem, que me
orientou nesta dissertação, e cujo o auxílio foi imprescindível para a conclusão da
mesma. Por toda a paciência que demonstrou e por todos conselhos que me
proporcionou, muito obrigado.
Quero agradecer também a toda a minha família, em especial à minha namorada,
à minha irmã e à minha mãe por todo o que apoio que sempre me deram, e por nunca
terem deixado de acreditar em mim, mesmo quando eu o havia feito. A todos os meus
amigos pelo apoio e ajuda que me deram ao longo deste trabalho.
7
Resumo
Esta dissertação de mestrado tem como objetivo a tradução de vinte poemas de
Ted Hughes, recolhidos de coletâneas que percorrem toda a sua obra: The Hawk in the
Rain, Lupercal, Wodwo, Crow: From the Life and Songs of the Crow, Moortown Diary,
Birthday Letters, Howls & Whispers. As traduções são enquadradas por um
levantamento crítico dos desafios colocados pelo processo translatório, bem como por
informação biobibliográfica sobre o autor, por forma a permitir um melhor
entendimento das principais ênfases e dimensões poéticas da sua obra.
Palavras-chave: Ted Hughes, literatura inglesa, poesia, tradução literária, dificuldades
da tradução
8
Abstract
This master’s dissertation has as its main goal the translation of twenty poems by
Ted Hughes, taken from collections spanning his whole poetic oeuvre: The Hawk in the
Rain, Lupercal, Wodwo, Crow: From the Life and Songs of the Crow, Moortown Diary,
Birthday Letters, Howls & Whispers. The Portuguese versions of the poems are framed
by a critical identification of challenges posed by the translation process, as also by
information on the author's life and work, with a view to contributing to a better
understanding of the author's poetic range.
Keywords: Ted Hughes, English literature, poetry, literary translation, difficulties of
translation
9
Lista de abreviaturas e siglas
Lista de abreviaturas (ordenadas por ordem alfabética)
MPT Modern Poetry in Translation
10
Introdução
A presente dissertação, realizada no âmbito do Mestrado em Estudos Anglo-
Americanos – Vertente de Tradução Literária, tem como foco principal de estudo crítico
e tradutório um conjunto de poemas de Ted Hughes, poeta e escritor da maior
importância no contexto pós-guerra Britânico, assim como virtualmente em toda a
segunda metade do século XX, tendo chegado a ocupar a posição de Poeta Laureado,
posição que manteve até à sua morte a 28 de outubro de 1998. Ao longo destas
primeiras páginas proporei uma reflexão sobre a escolha do autor, uma nota
biobibliográfica do mesmo e algumas ênfases da sua obra, salientando a importância
desta informação para a leitura dos poemas escolhidos como objeto de estudo, bem
como para um entendimento mais amplo das coletâneas de que foram retirados.
Pretendo deste modo contextualizar Ted Hughes para os meus leitores, visto ainda ser
um poeta relativamente pouco conhecido em Portugal, e quererei ainda acrescentar uma
breve referência ao seu trabalho (curiosamente) como tradutor. A este capítulo inicial
seguir-se-ão as próprias traduções. Subsequentemente, segue-se uma reflexão crítica
sobre o próprio processo de tradução, de modo a elucidar o leitor quanto à seleção e
propósitos das traduções propostas nesta dissertação, e um breve comentário sobre as
maiores dificuldades que tive de ultrapassar durante o processo translatório.
Os vinte poemas que compõem o cerne desta dissertação foram recolhidos de
sete coletâneas de poesia de Hughes e seguem cronologicamente a obra do autor.
Embora tenha, também, composto prosa ao longo da sua vida, maioritariamente para
crianças, e tenha realizado várias incursões no campo da tradução, fundando com Daniel
Weissbort em 1964 a revista Modern Poetry in Translation, a componente dominante da
obra de Hughes é a sua poesia. No entanto, para além de ter sido necessária uma
ponderação cuidada na escolha dos poemas, foi também necessário, para este fim, uma
experimentação extensa de tradução com a finalidade de eleger os poemas que melhor
“sobreviveriam” a esta translação para o Português.
11
Seleção dos Poemas
A seleção da área de estudos sobre a qual me debruço para esta dissertação só foi
possível após um grande período de reflexão: primeiramente estava inclinado para a
tradução de um autor Norte-Americano, sendo que o primeiro que seriamente considerei
foi Ernest Hemingway (uma preferência pessoal), passando por Don Delillo, Charles
Bukowski, Paul Auster, Thomas Pynchon e William Gibson, para nomear alguns. No
entanto, havia deslocado um pouco do meu interesse para a tradução de poesia e os
problemas inerentes a esta atividade, pelo que representa outro tipo de desafio - ainda
que não necessariamente maior do que a tradução de prosa, campo que já havia
explorado mais aprofundadamente tanto nos seminários de tradução do primeiro ano do
mestrado referido, como com vários trabalhos como tradutor freelance.
Posto isto, a escolha de Ted Hughes, e consequentemente da sua obra, como
objeto desta dissertação, passa por uma curiosidade que havia crescido aquando da
minha iniciação ao estudo do mesmo durante a Licenciatura em Línguas, Literaturas e
Culturas, em Literatura Inglesa - Poesia do Século XX. Hughes inseria-se no programa
principal da disciplina, conjuntamente com Philip Larkin e Seamus Heaney, sendo que
primeiramente, havia sido Larkin a suscitar uma maior curiosidade, interesse e,
confesso, prazer de leitura e aprendizagem, não só pelos meandros da sua obra e
prosódia da mesma, mas também pelo que a escrita sugeria sobre a sua personalidade e
excentricidade. No entanto, algo na primordialidade da poética de Ted Hughes, nos
ambientes negros e inóspitos invocados nos seus poemas, os meandros obscuros do
podre, violência e sobrevivência, e vitalismo do mundo natural (que tem merecido
algumas reservas), bem como o tom autobiográfico e confessional presente na sua
poesia, mais patente nas coleções mais tardias do autor (como Birthday Letters e a
coleção “irmã” Howls and Whispers), fomentaram um interesse de exploração, não só
de estudo crítico mas também pela possibilidade de trazer parte da sua obra para um
contexto no qual Hughes ainda é um pouco desconhecido.
Ao verificar o catálogo da Biblioteca Nacional encontrei apenas duas traduções
12
portuguesas da obra de Hughes: Cartas de Aniversário por Manuel Dias (Relógio
D’Água Editores, 2000) e O fazer da poesia de Helder Moura Pereira (Assírio & Alvim,
2002). A falta de reconhecimento de Ted Hughes no panorama editorial de Portugal é
de estranhar devido à sua proximidade com o poeta português Hélder Macedo e sua
esposa, Suzette, e a cooperação entre os três na tradução de um poema de Mário Sá
Carneiro para uma edição Portuguesa da revista Modern Poetry in Translation
(Weissbort, 2011: 53), criada por ambos Ted Hughes e Daniel Weissbort, que visava
promover escritores estrangeiros no mundo literário e cultural Inglês, com traduções
pelo próprio Hughes, através de versões literais e/ou não literárias1 (Weissbort, 2011:
10). É de salientar que Hughes também traduziu poemas do próprio Hélder Macedo para
essa mesma edição da MPT, o que suscita ainda mais a curiosidade sobre não ter havido
um interesse bidirecional na tradução, sendo que esta proximidade se estendia para além
do zelo académico.
Esta escassez da obra de Hughes em Portugal acabou por se tornar um
catalisador importante para a escolha do tema. Embora muitos dos autores norte-
americanos que nomeei sejam também pouco conhecidos em Portugal, ou pelo menos
por um público que consuma preferencialmente literatura em Português, senti que Ted
Hughes seria mais merecedor de ser objeto de trabalho, não só por se inserir no cânone
literário Europeu, mas também pela influência que teve no mundo poético ocidental na
segunda metade do século XX. Esta influência (curiosamente) passa pelo campo da
tradução, dado que divulgou vários autores da Europa de leste e de outras partes do
mundo no contexto literário Inglês através da MTP.
1 Uma versão com tais características é conhecida como ‘burro’: “gíria académica: tradução literal de um
autor para auxílio dos estudantes” (Dicionário Académico da Língua Portuguesa, Porto Editora).
13
Ted Hughes – Nota Biobibliográfica
Ted Hughes nasceu a 17 de agosto de 1930 na pequena cidade de Mytholmroyd
em Calder Valley, na província de West Riding of Yorkshire, umas das três subdivisões
do condado de Yorkshire, Inglaterra, área que continuou a visitar ao longo da sua vida
tanto na poesia como na prosa que produzia. Esta relação com Calder Valley é bastante
evidente na coleção Remains of Elmet, escrita por Hughes em resposta ao trabalho
fotográfico a preto e branco de Fay Godwin (Armitage, 2013: 6). Filho de William
Henry e Edith Hughes, Ted Hughes era o mais novo dos três filhos: Olwyn Hughes e
Gerald Hughes eram mais velhos dois e dez anos do que Hughes, respetivamente. O seu
pai foi um dos dezassete sobreviventes do seu regimento na Campanha dos Dardanelos
(1915-16), durante a Primeira Guerra Mundial: “William Hughes, Ted’s father, was one
of the only 17 men from his regiment in the Lancashire Fusiliers to return alive from the
Battle of Gallipolli” (Webb, 2013: 34) Aliás, vários poemas em The Hawk in the Rain
refletem a obsessão de Hughes com a Grande Guerra, por influência de seu pai, tais
como: “Griefs for Dead Soldiers”, “Six Young Men”, até “Bayonet Charge”, para
nomear alguns. Hughes e a sua família deslocaram-se de Mythomroyd para
Mexborough em South Yorkshire quando este era ainda uma criança: “[I]n fact, some
commentators make him as young as seven when the family packed their bags (…)”
(Armitage, 2013: 6). Estes primeiros anos em Calder Valley influenciaram e marcaram
Hughes para o resto da vida. É também durante esta altura que Hughes desenvolve um
forte interesse pela vida selvagem por influência do irmão mais velho, Gerald Hughes:
“My [Hughes] first six years shaped everything” (Sagar, 2000: 40).
O interesse de Ted Hughes pela escrita e pela poesia foi inspirado pelos seus
professores na Grammar School em Mexborough. Duas das suas primeiras publicações
surgiram na revista da escola, The Don and Dearne, assim como o poema “Wild West”.
Antes de ingressar no Pembroke College em Cambridge, Hughes cumpriu o serviço
militar durante dois anos (1949 a 1951), ficando colocado numa pequena estação da
Royal Air Force (Força Aérea do Reino Unido), na zona este de Yorkshire (Bate, 2015:
“Goddess”).
14
A candidatura de Hughes a Cambridge teve a ajuda do seu professor de Inglês,
John Fisher, que enviou um conjunto de poemas de Hughes para o diretor do college,
para reforçar a sua candidatura. No entanto, numa carta para Keith Sagar, Hughes
admitiu mais tarde que havia descoberto que tinha reprovado no exame de admissão,
mas que o diretor tinha gostado da sua poesia a ponto de o selecionar como estudante
(Roberts, 2013: 17). Porém, nunca foi claramente esclarecido se de facto os poemas
tiveram muita influência na admissão de Hughes em Cambridge:
‘My doubts are confirmed in an article by Pembroke Fellow Colin Wilcockson, who
establishes that poems were sent in support of Hughes’ application but that there is no record of
what impression they made. Wilcockson (…) points out that decisions were made collectively
by a group of colleges, so that the Master would not have the prerogative implied by the ‘dark
horse’ story.’ (Roberts, 2013, 18)
Embora a poesia tenha sido o fator principal no seu ingresso em Cambridge,
Hughes deixaria o seu estudo académico, escolhendo no segundo ano estudar
antropologia e arqueologia (Neil Roberts, 2013, 18), pois sentia que este estudo
académico de literatura o estava a distanciar do processo criativo poético: “(...) he writes
that critical prose was depriving him of 'a non-analytic language, wholeness of
language', which he needed to access his most authentic self” (Roberts, 2013: 18). Esta
decisão de se afastar da dissecação académica da literatura surgiu após o famoso sonho
com a raposa: “(…) the famous dream of the burnt fox that interrupted the writing of
Hughes’ weekly critical essay with the words ‘Stop this – you are destroying us’ (…)”
(Gifford 2013, 2).
Já quase no fim dos seus estudos em Cambridge, Hughes publica dois poemas,
“The Little Boys and the Seasons” e “Song of the Sorry Lovers”, nas revistas de
estudantes Granta e Chequer (Roberts, 2013: 18).
