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INSTITUTO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO
OS TEMBÉ DO ALTO RIO GUAMÁ
O GRITO SILENCIADO DA FLORESTA
Paulo César Beltrão Rabelo
Belém - PA
Jun/2009
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ
INSTITUTO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO
OS TEMBÉ DO ALTO RIO GUAMÁ
O GRITO SILENCIADO DA FLORESTA
Paulo César Beltrão Rabelo
Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Pará (UFPA), como requisito para obtenção do título de Mestre em Direito, sob a orientação da Profª. Drª. Jane Felipe Beltrão.
Belém - PA
Jun/2009
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ
INSTITUTO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO
OS TEMBÉ DO ALTO RIO GUAMÁ
O GRITO SILENCIADO DA FLORESTA
Paulo César Beltrão Rabelo
Aprovado em______ de ______________ de 2009.
Banca Examinadora:
Profª. Drª. Jane Felipe Beltrão (UFPA)
Orientadora
Profº. Dr. Antonio Carlos de Souza Lima (MN/UFRJ)
Examinador Externo
Profº. Dr. José Heder Benatti (UFPA)
Examinador Interno
Profª. Drª. Cristina Donza Cancela (UFPA)
Examinadora Suplente
Profª. Drª. Eliane Cristina Pinto Moreira (UFPA)
Examinadora Suplente
Belém – PA Jun/2009
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A minha família, por desfrutar sempre da alegria e do amor que me dão.
Aos Tembé, pela bravura emuladora.
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Embora a civilização nas zonas de fronteira seja algo tosca e desconjuntada, é sempre a civilização ocidental que avança através da sua encarnação na sociedade brasileira. O que oferece aos índios não são, naturalmente, as conquistas técnicas e humanísticas de que se orgulha, mas a versão degradada destas, de que são herdeiros os proletariados externos dos seus centros de poder.
(RIBEIRO, Darcy. Os Índios e a Civilização: A Integração das Populações Indígenas no Brasil Moderno. Editora Vozes, Petrópolis.)
Como podes comprar ou vender o céu, o calor da terra? Tal idéia é-nos estranha. Nós não somos donos da pureza do ar ou do resplendor da água. Como podes então comprá-los de nós? Decidimos apenas sobre o nosso tempo. Toda esta terra é sagrada para o meu povo. Cada folha reluzente, todas as praias arenosas, cada véu de neblina nas florestas escuras, cada clareira e todos os insetos a zumbir são sagrados nas tradições e na consciência do meu povo. Sabemos que o homem branco não compreende o nosso modo de viver. Para ele um torrão de terra é igual a outro. Porque ele é um estranho que vem de noite e rouba da terra tudo quanto necessita. A terra não é sua irmã, mas sim sua inimiga, e depois de exauri-la, ele vai embora.
(Carta do Chefe Índio Sealth Chefe Sealth, dito Seattle / 1854, Manifesto da Terra-Mãe. Texto transcrito no compêndio de Joseph Ki-Zerbo, Compagnons du Soleil, Anthologie des grands textes de l’humanité, Ed. La Découverte/UNESCO, Paris, 1992; e de Mehlem Adas, Geografia da América, Ed. Moderna 1987).
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Resumo
Concretizar a dignidade para os povos indígenas é dever da federação brasileira. Este
trabalho objetiva, partir da leitura crítica de procedimento administrativo instaurado no
Ministério Público Federal, analisar e compreender o significado dos conceitos terra e
território para os Tembé do Alto Rio Guamá, bem como a percepção dos demais agentes
sociais envolvidos, estabelecendo conexão da temática com a concretude da dignidade da
pessoa humana, compreendida e validada por meio do olhar indígena. Narra os conflitos
existentes na Terra Indígena Alto Rio Guamá, apresentando como protagonista da luta pela
terra o povo Tembé, registrando os atritos interétnicos verificados a partir de interesses
conflitantes. Por fim, partindo-se dos princípios contidos na Constituição Federal, procura-se
analisar a possibilidade da co-existência e reconhecimento de sistemas jurídicos indígenas e
a ligação dos mesmos com o ideal constituinte de sociedade plural.
Abstract
To ensure dignity among Indigenous peoples is part of the Brazilian federation obligations.
This study constitutes a critical analysis of administrative procedure filed by the Federal Dis-
trict Attorney Office in the attempt to understand the meaning of two major concepts: land
and territory, as applied they apply to the Tembé People in the High Guamá River, the State
of Pará, in Northern Brazil. Study also analyses the perception of other social actors by trying
to establish a concrete connection with human dignity principles under Indigenous values
system. It presents an account of existing conflicts in the High Guamá River Indige-
nous Land where the Tembé People fight for land is the main issue. Such narrative privileges
interethnic friction due to conflicting interests present in the region. Finally, based on Federal
Constitutional rights, analysis explores the possibility of co-existence and acknowledgment of
indigenous law systems and the observation of such systems under the scrutiny of the Con-
stitutional ideal of a plural and diverse society.
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Agradecimentos
Agradecer é um ato, nesse momento, de complexidade múltipla, pelo número de
pessoas que de forma direta ou indireta me ajudaram a concluir essa etapa de realização
pessoal, que se iniciou como um sonho individual e termina como um sonho sonhado (e
desejado) por muitos.
A Deus, Tupã, Alá, Jeová, ou qualquer que seja a denominação atribuída por nossa
falibilidade humana à inteligência suprema, causa primeira de tudo que existe, força cósmica
que prescindindo a cognição científica, se instala em nossa emoção através do binômio
fé/razão.
A minha esposa e eterna namorada Luiza pela força e apoio familiar, sem qual o
projeto mestrado seria inatingível, meus filhos, tesouros e razão de viver, Mateus, Natália e
Gabriela e minha mãe Ivany, guerreira branca, cuja força e energia de um caso vivo de
superação foi e continua sendo meu estímulo.
Meus sogros Dulce e Osvaldo, segundos pais e meus cunhados Nonato, Lúcia,
Osvaldo Jr. e Valéria, irmãos pelo coração, bem como Carlão, Maurão e Márcia que
integrando essa família unida e fantástica, na mesma condição que eu, também me
receberam como irmãos.
Às primas Jacira, Janete e Jimena e a tia Júlia, pela torcida e carinho.
Aos professores doutores do mestrado José Heder Benatti, Fernando Facury Scaff,
Pastora do Socorro Teixeira Leal, José Cláudio Monteiro de Brito Filho, Antonio Gomes
Moreira Maués e em especialíssima posição, minha orientadora Jane Felipe Beltrão, que
pela alma generosa e sensibilidade rara, adota seus orientandos numa perspectiva
maternal, com carinho, cuidado e energia de uma atenção e apoio imprescindível à dinâmica
de uma pós-graduação strictu sensu.
Aos Procuradores da República Ubiratan Cazetta e José Augusto Torres Potiguar,
pela paciência, amizade e disponibilização de um tempo que praticamente não existe e, em
especial, a Felício Pontes Jr, o chefe, amigo e companheiro, que pela atuação, dedicação à
causa indígena e essência humana, foi fator determinante para o projeto mestrado.
A Murilo Hildebrand, autor da capa, pela veia artística que lhe permitiu transpor ao
papel pintura corporal e textura de pele Tembé.
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Aos amigos, energia fraterna e emuladora, Sidney Sales, Rosângela Hino, Roselene
Silva e Arthur Láercio que na convivência diária da Procuradoria da República no Estado do
Pará, transformam o cotidiano e um alegre e renovador reencontro diário. E a tantos outros
amigos, distantes, presentes, vizinhos, companheiros, sindicalistas, da faculdade, do
trabalho, do movimento espírita que se revestem dessa condição essencial ao ser humano.
E por último, Helena Palmquist cujo apoio nas horas mais difíceis traduz o que é, de fato,
ser amigo.
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INTRODUÇÃO
Observa-se, na atualidade, uma discussão crescente em vários segmentos da
sociedade civil organizada, acerca das práticas discriminatórias e da urgente
necessidade de se estabelecer políticas públicas voltadas para a consolidação da
igualdade. Vários grupos excluídos em razão de gênero, etnia, orientação sexual,
entre tantas outras formas de discriminação, estão na ordem do dia reivindicando
seus direitos. Todavia, povos índios apresentam-se nesse contexto com uma
nuança merecedora de especial atenção.
“Nós podemos ser igual a você, sem deixar de ser o que somos.” 1 A
afirmação de Marcos Terena expressa de forma sintética e ao mesmo tempo
profunda, a imensa necessidade de aprendizado do homem dito “civilizado”,
pertencente ao mundo “branco” no sentido da edificação de convivência harmônica e
pacífica com os povos da floresta, a partir da (re)descoberta da riqueza e
diversidade dos povos indígenas no Brasil.
Observa-se, atualmente, uma discussão crescente em vários segmentos da
sociedade civil organizada, acerca das práticas discriminatórias e da urgente
necessidade de se estabelecer políticas públicas voltadas para a consolidação da
igualdade. Vários grupos excluídos em razão de gênero, etnia, orientação sexual,
entre tantas outras formas de discriminação, estão na ordem do dia reivindicando
seus direitos. Todavia, povos índios apresentam-se nesse contexto com uma
nuança merecedora de especial atenção.
O preconceito, quando o assunto é negritude, por exemplo, mostra-se de
forma velada, muitas vezes, hipocritamente, negando-se sua existência, porém
1 Artigo publicado na página www.dhnet.org.br. Marcos Terena, 45, é Índio Terena do Pantanal sul-matogrossense, Piloto de Aeronaves, foi fundador da União das Nações Indígenas, organizou e representou a participação indígena durante a ECO/92, com a Conferência Mundial dos Povos Indígenas sobre Território, Meio Ambiente e Desenvolvimento, através do Comitê Intertribal (ITC), onde foi escrito a Carta da Terra. Foi Chefe de Gabinete da FUNAI e Assessor Indígena do Ministério da Cultura.
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quando o assunto é povos indígenas, o universo brasileiro não-índio não se ressente
de pudor em expressar abertamente suas opiniões, que passam pela associação ao
primitivo ou infantil e chegam aos tão conhecidos estereótipos como: “preguiçoso”,
“ladrão” e “traiçoeiro”.
Tal panorama denota a urgência na produção de trabalhos acadêmicos de
pesquisa que se proponham a transpor as barreiras do preconceito institucionalizado
e traga a público a riqueza do universo e da singularidade das centenas de etnias
ainda existentes em nosso país. Com características tão particulares que apesar de
geograficamente situarem-se lado a lado, quilômetros culturais as diferenciam, como
se fossem Japão e Brasil.
“Alto Rio Guamá”, como corte desse universo e objeto da pesquisa, emerge
como possibilidade de percorrer a construção da igualdade material aos índios e
todos os aspectos que tangenciam o complexo e intrigante caso da delimitação de
uma área correspondente a 279.887,70 ha. Conceitos como, “terras tradicionais”,
“demarcação”, “aldeamento”, “extrusão” carregam um peso semântico que traduz a
importância da dimensão histórica e etnográfica das terras indígenas e a relevância
científica da pesquisa proposta.
A análise da Terra Indígena (TI) Alto Rio Guamá permite visualizar o
confronto de poderosos grupos econômicos com os interesses indígenas Tembé2.
Perceber e extrair desse estudo o sentido, a dimensão e a relação com a terra para
grupos diametralmente opostos no sentido ético-cultural são um grande estímulo ao
pesquisador. Presente, nessa linha fronteiriça, encontra-se o Ministério Público
2 Ramo ocidental dos Tenetehara, habitantes da Margem esquerda do rio Gurupi, no Pará. “Os Tembé têm sido obrigados a conviver com centenas de famílias de posseiros em suas terras e sofrem os efeitos da atuação irregular de madeireiros, fazendeiros e empresários. Entretanto, longe de conformarem-se com essa situação, esse povo têm lutado pela desocupação de seu território e reinvidicado seus direitos junto aos órgãos públicos e poderes locais”. www.socioambiental.org/pib/epi/tembev/tembe.shtm
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Federal, Instituição que recebeu o mister constitucional de promover a defesa dos
interesses indígenas.
A nova ordem constituinte inaugurada em 1988, respondendo ao eco de uma
sociedade desgastada por um longo período de autoritarismo e cerceamento das
liberdades individuais, rompeu o laço burocrático que prendia o Ministério Público ao
Poder Executivo, ensejando assim a gênese de uma nova dimensão da Instituição
que tem como incumbência, segundo o jargão jurídico, ser o “fiscal da lei”.
O legislador constituinte de nossa Carta Cidadã no efetivo exercício de
tradução da soberania popular, com propriedade e sabedoria, atribuiu ao Ministério
Público a condição de função essencial à justiça, o que não poderia ser de outra
forma, pois o próprio conceito de democracia se confunde com a Instituição. Se de
um lado temos a legalidade como esteio, pedra angular do estado democrático de
direito é essencial, indispensável que exista um garante, um guardião que promova
a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e
individuais indisponíveis, pois a existência desse Estado é condicionada ao
comprometimento como o respeito à igualdade e a dignidade da pessoa humana.
Fortalecido por uma constituição que inovou a ordem jurídica traçando um
papel claro e definido ao Ministério Público, atribuindo-lhe um perfil constitucional
bem delimitado em seu art. 127, de outro lado se descortina uma realidade que em
síntese, nem de perto alcança o princípio da igualdade ali consignado, visto que a
beleza poética do texto de nossa Lei Maior não espelha a verdade social dos fatos,
ou seja, ainda não se materializou, transportando-se da formalidade à realidade. A
igualdade material, substancial se apresenta um sonho distante, bastando uma
breve leitura do noticiário local, regional ou nacional para essa constatação.
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Não bastasse a delimitação trazida pelo art. 127 da CF/88, quis o legislador
explicitar o papel do MPF na defesa dos interesses indígenas, incluindo dessa forma
em seu art. 129 “defender judicialmente os índios e os interesses das populações
indígenas.”
Em que pese 20 anos de um novo momento da democracia brasileira, a
Instituição Ministério Público, o papel e a atuação na sociedade é, ainda,
desconhecido, apesar de estar presente como defensor das liberdades e da garantia
da igualdade bem mais próxima e concreta do cotidiano do cidadão brasileiro, essa
percepção não é clara aos olhos de quem não é operador do direito.
Trabalha-se na proposta a partir da condição de servidor, técnico
administrativo, investido no cargo desde 2001, condição que possibilita análise fática
que demonstra a credibilidade no meio jurídico, quando da propositura de
representações por advogados conscientes de não ser competência do Parquet
Federal, mas que reputam o trânsito de seu pleito pela instituição como elemento
fortalecedor da demanda. Além de permitir presenciar cotidianamente o ingresso do
cidadão buscando tutelas protetivas que, nem de longe se aproximam das
atribuições da Procuradoria da República no Pará, não raro confundindo-a com a
Justiça Federal.
Para os que atuam nesta seara, é comum perceber a confiança demonstrada
por lideranças indígenas, que adentram as dependências do MPF com a convicção
de encontrar respaldo e proteção, respostas ao sentimento de exclusão e
segregação que vivenciam por conta dos diversos conflitos instaurados.
O contexto atual, no qual se observa em primeiro plano o Ministério Público
como um ilustre desconhecido da sociedade, e em segundo plano uma discussão
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nacional e polêmica a cerca dos poderes investigatórios, revela mais que um
momento oportuno para se fazer um estudo científico e trazer ao meio acadêmico a
temática, mas sim a necessidade urgente de analisar a participação desta função
essencial à justiça no processo de construção da igualdade material para as
sociedades indígenas.
A Igualdade Material para as populações indígenas sem dúvida é um tema
apaixonante, mas que merece um tratamento dissociado de qualquer visão
passional, um estudo pautado numa análise coerente e razoável, utilizando as
ferramentas oferecidas pelas Ciências Humanas, particularmente a Antropologia,
como aliadas na compreensão desse processo de construção, utilizando-se assim a
visão multidisciplinar tão necessária ao operador do direito. Tal compromisso é o
próprio sentido emulador do presente trabalho, à essência da necessidade de
produção de algo que venha ouvir o grito silenciado, o olhar para as minorias e
grupos postos à margem de possibilidades mínimas, dessa forma, estimular a
discussão na busca de ferramentas eficazes na consolidação da igualdade real,
material, factual, substancial. Incluindo, grupos étnicos que precisam e esperam ser
respeitados, resgatando a fala de Marcos Terena, exercendo a cidadania, sem
deixar de ser o que são.
É com base nos argumentos acima expostos, que a presente dissertação tem
como objetivo geral fazer uma análise da participação do Ministério Público Federal
no processo de construção da igualdade material para os povos indígenas,
objetivando, especificamente, identificar as ferramentas jurídicas de competência do
Ministério Publico Federal que são utilizadas para garantir essa igualdade efetiva;
buscar na análise antropológica a compreensão do contexto atual da desigualdade
entre índios e não-índios, bem como no desenvolvimento do tema identificar os
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atores sociais responsáveis pela promoção da igualdade e os liames existentes com
a atuação do Ministério Público.
O trabalho objetiva, também, realizar um estudo crítico da atuação da
Procuradoria da República no Estado do Pará no caso da Terra Indígena Alto Rio
Guamá.
Através da realização da pesquisa, procurou-se ratificar ou corroborar as
possíveis hipóteses do trabalho em tela, que se pautam na contribuição significativa
da atuação do Ministério Público no que concerne à construção da igualdade
material para os povos indígenas ou a hipótese de que o Ministério Público federal,
no que se refere à igualdade de condições, consiste em uma Instituição
comprometida e atuante no sentido de minimizar as práticas geradoras de
desigualdade e exclusão social para os povos indígenas.
Para a consecução da pesquisa, vários campos de pesquisa foram utilizados
para, com isso, ter a dissertação um caráter mais abrangente. Assim,
metodologicamente, optou-se por pesquisa de posições doutrinárias sobre o tema, a
fim de poder analisar uma maior gama de opiniões, de obras nacionais e
estrangeiras. A realização de levantamentos ilustrativos em situações análogas a
estudada, de decisões jurisprudenciais, ações judiciais propostas, atuação
extrajudicial e administrativa também foi instrumento metodológico escolhido.
Para o alcance dos objetivos específicos da pesquisa, foi realizada uma
Leitura crítica de todo o acervo existente sobre a T.I ALTO RIO GUAMÁ na
Procuradoria da República no Estado do Pará, sendo os textos extraídos de
manifestação Ministerial nos autos do processo 2003.39.00.010566-2, ação de
manutenção de posse proposta por ocupantes da T.I Alto Rio Guamá.
Diante dos objetivos e metodologia propostos, o trabalho estruturou-se da
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seguinte forma:
Primeiramente, faz-se uma análise sobre o tratamento constitucional dado
aos povos indígenas, com caráter histórico, culminando no tratamento destinado aos
índios hodiernamente. Neste âmbito do trabalho, explana-se também sobre a as
ações afirmativas e a política indigenista, na busca da construção efetiva da
igualdade entre os homens.
O trabalho segue com um panorama sobre o objeto do trabalho
especificamente, ou seja, um breve relato sobre a relação terra, território e os
També. Neste capítulo, são tratados, em separado, os atores sociais envolvidos no
processo, sendo eles: os També, os procuradores da república, o judiciário e as
demais formas de manifestações.
No terceiro capítulo, faz-se uma análise sobre os conflitos oriundos da relação
entre os Tembé e sua terra, onde se faz todo um memorial da existência dos Tembé
no Rio Guamá.
Por fim, tem-se o último capítulo, cuja abordagem está centrada na
construção de uma sociedade pluralista, onde se trabalha elementos como a
igualdade, respeito ás diferenças, pluralismo cultural e dignidade da pessoa
humana, onde se fica evidenciada a necessidade do reconhecimento estatal e social
dos distintos povos e de suas culturas.
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1. A CONSTITUIÇÃO DIRIGENTE E OS POVOS INDÍGENAS: ANÁLISE,
INSTRUMENTOS E PERSPECTIVAS
O presente capítulo tem por objetivo analisar o sentido compromissário e
dirigente da Constituição Federal de 1988 e a elaboração das políticas públicas para
grupos minoritários, como forma de construir a igualdade material e estabelecer
relações simétricas na sociedade brasileira. A análise está centrada na realidade
indígena enquanto recorte da imensa pluralidade nacional. Posteriormente
destacaremos desse universo o Povo Time, e suas demandas acerca da terra,
dados aferidos dos documentos manuseados no Procedimento Administrativo nº
1.23.000.000339/2005-79, foco da análise da dissertação.
1.1 CONSTITUIÇÃO DIRIGENTE
O movimento denominado constitucionalismo emerge na história da
humanidade com a revolução francesa e a independência das treze colônias norte-
americanas. Com as constituições mexicana de 1791 e de Weimar, de 1919,
inaugura-se uma nova fase desse movimento. O papel do Estado deixa de ser
apenas o de garantidor das liberdades individuais, passando a assumir um papel
ativo, intervindo na economia enquanto regulador social. O pós Guerra Mundial
acompanha o surgimento da doutrina do Welfare State3.
Nesse contexto, a Constituição assume um papel de supremacia, acontece a
ruptura com o modelo de Estado absolutista e o surgimento do Estado
3 Sistema social em que o estado político considera o bem-estar individual e social dos cidadãos. Segundo esta concepção, todo o indivíduo teria o direito, desde seu nascimento, a um conjunto de bens e serviços que deveriam ser fornecidos diretamente através do Estado ou indiretamente, mediante seu poder de regulamentação sobre a sociedade civil. Esses direitos iriam desde a cobertura de saúde e educação em todos os níveis, até o auxílio ao desempregado, à garantia de uma renda mínima, recursos adicionais para sustentação dos filhos
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Constitucional, numa primeira fase apenas estabelecendo limites à atuação estatal,
para posteriormente intervir, formatando o Welfare State. Na atual fase, dirigindo a
ação do legislador, administrador e intérprete, lastreada no binômio democracia e
respeito aos direitos fundamentais.
O papel destacado da Constituição fica evidenciado nesse estágio do
constitucionalismo. Trata-se da norma fundante de todo um sistema jurídico, o elo e
unificação de todo regramento estabelecido, passando a ser autêntico filtro para os
demais ramos do Direito.
Carlos Ayres4 ao cotejar Deus e a Constituição traz oportuna manifestação
para ilustração do tema:
Deus é o poder que tudo pode, menos deixar de ser o poder que tudo pode. Deus nem pode deixar de ser o poder que tudo pode, como não pode permitir que outro poder tudo possa. Lógico, porque a onipotência está condenada a solidão. Onipotência é concomitantemente unipotência ou potência única.
Nesse sentido, utilizando essa metáfora comparativa, sem nenhuma
pretensão de vinculação ao pensamento religioso, a Constituição se traduziria em
potência única, sendo a origem e a resposta para o sistema jurídico instituído, poder
soberano que determina as trilhas a serem percorridas pelas funções estatais e pela
sociedade.
O mestre português J.J.G. Canotilho, pai da idéia de Constituição Dirigente,
construção de sua tese de doutoramento – a obra Constituinte Dirigente e
Vinculação do Legislador –, seduziu parcela expressiva da comunidade jurídica
afirmando que as normas programáticas não são o que afirmava a doutrina
tradicional, ou seja, meros programas, exortações morais, declarações. Em sua
visão, “às normas programáticas é reconhecido hoje um valor jurídico
constitucionalmente idêntico ao dos restantes preceitos da Constituição.”
4 BRITO, Carlos Ayres. Poder constituinte versus poder reformador. In: MAUES, Antônio G. Moreira (Org.). Constituição e democracia. São Paulo: Max Limonad, 2001, p. 40.
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Canotilho5 assevera que a positividade jurídico-constitucional das assim
chamadas normas programáticas significava: 1) vinculação do legislador, de forma
permanente, à sua realização (imposição constitucional); 2) como diretivas materiais
permanentes, elas vinculam positivamente todos os órgãos concretizadores,
devendo estes tomá-las em consideração em qualquer dos momentos da atividade
concretizadora (legislação, execução, jurisdição); 3) como limites negativos,
justificam a eventual censura, sob forma de inconstitucionalidade, em relação aos
atos que as contrariam.
Todavia, no prefácio da nova edição do seu Constituição Dirigente6, Canotilho
fez uma afirmação que causou inquietação na comunidade jurídica que aprendeu a
admirá-lo por sua argumentação acerca do sentido compromissário e dirigente do
texto constitucional: “a Constituição dirigente está morta”. Em princípio, mas do que
revisão da idéia, a frase soaria como extrema contradição, tema esse enfrentado e
esclarecido por Lênio Streck7.
Em resumo, o polêmico prefácio da obra de Canotilho faz referência a um
contexto totalmente diferente: a Constituição Portuguesa, que prevê até a transição
para o modo de produção socialista, realidade diametralmente oposta à brasileira.
O sentido dirigente da Constituição brasileira se mantém íntegro, segundo
Streck, vez que uma teoria constitucional geral revela-se impraticável, há que ser
respeitada a identidade nacional e suas especificidades. O dirigismo constitucional
brasileiro aponta para o resgate do elevado coeficiente de promessas da
modernidade, não cumpridas em nossa realidade nacional. O autor faz a defesa, em
5 Canotilho, J. J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra, Almedina, 19896 Canotilho, J. J. Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador. Coimbra: Coimbra, 19947 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002
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sua obra, de uma teoria constitucional adequada aos países de modernidade tardia,
que não contém uma função normativo-revolucionária como a portuguesa.
Desta forma, a reflexão feita por Canotilho é pertinente se contextualizada,
pois a essência do pensamento do mestre lusitano é a de chamar atenção para o
fato de que simplesmente consignar algo no texto constitucional não é suficiente, por
si só, para operar as transformações almejadas pelo Poder Constituinte.8
Em seminário promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da
Universidade Federal do Paraná em 2002, Canotilho, por meio de um esquema de
vídeo-conferência, proferiu a seguinte fala, esclarecendo as dúvidas sobre sua
aderência ao tema:
Portanto, quando coloca essas questões da “morte da constituição dirigente”, o importante é averiguar por que é que se ataca o dirigismo constitucional. Uma coisa é dizer que estes princípios não valem e outra é dizer que, afinal de contas, a Constituição já não serve para nada, já não limita nada. O que se pretende é uma coisa completamente diferente da problemática que vimos efetuando: é escancarar as portas dessas políticas sociais e econômicas a outros esquemas que, muitas vezes, não são transparentes, não são controláveis. Então eu digo que a constituição dirigente não morreu.
Portanto, a Constituição Brasileira é dirigente e constitui a ação, no sentido
fenomenológico-hermenêutico, vincula e estabelece as condições de agir político-
estatal. Se Canotilho deixa antever, em outra oportunidade, que onde não há
Constituição não há, também, direitos fundamentais9, pode-se asseverar que os
direitos fundamentais insculpidos no texto constitucional não são meras citações
poéticas, são mandatos jurídicos obrigatórios e possuem especial força de obrigar,
pois emanam da Constituição que é a forma suprema de todo o ordenamento
jurídico.
8 Para um ponto de vista diverso: HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 1991.9 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7 ed. Coimbra/Portugal: Almedina, 2003. p. 347.
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A idéia de uma Constituição onipotente e de uma jurisdição constitucional já
em 1891, com Rui Barbosa, se fez presente nas discussões que antecederam a
primeira Carta Magna republicana, muito embora tese vencida, o modelo proposto
era da existência de garantias arroladas ao lado de cada direito elencado.
Durante o período de ditadura militar, o Brasil viveu não só o enfraquecimento
das instituições democráticas, mas também acompanhou a prevalência da lei ou dos
decretos-leis sobre a norma que deveria ser a máxima, ou seja, a idéia de
supremacia do texto constitucional não encontrava eco à época.
O advento constitucional de 1988 elencou um rol extenso de direitos e
garantias fundamentais na ordem instituída. O longo período de autoritarismo,
anteriormente vivenciado, processou uma vontade constituinte voltada a materializar
no texto fundante as garantias mínimas e irreversíveis, necessárias a assegurar ao
povo brasileiro, no dizer de Lênio Streck, “um núcleo (básico) que albergue as
conquistas civilizatórias próprias do Estado Democrático (e Social) de Direito.”
