Post on 17-Feb-2018
7/23/2019 Tese - Angelo Abrunhosa.pdf
1/359
1
UNIVERSIDADE DE SANTIAGO DE COMPOSTELA
FACULDADE DE DIREITO
PRECEDENTES HISTRICO-TERICOS
DOS
REGIONALISMOS DOS AORES E DA GALIZA
Tese de Doutoramento apresentada pelo
Licenciado em Direito (Bolseiro da Fundao
para a Cincia e Tecnologia Programa
Praxis XXI) MANUEL NGELO GOMES
ABRUNHOSA MARQUES DE ALMEIDA,
realizada sob a direco do Professor Doutor
D. FRANCISCO PUY MUOZ, Catedrtico
Emrito de Direito Natural e Filosofia do
Direito da Faculdade de Direito da
Universidade de Santiago de Compostela.
V. B.
El Director
SANTIAGO DE COMPOSTELA
2007
7/23/2019 Tese - Angelo Abrunhosa.pdf
2/359
2
SIGLAS E ABREVIATURAS
A.A.F.D.L. - Associao Acadmica da Faculdade de Direito de Lisboa.A.C.M.L. - Arquivo da Cmara Municipal de Lisboa
A.D.C. - Anuario de Derecho Civil
A.D.S. - Colleco da Legislao Portugueza desde a ltima compilao
das ordenaes, redigida pelo Desenbargador Antnio Delgado
da Silva 1750-1790, 1833. Lisboa: Typografia Maigrense,
1830 1844.
A.F.D. - Anuario de Filosofia del DerechoA.H. - Angra do Herosmo
A.H.D.E. - Anuario de Historia del Derecho Espaol
A.L.R.A. - Assembleia Legislativa Regional dos Aores
A.N.A.F.R.E.- Associao Nacional de Freguesias
A.N.T.T. - Arquivo Nacional da Torre do Tombo
B.F.D.U.C. - Boletim Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
B.N.L. - Biblioteca Nacional de Lisboa
B.O.C.X. - Boletin Oficial das Cortes Xerais
B.O.E. - Boletin Oficial del Estado
B.P.M.P. - Biblioteca Pblica Municipal do Porto
C.E.F.A. - Centro de Estudos e Formao Autrquica
C.L.D.A. - Colleco das Leys, Decretos e Alvaras que comprehende o
feliz reinado Del Rei Fidelssimo D. Jos o I 1750-1790.
Lisboa: Officina de Miguel Rodrigues, 1770-[1796], Tomos I-V.
C.O.L.P. - Colleco Official da Legislao Portugueza redigida pelo
Desembargador Antnio Delgado da Silva, 1850-1930. Lisboa:
Imprensa Nacional, 1842-1935.
C.R.P. Constituio da Repblica Portuguesa
D.H.P. - Dicionrio de Histria de Portugal
D.P.O. - Deputacin Provincial de Ourense.
E.A.P.G. - Escola de Admnistracin Publica Galega
F.A.B. - Fundacin Alfredo Braas
7/23/2019 Tese - Angelo Abrunhosa.pdf
3/359
3
F.C.C. - Fundacin Cnovas del Castillo
F.C.G. - Fundao Calouste Gulbenkian
G.G. - Gaceta de Galcia
I.A.C. - Instituto Aoreano de Cultura
I.C.A.L.P. - Instituto Cultural Aoreano de Lngua Portuguesa
I.C.P.D. - Instituto Cultural de Ponta Delgada
J.C. - Jornal de Cultura
P.D. - Ponta Delgada
P.U.C. - Pontifcia Universidade Catlica
Q.C.A. - Quadro Comunitrio de Apoio
R.A.P. - Revista de Administracin Pblica
R.D.P. - Revista de Derecho Poltico
R.F.D.L. - Revista da Faculdade de Direito de Lisboa
R.H.I. - Revista de Histria das Ideias
R.J.U.P. - Revista Jurdica da Universidade Portucalense
R.M. - Revista Michaelense
R.P.H. - Revista Portuguesa de Histria
S. J. - Scientia Jurdica
T.C.A. - Tombo da Cmara de Angra
U. A. - Universidade dos Aores
U.S.C. - Universidade de Santiago de Compostela
X.G. - Xunta de Galcia
7/23/2019 Tese - Angelo Abrunhosa.pdf
4/359
4
APRESENTAO
Temos a perfeita conscincia de que um homem no uma ilhae, nessa
medida, todas as pessoas e experincias que se cruzam no nosso caminho
acabam por, indirectamente, influenciar o que somos e o que produzimos. H
pessoas, no entanto, que tiveram uma influncia muito directa, neste trabalho,
pelo apoio que nos deram, e que merecem, por isso, um agradecimento muito
especial.
A primeira palavra de agradecimento vai, necessariamente, para aqueles
que nos deram o ser, pois sem o seu suporte nunca esta tarefa teria chegado a
bom porto. Tambm temos que agradecer Fundao para a Cincia e
Tecnologia (F.C.T.) que, atravs do programa Praxis XXI, financiou todo o
doutoramento, de forma sempre exemplar e pontual. Pela disponibilidade
manifestada, agradecemos aos Exmos. Srs. Dr. Fraga Iribarne e Dr. Emlio
Perez Tourio (Presidentes da Junta da Galiza), Dr. Carlos Csar (Presidente
do Governo Regional dos Aores), Dr. Fernando Meneses (Presidente da
Assembleia Legislativa Regional dos Aores) e Dr. Sampaio da Nvoa (Ministro
da Repblica para os Aores). Pela colaborao e auxlio prestados, no
podemos deixar de referir o Exmo. Sr. Dr. Jos Tavares Rebelo (Presidente da
Casa dos Aores do Norte - CAN), verdadeiramente incansvel, bem como a
instituio a que to dignamente preside, e tambm a Cmara Municipal de
Arganil. Pelo incentivo, uma palavra tambm amiga para o Exmo. Sr. Professor
Doutor Costa Duro. Pela preciosssima ajuda dada, queremos agradecer
muito reconhecidamente, aos Exmos. Srs. Professor Doutor Jos Adelino
Maltez, Professor Doutor lvaro Lpez Mira e Professora Doutora Milagros
Otero Parga. Um agradecimento especial vai para os Exmos. Srs. Professor
7/23/2019 Tese - Angelo Abrunhosa.pdf
5/359
5
Doutor Paulo Ferreira da Cunha e Professor Doutor Antnio-Carlos Pereira
Menaut. Alm de amigos, foram tambm modelo e referncia. Uma ltima
palavra, mas, seguramente, a fundamental, para o Exmo. Sr. Professor
Doutor Francisco Puy Muoz, pela forma generosa, incentivadora, paciente e,
sobretudo, muito amiga com que assumiu a orientao da presente
dissertao. Ao contributo inestimvel que deu para que a presente tese
chegasse a bom porto, acrescem o privilgio e a honra de conhecer de perto
um dos maiores pensadores do Direito, a nvel mundial.
Desiluda-se quem pretenda encontrar no presente trabalho um tratado de
sapincia, absoluto e definitivo, com resposta para todas as questes
relacionadas com o Regionalismo e a Regionalizao. Temos a noo de que a
investigao cientfica um processo permanentemente inacabado, que
deveria comear quando parece aproximar-se do fim. No redundaremos num
s sei que nada sei, mas sempre nos atrevemos a afirmar que, na maior parte
dos casos, muito pouco sabem aqueles que julgam tudo saber. Apenas temos
um objectivo, assumido com esta obra, lanar pistas de reflexo na mente de
quem a l.
Ao longo dos ltimos dezasseis anos, o Direito tem inundado a nossa
vida. J fizemos de tudo um pouco: estudmos, ensinmos e exercitmos o
Direito; lemos e escrevemos. Faltava o passo seguinte, o mais arriscado e, por
isso mesmo, o mais aliciante de todos, a investigao jurdica; mal ou bem, o
que est a acontecer agora, apenas tendo a certeza de que o melhor do nosso
labor e do nosso suor est plasmado neste trabalho. Como achamos que
qualquer casa mais bela se tiver as janelas abertas para o exterior, o nosso
estudo procura fazer isso mesmo, ou seja, libertar-se do positivismo tcnico-
jurdico e tentar descobrir a conscincia profunda de duas das mais belasregies do nosso mundo: os Aores e a Galiza. Consideramos que este o
grande escopo desta dissertao. o oceano que nos leva at ao belo
arquiplago, a autovia que nos leva regio mais portuguesa que no
Portugal, o espao onde se tenta discorrer sobre o mago e onde se apela
reflexo. onde se procura dar sentido a expresses como, por exemplo,
solidariedade territorial, conscincia demo-regional, linguagem e lingustica,
comunidade, autonomia, sentimento e espao regional, caridade e justia,aorianidade e galeguidade. Terminamos esta apresentao do trabalho tal
7/23/2019 Tese - Angelo Abrunhosa.pdf
6/359
6
como a comemos, pelo que apenas diremos que nos sentiremos frustrados
se algum, depois de o ler, considerar que encontrou um ponto de chegada,
mas muito realizados se algum achar que pode ter encontrado um ponto de
partida.
7/23/2019 Tese - Angelo Abrunhosa.pdf
7/359
7
INTRODUO
A cincia progride com a aquisio de novas verdades ou com a
reposio crtica de velhas verdades relegadas para o olvido. hoje vulgar
dissertar-se sobre centralizao, desconcentrao e descentralizao, quase
sempre na perspectiva do constitudo ou do estatudo, embora com a nobre
ideia democrtica de preservar a Nao face ao Estado. Os trs vocbulos
serviriam para equacionarmos a relao Estado-Poder / Estado-Comunidade; a
ttulo exemplificativo, na centralizao, os problemas dos Aores so decididos
por Lisboa e os da Galiza por Madrid; na desconcentrao, esses problemas
so decididos in loco, mas por pessoas nomeadas, respectivamente, por
Lisboa e Madrid; finalmente, na descentralizao, os mesmos problemas so
decididos in loco por pessoas eleitas pelos Aorianos e pelos Galegos, sem
dependncia ou autorizao vindas de Lisboa ou de Madrid. Todavia, o nosso
trabalho no ser divulgar teses ou nomes que j dissertaram brilhantemente
sobre circunscries territoriais administrativasou poltico-administrativas, mas
sim investigar a sua causalidade profunda registada pela Histria.
Condensaremos o nosso labor, essencialmente, nos precedentes histrico-
tericos dos regionalismos dos Aores e da Galiza, a fim de demonstrarmos,
com os dois exemplos, que o Estado democrtico forte quando as suas
razes so bem aliceradas e locais. Wilson, da Pensilvnia, estava certo em
1787, quando defendia a construo da pirmide federal a uma altitude
considervel e, por essa razo, pretendia dar-lhe uma base to ampla quanto
possvel1. Um alto nvel de autonomia para as localidades e os grupos no
Estado essencial para a liberdade numa democracia2.
1
CRICK, Bernard Democracy, 2002. A Democracia, traduo portuguesa por Carla Hilrio Quevedo.Vila Nova de Famalico: Quasi Edies, 2006, p. 19.2Ibidem, p. 120.
7/23/2019 Tese - Angelo Abrunhosa.pdf
8/359
8
Dividiremos a dissertao em oito captulos.
No primeiro captulo, sobre a Solidariedade Territorial, aventaremos a
premissa de que a terra o teatro da actividade humana e que o homem
encontra nela o mesmo papel que a alma no corpo3. O territrio, no aspecto
sociolgico, um factor muito importante para a integrao de uma
Comunidade, porque delimita um mundo comum de experincias de vida e de
vivncias espirituais. O binmio dialctico espao-povo imprime marcas
indelveis ao povoamento, ao aproveitamento do solo, s vias de circulao,
ao comrcio, indstria e comunho de valores que caracterizam a
conscincia, a linguagem e o comportamento colectivo.