Em 1956, no lançamento da revista St. Botolph’s Review, o autor conhece Sylvia
Plath, também escritora e poetisa. Segundo Hughes, tanto ele como Plath estavam
“curiosos” em se conhecer; ambos haviam sido publicados em várias revistas literárias
que proliferavam por Cambridge na altura, e Plath também já tinha sido publicada na
15
revista Chequer, onde Hughes havia publicado “The Jaguar” e “Casualty” (Gill, 2011:
53). Sylvia Plath e Ted Hughes iriam casar a 16 de junho de 1956, na igreja de St
George the Marty Holborn em Londres, quatro meses após se terem conhecido. O casal
teve dois filhos, Frieda Rebecca (1960-) e Nicholas Farrar (1962-2009) (Bate, 2015:
“Famous Poet”).
O casamento com Sylvia Plath, bem com a sua dissolução, iria ser um marco
importante na vida e obra de Hughes. Sylvia Plath teve uma influência grande na
carreira poética de Hughes, não só pela influência da literatura americana que lhe deu a
conhecer (Gill, 2011:55), como também foi Plath que enviou um manuscrito de The
Hawk in the Rain para uma competição de poesia pelo Poetry Centre of Young Men's
and Young Women's Hebrew Association of New York. O prémio de primeiro lugar da
competição era a publicação de um livro, e o manuscrito garantiu o primeiro lugar a Ted
Hughes.
The Hawk in the Rain foi publicado em Londres a 13 de setembro de 1957, pela
editora Faber and Faber, e revelou-se um grande sucesso crítico, valendo a Hughes o
prestigiado prémio Somerset Maugham Award (Bate, 2015: “So this is America”). A
coletânea contém alguns dos poemas mais famosos de Ted Hughes, como o titular “The
Hawk in the Rain”, “The Jaguar”, “The Thought-Fox”, “Wind” e Famous Poet”, para
nomear alguns. A estreia de Hughes foi uma viragem na poesia britânica, rompendo
com o estilo do chamado “Movement”, o movimento poético dominante na altura da
sua publicação: “His voice was very different, that was to say, from the urbane tones of
the poets of the so-called Movement – the anti-romantic, anti-Dylan Thomas group,
including Philip Larkin, Kingsley Amis and Donald Davie, whose work had been
gathered the previous year in an anthology called New Lines” (Bate, 2015: “So this is
America”). A coletânea chamou a atenção do poeta Edwin Muir, que numa crítica para
a revista britânica New Statesman escreveu:
‘Mr Ted Hughes is clearly a remarkable poet, and seems to be quite outside the current
of his time. (…) His distinguishing power is sensuous, verbal and imaginative; at his best the
three are fused together, (…) [h]is images have an admirable violence.’ All in all, The Hawk in
the Rain was ‘A most surprising first book, and it leaves no doubt about Mr Hughes’s powers.’
16
(Bate, 2015: “So this is America”)
The Hawk in the Rain serve de alicerce forte para o resto da obra de Hughes,
introduzindo temas dominantes tais como a natureza como uma força malévola que
nada se preocupa com o ser, animal ou homem, violência, guerra (como já referido),
competição e conflito: no poema titular da coletânea, o gavião assume o simbolismo da
humanidade e as suas tentativas fúteis de dominar os elementos.
A década de 60 viria a revelar-se amarga para Hughes, embora tenha começado
de forma promissora. O poeta publica Lupercal em 1960, o seu segundo volume de
poesia. A coletânea revelou-se um enorme sucesso crítico e comercial: “The Daily
Telegraph’s Poetry reviewer agreed:’ (…) Ted Hughes’s poems, Lupercal, which have
been called violent, are in fact genuinely powerful, not self-consciously virile … Mr
Hughes at 30 is to me the most strikingly original, technically masterful, poet of his
generation.” (Bate, 2015: “Famous Poet”). Embora a subordinação do Homem perante a
natureza continue a ser uma das ênfases da sua poesia, em Lupercal, a coletânea explora
vários temas, como a vida de um veterano do Império Britânico em “The Retired
Colonel”, a Primeira Guerra Mundial (“Wilfred Owen’s Photographs”), e o próprio
Império Romano no último poema da coletânea, “Lupercalia” (Bate, 2015: “Famous
Poet”). Um dos poemas mais famosos de Lupercal é “Hawk Roosting”, que representa a
prática de Hughes escrever do ponto de vista do animal: “Hughes himself [said] in his
original notes on the collection: ‘In this, I imagine the hawk speaking to himself. He is
like a dictator, who thinks he is God and invincible’” (Bate, 2015: “Famous Poet”).
O casamento de Ted Hughes com Sylvia Plath entrou em declínio quando o
poeta conheceu Assia Wevill em 1962, esposa de David Wevill, também poeta (Bate,
2015: “The Grass Blade”). A relação de adultério com Assia Wevill, assim como outras
alegações de infidelidade pela parte de Hughes, foram fatores contributivos para a
separação do casal. Sylvia Plath era, também, uma personalidade complexa, e contava
com um vasto historial de depressões e tentativas de suicídio: “Plath’s temperament,
exacerbated by her depression, made her possessive and jealous” (Bate, 2015: “That
Sunday Night”).
Sylvia Plath acabaria por se suicidar pelas seis da manhã de 11 de fevereiro de
17
1963 por gaseamento: “Sylvia had taped up the kitchen and bedroom doors, and placed
towels underneath, to stop the gas from spreading through the rest of the flat. Then she
had placed her cheek on a kitchen cloth folded neatly on the floor of the oven and
turned on the taps of the cooker” (Bate, 2015: “That Sunday Night”). O suicídio de
Plath foi um marco na vida de Hughes, visto nunca ter ultrapassado a sua perda, e o
autor voltaria, mais tarde, a explorar a sua vida com Plath na coletânea Birthday Letters:
“She asked me for help, as she so often has,’ he wrote. ‘I was the only person who could
have helped her, and the only person so jaded by her states and demands that I could not
recognize when she really needed it” (Bate, 2015: “That Sunday Night”). A relação de
Assia Wevill com Ted Hughes perdura até 1967, embora Wevill tenha tido dificuldade
em tomar o lugar de Plath: “She described herself as ‘The weak mistress, forever in the
burning shadows of their [Ted and Sylvia’s] mysterious seven years’” (Bate, 2015: “The
Custodian”).
Em 1964, Ted Hughes cria a revista MPT juntamente com Daniel Weissbort,
publicada pela primeira vez em 1965 (Weissbort, 2011:7): “They [Hughes & Weissbort]
called it Modern Poetry in Translation and in it they planned to publish the best and
most insistent work available to them in English translation “ (Modern Poetry in
Translation, n.d.). MPT solidificou o interesse de Ted Hughes pela tradução: o intuito da
revista era dar a conhecer, ao panorama literária britânico, escritores e poesia de todo o
mundo, numa tentativa de “unir” a poesia, de a tornar numa linguagem universal: “One
can easily understand the suddenness of the need to communicate, to exchange dreams
and revelations and brainwaves, to find a shared humanity on the level of the heart. The
translation of poetry became important, almost political business” (Hughes, MPT site).
Em maio de 1967, Faber and Faber publica a terceira coletânea do poeta,
Wodwo, que difere das coletâneas anteriores de Hughes: é composta por três partes, com
poesia na primeira e na terceira (e última) parte, sendo a do meio composta por contos
(Bate, 2015: “The Iron Man”):
‘Ted explained to his old schoolteacher John Fisher that Wodwo was a kind of
completion of The Hawk in the Rain and Lupercal, the end of the first phase of his poetic
career.’ (Bate, 2015: “The Iron Man”)
18
Os poemas que compõem a primeira parte de Wodwo lembram o estilo das
coletâneas antecedentes, The Hawk in the Rain e Lupercal, como o poema “Second
Glance at the Jaguar”, que revisita o animal de “The Jaguar” da primeira coletânea,
enquanto a terceira parte da coletânea usa “a symbolic and quasi-mythological
apparatus” (Bate, 2015: “The Iron Man”), que mais tarde iria explorar mais
aprofundadamente com Crow: From the Life and Songs of the Crow (1970). De notar
que grande parte dos poemas que compõem esta coletânea foram escritos antes do
suicídio de Sylvia Plath (Bate, 2015), salvo exceções como “The Howling of Wolves”:
“Lying in Sylvia’s bed in Fitzroy Road at night he heard the eerie cal from the wolf
enclosure at London Zoo. It was like the howl of pain in his own heart” (Bate, 2015:
“The Custodian”).
Em 1968 The Iron Man (The Iron Giant nos Estados Unidos) é publicado. Trata-
se de um romance para crianças, que viria a ser uma das obras mais bem-sucedidas de
Ted Hughes. O livro retrata a chegada a Inglaterra de um gigante de ferro, que surge de
início como uma ameaça ao planeta, até se tornar amigo de Hogarth, uma criança do
campo com alguns traços biográficos de Hughes, como o interesse pela pesca (Bate,
2015: “The Iron Man”). O titular “Iron Man” acaba por se tornar o defensor do planeta
Terra quando este é atacado por uma criatura vinda do espaço (Bate, 2015: “The Iron
Man”).
Em 1969, o autor passa por uma tragédia bastante semelhante à de Sylvia Plath:
Assia Wevill comete suicídio por gaseamento, e leva consigo a sua filha de quatro anos,
Alexandra “Shura” Wevill: “(…) [W]hen Assia Wevill commited suicide in the same
manner of Plath, by using a gas oven, but also took the life of her little daughter Shura”.
(Moulin, 2011: 23). Nunca foi claramente esclarecido se “Shura” era filha de Hughes,
embora Hughes acreditasse que “Shura” seria sua filha: “He gave a statement to the
police, explaining that he had met Assia seven years before (…) [and] had become ‘very
close friends, and eventually the friendship blossomed into love’. They ‘became
intimate, and there was a girl born of this union”, (Bate, 2015: “Then autobiographical
things”).
19
Ted Hughes publica em 1970 o seu primeiro volume original de poesia desde
Wodwo, Crow: From the Life and Songs of the Crow. O conceito de Crow surgiu
originalmente de um projeto de Leonard Baskin (1922-2000) com Hughes em 1964.
Após o suicídio de Plath, Baskin propõe que Hughes escreva um poema, “The Anatomy
of Crow”, para acompanhar uma coletânea de “Crow drawings” de Baskin: “a request
made just three weeks after Sylvia Plath’s death, with the explicit intention of
propelling Ted ‘from despair to activity’” (Bate, 2015: “The Crow”). Hughes tenta
desenvolver o projeto como “a saga, an epic poem, a creation myth, a counter-theology”
(Bate, 2015: “The Crow”), até que o suicídio de Assia Wevill interrompe a composição
de Crow: “The deaths in 1969 of Assia Wevill and of Shura, his daughter by her,
devastated Hughes, forcing a premature conclusion to the collection’s composition”.
(Webb, 2013: 36).
Incapacitado de acabar o projeto, Hughes publica-o como Crow: From the Life
and Songs of the Crow: “[Crow]: was composed in a stark, unembellished style which
can be said to represent a loss of faith in language”, e segundo Hughes, “’the idea was
originally just to write his songs (…) songs with no music whatsoever, in a super-simple
and a super-ugly language which would (…) shed everything just what [Crow] wanted
to say’” (Webb, 2013: 36/37). A receção crítica de Crow foi ambivalente, com críticos a
considerar o livro como “the assertion of a nihilistic violence” (Jonathan Bate, 2015:
“The Crow”), ou vendo-o como centrado no tema do “fim da civilização”, bastante
comum na altura (Bate, 2015: “The Crow”), face às realidades do Holocausto e o clima
de Guerra Fria e o medo da ameaça nuclear; por outro lado, críticas como a publicada
na Newsweek saudariam Crow como “one of those rare books of poetry that have the
public impact of a major novel or a piece of super-journalism” (Bate, 2015: “The Crow)
e que Hughes havia criado “one of the most powerful mythic presences in contemporary
Poetry” (Bate, 2015).
Ted Hughes casaria outra vez em 1970 com Carol Orchard, filha de um lavrador
(Bate, 2015: “The Savage God”), e a Crow seguir-se-á Cave Birds (1975), uma
coletânea de poemas sobre pássaros míticos e reais acompanhados de desenhos de
Leonard Baskin (Bate, 2015: “Farmer Ted”).
20
Moortown é publicado em 1978 pela Rainbow Press, e um ano mais tarde pela
Faber and Faber, juntamente com outros poemas. A coletânea é dedicada ao seu sogro,
Jack Orchard, que também é o tema do poema “The day that he died”, escrito um dia
depois de Jack falecer (Bate, 2015: “Farmer Ted”). A coletânea é composta por poemas
sobre a vida no campo, escritos por Ted Hughes no início da década de setenta durante a
sua estadia na titular quinta do seu sogro, Moortown (Bate, 2015: “Farmer Ted”). Só em
1989 é que a coletânea é publicada como Moortown Diary, contendo apenas os poemas
sobre o campo ligeiramente reordenados (Bate, 2015: “The Elegiac Turn”).