Ademais, as garantias instituídas pela Carta Política de 1988 extrapolaram os
limites formais de conceituações abstratas, albergando garantias específicas,
inclusive a categorias sociais outrora marginalizadas, que receberam tratamento
especial e diferenciado no texto constitucional, a fim de garantir, no plano normativo,
a existência de instrumentos para a defesa dessas categorias.
1.2 POVOS INDÍGENAS E A CONSTITUIÇÃO
Toda a construção jurídica direcionada aos primeiros habitantes deste país-
continente chamado Brasil, tem seu ponto nevrálgico na terra. O Indigenato é o
instituto constitucional que reconhece aos índios o direito originário sobre as terras
que tradicionalmente ocupam. Homenagem prestada pelo Legislador Constituinte,
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muito embora tardia, legitimando aos índios o direito à manutenção de sua
organização social, costumes, línguas, crenças e tradições.
A discussão sobre terras indígenas é um tema jurídico presente na ordem do
dia há muito tempo. O indigenato – denominação atribuída posteriormente – surge
com o Alvará de 1º de abril de 1680, declarando que por ocasião da concessão de
Sesmarias pela Coroa Portuguesa, os direitos dos índios deveriam ser preservados,
ou seja, as Sesmarias não poderiam desconstituir a titularidade dos que eram os
“primários e naturais senhores da terra”.
Ao longo da história constitucional brasileira a temática foi sempre presente. À exceção de
1891, todas as constituições da era republicana reconheceram esse direito dos índios a terra:
CONSTITUIÇÃO DISPOSITIVO
1934 Art. 129 – Será respeitada a posse de terras de silvícolas que
nelas se achem permanentemente localizados, sendo-lhes, no
entanto, vedado aliená-las.
1937 Art. 154 – Será respeitada aos silvícolas a posse das terras
em que se achem localizados em caráter permanente, sendo-
lhes, no entanto, vedado aliená-las.
1946 Art. 216 – Será respeitada aos silvícolas a posse das terras
onde se achem permanentemente localizados, com a
condição de não a transferirem.
1967 Art. 186 – É assegurada aos silvícolas a posse permanente
das terras que habitam e reconhecido o seu direito ao usufruto
exclusivo dos recursos naturais e de todas as utilidades nelas
existentes.
EC/1969 Art. 198 – As terras habitadas pelos silvícolas são inalienáveis
nos termos em que a lei federal determinar, a eles cabendo a
sua posse permanente e ficando reconhecido o seu direito ao
usufruto exclusivo das riquezas e de todas as utilidades nelas
existentes.
31
Após séculos10 de atrocidades cometidas – autênticos genocídios – os povos
indígenas obtiveram o reconhecimento formal de seu direito a terra espaço vital à
reprodução física e cultural. De maneira mais efetiva, o Legislador Constituinte de
1988 garantiu aos povos indígenas o direito originário sobre as terras
tradicionalmente ocupadas.
A identidade dos povos indígenas está umbilicalmente vinculada a terra, que
tem um papel fundamental no surgimento e na consolidação de grupos humanos,
sendo essa base física que se converte em território. Para o índio a terra é seu
habitat natural, seu espaço de reprodução biológica e cultural, de definição e
diferenciação étnica.
O conceito de índio pressupõe a existência de uma comunidade indígena,
afinal ser índio é conviver entre índios, em limites espaciais e físicos bem
delimitados, que, nos termos da Constituição, é definida como um grupo local
pertencente a um povo que se considera segmento distinto da sociedade nacional,
em virtude da consciência de sua continuidade histórica com sociedades "pré-
coloniais”.
Segundo José Afonso da Silva11
o indigenato não se confunde com a ocupação, com a mera posse. O indigenato é a fonte primária e congênita da posse territorial; é um direito congênito, enquanto a ocupação é título adquirido. O indigenato é legítimo por si, não é um fato pendente de legitimação, ao passo que a ocupação, como fato posterior, depende de requisitos que a legitimem (...) o indigenato além desse ius possessionis tem o ius possendi, que já lhe é reconhecido e preliminarmente legitimado, desde o Alvará de 1° de abril de 1680 como direito congênito. Só a posse por ocupação está sujeita a legitimação, porque, como título de aquisição, só pode ter por objeto as coisas que nunca tiveram dono, ou que foram abandonadas por seu antigo dono... Por outra, não se concebe que os índios tivessem adquirido, por simples ocupação, aquilo que lhes é congênito primário, de sorte que em face do Direito Constitucional indigenista, relativamente aos índios com
10 Pesquisas em sítios arqueológicos revelam vestígios de grupos humanos que habitaram nosso país há pelo menos quinze mil anos.11 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo. Editora Malheiros. 2004: p. 837.
32
habitação permanente, não há uma simples posse, mas um reconhecido direito originário e preliminarmente reservado a eles”
Muito embora a dicção do art. 231 da CF/1988, inserido no título VIII, "Da
Ordem Social", capítulo VIII, "Dos Índios", assim determine: "São reconhecidos aos
índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos
originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União
demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens", a compreensão do que
seja esse espaço geográfico carece de um diálogo intercultural, buscando uma troca
de saberes e culturas muito distantes, a hermenêutica diatópica proposta pelo
professor Boaventura dos Santos12. O olhar civilista, patrimonial e individualista do
universo não-índio, dificilmente compreenderá o sentido e a importância da terra
para os povos indígenas. Reside, portanto, a necessidade de ruptura com modelos e
pré-compreensões cristalizadas para que a proposta seja factível.
Segundo Boaventura, os topoi, lugares comuns mais abrangentes de
determinada cultura, seriam premissas de argumentação que permitiriam uma
aproximação e o diálogo entre culturas diferenciadas, se compreendidos por
incompletos. Essa incompletude não é visualizável no interior da cultura, somente
com o olhar exterior seria possível perceber tal fato, não, porém para buscar a
completude – ideal inatingível – mas a partir de um diálogo que se estabeleceria
com um pé numa cultura e outro noutra, estabelecendo elos antes não perceptíveis,
reforçando o que os aproxima e enfraquecendo o que os distancia, demandando o
conhecimento emancipação que transforma o colonialismo em solidariedade.
12 SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. in Boaventura de Sousa Santos (org.). Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003
33
As palavras de Timóteo Verá Popyguá13 – cacique Guarani da aldeia Tenondé
Porã – trazem elementos que ajudam na construção desse diálogo intercultural:
Na minha infância acontecia muita cerimônia religiosa na casa da reza. Na minha infância não faltava, tudo era feito com mel, e saído da mata. Tudo isso não tem mais hoje. Por mais que não tinha demarcação, tinha uma mata suficiente para sobreviver. O guarani chamava de Ivyrupá, que significa “terra é uma só”, não tem divisão geográfica. Não tinha também as fronteira: Brasil, Argentina, Paraguai, uruguai, Bolívia ... é uma coisa dos juruá. Dentro da cultura guarani não existe. Por isso é chamado Ivyrupá, ou nós chamamos Nhanderu Ivyrupá, “a terra pertence a Deus”. Então Guarani ocupava uma área imensa, e por isso muitas vezes falam assim: “os Guarani são originais do Paraguai ou da argentina, não são do Brasil”. Mas esse era o território guarani. Quem fez a divisão foram os brancos, não foi o índio que fez. Essa tradição continua sendo passada hoje para as nossas crianças.
A busca dessa aproximação revela-se necessária como forma de trazer a
igualdade material a essa parcela da sociedade brasileira, vítima de tantos
preconceitos e exclusão social. O preconceito, quando o assunto é negritude, por
exemplo, mostra-se de forma velada, muitas vezes, hipocritamente, negando-se sua
existência, porém quando o assunto é povos indígenas, o universo brasileiro não-
índio não se ressente de pudor em expressar abertamente suas opiniões, que
passam pela associação ao primitivo ou infantil e chegam aos tão conhecidos
estereótipos como: “preguiçoso”, “ladrão” e “traiçoeiro”.
No âmbito das discussões políticas para a implementação das Constituições
Brasileiras, não foram poucas as batalhas travadas acerca da temática indigenista,
evidenciando o caráter preconceituoso inclusive nesses processos. Em que pese a
omissão da Carta de 1891, o diário da constituinte tem registros de acirrada
discussão travada entre o deputado Montesuma e os deputados Moniz Tavares e
José Bonifácio, na qual Montesuma exortava seus pares a concluir que os índios
não eram brasileiros no sentido político, porque não compunham a “família” que
13 Povos Indígenas no Brasil: 2001/2005/ [editores gerais Beto Ricardo e fany Ricardo]. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2006
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constituiu o Império, ao passo que Moniz Tavares e Bonifácio defendiam a proteção
de todas as terras que os índios possuíam.
Percebe-se, portanto, que o preconceito tem raízes profundas na história
nacional e que simplesmente reconhecer no plano formal os direitos dos povos
indígenas não é suficiente a garantia da simetria de relações, necessário se faz agir
afirmativamente.
1.3 AÇÕES AFIRMATIVAS E A POLÍTICA INDIGENISTA
A análise histórica tem demonstrado que a proclamação jurídica da igualdade,
por si só, se revelou insuficiente para tornar acessível os direitos a quem é
socialmente desfavorecido, ou seja, a vedação expressa de qualquer prática
discriminatória se apresenta ineficaz à construção efetiva da igualdade, seja ela no
campo constitucional ou em normas de hierarquia inferior. Fundamental seria uma
discussão em torno de um conceito substancial de igualdade, ao invés da
concepção estática oriunda das revoluções Francesa e Americana, as demandas
sociais e o contexto atual instituído a partir da formalidade pedem a consolidação de
um conceito material ou substancial de igualdade.
Muito mais que garantir a igualdade perante a lei, meramente formal, o
quadro social brasileiro demanda à implementação de uma igualdade de
oportunidades e recursos. Nesse sentido, possibilitar senão a erradicação das
desigualdades, mas um amenizar alentador aos povos indígenas do Brasil.
A igualdade material seria, portanto, a isonomia de possibilidades, condições
ideais construídas a partir da leitura do indivíduo com especificidades e
particularidades, o sujeito de direito concreto, não mais relacionado como um ente
35
genérico e abstrato e sim um indivíduo especificado, levando em consideração
categorizações relativas ao gênero, raça, etnia, etc.
Isonomia material distinguir-se-ia da formal por ser um conceito concreto, uma
reunião de efetivas condições que estabelecessem a equivalência real, algo bem
próximo da justiça, porém em face das discrepâncias entre grupos sociais tais
condições têm a necessidade de serem parciais. A discussão do conceito gira em
torno do real e do formal, como se fosse possível a abstração, ou seja, a retirada do
Direito da apreensão da realidade, pois o fenômeno jurídico só pode ser considerado
a partir de uma dimensão factual, sendo o Direito também realidade.
O ministro do Supremo Tribunal Federal Joaquim Barbosa, em Instrumentos e
Métodos da Mitigação da desigualdade em Direito Constitucional e Internacional,
estudo jurídico elaborado a partir de solicitação do Instituto de Pesquisas de
Relações Internacionais, define ações afirmativas como:
[p]olíticas públicas (e também privadas) voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física. Impostas ou sugeridas pelo Estado, por seus entes vinculados e até mesmo por entidades puramente privadas, elas visam a combater não somente as manifestações flagrantes de discriminação, mas também a discriminação de fundo cultural, estrutural, enraizada na sociedade
A professora Carmem Lúcia Antunes Rocha, também ministra do STF,
traduziu em artigo a noção do enquadramento jurídico-doutrinário das ações
afirmativas:
[a] definição jurídica objetiva e racional da desigualdade dos desiguais, histórica e culturalmente discriminados, é concebida como uma forma para se promover a igualdade daqueles que foram e são marginalizados por preconceitos encravados na cultura dominante na sociedade. Por esta desigualação positiva promove-se a igualação jurídica efetiva; por ela afirma-se uma fórmula jurídica para se provocar uma efetiva igualação social, política, econômica no e segundo o Direito, tal como assegurado formal e materialmente no sistema constitucional democrático. A ação afirmativa é, então, uma forma jurídica para se superar o isolamento ou a diminuição social a que se acham sujeitas as minorias.14
14 Consultar: Carmen Lúcia Antunes Rocha. Ação Afirmativa – O Conteúdo Democrático do
36
Agir afirmativamente significa também, além da erradicação das
desigualdades, buscar responder juridicamente às demandas sociais, encontrando
uma nova interpretação jurisprudencial ao conteúdo de origem bíblica, de tratar
igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida em que se
desigualam. Não somente apresentar-se o Estado numa postura interventiva post
facto, de natureza meramente punitiva e indenizatória, e sim atuando mediante
ações preventivas, estruturais que objetivem não só evitar a discriminação, mas
gerar políticas de inclusão com fins de concretizar o objetivo constitucional
universalmente acolhido – a igualdade de oportunidades que todos os seres
humanos têm direito.
Toda e qualquer ação afirmativa na direção da realidade indígena
nacional, necessariamente, haverá de contemplar a questão da terra como ponto de
partida. Há que existir ações na direção de fortalecer o ideal de garantir aos povos
indígenas o amplo exercício dos seus direitos identitários, enquanto direitos
fundamentais, indisponíveis, inalienáveis, invioláveis, intransigíveis e
personalíssimos. Agir afirmativamente significa construir instrumentos que
transponham do texto legal a garantia do espaço vital à reprodução física e cultural,
para a realidade concreta desses povos.
Desta maneira, o Estado há de estar preparado, seja normativamente,
seja instrumentalmente, para trabalhar com essa nova realidade, que impõe a
tomada de medidas concretas para a solução de problemas sociais históricos.
Princípio da Igualdade Jurídica», in Revista Trimestral de Direito Público nº 15/85
37
As políticas públicas estatais têm que ser direcionadas como
ferramentas para a implementação das ações afirmativas, a fim de propiciar uma
isonomia real, e não apenas formal.
1.4 POLÍTICAS PÚBLICAS
Por tudo até aqui exposto, conclui-se que temos uma ordem constitucional
instituída, compromissária e dirigente, que reconheceu o direito originário sobre as
terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas, sendo a terra o núcleo
central da questão indígena, vez que espaço essencial a reprodução física e cultural.
Entretanto, não havendo uma direção do Poder Público para a garantia desse
direito, temas como saúde e educação indígena – importantes e fundamentais –
tendem a se tornar discussões inócuas, já que sem a terra, fatalmente, as etnias
hoje sobreviventes no Brasil estarão condenadas ao desaparecimento.
Pode-se dizer que as políticas públicas representam os instrumentos de ação
dos governos, numa clara substituição dos "governos por leis" (government by law)
pelos "governos por políticas" (government by policies). O fundamento mediato e
fonte de justificação das políticas públicas é o Estado social, marcado pela
obrigação de implemento dos direitos fundamentais positivos, aqueles que exigem
uma prestação positiva do Poder Público.15
As políticas públicas são conjuntos de programas e planos de ação
governamental, mediante os quais são traçadas diretrizes e metas objetivando a
implementação dos direitos fundamentais consignados na Constituição.
Em 2002, por meio do Decreto Legislativo nº. 143, aconteceu a
ratificação pelo governo brasileiro da Convenção 169 sobre “Povos Indígenas e
15 BUCCI, Maria Paula Dallari. As políticas públicas e o Direito Administrativo. Revista Trimestral de Direito Público, n. 13, São Paulo: Malheiros, 1996.
38
Tribais em Países Independentes”, da Organização Internacional do Trabalho (OIT),
um novo marco legal se inaugura e traz ao ordenamento jurídico nacional novos
ingredientes para a construção de políticas públicas direcionadas aos povos
indígenas. A Convenção assim estabelece:
Os governos deverão assumir a responsabilidade de desenvolver, com a participação dos povos interessados, uma ação coordenada e sistemática com vistas a proteger os direitos desses povos e a garantir o respeito pela sua integridade.
Essa ação deverá incluir medidas:
a) que assegurem aos membros desses povos o gozo, em condições
de igualdade, dos direitos e oportunidades que a legislação nacional outorga aos
demais membros da população;
b) que promovam a plena efetividade dos direitos sociais, econômicos e
culturais desses povos, respeitando a sua identidade social e cultural, os seus
costumes e tradições, e as suas instituições;
c) que ajudem os membros dos povos interessados a eliminar as
diferenças sócio-econômicas que possam existir entre os membros indígenas e os
demais membros da comunidade nacional, de maneira compatível com suas
aspirações e formas de vida.
Todavia, passada a euforia da conquista normativa, a análise de seus efeitos
práticos se revela preocupante. A jurisprudência dos Tribunais competentes16 para
apreciar as demandas indígenas não conta com nenhuma decisão fundamentada
expressamente nos dispositivos da Convenção 169, no âmbito do executivo a não
observação dos dispositivos desse tratado internacional é flagrante, notadamente no
que se refere à consulta prévia. O art. 6º da Convenção diz que os povos indígenas
deverão ser sempre consultados antes da adoção de qualquer decisão
16 Supremo Tribunal Federal – STF; Superior Tribunal de Justiça – STJ e Tribunais Regionais Federais.
39
administrativa ou legislativa que tenha o potencial de afetar suas terras, modos de
vida ou meios de sobrevivência. Como exemplo temos o asfaltamento da BR-163
(MT/PA) e 158 (MT/PA) e o caso emblemático da construção da usina hidrelétrica de
Belo Monte, no rio Xingu.
A presença de um modelo desenvolvimentista a qualquer preço, somado a
herança autoritária e preconceituosa de um período de exceção como a Ditadura
Militar e a explícita ausência de sensibilidade socioambiental materializam as
palavras do deputado Delfim Neto, nas páginas amarelas da Revista Veja, acerca da
construção da hidrelétrica de Belo Monte, no Pará:
É absurdo exigir dos investidores que reduzam pela metade a potência de energia prevista num projeto gigantesco (de Belo Monte) porque 12 índios cocorocós moram na região e um jesuíta quer publicar a gramática cocorocó em alemão.
As declarações supramencionadas revestem-se de autêntico reforço aos
argumentos anteriormente desenvolvidos, a necessidade de políticas públicas
voltadas ao nivelamento de relações assimétricas e que apontem na direção de um
diálogo intercultural, permitindo uma convivência inter-étnica harmônica e
erradicando visões preconceituosas e quiçá mal intencionadas como essa expressa
pelo deputado Delfim Neto.
Por outra, não se pode descuidar de ordenar os recursos dentro do
orçamento público para a implementação das políticas públicas como instrumentos
para ações afirmativas, sob pena de manter o caráter idealista e programático
dessas ações, que não podem estar desconectadas da realidade econômica estatal.
1.5 UM BALANÇO CONCRETO DO ORÇAMENTO
40
Voltando o olhar a uma análise dos programas e ações do Governo Federal
no que se refere ao orçamento indigenista, percebe-se que a realidade dos números
não reflete exatamente a realidade de vida dos povos indígenas nacionais.
Os dados objetos da análise serão abrangidos pelo Plano Plurianual (PPA)
2000/2003 e os dois primeiros anos do PPA 2004/2007, que foram retirados do
artigo “Perdas e Ganhos no Orçamento Indigenista do Governo Federal”, escrito por
Ricardo Verdum, na obra Povos Indígenas do Brasil.
Os Ministérios de Estado que concentram os recursos destinados a
desenvolver políticas de promoção e inclusão social para os povos indígenas são:
Justiça, Educação, Saúde, Meio Ambiente, Esportes e Desenvolvimento Agrário.
Além desses, os indígenas aparecem como “público alvo” de outros ministérios e
secretarias especiais, a exemplo de: Cultura, Cidades, Integração Nacional, Defesa,
Trabalho, Ciência e Tecnologia, Relações Exteriores, Minas e Energia, Previdência
Social, Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Promoção da Igualdade Racial,
Direitos Humanos, Aqüicultura e Pesca e Mulheres. Apenas nos seis ministérios que
compõe o núcleo central foi possível retirar dados consistentes. Vejamos.
Entre 2000 e 2005 foram gastos em 73 ações indigenistas, distribuídas em
seis programas, cerca de R$ 1.556 bilhão, o valor que destaca-se desse montante e
chama atenção é o voltado à saúde indígena, de responsabilidade da FUNASA, R$
1,036 bilhão, aproximadamente 67% dos recursos alocados.
A política indigenista no período 2000/2003 foi implementada por meio de dois
programas: Etnodesenvolvimento das Sociedades Indígenas e Território e Culturas
Indígenas, sendo direcionados recursos também para dois outros gerenciados pelo
Ministério do Meio Ambiente: Pantanal e Amazônia Sustentável.
41
O investimento totalizado ao final de 2003 era da ordem de R$ 248,214
milhões para os quatro programas, 94,39% do montante autorizado. Desse total, R$
158,709 milhões foram gastos no componente saúde indígena do programa
Etnodesenvolvimento das Sociedades Indígenas.
Da mesma forma que o PPA 2000/2003 o de 2004/2007 concentra os
recursos em dois programas: Identidade Étnica e Patrimônio Cultural dos Povos
Indígenas e Proteção de Terras Indígenas, Gestão Territorial e
Etnodesenvolvimento. Os programas contam, respectivamente, com objetivos nada
modestos. No primeiro ficou estabelecido “garantir o pleno exercício dos direitos
sociais dos índios e a preservação do patrimônio cultural das sociedades indígenas,
já no segundo tem-se “garantir e proteger a integridade do patrimônio territorial e
ambiental das sociedades indígenas”.
Além desses dois programas, existem ações específicas em dois outros, sob
a responsabilidade do Ministério do Meio Ambiente. A ação “apoio a ações
socioambientais em Terras Indígenas na bacia do Alto Paraguai” e
“Desenvolvimento sustentável do Pantanal”. No âmbito do Ministério da Saúde está
incluída a ação “Ampliação de Saneamento Básico em Aldeias Indígenas”.
Em fase de preparação e negociação na transição para o atual PPA, uma
ação sob responsabilidade do Ministério do Meio Ambiente com recursos
repassados pelo Ministério do Desenvolvimento Social, a constituição de uma
carteira de projetos intitulada Fome Zero e o Desenvolvimento Sustentável em
Terras Indígenas. Em relação ao Fome Zero, estão em curso negociações com
lideranças dos movimentos sociais indígenas para inclusão na ação “transferência
de renda com condicionalidades”, que encontra no cadastramento seu maior
entrave, vez que pela mecânica do programa deve ser feito junto às prefeituras
42
municipais, tradicionalmente discriminadores e praticantes de ações predatórias
contra indígenas.
Existem, ainda, ações governamentais de promoção da educação indígena,
com recursos do Fundo de Fortalecimento da Escola – FUNDESCOLA e do Fundo
de manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do
Magistério – FUNDEF (atual FUNDEB17), destinado a cobrir despesas com formação
de professores indígenas, nas regiões norte, nordeste e centro-oeste, além do
repasse efetivado pelo governo federal aos municípios e estados para compra de
merenda escolar indígena.
Como se percebe das ações descritas e dos recursos alocados no orçamento,
em que pese não suficientes, eles existem. Todavia, o questionamento central, não
diferente daquele direcionado à política pública como um todo, é sobre a efetividade
desses recursos.
Algo que salta aos olhos são as somas vultosas destinadas a saúde indígena
e ausência de efeitos concretos, face à precariedade dos serviços oferecidos pela
FUNASA e a ineficácia total na gestão do sistema de saúde indígena.
Tal quadro revela a necessidade de uma participação e acompanhamento da
destinação dos recursos e execução das ações, por parte dos envolvidos e
destinatários das mesmas, no sentido de tentar minimizar os muitos problemas de
17 “Instituído pela Emenda Constitucional nº 53, de 19 de dezembro de 2006, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação – FUNDEB é um fundo de natureza contábil, regulamentado pela Medida Provisória nº 339, posteriormente convertida na Lei nº 11.494/2007. Sua implantação foi iniciada em 1º de janeiro de 2007, de forma gradual, com previsão de ser concluída em 2009, quando estará funcionando com todo o universo de alunos da educação básica pública presencial e os percentuais de receitas que o compõem terão alcançado o patamar de 20% de contribuição. O FUNDEB substituiu o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério - FUNDEF, que só previa recursos para o ensino fundamental.” Disponível em:
http://www.fnde.gov.br/home/index.jsp?arquivo=fundeb.html. Acesso em 18 out. 2008.
43
gestão e planejamento envolvendo a aplicação desses recursos e fomentar uma
maior transparência e visibilidade das políticas públicas para os povos indígenas,
além da capacidade de intervenção propositiva e organizada na construção dessas
políticas.
As políticas indigenistas têm que ser devidamente articuladas,
com a participação efetiva da comunidade indígena, auxiliada juridicamente pelo
Ministério Público, órgão constitucionalmente consagrado na Lei Maior vigente como
responsável por zelar pelos interesses indígenas.
1.6 O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
A nova ordem constituinte, inaugurada em 1988, respondendo ao eco de uma
sociedade desgastada por um longo período de autoritarismo e cerceamento das
liberdades individuais, rompeu o laço burocrático que prendia o Ministério Público ao
Poder Executivo, ensejando assim a gênese de uma nova dimensão da Instituição
que tem como incumbência, segundo o jargão jurídico, ser o “fiscal da lei”.
A Constituição de 1988, elaborada pelo Congresso Nacional, sob a égide da
democracia, em seu art. 127, preceitua:
[o] Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
O texto constitucional, de forma inequívoca, atribui a missão de ser o
Ministério Público a autêntica voz da sociedade brasileira, concorrendo para que a
democracia resgate na pessoa humana a dignidade. Juntamente com a nova ordem
constitucional, a edição da Lei Complementar nº. 75 de 1993, em cumprimento ao
§5º do supracitado artigo, materializa-se em marco histórico da recente “cara” do
Ministério Público.
44
Não bastasse a delimitação trazida pelo art. 127 da CF/1988, quis o legislador
explicitar o papel do MP na defesa dos interesses indígenas, incluindo dessa forma
em seu art. 129 “defender judicialmente os índios e os interesses das populações
indígenas.” Nesse sentido, atendeu o Legislador constituinte aos anseios da
comunidade indígena, pela existência de um órgão que pudesse agir de forma
independente na defesa de seus direitos, desgastados que se encontravam pelos
desmandos e atropelos praticados desde o Serviço de Proteção ao Índio – SPI,
extinto pelas inúmeras situações de corrupção e a ineficácia da Fundação Nacional
do Índio – FUNAI em promover essa defesa, seja pela falta de estrutura,
independência ou mesmo vontade política.
Esse sentimento em relação à atuação do Ministério Público Federal pode ser
aferido no texto retirado do portal do Instituto Socioambiental – ISA18:
“Enfim, é indiscutível que a inserção do Ministério Público no trato da causa indígena tem sido a mais positiva. A atuação do MPF, em especial, permitiu aos índios contar com um órgão independente, dotado de profissionais qualificados, os quais têm demonstrado honrar o cargo recebido. O órgão, no entanto, terá que se aparelhar ainda mais para lidar com as múltiplas funções que lhe vêm sendo atribuídas (e ainda serão), a fim de não comprometer o alto nível do trabalho até aqui alicerçado.