No segundo captulo, tambm um pressuposto gnsico, iremos
descoberta da Conscincia Regional. As informaes mentais, afectivas e
culturais possuem estruturas peculiares; apresentam tipos e formas, intrnsecas
e extrnsecas, que nascem, transformam-se e do lugar a novas formaes. A
cada regio corresponde uma ontologia regionalprpria, em que os elementos
possuem a sua maneira de ser; importa intu-los e represent-los com
fidelidade, de maneira a encontrar a autntica ipseidade regional.
No terceiro captulo, subordinado ao tema Do Estado-Comunidade ao
Estado-Soberano, a ideia dominante ser a construo histrica do Estado na
lgica do poder poltico centralizado e quanto mais unipessoal melhor.
Francisco Elas de Tejada, no horizonte da conhecida oposio por ele traada
entre Cristandade e Europa, fala de cinco fracturas sucessivas entre 1517 e
1648, cinco horas de parto e criao da Europa, cinco punhais na carne
histrica da Cristandade: a ruptura religiosa do luteranismo, a ruptura tica do
maquiavelismo, a ruptura poltica do bodinismo, a ruptura jurdica do
hobbesianismo e a ruptura social dos Tratados de Westflia4. De tal maneiraque Hobbes (1588-1679) falara das corporaescomo vermes nas entranhas
do corpo poltico; Rousseau (1712-1778) odiava os grupos intermedirios
entre o Estado e os direitos individuais como relquias feudais, que subvertiam
3Cf. MARTONNE, Emmanuel de "Trait de Gographie Physique", in Panorama da Geografia, vol. I.Lisboa: Cosmos, 1953, pp. 14-21. Remontam aos antigos as preocupaes geogrficas; mas foi com osdescobrimentos que surgiu um prodigioso alargamento do horizonte geogrfico, se desenvolveu acartografia e progrediram os conhecimentos fsicos auxiliares da Geografia. Todavia, s no sculo XIX, a
Geografia assumiu dignidade cientfica.4ELAS DE TEJADA, Francisco La Monarquia Tradicional. Madrid: Rialp, 1954, p.37
7/23/2019 Tese - Angelo Abrunhosa.pdf
9/359
9
a vontade geral do povo; e Bentham (1748-1832) agrupou-os como interesses
sinistros que obstruam a legislao uniforme e racional5. Veremos que a
construo do Estado Soberano, homloga em Portugal e Espanha, foi contra
os poderes locais.
O sculo XIX, que abordaremos no quarto captulo, com o ttulo
Movimento Constitucional em Espanha e Portugal, parece reflectir a
contradio entre o governo revolucionrio, sado das revolues liberais, e o
governo constitucional. O objectivo do governo constitucional o de preservar
a repblica, mas o do governo revolucionrio cri-la. A revoluo consiste na
guerra entre a liberdade e os seus inimigos; a constituio o regime da
liberdade vitorioso e pacfico6. No obstante o notvel confronto de ideias, em
oitocentos, veremos que foram efmeras as constituies menos
centralizadoras 1812, 1837, 1869 e 1931, em Espanha, e 1822, 1838 e 1911,
em Portugal apesar da sua maior densidade democrtica, sistemas eleitorais
mais amplos e efectivos, razes sociais mais alargadas e titularidade do poder
simplesmente outorgada ao povo. Todavia, o liberalismo iria triunfar,
definitivamente, aps a Revoluo de 1848, republicana e democrtica de
pendor socialista, que esteva na gnese da Segunda Repblica francesa. Foi
uma revoluo que se repercutiu em quase toda a Europa. Nesse mesmo ano
de 1848, a Sua adoptou uma Constituio federal. Os movimentos
republicano, socialista e federalista ganharam cada vez mais proslitos; a
Comuna de Paris (18 de Maro 28 de Maio de 1871) comoveu o mundo
inteiro; proclamou-se a Primeira Repblica, em Espanha (Fevereiro de 1873); a
influncia anrquica de Proudhon (1809-1865) conquistou a intelectualidade
mais jovem e, a nvel de princpios, o centralismo e o uniformismo
administrativo do Estado Liberal, da primeira metade do sculo XIX, ficou,irremediavelmente, abalado.
Foi neste contexto, como veremos nos quinto e sexto captulos, que
surgiram e cresceram os movimentos autonmicos na Galiza e nos Aores. O
nacionalismo galego, partindo do Provincianismo, ou seja, do ressurgimento do
Antigo Reino da Galiza, logrou o seu primeiro momento alto, embora fugaz, em
1873, com a repercusso do Projecto de Constituio Federal da Primeira
5CRICK, Bernard, op. cit., p. 68.6Ibidem, p. 59.
7/23/2019 Tese - Angelo Abrunhosa.pdf
10/359
10
Repblica (1873-1874). O segundo momento, tambm inconsequente, surgiu
com a proclamao da Segunda Repblica (1931-1936), que implantou um
Estado Integral Regional. J nos Aores, o movimento autonomista, de mbito
meramente distrital, comeou com o Decreto Ditatorial de 2 de Maro de 1895
e, apenas a partir de 1955, houve progresso para uma conscincia regional
com o Instituto Aoriano de Cultura.
No stimo captulo, patentearemos as convergnciase divergnciasque
foram surgindo ao longo dos precedentes histrico-tericos dos Aores e da
Galiza.
Finalmente, no oitavo e ltimo captulo, realaremos como as actuais
Constituies de Espanha e de Portugal e os vigentes Estatutos Autonmicos
das duas regies assumiram no texto positivo essas semelhanas e diferenas,
j no contexto do Estado Social e da Unio Europeia.
7/23/2019 Tese - Angelo Abrunhosa.pdf
11/359
11
CAPTULO I
SOLIDARIEDADE REGIONAL
Neste primeiro captulo, partimos da premissa de que a terra o teatro
da actividade humana e que o homem encontra nela o mesmo papel que a
alma no corpo. O territrio, no aspecto sociolgico, um factor muito
importante para a integrao de uma Comunidade, porque delimita um mundo
comum de experincias de vida e de vivncias espirituais. O binmio dialctico
espao-povo imprime marcas indelveis ao povoamento, ao aproveitamento do
solo, s vias de circulao, ao comrcio, indstria e comunho de valores
que caracterizam a conscincia, a linguagem e o comportamento colectivo.
1. Princpio da Solidariedade Territorial
Esvai-se na penumbra dos tempos a memria longnqua dos povos que
ocuparam a Galiza, na Pennsula Ibrica, e as Ilhas Adjacentes dos Aores.
V-lo-emos, oportunamente. Por ora, adiantamos, apenas, que as
comunidades em anlise, correspondem a reas socio-culturais especficas,
com trajectrias histricas diferentes, mas com um advento poltico comum, j
no ltimo quartel do sculo XX - o Regionalismo. Foi um marco importante, no
processo democrtico dos dois pases ibricos - Portugal e Espanha. Em
Portugal, somente em 1976, pela Constituio aprovada em 2 de Abril, seriam
includas nas autarquias locais do Continente as regies administrativas e
7/23/2019 Tese - Angelo Abrunhosa.pdf
12/359
12
institudas as regies autnomasdos arquiplagos dos Aores e da Madeira7.
Em Espanha, aps vrias tentativas frustradas8, o Estado das Autonomias
logrou xito um pouco mais tarde, com a aprovao da Constituio
actualmente em vigor, no ms de Dezembro de 19789.
No princpio, estes seres colectivos que so as regies advm,
principalmente, de agrupamentos centrados em vnculos pessoais: identidade
de provenincia, unies de famlias e migraes de povos. Assim, num
aoriano corre, certamente, sangue luso, flamengo, italiano, africano,
americano e muito outro, com origem incgnita. Num galego, podemos
pressentir sangue celta, hebreu, fencio, grego, romano, suevo, visigtico,
mouro e normando.
Com o tempo, o princpio do vnculo pessoal cede ao princpio da
territorialidade, sobrepondo-se o territrio regional s relaes pessoais,
familiares ou de provenincia. As diferenas de origem submergem, para
darem lugar a um sentimento de solidariedade territorial, expressa na
circunstncia de os indivduos serem designados e se designarem naturais de
ou residentes numa localidade. Primeiro, surge a conscincia local de
nascimento/residncia e, depois, desenvolve-se a conscincia regional, que faz
a unidade das diversidades locais. To galego o habitante da Corunha, como
o de Pontevedra, de Ourense ou de Lugo. E to aoreano o habitante de So
Miguel, como o das Flores e das restantes ilhas do arquiplago.
Aristteles (384 - 322 a. C.), realista, preconizando que a melhor forma de
conhecer as coisas compostas decomp-las e analis-las nos seus
elementos mais simples10, foi sensvel teoria patriarcal, que faz derivar,
historicamente, o poder poltico da famlia ou de um conjunto de famlias. "A
principal das sociedades naturais, segundo o Estagirita, que a famlia,formou-se, pois, da dupla reunio do homem e da mulher... A sociedade que,
seguidamente, se formou com vrias casas chama-se aldeia e assemelha-se,
7Vd. artigos 225 a 234, 235 a 243 e 255 a 262, todos da C.R.P..8No projecto da Constituio Federal de La Republica, de 18 de Julho de 1873, consagrava-se um EstadoFederal constitudo por 17 Estados Federados, mas no foi promulgada. E na Constituio de La
Republica Espaola, de 9 de Dezembro de 1931, consagrava-se um Estado integral constitudo porRegies Autnomas.9Vd. artigos 137, 143 e ss. da Constitucin Espaola, de 6 de Dezembro de 1978.10
ARISTTELES - Tratado da Poltica. Trad. de M. de Campos. Mem Martins: Publicaes Europa -Amrica, Lda., 1977, Introduo, p. 5.
7/23/2019 Tese - Angelo Abrunhosa.pdf
13/359
13
perfeitamente, primeira sociedade natural... A sociedade que se formou da
juno de vrias aldeias constitui a cidade, que tem a faculdade de se bastar a
si prpria sendo organizada, no somente para conservar a existncia, mas
tambm para procurar o bem-estar"11. Para Aristteles, os factos histricos
evocados ( paradigmtico o exemplo do velho Estado romano)12 no
proporcionavam apenas uma compreenso causal; antes visionava neles um
pressuposto metafsico do direito natural, segundo o qual eram manifestao
de um sentidoe de uma finalidade. De tal maneira que toda a cidadepertence
natureza e que o homem naturalmente feito para a sociedade poltica.
Aquele que, pela sua natureza e no como consequncia do acaso, existisse
sem qualquer ptria, seria um indivduo detestvel, muito acima ou muito
abaixo do homem"13. convico do filsofo grego que os homens nascem,
ontologicamente, cidados; que o seu status naturae social e civilis,
deduzindo-se das suas palavras que a conscincia familiar e local precedem a
conscincia da polis.
2. Conscincia e Linguagem Demo-Regional
A histria do regionalismo tpica, como se infere do texto anterior; o
que vai em ttulos como Histria dos Aores, Histria da Galiza e outros
quejandos. No so menos expressivas, porm, as designaes Histria do
Povo Aoriano, Histria do Povo Galego e outras anlogas. Se o territrio
molde fsico aglutinante, o povo a conscincia constituinte e,
progressivamente, constituda. So duas faces da regio, que importa
conhecer, no na perspectiva dualista da res extensa e res cogitans(parafraseando Descartes), mas sim na busca de uma entidade to singular,
que no se confunde com qualquer outra.