Em dezembro de 1984, Ted Hughes é nomeado o Poeta Laureado do Reino
Unido, após o seu contemporâneo Philip Larkin (1922-1985) recusar a oferta: “The
Palace issued a press release on Wednesday 19 December 1984: ‘The Queen has been
pleased to approve that Edward James Hughes be appointed Poet Laureate in Ordinary
to Her Majesty in succession to the late Sir John Betjeman’” (Bate, 2015: “The
Laureate”). Salienta-se o poema Rain-Charm for the Duchy, dedicado ao Príncipe
Harry, que havia sido batizado dois dias depois de Hughes ter sido nomeado Poeta
Laureado: “This work was dedicated to the young Prince Harry and described by Ted as
‘a fitting splash for the christening’ (…)” (Heaney, 2013: 225).
Ao longo das décadas de oitenta e noventa grande parte da produção criativa do
autor é dominada por traduções de poesia e clássicos, como Tales from Ovid (1997) de
Ovídio, publicado em maio de 1997, que valeu a Hughes o prémio Whitbread Book of
the Year: “the Ovid book won Britain’s biggest literary award apart from the Booker
(which was only for novels): the Whitbread Prize (…)” (Bate, 2015: “The Return of
Alcestis”).
Birthday Letters foi publicado em 1998 pela Faber and Faber, e foi um sucesso
imediato, e numa questão de semanas já tinha vendido dezenas de milhares de cópias:
“On the leader page, The Times opined that this was ‘The greatest book by our greatest
living writer’” (Bate, 2015: “The Sorrows of the Deer”). A coletânea, composta por
oitenta e oito poemas escritos ao longo de três décadas, retrata a relação atribulada do
casal, contendo poemas como “St Botolph’s”, que retrata quando se conheceram, e “The
Blue Flannel Suit” referente ao primeiro dia de aulas de Sylvia Plath no Smith College:
21
“These poems had, it transpires, been written over some three decades (…) [and]
Birthday Letters caught the public by surprise. Here, it seemed, for the first time,
Hughes was revealing the true story of his married life, ‘breaking decades of diplomatic
silence’ and, finally, ‘set[ting] the record straight’”. (Gill, 2011:58)
Na primavera do mesmo ano, Hughes publica a coletânea Howls and Whispers.
A coletânea contém apenas onze poemas, e teve uma tiragem de apenas 100 exemplares
juntamente com mais 10 altamente personalizados e de coleção (Bate, 2015: “The
Sorrows and the Deer”), que foram distribuídos maioritariamente pelos amigos do autor.
Os onze poemas que compõem Howls and Whispers têm uma forte ligação com
Birthday Letters: poemas como “The City” sugerem um Hughes ainda atormentado não
só por Plath, como pela sua memória e a sua escrita; “The Minotaur II” está
tematicamente ligado a “The Minotaur” de Birthday Letters; enquanto o poema titular
“Howls and Whispers” relembra “That Tender Place” de Birthday Letters, com Hughes
a redirecionar parte da culpa da tragédia de Plath para terceiros.
Ted Hughes sofria de cancro terminal aquando das suas últimas publicações,
facto que manteve secreto do público, contando apenas aos seus amigos mais chegados.
A publicação de obras tão pessoais e de natureza confessional, como Birthday Letters e
Howls and Whispers, estará ligada a esta doença terminal de que sofria, quase que como
uma tentativa de “cura” interior:
‘Perhaps there is no finer example of the effects of this attempt at self-cure than with his
unguarded expression of relief in a letter to Seamus Heaney, that the publication of Birthday
Letters resembled a physical operation rather than a literary endeavour (…).’ (Hadley, 2013:
197)
Hughes morre a 28 de outubro de 1998, na sua casa em North Tawton, tendo
finalmente perdido a luta contra o cancro do cólon (Bate, 2015: “The Legacy”).
Collected Poems, um livro com mais de 1300 páginas contendo quase toda a obra
poética de Hughes, é publicado em 2003 pela Faber and Faber (Bate, 2015: “The
Legacy”).
22
Algumas ênfases da obra de Ted Hughes
Ted Hughes escreveu sobre uma grande variedade de temas ao longo de toda a
sua obra, quer poética, quer narrativa. Destaco como temas mais importantes o uso
recorrente de animais, a natureza, a violência, o mito, o xamanismo e a poesia como
cura interior.
O interesse do autor por animais começa desde criança em Calder Valley, muito
por influência do seu irmão mais velho, e está bastante presente ao longo da obra de Ted
Hughes, ao ponto de o poeta ser geralmente considerado um “poeta dos animais”.
Ademais, Hughes não só considera os próprios poemas como “a sort of animal” (Webb,
2013: 35), como também associa o ato de caçar com a escrita em si: “This is hunting
and the poem is a new species of creature, a new specimen of the life outside your own”
(Webb, 2013: 35). O poeta também exalta a influência e importância dos animais no
desenvolvimento da sua linguagem poética:
‘Since I spent my first seventeen or eighteen years constantly thinking about them more
or less, they became a language – a symbolic language which is also the language of my whole
life. It was [...] part of the machinery of my mind from the beginning [...] So when I look for, or
get hold of a feeling of that kind [to address a subject in poetry], it tends to bring up the image
of an animal or animals simply because that’s the deepest, earliest language that my imagination
learned. Or one of the deepest, earliest languages.’ (Webb, 2013: 34)
De facto, as duas primeiras coletâneas do poeta estão repletas de poemas
relacionados com animais, e o poema titular “The Hawk in the Rain” demonstra de
imediato várias temáticas da poética de Hughes: a relação do homem com a natureza,
com os animais, a violência e a mortalidade do ser face à imponência da natureza. As
primeiras duas estrofes do poema demonstram o conflito e a luta do Homem face a uma
violenta tempestade, “I drown in the drumming ploughland, I drag up / Heel after heel
from the swallowing of the earth’s mouth” (Hughes, 2005: 19), enquanto que o gavião
parece ser indiferente à violência da natureza, “(…) but the hawk / Effortlessly at height
hangs his still eye. / His wings hold all creation in a weightless quiet” (Hughes, 2005:
23
19). O uso de vocabulário de luta-livre para representar o efeito da violência da
tempestade no sujeito poético é também notável pela natureza visceral da imagem em
si: “Thumbs my eyes, throws my breath, tackles my heart” (Hughes, 2005: 19). No
entanto, embora representado como superior ao sujeito poético, nem o gavião consegue
escapar à natureza destrutiva da terra, e por fim acaba, também, por ceder:
‘The horizon trap him; the round angelic eye
Smashed, mix his heart’s blood with the mire of the land.’ (Hughes, 2005: 19)
Como “The Hawk in the Rain”, “The Horses” relata a perseverança dos cavalos
numa noite gélida de inverno:
‘Their drape stone manes, their tilted hind-hooves
Stirring under a thaw while all around them
The frost showed its fires. But still they made no sound.
Not one snorted or stamped,’ (Hughes, 2005: 22)
Um dos poemas mais famosos de Ted Hughes, “The Thought-Fox”, liga o
processo de produção poética com o próprio animal do poema (Webb, 2013: 35). A
presença e comportamento da raposa mencionada no título – “A fox’s nose touches
twig, leaf; / Two eyes serve a movement, that now / And again now, and now, and now
/ Sets neat prints into the snow - entrelaça-se com a narração da composição do poema.
A raposa assume o papel de inspiração poética, e o seu simbolismo está diretamente
ligado ao sonho da raposa já antes referido. Os movimentos da raposa, as “neat prints”
que deixa pela neve enquanto o sujeito poético escreve, metaforizam a própria escrita:
‘Across clearings, an eye,
(…)
Coming about its own business
24
Till, with a sudden sharp hot stink of fox
It enters the dark hole of the head.
(…)
The page is printed.’ (Hughes, 2005: 21)
“Hawk Roosting”, um dos poemas mais famosos de Lupercal serve de exemplo
de um poema que conjuga o animalismo patente na poética de Hughes, como também é
frequentemente citado como um dos maiores exemplos de violência na escrita de
Hughes. No poema, o gavião é representado na primeira pessoa, sendo também o sujeito
poético. Segundo Hughes, o pássaro em questão foi encarado por alguns como símbolo
fascista (Bentley, 2011: 30), embora a sua intenção inicial fosse de representar
diretamente a natureza pelo gavião: “[The Hawk] is accused of being a fascist… (…)
Actually what I had in mind was that in this hawk Nature is thinking. Simply nature”
(Bentley, 2011: 30). Esta “acusação” de fascismo pela parte do gavião pode ser
explicada pela superioridade e tirania que o mesmo apresenta ao longo do poema, como
por exemplo:
‘I kill where I please because it is all mine.
There is no sophistry in my body:
My manners are tearing off heads –
The allotment of death.
(…)
No arguments assert my right:
…
My eye has permitted no change.
I am going to keep things like this.’ (Hughes, 2005: 68/69)
O verso “And the earth’s face upward for my inspection” remete ainda para a
imagem de um líder totalitário perante os seus súbditos. O gavião do poema também é
comparável ao Homem, pela sua superioridade assertiva demonstrada perante a
25
natureza, os animais, e o planeta. Porém, a violência demonstrada pelo gavião não pode
ser apenas considerada como uma violência vulgar.
Hughes distingue dois tipos de violência: negativa e positiva (Bentley, 2011:
30). O poeta caracteriza a violência negativa como remetendo para a ideia de “violação”
ou “sacrilégio”, e propõe que a associemos à imagem de Hitler (Bentley, 2011: 30); a
violência positiva, segundo Hughes, é uma reação à primeira: “’a life-bringing assertion
of sacred law which demolishes, in some abrupt way, a force that oppressed and
violated it’” (Bentley, 2011: 30, itálicos no original). Sendo que Ted Hughes considera
que a energia dos seus animais “’reaffirms the divine law that created them as they are’”
(Bentley, 2011: 30), a violência do gavião em “Hawk Roosting” pode ser caracterizada
como positiva e oposta a uma força prepotente (Bentley, 2011: 31). Esta força opressora
“is the culture that shapes the response of those readers who objected to what they saw
as the poems’ violence” (Bentley, 2011: 31).
Em Wodwo, poemas como “The Howling of Wolves” e “Song of a Rat”
(concebidos logo após o suicídio de Sylvia Plath) apresentam uma imagem
completamente diferente da superioridade e assertividade presente em “Hawk
Roosting”. Em “The Howling of Wolves”, Hughes utiliza a metáfora do animal em
sofrimento, incapaz de entender o seu propósito no universo:
‘The steel furred to keep it from cracking in the cold,
The eyes that never learn how it has come about
That they must live like this,’ (Hughes, 2005: 180)
A própria descrição do movimento do lobo remete para um conflito incessante:
“It goes to and fro, trailing its haunches and whimpering horribly” (Hughes, 2005: 180).
O lobo em “The Howling of Wolves” pode ser interpretado, não como um exemplo de
superioridade do ser, como no poema “Hawk Roosting”, mas antes como reflexo de um
sofrimento interior, e físico, perante a realidade imensa do universo.
O uso do mito em Ted Hughes é bastante visível na coletânea Crow: From the
Life and Songs of the Crow. Esta foca-se num mundo não “real”, mas sim alegórico,
com várias alusões a mitos religiosos, reinterpretados e recriados por Hughes, como o
26
mito da criação em “Crow Blacker than Ever” – “But Crow Crow / Crow nailed them
together, / Nailing Heaven and earth together – (…) / Crying: ‘This is my Creation,’”
(Hughes, 2005: 244) -, e a origem do pecado original em “Apple Tragedy”, em que
Deus espreme a maçã até criar cidra e a dá de beber diretamente à serpente, a Adão e a
Eva: “As narratives, the collections meet the description of myth as laid out by Joseph
Campbell: ‘generations of individuals pass, like anonymous cells from a living body;
but the sustaining, timeless form remains’”. (Webb, 2013: 38).
O próprio “Crow” é inspirado na figura do “Trickster” (“trapaceiro”) da
mitologia Ameríndia, “who undergoes a series of traumatic happenings from which he
emerges pulverized or humiliated, driven on by his voracious appetite and
uncompromising pragmatism” (Webb, 2013: 37). Segundo Leonard Scigaj, o
“trapaceiro” é talvez o protagonista mais antigo de toda a literatura (Webb, 2013: 37).