Como forma de aferir esse papel buscamos entrevistar um membro do MPF,
o Procurador da República Ubiratan Cazetta19, cujo trecho abaixo transcrevemos:
O preconceito é de toda ordem, os tradicionais: muita terra para pouco índio, os índios não sabem usar a terra, fica improdutiva, até os mais atuais: eles não são mais nem índios, nem falam a língua deles, são caboclos como outro qualquer. A reação a tudo que diz respeito a eles gera preconceito. O fato de existir um pólo de saúde indígena gera indignação, diz-se “porque o pobre tem que ir no posto e o índio tem esse tipo de atendimento”, gerando uma autêntica briga de pobres contra pobres. Você tem nessas áreas uma necessidade real de políticas sociais, assentamentos, enfim, toda sorte de carências. Nesse contexto as poucas ações que se consegue fazer em relação aos índios são tidas como privilégio, um
18 Disponível em: http://www.socioambiental.org/pib/portugues/direito/mpf.shtm. Acesso em: 02 jul. 2008.19 Entrevista concedida em 12/01/2007, tendo por objetivo um relato sobre a atuação do Procurador da República na causa indígena, especificamente sobre a extensa demanda Tembé na TI Alto Rio Guamá
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tratamento muito superior àquele que a maioria da população tem acesso, a idéia da igualdade, o que é justamente o oposto, o que deveria ser um tratamento diferenciado para trazê-los a uma posição de igualdade, reconhecer desde a dívida histórica até a necessidade de manutenção da cultura desse povos, acaba sendo visto como um padrão de “desigualação”, o que é justamente o contrário. O que deveria ser uma política afirmativa de igualação, acaba sendo visto, pelo preconceito, como um privilégio. O preconceito tem efeito muito forte na comunidade, porque eles precisam conviver, especialmente na área mais pobre, alguns já vão a escola, outras precisam se mudar para outros municípios, porque não têm mais alternativa de subsistência na área. Esse processo vai criando cada vez mais conflitos, uma perda de identidade, auto-estima, você ouvir eternamente que compõe um grupo de índios vagabundos, efetivamente não cria um bom padrão de respeitabilidade, nem de auto-estima, isso é um problema sério, que se reproduz com muita força no sul do Estado, onde você tem, teoricamente, índios ricos – Gavião, Xicrin – e aí o preconceito fica mais exposto, aqui na região dos Tembé ele existe, mas talvez como os índios estão numa situação ruim, não dói tanto. O que incomoda é a luta pela terra. Se houvesse um sucesso enorme num projeto de carbono20, por exemplo, essa realidade tenderia a se modificar, daí a necessidade de uma boa construção de diálogo com as prefeituras, para que essas pessoas possam passar a entender que isso é também uma fonte de renda para elas, a comunidade indígena se fortalecendo, naturalmente irá demandar serviços e bens que serão retirados daquela região, ou seja, motivo de benefícios para todos e não ampliação de preconceito.(...) No que se refere a políticas públicas para os povos indígenas, acho que o grande problema é a ausência dessa política pública diferenciada, isso me parece muito claro. Houve alguns momentos de discussão, eu pegaria o exemplo da construção dos pólos, dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas – DISEI. Foi iniciada uma grande discussão, se isso deveria continuar com a FUNAI ou passar para a FUNASA, daí o foco, talvez, tenha se perdido nessa discussão institucional, sobre quem tocaria o projeto. Num primeiro momento a idéia dos DISEI era muito interessante, primeiro ela garantia uma participação popular qualificada das comunidades, na teoria, haveria toda uma estrutura para que os índios possam estabelecer políticas diferenciadas, conhecer como elas estão sendo aplicadas. O problema é que mais uma vez a implementação ficou longe da realidade, por que? O termo capacitação é um termo complicado de se usar, mas faltou capacitação sim, no sentido de fazer entender quem fosse participar, qual era o seu papel, o que poderia fazer... Então os conselhos de saúde indígena, que eram e podem ser um instrumento muito interessante de saúde pública, acabaram se perdendo na implementação. Não houve uma qualificação dos interlocutores.A situação atual é melhor do que a anterior, não tenho dúvidas sobre isso, as casas indígenas, o modelo antigo, não era o modelo, mas ele ainda é uma política em implementação e que talvez, tenha se perdido no meio do caminho, por falta de conhecimento. Vejo, basicamente, duas falhas muito claras: 1) A FUNASA nunca teve atuação indígena, então faltava qualificação antropológica a quem, pela FUNASA, foi fazer isso. Houve um erro de estratégia muito claro, as pessoas não estavam preparadas para trabalhar com esse assunto, com a diferença étnica, que era o essencial do modelo, isso
20 Projeto de reflorestamento em área degradada que permite a emissão de títulos para negociação no mercado financeiro, uma das possibilidades de mecanismos de desenvolvimento limpo consolidados no Protocolo de Quioto, objeto de análise em capítulo seguinte
46
ficou perdido. 2) A briga institucional FUNAI x FUNASA acabou gerando tantos atritos que a saúde indígena ficou em segundo plano. A estrutura da FUNAI, a falta de investimentos, a falta de políticas claras indígenas, a ausência de certeza sobre o que se pretende, acabaram anulando a possibilidade dessa política diferenciada. A idéia era muito boa, ela podia ser um diferencial, mas se perdeu por falta de qualificação, rigorosamente não havia quem conhecesse a questão antropológica. Os diversos distritos envolvem etnias em situações muito distintas entre si, era essencial ter contemplado isso nessa estratégia, e na prática nunca foi. O que falta rigorosamente no Brasil é uma política efetiva, você não tem política, não sabe a rigor o que pretende o estado brasileiro com as comunidades indígenas, isso fica evidente na falta de estrutura e divisão da FUNAI, nessa questão da implantação das políticas de saúde, e acaba afetando até naquilo que seria bom. A política de saúde prevê um pagamento diferenciado, ou seja, o hospital que atende comunidade indígena recebe um plus, porque a necessidade é diferente e por diversos motivos recebem um plus, os “agentes de saúde família” que são contratados para as áreas, recebem um plus. Como resultado, você houve de prefeitos que não irão contratar aqueles agentes porque eles vão receber mais do que os outros e isso não seria justo, ou seja, é a falta de visão, não aplicar a política porque é discriminatória, o que é justamente o contrário, falta muito ainda dessa visão.Acho que acima de tudo o que existe é um enorme desconhecimento, um preconceito generalizado, um desconhecimento que é fruto e ao mesmo tempo gera o preconceito. Na hora que você explica os motivos daquele tratamento diferenciado alguns até conseguem entender e rompem com os preconceitos anteriores, mas uma coisa acaba gerando a outra e como você não tem um política clara, um objetivo claro e não tem interlocutores do lado estatal que se mantenham e tenham essa capacidade de dialogar, acho isso vai cada vez mais piorando. Hoje esse quadro está um pouco escondido, há tantos problemas que isso acaba não sendo discutido. A pauta está, ainda, não discussão prévia de manter território, estabelecer territórios e aí essas políticas acabam nem chegando a ficar claras. A discussão ainda é muito básica, tanto que nas áreas em que há demarcação, as necessidades que existem hoje são todas de políticas diferenciadas, de afirmação.
Em suma, cabe ao Ministério Público a relevante função de congregar,
juridicamente, os interesses indígenas às pretensões da sociedade, fazendo
prevalecer a convicção da importância fundamental dos povos indígenas, em seu
contexto histórico, social e cultural.
1.7 A APROXIMAÇÃO DAS POLÍTICAS INDIGENISTAS AO TEXTO
CONSTITUCIONAL
47
A percepção do quadro social, relativo aos povos indígenas, revela o quão
distante o ideal de igualdade insculpido na Constituição encontra-se distante da
realidade desses indivíduos. A construção de uma sociedade plural que aprenda a
conviver com a diferença, na qual o respeito seja a tônica das relações inter-étnica,
não pode ser esquecida, sob pena de abalarmos o alicerce de nossa sociedade, o
pilar fundante do Estado democrático nacional, a Constituição Federal. Reside,
portanto, a necessidade de elaboração de políticas públicas diferenciadas, que
possam ao menos mitigar os séculos de discriminação e esquecimento, geradores
da miséria e do extermínio dessas culturas milenares.
Elaborar políticas para os povos indígenas, almejando o sentido dirigente da
Carta Cidadã, não é simplesmente inserir um programa em um Plano Plurianual e
destinar recursos financeiros a sua execução. Se assim o fosse, a saúde indígena
com os seus R$ 1,036 bilhão, no período 2000/2005 seria, hoje, algo próximo ao
sistema de saúde encontrado nos países de primeiro mundo. Pode-se concluir que a
necessidade existente é de um autêntico concerto harmônico de instituições
governamentais e sociedade civil, voltadas a erradicar preconceitos, dialogar
diatopicamente e, por fim, instrumentos que garantam participar dessa elaboração,
desde a sua gênese até a fiscalização da utilização dos recursos destinados.
Por fim, as considerações aqui evidenciadas demonstram a necessidade de
ações voltadas à defesa e manutenção das Terras Indígenas já demarcadas, vez
que trata-se do espaço vital a esses povos. Partindo dessa premissa, um programa
inserido no Orçamento Nacional com o poético nome de Etnodesenvolvimento
deveria traduzir os anseios existentes entre os Povos Indígenas e concretizar
projetos que possibilitassem o assenhoreamento de seus espaços, a partir de
48
modelos auto-sustentáveis, garantidores de condições mínimas para uma existência
digna.
O relato da luta histórica do Povo Tembé por sua terra, remontando o Decreto
nº. 307 de 1945, exarado pelo Interventor Cel. Joaquim Magalhães Cardoso Barata,
chegando aos dias de hoje com um incontável número de demandas e conflitos,
aponta na direção da confirmação do caráter meramente poético e não concreto do
“Etnodesenvolvimento” pretendido. Os 279.000ha de Terra Indígena formalmente
demarcada e homologada, por si só, não conseguem atingir o objetivo
compromissário-dirigente da Constituição Federal. O Direito Identitário desse Povo
Indígena, enquanto Fundamental da República, revela-se agredido, violado,
demandando ações concretas que resgatem o sentido constitucional da Terra para
os Tembé.
49
2. TERRA E TERRITÓRIO: A VISÃO DOS AGENTES SOCIAIS DO PROCESSO
O objetivo deste capítulo é aferir dos documentos manuseados no
Procedimento Administrativo nº 1.23.000.000339/2005-79, foco de análise da
dissertação, a dimensão que o espaço territorial, objeto da luta Tembé, tem para
esse Povo envolvido no conflito fundiário, e a percepção desse mesmo objeto no
olhar das demais partes envolvidas.
Os Tembé foram localizados por missionários da igreja católica no ano de
1636, por ocasião da fundação, às margens do Rio Guamá, de uma freguesia, que
deu origem ao município de Ourém.
Ramo ocidental dos Tenetehara, de tronco linguístico Tupi-Guarani,
atualmente encontram-se localizados na margem esquerda do Rio Gurupi, na Terra
Indígena Alto Rio Guamá com 279.897,70 ha, dividida em dois Postos Indígenas
(PIN): Canindé e Alto Rio Guamá.
As aldeias mais populosas são Teko Haw (PIN Canindé), com cerca de 265
índios e São Pedro (PIN Alto Rio Guamá), com cerca de 160 índios.
Desde o contato interétnico inicial, não divergindo da realidade dos demais
povos indígenas, a história dos Tembé é marcada por conflitos de vários gêneros,
violências físicas e culturais, preconceito, discriminação e toda sorte de ação
predatória, típica em nossa sociedade em relação aos Povos Indígenas.
Quando o tema é terra, a ação predatória se potencializa, vez que muitos
interesses estão envolvidos, no caso Alto Rio Guamá, grupos econômicos com alto
50
poder político na região se contrapõem ao direito originário assegurado na
Constituição Federal, o indigenato21.
Existem alguns marcos históricos que delimitam a luta Tembé pela terra, em
especial, a Constituição de 1988 e a homologação e registro da Terra Indígena. No
período que antecede a atual ordem constituinte, a política indigenista foi conduzida
pelo extinto Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e posteriormente pela Fundação
Nacional do Índio (FUNAI), partindo do pressuposto de uma incapacidade civil
relativa dos povos indígenas e a necessidade de um órgão tutelar para representá-
los.
Com o advento da Carta Magna de 1988, reconheceu o constituinte o que a
realidade fática demonstrara de per si, a inexistência de incapacidade, abandonando
a perspectiva protecionista e reconhecendo a presença de uma cultura diferenciada,
a demandar atenção do aparelho estatal, possuidores de capacidade de expressão
e reivindicação de seus direitos, no caso em análise, a integridade de seu território.
Todavia, o período pré-constituição não impediu aos Tembé o exercício da
proteção do seu direito congênito à terra, mesmo antes de positivado no
ordenamento jurídico. As agressões foram inúmeras e até o presente momento não
cessaram, são invasões autorizadas pelo órgão responsável, em tese, pela proteção
dos indígenas; grandes empresas entrando na área em busca dos recursos
econômicos ali existentes; plantadores de maconha; grileiros; ocupantes de boa e
má-fé; conivência e participação do poder público, como no caso denunciado em
1971 pelo chefe do PIN Alto Rio Guamá, quando invasões eram apoiadas pelo
comissário de polícia de um povoado denominado Pau de Remo.
21 Art. 231- "São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens."
51
Com a homologação e registro da Terra Indígena Alto Rio Guamá em 1993,
no governo Itamar Franco, inaugura-se um novo ciclo de lutas, dessa feita para ver
respeitado o direito garantido formalmente, porém, ainda com o mesmo quadro
conturbado de conflitos fundiários acima narrados. A capacidade de organização dos
Tembé, no sentido de uma luta estrutural pelos seus direitos fica evidenciada a partir
das associações criadas: Associação do Povo Indígena Tembé, Associação
Indígena dos Tembé de Tomé Açu (AITTA), Associação do Grupo Indígena Tembé
do Alto Rio Guamá (AGITARGMA) e Associação do Povo Indígena Tembé
(AGTASI).
O papel das associações, ao longo da organização do movimento indígena
Tembé, chancela as lideranças locais no papel de interlocutor com as instituições
envolvidas nessa querela diametralmente proporcional à extensão da Terra
Indígena. Nesse processo de apropriação dessa forma organizativa, estranha aos
seus usos e costumes tradicionais, o Povo Tembé revela uma nova forma de
comunicação e reivindicação de seus direitos que possibilita lidar com o mundo
institucional da sociedade brasileira não-indígena, permitindo, dessa forma, tratar
não só das demandas territoriais, mas todo o complexo de direitos formalmente
assegurados e materialmente tão distantes de sua realidade.
As reivindicações formuladas através das associações e incorporadas aos
autos do procedimento administrativo em análise, são marcadas por atas de
reuniões realizadas nas aldeias e na sede da Procuradoria da República em Belém,
documentos protocolados ou entregues pessoalmente aos Procuradores com
atuação no feito, todas as formas apresentando um traço comum, serem veículos da
expressão da vontade existente naquele Povo e o firme propósito de assenhorear-se
de seu território.
52
Por vezes a inércia estatal, seja por desinteresse político ou pela inexistência
de uma administração indigenista adaptada a nova realidade Constitucional,
garantidora dos direitos desses povos, impulsiona-os a utilizar instrumentos de difícil
compreensão pela maioria não-índia – bloqueio de estradas, manutenção de
servidores públicos em cativeiro e até mesmo o embate físico. O olhar ocidental,
fomentado pela mídia comprometida com o poder econômico, procura enquadrar
essa movimentação em modelos e conceitos não existentes naquela cultura,
desprezando a idéia de alteridade, autênticos tribunais de exceção são
materializados, criando a idéia de transgressão na utilização de ferramentas, muitas
vezes, apropriadas do universo não-índio, como única forma de fazer ouvir o grito
silenciado da floresta.
2.1 OS TEMBÉ
Ao longo da instrução do procedimento administrativo há várias
manifestações Tembé, seja através de reuniões realizadas na Procuradoria da
República em Belém, documentos redigidos e encaminhados, além dos
intermediados pelo órgão e assinados pelos Tembé.
Abaixo alguns trechos de documento denominado “Declaração dos Povos
Indígenas no Pará” datado de 18.04.1995 e encaminhado ao MPF como forma de
levar suas reivindicações. O documento foi assinado, entre outras lideranças
indígenas, por Piná Tembé e Israel Tembé, e informa:
“[...] estamos lutando em defesa de nossos direitos no meio de muitos problemas que, na maioria foram causados pelos brancos[...]
Há 500 anos atrás, milhares de quilômetros quadrados de terra (o que mede o Brasil) pertenciam somente aos indígenas. Hoje nos tomaram tudo e só
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deixaram um limite mínimo para nós, onde ainda não nos deixam viver em paz.
[...]
Senhores não basta dizer que nós indígenas perdemos parte do que é nosso! Hoje a maioria dos políticos fazem campanha política oferecendo terra que nos pertence. Depois do incentivo dos políticos para a invasão vem o INCRA distribuindo título definitivo falso para os invasores.
Nossa saúde foi junta com a devastação de nossa floresta.
Nossa educação tradicional está dando trabalho para ser preservada [...]” (Vol. 01, fls. 02/03) (Grifos nossos)
Das declarações contidas no documento em análise surgem os primeiros
questionamentos, como forma de construir as reflexões necessárias à compreensão
do que venha a ser território indígena e qual o seu significado para esses Povos.
Terra e Território Indígena seriam conceitos idênticos? De que importância se
revestem as declarações ?
Gersem dos Santos Luciano (Baniwa)22 traz alguma considerações úteis a
essa compreensão:
“[...] Território é condição para a vida dos povos indígenas, não somente no sentido de um bem material ou fator de produção, mas como o ambiente em que se desenvolvem todas as formas de vida. Território, portanto, é o conjunto de seres, espíritos, bens, valores, conhecimentos, tradições que garantem a possibilidade e o sentido da vida individual e coletiva.
O território indígena é sempre a referência à ancestralidade e a toda a formação cósmica do universo e da humanidade. É nele que se encontram presentes e atuantes os heróis indígenas, vivos ou mortos.
Deste modo, podemos definir terra como o espaço geográfico que compõe o território, onde este é entendido como um espaço do cosmos, mais abrangente e completo. Para os povos indígenas, o território compreende a própria natureza dos seres naturais e sobrenaturais, onde o rio não é simplesmente o rio, mas inclui todos os seres, espíritos e deuses que nele habitam. No território, uma montanha não é somente uma montanha, ela tem significado e importância cosmológica sagrada. (2006, p.99)
22 Cf. LUCIANO, Gersem dos Santos . O Índio Brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje – Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006.
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Uma outra indagação que surge no contexto é acerca dos processos de
demarcação de Terra Indígena. Contemplariam essa demarcação formal o território
na dimensão aqui apresentada? Continuemos a nossa escavação nos documentos
em busca de respostas.
No documento enviado pela AMTAPAMA – Associação dos Povos Tupi, Mato
Grosso, Amapá, Pará e Maranhão, temos a seguinte declaração:
“Nós povos indígenas da AMTAPAWA estivemos reunidos nos dias 02 a 06 de outubro de 1995, na cidade de Marabá-PA, para tratar de vários problemas que vem atingindo os povos indígenas do Pará e de todo o Brasil.
...
Sua área está sendo devastada pelas empresas madeireiras, trazendo grandes dificuldades para a sobrevivência ...”
Nas terras do Povo Tembé a Pará Pigmento está pleiteando a construção de um mineroduto para caulim que passará pela terra do Povo Tembé de Mariquita (Tomé-Açu/PA)
“Nós junto como Povo Tembé exigimos que eles participem em todas as discussões e negociações a respeito do porjeto e que sejam devidamente esclarecidos sobre os possíveis prejuízos ao Povo e ao meio-ambiente. Caso contrário nenhum acordo terá validade.
Mais uma vez a AMTAPAMA reclama e denuncia a inoperância dos órgãos competentes em relação a:
-Área Indígena Alto Rio Guamá do Povo Tembé-PA, invadida e depredada há mais de 15 anos.” (fls. 31/32) . (Grifos nossos)
Em vários momentos da instrução do procedimento, as manifestações Tembé
são conduzidas a partir de documentos produzidos de próprio punho, como o
abaixo transcrito (fls.23 – anexo III)
No cotejo dos dois documentos, percebe-se formas distintas de manifestar
reivindicações, de um lado documentos produzidos através da mecanografia –
forma em desuso, todavia expressando, também, o longo tempo de ausência de
55
respostas às demandas. Num outro momento, documentos produzidos e grafados
de próprio punho. As formas são complementares e demonstram como os Tembé
pensam a terra, revelando o domínio do arcabouço legal, exigindo ser ouvido acerca
dos projetos a serem implementados, em alinhamento aos preceitos constitucionais,
bem como a apropriação das ferramentas legais à disposição das Instituições –
remanejamento, reassentamento, danos ambientais – no sentido do exercício de
seus direitos.
Outra forma de reivindicação encontrada nos autos são as reuniões, muitas
delas realizadas nas aldeias, das quais há registros de atas, deliberações e
questionamentos, bem como registros fotográficos dos eventos. Como exemplo
temos a audiência pública realizada na aldeia São Pedro em 21 de novembro de
1998 (Anexo XIII, fls. 43/46), que resultou em nota técnica, abaixo transcrita em
excertos, produzida pela antropóloga Elaine Amorim,23 deslocada de Brasília para
funcionar como interlocutora no evento.
“Após 20 anos imbuídos em conflito fundiário extremamente desgastante que hoje ultrapassa sua capacidade isolada de defesa, a expectativa Tembé é a de que a gravidade do problema que enfrentam seja efetivamente destacada da banalidade e devidamente recolocada na pauta de interesses das forças federais e estaduais responsáveis, buscando envolver também os municípios da Região (...)
Os Tembé vivem situação liminar, e sabem que sem uma atitude enérgica por parte dos órgãos responsáveis do Estado, sua integridade física e territorial estará seriamente ameaçada, comprometendo irreversivelmente a reprodução de seu universo cultural e simbólico. (...)
Os Tembé estão visivelmente impactados. Ao longo de duas décadas vivendo sob pressão da perda da integralidade territorial, todo o contrato que viram ser assinado não resultou em algo que efetivamente resolvesse essa ameaça...”
23 Técnico dos quadros do Ministério Publico Federal, lotada na 6ª Câmara de Coordenação e Revisão, órgão setorial de coordenação, de integração e de revisão do exercício funcional dos Procuradores da República, nos temas relativos aos povos indígenas e outras minorias étnicas.
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Reproduzo abaixo alguns registros fotográficos do evento, constantes das fls.
50/53. Essa possibilidade de registro indica a forma de acesso à aldeia e a
participação atenta dos Tembé à movimentação da reunião conduzida pelas
lideranças indígenas com o apoio do MPF.
Dessa feita, observamos a manifestação Tembé através da sensibilidade
diferenciada de um profissional da Antropologia, que pela observação e diálogo
consegue traduzir na nota técnica os anseios e o significado do espaço, não apenas
geográfico, para aquele Povo. A consignação do caráter irreversível à integridade
física e cultural, ocasionado pelos diversos conflitos existentes na Terra Indígena,
demonstra a percepção Tembé de um território como direito fundamental, revelando
fronteiras não necessariamente físicas, numa simbologia de difícil compreensão ao
universo não-indígena, extremamente vinculado a conceitos utilitaristas e
econômicos, quando o assunto é terra.
Da ata dessa audiência pública merece registro o seguinte trecho:
“[o]s quais se reuniram tendo em vista a grave situação que se encontra a terra indígena do alto Rio Guamá. O primeiro assunto tratado foi a questão da necessidade de desintrusão da área indígena, face a (sic) existência de inúmeros invasores que se encontram instalados no interior da área indígena ... Existência de problemas sociais graves na área, para tanto deve haver uma atuação importante das Prefeituras, pois os problemas persistirão enquanto as prefeituras estiverem incentivando a perenização de vilas dentro da terra indígena ... O encaminhamento foi pela criação de uma comissão que tem por objetivo um trabalho integrado para pressionar e cobrar do INCRA, FUNAI e de outros órgão públicos, com fim de efetivar a desintrusão de invasores, os assentamentos fora dos limites da terra indígena e encontrar mecanismos visando desestimular a ocupação da área indígena ... A comissão ficou composta pelas seguintes Instituições: AGITARGMA; AMUG; CIMI; SECTAM; FETAGRI; MANITESE e MPF – PRDC/PA...” (grifos nossos)
Nos termos consignados na ata da reunião é possível observar algumas
condições essenciais, apontadas pelos Tembé como forma de garantir o
assenhoreamento da terra: (1) o papel exercido pelas prefeituras do entorno que, na
57
maioria das vezes, utilizam a Terra Indígena como palanque eleitoreiro, estimulando
invasões e invertendo os papéis, construindo uma visão para sociedade envolvente
de que o Povo Tembé apropriou-se da terra que por direito seria dos trabalhadores
rurais da região; (2) a necessidade de um concerto de instituições para orquestrar
efetivamente o processo de desintrusão da área e 3) A elaboração de políticas
públicas que desestimulem a ocupação da terra indígena.
Às fls. 494/498 constatamos uma vez mais a existência de documento
produzido pelos Tembé, o qual não transcrevemos dada a possibilidade de leitura e
a eloqüência do grito emitido pelos indígenas
Nesse documento os Tembé revelam sua compreensão sobre a terra.
Expressando revolta pela presença de tantos invasores (madeireiros, cipoeiros e
caçadores), que violando o espaço sagrado encontram-se posicionados em sua
“cozinha”. Um esforço mínimo é necessário para entender os Tembé, imaginemos a
seguinte cena e a metáfora trazida aos autos se tornará mais apreensível: você está
em sua casa, preparando-se para almoçar, visualizando a culinária única, com o
cheiro e o sabor do seu lar, aguardando o momento de reunião da família para
alimentar-se física e afetivamente, quando ao adentrar a cozinha depara-se com um
grupo de estranhos comendo sua comida e quebrando seus utensílios domésticos.
Ao final da escaramuça você constata que sua família está com fome e seu
patrimônio totalmente depredado.
A idéia de casa como asilo inviolável, artigo 5º, inciso XI, da CF/88, garantia
fundamental da república é inerente à ficção aqui narrada. Ainda que sem
conhecimento dessa previsão constitucional qualquer cidadão brasileiro defende,
ainda que intuitivamente, esse conceito.
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Joênia Batista de Carvalho (Wapixana), advogada e coordenadora do
conselho indigenista de Roraima, traduz em artigo, abaixo transcrito em excerto, a
idéia suscitada no documento reivindicatório dos Tembé:
“A inviolabilidade do asilo aparece no sentido de ele ser respeitado, ter prerrogativa em virtude de não poder ser atingido, molestado ou violado. Domicílio, no sentido mais amplo, é o lugar em que temos nossa habitação ordinária, em caráter definitivo, ou pode-se tê-lo também como o centro de atividades das quais possam resultar direitos e obrigações. Considera-se este um domicílio de direito, o que é conseqüente de disposição legal.
Destaca-se, por necessário, que o conceito de casa, para fins da proteção jurídico-constitucional a que se refere o artigo 5, XI,10 da lei fundamental, reveste-se de caráter amplo, pois compreende, na abrangência de sua designação tutelar:
a) Qualquer compartimento habitado.
b) Qualquer aposento ocupado de habitação coletiva.
c) Qualquer compartimento privado onde alguém exerce profissão
ou atividade.
Nessa concepção, as terras indígenas são o domicílio por direito, a habitação necessária à sobrevivência física e cultural dos povos indígenas. Concilia-se perfeitamente com a intenção do princípio da casa como asilo inviolável, haja vista que o legislador buscou estabelecer o território como o espaço para a proteção dos índios.
Pode-se então afirmar que as terras indígenas, por natureza constitucional, devem também ter tratamento de asilo inviolável. Daí que se trata de direito fundamental, protegido também pelo princípio do asilo inviolável. Tal dispositivo consiste na proibição de nas terras indígenas terceiros ingressarem sem consentimento do morador, a não ser em condições excepcionais como previsto na lei. Essas exceções à proteção do domicílio ligam-se ao interesse da própria segurança individual (em caso de delito), ou do socorro (desastre ou socorro), ou ainda da justiça, apenas durante o dia (determinação judicial), para busca e apreensão de criminosos ou de objeto de crime.”(2006:85)24
Portanto, a Terra Indígena, para os Tembé, apresenta-se nessa perspectiva,
espaço de afirmação identitária com significados que transcendem o físico e que
não podem ser encaixados em gavetas ocidentais civilistas, patrimoniais e
econômicas, há a necessidade dos espaços suficientes ao desenvolvimento de
tradições culturais e rituais sagrados, para a pesca e a caça, atividades que só
24 CARVALHO, Joênica. “Terras Indígenas: a casa é um asilo inviolável“. IN ARAÚJO, Ana Valéria et alii, Povos Indígenas e a Lei dos “Brancos”: o direito à diferença – Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006.