11Ibidem, p.612No velho Estado romano, a diviso em gentes, criase tribosleva-nos a admitir uma fuso de grandesfamlias patriarcais e grupos destas famlias ou gentilidades. Segundo a tradio, uma cria eraconstituda por 10 gentes; 10 crias formavam uma tribo; e 3 tribos eram as que se fundiam na Cidade deRoma. Lembre-se que, at ao sculo XV, predominou a famlia como linhagem de tipo patriarcal,principalmente entre a nobreza. No princpio da Idade Moderna, passou-se da famlia como linhagem famlia nuclear constituda pelos pais e filhos, uma mdia de 5 ou 6 por famlia.13ARISTTELES, op.cit.,p.8.
7/23/2019 Tese - Angelo Abrunhosa.pdf
14/359
14
Os Aores e a Galiza so substantivos prprios; so regies cada uma
com o seu bilhete de identidade real e formal. No impossvel identificar o
seu nascimento remoto e acompanhar o seu crescimento at maioridade
democrtica, com a assuno da autonomia. pela linguagemque os homens
comunicam entre si, tornando comuns os seus valores e conceitos. No pelo
facto de um aoreano ou um galego transmitir a outro os seus sentimentos ou
ideias, que os perde; pelo contrrio, continuam pertena do emissor e vo
fazer, igualmente, parte do receptor. So sentimentos e ideias que passam a
ser comuns aos dois.
Se pensarmos que os vrios interlocutores transmitem, indefinidamente,
essa conscinciaa outros falantes, resulta, finalmente, que transita para todos,
sem deixar de pertencer aos que, gradualmente, a foram veiculando. A lngua
o trao por excelncia que vai presidir formao da comunidade, seja ela
portuguesa, espanhola, francesa, italiana, romena, de origem latina ou no;
ser tambm a base fundamental da sua unio. Nenhuma colectividade poder
formar-se e sobreviver sem a existncia de vrios pontos em comum, como os
mesmos ideais, os mesmos sentimentos, os mesmos desejos, a mesma
Histria e, sobretudo, a mesma lngua14.
Mas dentro da mesma comunidade lingustica, so vrios os sujeitos
falantes, com diversidade de pronncias, de vocabulrioe at de construes
frsicas. Pela variante dialectal, se conhece o portugus dos Aores, da
Madeira, do Alentejo, do Algarve, do Minho ou de qualquer outra zona de
Portugal. E o galego inconfundvel com o castelhano, o catalo, o basco ou
qualquer outra lngua de Espanha.
Porqu este mltiplo lingustico? Ser que o sentido da Histria a
unidade na diversidade? No caso portugus, apesar de ser uma das lnguasmais homogneas do mundo, so notrias as diferenas geogrficas no s na
morfologia e lxico, mas tambm na fontica. A regio do antigo galaico-
portugus, do ponto de vista fontico, mais arcaizante e conservadora do que
o sul, pese embora que as diferenas se tm vindo a desvanecer, devido a
14 CASTELO BRANCO, Maria Ins - Pequeno Curso da Lngua Portuguesa. Lisboa: Edio daFundao Calouste Gulbenkian, 1984, p. 8.
7/23/2019 Tese - Angelo Abrunhosa.pdf
15/359
15
diversos factores: vias de comunicao cada vez mais facilitadas, a rdio e a
televiso.
Sabemos que as lnguas romnicas so as vrias formas que o latim
vulgar15 tomou, a partir da Alta Idade Mdia, com as invases brbaras e
consequente queda do Imprio Romano do Ocidente, em 476 d.C.. Mas, antes
da entrada dos romanos na Pennsula Ibrica, no ano de 218 a.C., com o
desembarque no porto de Amprias, perto de Barcelona, j havia um mosaico
de lnguas, com origens bastante diversas, consoante os povos que habitavam
as vrias regies ou a elas afluam.
Pouco se sabe sobre as lnguas dos primitivos povos da Pennsula, mas o
estudo de velhos escritores, as inscries j do perodo romano e as
concluses de alguns estudiosos, levam a pensar que o elemento celta foi
preponderante16. Se pensarmos na diversidade de povos que habitavam a
Pennsula, desde as Astrias e Galiza at Andaluzia, e que a conquista
romana destas terras se deu em pocas diferentes, patente se torna que o
latim vulgar, embora generalizado no sculo I d.C., iria assumir matizes
diversos de regio para regio. Assim, a Btica (a Andaluzia) aceitou, segundo
Estrabo17, o latim popular, quase espontaneamente, as leis e a cultura dos
conquistadores; j na Lusitnia, na Galiza e noutras zonas de difcil acesso,
cujos povos eram, particularmente, aguerridos, houve muito derramamento de
sangue, antes da capitulao.
Um estudo comparativo das vrias lnguas da Pennsula Ibrica aponta
para esta diversificao das condies de conquista, pelos romanos, e do
modo de ser dos povos conquistados. O latim falado na regio de Sevilha
(Hispalis para os romanos) seria muito mais elaborado do que o falado na
Lusitnia ou na Galiza. No obstante esta diversidade, o latim vulgar tornou-se
15Designa-se latim vulgaro latim trazido para a Pennsula Ibrica por soldados integrados no exrcitoromano, funcionrios administrativos e outra gente sem grande cultura; no era um latim muito correcto,apresentando as caractersticas do povo (vulgus) que o falava. Deve-se ao linguista suo, Ferdinand deSaussure (1857 - 1913) esta viso histrica que refere a formao da lngua desde os tempos maisremotos, procurando relacionar a sua evoluo com os factos histricos, as correntes culturais e ocontacto com outras. Saussure tomou, como exemplo, a rvore cujo corte vertical no tronco permite umaanlise evolutiva, diacrnica, e o corte horizontal permite uma viso hic et nunc, sincrnica, de todas assuas caractersticas actuais. Cf.SAUSSURE, Ferdinand de - Cours de Linguistique Gnrale. Paris: Ed.Payot, 1969. Esta obra foi publicada em 1916, pelos discpulos.16CASTELO BRANCO, Maria Ins - Pequeno Curso de Lngua Portuguesa, op.cit., p. 13.17Cf.ESTRABO - GeografiaIII, 1, 6 e III, 4, 17-18. O historiador e gegrafo grego ter morrido noano de 19 d.C..
7/23/2019 Tese - Angelo Abrunhosa.pdf
16/359
16
a lngua de toda a Pennsula Ibrica. Todavia, muitos vocbulos, existentes
antes da chegada dos romanos, acabaram por sobreviver, misturados, depois,
com a lngua dos invasores18.
Nos primeiros anos do Sculo V d.C., entram na Pennsula outros povos,
como os vndalos, os suevos19 e os alanos. E so outros brbaros, os
visigodos, que, chamados pelos romanos defesa da Pennsula Ibrica,
acabam por dominar, iniciando o Reino Visigtico20. Se os romanos foram
vencidos politicamente, culturalmente saram vencedores, dada a superioridade
da sua lngua, da sua cultura, dos seus costumes e das suas leis, rapidamente
assimilados pelos visigodos. Alis, o mesmo tinha acontecido com os
Romanos, quando conquistaram a Grcia, no sculo II a.C., donde saram,
culturalmente, vencidos. A superioridade do latim vulgar (sermo plebeius) -
cada vez mais adulterado, porque a sua transmisso era, sobretudo, oral - no
obstou influncia visigtica, presente em vocbulos referentes guerra
(guerra, guarda, escaramua, bando, etc.) ou a nomes de pessoas e lugares
(Afonso, Henrique, Mendo, Rodrigo, etc.).
A partir da primeira invaso rabe, em 711 d.C., comea a Islamizao da
Hispania, juntando-se lngua falada um novo superestrato - o elemento rabe.
Apesar da permanncia rabe, em Portugal at ao sculo XIII e em Espanha
at ao sculo XV21, a lngua falada pelos habitantes da Pennsula continuou a
18 Costuma designar-se por substrato este fenmeno de sobrevivncia dos elementos lingusticos dospovos primitivos da Pennsula, no latim vulgar, que os assimilou. Estrato, linguisticamente, designa acamada principal; no caso vertente, o latim vulgar o estrato do portugus, do espanhol e das restanteslnguas romnicas. Superestratos so as influncias lingusticas que, aps a queda do Imprio Romano doOcidente e o declnio do latim, vo penetrar as vrias lnguas.19Os Vndalos e os Alanos pouco tempo se detiveram na Pennsula. Ficaram os Suevos estabelecidos aNorte do Rio Douro, onde constituram um Reino. No incio do reinado de Requirio (448 d.C), de
arianos converteram-se ao catolicismo.20Por acordo entre Valia, Rei dos Visigodos e o Imperador Romano do Ocidente, aqueles fixaram-se naGlia. Foi uma espcie de recompensa pelo auxlio prestado na luta contra Vndalos e Alanos. No reinadode Eurico (466-484), aproveitando o caos criado pela queda do Imprio Romano do Ocidente, osVisigodos comearam a ocupar, sistematicamente, o territrio da Pennsula. Alarico II (485 - 507),sucessor de Eurico, estendeu o domnio visigtico a toda a Hispania, com ocupao do Reino Suevo,fixando a capital em Toledo. Aps a morte de Alarico II, os Visigodos perdem toda a Glia, confinando-se o Reino VIsigtico, praticamente, Pennsula Hispnica, com excepo do Reino Suvico, quereconquistou a Independncia. Em 576, o Rei Leovigildo lanou nova campanha contra os Suevos,anexando, definitivamente, os seus territrios em 585. Toda a Pennsula passou a ser visigtica, comexcepo da zona sul, que continuou a formar uma espcie de provncia do Imprio Romano do Oriente.Nos comeos do sculo VII (620 d.C.), os Bizantinos foram, definitivamente, expulsos da Pennsula, ondeocupavam apenas o Algarve. Como os Suevos, antes da converso de Requirio, tambm os Visigodos
eram arianos; mas Recaredo converteu-se ao catolicismo, solenemente, no III Conclio Nacional deToledo, em 589.21O Algarve foi, definitivamente, conquistado aos rabes, em 1249, no Reinado de D. Afonso III; mas o
7/23/2019 Tese - Angelo Abrunhosa.pdf
17/359
17
ter como base fundamental o sermo plebeius. No entanto, este com o seu
lxico enriquecido pelas influncias locais anteriores ao latim, pelas influncias
germnicas e ainda pela lngua rabe, deu origem, no sculo IX, ao romance
(do advrbio romanice), lngua viva (loqui romanicej no era loqui latine), com
forte individualidade como instrumento de comunicao. Evoluindo, margem
de cnones gramaticais e com disperso territorial, deu origem na Pennsula
Ibrica, s conhecidas variantes regionais: o aragonse o catalo, a Oriente; o
Leons, o Asturianoe o Galego, a Ocidente; separados pelo castelhanoque,
segundo M. Pidal, avanando do Pas Basco para o Sul, teria fendido como
uma cunha o romano peninsular comum22. Mesmo quando o latim deixou de
ser lngua viva, continuou a ser usado nas chancelarias e nos cartrios23, cada
vez mais distante do latim clssico e cada vez mais prximo da lngua falada
pelo povo - o chamado latim brbaro, em que o castelhano e o portugus
proto-histrico transluzem a cada passo.