Porém, o uso do mito em Ted Hughes assume-se como que uma tentativa de cura
interior. O projeto começou após a morte de Sylvia Plath (1963), numa colaboração
com Leonard Baskin, e acabou prematuramente com a morte de Assial Wevill e “Shura”
(1969), sendo que o autor faz uso do mito como meio de obter uma cura para o seu
conflito interior: “For myths to heal they must, like modern mandalas, be spontaneous
responses to personal crises” (Brandes, 2011: 72). Posto isto, o mito em Ted Hughes
está diretamente ligado com a sua busca pessoal pelo poder de cura interior do “xamã”:
‘Hughes, as a mythic poet, wrote to liberate and to heal – the soul, the body, the mind,
the community and the world. It would be the shaman and his mythic quest that served as the
primary paradigm and sacred script for the poet as healer and liberator.’ (Brandes, 2011: 68)
Esta busca de Ted Hughes provém do seu fascínio pela forte relação dos xamãs
com o mundo natural, assim como os seus “poderes” curandeiros. Mais tarde, o
xamanismo para Hughes seria análogo à religião: “(…) Hughes explained how
shamanism had supplanted his childhood Methodism, and how ‘animal life (…) became
identified with Christ” (Hart, 2013: 148). Inicialmente, o interesse do poeta pelo
xamanismo proveio da noção de xamã como “curandeiro”, ou detentor de poderes
curativos (Hart, 2013: 148). No contexto xamanístico, esta cura interior parte de uma
27
“viagem ao mundo espiritual”, normalmente associada aos sonhos dos xamãs e às
práticas xamanísticas. O “xamã” geralmente parte nesta “viagem” em busca de
“’something badly needed, a cure, an answer, some sort of divine intervention in the
community’s affairs’” (Hart, 2013: 148). Para Hughes, esta “viagem ao mundo
espiritual”, normalmente manifestada em forma de sonho, é “’the basis of the hero story
[…] the skeleton of thousands of folktales and myths” (Hart, 2013: 148). Temos em
Hughes um exemplo direto de uma ocorrência similar a estes sonhos xamanísticos: o
seu famoso sonho com a raposa em Cambridge que interrompeu o seu estudo académico
da literatura. A raposa do sonho assume o papel de “guia espiritual” de Hughes - um
conceito recorrente no xamanismo, em que o “guia espiritual” assume, normalmente, o
papel de um animal – criando um vínculo ainda maior entre o poeta e os animais. Este
sonho, e o efeito que teve em Hughes, é análogo ao chamamento pessoal e espiritual de
um xamã (Brandes, 2011: 69). Para além disso, influenciado por Ted Cornish, um
curandeiro que só conseguia chegar à cura pessoal depois de ajudar a curar alguém,
Hughes remete para a possibilidade de a arte ser a componente psicológica do sistema
imunitário: “It works on the artist as a healing. But it works on others too, as a
medicine” (Hadley, 2013: 194).
Esta crença no poder curativo da poesia de Ted Hughes é digna de nota na
última publicação do autor, Birthday Letters. Como já referido, a coletânea explora a
relação e casamento do autor com Sylvia Plath ao longo de oitenta e oito poemas,
escritos ao longo de décadas desde o suicídio de Plath: “In a letter to his son, Nicholas,
Hughes suggests that the publication of Birthday Letters had this curative effect. (…)
[H]e remarks at the relief of making public his poems about Sylvia Plath, irrespective of
the critical or familial response” (Hadley, 2013: 195). A poesia para Ted Hughes, então,
é como um caminho para a cura de um flagelo interior. Segundo Edward Hadley, em
“Ted Hughes’ Poetry of Healing”, Hughes parece seguir os conceitos de cura interior do
psicanalista suíço Carl Jung (1875-1961), cura possível através de uma “imaginação
ativa”, com a ajuda da arte (Hadley, 2013: 195):
‘The patient can make himself creatively independent through this method, if I may call
it such. He is no longer dependent on his dreams or his doctor’s knowledge: instead, by painting
28
himself he gives shape to himself. For what he paints are active fantasies [...] it is himself in a
new and hitherto alien sense, for his ego now appears as the object of that which works within
him.’ (Hadley, 2013: 195)
De facto, seguindo este conceito terapêutico de Jung, é a própria escrita dos
poemas de Birthday Letters, e não a publicação e posterior validação pública da
coletânea, que representa o processo de cura interior de Hughes: ao criar arte (poesia) –
“enactment of fantasy as real” (Hadley, 2013: 196) - o poeta confronta, ao longo de
décadas e décadas, o sofrimento e o vazio provocados pelo suicídio de Sylvia Plath:
“The healing occurs outside the poems and within Hughes” (Hadley, 2013: 196). O
mesmo pode ser dito de Howls & Whispers, pois a coletânea é tematicamente similar à
de Birthday Letters. Em “The City”, perdido numa cidade representativa de Plath e da
sua obra – “Your poems are a dark city centre. / Your novels, your stories, your
journals, are suburbs / Of this big city” (Hughes, 2005: 1179) -, o poeta confronta-se
com a presença ainda forte de Plath, sugerindo que por vezes ainda a “visita” à noite –
“(…) It’s at night / Sometimes I drive through” – acabando por vaguear “in my own
darkness” (Hughes, 2005: 1179).
Em conclusão, são várias as temáticas que Ted Hughes explora na sua obra.
Das que salientei, todas estão interligadas: a paixão que nutriu desde cedo pela natureza,
e por consequência pelos animais, parecem ter cimentado o seu interesse pelo
xamanismo e a busca de uma cura interior, busca bastante presente na sua obra: desde a
interrogação do mito em obras como Crow, até à análise autobiográfica de Birthday
Letters.
29
Ted Hughes como Tradutor
Como já referido, Ted Hughes produziu uma obra substancial no campo da
tradução, começando pela fundação da MPT com Daniel Weissbort em 1964, uma
revista puramente focada em poesia internacional. Este interesse manifestou-se até ao
fim da vida do poeta, tendo produzido bastantes traduções de poesia, como a já referida
tradução do clássico Metamorfoses de Ovídio (Tales from Ovid), publicada no ano da
morte de Hughes. O interesse de Hughes pela tradução surgiu após o autor contactar
com poetas de várias partes do mundo, como o israelita Yehuda Amichai (1924-2000) e
o húngaro János Pilinzsky (1921-1981), em vários festivais de poesia que frequentava, e
o seu desejo de ajudar a divulgar um mundo poético que de outra maneira passaria
despercebido ao público britânico. Segundo Weissbort, “[T]ranslation, in itself of
course, and more so in relation to Poetry produced by poets of Eastern Europe a little
older than himself – his attendance at Poetry festivals had brought him into contact with
these individuals – became an obssession” (Weissbort, 2011: 9). A primeira edição de
MPT focava-se numa visão literal da tradução (Weissbort, 2011: 17), e Hughes, tendo
domínio apenas da língua Inglesa, trabalhava frequentemente com versões literais dos
poemas que traduzia, versões estas enviadas por colaboradores ou até mesmo pelo
próprio poeta, como Yehuda Amichai: “He sought out and worked with individuals
willing to provide him with literal versions or, as in the case of Amichai, with their own
English versions of their writings” (Weissbort, 2011: 10).
Esta procura de versões literais surge de uma preocupação de Hughes de manter
o “estrangeirismo” dos poemas originais, uma década antes de os estudos de tradução
chegarem à noção de “estrangeirização”, face ao modelo dominante até então de
“domesticação” do texto de partida (Weissbort, 2011: 20. Este conceito de
“estrangeirização” de um texto de partida, defendido por teorizadores da tradução como
o contemporâneo Lawrence Venuti (1953-), defende versões que devem resistir a ser
assimiladas pela cultura de chegada, e devem acentuar a diferença do próprio texto de
partida face à cultura de chegada (David Damrosch, 2012: 426). Jorge Luis Borges
refere a tradução de The Thousand and One Nights de Jean Antoine Galland como
exemplo deste conceito de domesticação: “(…) [T]he barbaric color of the [One
30
thousand and one] Nights (…) and attenuate it like Galland, who domesticaded his
Arabs so they would not be irreparably out of place in Paris” (Jorge Luis Borges, 2012:
94). Assim, esta domesticação da língua e cultura de partida suaviza a receção do texto
de chegada, substituindo marcas de “estrangeirismo” presentes no texto de partida,
removendo qualquer possibilidade de alienação por parte do leitor: “The strangeness of
“Arabic,” “Farsi,” and so on, like that of “Texan,” can be made to yield to a
domesticating power that would render these languages wholly comprehensible to
English speakers and available for conveying American meanings and intentions”
(Vicente L. Rafael, 2012: 452).
No entanto, a noção de “estrangeirização” de um texto de partida tem vindo a
encontrar bastante favor crítico devido à sua preocupação de levar o público de chegada
a compreender melhor as particularidades do texto de partida e da sua cultura. Esta
preferência pela “estrangeirização” da tradução já é visível em Schleiermacher (1768-
1834) e na sua noção de tradutor “genuíno”:
‘For Schleiermacher, “the genuine translator” is a writer who wants to bring those two
completely separated persons, his author and his reader, truly together, and who would like to
bring the latter to an understanding and enjoyment of the former as correct and complete as
possible without inviting him to leave the sphere of his mother tongue.’ (Venuti, 2004: 100)
Lawrence Venuti, um dos teóricos de estudos de tradução com elevado renome
mundial, é um dos maiores defensores desta prática de “estrangeirização” da tradução,
embora esta ainda apresentasse alguma resistência durante a década de 90. No caso
específico de Venuti:
‘My translations signify the foreignness of De Angelis’s poetry by resisting the
dominant Anglo-American literary values that would domesticate the Italian texts, make them
reassuringly familiar, easy to read. (…) English-language readers will tend to be both
“unmoved” and “irked” by De Angelis’s poetry, not only because the extreme discontinuity of
the texts prevents the evocation of a coherent speaking voice, but also because he draws on
31
philosophical concepts that remain foreign, even antipathetic, to Anglo-American culture.’
(Venuti, 2004: 302/302)
Ted Hughes tenta também manter as suas traduções mais próximas do texto de
partida, mantendo a voz irrevogável do autor original: “The minute we gloss over his
[Amichai] words we have more or less what he said but we have lost him” (Weissbort,
2011: 10). O poeta admirava o método de tradução empregado por Vladimir Nabokov
(1899-1977) na sua tradução do clássico da literatura russa Eugene Onegin (Weissbort,
2011: 22). Bastante crítico das traduções até então realizadas de Onegin, “Onegin has
been mistranslated into many languages” e (relativo a estas traduções) “One of the main
troubles with would-be translators is their ignorance”, Nabokov emprega uma estratégia
de tradução focada na literalidade: o seu propósito era produzir uma versão em inglês de
Onegin finalmente fiel, uma transposição precisa do texto de partida, uma tradução que
não abdicasse desta literalidade e proximidade com o original com o intuito de manter,
por exemplo, o complexo esquema rimático da “estrofe Onegin” (Nabokov, 2012: 113) .
Para este fim, Vladimir Nabokov exprime um ideal de tradução que vai de
encontro ao próprio ideal de Ted Hughes. Em “Problems of Translation: Onegin in
English”, Nabokov afirma que “[T]he clumsiest literal translation is a thousand times
more useful than the prettiest paraphrase” (Nabokov, 2012: 113). Nabokov desdenha do
conceito de uma tradução livre e considera que uma tradução que não é literal é apenas
uma adaptação, uma imitação:
‘The person who desires to turn a literary masterpiece into another language, has only
one duty to perform, and this is to reproduce with absolute exactitude the whole text, and
nothing but the text. The term “literal translation” is tautological since anything but that is not
truly a translation but an imitation, an adaptation or a parody.’ (Nabokov, 2012: 119)
Ted Hughes exprime o ideal por detrás das versões inglesas na revista MTP do
seguinte modo:
32
‘(...) the first ideal is 'literalness', insofar as the original is what we are curious about.
The very oddity and struggling dumbness of a word-for-word version is what makes our own
imagination jump. (…).’ (Weissbort, 2011: 10)
Embora expressa com uma maior suavidade, tal visão adequa-se à de Nabokov,
que afirma: “shorn of its primary verbal existence, the original text will not be able to
soar and to sing; but it can be very nicely dissected and mounted, and scientifically
studied in all its organic details”. Curiosamente, atribui ao texto poético (texto literário)
qualidades biológicas, um ponto tocado por Hughes na sua correspondência com
Yehuda Amichai, enfatizando a importância da “auto-tradução”, assim como o “perigo”
de o tentar adequar melhor à língua alvo, pois há risco de se perder alguma da sua
vitalidade orgânica:
‘(...) [Y]our translation has an idiom, and a tone, which is exactly you (…) but which is
just slightly strange in English (…) with the oddity which is really you. So, I want to keep that
(...) you had altered them more, anglicized them more, made them more “correct”, but it seemed
to me you'd knocked out some of the natural animal life”’. (Weissbor, 2011: 33)
Na introdução da sua tradução de Eugene Onegin para Inglês, Nabokov
considera que a tradução de poesia cabe em três categorias principais:
1 – Tradução parafrástica: uma versão “livre” do original que, embora conceda que
possa ter mérito e charme criativo pela parte do tradutor, não deve ser exaltada por essas
qualidades: “(...) no scholar should succumb to stylishness and no reader be fooled by
it”;
2 – Tradução lexical: interpretando o significado básico das palavras constituintes do
corpo poético;
33
3 – Tradução Literal: transpondo o significado contextualizante do original com
exatidão, considerando que “only this is true translation”, e sendo este o método que
utilizou ao longo da tradução da obra seminal de Pushkin.