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podem ser realizadas em ambientes adequados, que sem a garantia da
inviolabilidade tem como conseqüência o extermínio físico e cultural de um Povo. É
interessante observar que sem terem freqüentado os bancos de uma faculdade de
Direito, os Tembé apoiados em seu sistema jurídico e na legislação brasileira
repõem em seus termos o direito à terra que permita a existência de um território
Tembé sem invasores
A condição de servidor do Ministério Público Federal, possibilitou acompanhar
alguns momentos da presença Tembé na sede instituição em Belém, por conta de
reuniões ou encaminhamento de demandas. Em uma dessas oportunidades,25
quando era discutida a abertura ao diálogo sinalizada pelo Instituto de Terras do
Pará (ITERPA), através de uma possível disponibilização de terras estaduais para o
remanejamento das famílias de trabalhadores rurais ocupantes da Terra Indígena,
assunto a ser explicitado nos próximos capítulos, entrevistamos duas lideranças
indígenas.
Clemente Tembé, Presidente da AGITARGMA, informou:
“Na questão de todo o nosso processo da terra, um problema sério de invasão, muito tempo, desde a década ... só um processo que nós temo com o Merjer já dura 25 anos. É tão engraçado que nunca foi resolvido, até um Procurador novo falou, que tá com oito anos de trabalho, mas nunca viu um processo longo desse jeito, né. Então a gente fica também pensando porque ele foi um dos primeiros invasor que atuou na nossa área e inté hoje ninguém conseguiu tirar ele da área. a FUNAI, por exemplo, não tem esse potencial de remanejar os invasores de dentro da nossa área. Até a questão dos madeireiros que é um problema grave e nisso a gente vem batalhando, a gente perde muito tempo, vem e volta, muitas vezes a gente consegue algumas coisa, outras vez não, hoje a gente tamo nessa luta, já fizemos parceria, até com os invasores prá sair de dentro da área, a FUNAI já pagou várias indenizações, o INCRA, nesse caso também não consegue tirar todo o povo também, que a gente fala até pela organização que eu acho que não tem e também da FUNAI e talvez até nós também Povo Indígena, nós é
25 Reunião realizada em 3 de maio de 2007.
60
que geralmente tamo no fogo, na questão dos invasores, então acontece essa coisa toda. Agora a gente terminou de fazer reunião, eu não queria fala muito, os companheiro vai fala depois, parece que conseguimo alguma coisa, tem agora o ITERPA junto com a FUNAI, o INCRA e a Procuradoria, então a gente espera que de acesso de novo, agora os meus amigo, parente, pode falar.
Neto Tembé, liderança indígena, Cacique da aldeia Jacaré, disse:
A gente vem acompanhando esse processo desde 90 prá cá, então em 92 a gente iniciou um processo de demarcação da nossa área que até 92 tava parada e em 92 a gente iniciou. Em 93 foi concluída com a homologação da Terra Indígena Alto Rio Guamá, que até então era uma conquista prá gente, mas nesses anos todos até aqui a gente vem enfrentando vários problemas, né. De 92 até 2003, a gente enfrentou sérios problema na nossa área, com invasor, com madeireiro e com outras pessoas, até com tráfico na nossa área, isso aí aconteceu e inté hoje acontece. Em 2003 a gente parou e se mobilizou assim de uma forma que nós tinha que agir, né, prá gente buscar parcerias, através da FUNAI, do Ministério Público, prá gente puder conseguir tirar esse pessoal da nossa área. Então em 2003, graças a parceria com o Ministério Público, a FUNAI e outros órgãos, a gente conseguiu desintrusar uma área que vivia sufocando muita gente que era a vila do bacaba e a região do marapinim, né. Isso a gente conseguiu, nesse impasse [...] só voltando atrás um pouquinho, em 2000, a gente fazendo fiscalização na nossa área, aconteceu uma coisa que nunca vai ser esquecido por nós, a gente foi apreendido lá na vila do marapinim, do pau de remo, foi uma coisa prá nós que a gente nunca esperava, e por pouco não houve conflito, não houve morte, né, a gente conseguiu enfrentar tudo isso aí e hoje a gente tá num processo de desintrusão da nossa área, porque o Merjer, colocando um pouco, foi o primeiro invasor da nossa área indígena, então qual a resistência que nós encontra hoje de vários invasor, que nós consegue mexer com os pequeno e não com os grande. Isso é uma pergunta que eu faço, porque que as autoridades competentes, o Ministério Público, a FUNAI, não tomam uma ação contra o Merjer, que já tá comprovado que ele tá dentro da área indígena, que ele foi um invasor e a gente não consegue ter uma definição nesse processo, acho que chegou um momento da gente dar uma basta nesse processo, ou ele ou nós vai ter tem que ter direito nessa causa. A gente vê que a gente hoje tá com um processo de plaino, porque a nossa área foi toda degrada por os invasores, então a gente tem um plaino de reflorestamento de nossa área, de recuperar os rios, os igarapé, que são coisas que vai trazer aquilo que a gente perdeu, que são as coisa primitiva, nisso a gente tá pensando tudo isso aí, a gente tá correndo atrás de vários parceiros, no caso a FUNAI, tem o Ministério Público, né, tem o programa Raízes, o CIMI, são varias entidades que a gente tá tentando a parceria, prá gente correr atrás disso e tentar encontrar uma forma até de sobrevivência, né, prá nós na área
61
indígena, porque os invasor não deixaram praticamente nada, caça acabou, o peixe acabou.
Basicamente, hoje, o Ministério Público tá sendo o único parceiro que a gente tem confiança, hoje em dia todas as questões na base a gente só tem a entregar pro Ministério Público, porque se não fosse o Ministério Público prá interver em vários tipos de coisa, eu acho que já tinha acontecido coisas piores na comunidade, questões de conflito entre índios e invasores, a gente tinha várias ameças, entre 93 e 2003, aí a gente fazia a denúncia o Ministério Público com a FUNAI ia lá conversava, nisso aí houve muito esse intercâmbio do MP.
Nas declarações acima se consegue apreender, no pensamento das
lideranças entrevistadas, alguns elementos importantes acerca da relevância da
terra no olhar Tembé. O relato da violência física sofrida pela Terra Indígena através
da ação dos invasores e seus reflexos da identidade cultural é nítida quando Neto
Tembé invoca o retorno do que ele denomina de primitivo, possibilidade essa
vislumbrada a partir da implantação de um projeto de reflorestamento26, a ser
analisado no capítulo subseqüente. Para a proposta de construção dos conceitos em
evidência – terra e território – percebe-se das declarações transcritas que somente
através do asenhoreamento da terra indígena será possível garantir a sobrevivência
física do Povo Tembé e o quanto a reprodução cultural depende da manutenção do
espaço sem invasores.
O processo político e social vivenciado pelos Tembé também emerge do
contexto social, os relatos demonstram a capacidade de articulação e negociação no
sentido de garantir a terra: “chegamos a fazer parceria até com os invasores”. A
busca constante de parcerias, aliados que consigam alcançar suas expectativas e a
forma como se movimentam e organizam, revelam a maturidade política do grupo e
26 Projeto em curso, para a implementação de reflorestamento nas áreas degradas da T.I. Alto Rio Guamá, através da utilização de Mecanismos de desenvolvimento Limpo (MDL) do Protocolo de Quioto - Seqüestro de Carbono, objeto de análise em capítulo posterior da dissertação.
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ao mesmo tempo, a incompreensão de um sistema processual falido, tomando por
base suas formas de solução de conflitos. Como explicar a esses Povos – se é que
há explicação – a duração de um processo por mais de 25 anos? Que há um direito
fundamental a eles assegurados na Constituição Federal e, em tese, não deveria
haver prevalência de direitos sobre seu território, se por duas décadas e meia, por
força de artifícios processuais e inércia do judiciário, alguém de beneficia da terra
que por direito lhes pertence.
2.2 OS PROCURADORES DA REPÚBLICA
Ao longo da instrução do procedimento administrativo vários procuradores
atuaram junto aos Tembé, inicialmente José Augusto Torres Potiguar, em seguida
Ubiratan Cazetta e hoje Felício Pontes Júnior.
Foram feitas entrevistas com os três procuradores supramencionados, no
sentido de buscar o entendimento acerca do território indígena, formuladas de
maneira a não aprisionar os interlocutores em questões fechadas, dessa forma
buscou-se uma única direção, indagar acerca da atuação, deixando os
procuradores da república livres para expressar suas considerações.
José Augusto Torres Potiguar em entrevista realizada em 18 de janeiro de
2006, disse:
“[...] Eu atuei pelo Ministério Público Federal na questão dos Tembé contra o fazendeiro Mejer, justamente acho que no momento crítico, porque foi o momento em que não havia sentença no processo e no momento em que a Constituição Federal passou a tulela judicial e extra-judicial da FUNAI para o MPF.
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[...]
Na questão indígena a posição passou a ser, fundamentalmente, a de defender os direitos e interesses indígenas, no meu ponto de vista pessoal que sempre tive algum tipo de identificação com os movimentos sociais, aquilo prá mim não foi encarado como trabalho, muito pelo contrário, eu passei a visitar comunidades indígenas porque achava que tinha de sair, achava que o MPF não é era um Ministério Público de gabinete, não era isso que a Constituição queria. Então aquele momento era um momento crítico por conta disso, o índio vinha e cobrava de nós algo que não podíamos dar e que ele imaginava que a FUNAI dava para ele e que não realidade não dava, mas não dizia que não podia dar, dessa forma o nosso diálogo era um diálogo direto.
O que nós passamos a fazer, estabelecemos uma mesa, que eu não diria de reunião, mas uma espécie de comitê inter-institucional, em que mensalmente nós chamávamos para a mesa órgãos ligados a comunidade dos Tembé, nós tínhamos reuniões mensais com a Polícia Federal, FUNAI e IBAMA para tratar das questões indígenas, notadamente da questão dos Tembé, com isso nós conseguimos de uma certa maneira resolver problemas, a exemplo da estrada e reduzir um pouco as invasões, programar algumas operações para a área e dar algum tipo de resposta mais efetiva para aquela comunidade que antes não tinha nada disso. Então eu creio que a passagem da tutela do índio da FUNAI para o MPF, nos termos da CF/88, foi de uma significativa repercussão absolutamente grande e que se fez sentir em pouco tempo, basta que houvesse uma mudança de instituição, não é uma mudança de pessoas, volto a dizer as pessoas são importantes? Sim, é evidente, porque cada pessoa tem seu estilo e se você for um burocrata dentro da instituição, se efetivamente não tiver compromisso com a missão que a instituição tem, acaba comprometendo a instituição e no MPF nenhum de nós deixou de ter esse compromisso e é isso que fez com que a gente possa dizer que a passagem da questão indígena para cá fez com que a coisa realmente evoluísse. Esse comitê que a gente criou, deu resultado, operações foram feitas na área, inspeções do IBAMA com o acompanhamento da Polícia Federal. A FUNAI passou a ser efetivamente um órgão que aceitava orientações, recomendações, passou a ser um órgão executor e a coisa funcionou por aí.
Essa é uma experiência que eu vivi no que tange a questão dos Tembé e em outras comunidades também a coisa funcionou. Deu para perceber exatamente isso, enquanto você tiver uma política pública protecionista no sentido de paternalismo, a comunidade não se desenvolve acho que o órgão “tutor” não pode olhar o seu papel como algo no sentido de paternalismo, tem que olhar como proteção enquanto o índio como minoria, mas uma proteção que possa permitir a ele se desenvolver, observada sempre a sua cultura, suas condições próprias de vida, não se pense que vai se desenvolver o índio procurando introduzi-lo na cultura branca, na sociedade do meio urbano, porque você vai descaracterizar o índio, também não se pode pensar que isso significa negar educação, nada disso, ele tem todo direito de acesso aos meios de educação que todos têm, o que não se pode é descaracterizar a sua forma de cultura, sua forma de vida, que é da sua individualidade.
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Na minha atuação contra o fazendeiro Mejer Kabacnik pude perceber bastante clareza dos Tembé em relação aos seus direitos à terra, nesse conflito a atuação desse comitê foi bastante efetiva e várias operações foram realizadas por conta de invasões e explorações que geraram problemas entre supostas lideranças comunitárias das cidades próximas, vereadores que faziam a exploração ilegal de madeira e que nós procuramos combater. Por várias vezes fomos procurados por lideranças Tembé denunciando essa prática, aliás isso me parece ser uma característica ímpar dos Tembé, porque naquele momento eu cheguei a visitar aldeias na região de Altamira e era um quadro completamente diferente, enquanto os índios de Altamira, a exemplo de lideranças como Tuto Pombo que vendia madeiras por escrito e por um preço sub-faturado, em franco prejuízo de sua própria comunidade, ele Tuto Pombo, líder Kaiapó já falecido, era pessoalmente muito rico e comunidade era muito pobre, eu visitei a comunidade. Os Tembé não, eles eram contra isso, lutavam contra a exploração ilegal da madeira, buscando a preservação da floresta que tinha um significado muito grande para eles, não existia negociação entre eles e madeireiros, pelo contrário, eles vinham aqui apelar para que a gente os ajudasse a proibir a exploração de madeira. Eram essas as operações que nós montávamos dentro desse comitê que eu falei ainda pouco, para combater isso, depois recebemos aqui políticos gritando contra as operações que nós montamos e mantivemos uma postura firme, asseverando que iríamos continuar com as operações porque a idéia era garantir os direitos da comunidade indígena que estava sendo explorada com venda ilegal de madeira. Então eu acho que isso reflete a noção clara de preservação da terra e do meio-ambiente que eles tinham.
Ubiratan Cazetta em 25 de janeiro de 2007, afirma:
Isso é uma história que começa muito antes da minha atuação, devemos imaginar que o Alto Rio Guamá é uma área muito dividida internamente, na qual você tem basicamente Tembé e outros grupos menores. Em relação aos Tembé, no que se refere ao nível de contato você tem dois pólos diferentes, o pólo mais próximo do Gurupi, que é aquele que foi menos afetado do ponto de vista ambiental e de ataque direto ainda mantém um outro padrão, falam a língua, ainda tem um padrão de vida mais próxima do ideal da cultura, uma qualidade de vida em relação ao ambiente. Eles tem problemas com Paragominas, tiveram problemas com um assentamento que é o CAIPE, há problemas de plantio de maconha nas ilhas, mas é um tipo de problema que diferencia-se em termos de qualidade do pessoal do São Pedro, porque ali você tem mais de mil famílias instaladas, você tem um conflito mais próximo, o conflito com o Mejer Kabacznic e os seus herdeiros, tem também um grupo que não mais fala a língua e isso provoca reflexos no grupo, enfim, todo um contexto. A área foi demarcada formalmente em 1992 e esta área mais pobre (vamos chamar assim), essa mais desmatada já tinha esse problema sério da presença dos não-índios e de lá para cá o grosso da atuação tem sido tentar debelar os ataques madeireiros, isso pega a área como um todo e organizar essa retirada dos não-índios, nesse contexto houve momentos distintos, um momento de
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muita tensão em 1996, quando houve um incidente que é chamado de incidente do livramento, quando os índios saem numa tentativa de expulsar à força os invasores e acabam sendo presos nesse local chamado livramento, quase morrem, isso causou uma tensão muito grande. Após esse momento houve a vitória judicial contra o Mejer que causou uma melhoria nos ânimos. Esse primeiro momento, de 1996 a 2000 (vamos chamar assim), você tem uma oscilação de expectativas, houve uma expectativa grande de que isso se resolvesse porque o INCRA fez o levantamento de quem eram os ocupantes, a FUNAI tinha o levantamento de quem tinha de ser indenizado, isso logo depois da homologação. Houve então uma série de negociações com o INCRA que indicavam a realocação desse pessoal. Especialmente em 1997/1998 nós tivemos uma série de conversas com o sindicato de trabalhadores rurais da região demonstrando que não havia a necessidade de conflito, o que eu posso chamar de uma briga de pobre contra pobre, quando na realidade havia uma solução possível que era pegar esse pessoal que eram os invasores e reassentá-los em áreas do INCRA. Houve uma série de problemas, parte desse pessoal foi levado exatamente para esse PARAGONORTE, para o CAIPE, no momento em que o INCRA não tinha dado ao assentamento uma estrutura razoável, muitos desses colonos ficaram doentes, não se adaptaram ao assentamento e acabaram voltando, mesmo tendo sido indenizados e recebido lotes nos assentamentos.
[...]
Eu acho que a comunidade tem a percepção de que o Ministério Público tem se esforçado em relação a isso, mas há efetivamente um grau de ineficiência inegável, se você pegar os últimos dez anos, vou contar de 1996 para cá, em 1997 comecei a acompanhar mais de perto a situação, e digamos não tivemos um ganho qualitativo, somente uma comunidade chegou efetivamente a ser retirada e mesmo em relação a isso eu vi erros de condução muito complicados, porque as pessoas foram retiradas no momento próximo da colheita, houve um acordo de que elas poderiam voltar para retirar e isso acabou possibilitando que alguns nem fossem ou ficassem indo e vindo e o conflito estava instalado. Se pudéssemos fazer um gráfico de expectativas eu diria que elas ficaram muito fortes em 1998, 1999 e 2000, e aí quando se identificou que não havia uma interligação entre as diversas instituições, a expectativa vai caindo em relação a eficácia da nossa atividade e isso se soma aos levantamentos dos quadros que nós já tínhamos, continua a exploração madeireira, na realidade a exploração madeireira vai avançando até o Gurupi. Fora isso você vê, nesse contexto, uma falta de políticas de auto-sustentação, cada vez mais a falta de apoio em relação a fiscalização, as operações do IBAMA e da Polícia são sempre pontuais que até dão uma resposta para um determinado momento, mas que passado algum tempo já não dão mais a resposta, continuam existindo serrarias, se não dentro da área, mas no entorno, então o que hoje me chama mais atenção é que nós não conseguimos até agora fazer um concerto de instituições que efetivamente garantisse o direito dos Tembé.
O território para eles é essencial, na minha percepção os Tembé se sentem fragilizados por não ter o controle da sua área, é aquela coisa: “nós não somos donos do nosso território”. Parece ser simplificado, mas isso acaba gerando todos os demais problemas como o alcoolismo entre outros. Você está num contexto em que há 15 anos se tem um grande território demarcado, homologado, confirmado, mas há 15 anos eles não conseguem ter o uso livre dessa área, há 15 anos eles não conseguem transitar pela área, há 15 anos eles não conseguem evitar que área seja dilapidada, há 15 anos eles se encontram numa situação de pobreza evidente e lutam e lutam e lutam e lutam e o resultado é pífio. Não adianta dizer que das 1000 famílias, 200 foram deslocadas, enquanto houver uma família, o risco do confronto, esse assédio todo, o território não vai estar livre para a ocupação.
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A manutenção do quadro atual não deixa dúvidas de que irá inviabilizar qualquer tipo de identificação ou manutenção de tradições, mas a tendência é no longo prazo é de conflitos cada vez maiores e a perda da identidade.
Felício Pontes Júnior em 13 de março de 2007, informa:
Durante toda a minha atuação junto aos Tembé do Alto Rio Guamá observo como maior entrave a desintrusão da Terra Indígena a existência de plantadores da maconha na área somado a manipulação eleitoreira de políticos sem escrúpulos da região que prometem lotes dentro da área, dizendo que os índios serão expulsos de lá e colocando os Tembé como responsáveis pela falta de terra na região, numa inversão de papéis que pela ausência de informação sobre o caráter da terra indígena e seu significado acaba sendo assimilado por moradores das cidades do entorno e trabalhadores rurais.
Desenvolvi nesse tempo todo uma relação muita próxima a esse Povo, contato esse que possibilitou, por conta das inúmeras reuniões e visitas nas aldeias, perceber e ao mesmo tempo ficar angustiado com a situação deles, que sem a garantia da terra os Tembé estão fadados a desaparecer, quando falo em desaparecer não é apenas no sentido da morte cultural, mas também da morte física.
O MPF tem feito a sua parte, lutando junto com eles pela integridade de seu território, mas infelizmente isso não tem sido suficiente, a cobiça que o Alto Rio Guamá desperta nas pessoas, somado as forças dos interesses econômicos contrários a causa indígena e a inoperância de algumas instituições responsáveis pela solução dos conflitos tem desenhado esse triste quadro que ora observamos.
Nas declarações dos Procuradores é possível visualizar, guardada a
proporção de idiossincrasias, os traços constituintes de uma visão que transcende a
proteção institucional da terra indígena enquanto espaço físico formalmente
demarcado e homologado, tangenciando o seu significado cosmológico e sagrado.
“Os Tembé não, eles eram contra isso, lutavam contra a exploração ilegal da
madeira, buscando a preservação da floresta que tinha um significado muito grande
para eles.” (Potiguar) “O território para eles é essencial, na minha percepção os
Tembé se sentem fragilizados por não ter o controle da sua área, é aquela coisa:
nós não somos donos do nosso território.” (Cazetta) “Sem a garantia da terra os
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Tembé estão fadados a desaparecer, quando falo em desaparecer não é apenas no
sentido da morte cultural, mas também da morte física.” (Pontes Jr.)
Num dos fatos emblemáticos do processo, a invasão de parte da Terra
Indígena pelo fazendeiro polonês Mejer Kabaczinc, objeto de análise em capítulo
posterior quando nos deteremos nas especificidades dos conflitos anotados e suas
conseqüências, foi proposta Ação Civil Pública com o escopo de assegurar aos
Tembé o que lhes é devido por direito congênito. Da petição inicial dessa ação,
assinada por Ubiratan Cazetta e Felício Pontes Júnior, selecionamos alguns trechos
que corroboram ao entendimento evidenciado da visão ministerial sobre a Terra
Indígena:
De Direitos Fundamentais
Os fundamentos balizadores dos ditames constitucionais esposados repousam em elementos históricos, culturais e sociais. Remontam à história e à cultura dos primeiros habitantes do país, os quais foram e continuam sendo os detentores originais das glebas territoriais brasileiras. A criação de áreas indígenas, como a do Alto Rio Guamá, se revela de grande importância para a preservação dos costumes indígenas, das suas crenças, do seu folclore, das suas raízes, dos seus mitos.
De vida
Ademais, a acirrada disputa pela posse e ocupação de terras em nosso país justifica a criação dessas áreas, que servem não apenas para a subsistência material do indígena, mas também para a sua subsistência cultural e social.
De sobrevivência
A preservação das áreas intituladas como indígenas assume papel fundamental para a continuidade e perpetuação da cultura desse povo, uma vez que, desprovidos de seu habitat natural, correm sério risco de verem extintos a sua formação étnica, os seus vínculos históricos, antropológicos, religiosos etc.
De cultura
A cultura indígena é mais que artesanato e esculturas. Sua tradição de tomar decisões por consenso, seu respeito pela sabedoria dos anciãos, seu conceito de família extensa, sua crença numa relação especial com a terra, sua atenção à ecologia, suas práticas comunitárias- todos esses valores persistem, de uma forma ou de outra no interior de sua cultura, mesmo frente às enormes pressões do “mundo civilizado”. É inconcebível que práticas, como as que ora presenciamos, destruam todo esse arcabouço histórico.
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De Território
O indígena não necessita da terra, tão somente, para dela explorar seus recursos naturais; mais do que isso, a terra é de suma relevância para a preservação e reprodução de sua cultura, etnia, de suas relações sociais, de suas origens.
De dificuldades
Daí resulta que qualquer atividade que traga alterações significativas no espaço físico reservado ao indígena altera também a substância cultural da comunidade, fato que encerra um abalo moral para este povo.
Não se vislumbra aí uma simples questão de direito patrimonial, mas, também, um problema de ordem cultural, no sentido antropológico, uma vez que essas terras são o habitat dos remanescentes das populações indígenas do País.
A permanência tranqüila e pacífica deles nessas terras é condição de vida e de sobrevivência desse grupos, já tão dizimados pelo tratamento recebido dos civilizados e pelo abandono em que ficaram.
Em virtude dessa estreita relação do índio com o meio em que habita, resta configurado o profundo abalo moral experimentado pelas comunidades indígenas, decorrentes da invasão e depredação da Floresta ali presente. Tudo isso autoriza a reparação desses danos, que deve ser suportada pelo réu.
2.3 O JUDICIÁRIO
A Justiça Federal por força do art. 109, XI da Constituição Federal e
entendimento jurisprudencial consolidado no âmbito do Supremo Tribunal Federal e
Superior Tribunal de Justiça, é a instância competente para apreciar as causas que
versem sobre questões ligadas à cultura ou disputas de interesses dos Povos
Indígenas.
A Seção Judiciária da Justiça Federal no Pará tem sido o palco das disputas
travadas durante o curso da luta Tembé pela terra. Várias ações foram propostas,
num complexo processual a suscitar utilização das mais diversas ferramentas
jurídicas. Selecionamos algumas manifestações judiciais para análise, retiradas do
anexo VIII, volume formado a partir de cópias das diversas ações.
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No interdito proibitório27, interposto com o objetivo de impedir a utilização de
uma estrada construída pelo invasor Kabacznik, inicialmente ajuizado pela FUNAI e,
posteriormente, sucedido pelo Ministério Público Federal em decorrência da
promulgação da ordem constituinte de 1988. Verificamos as seguintes
considerações feitas pelo Juiz Federal Rubens Rollo, se constituem em:
“[...] Lamento, apenas, que um processo de tamanha importância se arraste por tanto tempo, sem solução, desprestigiando o Judiciário e trazendo intranqüilidade à sociedade.
Talvez um dos maiores inimigos dos índios sejam certos administradores da FUNAI que atuam contra os interesses dos silvícola, como no caso dos autos, em que aceitam que uma estrada passe por dentro de uma reserva indígena, quando é sabido que tal estrada é a via mais propícia de invasão de terras indígenas. Pior ainda, o “contrato” firmado entre a FUNAI e ora Réus atribuía aos ora Réus o dever de “fiscalizar” o acesso à área indígena.
Além de não fiscalizarem nada, os Réus passaram a invasores, o que está sobejamente demonstrado no laudo pericial, como também não impediram que outros invasores usassem da estrada para ocupar a reserva indígena.
A estrada aberta constitui facilidade para os Réus manterem seus propósitos torpes. Urge que cesse a utilização da mesma pelos Réus, pois há riscos não só ao patrimônio da União, como também à sobrevivência dos silvícolas. (Anexo XII - fls. 97/98)
O termo silvícola, consignado na decisão judicial, deverá ser relativizado em
face ao contexto temporal de sua utilização (1996), retirando-se a carga semântica
pejorativa hoje anotada28. O termo lido no contexto do processo e em conjunto às
considerações atinentes aos interesses indígenas e a relevância da Terra revela
antes ausência de conhecimento antropológico e não preconceito ou
desconsideração.
27 Espécie de ação possessória utilizada pelo possuidor que tenha justo receio de ser molestado na posse, por ameaça de turbação ou esbulho iminente.28 Sobre o assunto conferir o artigo de GUARANY, Vilmar Martins Moura: “Desafios e perspectivas para a construção e o exercício da cidadania indígena”. IN ARAÚJO, Ana Valéria et alii, Povos Indígenas e a Lei dos “Brancos”: o direito à diferença – Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006.