Prosseguindo nesta perspectiva diacrnica da linguagem demo-regional,
de realar, ainda, a influncia francesa, trazida por cavaleiros, que preferiram
combater os rabes em terra estranha a deix-los penetrar no seu pas. Foi o
caso dos primos Raimundo e Henrique, que vieram a ser, respectivamente,
condes da Galizae do Territrio Portucalense. Tambm as Ordens religiosas
de Cluny e Cister, atravs dos seus mosteiros, deixaram vestgios indelveis no
plano lingustico. A partir do sculo XV, vm os descobrimentos, a imprensa, o
contacto com admirveis mundos novos, a emigrao, os meios de
comunicao e difuso e a evoluo lingustica continua, hoje mais do que
nunca, marcada por superestratos com um espectro amplamente diversificado.
Com a Reconquista Crist, reacenderam-se os regionalismos lingusticos,
mormente, o galego, o castelhano e o catalo. As vicissitudes polticasacabariam, todavia, por iar a hegemonia do castelhano, reduzindo as outras
linguagens a simples falas regionais. Porm, na primeira fase da Reconquista,
ltimo reduto mouro, na Pennsula, o de Granada, soobrou, apenas, em 1492, ano em que Colombo, aoservio dos Reis Catlicos, se preparava para partir descoberta do Novo Mundo.22 SARAIVA, Jos Antnio; LOPES, scar - Histria da Literatura Portuguesa. 2 ed.. Porto: PortoEditora, Lda. [s.d.], p. 21-22.23Certamente, o costume de redigir em latim os documentos pblicos, contratos, doaes, testamentos,etc., tem a ver com o facto de no ter desaparecido, inteiramente, a prtica do direito romano e tambm
porque os seus redactores eram formados nas escolas eclesisticas, onde continuou a ensinar-se latim e ausar-se na liturgia.
7/23/2019 Tese - Angelo Abrunhosa.pdf
18/359
18
o Galego, geogrfica e linguisticamente, mais afastado do castelhano, usufruiu
do prestgio cultural e religioso que Santiago de Compostela impunha aos
restantes Reinos Cristos24.
Lembre-se quea principios do sculo IX, durante o reinado de Afonso II,
o Casto, comezaron a se espallar novas de que, in finibus Amaee (nos confns
da Maa, num lugar desabitado pero vecio igrxa de San Fiz de Solovio, un
ermitn e, logo, o bispo iriense Teodomiro descubriron os restos dun pequeno
edculo que identificaron co sartego de Santiago o Maior. Com independencia
da certeza ou non da presencia dos restos do Apstolo no tal edculo, axia
convertido en templo, importante sublia-la rapidez com que se difundiu o
culto xacobeo. [..] Nasceu as Compostela, ncleo urbano vinculado
estreitamente locus sanctus onde estaba soterrado un Apstolo e que tivo,
por isto, un marcado carcter episcopal25
Ainda em finais do sculo XI, a Galiza estendia-se, politicamente, at ao
Mondego ou ainda mais para o Sul, com uma grande homogeneidade tnica e
lingustica. Da que, na sua primeira fase histrica, at meados do sculo XIV,
o portugus literrio aparea como um falar galego. Rodrigues Lapa, ao
caracterizar o lirismo portugus medieval, designa-o como lirismo galego-
portugus, porque: [...] as primeiras manifestaes da arte trovadoresca e at
os maiores trovadores, tirante D. Dinis, acusam o predomnio evidente do
elemento galego sobre o elemento portugus, o que pode fazer supr que o
foco irradiador da nova poesia esteja, sobretudo, na regio de Alm-Minho.
Pelo menos, a procedncia averiguada da maior parte dos trovadores assim o
indica26.
Os mais antigos documentos conhecidos so em galego-portugus, o que
leva a crer que a Norte e a Sul do Rio Minho se desenvolveu uma lnguasubstancialmente uniforme, embora, talvez, desde sempre com algumas
24Cf., no mesmo sentido, BARATA QUINTS, Daniel La Cultura Gallega en el ano 2000, in LaGalicia del ano 2000. Madrid: Fundacin Cnovas del Castillo, 1993, p. 39: "Tenemos una lengua, hijadel latn, hermana del castellano y madre del portugus. Nuestra lengua es la creacin genuina del pueblogallego... est viva en el pueblo. El gallego, procedente del latn militar y del latn medieval, se ajusta a laterra y a su historia: la tierra y la lengua son los elementos profundos de la comunidade gallega. Sabidoes, as mismo, de todos que el gallego fue la primera lengua peninsular que goz de enorme prestigiocultural y en ella Afonso X, el unico rey sabio... expres lo mejor de su espritu".25
Cf.VILLARES, Ramn Historia de Galicia.Vigo: Edicins Obradoiro, S.A./Santillana, 1998, p. 25.26RODRIGUES LAPA, Manuel - Lies de Literatura Portuguesa. poca Medieval. 5 ed.. Coimbra:Coimbra Ed., Lda., 1964, p. 103.
7/23/2019 Tese - Angelo Abrunhosa.pdf
19/359
19
particularidades dialectais. Mas, como o mapa poltico se repercute no mapa
lingustico, Portugal, independente desde o sculo XII, acabou por converter as
suas vetustas particularidades dialectais em idioma de nao autnoma,
polarizada mais a sul. E o galego teve a sorte da Galiza; perdida a sua antiga
hegemonia cultural e poltica, retraiu-se no Noroeste peninsular como fala
regional, devido ao processo histrico de assimilao cultural e lingustico,
dirigido por Castela. Contudo, o povo continuou a atravessar, como
hodiernamente, o Minho e a procurar no territrio luso o que lhe faltava na sua
terra27. A presena dos galegos em Portugal ainda hoje perdura na memria do
povo em frases evocativas da sua capacidade laboriosa, como esta: "trabalha
que nem um galego". De facto, mourejavam, arduamente, como carregadores,
moos de fretes, criados, serviais e aguadeiros, mas tambm como
catedrticos, advogados, mdicos, capites, etc.. Ao findar o sculo XVIII,
contar-se-iam cerca de 80.000 galegos espalhados pelos portos e cidades de
Portugal, estando metade em Lisboa.
3. Comunidade Regional. Solidariedade Horizontal e Vertical.
Sem solidariedade no h comunidade, solidariedade entre os vivos
(horizontal) e destes com os mortos (vertical). Qualquer das regies em apreo
compe-se mais de mortos do que de vivos. a solidariedade que une o
passado com o presente; e a dispora aoriana e galega, mesmo emigrada do
seu mundo regional ad multos annos, sobrevive, porque permanece unida e
solidria com o seu povo de origem.
Andou bem avisado o deputado Vital Moreira, ao propor a meno dasolidariedade, no artigo 227, n2 da C.R.P., que a Assembleia Constituinte
aprovou por unanimidade28. No entanto, esta referncia solidariedade, em
sede de princpios fundamentais, apenas surgiu, em 1989, com a alterao do
artigo 1 da C.R.P.; deixou de se afirmar Portugal uma Repblica soberana,
27TORRES, Ruy d'Abreu Galegos em Portugal, in SERRO, Joel, dir. Dicionrio da Histria dePortugal, vol. II. Porto: Livraria Figueirinha, 1971, pp. 320-321.28Dirio, n 124, reunio de 23 de Maro de 1976, p. 4113.
7/23/2019 Tese - Angelo Abrunhosa.pdf
20/359
20
baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada
na sua transformao numa sociedade sem classes, para se passar a dizer
Portugal uma Repblica soberana, baseada na dignidade da pessoa
humana e na vontade popular e empenhada na construo de uma sociedade
livre, justa e solidria. que, como sublinha o Professor Jorge Miranda, toda
a vida social pressupe ou determina solidariedade enquanto convivncia,
segurana comum e reciprocidade de servios. Mas nem todas as sociedades
acolhem um princpio de solidariedade como princpio modelador de relaes e
situaes em funo de novos equilbrios, ou de mais justia e igualdade, ou de
maior crescimento humano. Uma coisa a solidariedade dos socilogos, outra
coisa a solidariedade dos filsofos e tambm a das Constituies que intentam
conformar e reconformar as comunidades a que se dirigem. Numa perspectiva
jurdico-poltica apenas esta importa29.
A regio surge como uma comunidade afectiva natural, resultante da
Histria, reconhecida por cada um dos seus membros, que prossegue um
destino comum30. O Individualismo Iluminista do sculo XVIII, atomista e
mecanicista, reduzia todos os agrupamentos humanos aos indivduos isolados
e s relaes contratuais ou quase-contratuais entre eles. O Romantismo e a
escola sociolgica31, holsticos e estruturalistas, despertaram a conscincia de
que a comunidade algo mais do que uma mera soma aritmtica das partes
componentes. Uma instituio no um amontoado ou conjunto amorfo de
pessoas, mas uma estrutura permanente de valores e ideais em realizao
29 MIRANDA, Jorge Solidariedade e Autonomia, in Autonomia no Plano Jurdico Actas doCongresso do I Centenrio da Autonomia dos Aores. Ponta Delgada: Jornal de Cultura, 1995, p. 53.30 Vide como Vitorino Nemsio, aoriano, reconhece esta comunho afectiva, numa carta enviada aArmando Crtes-Rodrigues: Quanto mais me afasto das nossas ilhas pelos interesses espirituais, mais
ligado a elas me sinto, no fundo insubornvel. Um dia, darei a frmula de um regionalismo que no est espera de bandeira e hino para ser uma forma de amor essencial ao bero e s nuvens que cobrem obero... Mesmo sem nos vermos, comungamos mesa dos Aores - comungamos no mar. No ?" Cf. MAIA GOUVEIA, Margarida - Vitorino Nemsio e Ceclia Meireles.A Ilha Ancestral. Porto: FundaoEng. Antnio de Almeida / Casa dos Aores do Norte, 2001, pp. 65-66.31 A palavra "sociologia" foi criada em 1823 por Augusto Comte (1798 - 1857), que reconhecia terhavido, antes dele, um acervo de reflexes sobre fenmenos sociais. Ele prprio foi secretrio de Saint-Simon (1760-1825), de quem aproveitou a lei dos trs estdios, desenvolvida no seu Cours dePhilosophie Positive (1839-1842): estdio teolgico, estdio metafsico e, finalmente, estdio positivo.Mas no deve confundir-se a Histria da Sociologia com a Histria das Ideias Sociais, pois estas noconsideravam a sociedade como um objecto especfico de investigao, susceptvel de uma anlisemetdica, cujas uniformidades pudessem ser investigadas, sistematicamente. A sociologia surgiu, sob oponto de vista terico do conhecimento, como reaco emprica s teorias individualistas do direito
natural e do contrato social; sob o ponto de vista sociolgico, configurou-se como cincia de contestaoda burguesia ascendente. Cfr.EISERMANN, Gottfried - Sociologia. 2 ed.. Lisboa: Fundao CalousteGulbenkian, 1969, pp. 3-20
7/23/2019 Tese - Angelo Abrunhosa.pdf
21/359
21
contnua32.
A comunidade regional no perde a sua identidade pelo facto de todos os
seus membros antigos terem fenecido; pelo contrrio, os membros actuais
orgulham-se dos mritos dos antigos, sentem-nos como prprios (solidariedade
vertical) e lutam por ir mais alm33. Isso mesmo, podemos divisar nas palavras
de Manuel Fraga Iribarne, Presidente da Xunta de Galicia:
Galicia no es una obra terminada en la historia. Galicia est en buena
parte por hacer. Galicia no ha dicho todava su ultima palabra en el concierto
de los pueblos. Tiene muchas cosas que decir y que hacer, antes y despus
del ao 2000. Pues bien, yo quiero que Galicia sea ms cada dia. Yo deseo
que Galicia triunfe en la competencia con las otras regiones de Espaa y
Europa. Yo quiero que Galicia cambie para mejor. Y creo firmemente que todo
eso no es ningn imposible34.