(Nabokov, 1991: 9)
Nabokov concede ser impossível reter a rima de um objeto poético enquanto se
reproduz um texto com exatidão literal:
‘In transposing Eugene Onegin from Pushkin's russian into my english I have
sacrificed to completeness of meaning every formal element save the iambic rhythm
(…) I sacrificed everything (elegance, euphony, clarity, good taste, modern usage, and
even grammar) that the dainty mimic prizes higher than truth.’ (Nabokov, 1991: 11)
Esta estratégia de tradução lembra a de Ted Hughes: “Hughes believed, as we
have seen, that it was possible to render a poem in literal terms, although this might
entail foregoing any attempt to reproduce the form” (Weissbort, 2011: 22)
Este conceito de uma tradução literal que procure reproduzir com exatidão
minuciosa o texto de partida, sem devaneios criativos ou parafrásticos resultantes do
engenho pessoal do tradutor, parece supor um apagamento do tradutor, enquanto agente
da produção do texto, a antítese de uma tradução “domesticada”.
O método de tradução de Hughes está diretamente ligado com o período do pós-
guerra no qual a sua atividade como tradutor surgiu. A tradução de poesia pode
necessitar de uma recriação artística pela parte do tradutor (Weissbor, 2011: 14) devido
à natureza delicada do texto poético, e como Robert Frost afirma, “Poetry is what gets
lost in translation” (Weissbort, 2011, 113). Porém, Ted Hughes sentia que parte da
poesia a ser produzida neste período pós-guerra e Guerra Fria poderia, de facto, ser
reproduzida de maneira literal, pois tratava-se de uma poesia escrita “in a language that
effectively transcended language” (Weissbort, 2011: 14). O autor também procurava ao
máximo não intervir no texto literal do qual partia para as suas traduções “All I did was
34
correct the more intrusive oddities and errors of grammar and usage, and in some places
shift about the phrasing and line endings…” (Weissbort, 2011: 19).
Saliento os poetas Yehuda Amichai e János Pilinsky, já referidos anteriormente,
como dois dos primeiros poetas que Ted Hughes traduziu. O primeiro, Amichai,
combateu na Segunda Guerra Mundial, assim como na Guerra da independência de
Israel: “(…) Amichai belongs among the postwar poets of Europe who responded to
devastations that seemed to have rendered traditional poetic devices less relevant”
(Weissbort, 2011: 27). A poesia de Amichai era detentora desta linguagem “universal”,
possível de ser reproduzida organicamente em inglês. Nove traduções de poemas de
Amichai foram publicados na primeira edição da MPT (Weissbort, 2011: 27). A partir de
versões literais de Amichai, Ted Hughes trabalhou com Assia Guttman para traduzir o
poeta israelita (Weissbort, 2011: 34). Como exemplo desta parceria, seguem-se duas
versões dos primeiros dois versos do poema “Out of Three or Four in the Room”. A
primeira versão corresponde à tradução literal de Amichai; a segunda versão representa
a versão de Hughes e Guttman:
Amichai
‘Of three or four in the room
One is always standing at the window,
[He] must see injustice among the thorns
And the fires [burning] on the hills
And how men who departed whole
Are brought back to their home in the evening like small change.’
Hughes & Guttman
‘Out of three or four in a room
One is always standing at the window
Forced to see the injustice amongst the thorns,
The fires on the hill.
35
And people who left whole
Are brought home in the evening, like small change.’
(Weissbort, 2011: 36)
É possível verificar o quão fiel é a tradução de Ted Hughes e Assia Guttman face
à versão “literal” de Amichai. Para preservar o “estrangeirismo” do texto original, a
tradução de Hughes mantém-se o mais próximo possível da versão literal de Amichai:
“Since for Hughes, literal versions often did the job best, he typically made minimal
modifications or “Englishing”, which preserved their effect” (Weissbort, 2011: 38).
Ted Hughes conheceu János Pilinzsky em 1969, durante a segunda edição de
Poetry International em Londres. Inicialmente, os poemas de Pilinzsky chamaram a
atenção de Hughes pelo seu “air of simple, helpless accuracy” (Weissbort, 2011: 44), e
não tardaria até a MPT editar uma versão dedicada à tradução de poesia oriunda da
Hungria. Ted Hughes colaborou com János Csokits, que também ajudou a editar a
revista, para produzir as traduções desta edição da MPT (Weissbort, 2011: 41).
Referindo-se à importância de Csokits no processo de tradução dos poemas de János
Pilinzsky, Hughes diz-nos: “[A]s you will see, they are pretty literal. In fact my co-
translator, János Csokits, (…) insisted on the closest verbal accuracy. This was very
much to my taste” (Weissbort, 2011: 41.
Seguem-se duas versões do primeiro verso do poema “The French Prisoner” de
Pilinzsky. Como no exemplo de Amichai, a primeira versão representa uma tradução
literal do poema, desta vez por János Csokits, e inclui também duas anotações do
mesmo para Hughes; a segunda versão representa a “versão” de Ted Hughes:
Csokits
‘If only I could Forget him, that Frenchman, who,
towards dawn, I saw creeping in front
36
of our quarters in the thicket of the backyard,
so that he almost grew into the ground.
Peering around he glanced back just then,
and having at last found a safe hide-out:
now (1) his grab (2) can be (1) his completely!
Whatever happens, he won’t move farther on.’
Notes:
1 and 2. In the first stanza Pilinzsky suddenly changes from past to present tense – mainly to
make you feel as the fugitive did – does – and I think in Hungarian the thing works marvelously
well. I added the word “now” for clarity. [The Hungarian word] means: spoil, plunder etc… I
chose “grab” in view of the turnip!
Hughes
‘If only I could forget that Frenchman.
I saw him a little before dawn, creeping past our hut
into the dense growth of the back garden
so that he almost merged into the ground.
As I watched he looked back, he peered all round –
at last he had found a safe hideout.
Now his plunder can all be his!
Whatever happens, he’ll go no further.’
(Weissbort, 2011: 49/50)
É possível ver o quão fiel à versão literal de Csokits a versão de Hughes é,
mantendo o seu ideal de apenas corrigir erros sintáticos, gramaticais e “gross
foreignism”. Aliás, Ted Hughes tinha alta consideração pelas versões literais de Csokits:
“Very many lines of his [Csokits] rough draft have been impossible to improve, as far
as I could judge (…)” (Weissbort, 2011: 43).
37
Como já foi referido nesta dissertação, Ted Hughes ainda colaborou com o poeta
português Hélder Macedo e sua esposa, Suzette, para uma edição da MPT dedicada a
poesia portuguesa (Weissbort, 2011: 53). Mais uma vez, o processo de tradução partia
de versões literais dos originais, desta vez enviadas pelo casal (Weissbort, 2011:53).
Ted Hughes teve uma influência palpável no mundo da tradução, e a MPT (ainda
em circulação) é uma prova do impacto do autor neste meio. De facto, uma das
intenções de Hughes por detrás da criação da revista prende-se com o desejo de espalhar
a prática de traduções literais (Weissbort, 2011: 112). Embora as traduções de Hughes
partissem de traduções literais enviadas pelos seus colaboradores e não do texto original
em si, a preocupação do autor em manter o máximo de fidelidade através de uma prática
de versão literal sugere a noção de “estrangeirização” da tradução, a noção de uma
tradução que mantém o “estrangeirismo” do texto de partida, sem recorrer a práticas de
domesticação do mesmo:
‘In general, Hughes’s aim when translating work by other poets was to stay as close as
he could to the wording and syntax of the source, a “literalistic” crib being what he required, as
a preliminary, from his collaborators.’ (Weissbort, 2011: 112)
Por fim, saliento uma das últimas publicações de Hughes: publicado no
penúltimo ano da vida do autor, Tales From Ovid (1997) é precisamente uma tradução
de Metamorfoses de Ovídio. O livro surgiu inicialmente do contributo de Ted Hughes
com traduções para uma nova versão de Metamorfoses, editada por Michael Hofmann
and James Lasdun (Weissbort, 2011: 58). Hoffman ficou impressionado com as versões
de Hughes e incitou o autor a escrever “an Ovid book all of his own“ (Bate, 2015). O
livro é bastante aclamado pela crítica, com a revista Sunday Times a declarar que
“Hughes has done what great poet-translators have always done: he ‘commandeers and
ransacks his original’” (Bate, 2015).
38
Traduções
O Gavião na Chuva
Afogo-me no bater da terra arada, arranco
À goela da terra calcanhar atrás de calcanhar,
De barro que agarra cada passo meu até ao tornozelo
Com o hábito do túmulo tenaz, mas o gavião
Paira o seu olho imóvel sem esforço lá no alto.
As suas asas carregam toda a criação num silêncio leve
Firmes como uma alucinação no ar corrente
Enquanto o vento estrondoso mata estas sebes teimosas,
Pressiona-me os olhos, derruba-me o fôlego, ataca-me o coração
E a chuva retalha-me a cabeça até ao osso, o gavião fixa
A ponta de diamante de vontade que norteia
A vontade de quem no mar se vai afogando: e eu,
Atordoado e a contar os últimos momentos, pedaço cruamente mordido
Pela boca da terra, estiro-me para o eixo
39
Mestre de violência onde pende imóvel o gavião
Que porventura talvez encontre a sua hora
Na contramão, enfrente o ar virado do avesso,
Tombe do seu olho, os campos ponderosos despenhando-se sobre ele,
Agarrado pelo horizonte, o angélico olho redondo
Esmagado, o sangue do seu coração mesclando-se com a lama da terra.
40
O Jaguar
Os macacos bocejam e adoram as suas pulgas ao sol.
Os papagaios gritam como que em chamas, ou pavoneiam
Como galdérias reles para atrair o transeunte com a noz.
Fadiga com indolência, tigre e leão
Deitam-se imóveis como o sol. A espiral da jibóia
É um fóssil. Jaula após jaula parece vazia, ou
Tresanda a dorminhões por entre a brisa da palha.
Poderia estar pintado na parede de um infantário.
Mas quem, como todos, corre por elas chega enfim
A uma jaula onde a multidão se reúne e observa, encantada,
Como uma criança num sonho, um jaguar apressando-se enraivecido
Pela escuridão da prisão, perseguindo o perfurar dos seus olhos
Num rastilho curto e feroz. Não em tédio –
O olho satisfeito por estar cego no fogo,
O ouvido ensurdecido pelo estrondo de sangue no cérebro –
Gira ao chegar às grades, mas não há jaula para ele
41
Mais do que há para o visionário a sua cela:
A sua passada são selvas de liberdade:
O mundo corre sob o longo impulso do seu calcanhar.
Pelo chão da jaula rolam os horizontes.
42
A Raposa Pensamento
Imagino a floresta deste momento de meia noite:
Algo mais está vivo
Para além da solidão do relógio
E desta página em branco onde se movem os meus dedos.
Pela janela não vejo estrela alguma:
Algo mais perto
Embora no interior da escuridão profunda
A entrar na solidão:
Frio, delicadamente como a neve escura,
O nariz de uma raposa toca no ramo, na folha;
Dois olhos servem um movimento, que agora
E em seguida, e depois, e após
Marca nítidas pegadas na neve
Entre árvores e, cautelosamente uma sombra
Débil arrasta-se por cova e tronco cortado
De um corpo com a audácia de vir
43
Por clareiras, um olho,
Uma verdura cada vez maior e mais profunda,
Brilhantemente, concentradamente,
Vindo à sua maneira, ao seu cuidado
Até que, com um agudo e repentino fedor quente de raposa
Entra no buraco escuro da cabeça.
A janela está ainda sem estrelas; ao tique-taque do relógio,
A página está escrita.
44
Poeta Famoso
Encara o monstro: observa
O quão difícil é definir com exatidão o que
Vem a ser a monstruosidade naquele
Aspeto bem comum. Nem gordo nem magro,
Cabelo entre claro e escuro,
E o ar geral
De um aprendiz – digamos, um pintor de paredes
Aprendiz no meio de uma assembleia de Arquitetos
Famosos: a atitude é de rato,
Porém, ele é monstro.
Escrutina primeiro aqueles olhos
À procura da faísca, do esplendor: nada.
Nada a não ser a exaustão pétrea de um
Artista de variedades quase acabado. Cai na cadeira
Como um homem ferido, metade do seu tamanho.
Será o demónio interior, bêbado de borra,
Ainda a emborcar de tecido e folículo
45
O fogo vital, o elétrico espírito
Que dá lustro ao macho normal e caloroso?