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Na ação de reintegração de posse proposta objetivando desintrusar a
localidade conhecida como vila da bacaba, apreciando o pedido de antecipação de
tutela,29 o Juiz Federal Glaucio Ferreira Maciel Gonçalves, assim se pronunciou:
“[...] Tendo em vista que a presença de pessoas estranhas à comunidade indígena, em área já previamente demarcada, poderá causar conflitos entre os ocupantes e os legítimos possuidores, imperiosa se apresenta a desocupação pleiteada pelo Ministério Público Federal. Os conflitos pela posse de terra, bastante comuns neste estado e muitas vezes marcados pro atos de extrema violência, podem ter conseqüências irreparáveis para os envolvidos, com gravíssimas repercussões para o país, o foco constante de pressões internacionais relativas à proteção do índio e do meio-ambiente. Desnecessário dizer que os ânimos podem se acirrar ainda mais pelo fato de que os ocupantes, como cediço, terem sido anteriormente indenizados e de já terem concordado com a desocupação. A urgência desta decisão é plenamente justificável uma vez que a situação agrava-se a cada dia. O transcurso do tempo poderá impossibilitar a desocupação pretendida, o que muito prejudicaria os legítimos proprietários da área em exame.” (Anexo XII – fls. 115)
Na ação civil pública interposta objetivando a retirada da Serraria Versátil Ltda
da Terra Indígena, bem como a suspensão de plano de manejo florestal sustentado
obtido junto ao IBAMA com base em título de terra em localização geográfica
diferente da autorizada, temos a seguinte manifestação por parte do Juiz Federal
José Airton de Aguiar Portela:
“[f]ica demonstrado, portanto, ser impossível a área pretendida pela Serraria Versátil, estar inserida no perímetro da gleba desapropriada, uma vez que o imóvel encontra-se muitos quilômetros de distância da gleba
Quanto ao fundado receio de dano irreparável, manifesta-se na exploração ilegal e desordenada de madeira, conforme constatou o IBAMA em vistoria realizada em outubro deste ano. Demais disso, o estado de perplexidade que surge decorrente das dúvidas acerca da propriedade da área, que tem provocado freqüentes conflitos entre os ocupantes da área referida.
Por tudo quanto exposto, defiro a antecipação de tutela para determinar as seguintes medidas:
1) Que o IBAMA suspenda imediatamente o Plano de Manejo Florestal nº 02018.01535/97;
2) Que a serraria Versátil Ltda, Fernando Antonio Lemos de Oliveira e José Wellington Pereira Gomes, desocupem a área imediatamente e, no prazo de 10 dias, retirem equipamentos, bens e benfeitorias úteis da Gleba CIDAPAR I, permitindo que os técnicos do INCRA realizem serviços e transitem livremente pela área;
29 Possibilidade que o Juiz tem de conceder ao autor da ação, desde o início do curso procedimental, aquilo que, em tese, somente lhe seria concedido no momento cabível, ou seja, na prolação da sentença.
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3) A prisão em flagrante em relação aos réus ou quaisquer pessoas que impeçam que os técnicos do INCRA realizem os atos lícitos acima determinados, por configurar crime de resistência qualificada.” (Anexo XII – fls. 157)
Em que pese a verificação em todas as decisões aqui consignadas de
provimentos jurisdicionais favoráveis em primeira instância aos interesses Tembé,
em função dos incontáveis artifícios processuais existentes em nosso ordenamento
jurídico, habilmente manejados, bem como o tempo demandado para julgamento
no 2º grau de jurisdição, os processos arrastam-se, na sua grande maioria, por anos.
Das ações aqui colocadas em relevo apenas a que tem por objeto a
desintrusão da área denominada Vila da Bacaba obteve o resultado prático
consignado na decisão, ou seja, atualmente os Tembé ocupam a referida região. No
caso Mejer Kabakzinc, a ação possessória encontra-se no Tribunal Regional Federal
da 1ª Região, em grau de recurso, aguardando o voto da relatora desde 2005, sendo
que em 2007 a ação “comemorará” vinte e cinco anos de sua materialização no
mundo jurídico.
Para Serraria Versátil o quadro é de uma festejada antecipação de tutela, nos
termos aqui epigrafados, todavia de curta duração em face da sua revogação no
Tribunal Regional Federal da 1ª Região em 17 de fevereiro de 2006, sob a
argumento de que o transcurso do tempo na ocupação da área não justificaria o
provimento.
Das decisões aqui relacionadas – primeiro grau de Jurisdição – é possível
aferir algo de sensibilidade jurídica no que se refere aos direitos dos Tembé, contudo
a visão apresentada não consegue tangenciar o sentido que um território indígena,
72
com suas fronteiras não necessariamente físicas, apresenta-se para os Povos
Indígenas. Via de regra, as decisões remetem-se as espaços físicos demarcados,
numa ótica meramente patrimonial e civilista, sem atingir a dimensão coletiva e
simbólica da terra.
2.4 OUTRAS MANIFESTAÇÕES
Buscamos a análise dos momentos de manifestações das demais instituições
envolvidas no sentido de garimpar um entendimento acerca de Terra e Território
Indígena. Muitas operações foram realizadas, envolvendo FUNAI, INCRA, Polícia
Federal, Polícia Ambiental e IBAMA entre outros.
Dos documentos protocolados pela FUNAI apenas conseguimos aferir o
aspecto instrumental da instituição: relatando, peticionando, inspecionando, presente
em reuniões, oficiando, as manifestações, via de regra, referem-se a: picos
demarcatórios, portarias ministeriais, resoluções, competência, regularização
fundiária, descentralização de recursos, dotação orçamentária, levantamento
cadastral, indenizações, entre outros.
A título de exemplo das constatações alguns trechos do Despacho nº
018/DFU/AERBEL30, assinada pela Engenheira Agrônoma Edna Miranda Ferreira,
constante do anexo III. O documento é provocado por uma reunião ocorrida na sede
da Procuradoria da República com a presença de diversas instituições e
representação dos colonos ocupantes da Terra Indígena:
“Observamos que esse documento contém 07 (sete) itens que ficaram acordados e portanto deverão ser cumpridos pelos Órgãos Públicos e Entidades representativas presentes à Reunião no prazo estipulado (ver
30 Departamento Fundiário (DFU) Administração Executiva Regional de Belém (AERBEL)
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último parágrafo do documento). Contudo, ao meu ver, a FUNAI foi pega como “bode expiatório”, e os mais prejudicados serão sem dúvida nenhuma seus assistidos os “INDIOS TEMBÉ”, senão vejamos: Quem arcará com as despesas da comissão para executar levantamento dos ocupantes não índios da Terra Indígena?
O MPF solicitará uma operação conjunta DPF/BPA/IBAMA/FUNAI, fim coibir extração legal de madeira e plantação de maconha no interior da TI, como sempre mais uma vez a FUNAI arcará com essa despesa, ou não?
...
Há 17 (dezessete) anos (01/08/86), que labutamos nesta Instituição, na Divisão Fundiária, e sempre voltados à Questão Indígena, principalmente com a etnia Tembé da Terra Indígena Alto Rio Guamá, (e conhecemos um pouco de sua história, desde sua atração à Regularização Fundiária de seu Território), e por isso, nos sentimos na obrigação de não concordar com esse documento e seus itens, que ao nosso ver, como supra mencionado, somente prejudicará os trabalhos ora em andamento desta Administração (S.M.J), causando grande decepção e desgosto para toda Comunidade Indígena.” (fls. 335/338)
Da operação conjunta acima referenciada foi produzido pelo batalhão de
polícia ambiental do estado do Pará relatório intitulado “Operação de desintrusão
das Terras Indígenas Alto Rio Guamá Módulo A”, assinado pelo 1º Tenente Luiz
André Cordeiro Absolão, comandante da operação:
“... OBJETIVO: A operação teve por objeto realizar policiamento preventivo na reintegração de posse de terras indígenas invadidas por famílias não-índias, e conseqüentemente manter as áreas desocupadas, garantir a integridade física e moral de alguns índios ameaçados de morte na cidade de Capitão Poço bem como realizar procedimentos fiscalizatórios de caráter ambiental
[...]
Ao longo dos últimos anos os índios Tembés (sic) vem sofrendo situações antagônicas aos seus modus vivendi, em suas terras, situações estas que refletem de maneira desfavorável aos seus aspectos sócio econômico cultural ambiental e principalmente a sua segurança, vindo a culminar, no decorres dos anos, em reações dessa população movendo ações na justiça, retenção de veículos e até manutenção de reféns, fato mais recente em suas aldeias como forma de provocar uma ação governamental mais efetiva, para garantir sua segurança que encontrava-se a cada dia mais comprometida no usufruto legítimo de suas terras.” (fls. 179/195)
Nesse trecho do relatório é possível perceber a atividade policial e sua
compreensão da Terra Indígena a partir da ótica da segurança. A integridade física
74
e cultural, referência da atividade policial, é indissociável à integridade territorial pela
qual a missão foi deslocada até o Alto Rio Guamá. Ao que tudo indica o contato do
Batalhão de Polícia Ambiental com a realidade fática da região foi traduzido nos
termos em que esse espaço vital é mencionado no relatório em evidência.
No que se refere aos documentos manejados pelas demais instituições –
INCRA, IBAMA e Polícia Federal, em razão de seu caráter técnico, serão analisados
nos capítulos específicos, atinentes aos conflitos e reflexos ambientais da Terra
Indígena.
Buscamos ao longo da exposição trazer elementos que auxiliassem a
construção, a partir da visão individualizada dos agentes sociais envolvidos na luta
Tembé pela terra, de uma percepção necessária ao elemento essencial,
fundamental por definição constitucional, à materialização dos direitos identitários
assegurados aos Povos Indígenas: o Território.
Território compreendido como espaço comunitário e sagrado, através do qual
desenvolve-se uma relação com a natureza em que os elementos ali existentes: rios,
árvores, montanhas, animais, igarapés têm um elevado significado, representando a
diferença entre a vida e a morte para esses Povos, em nada guardando semelhança
aos conceitos de acumulação de riqueza e busca da satisfação de interesses
pessoais em troca da miséria de muitos, tão comumente observados na sociedade
não-indígena.
Terra Indígena, portanto, é um conceito jurídico formatado dentro da lógica-
formal de um sistema jurídico construído por não índios. Representa, dentro do
movimento indigenista brasileiro, esse espaço de resistência à dominação colonial,
instrumento legal de luta, que possibilitou a aproximação de povos historicamente
75
inimigos, buscando a unidade da luta, todavia não podendo ser confundido com
Território que apresenta-se numa perspectiva mais ampla de apreensão simbólica,
contendo o conceito jurídico Terra Indígena, todavia ampliando-se em fronteiras
vinculados a cosmologia sagrada desses Povos.
Nesse espaço viveram seus ancestrais, sua história se desenvolveu e é
apreendida através de narrativas orais, transmitindo-se, reproduzindo determinada
cultura. Um acidente geográfico tem todo um sentido simbólico e mítico a
representar afirmação identitária, derrubar uma árvore, implodir um rio tem um
significado dificilmente compreendido por quem não se permite uma imersão nos
usos e costumes dessa cultura, na busca do entendimento da dor e violência cultural
representada por atos, que no olhar não-índio, tão pouca relevância apresentam.
É perceptível esse significado para os Tembé, todo o processo de resistência
à invasão de suas terras por mais de quatro décadas, os muitos momentos aqui
descritos de manifestação, a forma incansável e aguerrida na busca de
assenhorear-se desse espaço revelam a dimensão e a importância vital que o
Território no qual está contida a Terra Indígena Alto Rio Guamá representa para
esse Povo.
76
3. OS CONFLITOS: MEMÓRIA TEMBÉ E A LUTA PELA TERRA
A saga dos Tembé do Alto Rio Guamá em ver materializado seu direito à terra
confunde-se com a palavra conflito. Passados 43 anos, quando em 21 de março de
1945, o então Interventor Federal do Pará, Coronel Antônio Magalhães Cardoso
Barata exarou o Decreto nº 307, reservando aos indígenas uma faixa de terra à
margem direita do Rio Guamá, até alcançar o Rio Gurupi em sua margem esquerda,
múltiplos conflitos, ainda, continuam a marcar a história desse povo.
As violências anotadas são múltiplas: fundiárias, físicas, sociais, ambientais,
culturais, étnicas e econômicas. Ação predatória se dá a partir da inércia Estatal que
permite concretizar no cotidiano dos Tembé fome e miséria, reflexo dos constantes
ataques sofridos. Todavia, esse movimento violento, recebe sempre uma resposta
dos indígenas, a partir do exercício do direito de resistência como forma de buscar a
materialização de seus direitos fundamentais, constitucionalmente assegurados.
No presente capítulo tenciona-se, a partir do recorte de alguns conflitos – os
mais emblemáticos, narrar e analisar criticamente a pressão externa sofrida pela
terra indígena, a organização Tembé na defesa de seu território e a atuação do
Estado na solução desses conflitos.
3.1 MEMÓRIA TEMBÉ
No sentido de melhor posicionar o contexto atual dos Tembé e facilitar a
compreensão de seu processo histórico, necessário se faz buscar, a partir de uma
cronologia de fatos – jurídicos ou não, construir uma memória hábil a
instrumentalizar os operadores do direito na busca da única resposta possível ao
77
caso concreto31 (Dworkin, 1999) e que da mesma forma possibilite ao universo não-
indígena desconstruir clichês preconceituosos e refletir acerca do modelo econômico
e político reproduzido na amazônia, que se apropria da terra, por vezes
criminosamente, tão-somente numa perspectiva economicista, propagando um
ilusório desenvolvimento que apenas reflete as chagas dos problemas sociais,
ambientais e culturais da região.
Em outubro de 1861, data que marca os primeiros contatos registrados, os
índios Tembé da Aldeia Tracuateua, localizada no Alto Gurupi matam 9 pessoas de
um regatão, motivados pela ação exploratória daqueles e principalmente porque os
regionais abusavam de suas mulheres e raptavam as crianças. A policia de Vizeu foi
ao local, espancando vários índios e transferindo 9 crianças para Vizeu. Os adultos
fugiram para a mata e a aldeia desapareceu. Ciente do ocorrido o Presidente
Brusque determinou a retirada dos regatões e reuniu os índios em nova aldeia
denominada Santa Leopoldina. No Alto Gurupi foram registrados 16 aldeamentos e
pesquisadores faziam referências a vários Tembé ainda em estado de isolamento
Já no século XX, surge o S.P.I. ( Serviço de Proteção ao índio ), substituindo
parcialmente a presença de missionários católicos no trabalho com os indígenas e
amiudam-se as referências aos Tembé. O inspetor regional do SPI, menciona a
existência de Tembé no Rio Surubiju ( Capim ) divididos em pequenas aldeias de 3 a
4 famílias. No Rio Acara-Mirim o SPI encontrou mais 106 índios Tembé. Com a
31 Dworkin constrói sua abordagem do direito como integridade em contraposição às manifestações do direito como relatos factuais do convencionalismo (voltado para o passado), negando, também, os programas instrumentais do pragmatismo jurídico. O direito como integridade volta-se tanto para o passado como para o futuro, interpretando a prática jurídica contemporânea como uma política em processo de desenvolvimento. Para o autor os juízes não descobrem ou inventam o direito, identificam os direitos e deveres legais até o limite do possível, partindo do pressuposto de que foram criados pelo mesmo autor, denominado de “comunidade personificada”. Nesse sentido o direito como integridade avalia as proposições jurídica como sendo verdadeiras se elas constam ou derivam de princípios de justiça, de equidade e do devido processo legal, que oferecem melhor interpretação construtiva da prática jurídica da comunidade
78
criação dos Postos Indígenas pelo SPI os índios foram abandonando suas antigas
aldeias e instalando-se ao longo do curso médio do Gurupi.
Na década de 20 levas de nordestinos fugindo da seca migram para a região
amazônica o que iniciar o processo de ocupação do território tradicional dos Tembé.
Capitão Poço, hoje uma prospera cidade próxima da Área Indígena teve sua origem
em 1945 quando foi doada para 15 colonos nordestinos. Segundo depoimento de
índios mais velhos naquela região era um local tradicional de caçada dos Tembé.
Em 1920, o pesquisador Hurley informa da existência, no Rio Guamá da
Aldeia Tembé denominada São José da Cachoeira Grande, chefiada pelo índio
Quintino Felipe dos Santos. No Rio Uraim, afluente esquerdo do Gurupi os Tembé já
se relacionavam maritalmente com negros de Grajaú e cearenses. Mais abaixo, no
povoado de Itamarauary as mulheres Tembé viviam maritalmente com negros da
região.
O avanço das frentes de expansão representa preocupação crescente tanto
para os indígenas quanto para os funcionários do SPI até que, em 1940, ainda que
sob critérios antropológicos questionáveis, o chefe da Inspetoria Regional do SPI,
José Maria da Gama Malcher requereu uma reserva de terras, entre a margem do
Gurupi, para os índios Tembé, Timbiras, Urubu e Guajá.
Em 21 de março de 1945, o interventor federal no Estado do Pará, coronel
Joaquim de Magalhães Cardoso Barata, emite o decreto 307 reservando para os
Tembé, Timbiras, Urubu e Guajá uma faixa de terra à margem direita do Rio Guamá
e esquerda do Gurupi, conforme reservado cinco anos antes pelo SPI.
Os Tembé a época formavam 3 grupos ocupando as margens dos rios Acará-
Mirim, Guamá e Gurupi. Na mesma região, das margens do Guamá até seu curso
médio, já viviam uns poucos sitiantes, além dos regatões, extratores de madeira,
79
resina e cipó, que atuavam, sempre fora dos limites definidos pelo decreto 307. Já
no Gurupi, a dificuldade de acesso mantinha o isolamento da comunidade indígena
e a região permanecia quase inalterada na época da definição dos limites.
A política do SPI incluía o pagamento de salários aos índios para trabalhar
nas roças e na abertura de uma estrada que ligaria o Guamá ao Gurupi. Nas
décadas de 40 e 50 as atividades de caça e pesca já vinham decaindo muito na
região, devido a constante presença de caçadores de pele e madeireiros. O peixe já
era escasso devido a poluição do rio por carcaças de gado. Os Tembé recorriam,
então, à cantina do Posto Indígena, onde vendiam sua produção e compravam o
necessário para o sobrevivência.
Nos anos 50 de Juscelino Kubitschek e da opção rodoviária, a Amazônia
passa a ser alvo do desenvolvimento encomendado pela tecnoburocracia brasileira
e o grande salto para ocupação da região é dado com a construção da estrada
Belém-Brasília. Da rodovia, brotam muitas vicinais para facilitar a movimentação de
levas de brasileiros procedentes de outras regiões.
Além do investimento em estradas, o Governo Federal, sempre guiado pelas
noções de vazio demográfico, região desocupada, que carimbavam a Amazônia,
passa também a estimular a implantação de grandes projetos agropecuários. Tudo
isso, aliado à própria política do SPI de estimular a entrada de não-indígenas, para
aumento da produção de alimentos, aumentou o atrito entre índios e não-índios,
nem sempre conflituoso, como se pode verificar pelos inúmeros casamentos
interétnicos registrados nessa época.
Já havia, no entanto, pontos consideráveis de conflito, fruto principalmente da
desordem fundiária da região, que se tornava então combustível para potenciais
crises graves com a afluência crescente de migrantes. Como exemplo pode-se citar
80
o fato de que, sobre a região doada para os índios em 45 por Magalhães Barata,
incidia parcialmente a gleba Cidapar, loteamento que englobava várias fazendas em
um total de 387.355 ha, 127.000 hectares deles totalmente encravados na Área
Indígena Alto Rio Guamá. Essas mesmas terras foram negociadas várias vezes no
decorrer dos anos, chegando finalmente às mãos da empresa South American
Garde que pretendia trabalhar com recursos minerais. Para fermentar a indefinição
fundiária, após a falência do projeto minerário, 108.900 há das terras foram
arrematados por Moacir Pinheiro Ferreira.
Na década de 70 do século passado, intensifica-se o processo de ocupação
da região amazônica, com a noção de vazio demográfico se refinando em lema
nacional com o slogan " Terras sem homens para homens sem terra”. Grandes
projetos foram planejados e executados em gabinetes a quilômetros de distância da
região, prevendo um futuro brilhante para uma área supostamente vazia, ignorando
a realidade fática de ocupação secular das terras amazônicas e promovendo
violências intoleráveis contra esses ocupantes.
Em pleno vigor do regime militar e da política de ocupação da Amazônia, o
SPI entra em colapso, sendo substituído pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI).
Com isso, os projetos desenvolvimentistas implementados vão a falência, o Ponto
Indígena é abandonado e os Tembé retornam às atividades tradicionais de
subsistência, contando, porém, com recursos mais escassos em uma área
degradada e ocupada. Outras estradas perpendiculares à Belém-Brasília, como a
rodovia Pará-Maranhão e a Bragança-Vizeu, potencializam, ao mesmo temo, o
avanço das frentes colonizadoras.
As levas de migrantes são acompanhadas por questionamentos mais
frequentes e fortes sobre o direito dos Tembé ao território. O próprio presidente da
81
recém-nascida FUNAI, general Bandeira de Melo, propõe ao Governo do Estado a
desinterdição da Reserva Alto Rio Guamá, argüindo que lá não haveriam mais
índios. E obteve o intento, concedendo uma área de 11.000 há entre os rios Coaraci-
Paraná e Gurupi para a Companhia Agropecuária do Pará.
Mesmo assim, em 1972, tem início a demarcação da Área Indígena pela
FUNAI e desde esse primeiro instante, o trabalho dos demarcadores é complicado
por protestos de invasores que alegavam ter propriedades no interior da Reserva,
sendo necessária a presença da polícia para o avanço dos topógrafos. A empresa
responsável pela demarcação , por problemas contratuais, só retomará os trabalhos
em 1974. Nesse ínterim, a invasão da Área atinge níveis cada vez mais
preocupantes, a ponto do Chefe do Posto pedir ajuda ao Prefeito de Ourém para
contê-la. Não foi atendido.
No mesmo ano, diligências da Polícia Federal mostram a abertura de
caminhos clandestinos no limite leste da Reserva, a retirada ilegal de madeira por
pessoal da própria empresa responsável pela demarcação, a formação de povoados
com mais de 2.600 invasores (Água Preta e Patrimônio) e a influência de políticos e
comerciantes sobre invasores. Enquanto as invasões cresciam sensivelmente, as
idas e vindas adiam a demarcação, que só é concluída em agosto de 1976.
3.2 MEJER KABACZNIK
É também em 1976 que têm início um dos conflitos mais graves tendo como
motivo a disputa pelas terras dos Tembé. O fazendeiro Mejer Kabaczink, proprietário
da fazenda Irmãos Coragem, com uma área total de 18.000 hectares, começou a
abrir uma estrada que se tornou acesso privilegiado para a invasão do território
indígena pelo limite leste e frente de confrontos que perduraram até os anos 2000
82
Kabacznik, ajudado pela ineficácia da União na defesa do território indígena e
promovendo alianças de ocasião com ocupantes de boa-fé ou de má-fé, criou
ameaças concretas de esbulho contra a posse dos Tembé sobre suas terras que
ainda permanecem. Através de um acordo, ainda em 1976, com a presidência da
Funai em Brasília, concluiu a abertura da estrada. Pelo acordo, a estrada seria
incorporada ao patrimônio indígena, o fazendeiro poderia utilizá-la por tempo
indeterminado, mas em troca, abriria uma via secundária ligando a estrada à aldeia
e forneceria sementes, assistência técnica para plantio e compraria a produção dos
índios pelo preço de mercado.
Ao mesmo tempo em que garantia a estrada num acordo legalmente
duvidoso, Kabacznik, descrito pelo Ministério Público Federal em uma Ação Civil
Pública posterior como um fazendeiro polonês de “espírito devastador” e grande
“esbulhador de terras indígenas”, aumentava sorrateiramente os limites de suas
terras, avançando sobre o território indígena. O fato ficou evidente quando a Funai,
com ajuda dos índios, tentou desalojar alguns invasores que haviam se instalado ao
longo da estrada construída por Kabacznik. Os invasores resistiram argumentando
que as mesmas providências deveriam ser tomadas contra o dono da Irmãos
Coragem, porque ele havia ampliado suas terras afastando os marcos
demarcatórios.
Data dessa época a primeira tentativa de reassentamento dos ocupantes de
boa-fé, com a Funai e o Instituto de Terras do Pará se aliando para tentar levar os
posseiros da comunidade Água Preta para uma área pública que começa a ser
demarcada em 1979. Também nessa época se registra, novamente, a interferência
de políticos na questão, por motivos evidentemente eleitorais. O deputado Brabo de
Carvalho assumiu a defesa dos invasores e favoreceu sua forte resistência.
83
Kabacznik protagoniza as primeiras batalhas jurídicas a respeito do que
futuramente seria a Terra Indígena Alto Rio Guamá. Ainda em 1979, a Funai ajuiza
uma ação de reintegração de posse cumulada com perdas e danos, para recuperar
a faixa de terra Tembé para onde se moveu a cerca da fazenda Irmãos Coragem. E
também pede um interdito proibitório para impedir a utilização das estrada, alegando
descumprimento de contrato. Com apoio de força policial, a estrada acabou
interditada, o que iniciou um terceira ação judicial, de Kabacznik contra a Funai.
O litígio com a União, que hoje encontra-se em fase recursal junto ao TRF da
1ª Região, tramita com o número 1998.01.00.004536-0. Durante o trâmite
processual, o autor e patriarca dos Kabacznik, Mejer, veio a falecer. Contudo, na
descrição feita pelo Ministério Público Federal, “a sanha destruidora transferiu-se
aos seus herdeiros”
Através da referida estrada, a família favoreceu invasões e roubo de madeiras
na reserva indígena por décadas. Os herdeiros de Kabacznik, Samuel e Yossef, são
ambos réus em ações judiciais após novos episódios depois do ano 2000. Como se
pode perceber nos relatos do Ministério Público Federal à Justiça Federal em três
ações judiciais iniciadas em 2000 e 2001, a Polícia Federal seguidas vezes
encontrou focos de desmatamento ilegal abertos através dessa estrada.
“Em meados do mês de novembro de 2000, uma equipe de Policiais
Federais, com o intuito não só de acompanhar os trabalhos de aviventação do limite
leste da Terra Indígena Alto Rio Guamá, como, também, de apurar a
responsabilidade criminal pela extração irregular e furto de madeira, ocorridas dentro
dessa Área Indígena, dirigiu-se ao acampamento situado na localidade Vila do
Pedrão, no Município de Viseu/PA, ocasião em que formalizaram a apreensão de
alguns instrumentos, documentos, 1 trator - tipo pá carregadeira, 1 caminhão e
84
algumas motosserras, os quais se encontravam no território indígena, conforme
demonstram cópias do Inquérito Policial que seguem em anexo” (Ação Civil Pública
do MPF contra Samuel Kabacznik e Indústria de Sabões e Óleos Santa Izabel Ltda,
processo nº 2001.39.00.002167-0) .
A ação registra a existência ainda de um Termo de Compromisso Irrevogável,
celebrado por Samuel Kabacznik e colonos da região, conferindo ao primeiro o
monopólio da reserva de madeiras existentes na região. Em contrapartida, Samuel
deveria efetuar a construção de uma estrada que interligaria o povoado de Guajará
com o de Marajupema. O acordo tinha o apoio da Prefeitura Municipal de Cachoeira
do Piriá. Além da ação em que figura como réu ao lado da Indústria de Sabões
Santa Izabel, de sua propriedade, Samuel Kabacznik respondeu a mais duas ações
civis, uma delas ao lado da Artemasa – Artesanato de Madeiras da Amazônia LTDA,
todas por desmatamento ilegal na área indígena32. Samuel Kabacznik responde
também a processos penais33 por reduzir trabalhadores a condição análoga a de
escravos, por furto de madeira. Nesse último também é réu seu filho, Samuel
Kabacznik Jr.
3.3 INDEFINIÇÃO DE LIMITES
Boa parte das conflitos, concretos e jurídicos, que os Tembé tiveram de
enfrentar para manutenção do território de reprodução de seu povo, tem origem na
indefinição fundiária e nas idas e vindas da política indígena governamental. A mercê
de vontades políticas externas, os Tembé assistiram à chegada de mais e mais
32 Processos 2000.39.00.001150-5 e 2001.39.00.002167-0, por danos ambientais, movidas pelo Ministério Público Federal buscando recomposição dos danos e responsabilidade civil dos réus.