So mltiplos os elementos de profunda solidariedade regional, mas
todos convergentes geogrfica, sociolgica e culturalmente, sobretudo, so
elementos reconhecidos e vividos. Eis o sentimento vivo de um galego, h
alguns anos: Para los gallegos, nuestra responsabilidad espaola se llama
Galicia; nuestro peculiar modo de ser espaoles es ser gallegos. Lo somos por
naturaleza, por nacimiento, tenemos pues el imperativo moral de ser fieles a
nuestro origen, a nuestro nacimiento, de ser bien nacidos; pero tenemos,
adems, la responsabilidad espaola de ser buenos gallegos, porque la
Espaa del Noroeste peninsular es Galicia35.
32H dois nomes, no mbito da sociologia, na transio do sculo XIX para o sculo XX, que tm de serdestacados: Emile Durkheim (1858-1917) e Max Webber (1864-1920). Tambm eles interagiram com acomunidade cultural a que pertenciam - Durkheim em Frana e Webber na Alemanha. Em Frana, naesteira de Comte, a sociologia afirmava-se, opondo-se e negando o estatuto de cincias economia,
histria e psicologia; Durkheim continuou a preocupao de distanciar a sociologia da psicologia,considerando que aquela deve tratar os factos sociaiscomo coisas, sendo o mtodo tanto mais cientficoquanto mais prximo do mtodo da fsica da poca. Facto social era toda a maneira de fazer, fixada ouno, susceptvel de exercer sobre o indivduo uma coero do exterior. Pelo contrrio, na Alemanha,Webber foi confrontado com a polmica em curso, que defendia a especificidade das cincias do esprito,relativamente s cincias da natureza. Neste contexto, Webber optou por no tomar como mtodo omodelo das cincias da natureza e por no pretender construir uma teoria completa do social. ParaWebber, a sociologia a cincia que se prope compreender, por interpretao, a aco social,explicando causalmente o seu desenvolvimento e os seus efeitos. Aco social toda aquela que se orientapara outrem, ou seja, quando se processa no seio de sistemas de interaco ou de interdependnciasociais. Cfr.ALVES PINTO, Conceio - Sociologia da Escola. Alfragide: editora M. C. Graw - Hill dePortugal, Lda., 1995, pp. 74-88.33Mais adiante, afloraremos a influncia da sociologia na concepo do direito.34
FRAGA IRIBARNE, Manuel Camino y Meta de la Galicia del ao 2000, in La Galicia del ao2000. Madrid: Fundacin Cnovas del Castillo, 1993, p.21.35FERNNDEZ ALBOR, Gerardo Galicia en la Europa del ao 2000 , inLA Galicia del ao 2000.
7/23/2019 Tese - Angelo Abrunhosa.pdf
22/359
22
Nos Aores, regio com uma configurao mpar, caracterizada pela sua
natureza de arquiplago, composto por nove ilhas que se estendem por 600
Km, em pleno Oceano Atlntico, a marca profunda da sua identidade cultural e
sociolgica, o isolamento e o mar. Os fluxos de pessoas e de mercadorias
desenvolvem-se, necessariamente, por mar ou pelo ar, o que obriga a que
cada ilha tenha o seu porto e aeroporto, transportes martimos e areos. A
conscincia colectiva aoreana, desenvolvida nestes parmetros geogrficos,
foi sedimentando, ao longo da histria, sentimentos prprios em que avulta o
imaginrio de filhos do mar.
4. Espao Regional
Para Ritter (1779 - 1859), a terra o teatro da actividade humana e o
homem encontra nela o mesmo papel que a alma no corpo36. Esta frase,
aparentemente ousada, encerra uma velha ideia, a das relaes do Homem
com o meio. No sculo XVI, Bodin, no seu Methodus ad Facilem Historiarum
Cognitionem(1566), chamou ateno para o facto de as diferenas entre os
Estados serem determinadas pelo clima, fertilidade do solo e restantes
particularidades geogrficas do pas37. Em 1748, Montesquieu retomou, nos
livros XIV a XVII, de L'Esprit des Lois, o mesmo pensamento, esboando um
quadro grandioso do condicionamento das leis pelas realidades naturais. Na
transio do sculo XIX para o sculo XX, a escola alem de geografia,
liderada por Frdric Ratzel, que foi autor de uma Geografia Poltica38 e a
escola francesa da Geografia Humana, fundada por Vidal de La Blache e Jean
Brunhes, aprofundaram estas ideias.A cincia est em reviso contnua; o certo de hoje o provisrio de
Madrid: Fundacin Cnovas del Castillo, 1993, p. 50.36Cf.MARTONNE, Emmanuel de "Trait de Gographie Physique", in Panorama da Geografia, vol. I.Lisboa: Cosmos, 1953, pp. 14-21. Remontam aos antigos as preocupaes geogrficas; mas foi com osdescobrimentos que surgiu um prodigioso alargamento do horizonte geogrfico, se desenvolveu acartografia e progrediram os conhecimentos fsicos auxiliares da Geografia. Todavia, s no sculo XIX, aGeografia assumiu dignidade cientfica com Humboldt (1766-1859) e Ritter (1779-1859), que mostraram,claramente, o caminho a percorrer. Cerca de meio sculo depois, o zologo alemo Ratzel e o historiadorfrancs Vidal de La Blache estruturaram as bases de uma geografia nova - A Geografia Humana -
verdadeira cincia das relaes entre o homem e a natureza.37Videa mesma ideia no vol. I dosSix Livres de La Republique(1577).38Os discpulos de Ratzel chamariam, mais tarde, Geopoltica disciplina introduzida pelo mestre.
7/23/2019 Tese - Angelo Abrunhosa.pdf
23/359
23
amanh; mas a relao homem-espao jamais se apagar ou perder
interesse, como testemunha Vitorino Nemsio: Mas voltando relao
forosa que possa haver entre umas ilhas onde me criei e as coisas que penso
e escrevo: Em Bruxelas, a cujo ambiente civil e espiritual tanto devo [...],
concebi e gizei um romance de ambiente ilhu que dormiu anos na gaveta e s
agora acabei. Intitula-se MAU TEMPO NO CANAL. A aco passa-se no Faial,
no Pico e em So Jorge, com um longo captulo de desfecho na Terceira, em
Angra. Mas o ncleo da intriga desenvolve-se na Horta39.
Relativamente Galiza, so de preocupao as palavras do seu anterior
Presidente de la Xunta, Fraga Iribarne: La orografa de Galicia origina
dificultades tcnicas e financeras a los caminos de asfalto y de hierro
ciertamente difciles de superar. Esa carencia de autovas y ferrocarriles
interiores y, en general, de buenas comunicaciones para el comercio nos
ha retrasado y no poco. [...] Galicia ha estado incomunicada durante toda la
modernidad com el resto del mundo porque ha tenido cegadas casi
completamente por los cuatro puntos cardinales sus vas de salida al exterior y
de penetracin al interior. Por el Este, el dursimo cerco de montaas, slo
penetrables com las tecnologas y los capitales actuales, nos priv hasta ahora
de autovas que nos unieran aceptablemente com Asturias y Castilla Len y,
a su travs, con el resto de Espaa y de Europa.Por el Oeste y por el Norte, la
peligrosa Costa de la Muerte ha incomunicado el cabotaje entre nuestros dos
mares, el Cantbrico y el Atlntico. Y adems, por el gran alejamiento de la
costa que exige la seguridad a las derrotas nuticas, el acantilado finisterrano
nos ha marginado de las rutas martimas internacionales y en especial de las
sudamericanas y centroeuropeas40.
No concernente aos Aores, temos uma configurao geogrfica muitocaracterstica. O arquiplago, situado em pleno Oceano Atlntico, a cerca de
1500 km da costa portuguesa e 3600 km da costa da Amrica do Norte,
compe-se de nove ilhas e alguns ilhus, que constituem trs grupos: Grupo
Oriental - Santa Maria e So Miguel; Grupo Central - Terceira, Graciosa, So
Jorge, Pico e Faial; Grupo Ocidental - Flores e Corvo. A rea total dos Aores
39
Cf. MAIA GOUVEIA, Margarida - Vitorino Nemsio e Ceclia Meireles.A Ilha Ancestral,op. cit., p.24.40FRAGA IRIBARNE, Manuel Camino y Meta de la Galicia del ao 2000, op. cit., pp. 24-25.
7/23/2019 Tese - Angelo Abrunhosa.pdf
24/359
24
de 2300 km2, onde vivem cerca de 260.000 habitantes, ou seja, apresentam a
dimenso de um centro urbano continental e mdia dimenso. excepo do
Grupo Central, as ilhas so relativamente distantes entre si, variando bastante
em rea e populao. A ilha de maior superfcie a de So Miguel, com 747
Km2, e a mais pequena a do Corvo, com 17,5 Km2. Esta ltima ilha um
exguo povoado, pois nunca atingiu os 400 habitantes. Apesar de tudo, a
localizao dos Aores confere-lhe um papel relevante, em termos geo-
estratgicos. O PRODESA (Programa Operacional para o Desenvolvimento
Econmico e Social dos Aores), atinente ao perodo 2000-2006, no mbito do
Quadro Comunitrio de Apoio III, levou em considerao esta situao
geogrfica peculiar41.
Concluindo, a identidadede cada uma destas regies indissocivel da
sua geografia, que o espao fsico onde se desenvolve a solidariedadeentre
os que nele nascem e crescem, gerando uma certa conscincia regional.
41 Cf. QCA III, Portugal 2000-2006, in "O Comrcio do Porto", n 202, de 20 de Setembro de 2000.Portugal beneficiou, como, alis, a Espanha, desde 1986, de apoio financeiro comunitrio regular, com afinalidade de reduzir as disparidades face aos padres mdios europeus, correspondendo a fases distintas:a primeira relativa ao perodo de 1986-1988, designada deAnterior Regulamento; a segunda, referente ao
QCA 1989-1993 (QCA I); a terceira, referente ao QCA 1994-1999 (QCA II). A quarta fase (Quadro deApoio Comunitrio III)abrange o perodo em curso de 2000 a 2006.
7/23/2019 Tese - Angelo Abrunhosa.pdf
25/359
25
CAPTULO II
CONSCINCIA REGIONAL
Decompondo o termo justo, na esteira do pensamento do Professor
Doutor Francisco Puy Muoz, apreendemos o seu real significado: el adjectivo
iustus apone dos races fuertes: iustus y sto. Este ltimo trmino significa lo
que se mantiene firme, parado y slido, sin haber sido doblegado, echado a
rodar o violado. Lo justo es cualidad de un ius que se mantiene inviolado42.
Justo , pois, a aglutinao de ius e de sto, o direito que permanece.
Consequentemente, o justo o real escondido, o direito natural permanente
que o legislador deve conhecer e positivar.
Se para os idealistas platnicos o sujeito cognoscente descobre o justo
dentro de si mesmo, para os realistas aristotlicos o sujeito cognoscente deve
sair de si prprio e adequar-se realidade, que a Escolstica Medieval veio a
entender como expresso de vontade e ordem divinas. Finalmente, Kant, numa
conciliao de idealismo e realismo, cogitou que o conhecimento era o
fenmeno real (e s o fenmeno) moldado pelas formas e categorias a priorido
sujeito. Pergunta-se, ento: no acto de conhecer, qual o peso do sujeito, o
peso do real e o peso da relao gnsica sujeito-real? Em sntese, este
captulo uma breve dissertao sobre a epistemologia do direito, a propsito
da conscincia regional.