Ou são as mulheres?
A verdade – venha ela
De manto preto, tambores e passo fúnebre
Como o caixão de um grande homem – não, ele não está morto
Mas certamente meio enterrado nesta verdade:
Outrora, a humilhação
De juventude e obscuridade,
A autoclave da ambição intoxicante encurralada,
A levedura do coração fermentado interrompida –
Rebentam com tal pirotecnia que deixa perplexo o mundo maçudo
E gritam ainda, “Repete!”
Mas todos os seus esforços para recriar
O velho estrondo heróico do dinheiro, o louvor
Do dedo apontado dos pais, e o maravilhar de criança,
Mesmo do queimar das suas janelas cobertas,
Deixaram-no devastado: devastado,
46
E monstruoso. Então,
Como um estegossauro, um antigo e trôpego
Arsenal de chifre e coiraça gigantescos,
De uma era em que meio mundo ardia ainda, deixado
No jardim zoológico, a pestanejar atrás das grades.
47
Secretária
Se eu lhe tocasse, ela gritaria e a chorar
Rastejaria para cuidar a ferida terrível: todo
O dia como um estorninho sob barrigas de touros
Apressa-se por entre homens, agachada, a espreitar,
Fugindo de ali num rodopio ao mínimo movimento de um chifre.
Ao anoitecer, esgueira-se pelo corredor da lascívia
Como um rato mecânico. Por fim em casa, segura,
Remenda meias com buracos, camisas rasgadas,
Para o pai e irmão, e uma ceia delicada cozinha:
Vai para a cama cedo, desliga com a luz
Os seus trinta anos, e deita-se de ancas cerradas,
A esconder os seus olhos belos até ao amanhecer.
48
Vampiro
Oh, anfitriões, quase gratos que ele apareça sem convite; vede
Como os olhos dele se avivam com o whisky, como a sua astúcia
Derruba os convidados como um relâmpago –
Perguntam-se de onde lhe vem a energia…
Mas no mesmo instante, aqui, na profundidade do subsolo,
Esta carcaça bafienta agita a mortalha e incha.
‘Para, para, ó por amor de deus, para!’ gritas
Com lágrimas a escorrer, mas ele continua
Implacável até achares que as costelas têm de estalar…
Enquanto os olhos desta carcaça franzem, suturados
Na cãibra de uma provação, e um esguicho de sangue
Rasteja como escorpiões pelo seu cabelo adentro.
Imploras, mole, suspensa da voz louca dele, até que
Com uma súbita tosse de cuspe sangrento, ele engasga-se: sai
A tremer, pouco depois. Desabas de novo numa cadeira
Fria como uma folha, o teu coração quase imóvel…
Bem debaixo da pedra mais profunda da cidade
Este saco sorridente está a rebentar com o teu sangue.
49
Gavião Repousado
Sento-me no topo do bosque de olhos fechados.
Inação, nenhum sonho falsificado
Entre a minha cabeça e patas em gancho:
Ou a dormir, ensaio mortes perfeitas e devoro.
A conveniência das árvores altas!
A volubilidade do ar e o raio de sol
São vantajosos para mim;
E o rosto da terra para cima a jeito da minha inspeção.
As minhas patas engancham a casca áspera.
Foi preciso toda a Criação
Para produzir o meu pé, cada pena minha:
Seguro agora a Criação na minha garra
Ou voo alto, e revolvo-a lentamente -
Mato onde quero, pois tudo é meu.
Não há sofística no meu corpo:
A minha conduta é arrancar cabeças -
50
A provisão da morte.
Pois o trajeto do meu voo é a direito
Pelos ossos dos vivos.
Nenhum argumento impõe o meu direito:
O sol está atrás de mim.
Nada mudou desde que comecei.
O meu olho não permitiu mudança alguma.
Vou manter as coisas assim.
51
Imagem de um Porco
O porco estava deitado, morto, numa carreta.
Pesava tanto, diziam eles, quanto três homens.
Olhos fechados, pestanas rosa-branco.
Pernis espetados para fora.
Tal peso e espesso volume rosa
Parecia não só morto como rijo de morte.
Estava menos que sem vida, mais distante.
Era como que um saco de trigo.
Bati-lhe sem sentir remorsos.
Sentimo-nos culpados ao insultar os mortos,
A andar por cima de campas, mas este porco
Não parecia ser capaz de acusar.
Estava demasiado morto. Não mais do que
Um carrego de banha e fêvera.
A réstia de dignidade havia desaparecido inteiramente
Não era uma imagem divertida.
52
Demasiado morto para lastimar agora.
Lembrar a sua vida, ruído, fortaleza
De prazeres mundanos como havia sido,
Parecia um esforço falso, e irrelevante.
Demasiado real e mortal. O seu peso
Oprimia-me – como haveria de ser arrastado?
E a trabalheira de o cortar!
O corte na garganta foi chocante, mas não patético.
Corri certa vez numa feira pelo barulho
Para apanhar um leitão untado
Mais rápido e ágil que um gato,
Grunhia que nem metal a rasgar.
Os porcos devem ter sangue quente, parecem fornos.
A mordedura é pior do que a de um cavalo –
Talham com precisão uma meia-lua.
Comem cinzas, e gatos mortos.
Distinções e admirações que para este
Há muito haviam acabado.
54
O Coronel Reformado
Que vivia ao cimo da nossa rua
Era um estereótipo da Guerra dos Bóeres, envelhecido.
Passava, de cara despolpada em escarlate com raiva contida,
Junto ao nosso portão quando vinha apanhar ar.
Ladrava ao seu cão com estalidos de chicote e
Retiradas da Índia: cinco ou seis guerras
Endureceram-lhe no pescoço corado;
Sobrolho de touro pronto a investir.
Esposa morta, filhas longe, a viver
Para honrar a própria caricatura.
Com o coração trespassado de whisky, veste
O desamparo como coragem antiga, sem se abater
Enquanto o lixo da posteridade se aguentou, mantém
Os seus hábitos como uma última investida, como
Se tivesse a própria Vitória enrolada
Numa bandeira da União naquela fortaleza.
E se a sua laia desaparecesse?
Os estorninhos insurgentes ressoam sobre
55
A praça de Trafalgar. O leão britânico devorador de homens
Abatido por uma era borbulhenta.
Aqui está a sua cabeça empalhada, ainda que só em rimas,
Junto à cabeça do último lobo
Inglês (tempos famintos e sombrios!)
E o último esturjão do Tamisa.
56
O Uivar de Lobos
É sem mundo.
Que arrastam eles, acima e abaixo, nas suas longas trelas de som
Que se dissolvem no silêncio em pleno ar?
Então, o chorar de um bebé nesta floresta de silêncios esfomeados,
Traz os lobos a correr.
O som de um violino a afinar, nesta floresta delicada como ouvido de coruja
Traz os lobos a correr – traz as armadilhas de aço a chocar e a salivar.
O aço forrado para impedir que estale no frio,
Os olhos que nunca aprendem o porquê
De terem de viver assim,
De terem de viver
Inocência transfeita em minerais.
O vento varre tudo, e o lobo corcovado estremece.
Uiva, mas não se entende se em agonia ou alegria.
A terra está sob a sua língua,
Um peso morto de escuridão, a tentar ver pelos seus olhos.
O lobo vive para a terra.
Mas o lobo é pequeno, compreende pouco.
Vai de um lado para o outro, a arrastar as próprias ancas e a ganir horrivelmente.
58
Rei da Carniça
O seu palácio é de caveiras.
A coroa são os últimos estilhaços.
Do vaso da vida.
O trono é o andaime de ossos, a prateleira e padiola final
Da coisa enforcada.
O seu manto é o preto do último sangue.
O seu reino é vazio –
O mundo vazio, de onde o último grito
Ruflou desesperadamente, enormemente
Pelo golfo cego, surdo e mudo adentro
A regressar, encolhido, calado
Para reinar sobre silêncio.
59
Uma Partida Infantil
Os corpos do homem e da mulher jaziam sem almas,
De boca aberta, tolamente pasmados, inertes
Nas flores do Éden.
Deus ponderou.
O problema era tão grande que o arrastou para o sono.
Corvo riu-se.
Trincou o Verme, o único filho de Deus,
Em duas metades que se torciam.
Enfiou no homem a metade da cauda
Com a ponta ferida para fora.
Enfiou na mulher, de cabeça, a outra metade
Que se esgueirou para dentro e para cima
Até espreitar pelos olhos dela
Chamando a sua outra metade para se lhe juntar rápido, rápido
Porque oh! doía.
O homem acordou a ser arrastado pela relva.
A mulher acordou para o ver a aproximar-se.
Nenhum sabia o que havia acontecido.
Deus continuou a dormir.
Corvo continuou a rir-se.
60
Corvo mais Preto que Nunca
Quando Deus, enojado com o homem,
Se virou para o céu,
E o homem, enojado com Deus,
Se virou para Eva,
Tudo parecia estar a desmoronar-se.
Mas Corvo, Corvo
Corvo pregou-os um ao outro
Cravando juntos o Céu e a terra –
Então o homem chorou, mas com a voz de Deus.
E Deus sangrou, mas com o sangue do homem.
Depois Céu e terra rangeram na articulação
Que gangrenou e ficou malcheirosa –
Um horror sem redenção.
A agonia não diminuiu.
Homem não podia ser homem nem Deus Deus.
A agonia
Cresceu.
Corvo
Sorriu
A gritar: ‘Esta é a minha Criação,’
62
O Dia em que Ele Morreu
Era o dia mais sedoso do jovem ano,
O primeiro sinal da verdadeira primavera,
A primeira certeza do sol.
Isso foi ontem. Na noite passada, geada.
E tão forte como em todo o inverno.
Marte e Saturno e a Lua pendentes como um molho
No céu duro e atravancado.
Hoje é dia de São Valentim.
A terra estaladiça como uma torrada. As campainhas-de-inverno esmorecidas.
Tordos a pipilar. Pombos timidamente
A esfregar as vozes, num frio pungente.
Corvos a ranger, e a debandarem
Em corvejas desastradas.
Os campos luminosos parecem atordoados.
A sua expressão mudou.
Foram a um algures medonho
E voltaram sem ele.
63
O gado confiante, com geada às costas,
À espera de feno, à espera de aconchego,
Está num vazio novo.
A terra, a partir de agora,
Terá de se arranjar sem ele.
Mas hesita, nesta concretização lenta de luz,
Como que uma criança, muito nua, num sol fraco,
Com as raízes cortadas
E um grande vazio na memória.
64
Aquele Lugar Terno
As tuas têmporas, onde o cabelo se apinhava,
Eram o lugar terno. Ao ir ver-te, certa vez,
Deixei cair uma pasta pelos elétrodos
De bateria doze-volts – explodiu
Como uma granada. Alguém te ligou aos fios.
Alguém empurrou a alavanca. Dispararam
O relâmpago para dentro do teu crânio.
Rodeavam-te outra vez,
Com casacos desbotados, caras pálidas,
Para ver como estavas, nas tuas correias.
Se ainda tinhas os dentes inteiros.
A mão na alavanca calibrada
Sem nada sentir
Exceto o sentir nada forçado a sentir
Um arrepio de sensação. Terror
Era a nuvem de ti
À espera destes coriscos. Vi
Um tronco de carvalho partido num estouro.
E tu a perna do teu Papá. Com quantas convulsões
Aceitaste que este deus te amarrasse
65
Pelas raízes dos cabelos? Os relatórios
Dissiparam-se em nuvens. O que subiu
Vaporizado? Onde para-raios choravam bronze
E o nervo sacudiu a pele
Como uma criança a arder
A fugir do clarão da bomba. Largaram-te,
Um pedaço rijo e curvo de cabo
Pela grelha da Cidade de Boston. As luzes
Na Casa do Senado enfraqueceram
Enquanto a tua voz mergulhava
Pela cave-refúgio adentro.
Emergiu, anos depois,
Sobre-exposta, como um raio X –
Mapa-cérebro ainda remendado a preto
Com as cicatrizes da terra queimada
Do teu retiro. E as tuas palavras,
Caras reversas da luz,
A aguentarem-se nas suas entranhas.
66
O Fato de Flanela Azul
Havia deixado isso tudo crescer. Havia suposto
Que estava tudo bem. A tua vida
Era um transatlântico em que eu viajava.
Vinhas equipada com uma educação cara.
Financeiros e comitês e consultores
Esbatiam-se no brilho do teu acabamento.
Tremias com a nova vida desses motores.