33 Processos 2004.39.00.009995-7 e 2005.39.00.003812-0
85
invasores e a doação das terras feita pelo governo paraense em 1945 não bastou
para o reconhecimento do direito dos indígenas. ,
Além dos confrontos com os Kabacznik na divisa leste, os Tembé tiveram que
enfrentar a sobreposição das terras da gleba Cidapar sobre as suas próprias. As
terras da Companhia de Desenvolvimento Agropecuário, Industrial e Mineral do
Estado do Pará, fundada por Moacir Pinheiro Ferreira em 1970 e falida uma década
depois, foram palco de alguns dos acontecimentos mais sangrentos na turbulenta
história agrária do Estado do Pará. Os Tembé foram, evidentemente, afetados.
Demarcada em 1964, a hoje chamada gleba Cidapar foi repassada, após a falência,
para o banco Denasa, que convidou outras empresas para implantar projetos na
região, inclusive dentro da TI Alto Rio Guamá, na região entre os rios Piriá e Coaraci-
Paraná.
O Governo do Estado do Pará, o Incra e a Funai questionavam judicialmente
a posse da fazenda, já que o Iterpa havia descoberto graves irregularidades na
cadeia dominial da propriedade. A presença da empresa e dos milhares de posseiros
atraídos para a região pelas políticas de colonização do Governo Federal e a
indefinição fundiária no entorno da Reserva Indígena prepararam o caldo para o
conflito.
Entre 1982 e 1984, uma milícia privada, comandada pelo tristemente famoso
James Vita Lopes, passou a fazer a “segurança” da área da Cidapar. Os posseiros
da região tem que enfrentar então uma rotina de barbaridades e demonstrações
violentas de força. É nesse cenário que surge a figura do líder Quintino Silva Lira,
que se autodenominava gatilheiro em oposição aos pistoleiros de Vita Lopes, contra
quem reagiu em defesa dos posseiros. O “matador de cabra-safado” construiu uma
mitologia no imaginário popular daquela região paraense. Durante os anos em que
86
resistiu, perseguido pela Polícia Militar e pelos pistoleiros, foi protagonista de
narrativas fantásticas sobre sua capacidade de desaparecer ou se transformar em
animais, até ser assassinado em 1985, numa emboscada da PM. Dois anos depois,
em 1987, o adversário de Quintino, James Vita Lopes, seria responsável pelo
assassinato do deputado estadual Paulo Fontelles, em mais um episódio
relacionado com a luta pela terra.
O calibre do conflito que colocou em lados opostos Quintino e Vita Lopes
mostra bem a complexidade da disputa pela terra em todo o Pará e, particularmente
entre as décadas de 70 e 90, nas vizinhanças da Terra Indígena Tembé, até então
com situação jurídica frágil. O crescimento da população só se intensificava,
transformando o entorno da área em barril de pólvora. A medida que as levas de
migrantes se assentavam, geralmente de forma irregular, novos municípios nasciam,
já em berço tumultuoso. Os Tembé antes vizinhos apenas das antigas Ourém e
Viseu, entre os anos 60 e 90 do século XX testemunharam a emancipação de
Paragominas (1965), Garrafão do Norte (1988), Nova Esperança do Piriá (1993) e
Santa Luzia do Pará (1993).
Nesse período, a posse de seu território atravessou muitas turbações e a
indefinição do governo sobre a demarcação. Em 1985, a Funai havia definido, com
base no trabalho de topógrafos e agrimensores, uma área de 280.000 ha para os
Tembé, 11.000 hectares a menos do que a área doada pelo decreto 307/45
Em 1988, com a promulgação da Constituição-cidadã e o estatuto do
indigenato, as reivindicações Tembé assumem força, apesar da presença intensa de
intrusos no território indígena. Nesse ano, o presidente da República à época, José
Sarney, declara de interesse da reforma agrária a gleba Cidapar, mas exclui dos
87
efeitos do decreto a área sobreposta à Terra Indígena, criando um entrave aos
interesses políticos e econômicos regionais.
Mesmo assim, a tecnoburocracia nacional encontra uma maneira de
acomodar esses interesses e, ainda em 88, os Tembé sofrem um grave revés com a
criação das colônias indígenas Guamá e Canindé, com 83.125 ha e 125.000 ha,
respectivamente, excluída a região sobreposta à gleba Cidapar. A manobra se
concretizou através das portarias interministeriais 138-A e 139-A, do ministro do
Interior, João Alves Filho, e do ministro da Reforma Agrária e Desenvolvimento,
Jader Fontenelle Barbalho.
Essa portaria serviu de base para um processos jurídico, um entre os vários
enfrentados pelos Tembé após a demarcação, contra o município de Nova
Esperança do Piriá, que questionou, como vai se ver a frente, o direito dos índios
justamente à faixa de terra “liberada” para os não indígenas pelo “arranjo”
interministerial.
3.4 NOVA ESPERANÇA DO PIRIÁ
Só em 1990, pela portaria 577 da presidência da Funai, ficou garantida
oficialmente a integridade do território Tembé, com a interdição dos 279.000 hectares
originais e a exclusão de todos os intrusos, colonos ou não. Mesmo assim, o
processo de homologação do território demarcado ficou parado até 1993, ano em
que saiu o decreto presidencial.
Nesse meio tempo, índios Tembé, Timbira e Kaapor, assustados com a
proximidade cada vez maior entre os invasores e suas aldeias, passam a procurar
com mais frequência as autoridades federais, pedindo providências quanto ao
processo do fazendeiro Mejer Kabacznik, e também contra ladrões de madeira,
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plantadores de maconha e colonos. Os relatos deles mostram seu desespero:
posseiros queimava roças a 100 metros da aldeia e as madeireiras não paravam de
entrar na área. Resolvidos a lidar concretamente com o problema, em 1992 os
Tembé chegaram a organizar sozinhos uma missão de fiscalização, flagrando 2
caminhões, várias motoserras e duas máquinas de serraria, além dos madeireiros,
dentro de sua área.
A atitude dos índios provoca a reação dos servidores federais envolvidos na
questão e realiza-se na aldeia-sede, em 1992, uma reunião em que se fazem
presentes o administrador regional e o advogado da Funai, um representante do
Ibama e outras autoridades não-índias. Nessa ocasião os índios decidiram, além de
manter a fiscalização por conta própria, preparar uma comissão para ir até Brasília.
A visita dos indígenas do Alto Rio Guamá a Brasília aconteceu agosto do
mesmo ano. A extensa programação incluiu reunião com o Procurador Geral da
República, com técnicos do IBAMA, com deputados federais, com o presidente da
Funai e técnicos da Divisão de Assuntos Fundiários. A pressão indígena deu
resultado. O processo de demarcação foi retomado. Técnicos foram enviados ao
campo quase que imediatamente para fazer o levantamento fundiário e identificar os
invasores, sejam colonos, madeireiros ou plantadores de maconha. O relatório fica
pronto em 1993 e é encaminhado ao MPF em Brasília para providências. O trabalho
provoca, no entanto, reação dos intrusos de má-fé, que fazem ameaças de morte
aos funcionários da Funai que trabalham na área. Um dos principais focos de
tensão fica na região do rio Coaraci-Paraná, ocupada por plantadores de maconha.
Em 1993, antes da homologação da Terra Indígena, se ampliam os efeitos
deletérios das portarias interministeriais 138-A e 139-A. O próprio Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária, com base nas portarias, incentiva a entrada de
89
colonos. E a prefeitura da recém-emancipada Nova Esperança do Piriá, em aliança
com madeireiros, estimula a abertura de uma estrada cortando a terra indígena.
Uma reunião no dia 22 de junho, com todos os afetados pela questão, tem lugar na
Assembléia Legislativa, incluindo o prefeito de Nova Esperança, Sindicatos de
Trabalhadores Rurais e a população indígena do Guamá, além dos parlamentares.
Todos assinam um protocolo de intenções reconhecendo a integridade da área
indígena, com a manutenção da faixa excluída pela portarias de 1988. Como
resultado da audiência, uma comissão parlamentar formada pelos deputados
Edmilson Rodrigues (PT), Nonato Guimarães (PT) e Luiz Cunha (PDT) visita a área
indígena e apresenta relatório sobre as invasões.
Em 04 de outubro de 1993, o presidente da República, Itamar Franco,
homologa por decreto a Terra Indígena Alto Rio Guamá, com pouco mais de 279.000
hectares, em toda sua integridade, para usufruto dos povos Tembé, Timbira, Urubu e
Guajá, entre a margem esquerda do rio Gurupi e a margem direita do rio Guamá.
Com a demarcação concluída, começa uma nova saga para os Tembé: conseguir a
desintrusão da área, tomada por colonos assentados pelo Incra e por invasores
como madeireiros, fazendeiros e plantadores de maconha.
A luta pela desintrusão é pontuada por vários processos judiciais, um dos
quais o já citado processo 2006.39.04.003310-7, movido pela prefeitura de Nova
Esperança do Piriá, alegando erro na demarcação e pleiteando a diminuição do
território com a exclusão da faixa de 69.000 hectares que separava as colônias
indígenas Guamá e Canindé, em conformidade com as famigeradas portarias
interministeriais 138-A e 139-A
“Sem dúvidas que há erros na demarcação da reserva indígena em questão”,
argumenta o advogado Jader Dias na petição inicial do processo, ajuizada em 2004,
90
em que atuou como procurador do município de Nova Esperança do Piriá, que
ademais foi elevado a essa categoria apenas em 1993, mesmo ano em que a TI foi
homologada pela União. E afirma:
Evidente que nessa dimensão de mais de 69.000 há localizada entre o rio Piriá e Coraci-Paraná que separa as duas reservas indígenas daria para manter as centenas de famílias lá existentes e assentar todas as famílias de trabalhadores ou colonos que trabalham e moram de boa fé dentro das reservas supracitadas. Vale ressaltar que aludida área fica dentro do município de Nova Esperança do Piriá, onde abriga centenas de famílias de trabalhadores rurais que, pelo incluso mapa se identifica como módulo “D”. É bom frisar ainda, que com a demarcação equivocada 70% do território de Nova Esperança do Piriá ficou dentro da nova RESERVA INDÍGENA ALTO RIO GUAMÁ, o que antes de 1993, nunca existiu, salvo em evidente equívoco, o que tem provocado inúmeros conflitos e prejuízos ao desenvolvimento social e econômico. (grifo do autor)
Afirmando que os 69.000 hectares nunca foram habitados pela comunidade
indígena e convocando o princípio constitucional da proporcionalidade, o município
questiona ainda:
(...) é razoável/proporcional INTERDITAR POR PORTARIA uma área localizada entre duas reservas indígenas para subsistir como sendo uma única terra indígena, induzindo o Presidente da República a erros, dando a entender que o faz em nome da finalidade pública, mas utilizando razões que não condizem com a realidade? Os fins estariam adequados aos meios utilizados? A resposta é não!
Ouvidos no processo, tanto o MPF quanto a Funai defenderam que a área
deveria continuar sob o domínio indígena porque sempre foi ocupada pelos índios. O
MPF, em parecer do procurador regional da República José Augusto Torres Potiguar,
ressaltou a incongruência dos fatos: a demarcação da terra indígena do alto rio
Guamá foi feita 15 anos antes da criação de Nova Esperança do Piriá, o que
obviamente impediria afirmar que a área seja de propriedade do município.
91
Ao fim do processo, a pretensão de Nova Esperança não prosperou, pelo
menos em primeira instância. Em 25 de março de 2008, a juíza Carina Senna, da
Vara Federal de Castanhal, julgou improcedente o pedido, considerando que as
terras indígenas são intransferíveis.
Tratando-se de área originalmente indígena, abarcada pelo instituto do indigenato, não há que se falar em propriedade outra que não a exercida pelos silvícolas, por força constitucional, para preservação e perpetuação de sua cultura, considerados inexistentes todos os atos contrários à manutenção desta propriedade, assistindo razão às requeridas, quando defendem que se trata de terra da União. (...) Não há que se falar em demarcação equivocada, tendo em vista que esta obedeceu os limites traçados pelo Decreto nº 307/45, que por primeiro interditou a área como reserva indígena. Ao contrário, a manutenção das portarias interministeriais 138-A e 139-A, que excluíram da área reservada a faixa de terra reclamada pelo requerente, e a retificação da demarcação implicaria em grave prejuízo às comunidades indígenas envolvidas, em total desalinho com a tutela constitucional que vem sendo perpetuada desde a Carta de 1934. (Sentença judicial, processo 2006.39.04.003310-7, 2008)
Antes de ser sentenciado, no entanto, o processo judicial movido por Nova
Esperança do Piriá contra a comunidade Tembé deu azo a conflitos de maior
gravidade, principalmente pela ação de políticos da região que, por motivos
eleitorais, tentavam convencer os colonos invasores de que as terras poderiam
deixar de ser dos índios. Envolvido no processo de reassentamento dos ocupantes
considerados de boa-fé, que foram assentados pelo próprio Incra nos anos
anteriores à homologação, o Ministério Público Federal acompanhou de perto vários
desses conflitos.
3.5 REASSENTAMENTO
Após os levantamento fundiário, a Funai calculou que 1200 famílias foram
assentadas irregularmente na área. Todos os intrusos de boa-fé concordaram, em
negociação conduzida pelo MPF ao longo do ano 2000, em sair da reserva. As
92
famílias foram indenizadas pela Funai e o Incra ficou responsável por reasssentá-las
em áreas da União às proximidades.
Para ordenar a retirada, a reserva foi dividida em quatro áreas: o primeiro
módulo, ao norte, foi desocupado. Em 2004, os colonos que viviam no segundo
módulo foram retirados. No terceiro e no quarto módulos, o Ministério Público
Federal e o Incra ainda não conseguiram retirar completamente. Calcula-se que
pelos menos 400 famílias de ocupantes de boa-fé, já indenizados, ainda
permaneçam na área indígena aguardando o reassentamento. Os índios fiscalizam
o cumprimento do cronograma de reassentamento, pontuado por muitos conflitos.
A situação deveria ter sido resolvida até o final de 2007, mas o acordo não foi
cumprido integralmente pelo Incra até hoje, e o reassentamento das famílias ainda
está sendo realizado lentamente. O Incra garante que já retirou 600 famílias, o que
diminuiu o problema, mas algumas colônias ainda permanecem. A permanência
dessas colônias é potencializada por interesses políticos e financeiros. Em anos
eleitorais, os conflitos em torno da reserva geralmente se reavivam, com candidatos
atuando como combustível nas vilas irregulares que se formaram dentro da reserva
indígena.
Como declarou inúmeras vezes em processos judiciais e à imprensa o
procurador da República Felício Pontes Jr, as invasões à área indígena não foram
espontâneas. Para ele, madeireiros, fazendeiros e plantadores de maconha
incentivaram os posseiros a invadir a Terra Indígena, utilizando-os como escudo
contra a ação policial. “Contribuiram para isso as promessas de campanha de
candidatos a cargos públicos. Há relatos de que vários deles ao longo das décadas
de 80 e 90 pregavam que, se eleitos, reduziriam os limites da reserva”, informou o
procurador à Justiça em uma ação que moveu em 2002 para garantir a desintrusão.
93
O dito processo tramita na Vara Federal de Castanhal com o número
2007.39.04.000439-8.
A afirmação do procurador segue se confirmando pelos fatos ao longo dos
anos. Em agosto de 2004, por exemplo, a rodovia BR-316, que corta a região, foi
interditada por agricultores reivindicando a diminuição da reserva, onde vivem
atualmente cerca de 2 mil índios. As manifestações foram capitaneadas por
candidatos da região, ignorando os acordos anteriores entre posseiros e autoridades
federais e espalhando a falsa esperança de diminuição da área indígena para
proteger interesses escusos. No ano seguinte, várias ações judiciais foram iniciadas
contra madeireiros que retiravam ilegalmente madeira da área indígena e a ação
fiscalizatória provocou novos protestos organizados por madeireiros.
14 madeireiros de Nova Esperança do Piriá foram denunciados por crime
ambiental. As denúncias decorreram de uma fiscalização do Ibama, que os flagrou
com mais de 1.700 metros cúbicos de madeira extraída irregularmente. Um dos
denunciados era o vice-prefeito do município, Gerson Jorge Rauber, acusado ainda
por incitação ao crime e constrangimento ilegal. Sócio da madeireira J.R.A. Carvalho
Indústria e Comércio, ele mantinha no pátio da empresa 270 metros cúbicos de
madeira extraída sem Autorização para Transporte de Produtos Florestais (ATPF).
No momento da fiscalização, Rauber teria tentado impedir o trabalho dos fiscais
ambientais, usando seu próprio carro para transportar pessoas e bloquear a estrada
com toras de madeira, impedindo a saída da equipe de fiscalização.
O protesto relatado à justiça foi organizado no dia 23 de março de 2005 sob a
tutela de madeireiros. Nos dias subsequentes, moradores da cidade insuflados por
donos de serrarias chegaram a bloquear o tráfego na BR-316 por cerca de 8 horas.
94
Foi uma reação à fiscalização do Ibama que fechou várias serrarias e cujo relatório
resultou na série de denúncias criminais feitas pela Procuradoria da República.
Em texto enviado à imprensa, o Ministério Público Federal explicou:
Os protestos organizados por madeireiros na região são comuns. As principais reivindicações geralmente são o fim das fiscalizações ambientais e a diminuição da Terra Indígena Alto Rio Guamá, dos índios Tembé, o maior obstáculo à exploração madeireira. A reserva é uma das últimas “ilhas” de floresta amazônica que vêm resistindo ao avanço dos madeireiros na região do nordeste paraense, mas ainda é vítima do constante assédio de serrarias irregulares instaladas principalmente no município de Nova Esperança do Piriá. (press-release da assessoria de comunicação da PRPA)
3.6 MANOEL EVILACIO
Em 2008, antes de sentenciado o processo de Nova Esperança do Piriá, os
confrontos se agravaram. Um grupo de invasores, visivelmente embriagados,
influenciados pelo ex-vereador do município de Garrafão do Norte Manoel Evilacio
Costa, entrou na aldeia de Itahu em um domingo, usando motos. Eles humilharam e
xingaram os índios, depois expulsou mulheres e crianças e tomou dois reféns, que
foram levados para a localidade de Livramento. Houve grande tensão. Grupos de
guerreiros Tembé de outras aldeias ameaçavam resgatar os reféns. O Ministério
Público Federal foi novamente acionado e a Polícia Federal teve que intervir.
Em depoimentos ao MPF, os índios da Itahu relataram os acontecimentos.
No dia 17 de fevereiro, se assustaram com a chegada de invasores em várias motos, gritando e ordenando que os índios se reunissem para ouvi-los. Os homens diziam estar a mando de Manuel Evilácio e ficaram o dia inteiro na aldeia proferindo ameaças, consumindo bebidas alcoólicas. Por fim, avisaram aos índios que eles tinham que sair da aldeia e abrir mão de parte das terras. Logo depois, muitos deles - incluindo mulheres e crianças - foram levados à força para uma vila vizinha à reserva, onde foram confinados em uma casa escura, ameaçados de morte e chamados de "vagabundos" por horas. Teriam sido soltos apenas no dia 18, quando chegou uma ordem de Manuel Evilácio para libertar as crianças. Beto Tembé
95
e o agente de saúde Geraldo Costa foram obrigados a permanecer. Depois de soltos, com medo de novos ataques à aldeia, várias mulheres e crianças passaram a noite na mata. Os homens caminharam horas em busca de ajuda nas aldeias vizinhas até que começaram a chegar guerreiros dos outros grupos para resgatar. O cacique Joca Tembé, líder da aldeia Itahu, pai de Beto, contou que enquanto seu filho era refém, Manuel Evilácio o pressionava para que fizesse contato com as autoridades e negociasse a destinação de uma parte das terras indígenas aos invasores. De acordo com o cacique, a região cobiçada pelo político é justamente a da vila do Cupu. (press-release da assessoria de comunicação da Procuradoria da República)
Os tumultos aconteceram entre os dias 17 e 21 de fevereiro. Os reféns eram
Beto Tembé, filho do cacique Joca Tembé e um auxiliar de enfermagem da
Fundação Nacional de Saúde, Geraldo Costa. Eles só foram libertados no dia 21
com a chegada de 130 agentes das polícias federal, civil e militar, do delegado
federal Gustavo Ciminelli e do procurador da República Felício Pontes Jr. O ex-
vereador Manoel Evilacio Costa foi preso em flagrante. Além dele, foram presos
João Batista Costa, Pedro dos Santos Costa e Josimar de Jesus Leite Costa. Todos
foram levados para a capital paraense. Eles foram denunciados, posteriormente, por
formação de quadrilha e cárcere privado, não só pela violência contra os indígenas,
como também pela violência contra uma equipe de reportagem da TV Liberal -
afiliada da Rede Globo - que ficou impedida de trabalhar ou se locomover quando
chegou para acompanhar os fatos no dia 20.
Após as prisões, no dia 21, um pequeno grupo ligado ao ex-vereador ainda
incendiou pontes em uma estrada da região, em protesto, mas os agentes federais
conseguiram evitar que a situação piorasse. Evilacio foi acusado também de
incentivar invasões na vila do Cupu, que fica no lado leste da reserva e já tinha sido
desocupada pacificamente com o reassentamento dos colonos pelo Incra. Não ficou
muito tempo vazia e, para as autoridades, os novos invasores estava interessados
na manutenção de atividades ilegais no local. Em uma operação de combate ao
96
crime na área Tembé, a Labareda, em novembro de 2007, a polícia destruiu mais de
30 mil mudas e mais de 50 mil pés de maconha só na região do Cupu.
Manoel Evilacio Costa e seus homens tiveram a prisão em flagrante
convertida em prisão preventiva, a pedido do MPF, preocupado que a soltura dos
três homens representasse grave risco à ordem pública na região da Terra Indígena
Tembé. Mais uma vez, a juíza federal de Castanhal, Carina Senna, concordou:
O comportamento dos requeridos, incitando outros colonos a ingressarem na área indígena, mediante falsos argumentos jurídicos que estariam a legitimar o ingresso de não-índios na região, termina por criar uma zona de conflito entre colonos e índios e, consequentemente, gera a perturbação da ordem pública. (liminar judicial, autos do processo 2006.39.04.000178-3)
Enquanto Evilacio estava preso, o procurador da República José Milton
Nogueira Jr apresentou denúncia criminal contra ele e os agricultores Ralfe Marlon
Oliveira, João Batista Costa, Pedro dos Santos Costa e Jocimar Leite Costa. Manoel
Evilacio e Ralfe Marlon foram apontados como o mandante e o principal executor
dos delitos, respectivamente. Eles foram denunciados por formação de quadrilha,
constrangimento ilegal e extorsão mediante sequestro.
Em sentença datada de 18 de novembro de 2008, a juíza Carina Senna
mandou libertar Manoel Evilacio e os outros, depois de nove meses de prisão. Ralfe
Marlon foi condenado a um ano e quatro meses de prisão, mas teve a pena privativa
de liberdade substituída por prestação de serviços a comunidade e prestação
pecuniária. Manoel Evilacio foi condenado a dois anos e oito meses de prisão, mas
recebeu da justiça o direito de recorrer da sentença em liberdade e já foi solto.
97
4. A CONSTRUÇÃO DE UMA SOCIEDADE PLURAL
A situação vivenciada pelos Tembé é o retrato do cotidiano dos povos
indígenas do Brasil, sendo que em outras realidades são verificados cenários onde a
violência se intensifica34. A Anistia Internacional, em seu relatório de 2008, assinala
que "povos indígenas, em vários pontos do país, também sofreram ameaças,
ataques e, inclusive, homicídios, sobretudo em sua luta pela terra".
Acompanhar e descrever a luta pela terra e os efeitos reflexos que o não
assenhoreamento desse espaço reproduz para aquele povo, conduz a percepção de
quão longínquo da concretude está o ideal constituinte voltado a garantia da
sobrevivência desses cidadãos brasileiros. A efetividade desses direitos
formalmente garantidos está vinculada a uma vontade política voltada para a
construção – de fato e não mais na retórica vazia – de uma sociedade plural, que
reconhece, compreende, respeita e aceita a diferença, entendendo essa diferença
como um vigor e não mais como sinônimo de inferioridade.
A constituição brasileira de 1988 em seu Preâmbulo assevera:
“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias sob a proteção de Deus a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil.” (grifo nosso)35
34 O relatório “Violência contra os povos indígenas no Brasil – 2006/2007” publicado pelo Conselho Indigenista Missionário – CIMI, noticia o aumento da violência praticada em quase todo o território nacional. Os diversos tipos de agressões e violações foram agrupados em: 1) Violência contra o patrimônio indígena; 2) Violência contra a pessoa praticada por particulares e agentes do poder público; 3) Violências provocadas por omissões do poder público; 4) Violência contra povos indígenas isolados e de pouco contato. O relatório conclui que a omissão do governo federal em relação à questão fundiária continua sendo a principal causa do quadro caótico verificado. Disponível em http://www.cimi.org.br. Acesso em 7 de julho de 2008.35 BRASIL. Constituição Federal da República de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br. Acesso em 7 de julho de 2008.
98
O Preâmbulo é uma espécie de nota introdutória ao texto articulado da
Constituição, sendo seu certificado de origem e legitimidade. As considerações
constantes do preâmbulo da Carta de 1988, afirmam seus princípios, revestindo-se
da condição de síntese do pensamento norteador do trabalho de elaboração
constitucional, bem como expressando ruptura com a Constituição anterior e
sinalizando para o surgimento jurídico de um novo Estado. (DA SILVA, 2006).
Em afirmando que o objetivo desse novo Estado é assegurar o exercício de
direitos, constata-se não se tratar de simples declaração, dissociada do exercício e
concretude desse direitos. Evidencia-se que o texto constante do preâmbulo
constitucional é elemento importante de integração e interpretação dos artigos que
lhe seguem, servindo de alicerce para novos rumos que a ação política dos
governos estabelecidos sob a vigência do texto constitucional pretenderem adotar.
Este Estado, que surge com a promulgação da Constituição de 1988,
segundo essas diretrizes filosóficas, políticas e ideológicas deverá,
necessariamente, assegurar a construção de uma sociedade plural e livre de
preconceitos.
Os elementos contidos no preâmbulo constitucional são a síntese do
processo de afirmação dos direitos humanos que atravessa a história da
humanidade rompendo paradigmas, concepções sistemas, através das idéias, lutas
nos movimentos sociais, tensões políticas e sociais, atos heróicos individuais
transformam o que antes era contrário à ordem, criminoso em direitos essenciais,
por definição fundamentais e indispensáveis a existência digna da pessoa humana.
O constitucionalismo europeu surge como reação ao antigo regime, o domínio
do feudalismo, socialmente organizado e estruturado. O constitucionalismo brasileiro
99
tem sua gênese sobre as ruínas do colonialismo português e por via de
conseqüência sofrendo influência dos vícios de uma sociedade escravagista.
Contudo, em que pese tal premissa negativa, a fonte de inspiração doutrinária fora a
mesma, o constitucionalismo francês, vazado nas garantias fundamentais do
número 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 26 de agosto de
1789. (BONAVIDES, 2000)
4.1 RECORTES HISTÓRICOS PARA CONSTRUIR O PRESENTE
Necessário à compreensão dessa fonte doutrinária, voltar o olhar ao passado,
tomando como marco delimitador as transformações econômicas e culturais
presentes no final da idade média e visualizar de que forma a idéia moderna do
individuo como valor encontra-se vinculada ao ideário cristão de igualdade, assente
na máxima de que todos os homens são iguais perante Deus. Evidencia-se,
portanto, nesse momento histórico um indivíduo que deve renunciar aos valores
mundanos e voltar-se tão-somente às aquisições espirituais.
Com a reforma protestante e as concepções de salvação através do sucesso
econômico alcançado pelo crente através do trabalho, o indivíduo que segundo a
idéia cristã era extra-mundano passa a ter a possibilidade de ser mundano sem
dissociar-se da idéia de igualdade original, divina e uniformizante.