42PUY MUOZ, Francisco El Tpico de lo Justo Natural, in Direito Natural, Justia e Poltica, vol.I. Faculdade de Direito da Universidade do Porto: Coimbra Editora, 2005, pp. 531-532.
7/23/2019 Tese - Angelo Abrunhosa.pdf
26/359
26
1.Gnose Regional
A descoberta da conscincia regional to significativa como a
descoberta da natureza fsica da regio. As informaes mentais, afectivas e
culturais possuem estruturas que lhe so peculiares; apresentam tipos e
formas, intrnsecas e extrnsecas, que nascem, se transformam e do lugar a
novas formaes. A cada regio corresponde uma ontologia regional prpria,
em que os elementos possuem a sua maneira de ser; importa intu-los e
represent-los com fidelidade, de maneira a encontrar a autntica ipseidade
regional. Parafraseando Alexandre Herculano, acerca da investigao
histrica43, a regio pode comparar-se a uma coluna polgona de mrmore.
Quem quiser examin-la deve andar em redor dela, contempl-la em todas as
suas faces. No basta olhar para um dos lados; preciso contar-lhe os veios,
medir-lhe a altura e no ficar por uma aresta. Ainda que, para alcanar este
objectivo, tenhamos de ser radicais, segundo Husserl44, e recusar
impressionar-nos com os mais famosos nomes, "entregando-nos livremente
aos prprios problemas e aos postulados que deles partem". A gnose radical
tem de proceder, tambm, radicalmente e a todos os respeitos. "Somos
demasiado dominados por preconceitos - continua Husserl45 - que provm,
ainda, da Renascena. Aquele que deveras independente de preconceitos,
no se importa com uma averiguao ter a sua origem em Kant ou Toms de
Aquino, em Darwin ou em Aristteles, em Helmholtz ou Paracelso".
Sem querermos alongar demasiado esta reflexo, no resistimos a evocar
o pensamento de Jean Ullmo: "Plato e Aristteles, por tantos ttulos diferentes,
tiveram em comum uma concepo radical do racionalismo, que desempenhou
um papel decisivo na histria do pensamento e cujas repercusses esto aindalonge de estar esgotadas; as ideias de Plato, as essncias de Aristteles
constituem um Mundo Inteligvel intemporal ao qual tem acesso, pela sua
natureza, a razo. O mundo da experincia ou dos fenmenos apenas o
reflexo do mundo inteligvel cujas entidades racionais se realizam nele mais ou
43 HERCULANO, Alexandre Cartas sobre a Histria de Portugal, in Opsculos, vol. V, 5 ed..Lisboa, s.d., pp. 98-105.44
HUSSERL, Edmundo - A Filosofia como Cincia de Rigor, trad. de Albin Beau, 2 ed.. Coimbra:Atlntida, 1965, p. 72.45Ibidem, p. 73.
7/23/2019 Tese - Angelo Abrunhosa.pdf
27/359
27
menos imperfeitamente; a razo domina o mundo fenomenal na medida em
que nele encontra as imagens dessas entidades conceptuais que so o seu
domnio prprio"46.
Todos os que permaneceram ligados aos mtodos de Aristteles, ao
primado da lgica, ao realismo das classes, explorao do universo do
discurso, tiveram de abandonar a sua pretenso de apreender imediatamente o
real pela anlise da linguagem47. Com Descartes e Galileu, desenvolveu-se a
concepo, j vislumbrada no realismo platnico, de que o mundo fenomenal
ordenado por leis matemticas e assim submetido razo. Segundo
Descartes, estaramos seguros em compreender o mundo. Porqu? que as
leis da natureza so as mesmas do pensamento, porque ambas so
projeces de uma mesma razo divina - Razo Absoluta. Mas, nos princpios
do sculo XIX, o racionalismo absoluto de Descartes havia j dado lugar ao
racionalismo crtico de Kant. Para este, a natureza deve moldar-se aos
quadros, s leis da razo, para se tornar conhecida. Os racionalismos de
Descartes e de Kant tm em comum acreditar num contedo da razo:
evidnciasou naturezas simples, em Descartes; categorias, formas a priorida
intuio, em Kant48.
Para a cincia moderna, a razo no tem contedo permanente; a razo
no um conjunto de princpios, , essencialmente, uma actividade. Hoje, o
racionalismo a convico de que a actividade racional sabe construir
sistemas, abstraindo regras da experincia e traduzindo-as em operaes
mentais. A razo no um dado que se imponha natureza; antes uma
actividade instruda pela natureza que, a pouco e pouco, se revela razo.
Como corolrio, temos que o pensamento cientfico intransigente e condena
qualquer atitude ligada a noes ultrapassadas; sabendo, porm, do esforoque teve que fazer para adquirir novas estruturas, tem plena conscincia de
que este esforo no est ainda acabado e que uma estrutura mais abstracta
se esconde ainda por detrs da que acaba de alcanar, reconhecendo-lhe,
assim, o seu carcter provisrio. Esta dialctica entre a certeza e a dvida,
certeza de progredir e dvida de ter chegado j ao fim , talvez, a caracterstica
46 ULLMO, Jean - O Pensamento Cientfico Moderno, trad. de Mrio Augusto da Silva. Coimbra:
Coimbra Editora, Lda., 1967, pp. 305 - 306.47SERRUS, Ch. -La Langue, le Sens, la Pense. Paris: P.U.F., 1941, p. 163.48ULLMO, Jean op. cit., p. 308.
7/23/2019 Tese - Angelo Abrunhosa.pdf
28/359
28
mais essencial do esprito cientfico49. O processo do conhecimento uma
constante remodelao, porque o progresso surge, a maior parte das vezes, de
estruturas novas que substituem e contradizem as estruturas precedentes.
2. Crise da Lgica Aristotlica e da Fundamentao Jurdico
Poltica
Pela repercusso que teve nas categorias conceituais e silogsticas da
dogmtica jurdica moderna, oportuna uma breve referncia Lgica de
Aristteles que, durante dois mil anos, forneceu o modelo do conhecimento
racional. Ainda hoje o prestgio aristotlico se manifesta, mais ou menos
conscientemente, no ideal de uma deduo integralcriadora de verdade, o que
obsta, sem dvida, a que o pensamento cientfico se desprenda das antigas
concepes. No realismo metafsico de Aristteles, embora conseguido pelo
mtodo indutivo, inverteu-se, depois, a natural ordem do conhecimento, que
parte do particular para o geral, do concreto para o abstracto. O Estagirita
substituiu esta ordem natural do conhecimento pela ordem metafsica do ser,
na qual as essncias so tomadas como ponto de partida do esprito, capaz de
descer do geral ao particular, do abstracto ao concreto. Os conceitos
aristotlicos so definidos, pela sua compreenso, como essncias, que se
hierarquizam a partir do conceito mais geral e menos compreensivo de ser
puro. Assim, mortalfaz parte da compreenso do conceito de homem; logo,
um predicado da essncia do homem. Pela simples anlise da compreenso
de um conceito chega-se a especificaes, isto , a subdivises sustentadas
por certas classes de seres reais. Ou seja, nos gneros com maior extenso emenor compreenso intuem-se as espcies com menor extenso e maior
compreenso. O silogismo exprime esta anlise encadeada dos conceitos; e
da mesma maneira que essas essncias, consideradas como realidades
metafsicas de um mundo inteligvel, eram dotadas do poder de se incarnarem
nos seres reais, tambm a deduo era capaz de tirar pela anlise dessas
essncias, as propriedades verdadeiras destes seres50. Este substrato
49ULLMO, Jean op. cit., p. 308.50ULLMO, Jean - op. cit., pp. 262-263.
7/23/2019 Tese - Angelo Abrunhosa.pdf
29/359
29
metafsico da lgica clssica, puramente tautolgica, nada ensina que j se no
saiba; no criador, apenas facilita a ordenao e exposio.
Daqui o interesse, hoje, pelo silogismo hipottico, em vez do silogismo
categrico de Aristteles. J no se pe, categoricamente, a verdade das
premissas, mas supe-se como hiptese de labor, exercendo-se toda a
ateno sobre a verdade formal do raciocnio. Em concluso, o esprito no
pretende j alcanar o realpelo nico esforo do pensamento, a se ipso; mas
procura apenas respeitar os princpios lgicos, permanecendo de acordo
consigo mesmo.
No mbito do Direito da modernidade, pelo contrrio, pem-se,
categoricamente (no se supemapenas), como premissas verdadeiras:
Uma certa forma de contratualismo, a ideia de liberdade, voluntarismo e
proprietarismo51.
Mas, como as formas jurdicas tm a virtualidade de, por seu turno,
contaminarem outros nveis da vida social e, como bvio, imediatamente se
estenderem, quanto mais no fosse por analogia, vida poltica, vai da desse
contratualismo de base civilstica e, depois, mercantil, se passar, a no muito
longo trecho, ao contratualismo poltico, com a reinveno do Contrato Social
como mtico pacto fundador da sociedade, com a representatividade como
mandato.
No se poder negar que boa parte do aparente jusnaturalismo, mesmo
clssico ou clssico renovado (como no caso da Segunda Escolstica
Hispnica, designadamente com SUAREZ), trazia (e algum ainda transporta
consigo) preconceitos metodolgicos modernos, voluntaristas, e at
racionalistas, que teriam a sua apoteose no positivismo.
No limite, e em resumo, com matizes diversos embora, praticamente todosse baseavam numa ingnua crena na descoberta de um real pr-estabelecido,
cujo conhecimento s ganharia em tornar-se objectivo.
De todo o modo, o que ainda impera na verdade, o positivismo jurdico,
muito pragmtico e, adaptando-se, em metamorfose, a todas as teorias
(mesmo s jusnaturalistas). Por outro lado, da banda da justificao e
51No no sentido do que prprio e reside nas coisas, como no Direito Romano, mas que as coisas sopropriedade de algum, em sentido subjectivista e individualista.
7/23/2019 Tese - Angelo Abrunhosa.pdf
30/359
30
funcionamento do poder, o que de melhor se encontra ainda o contratualismo
poltico, por mais que tudo em volta tenha mudado52.
3. O Pensamento Jurdico-Poltico prisioneiro da linguagem
O nico verdadeiro pensamento o pensamento expresso; mas a
linguagem, que o fixa, corre o risco de ser um corpo sem alma. que se o
pensamento sem palavra apenas um possvel sem realidade, acontece, por
vezes, que a palavra pode subsistir como um cadver, isto , um corpo sem
animus. A linguagem no apenas um elemento da cultura, entre outros; ,
sobretudo, o veculo de todas as aprendizagens culturais. As obrigaes e as
interdies, os usos e os costumes, as regras morais e as crenas, antes de
tudo, so palavras que se ouvem ou se lem e se aprendem. O homem
aparece como o lugar da linguagem, muito mais do que o seu autor. Uma
linguagem explicativa do mundo, uma cosmoviso, quando socialmente
reproduzida e tendo conquistado as mentalidades, pode repercutir-se por todas
as manifestaes da humanidade53.A linguagem de que se serviram Plato,
Aristteles, Toms de Aquino, Descartes ou Kant invadiu de tal maneira a
nossa cultura que, inconscientemente, dela ficamos prisioneiros. A sua filosofia
erigiu as particularidades da sua linguagem em condies necessrias e
universais do pensamento e o discurso passou a revestir a iluso de uma
realidade metafsica. Cristvo Colombo procurou a Amrica, orientando-se
pela cartografia dos seus predecessores, o que foi um obstculo descoberta
da ndia Oriental. Tambm a linguagem estabelecida aparece como um
obstculo renovao do pensamento.O discurso jurdico-poltico aparenta um mundo inteligvel dotado do poder
de se encarnar na realidade. uma espcie de intemporalidade e
inespacialidade a assumir a temporalidade e a espacialidade do hic et nunc.