Aquela primeira manhã
Antes da tua primeira aula na Faculdade, sentaste-te ali
A bebericar o café. Agora sei, como não sabia,
Quais olhos te esperavam no fundo da aula
Para examinar o teu primeiro desempenho profissional
Contra as suas expectativas. Que avaliadores
Esperavam para te ver justificar o custo
E redimir as suas apostas. Que fornalha
De olhos esperava para testar o teu metal. Assisti
À rigidez estranha de boneco, à tristeza,
Do teu fato de flanela azul, o seu espartilho,
Meia-aproximação feia da tua ideia
67
Das decências que esperavas serem-te fáceis,
E o teu horror nelas. E o sub-tom
Tisnado e quase verde da tua cara
Reduzido ao pavio, a tua cicatriz grosseira, a tua
Cabeça entrançada, pateticamente minúscula.
Esperaste,
Sabendo-te incapaz nas pinças
Da vida que te julgava, e eu vi
O nervo esfolado, a ferida incurável na cara
Que era tudo que tinhas de coragem.
Vi aquilo que te agarrava, enquanto bebericavas,
Eram os terrores que já te haviam outrora matado.
Agora, vejo eu, que vi, sentada, a rapariga
Solitária que iria morrer.
Aquele fato azul,
Um louco uniforme de execução,
Sobreviveu à tua sentença. Mas depois sentei-me, imóvel,
Incapaz de compreender o que te imobilizou
Enquanto eu te olhava, como estou permanentemente
Imóvel agora, permanentemente vergado
Por um instante sobre o teu caixão aberto.
68
O Minotauro
O tampo da mesa de mogno que rachaste
Havia sido a tábua do tampo largo
Do aparador que a minha mãe herdara
Traçado com as cicatrizes de toda a minha vida.
Foi brutalmente arrematado.
O banco alto que baloiçaste nesse dia
Enlouquecida por eu estar
Atrasado vinte minutos para cuidar dos bebés.
“Maravilhoso!” Gritei, “Continua,
Põe-no em graveto.
É esse tipo de coisas que deixas fora dos teus poemas!’
E mais tarde, ponderado e mais calmo,
‘Põe essa espádua debaixo das tuas estrofes
E levantamos voo.’ Bem fundo na caverna do teu ouvido
O duende estalou os dedos.
O que lhe dei eu, então?
A ponta sangrenta da meada
Que desfiou o teu casamento,
Deixou os teus filhos a ecoar
Como tuneis num labirinto,
Deixou a tua mãe um beco sem saída,
Trouxe-te até ao túmulo berrante
E ereto do teu pai ressuscitado –
70
O Minotauro II
Vi o enredo desenrolar-se comigo lá dentro,
Onde nos tocávamos como aleijados. A tua primeira cena.
O mistério surreal da nossa discussão no piquenique
Abriu calmamente o teu desempenho.
E havias aberto a veia.
E reconhecido o ouro. Um choro de luto.
Havias pegado na meada de sangue
Que se contorcia e te levava, ignorando-me,
Não para fora do labirinto
Mas para o centro deste,
Onde o Minotauro, que esperava para te matar,
Te matou.
71
Uivos e Sussuros
O que foi derramado nos teus ouvidos
Enquanto discutias com a morte?
A tua mãe escreveu: ‘Vai-lhe à carteira.’
Reiterou-o, como Iago,
‘Vai-lhe à carteira.’ A alegria dela
Por estares finalmente a livrar-te
Desta bactéria, qual febre maligna
Que abortara a tua carreira de alta estirpe –
- e havia anulado
O casamento para o que ela te havia preparado.
Após o evento, encontrei as cartas dela.
Senti a gratificação da fúria dela.
‘Vai-lhe à carteira,’ e ‘sê forte
Para te libertares: segue com o divórcio.’
E do teu analista: ‘Mantém-no longe da tua cama.
Acima de tudo, mantém-no longe da tua cama.’
Deixaste-me aquelas cartas, aquelas bandeiras de guerra
Que havias acenado na minha cara.
Estas foram o teu serviço de informações
Nos esforços para nos ouvirmos um ao outro.
A nossa única Terapia de Casal.
Nuvens-bigorna de experiência estática
A descarregar no teu ouvido, para o acordar e encravar.
Então, nessa última semana, a intermediária
A fazer o seu melhor,
72
Com o gravador debaixo da língua, a confidente
De todos os lados, essa espia dupla
A jornalista falhada, a informadora profissional,
Que havia provado que apenas ela
Sabia os factos e as últimas notícias – trazendo-te,
Em largos pratos de olhos escuros,
Falsidades do que disseram que eu havia dito,
Do que disseram que eu havia feito. Agachava-se ao teu ouvido.
Ela era o percevejo na minha cama.
Bonito e contente Iago de olhar inocente.
E as amigas dela, transformadores principais
Dos teus circuitos sobrecarregados e fumegantes,
Que ligaram elas aos teus ouvidos
Que te matara em plena luz do dia na segunda-feira?
Estas eram as máscaras que mediam a voltagem,
Que ligaram tão ternamente os cabos,
Com anestésico placebo,
Ao teu ouvido, e que te matou
Mesmo quando a lançavas em gritos para mim.
73
A Cidade
Os teus poemas são o centro sombrio de uma cidade.
Os teus romances, histórias e diários são subúrbios
Desta cidade grande.
Os hotéis estão iluminados como escritórios a noite toda
Com estudantes, padres, peregrinos. É à noite que
Às vezes conduzo por lá. Encontro-me
Apenas a conduzir por lá, lentamente, simplesmente
Vagueando na minha própria escuridão, ponderando
O que fizeste. Vejo-te praticamente sempre
De relance - num cruzamento qualquer,
A olhar para cima, perdida, com sessenta anos.
A multidão empilha-se à tua volta. Tu ficas estática.
A tua cara, sob a luz verde ou laranja,
Uma índia do deserto, selvagem, desorientada.
Tu queres perguntar algo, mas não consegues.
Olhas para todas as caras
A tentar reconhecer alguém.
Ignoram-te. Então, a luz fica vermelha
E passam todos rapidamente por ti.
Então vês-me no meu carro, a olhar para ti.
Vejo-te a pensar: devia conhecê-lo?
Vejo-te a franzir a testa. Vejo-te a tentar
Lembrar – ou a não lembrar, subitamente.
74
Reflexão Crítica
A presente reflexão crítica visa não só complementar as traduções propostas
nesta dissertação, como também elucidar o leitor sobre as estratégias tomadas durante
todo o processo translatório dos vinte poemas de Ted Hughes escolhidos para esta
dissertação no âmbito do Mestrado em Estudos Anglo-Americanos – Vertente de
Tradução Literária. De um modo geral a maioria dos problemas com que deparei à
medida que ia traduzindo prendem-se com a dificuldade de transposição de construções
sintáticas, dificuldades de escolha lexical, dificuldades de economia verbal, mais
sentidas na poesia do que na prosa. Relativamente à prosódia da obra poética do autor
aqui escolhida como foco de tradução, esta caracteriza-se maioritariamente pelo uso do
verso livre, pelo que não necessitou de uma estratégia de tradução preocupada com
regularidade métrica ou esquema rimático.
Primeiramente, foi necessária uma ponderação sobre qual a melhor estratégia a
adotar perante a tradução. Segundo Vermeer, esta preocupação é geralmente mitigada
pelas especificidades da “encomenda” da própria tradução, a ser negociada entre o
tradutor e quem “encomenda” a tradução, pois oferece ao tradutor um skopos específico
a seguir ao longo do processo. (Venuti, 2012: 191). Como explica Vermeer no seu
ensaio “Skopos and Commission in Translational Action”, o ato translatório é,
inevitavelmente, uma ação, e qualquer ação é realizada com um objetivo, com uma
finalidade, sendo que o skopos é precisamente um termo técnico para o objetivo,
finalidade ou propósito de uma tradução (Venuti, 2012: 191):
The aim of any translational action, and the mode in which it is to be realized are
negotiated with the client who commissions the action. A precise specification of aim
and mode is essential for the translator. (Venuti, 2012: 191)
Ademais, o skopos não se restringe a um programa geral de tradução que um
dado tradutor queira seguir, pelo que a estratégia deve ser decidida em cada caso
específico, dependendo, portanto, das especificidades da “encomenda”, mesmo que esta
75
seja imposta pelo próprio tradutor: “The skopos theory merely states that the translator
should be aware that some goal exists” (Venuti, 2012: 198).
Como tradutor, é minha preocupação respeitar ao máximo o texto de partida,
pois acredito que o meu dever seja procurar transpor o texto de partida de um modo que
não envolva alterações significativas dos sentidos que este possa desencadear. Por outro
lado, também penso que as caraterísticas e expetativas da cultura e do leitor de chegada
não podem ser esquecidos para uma melhor compreensão e leitura da obra traduzida,
especialmente quando esta é ainda um pouco desconhecida no contexto de receção,
sendo que em raras exceções optei por “domesticar” o que poderiam vir a ser
referências culturais obscuras. Em “Translation, American English and the National
insecurities of Empire”, Vicente L. Rafael explica algumas das implicações deste
conceito, popularizado nos estudos de tradução por Lawrence Venuti, no contexto
norte-americano:
Through translation, foreign languages furnish the tools with which to
understand and domesticate what is alien and un-familiar. In this way, they are charged
with the job of keeping America at home in the world. In the official and arguably
popular imaginary, the foreign can be recognized only when it is subordinate to the
domestic. (Venuti, 2012: 454)
Nos termos de outro teorizador da tradução – Gideon Toury em “The Nature and
Role of Norms in Translation” – é inevitável que o texto sofra “desvios” ou inflexões
quando o tradutor se submete às normas da cultura de chegada, sejam normas culturais
ou até mesmo linguísticas:
‘(…) norm systems of the target culture are triggered and set into motion. Shifts from
the source text would be an almost inevitable price.’ (Venuti, 2012, 168)
De facto, ao longo da tradução surgiram problemáticas relativamente a certas
referências culturais que, caso traduzidas com pouca alteração do texto de partida,
poderiam passar não só despercebidas ao leitor, como também causar-lhe confusão. No
segundo verso de “The Retired Colonel” temos o segmento “Was a Mafeking
76
stereotype”. “Mafeking” é referente tanto à cidade de Mafeking na África do Sul (agora
“Mahikeng”), como também ao cerco da mesma durante a Segunda Guerra dos Bóeres
(1899-1902). A batalha, travada pelo exército britânico contra colonos de origem
francesa e holandesa, os bóeres, durou de 14 de outubro de 1899 até 16 de maio de
1900. Posto isto, penso que transpor apenas “Mafeking” para o texto de chegada não era
uma opção produtiva pela especificidade histórica e cultural da referência. A solução
que optei foi “Guerra dos Bóeres”, pois julgo que torna a referência mais adequada à
cultura de chegada. No mesmo poema, “Trafalgar” também não é apenas uma referência
à mesma praça na cidade de Londres. Tendo em conta a temática do poema, bem como
a altura em que foi publicado – 1960 na coletânea Lupercal –, o passo “The rabble
starlings roar upon / Trafalgar” sugere uma referência aos protestos e insurreição
política das novas gerações que, com o advento da contracultura, com frequência se
manifestaram nessa praça. Por essa razão, optei por traduzir o passo da seguinte
maneira: “E os estorninhos insurgentes ressoam sobre / A praça de Trafalgar”. Para
além de especificar a zona (praça de Trafalgar), decidi traduzir “rabble” por
“insurgentes” para tornar a referência mais acessível ao contexto de chegada, mas não
necessariamente mais óbvia, pois julgo que retém a necessidade, igualmente presente no
original, de algum conhecimento histórico-cultural da parte do leitor.
Outra dificuldade encontrada ao longo das traduções prende-se com o uso de
palavras sem equivalentes diretos na língua de chegada, pelo que foi necessário traduzir
de modo a manter o significado presente no texto de partida. No poema “The Hawk in
the Rain”, foi necessário encontrar uma alternativa na língua de chegada para a palavra
“dogged”. De acordo com o Collins English Dictionary, este adjetivo significa
“obstinately determined; wilful or tenacious”. Saliento a raiz da palavra, “dog”, pois
sugere esta noção de determinação persistente através da imagem de um animal. Optei
por traduzir o adjetivo como “tenaz”, sendo que na língua de partida “tenacious” é um
dos possíveis sinónimos de “dogged”. Julgo que resulta melhor do que “determinado”,
não só por ser mais específico e forte, mas também por questões de ritmo, como a
aliteração que cria: “o hábito do túmulo tenaz”. Ainda no mesmo poema, temos a
palavra “polestars”. A palavra “polestar” tem como possíveis definições “guiding
77
principle, rule, standard” e “Polaris, the North Star”. Sendo que a Estrela Polar é
regularmente usada na navegação marítima como ponto de referência, pois mantém-se
imóvel no céu durante toda a noite, interpretei a palavra “polestars” não só como forma
verbal de “polestar”, mas também como possível referência à Estrela Polar, pela
imagem suscitada no verso seguinte: “The sea drowner’s endurance”. Face a esta
interpretação, optei por traduzir o passo em questão como “que norteia / A vontade de
quem no mar se vai afogando”.