As condições históricas da gênese do individualismo transitam em outros
campos da dinâmica social, notadamente na seara jurídico-filosófica quando durante
a idade média surge o germe do sujeito de direito, a partir de um emergente direito
subjetivo. A edificação desse ator social, detentor de direitos, individuais e
100
subjetivos, encontra seu pilar em paradigmas antagônicos do pensamento jurídico: o
Jusnaturalismo e o Positivismo Jurídico.
A legitimação das leis pelos jusnaturalistas encontrava fundamento em uma
ordem superior universal, imutável e inderrogável, um direito natural com validade
moral, devendo as diretrizes desse direito serem descobertas através de um
exercício de racionalidade. Os positivistas buscavam fundamento na ordem
normativa, enquanto legítima manifestação da soberania popular, sendo direitos
somente aqueles previstos expressamente no ordenamento jurídico positivado, não
havendo nenhuma preocupação em validar moralmente as normas, mas sim com a
criação de um arcabouço normativo racional e coerente entre si.
No início do século XIV, um pensador escolástico franciscano chamado
Guilherme de Occam, contrapondo-se ao sentido universalista abstrato que
dominava o pensamento do medievo jusnaturalista, formulou sua concepção
nominalista, de acordo com a qual o geral deveria ser substituído pela atenção as
individualidades, pois segundo Occam os universais não teriam existência concreta,
vez que o universo é composto de individualidades isoladas, sendo essas as
formadoras da realidade. (VIEIRA, 1999).
Tal formulação é construída na busca da defesa dos interesses franciscanos
frente ao papado que obrigava a ordem a aceitar a propriedade, contrapondo-se as
suas convicções ideológicas de pobreza. Occam promove autêntica revolução
jurídica numa nova compreensão do termo direito, fundamentando a possibilidade
de cada individuo utilizar determinado bem de acordo com suas necessidades, o
termo direito deixa de significar algo abstrato voltado a concretizar uma vontade
divina presente em uma ordem natural e passa a identificar o poder individual
exercido sobre um bem.
101
Ao afirmar a existência unicamente de entidades individuais concretas e a
impossibilidade de se deduzir leis de uma ordem natural, o pensamento
jusnaturalista, numa aparente ambigüidade converge ao paradigma positivista para
promover o nascimento do sujeito de direito moderno, no que se poderia denominar
a semente de uma teoria subjetivista, fundamentando o sujeito de direito no
individuo humano e particular.
O jusnaturalismo individualista possibilitou e forneceu os alicerces para a
construção do contratualismo de Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques
Rousseau nos séculos XVI e XVII, no qual os indivíduos celebram um pacto, a partir
de um ato racional, firmam um Contrato Social que, mediado pelo Estado, objetivaria
um convívio pacífico. O momento histórico representa, portanto, o vetor
jusnaturalista de não mais se vincular ao estado de natureza em prol de uma
organização política social.
O homem supostamente teria vivido em um “estado de natureza”, concedido
no plano da idéias e anterior ao Estado, em que pese variarem as concepções
dessa fase hipotética, para Hobbes bélico por definição, já Rosseau visualizando a
época áurea da humanidade, a marca impressa pelos contratualistas é o conceito de
individuo, fundamental à emergente ideologia burguesa liberal
A ideologia contratualista é clara quando negando a possibilidade de ser a
família o antecedente e ancestral do Estado Moderno, rejeita a existência de
hierarquias familiares e dominação anteriores ao surgimento desse Estado
pactuado, dessa forma desconstrói eventuais pretensões despóticas por parte dos
governantes, pois parte do pressuposto de uma original igualdade entre todos os
homens.
102
Tal matriz ideológica é o poderoso recurso de luta contra a aristocracia e o
antigo regime, afinal o alicerce da aristocracia é assentada na existência de
indivíduos desprovidos de qualquer distinção social, que sem origem nobre estaria
destinado a servir uma “superioridade” natural. O traço característico dessa
sociedade era uma escassa mobilidade com papéis sociais bem marcados e
ascensão vinculada ao parentesco (ELIAS, 1997).
Portanto, qualquer pretensão da emergente classe burguesa de ruptura com o
paradigma dominante deveria, necessariamente, instaurar uma nova concepção de
indivíduo, aquela vinculada a uma igualdade original entre todos os seres humanos.
O cenário político, econômico, jurídico, filosófico e social possibilita a ascensão de
um novo modelo dominante, que rompendo com os privilégios da aristocracia
consegue consolidar a abstração do individuo humano como integrante de um
mesmo gênero, erradicando a possibilidade de qualquer espécie de diferença
substancial.
Todavia, o constitucionalismo presente no modelo normativo concebido pelo
ideário político-revolucionário buscou através da incorporação por assimilação da
diferença a garantia da igualdade gestada como antídoto ao antigo regime, gerando
a matriz histórica de uma compreensão equivocada de igualdade que persiste até os
tempos atuais.
Para a nova ordem social a idéia de diferença confundia-se com desigualdade
e nesse sentido todos os esforços eram na direção de eliminar essa diferença e por
via de conseqüência estabelecer a igualdade entre os homens prevista em todas as
declarações de direitos burguesas. O tratamento destinado aos negros e judeus
ilustra a situação, uma vez que para receberem o status de cidadãos franceses era
necessário que esses grupos etnicamente diferenciados fossem despojados de seus
103
traços culturais, ou seja, a tentativa francesa de consolidar a igualdade de direitos
buscou transformar esses grupos em indivíduos idênticos a eles e não mais apenas
iguais. (SOUZA, 2001)
Estabelece-se, portanto, a confusão que persiste na sociedade brasileira
contemporânea, entre igualdade e identidade, diferenças sociais e desigualdades
sociais.
4.2. IDENTIDADE E IGUALDADE, DESIGUALDADE E DIFERENÇA
O reconhecimento de uma matriz ideológica da igualdade é o primeiro passo
na direção de uma compreensão eficaz da diferença. Não se pode reduzir a um
simplismo intolerável as complexas relações existentes entre identidade e igualdade,
entre desigualdade e diferença.
A identidade de um povo é a percepção de uma continuidade, de um
processo, de um fluxo, em suma, uma memória (CUNHA, 1994). Nesse sentido
nenhuma ação ou omissão dentro de uma sociedade que se pretende plural e
objetive assegurar tratamento igualitário a todos, pode desconsiderar tal percepção.
A observação do universo dos povos indígenas no Brasil demonstra um
processo histórico de imposição através de um discurso de verdade de uma
percepção única, hegemônica e universalizante, gerando um tratamento igualitário
descaracterizador. Contudo, há que se perceber a existência de diferenças que
conduzem de fato a inferiorização e quando não combatidas produzem desigualdade
e exclusão.
Portanto, é necessário entender a diferença indispensável à manutenção da
identidade geradora da cultura, compreendida não como traços dados, mas como
sistema dinâmico e perpetuamente cambiante (CUNHA, 1994) e de outro lado a
104
diferença que tem sua gênese na ausência de possibilidade de concreção da
dignidade humana, excludente e geradora de miséria e injustiça social, demandando
um novo meta-direito intercultural que assegure aos povos indígenas o direito a
serem iguais sempre que a diferença os inferioriza e diferentes sempre que a
igualdade os descaracterize (SANTOS, 2006).
Os dispositivos ideológicos vinculados ao modelo dominante a disposição
para gerenciar o fenômeno sócio-econômico da desigualdade e a exclusão –
fenômeno cultural e social, é o universalismo, materializando-se em duas
possibilidades: o antidiferencialista e o diferencialista, este se estabelece através da
absolutização das diferenças, aquele pela negação das mesmas (SANTOS, 2006).
A teoria política liberal presente no Estado brasileiro fez opção pelo
universalismo antidiferencialista, acionado através de sua política assimilacionista
que veiculava uma ideologia colonial impositiva aos povos indígenas de uma cultura
pretensamente superior e única possibilidade para aqueles povos de superação de
seu atraso em relação ao colonizador. O Brasil, enquanto país periférico, confrontou
a desigualdade através de políticas desenvolvimentistas que visavam assimilar a
diferença desconsiderando as culturas e etnias presentes.
Nesse contexto tem-se que as peças centrais encontram-se localizadas no
sistema educativo nacional, no direito e nas Forças Armadas, através do serviço
militar obrigatório. Todos esses subsistemas, de forma coordenada, voltados à
construção deste universalismo antidiferencialista estabeleceram uma realidade em
que a identidade nacional, compreendida como um só povo, se sobrepujasse sobre
todas as demais identidades. A política da homogeneidade cultural impôs o direito à
indiferença (SANTOS, 2001).
105
Por outro lado, as manifestações da diversidade cultural nunca foram
impedidas, tão-somente relegadas a guetos de exclusão ou ambientes familiares, no
sentido de regular e identificar grupos capazes de ameaçar a coesão da comunidade
política nacional.
Esse modelo de regulação social produz exclusão e desigualdade,
contraditoriamente calcado no reconhecimento dos indivíduos autônomos e
formalmente iguais. Necessário, portanto, que a partir do reconhecimento da
presença desse modelo em nossa sociedade, voltar-se à construção de políticas
públicas que de fato permitam a participação dos povos indígenas nesse processo e
definam diretrizes voltadas à erradicação da diferença que descaracteriza e
inferioriza.
Tal panorama deverá ter como norte a concretude da dignidade da pessoa
humana para esses povos, todavia há que se perguntar: qual o significado da
dignidade para os indígenas?
4.3 DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: UM CONCEITO NATIVO
Há um consenso teórico universal acerca da idéia de dignidade da pessoa
humana que reuniria pensadores das mais diversas áreas do conhecimento.
Todavia, a natureza polissêmica do conceito acabará por permitir uma relação
particular e subjetiva em relação ao observador, no que tange a sua aplicação
prática, legitimando, nesse sentido, comportamentos localizados, os quais
considerados reprováveis e indignos por outros contextos sociais.
Essas múltiplas visões seriam como as muitas facetas de um diamante e
isolando algumas dessas formas de pensar, como se compusessem uma sinfonia,
106
poder-se-ia analisar suas notas. Rejeitando-se as posições extremadas, vez que
não se pode de um lado atribuir um caráter exclusivamente subjetivo, tampouco
aferir dessas concepções teóricas a objetividade plena, construindo uma definição
clara e determinada da dignidade em si. (MAURER, 2005)
Na busca dessa compreensão é necessário abstrair dessas “facetas” uma
definição que mesmo permanecendo aberta permita um certo nível de objetividade.
Nesse sentido não poderá ser absoluto o conceito, pois: definir em si a dignidade é
impor-lhe limites e subtrair do conceito, dessa forma, um aspecto essencial de sua
riqueza, na medida em que a dignidade e a liberdade são inseparáveis (MAURER,
2005).
A maioria dos filósofos entende que a dignidade da pessoa humana é real e
não uma ilusão, sendo, portanto, esse caráter polissêmico ou polifônico antes de um
limite à noção de dignidade da pessoa humana, rico instrumento na construção de
um concerto harmônico e afinado.
Na concepção de Kant, a dignidade é entendida como um valor de que se
reveste tudo aquilo que é imensurável, que não tem uma cotação específica, um
preço, isto é, não está sujeito a ser suprido por algo análogo. Dessarte, considera-se
a dignidade um atributo intrínseco ao homem enquanto ser moral: na medida em
que desempenham de modo independente o seu juízo prático, os seres humanos
erigem diferentes personalidades humanas, cada uma delas categoricamente
individual e insubstituível. Por conseguinte, a dignidade passa a ser completamente
indissociável da autonomia para o exercício de seu juízo prático, e é, por esta razão,
com base neste preceito, que somente atribui-se a dignidade aos seres humanos.
Recortando Hegel desse universo filosófico, utiliza-se as idéias descritas em a
Fenomenologia do Espírito, quando o autor diferencia a noção “para si” e a idéia “em
107
si”, concluindo que o a consciência somente alcança o conhecimento absoluto a
partir da interpenetração das noções.
A dignidade “para si” seria a concepção particular e pessoal que cada
indivíduo teria acerca do conteúdo do conceito, condicionada por vários fatores,
como a educação recebida, o contexto social no qual inserido, entre outros. Todavia,
conceber dessa forma, a partir de uma valorização extremada do individuo seria por
demais temerário, abrindo margem ao totalitarismo do indivíduo. A concepção
deverá portanto evoluir no sentido de se aproximar da dignidade “em si” (HEGEL,
1999).
Como forma de limitação ao império da individualidade os vários atores
sociais estabeleceriam o que seria dignidade “para nós”, sendo essa missão em
especial direcionada ao judiciário e legislativo, essa concepção expressaria,
portanto, o produto do consenso social. Esse caráter evolutivo do “para nós” pode
em algumas circunstâncias estar basicamente ligado a norma posta, mas também,
de forma surpreendente, emergir como valor natural e espontâneo.
Perceptível a diferença de concepções em “para si” e “para nós”, o que se
justifica pelo fato de ainda não sabermos exatamente o que é dignidade, fato esse
que se traduz na necessidade das normas postas tentarem coibir condutas em
desalinho com a dignidade do que tentar definir exatamente o que seja. A idéia de
dignidade “para nós” não pode se confundir com a “para mim” e ambas devem
progredir na direção da concepção de dignidade “em si”.
O objetivo de qualquer indagação filosófica é alcançar o conhecimento do
“em si”. A conclusão estabelecida é que a dignidade é ao mesmo tempo fonte e
finalidade da pessoa humana, sendo impossível delimitá-la. Desde os romanos a
idéia de incompatibilidade entre pessoa e objeto consolidou-se, transformando-se
108
em consenso na grande maioria dos autores, nesse sentido a realidade da dignidade
pode ser ensinada, abordada, mas ela não pode ser apropriada, adquirida
definitivamente. Por fim, destaca-se dois elementos fundamentais à abordagem
jurídica: liberdade e respeito.
Mesmo partindo de premissas diferentes várias correntes filosóficas associam
os conceitos dignidade e liberdade, todavia durante muito tempo vigeu para o direito
a idéia de que ao garantir as liberdades a dignidade seria uma conseqüência lógica.
Os ideais das revoluções do século XVIII tinham como escopo a defesa das
liberdades, fazendo da propriedade o fundamento dessa liberdade perseguida.
Atualmente os direitos humanos buscam uma nova dimensão, exigindo não
mais obrigações negativas, mas sim positivas do poder público e da sociedade, visto
que é plenamente factível haver o respeito a liberdade, numa perspectiva negativa e
uma afronta a dignidade convivendo no mesmo ato.
Surge nesse contexto um conflito de normas: liberdade x dignidade, da
mesma forma que os clássicos, não se conseguiria fazer a distinção e ao mesmo
tempo, uma tentativa de oposição dos conceitos seria uma visão fragmentada do
homem, já que intimamente ligados não há como compreendê-los isoladamente.
Reconhece-se porém que o conceito de dignidade é mais amplo e poderia ser o
motor à interpretação do direito.
Nesse sentido, não há medida para a dignidade, é um valor absoluto,
fundamental, inamissível, não pode ser destruída, retirada, tal reflexão leva a
considerar pessoas relegadas a tratamentos degradantes e desumanos, nos quais
possivelmente haveria uma perda de dignidade, todavia há que considerá-la em
suas duas dimensões: fundamental e da ação, na situação aqui exposta não há
perda da dignidade fundamental, por impossível que seja, já que inerente e
109
inamissível, mas sim uma limitação de sua ação, a perda aqui seria de uma
dignidade atuada (MAURER, 2005).
Tal raciocínio leva ao pensamento kantiano de que “é justa toda a ação que
por si, ou por sua máxima, não constitui um obstáculo à conformidade da liberdade
do arbítrio de todos com a liberdade de cada um segundo leis universais”., o que
remete a conclusão de que a dignidade necessita não apenas de realização pelos
atos humanos, mas de condições materiais, externas que permitam a sua atuação
em todas as circunstâncias: afetivas, sociais, econômicas, e tantos outros fatores.
Impossível, portanto, tentar enclausurar a reflexão sobre dignidade tentando
estabelecer uma definição ou considerar numa ótica exclusivamente subjetivista, sob
pena de estabelecer-se a idéia abusiva de propriedade da dignidade.
A identidade humana, nas lições de Paul Ricouer, Emmanuel Levinas e
charles Taylor somente teria sentido considerada como elo de reciprocidade, de
mútuo reconhecimento, ou seja não sou eu quem confirma a minha identidade
humana, mas sim o meu semelhante, semelhança aqui estabelecida não no sentido
de igualdade simétrica, mas justamente a constatação e o respeito a diferença, visto
que sem o respeito mútuo não haveria possibilidade de diálogo. (RABENHORST,
2001)
A moralidade democrática seria a melhor tradução desse princípio de
reciprocidade, sendo a solução para o reconhecimento da pluralidade e a
concretização do ideal de alteridade. A democracia é muito mais que um sistema
político, mas o próprio contorno do Estado de Direito e este não é apenas o garante
dos princípios formas consignados em uma constituição, mas acima de tudo um ente
que reconhece e protege o exercício mútuo das liberdades.
110
A tradição marxista, questionadora da democracia enquanto sistema alienante
e explorador das classes menos favorecidas, hoje, reavalia esse posicionamento,
entendendo a conjunção entre democracia e direitos do homem como fundamental,
a partir de uma nova visão de espaço público, embasado na neutralidade valorativa
e num constante questionar sobre o sentido das instituições e da representatividade.
(RABENHORST, 2001)
A democracia teria sua pedra angular na ausência de fundamentos religiosos
e metafísicos, sendo o reconhecimento da dignidade humana o seu fundamento,
dignidade aqui entendida como princípio prudencial, cláusula aberta sem conteúdo
pré-fixado, assecuratória a todos do direito, a partir de seus julgamentos, as variadas
manifestações da autonomia humana.
É nesse espaço democrático que a dignidade para os indígenas deve ser
reconhecida, não mais a partir de gavetas ocidentais embasadas numa moralidade
cristã, mas sim nesse conjunto de crenças morais objetivas, estabelecidas,
construídas em cada sociedade indígena.
Não é possível se pensar em dignidade para os povos indígenas, sem levar
em consideração qual a compreensão que cada povo tem acerca do conceito, o
qual, necessariamente, deve ser recepcionado pelo ordenamento jurídico que se
pretende plural, como cláusula aberta, sem conteúdo pré-fixado, sob pena de se
atingir objetivo diametralmente oposto ao pretendido, ou seja, materializar violência
cultural que retira a possibilidade de autonomia, liberdade e autodeterminação dos
povos, ou seja, violentar e subtrair a própria dignidade.
A dignidade indígena, portanto, deve ter suas bases em processo que parta
da premissa de uma identificação profunda dos postulados culturais inscritos na
personalidade e nas formas básicas de socialização (SANTOS, 2003).
111
Nesse sentido, indispensável trazer a voz das lideranças Tembé, ao longo de
décadas de luta por ver a dignidade efetivada e concreta, num pleno exercício de
fruição, entendida como limite e tarefa do poder estatal, bem como da comunidade,
a partir de uma dimensão dúplice: protetiva ou assistencial (Estado e comunidade) e
autonômica (decisão de escolha sobre a própria vida).
Em vários registros do procedimento administrativo 1.23.000.000339/2005-79
há manifestação dos Tembé que nos levam a compreender o que pensam como
dignidade para aquele povo.
Piná Tembé, em reunião que discutia a implementação de projetos de
sustentabilidade na terra indígena Alto Rio Guamá (fls. 334 – vol XI)
“Nós queremos ver a floresta de volta, poder caçar como meu avô me contava que fazia, quando os Tembé circulavam livremente pela terra e a caça era abundante, cuidar da terra que tudo pode dar para nós, se ver livre dos invasores que só destruição trouxeram”
Naldo Tembé, em reunião na sede da Associação do Grupo Indígena Tembé
das Aldeias-Sede E Ituaçu – AGTASI que objetivava prestar contas acerca do
processo de desintrusão da terra indígena(fls. 221 – vol XII)
“Nosso povo não aguenta mais ouvir promessa, promessa e mais promessa, já estamos nessa luta tem muito tempo, nós não quer mais saber o que vai acontecer, queremos saber o que já foi feito pelos órgão envolvente. Entra ano e sai ano e a lenga lenga é a mesma, o que é que eu vou dizer prás nossas crianças que tão com fome? E os nossos velhos sem remédio, sem assistência? Vou dizer que tamo dependendo do INCRA resolver com a FUNAI quantos índios vão morrer? Será que precisa ter derramamento de sangue?
Neto Tembé, em entrevista realizada em 3 de maio de 2007.
“Queremos nossa cultura de volta, é muito triste ver que nossos jovens não falam mais a língua, que cada vez mais somos engolidos pelos brancos, que entram em nossa terra, tiram a riqueza e deixam a miséria, nós só que ficar em paz na nossa terra, poder cuidar do que é nosso”
112
Da análise das manifestações Tembé fica evidente a noção de vida digna a
partir do processo de assenhoreamento da terra, ou seja, sem essa relação com a
terra, que é vida para os Tembé, espaço de efetivação da dignidade indígena, todo
e qualquer discurso ou ação governamental fica esvaziado, como demonstra a
indignação da liderança em relação a ação (ou inação) dos órgão responsáveis pela
desintrusão da terra indígena.
A dignidade Tembé, dentre outras possibilidades para aquela cultura, passa
pelo resgate do modo de vida de seus antepassados, poder caçar, pescar, circular
livremente por sua terra, vivenciando dessa forma a compreensão indígena de
território e não mais de terra indígena formalmente demarcada, buscando nessa
relação os frutos físicos e imateriais necessários à existência de uma dignidade
indígena, possibilidade essa vedada a partir das múltiplas violências verificadas
naquele espaço.
Tal compreensão, do que venha a ser dignidade para os indígenas depende,
também, de um fazer etnográfico que não se atenha a registros fragmentados,
fundamentado na existência no papel e na ausência de uma terceira dimensão: a da
vida (Malinowski, 2003).
O estudo da realidade social dos povos indígenas no Brasil, quando
realizados nos termos em que foi concedida a obra “Crime e Castigo na sociedade
selvagem” (MALINOWSKI, 2003) permitirá a produção de conhecimento científico,
que formatado pela observação direta e participava, conseguirá compreender como
funcionam as estruturas na vida real dessas sociedades.
A partir de uma antropologia interpretativa (GEERTZ, 1998), que destaca uma
teoria hermenêutica dos significados que as instituições, ações, imagens, locuções,
eventos, costumes, têm para as sociedades que os produzem e reproduzem e suas
113
inter-relações simbólicas, como se a vida social fosse lida como um texto dentro de
um contexto determinado num tempo e espaço, será possível a sedimentação, com
troca de saberes, de um conceito nativo de dignidade.
4.4 O SABER LOCAL: SENSIBILIDADES JURÍDICAS DIFERENCIADAS.
Cada povo possui uma cultura revestida de especificidades e peculiaridades
que a torna única. A percepção de seus múltiplos símbolos e significados somente
será possível a partir de um mergulho profundo nesse universo e do exercício de
apreender esse plexo simbólico e de significados a partir da visão do outro. Todavia,
essa capacidade de dialogar com outras culturas, numa relação de coordenação,
encontra barreira na tendência não-indígena de considerar as categorias, normas e
valores da própria sociedade ou cultura como parâmetro aplicável às demais, o
etnocentrismo.
Clifford Geertz, por inspiração diltheiana36 formula uma proposta de
interpretação antropológica centrada no significado que as instituições, ações,
imagens, elocuções, eventos, costumes, e todos os demais elementos presentes no
contexto cultural têm para os seus integrantes, construtores desse complexo
universo de significados.
Tal formulação, se constituiria em autêntico antídoto aos processos
etnocêntricos que buscam “explicar” realidades a partir de uma visão hegemônica e
impositiva de fatos e valores. “A cultura está na mente e no coração dos homens e
mais ainda, a cultura de uma sociedade, consiste no que quer que seja que alguém
36 No final do século XIX, Wilhelm Dilthey, foi um dos primeiros a fazer críticas sobre a continuidade das pesquisas numa perspectiva positivista de conhecimento dos fenômenos humanos e sociais. O seu argumento e o de tantos outros pesquisadores, era o de que se deveria buscar uma metodologia diferente para as ciências sociais. A sugestão era que a investigação dos problemas sociais utiliza-se como abordagem metodológica a hermenêutica, que se preocupa com a interpretação dos significados, levando em conta cada mensagem e suas inter-relações. Cf. DILTHEY, Wilhelm. Essência da Filosofia. 3 ed. Lisboa: Presença, 1984.
114
tem que saber ou acreditar a fim de agir de uma forma aceita pelos seus
membros”(Goodenough, apud, Geertz, 1998).
Portanto, adentrar nesse universo simbólico é exercício interpretativo do fluxo
do discurso social, que se dará não pelas regras do método, mas pela leitura dos
textos culturais. As formas de organização de determinada cultura, relações de
parentesco, calendários, normas, punições, hábitos ou costumes, tradições e tudo
mais ali existente, podem ser lidos, na busca dos significados, pensando a cultura
como texto socialmente construído e como contexto no interior do qual as ações
sociais podem ser descritas e compreendidas.
“A vocação essencial da antropologia interpretativa não é responder às
nossas questões mais profundas, mas colocar à nossa disposição as respostas que
outros deram – apascentando outros cerneiros em outros vales – e assim incluí-las
no registro de consultas sobre o que o homem falou” (Geertz, 1998)
Isto se faz necessário porque a história ressurge com a cobrança, posto que,
indubitavelmente, em um dado momento, torna-se necessário prestar conta das
dívidas históricas. É é neste âmbito de tomadas de quitar injustiças contra os índios
que, em âmbito jurídico e filosófico deu-se origem a um debate sobre os direitos dos
povos indígenas e de como se apresentaria a solidificação destes direitos.
O multiculturalismo e o pluralismo, respaldados por documentos legislativos
importantes, colaboram para o reconhecimento de fato da cultura e organização dos
povos indígenas, mesmo que o próprio judiciário não perceba tais contribuições.
Através das diretrizes norteadoras do multiculturalismo e do pluralismo
jurídico e axiológico, com apoio das disposições constitucionais e da Convenção nº
169 da OIT, vem se buscando conferir aos povos indígenas, não só o
115
reconhecimento de sua autonomia, mas também, mesmo que de maneira ainda
modesta, solucionar as problemáticas que os circunda.
Buscar a leitura desses textos, dentro de um determinado contexto, é
empreendimento hermenêutico voltado a aceitar a diversidade, as diversas formas
de organização humana, compreender que os seres humanos têm muitas maneiras
de construir suas vidas no processo de vivê-las. (Geertz, 1998).
Nessa perspectiva de compreensão será possível ler as instituições jurídicas
existentes. Contudo, tal leitura, vocacionada a um diálogo intercultural efetivo,
somente possibilitará a apreensão da carga simbólica e o sentido da regulação
social ali existente, se o intérprete, de fato, estiver disposto a buscar o olhar nativo,
sem a tentativa de engavetar o texto lido num contexto alienígena àquela realidade
vivenciada
Considerando o direito como uma forma de ver o mundo, semelhante à
ciência, à religião, à ideologia ou à arte, esse processo hermenêutico, conceberá
qualquer sistema jurídico como forma particular de imaginar a realidade, no conjunto
de atitudes práticas sobre o gerenciamento de disputas que essa própria forma de
ver o mundo impõe aos que a ela se apegam.
Segundo Cliford Geertz, o direito seria um saber local; local não só com
respeito ao lugar, à época, à categoria e a variedade de seus temas, mas também
com relação a sua nota característica
Ao analisar a estrutura lógico-normativa de um sistema, confrontando-se o é
com o dever ser , a constatação da realidade concreta com a previsão legal,
observaremos múltiplas respostas, formas diferentes de solução para a turbação da
ordem jurídica, alinhadas à tradição onde verificadas. Tais respostas, de tal sorte
variadas e diferentes, exigem uma reformulação quase total da questão posta.