So abstraces, ideias gerais, que os filsofos da Idade Mdia designavam de
universais; mas que, para os empiristas, so pura iluso. Para os empiristas, a
52
VideFERREIRA DA CUNHA, Paulo - Mysteria Iuris. Razes Mitosficas do Pensamento Jurdico-poltico Portugus. Porto: Legis Editora, Lda., 1999, pp. 164-170. 53Ibidem, p. 170.
7/23/2019 Tese - Angelo Abrunhosa.pdf
31/359
31
iluso vem do nome. Assim, quando se pronuncia a palavra homem uma
imagem sonora que, pelo hbito, ns associamos a diversas imagens visuais
concretas (de Pedro, Joo, Antnio, etc.). Para estes nominalistas, nas
referidas ideias gerais, nada mais h do que imagens concretas e um nome.
Pensamos, com Gaston Bachelard (18841962)54que os nossos sentimentos
pessoais e as disposies recebidas da tradio social complicam a tarefa da
actividade e da educao cientfica; que a percepo imediata e vulgar, ou
seja, a observao empricano fonte da cincia, mas antes um obstculo ao
conhecimento cientfico, um obstculo epistemolgico, pois, por oposio
percepo imediata, o conhecimento cientfico transforma as qualidades em
quantidades(o futuro da cincia o futuro da medida); diversidade emprica
a cincia substitui a unificao racional; onde a observao imediata v seres,
a cincia reconhece relaes (por exemplo, o peso depende do campo de
gravitao, a cor de um objecto da luz que ele reflecte). Para a cincia
moderna, a razo (tambm a razo jurdico-poltica) uma actividade
constituinte, como j ficou dito. Lalande distinguia dois aspectos da razo55: a)
a razo constituinte, isto , um conjunto de exigncias gerais que permanecem
sempre as mesmas; esta razo segue uma directiva imutvel e universal,
porque caracteriza a racionalidade humana; b) a razo constituda, isto , um
corpo de princpios estabelecidos caractersticos de uma mentalidade e de uma
poca.
Como corolrio, temos que a razo constituda representa um
compromisso sempre revogvel entre as exigncias eternas da razo
constituinte e os dados experimentais de uma poca56. Por vezes, perecem os
conceitos, restando a palavra; e aqueles que a usam julgam estar a pensar,
quando mais no fazem do que falar, como o papagaio que reproduz sons semlhes compreender o sentido. Convm denunciar os perigos deste
verbalismo/psitacismo to frequente no direito e, sobretudo, na poltica. Cabe
razo constituinte suscitar novos conceitos e at inovar no vocabulrio, para
resolver as contradies que se revelarem entre os conceitos fenecidos e as
54HUISMAN, Denis; VERGEZ, Andr Nouveau Court Trait de Philosophie, tome 2, Paris: FernandNathan, 1974, pp. 55-57.55
FOULQUI, P.; SAINT-JEAN, R. Dictionnaire de la Langue Philosophique. Paris: PUF, 1969, pp.604-605.56HUISMAN, Denis; VERGEZ, Andr op. cit.,p. 221.
7/23/2019 Tese - Angelo Abrunhosa.pdf
32/359
32
experincias novas, ainda que, para alcanar este objecto, tenhamos de ser
radicais, como nos lembra Edmundo Husserl, na sua Filosofia como Cincia de
Rigor.
4. A Conscincia Regional e Poltico-Jurdica
Littr57, em 1870, considerava a Poltica como a cincia da governao
dos Estados; cem anos depois, define-se a a Polticacomo a arte e a prtica
da governao das sociedades humanas. Ambas as definies apontam a
governao como o objectivo da poltica, com um poder organizado,
instituies de comando e de coaco. E, se alguns continuam, hoje, aconsiderar a poltica como a cincia do Estado, poder organizado na
comunidade nacional, a maioria v nela a cincia do poder organizado, em
todas as comunidades, portanto, tambm na comunidade regional58. Tambm
no resta dvida de que, actualmente, a poltica muito mais cientfica do que
no sculo passado, pois os governantes podem utilizar estatsticas, sondagens
de opinio, tcnicas de auscultao das massas, calculadoras electrnicas,
etc., que, antes, no tinham mo. Todavia, o sector desta poltica cientfica muito menor do que o da poltica arte e prtica, servida por obreiros
impreparados e arrogantes, que se baseiam em dados imprecisos, no
mensurveis, imediatos e irracionais59.
W. Mackenzie, na sua obra A Cincia Poltica60, destaca os dois pontos de
vista, cincia do estado e poltica sem estado, justificando-os assim: At
poca recente a Cincia Poltica, enquanto disciplina universitria, fazia parte
integrante da tradio ocidental em matria de educao e de governo. [] Otema central da cincia poltica ocidental foi a noo de estado se
considerarmos que esta palavra controversa designa, em cada poca, a
instituio pretendente supremacia jurdica e poltica... Esta concepo
57 mile Littr (1801-1881), discpulo de A. Comte, divulgou os seus princpios filosficos, morais ecientficos.58DUVERGER, Maurice Introduo Poltica. Lisboa: Estdios Cor, 1964, p. 11.59Ibidem, pp. 13-14.60
MACKENZIE, W. A Cincia Poltica. Trad. por Maria Joo Seixas do ttulo da Ed. FrancesaTendances Principales de la Recherche dans les Sciences Sociales et Humaines. Partie I: SciencesSociales La Science Politique. Amadora: Bertrand, 1975, pp. 19-24.
7/23/2019 Tese - Angelo Abrunhosa.pdf
33/359
33
tradicional da cincia do estado , no entanto, posta em causa por aqueles que
julgam necessrio estudar a poltica onde quer que ela se encontre.
um facto que no sculo XIX, a cincia do estado tinha, no seu conjunto,
um carcter jurdico e que os debates polticos se situaram, por vezes, ao nvel
do poder legtimo e das formas constitucionais.
O Estado no existiu sempre, nem to pouco podemos dizer que no
deixar de existir algum dia. certo que uma sociedade situada como unidade
relativamente independente num determinado territrio se constitui sempre com
um sistema de governo comum suprafamiliar. Para designar esta forma de
existncia social, que sempre existiu e dificilmente pode desaparecer, podemos
servir-nos da palavra repblicacontanto que a despojemos da sua referncia a
uma concreta forma de governo e no signifique mais do que o seu sentido
literal res publica (coisa pblica).O Estado propriamente dito apareceu no
sculo XVI como reaco superadora da anarquia provocada nalguns povos
europeus pelas guerras religiosas.
A Espanha, ao ver-se livre das guerras religiosas, no sentiu
verdadeiramente necessidade do Estado, e, por isso, a teoria do Estado,
prpria dos polticos, como ento se dizia, foi mal recebida pelos clssicos dos
sculos XVII e XVIII e, de facto, o Estado, em Espanha, foi-se realizando com
grande dificuldade e sempre impulsionado por influncias estrangeiras,
sobretudo francesas, onde a ideia de Estado alcanou a sua mxima
nacionalizao, a comear pela obra de Bodin, o primeiro grande terico do
Estado. Tambm a ciso maquiavlica da tica e da poltica encontrou uma
legio de impugnadores entre as gentes hispnicas; porm, a construo
bodiniana da soberania como poder ilimitado, absoluto e perptuo, foi
determinantemente rechaada pelo jurista aragons Gaspar de Aastro Isunzaao verter em castelhano las repblicas catholicamente emmendadas.
Entendia Gaspar de Aastro que os espanhis no podiam aceitar a noo de
soberania, como poder ilimitado por cima dos corpos sociais, devendo ser
substituda pela noo de suprema auctoritas; era uma das correces
introduzidas porque, ao contrrio da ideia de ilimitao do poder soberano, a
autoridade suprema implica que cada corpo poltico, includos os poderes do
monarca, esteja encerrado dentro de certos limites; nisto residia o eixo dateoria do Estado.
7/23/2019 Tese - Angelo Abrunhosa.pdf
34/359
34
Finalmente, o hobbesianismo enquanto paradigma do contratualismo
social, pressupe, necessariamente, a substituio da comunidade poltica
como corpus mythicum por um puro mecanicismo, um corpus mechanicum.
Trata-se de uma concepo, (retomada e retocada no sentido liberal por Locke
e, mais tarde, por Montesquieu e Rousseau) meramente voluntria e
jurisdicizadada conscincia social (em vez de fundar o lao social na natureza
humana) que passou do absolutismo ao liberalismo e deste democracia.
Ficou clebre o Esprit des lois(1748), onde Montesquieu examinou largamente
as instituies polticas tanto da antiguidade como de diversos pases do seu
tempo, concluindo do exame dos homens que nessa infinita diversidade de leis
e costumes eles no eram unicamente conduzidos pelas suas fantasias, mas
pela natureza das coisas. A natureza das coisas consistia num conjunto de
circunstncias, tais como a geografia fsica, a qualidade dos terrenos, a
situao do pas, o seu tamanho, as suas inclinaes, o seu comrcio, os seus
costumes.
O regionalismo nutre-se na natureza das coisas, numa concepo
rasgadamente comunitria da poltica, ainda que, a modo de disfarce, se lhe
sobreponha um regime constitucional de base contratualista. Da que seja
intuda, nos dias de hoje, uma certa instabilidade dos povos, y que no se debe
solo a la inadecuacin del constitucionalismo liberal, sino tambin a la propia
debilidad cuando no inexistncia del Estado"61. A regio uma conscincia
multifacetada, constituda ao longo do tempo, formatada num espao, e,
simultaneamente, um projecto de vida em conjunto. A autoridade poltica
regional o seu governo e o conjunto de estruturas pelas quais se manifesta.
As disposies legais devem ser inspiradas pela conscincia colectiva da
regio e pelo referido projecto de vidaem conjunto; o seu ideal de justiadeveser a fora da lei e do direito positivo. Esse ideal de Justia ser, ao mesmo
tempo, a sua permanente e indelvel instncia crtica62.