Também de relevância nas dificuldades lexicais, ainda em “The Hawk in the
Rain”, temos o seguinte passo: “Thumbs my eyes, throws my breath, tackles my heart,”.
Os verbos neste verso são todos da linguagem de luta livre, e são referentes à violência
da tempestade perante o sujeito poético. O verbo “to thumb” neste verso sugere a
violência de pressionar dolorosamente os olhos de alguém com os polegares, mas não
tem equivalente direto em português. Optei por traduzir “thumbs” como “Pressiona-me
os olhos”, descartando a referência direta a polegares, por questões de economia verbal,
pois “pressiona-me os olhos com os polegares” alongava demasiado o verso, e era uma
alternativa um pouco deselegante a nível de ritmo.
Outra dificuldade de tradução de uma palavra própria do inglês britânico e de
uso pouco frequente empregue por Hughes é “dreg” em “Famous Poet”. No Cambridge
Advanced Learner’s Dictionary & Thesaurus esta palavra é definida como
“the small solid pieces that sink to the bottom of some liquids, such as wine or coffee,
that are not usually drunk”, pelo que o equivalente mais próximo no português europeu
seja “borra”, tal como a borra do vinho. Posto isto, decidi traduzir a palavra composta
“dreg-boozed” como “bêbado de borra”, pois penso que mantém o sentido do original.
Também em “Famous Poet”, a palavra “tankard”, de origem holandesa e francesa, é
definida pelo Collins English Dictionary como “a large one-handled drinking vessel,
commonly made of silver, pewter, or glass”, e pode ser facilmente traduzida como
“caneca”. Porém, no poema, a palavra é usada como verbo conjugado no “present
continuous”, “tankarding”, para especificar o ato de beber excessivamente de uma
caneca. A questão surgiu em como explicar este ato sem alongar o verso visto que, na
língua de chegada, não existe uma palavra que sozinha explique esta característica, e
78
utilizar a palavra “caneca” como verbo não se apresentou como uma solução seriamente
viável. Decidi, então, traduzir “tankarding” como “emborcar”, embora esta solução
deixe cair a especificidade de beber de uma caneca. No entanto, acho-a adequada pois
mantém a imagem de excesso presente no texto de partida, e mantém, também, algum
do ritmo do original por não ser necessário alongar o verso.
Ainda em “Famous Poet”, temos o substantivo composto “house painter”,
referente à profissão de pintor, mais especificamente um pintor que não das belas artes:
“Of an apprentice – say, an apprentice house- / Painter (…)”. Penso que traduzir “house
painter” como “pintor” para a língua de chegada não era uma solução adequada pela
possível confusão quanto à pratica do pintor em questão, dado que a sua especificidade
é essencial para a comparação feita no poema. Para esse efeito, traduzi “house painter”
como “pintor de paredes”, opção que penso eliminar qualquer ambiguidade relativa à
profissão.
A tradução dos versos acima citados serve de exemplo de uma dificuldade
sintática e de economia verbal com que deparei ao longo das traduções, pois os versos
sofreram alterações sintáticas. Na tradução o sujeito de “an apprentice house-/Painter” é
alterado para “um pintor” para eliminar uma possível repetição da preposição “de”,
como por exemplo, “De um aprendiz – digamos, um aprendiz de / Pintor de paredes no
meio de uma assembleia de Arquitetos”. Também abdiquei da possível imagem
proposta pela justaposição de “Pintor de paredes” com “Arquitetos”, para tentar manter
a economia verbal da tradução o mais próxima possível da economia verbal do texto de
partida, embora isto não tenha sido possível de concretizar integralmente por razões
inerentes às normas gramaticais da língua de chegada:
Texto de partida
‘Of an apprentice – say, an apprentice house-
Painter amid an assembly of famous
Architects: the demeanour is of mouse,’
Tradução
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‘De um aprendiz – digamos, um pintor de paredes
Aprendiz no meio de uma assembleia de Arquitetos
Famosos: a atitude é de rato,’
Ao invés das normas gramaticais do inglês, na língua portuguesa a adjetivação é
feita após o substantivo, pelo que na tradução o substantivo “architects” surge não no
último verso da estrofe, mas sim no anterior, no lugar de “famous”. Optei por manter as
palavras separadas e não juntas no último verso – “Arquitetos famosos” -, pela
justaposição de “Aprendiz” com “Arquitetos” e de “Famosos” com “atitude [de] rato”,
bem como por razões da extensão do verso.
Embora tenha deparado ao longo do processo de tradução com alguns casos que
aparentavam ser difíceis de traduzir e que no final revelaram ser o oposto, também
encontrei outros que necessitaram de uma pesquisa mais cuidada e laboriosa. Saliento
“bolt-hole”, em “That Tender Place” como exemplo de um problema de resolução, a
meu ver, não muito complicada, e “thunderheads”, em “Howls & Whispers” como
exemplo de um problema mais árduo de resolver. A primeira palavra é definida pelo
Collins English Dictionary como “a place of escape from danger”, ou seja, um refúgio.
Visto “bolt-hole” ser usado como adjetivo no texto de partida, “bolt-hole basement”,
decidi optar pelo substantivo composto por justaposição “cave-refúgio”, opção que
penso manter o sentido presente no texto de partida. A segunda palavra, “thunderheads”
revelou-se mais complicada; como nos diz o Collins English Dictionary, o vocábulo é
referente ao topo de um tipo específico de nuvens: “a thunderhead is the top part of a
thundercloud”. Uma “thundercloud”, de nome científico cumulonimbus cloud, é uma
nuvem com o aspeto de uma bigorna, e está normalmente associada com a chegada de
tempestades. Na língua de chegada, o equivalente direto de “thundercloud” é “nuvem-
bigorna”. O caso revelou-se problemático porque, pelo que pude verificar, após uma
longa pesquisa por vários dicionários, não existe, em português, um substantivo para
esta parte específica da nuvem como em inglês. Posto isto, decidi traduzir
“thunderheads” como “nuvens-bigorna”, uma opção que é o equivalente mais próximo
do referido no texto de partida, embora não seja tão específico.
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Já no poema “Secretary”, temos o exemplo de uma expressão que colocou
desafios à sua transposição para a língua de chegada pretendida. O vocábulo “gauntlet”,
que juntamente com o verso em que se insere, remete para a expressão “to run the
gauntlet”: “At dusk she scuttles down the gauntlet of lust”. Esta expressão é definida
pelo Cambridge Advanced Learner’s Dictionary & Thesaurus como “to have to deal
with a lot of people who are critizing or attacking you”, o que me levou a interpretar o
passo como que um conflito interior da figura feminina face aos seus desejos sexuais
reprimidos. Ademais, no contexto da variante americana do inglês, a expressão “to run
the gauntlet” é definida pelo Mcgraw-Hill Dictionary of American Idioms and Phrasal
Verbs como “to race, as a punishment, between parallel lines of men who thrash one as
one runs”. Face a esta informação, optei por traduzir “gauntlet of lust” como “corredor
de lascívia”, remetendo para aquele cenário de duas linhas paralelas de pessoas por
entre as quais alguém é desafiado a passar de uma ponta à outra, um “corredor” de
agressores.
Saliento também o primeiro verso da segunda estrofe do poema “The Minotaur”.
O verso, “That came under the hammer”, recorre à expressão “to come under the
hammer”, que é definida pelo Cambridge Advanced Learner’s Dictionary como “to be
sold at an auction”, ou seja, ser leiloado. Não esquecendo que o verso é referente ao
tampo de mesa de mogno mencionado na primeira estrofe, e tendo em conta que é
descrito como “smashed” - optei pela tradução “Foi brutalmente arrematado”, que julgo
ser uma opção viável pois tanto mantém a agressividade da expressão inglesa através do
advérbio “brutalmente”, como também mantém a referência ao ato de leiloar através do
adjetivo “arrematado”.
No caso de “The Howling of Wolves”, o verso “Innocence crept into minerals”
levantou uma dificuldade à tradução da palavra “crept”. O uso de “minerals” é
simbólico, remetendo para a natureza, e possivelmente para o ritual da vida animal de
“endurecer” a fim de sobreviver: “mineral” é definido pelo Webster’s New World
College Dictionary como ““an inorganic matter occurring naturally in the earth and
having a consistent and distinctive set of physical properties (e.g., a usually crystalline
stucture, hardness, color, etc)”. Posto isto, interpretei “crept” como uma transformação,
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a de inocência para algo mais forte, para um instinto natural de sobrevivência, sendo
que decidi traduzir o verso como: “Inocência transfeita em minerais”.
No entanto, deparei com passagens que necessitaram de uma abordagem de
tradução diferente, como a repetição do advérbio “now” nos dois últimos versos da
terceira estrofe do poema “The Thought-Fox”: “Two eyes serve a movement, that now /
And again now, and now, and now”. A repetição serve para exprimir a ideia de
progressão, mas senti que no português recorrer simplesmente à repetição de “agora”
abandonaria o ritmo algo frenético do texto de partida. Optei, então, por traduzir “now”
como “agora” apenas uma vez, pelo que as restantes foram traduzidas sempre com
vocábulos diferentes, mas mantendo sempre este sentido de progressão. As palavras,
para além de serem diferentes, diminuem progressivamente no número de sílabas para
reforçar ritmicamente o sentido de progressão na tradução:
‘Dois olhos servem um movimento, que agora
E em seguida, e depois, e após’
Outra ocasião em que foi necessária uma maior ponderação sobre como traduzir
uma expressão de uso corrente no inglês, mas sem equivalente direto na língua de
chegada pretendida. Seguindo a especificidade dos movimentos da raposa no poema,
interpretei o verso “Coming about its own business” no sentido de “algo” (a raposa
figurativa) se mover com pouca preocupação ou consideração pelo meio em que se
encontra e por quem o observa. Dada esta interpretação, e para manter o sentido do
texto de partida, optei por traduzir o verso como “Vindo à sua maneira, ao seu cuidado”,
uma opção que penso manter o sentido que interpretei do original. Uma das dificuldades
que se apresentou também em “The Thought-Fox” foi a questão da imediatez de “the
clock ticks”. O facto de o verbo “tick” estar conjugado no presente do indicativo do
inglês serve, mais uma vez, para acentuar o ritmo cada vez mais progressivo do poema.
O ritmo de “The Thought-Fox” segue o próprio ato que o poema simboliza, o ato de
escrever poesia, e a intensidade cada vez mais forte e “veloz” da “inspiração poética”, a
qual o animal totémico do poema representa: “(…) the clock ticks, / The page is
printed”. Para manter o último verso fiel ao texto de partida, e encontrar equilíbrio com
82
as normas da língua de chegada, foi necessário alterar o verso anterior ao traduzi-lo para
português, pelo que decidi traduzir o passo referido como: “(…) Ao tique-taque do
relógio, / A página está escrita”.
Em conclusão, a tradução de poesia requer de nós algumas atenções especiais
quando comparada com a tradução de prosa. Enfrentei inúmeros obstáculos ao longo da
minha tradução, alguns fáceis de superar e outros mais complicados de resolver.
83
Conclusão
Ao concluir esta dissertação verifico que Ted Hughes é ainda um poeta pouco
conhecido em Portugal, e que ainda há muito a explorar da sua obra para além da poesia
que escrevia, nomeadamente no que concerne ao seu trabalho como tradutor. Penso que
os poemas que escolhi, assim como as traduções dos mesmos, são capazes de revelar
várias temáticas exploradas na poesia do autor, e, apesar de incluir vocábulos e
passagens mais resistentes à tradução, creio que terei optado por soluções adequadas e
fieis à escrita de Hughes.
O processo de tradução não se revelou tarefa fácil pela própria natureza da
poesia, que necessita de uma tradução preocupada com certos aspetos menos sentidos
na tradução de um texto narrativo, como o aspeto da economia verbal de um verso. O
próprio vocabulário utilizado por Ted Hughes demonstrou-se, por vezes, difícil de
transpor para português sem perder parte do seu significado ou simbolismo original. No
entanto, penso que este trabalho foi bastante enriquecedor a nível académico e pessoal,
pois aprofundou o meu interesse e conhecimento por um dos poetas mais influentes do
século XX no contexto anglo-americano, assim como me apresentou desafios novos
relativamente à tradução. As traduções também foram realizadas com o intuito de
partilhar este interesse por uma obra poética vasta e plena de diversidades com os
leitores portugueses, para muitos dos quais Ted Hughes será ainda um
autor desconhecido.
Em conclusão, esta dissertação foi um trabalho pessoalmente desafiante e
estimulante, mas sinto uma enorme satisfação pessoal agora que concluído. Como tal,
espero apresentar uma leitura agradável e fiel da vintena de poemas de Hughes que
constituem o centro e a razão de ser deste trabalho.
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Referências Bibliográficas
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