116
Essa perspectiva comparativa e hermenêutica estabelecerá uma relação
entre o intérprete e os diversos sistemas jurídicos, voltada, necessariamente, a
revisão das concepções correntes do direito que tendem a aprisionar as análises
nas “taxinomias institucionais”.
A revisão ou libertação das amarras taxinômicas acontece a partir de um
diálogo entre direito e antropologia, cuja a análise central será a busca do equilíbrio
entre: o Direito como uma estrutura de idéias normativas e o Direito como um
conjunto de procedimentos para tomar decisões; entre sensibilidades latentes e
casos imediatos; entre tradições legais como sistemas autônomos e tradições legais
como ideologias rivais; e finalmente, entre o imaginar limitado do saber local, e o
imaginar gigantesco com intenções cosmopolitas (GEERTZ, 1998).
Desse movimento dialético, será possível constatar a existência de mundos
morais diferentes, com sensibilidades jurídicas diferenciadas, nos quais os fatos, por
meio de representações, são estruturados em formas mais amplas de significações
e sustentados em um saber local.
O despertar dessas sensibilidades jurídicas diferenciadas devem acontecer
sob o influxo de um olhar, além de nativo, pós-positivista, direcionado a ruptura
definitiva com um paradigma positivista, voltado ao enquadramento dos fatos a uma
moldura geral, desconhece a realidade concreta e se recusa a conceber o direito,
também, como imaginação social.
As influências dessa forma de compreender o direito já se fazem presentes
em nosso sistema jurídico nacional, o voto do Ministro do Supremo Tribunal Federal,
Carlos Ayres de Britto, ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade da lei de
biossegurança, revela tal percepção ao afirmar: “o juiz não deve se resignar em ser
117
uma traça ou ácaro de processo, mas um ser do mundo, abro as minhas vistas para
o cotidiano existencial do País".
A busca pela legitimação de um direito indígena volta-se a não
desconsideração do outro como possibilidade de diálogo, ao respeito e
compreensão dos princípios constitucionais, canaletes de comunicação entre o
sistema de valores e o mundo real, que assegurando aos indígenas a preservação
de seus modos viventes, orienta o sistema jurídico nacional a não desconsiderar as
formas de regulação existentes nesses contextos culturais, sob pena de relegar ao
vazio as garantias constitucionais dos povos indígenas, retirando a eficácia de suas
previsões.
4.5 A PRECISÃO DE UMA VISÃO PLURALISTA NO DIREITO
Um dos pilares do capitalismo é a observância no monismo jurídico, ou seja,a
visão de que cabe somente ao Estado a produção do direito. Wolkmer (2001, p. 26),
neste sentido, expor que o fenômeno jurídico que oriundo da cultura ocidental, a
partir do século XVII e XVIII, satisfará a visão de mundo majoritária no cerne da
formação social burguesa, do modo capitalista, do liberalismo individualista, da
centralização política, por meio da figura de um Estado Nacional Soberano”.
Desse modo, ao se estabelecer uma análise sobre a perspectiva multicultural,
verifica-se que os argumentos que respaldam multiculturalismo, pluralismo jurídico e
axiológico e de resgate de propostas comunitárias e participativas confrontam com
a perspectiva monista-liberal-individualista há séculos arraigada na cultura ocidental.
118
Destarte, no que se refere mais designadamente à produção do direito,
constatar um Estado multinacional requer uma maior reflexão sobre a questão
jurídica, sobremaneira em relação à produção e aplicabilidade deste novo Estado.
Sob um âmbito de negação da alteridade, o projeto de legalidade que acaba
se impondo é aquele criado, validado e aplicado pelo próprio Estado, centralizado no
exercício de sua soberania nacional, entretanto, esta forma de estado, fadada ao
declínio, acabou por denunciar sua própria ineficiência, tornando essecial acolher os
novos sujeitos insertos no plano social. Este panorama proporcionou o surgimento
do pluralismo.
A crítica pluralista respalda-se na necessidade de extrair a constituição da
normatividade não somente dos processos legislativo e jurisdicional do Estado, mas,
essencialmente, extrair conteúdo e forma do fato jurídico diante da informalidade de
ações concretas da coletividade, conjecturados pela identidade e autonomia de
interesses da comunidade, num dado ambiente político, sem qualquer implicação
quanto aos rituais formais de institucionalização.
Desta forma, o que se evidencia é que, em um âmbito descentralizado,
caracterizado por um pluralismo de interesses e pela concretização das precisões
humanas, a juridicidade surgirá das distintas formas de agir das múltiplas
comunidades.
Neste sentido, o discurso da igualdade e da cidadania, que respaldam o
direito moderno, acabou por anular as diferenças étnicas e culturais. O que se
percebia era uma tentativa de igualar aqueles que, por sua própria essência, são
distintos, gerando, muita das vezes, a perda ou a destruição da identidade de muitos
povos. Isto reflete, em demasia, a questão do povo indígena.
119
É diante deste contexto que insurge a necessidade de refletir sobre o direito.
Assim, o pluralismo, entendido como a existência de mais de uma realidade, de
múltiplas formas de ação prática e da diversidade de campos sociais com
particularidade própria, ou seja, envolve o conjunto de fenômenos autônomos e
elementos heterogêneos que não se reduzem entre si, surge como um referencial
indispensável para se pautar uma análise da dinâmica das minorias nacionais, como
os povos indígenas, dentro dos chamados Estados multinacionais. Em termos mais
específicos, o direito dos povos indígenas só pode ser pensando em uma
perspectiva pluralista.
4.6 DIREITO INDÍGENA
Quando o assunto é direito indígena, a doutrina nacional – carente de
produção acerca da temática – ao fazer contato, via de regra, faz uma abordagem
sob a perspectiva de um problema, o que já traça uma pré-compreensão
equivocada, tendente a não recepcionar algo perceptível a luz de uma sensibilidade
jurídica diferenciada, necessário a concretização da dignidade e igualdade aos
povos indígenas e que verdadeiramente não se trata de um problema.
Darcy Ribeiro, no livro Os Índios e a Civilização, em várias passagens
descreve o tema como problema. Sem dúvida que o objetivo do autor – um clássico
da Antropologia – não foi o de estigmatizar os povos indígenas analisando o quadro
do contato com a sociedade não-indígena e os reflexos da interação com um direito
nativo como se fosse um “problema”. Em realidade o escopo da obra é o de chamar
a atenção para as especificidades existentes nesses contextos culturais
120
diferenciados, as quais devem ser levados em consideração quando da ocorrência
das chamadas fricções interétnicas37.
Tal intenção fica clara quando Darcy Ribeiro, após descrever a interação das
duas sociedades como problema representado pelas abordagens que dele são
feitas, quais sejam, a etnocêntrica, a romântica e a absenteísta, afirma: “O
dogmatismo etnocêntrico da primeira corrente e o absenteísmo da última levam à
concepção de que não existe um problema específico a exigir tratamento
especializado” (RIBEIRO, 2004).
Reside, portanto, o cuidado necessário em adentrar no debate acerca do
direito indígena, não apreendendo de forma distorcida as lições de Darcy Ribeiro,
traduzindo a idéia central de sua obra como se a existência de regulação social nas
sociedades indígenas fosse um problema. Tampouco, em afastando-se essa
perspectiva, negar as mais variadas problemáticas verificadas concretamente no
cotidiano dos povos indígena do Brasil, a abordagem nesse viés pretende que o
“problema” passe a ser percebido como conflito, vez que inerente as relações
humanas, sejam essas relações interétnicas ou não.
4.7 O DIREITO DOS POVOS INDÍGENAS
37 De acordo com Roberto Cardoso de Oliveira, existem quatro tipos de sistemas interétnicos, tomando-se e combinando-se dois pares de variáveis: a “simetria” e “assimetria” dessas relações e o envolvimento nessas relações de grupos “tribais” entre si e desses grupos com a sociedade global envolvente. Nas simétricas “intertribais” constar-se-ia a existência de relações igualitárias, nas quais as unidades societárias em contato mantêm relações sem qualquer supremacia sistemática de uma em relação a outra, já nas assimétricas “intertribais” haveria relações de hierarquia, uma vez que os grupos indígenas em contato estariam hierarquicamente justapostos. Quando do sistema interétnico assimétrico, a ordem se funda numa relação radicalmente diversa da constatada no sistema “intertribal”, essas relações se dariam entre os povos indígenas e segmentos regionais da sociedade nacional, investidos esses últimos de grande poder de determinação na dinâmica do sistema, por força de seu maior poder bélico e econômico, o sistema é rigorosamente assimétrico, não sendo, porém, explicável por um modelo hierárquico como nas relações “intertribais”, mas por um modelo de fricção interétnica, termo que serve para enfatizar o caráter conflituoso das relações interétnicas, moldadas por uma estrutura de sujeição-dominação. Significando que as unidades étnicas em contato, indígenas e não-indígenas guardam relações de contradição no sentido de que a própria existência de uma unidade nega a existência da outra por inconciliáveis que são suas posições no interior do sistema interétnico. Por fim, o autor constata que o sistema interétnico baseado em relações igualitárias, despojado de qualquer fricção interétnica não se manifesta concretamente, não sendo possível a constatação empírica do mesmo, revestindo-se tão-somente de uma possibilidade teórica. OLIVEIRA, Roberto Cardoso, Identidade, Etnia e Estrutura Social, Livraria Pioneira, 1976
121
Atualmente, é fato o entendimento de que a fenomenologia jurídica não se
exauriu em textos legais. Apesar do contexto que prima pela unicidade, pelo poder
estatal, pelo legalismo exacerbado e pelo monismo, todos características essenciais
do direito moderno, este modelo passa, indubitavelmente, por um período crítico.
Muito disso dá-se em face do crescente processo de reivindicação de novos sujeitos
coletivos, bem como do fato do multiculturalismo ter se tornado um fato. É inegável,
portanto, que abriu-se um terreno para a crítica, como também para o
reconhecimento deste fenômeno pelo próprio direito estatal.
É inegável, portanto, que além de todo arcabouço jurídico do estado, este não
é a única instância legislativa, posto que, paralela e concorrentemente, existem
gama de instâncias legislativas e jurisdicionais.
Quando se vem à baila a questão dos direitos dos povos indígenas, deve-se
partir da premissa que o povo indígena possui direito de ter direito. Para tanto, é
necessário reconhecer que tais povos são sociedades complexas e auto-suficientes,
com suas próprias organizações sociais, culturais, crenças, tradições, princípios
éticos, valores e direito próprios.
Apesar disto ser um fato, o homem ocidental, imerso em uma cultura branca,
não admite essa existência de valores e culturas paralelos, vendo-os sempre como
um uma sub-cultura, como se coubesse ao índio somente um direito menor. Ter uma
compreensão correta acerca dos direitos dos indígenas requer, essencialmente, a
derrocada desse argumento colonizador e, sob certa ótica, desumano, o que
perpassa, incontestavelmente, pela seara do direito, posto que é no âmbito do poder
regular, seja na esfera legal ou na práxis social, que se manifesta o direito de um
povo à autodeterminação, o que requer o reconhecimento da validade deste direito,
mesmo que paralelo ao direito tido como oficial.
122
Diante disto, entende-se que uma visão pluralista é basal para uma
concepção dos direitos dos indígenas.
A discussão do direito indígena como problema carrega consigo uma carga
semântica preconceituosa tendente a impedir uma abordagem espontânea do tema
como de direito constitucional ou infra-constitucional. O tratamento sob o título de
“questão indígena”, revela de igual sorte uma desfocada abordagem,
compreendendo-o como problema estrutural do Estado brasileiro a ser ou não
resolvido. Os problemas da sociedade moderna, em face do nível de complexidade
de suas formas de organização, são insolúveis, a busca deverá ser por mitigar os
extremos de relações centradas no paradigma sujeição-dominação através de
políticas públicas que reconheçam a existência dessa assimetria e busquem o foco
da concretização do que hoje é mera construção teórica: relações simétricas
igualitárias.
Portanto, o tratamento a ser dispensado ao tema direito indígena,
definitivamente, não deverá ser o de um problema, mas tão-somente como tema do
direito, e que só por isso merece ser objeto de observação do jurista nessa
condição, passível de construção teórico-doutrinária e jurisprudencial (SILVA, 2002).
Os conflitos cuja gênese é verificada no interior de um sistema normativo
indígena são conflitos do direito nacional, assim como todo o material jurídico
construído sobre as bases de todos os temas do direito. O direito indígena, sendo
um desses temas e ao se auto-construir, permite, de igual efeito, contribuir para a
formação do arcabouço jurídico existente no país e no mundo (SILVA 2002).
Marcelo Osco Fernádez, em sua obra La ley del ayllu: prática de jach'a y jisk'a
justicia (justicia mayor y justicia menor) em comunidades aymaras formula
construção teórica que demonstra ser o tema direito indígena não circunscrito
123
apenas à tradição e ao costume38, mas a constatação de um sistema jurídico
construído historicamente, a funcionar paralelo ao direito positivo estatal.
A utilização do método quip nayara (ver o passado e o presente como um
todo integrado), permite, através da busca das origens históricas dos povos
indígenas, encontrar a legitimidade do sistema. Nas memórias do incanato, Osco
encontra no século XVI o conhecimento das leis através dos dedos das mãos, sendo
que à mão direita relacionavam-se os delitos punidos com morte: desobediência,
mentira, roubo, preguiça e fornicação. Aos dedos da mão esquerda às permissões,
recomendações de: virtude, instrução, moderação, aconselhamento, verdade e
justiça. O estado Inca, objeto da análise do autor, entendia a maioria dos delitos
como sendo de ordem pública, com alto grau de especialização das autoridades
incumbidas de aplicar as sanções e um máximo de apelação para casos não
resolvidos. Os procedimentos judiciais eram realizados publicamente como forma de
busca da verdade.
O corpo legislativo dos Incas encontrava-se registrado nos q'ipus, nos quais
através da coloração de fios e forma de nós era possível apreender a gravidade do
delito e a pena a ser aplicada. A filosofia da justiça Inca baseava-se no castigo
corporal e moral que compreendia tal tipo de sanção mais eficaz do que penas
pecuniárias ou confisco de bens.
Nos julgamentos havia a aferição da culpa, havendo por parte do autor do
delito o reconhecimento de sua culpabilidade, tal fato era sopesado como atenuante
para fins de aplicação da pena. Em casos de maior gravidade se formava um
tribunal com doze índios que tinham a missão de solucionar o conflito através da
38 Em que pese o costume ser reconhecido como fonte do direito, em nossa tradição civilista o entendimento da existência tão-somente de costumes, transmitidos de forma “imprecisa”, tende a fragilizar a constatação de um sistema jurídico próprio e vigente, traduzindo o direito indígena como adequado e necessário às relações e preservação da identidade de determinado contexto cultural diferenciado.
124
aplicação dos códigos, se a dificuldade do caso era extrema consultavam os
espíritos dos antepassados através de oferendas a se configurarem como práticas
rituais jurídicas. As sanções de maior peso depois da pena de morte eram o desterro
e o apedrejamento, bem como a reprimenda pública nos casos de desobediência.
Os crimes sexuais mais graves eram sancionados com a pena de morte
extensiva aos seus descendentes, sem chance de apelação ou recurso. Eram
considerados também como delitos graves, a bebedeira e utilização de coca, bem
como a caça de animais proibidos.
Diferentemente do que ocorre na atualidade, as castas mais altas eram
punidas com rigor elevado, pressupondo-se que deveriam dar o exemplo às demais.
Durante o incanato houve o predomínio do direito penal como forma de definir o
próprio Estado e manter a ordem social, vez que todas as práticas antijurídicas
pesquisadas por Marcelo Osco eram contrárias ao bem jurídico estatal, refletindo o
autor que o direito civil, provavelmente, era de domínio das unidades familiares.
Com o advento da conquista espanhola surge um novo tempo para os incas,
sustentado nas idéias do catolicismo e no pensamento europeu que se definia como
raça superior, legitimando a violência física e cultural, que através de uma imposição
hegemônica, instituiu sistematicamente e ausente de legitimidade seus modos de
regulação social e com isso eclodindo para os povos indígenas toda a sorte de
preconceito.
O método quip nayara é aplicável a qualquer realidade indígena, visualizar o
passado e presente como um todo integrado é a forma adequada para o operador
do direito, indígena ou não, encontrar a fonte legítima de um direito nativo. Como os
contextos culturais são diversos e específicos, os registros, os códigos, a formulação
125
desse sistema normativo será, da mesma forma, específico e aplicável àquela
realidade onde construído.
O papel da Antropologia se revela essencial a uma formulação que reconheça
um sistema jurídico indígena, no dizer de Geertz: estabelecer diálogos, esgarçar
fronteiras, possibilitando a percepção e um estudo comparativo das técnicas
antropológicas e jurídicas, num ir e vir hermenêutico que apreenda as questões
relevantes para ambos, os pontos de contato, impregnando costumes sociais com
significados jurídicos e corrigindo raciocínios jurídicos através de descobertas
antropológicas.
Não se trata, portanto, de criar ou inovar o direito, mas apenas reconhecer e
dialogar com o que já existe, estruturado e organizado. O mergulho no passado
apresentado por Marcelo Osco encontra fontes e sistemas que talvez não sejam
válidos para os Tembé ou outros povos indígenas da amazônia, mas demonstra
essa possibilidade de análise e aferição de fatos e normas que necessitam ser
visualizados através de uma sensibilidade jurídica diferenciada.
Os laudos antropológicos aparecem nesse cenário como ferramenta passível
de utilização na perspectiva de estabelecer esse diálogo. Trazendo a discussão ao
contexto amazônico, o Laudo: De vítimas a indiciados, um processo de ponta-
cabeça: Suruí Aikewára versus Divino Eterno (Beltrão, Mastop-Lima & Moreira,
2003) demonstra, alinhado ao método quip nayara, a existência de significados
próprios que se não levados em consideração transformariam vítimas em indiciados.
O conflito descrito no laudo tem como ponto central os reflexos deletérios da
construção de uma rodovia atravessando a terra indígena dos Suruí Aikewara,
localizados no sudeste do Pará. Como forma de chamar atenção para a ausência do
Estado na região e de todas as conseqüências advindas desse quadro fático, os
126
indígenas utilizam o recurso de entupedinir (obstruir) a rodovia. Em uma dessas
manifestações, motivada pelo despejo de um cadáver na terra indígena, um
caminhoneiro de nome Divino Eterno furou o bloqueio e atirou o veículo sobre os
jovens Suruí que guarneciam a obstrução da rodovia, à entrada da aldeia. Como
conseqüência do ato e em face da inércia estatal, os Suruí retiveram o agressor e
uma mulher que o acompanhava. A partir da intervenção da FUNAI e à revelia dos
Suruí, todos foram liberados.
Contudo, ao final do imbróglio, Divino Eterno dirigiu-se a uma delegacia de
polícia em São Geraldo do Araguaia e registrou ocorrência contra três Suruí
Aikewara, sendo instaurado inquérito policial para apurar os fatos narrados pelo
caminhoneiro.
O papel do laudo na situação descrita é essencial à compreensão dos fatos
ocorridos na terra indígena, pois um olhar apressado e dissociado daquele contexto
cultural poderia concluir de forma diferente dos agentes políticos envolvidos no caso,
vez que arquivado o inquérito policial. Alguns elementos despontam como forma de
buscar essa sensibilidade jurídica articulada a um saber local: As crença e valores
Aikewara que traduzem o significado que um corpo em decomposição tem para
aquela cultura e seus reflexos, inclusive econômicos, somente apreensível através
do conhecimento/ entendimento daquela cosmologia:
Para os Suruí Aikewára, um corpo em decomposição é algo impuro. Impuros também e impróprios ao consumo ficam os animais que desse corpo se alimentam, pois se eles consumirem esses animais, ficarão doentes. Procurando evitar as doenças, o lugar onde foi jogado o corpo do kamará, encontrado em 16 de março de 2003, passou a ser interditado para a prática das atividades tradicionais dos Suruí.
Isso é prejudicial para os Suruí tanto cultural como economicamente, uma vez que ali se situam as colocações de castanha de algumas famílias, um dos principais produtos comercializados pelos índios. Além do que, o lugar é uma das referências para a pesca, pois reúne algumas quotas dos escassos recursos hídricos que a eles restou depois da demarcação da Área Indígena Sororó (Beltrão, Mastop-Lima & Moreira, 2003).
127
O passado se apresenta nesse diálogo intercultural como fonte viva de um
direito nativo, perceptível através de uma memória que pode e deve orientar o
raciocínio jurídico do caso em análise:
A memória Suruí Aikewára serve de guia, oferece rumo, direção aos membros da sociedade, é o lastro da cultura Aikewára. Ao referirem as situações sociais em que se verificam ameaças ao seu modo de vida e morte de seus membros, trazem à cena a degradação dos recursos ambientais que provocam profundas alterações na estrutura das relações sociais estabelecidas dentro da aldeia e na “rua”, fora da aldeia.100 A construção social de seu passado é uma forma de avaliar e elaborar as novas situações que são obrigados a enfrentar (Beltrão, Mastop-Lima & Moreira, 2003).
Por fim, a análise formulada no texto do Laudo Antropólogico, no que se
refere ao pluralismo jurídico em nossa realidade nacional, dada a eloqüência
vernacular, merece transcrição literal:
Independente da importância do direito positivo para o estabelecimento do estado democrático de direito no Brasil, o mesmo não contempla as diferenças étnico-culturais existente no país, e, particularmente, no estado do Pará, pois, em suas premissas universais subjaz projeções de uma perspectiva homogeneizante, induzindo-se a imaginar que há no cenário nacional, mais homogeneidade do que realmente existe, ao converter diferentes visões de mundo em unidade conceitual. Negligenciando, portanto, o saber local. Admite-se a existência e os direitos de diferentes grupos, mas na prática o pluralismo não se faz presente(Beltrão, Mastop-Lima & Moreira, 2003).
Na discussão acerca de um direito indígena, enquanto ramo do direito,
existem termos que são chaves à compreensão. O pluralismo é um desses termos,
que dada a multiplicidade de enfoques, demanda análise e esclarecimento sobre a
abordagem adequada ao que se pretende enquanto formulação teórica.
Por vezes o termo pluralismo é utilizado como antítese ao fundamentalismo39.
Noutra perspectiva significa a possibilidade de existência de associações
39 Conforme Niklas LUHMANN, Die Gesellschaft der Gesellschaft, Suhrkamp, Frankfurt, 1999, v. I, p. 155. LUHMANN, ao mesmo tempo em que rejeita a idéia de uma ética do pluralismo, argumenta que o universalismo dos sistemas funcionais que operam na sociedade mundial não exclui particularismos de diferentes espécies, mas antes os estimulam, e que a facilidade com que as estruturas dessa mesma sociedade mundial mudam é compensada pelas autóctones e em cada caso fortemente delimitadas ligações ou compromissos, idem, p.170.
128
organizadas pelos indivíduos, com independência do Estado e das demais
associações e participantes de tomada de decisões políticas, o pluralismo político
(MAUES, 1999). Há, ainda, o pluralismo de idéias, consignado no texto
constitucional (art. 206) determinando a obrigatoriedade de um ensino com bases
nas diversidade cultural.
Por vezes, o pluralismo jurídico é compreendido como a existência simultânea
de regras diferentes, dentro de uma mesma ordem jurídica (BELLEY, 1999).
Todavia, a teoria acerca de um pluralismo jurídico que melhor poderá ser utilizada
numa abordagem de direito indígena é a que defende a correspondência de
sistemas jurídicos múltiplos compostos à pluralidade dos grupos sociais existentes,
sendo o indivíduo um ator do pluralismo jurídico na medida em que ele se determina
em função de suas vinculações múltiplas a essas redes sociais jurídicas
(ROULAND, 1988).
O pluralismo jurídico significa a existência concomitante de ordens jurídicas
distintas, que, por sua própria dinâmica, não podem ser apreendidas por um único
código estatal.
129
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As concepções pluralistas e multiculturais são fundamentais na compreensão
dos direitos indígenas. Além disso, só é possível compreender os direitos dos povos
indígenas ao reconhecimento de suas culturas a partir do instante em que o homem
passar a ter uma visão pluralista e multicultural. Para tanto, pode-se partir da
premissa de que, uma sociedade que não seja una, como é o caso do Brasil, a ela
não pode corresponder um único direito. No plano jurídico, em particular, somente à
luz da Constituição de 1988, pode-se almejar uma correta aplicação do direito. No
entanto, fica de fácil constatação que, mesmo no âmbito da Convenção, o direito dos
povos indígenas de exercerem seu direito não se dá de forma plena.
Desta forma, é inegável o entendimento e a certeza de que os Tembé
possuem o direito de preservar e manter seus costumes e instituições próprias,
desde que eles não sejam incompatíveis com os direitos fundamentais definidos
pelo sistema jurídico nacional nem com os direitos humanos internacionalmente
reconhecidos.
Na luta pela conquista dos direitos indígenas, aqui especificamente, pela luta
dos Tembé e do direito as suas terras, há uma atuação contundente do Ministério
Público Federal contra a concepção ocidentalizada da supremacia do direito estatal
relegando as minorias. Aos povos indígenas fica assegurada a aplicação de seu
direito consuetudinário, porém, desde que este seja conforme os direitos humanos
(ficção européia) e o sistema jurídico do país onde a comunidade se encontra.
Destarte, a busca pelos direitos dos povos indígenas Tembé se respalda não
somente nos próprios dispositivos constitucionais, mas, principalmente, na premissa
básica que sustenta o direito de ser diferente: o direito à igualdade no tratamento, o
direito a ter direitos, mesmo que estes partam de prismas e concepções distintas.
130
Neste sentido, entende-se como correto o direito de uma comunidade ser autônoma,
ter sua cultura, organização social, crenças, tradições e costumes reconhecidos sem
que se garanta conjuntamente o poder de regular suas relações por meio do direito,
pois, se assim for, não há como existir autonomia com imposição de uma concepção
valorativa. Estas são, de fato, incongruentes.
Assim, em relação à constituição, o que se pode engendrar é a necessidade
de tornar crível e concreta a aplicabilidade deste direito claro ao reconhecer “aos
índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições”,
independentemente de qualquer restrição. E ao reconhecer a organização social, os
costumes, as crenças e as tradições desses povos, a Constituição Federal garante a
validade de seu direito. Garantindo não só a liberdade de o produzir, como também
a autonomia em empregá-lo.
Entender o direito desta forma é um meio de garantir sentido à disposição
constitucional, o que vem a corroborar uma visão multicultural e pluralista de
reconhecimento do direito, visão esta que se faz necessária para que o direito das
minorias, o que inclui os Tembé, torne-se solidificado.
Desta forma, torna-se imprescindível reconhecer que no âmbito das reservas
os povos indígenas se fazem soberanos. É imperioso, portanto, a realização de um
estado Contudo, mesmo aqui, a ingerência deve se dar de modo a respeitar
costumes, línguas, crenças e tradições dos povos indígenas, fato que, por exemplo,
torna nulidade insanável a ausência de laudo pericial antropológico em causa na
qual seja parte um índio ou uma comunidade indígena.
Por fim, pressupõe-se como imperioso para uma efetiva consolidação dos
direitos dos povos indígenas já legalmente reconhecidos, a dialética do direito com
demais ramos da ciência, em especial, a antropologia, a história e a sociologia. É de
131
suma importância ressaltar que o direito vem buscando se inteirar com outros ramos
da ciência, abrindo-se para novos desafios, pois somente assim restaram
vencedores aqueles que lutam por um direito plural e multicultural.
É suficiente um olhar para perceber que a legislação ganha ares de
insignificância diante das intempéries frutos dos problemas étnicos. Mas, a partir dos
dispositivos legais já existentes, da atuação de órgãos como o Ministério Público
Federal, o quadro vem se alternando, embasado por período de maior progresso
nas legislações nacionais e internacionais no que tange ao reconhecimento do
direito à autodeterminação dos povos indígenas.
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