61 AYUSO, Miguel Hispanidad y Globalizacin in Anales de la Fundacin Elas de Tejada, anoIX/2003, p.197.62Alguns juristas, imbudos do esprito sociolgico, defendem que a ideia de um direito natural, anterior etranscendente organizao colectiva, pura quimera metafsica. Para eles, o Direito no outra coisaseno o conjunto de normas que tendem a impor-se, espontaneamente, no organismo colectivo; normasessas impossveis de deduzir a partir das exigncias de cada indivduo, ainda que, por hiptese, anterior
sociedade. Cogitamos que no deve nem pode confundir-se a ideia de direito natural com asreivindicaes egostas e os instintos de cada indivduo; mas, como este sempre viveu e viver emsociedade (ubi societas, ibi ius), o direito natural no mera quimera metafsica; antes o ideal de justia
7/23/2019 Tese - Angelo Abrunhosa.pdf
35/359
35
5. A fraternidade regional e o ideal de ordem
O ideal de ordem subconsciente na comunidade regional suscitar,
possivelmente, um sistema de direitos e deveres recprocos, condiesindispensveis solidariedade; mas, apenas a fraternidadepoder ultrapassar
esse mnimo moral, abstracto de ordem, sublimando a ordem do teue do meu,
num verdadeiro Ns, atravs de aces concretas e personalizadas, bondosas
e fraternas. A philia, isto , a fraternidade, o amor das pessoas umas pelas
outras, muito importante para gerar sentimentos comunitrios e de
solidariedade. Sabemos, pela Histria, que a fraternidade veio primeiro e a lei
depois; iniciativas individuais de fraternidade, como a hospitalidade, aassistncia, etc., precederam no tempo as disposies legais que, afinal,
reconheceram que esses actos eram justos em si mesmos.
que a Lei Positiva simplesmente preserva uma ordem social; no passa
de um princpio de conservao e equilbrio; puramente negativa (v.g., no
prejudicar outrem) ou, quando muito, reparadora (v.g., pagar as dvidas)
delimita, separa e no une; a fraternidade bondade, solidariza e fomenta a
comunho espiritual e material. Dante, na Divina Comdia, tem a viso de que
os condenados mais cruelmente castigados no so os que fizeram o mal, mas
os que no praticaram o bem. Tambm So Paulo, na sua primeira Epstola
aos Corntios, adverte que a caridade amor ao prximo e que, se dermos
todos os nossos bens aos pobres, nada disso conta, se no houver caridade,
porque acto de egosmo dissimulado63.
Nestas consideraes sobre fraternidade regional e o ideal de ordem,
demos um salto do intelecto, no sentido abstracto clssico, para o intelecto no
sentido emocional, isto , para a inteligncia, como forma vivida de nos
relacionarmos e interagirmos uns com os outros e com o meio que nosrodeia64.
essa inteligncia emocional dos Aores e da Galiza, que vamos ver a seguir.
da sociedade, a sua conscincia moral, universal e desinteressada, constituinte do direito, tpico e crnico,progressivamente constitudo. Cf., para mais desenvolvimento, BATTIFOL, Henri La Philpsophie du
Droit. 5 ed.. Paris: PUF, 1975.63 Paulo FERREIRA DA CUNHA ubrrimo de referncias notveis sobre a triologia Liberdade,
Igualdade e FRATERNIDADE, na sua obraMysteria Ivris, cit., pp. 250 e ss..64 GOLEMAN, Daniel Inteligncia Emocional, trad. do original ingls, Emocional Intelligence, porTemas e Debates, Lda.. Lisboa: Presselivre, 2006.
7/23/2019 Tese - Angelo Abrunhosa.pdf
36/359
36
6. Introspeco e Extrospeco da Conscincia Aoriana -
Insularidade / Aorianidade
Ningum mais e melhor exprime o sentimento de insularidade do que
Vitorino Nemsio, ao escrever: a geografia, para ns (aorianos) vale outro
tanto como a histria... como as sereias, temos uma dupla natureza: somos de
carne e de pedra. Os nossos ossos mergulham no mar65. , alis, a vivncia
dos Aorianos nos Aores e dos Aorianos fora dos Aores. Jos Eduardo
Moniz, director-geral da TVI, em entrevista66, desabafa idntica aorianidade,
ao responder: os Aorianos tm alguns traos nicos, que so fruto do
isolamento a que esto voltados, um isolamento que continua a ser vivido por
quem l ficou, quase uma marca. indiscutvel que o mar liberta, mas, ao
mesmo tempo, prende, ao mesmo tempo constrange e aprisiona os sonhos.
[...] A nossa imaginao desenvolve-se muito, quando crescemos num stio em
que os horizontes esto definidos, partida, quando se sabe que o nosso
espao fsico termina ali. Depois, havia o outro mundo, o que vamos nos filmes
e nas fotografias. Essas imagens fizeram-me voar alto .
Se a insularidade de Vitorino Nemsio e Jos Eduardo Moniz uma
introspeco muito reale concreta, porque bebida com o leite materno e vivida
at dispora, no assim a da escritora brasileira Ceclia Meireles, cujo
fascnio pelos Aores, era um acto de gratido e de ternura devido sua av,
natural da Ilha de So Miguel. Ceclia Meireles visitou os Aores, pela primeira
vez e nica, em 1951, tendo confessado no Aeroporto de Santa Maria: se me
perguntarem o que me traz aos Aores, apenas posso responder: a minha
infncia. Desejava mesmo que a recebessem no como uma escritora
brasileira... mas como uma criana antiga que a poesia de So Miguel nutriu,numa infncia de sonho, no regao de uma av dolorida, herica e nobremente
sentimental67
Mais conceptualizada a insularidade aoriana que Eduardo Loureno
extrospectou na sua comunicao apresentada na VIII Semana de Estudos dos
65Aorianidade, innsula, nos. 7 8. Ponta Delgada, 1932, p. 25.66
Jos Eduardo Moniz sem barreiras, inReaders Digest Seleces, Julho de 2001, pp. 35 e 36.67 MAIA GOUVEIA, Margarida Vitorino Nemsio e Ceclia Meireles. A Ilha Ancestral. Porto:Fundao Eng. Antnio de Almeida / Casa dos Aores do Norte, 2001,p. 98.
7/23/2019 Tese - Angelo Abrunhosa.pdf
37/359
37
Aores68: ... o paradoxo da Ilha, mesmo menos poderosa que a inglesa: no
poder ficar dentro dela, ceder ao apelo do largo, emigrar ou exilar-se, de
mltiplas maneiras, de si mesma. Pela sua situao estratgica, no ltimo meio
sculo, o arquiplago aoriano foi muitas vezes comparado a uma esquadra
ancorada no meio do Atlntico. Agora, impe-se mais a imagem de aeroporto.
Assim, numa s imagem, se sintetizam a sua dupla condio de imobilidade
imaginariamente movente, a sua realidade contraditria de casa fechada... e
cais aberto sobre o mundo. De seguida, pergunta se com uma tal situao,
apesar da mesma lngua, da mesma religio, de idnticas tradies, que a do
primeiro Portugal, que saiu de casa para nunca mais regressar idntico, no
engendraria com os sculos, uma sensibillidade particular, um destino prprio...
em suma, uma identidade aoriana e com ela uma vontade que a exprimisse
em termos adequados ao que ela , representa e a que aspira, concluindo que
em ltima anlise, o Continente e o Arquiplago, na sua relao com o mundo
so duas espcies diversas de realidades insulares.
Fernando Pessoa lanou na Lusofonia a to repetida frase: A minha
ptria a lngua portuguesa. A crtica, por vezes, tem sido severa com esta
afirmao de Fernando Pessoa, porque a lngua portuguesa , hoje, a lngua
de muitas ptrias e, nestas, falam-se outras lnguas; mas a verdade que
todas reclamam a Portugalidadena sua mtica ancestralidade. Nos Aores, os
falantes, marcados pela insularidade e pelo Atlntico, fechados no seu
isolamento durante sculos, imprimiram lngua uma musicalidadeto singular
e caracterstica, que este sotaque se tornou um trao configurativo da sua
aorianidade69, urbi et orbi. No dizer de Reis Leite70, os Aorianos passaram a
ser um povo de dispora. Espalhados por vrias comunidades, principalmente
no Novo Mundo (Estados Unidos da Amrica, e Canad), so hoje bem maisdo que os residentes e como no perderam a sua identidade, mesmo nas
68 LOURENO, Eduardo A autonomia como fenmeno cultural e poltico. In ComunicaesApresentadas na VIII Semana de Estudos dos Aores.Angra do Herosmo: ed. do IAC, 1987, pp. 58 60.69Foi Vitorino Nemsio que, em 1932, lanou o vocbuloAorianidade, naInsulana, tornando-se a ideiamxima de ulteriores estudos e trabalhos. Cf.MAIA GOUVEIA, Margarida Vitorino Nemsio, estudo eantologia. Ponta Delgada: ICALP, 1986, pp. 401-402. Relativamente ao sotaque aoriano, com vriosmatizes nas diversas ilhas e at na mesma ilha, sobretudo em So Miguel, parece ser de origem baixo-alentejana e algarvia; na casa fechada dos Aores, evoluiu, autonomamente, durante 500 anos.70
REIS LEITE, Jos Guilherme Uma Reflexo sobre a Autonomia dos Aores, in ComunicaesApresentadas na VIII Semana de Estudos dos Aores.Angra do Herosmo: Instituto Aoriano da Cultura,1987, p. 43.
7/23/2019 Tese - Angelo Abrunhosa.pdf
38/359
38
comunidades mais antigas, como a brasileira, no podem deixar de influenciar
toda e qualquer anlise social e cultural do arquiplago. Onde quer que se
encontrem, os Aorianos sentem as suas razes, assumem-nas e repensam-
nas, dando origem a um novo fenmeno cultural.
7. Introspeco e Extrospeco da Conscincia Galega - Galeguidade
Galeguidade uma das muitas identidades existentes na Pennsula
Ibrica. Qualquer que seja a construo integradora, mais restrita a nvel de
Espanha ou mais alargada a nvel europeu, no pode esquecer-se que esta
pluralidade de identidades indelvel. Galicia - no olhar de lvaroCunqueiro71 - ao Este esgrevios montes, longas chairas, anchos vales.
Algunhas pequenas serras chegan deica o mar, que en mutas partes do litoral
se adentra na terra, formando as fermosas ras, tan caractersticas de Galicia, e
que son as mis vales fluvias afundidos. Dez mil ros corren pola pel verde de
Galicia, e si nas montaas oritentais medra a faia e corre o lobo, na ribeira
occidental frolece a camelia, e dan os seus froitos de ouro o limoeiro e o
laranxo... Continua o autor, referindo-se ancestralidade da Galiza:o galegode hoxe tem la ilusin de que os seus devanceiros protohistricos foron os
celtas, aos que prefire a outras razas das que falan os historiadores, e aos que
atribuie unha nobreza especial entre os pobos antergos, raza vagamunda
habitadora dos fisterres e das ilhas de Oeste, asentada com sus reises en
Galicia... Para estes galegos cseque todo nos vem dos celtas, dende a gaita
muieira72, o sentimento da terra e da morte, as ansias de andar mundo e o
desexo de retornar.... Como conceito cultural (antropolgico, histrico esociolgico), a identidade galega um modo de ser, um estilo prprio de
comportamento, uma forma especfica de enfrentar a vida e a morte. Este
71CUNQUEIRO, lvaro Ollar Galicia. Barcelona: Ediciones Destino, S.L., 1981, pp. 5 e ss.. Escritoren galego e em castelhano, Cunqueiro nasceu en Mondoedo em 1911 e morreu em Vigo em 1981.72A generalidade dos autores filia os seus primrdios no ciclo pastoril, ao qual pertence tambm a flauta,entendendo que, juntando uma destas a um odre de pele, se compreende, sobretudo, em gentes que
dispusessem de rebanhos. Na Inglaterra, na Esccia e na Irlanda, prevalecem as teses que consideram agaita-de-foles de origem cltica, em face da sua grande difuso em pases dessa ascendncia,designadamente, alm daqueles, no Norte da Pennsula Ibrica e, sobretudo, na Galiza.
7/23/2019 Tese - Angelo Abrunhosa.pdf
39/359
39
modo de ser non se escolle nin se elixe, existe como um producto da historia,
da familia, da convivencia, da economia e da xeografia73.
Rosala de Castro74, a quem o americano D.C.Warnest75 chamou Rosa
Cltica, assumiu essa identidade galega, recuperando-a com a fora do seu
poder lrico e do seu gnio potico. Comprometida com o destino do seu povo,
berrou o seu dio contra os castelhanos, afirmando desassombradamente
que a Galiza nunca deveria chamar-se espanhola. Desfraldou a ban