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TERRITORIALIDADES INDÍGENAS E PROJETOS DE DESENVOLVIMENTO – OS XOKÓ EM SERGIPE
Avelar Araujo Santos Junior1 Grupo de Pesquisa GeografAR (POSGEO/UFBA/CNPq)
Universidade Federal da Bahia - UFBA avelargeo@yahoo.com.br
Resumo Esta proposta de reflexão tem como lócus de estudo a Terra Indígena Xokó, situada no município de Porto da Folha, no semiárido sergipano, e inserida na bacia hidrográfica do rio São Francisco. Sem perder de vista o entendimento das atualizações da questão indígena nacional, sugerimos a análise das interações que se interpõem entre a territorialidade Xokó e os projetos de desenvolvimento que repercutem diretamente na nas experiências de tempo e espaço vividas pelos Xokó. Assim, a projeção no território dos atuais desafios que acometem este povo indígena nos serve como elemento de verificação e análise das inúmeras contradições que envolvem o planejamento e a execução dos projetos de desenvolvimento junto à comunidade, sobretudo, após o seu reconhecimento oficial como única etnia indígena de Sergipe. Palavras-Chave: Terras Indígenas. Desenvolvimento. Territorialidade. Relações de Poder. Introdução A dinamicidade histórica das relações socioespaciais reproduzidas no Território
Indígena Xokó nos instiga a um complexo de ponderações referentes às experiências de
tempo e espaço vividas, atualmente, pelo povo Xokó na manutenção da terra indígena
homologada pelo Decreto do Governo Federal n. 401 de 24/12/91, com 4.316 ha, de
propriedade pertencente à União, localizada no município de Porto da Folha, no
semiárido sergipano, inserida na bacia hidrográfica do rio São Francisco.
Sem perder de vista a longa trajetória histórica que marcou as profundas perdas, lutas e
reconquistas vivenciadas pelos Xokó nos últimos quatro séculos, nesta proposta de
reflexão concentraremos nossas atenções no período contemporâneo, marcado pela
retomada definitiva e inalienável deste território e pelas novas relações de poder que
perpassam o reconhecimento oficial dos Xokó como única etnia indígena do Estado de
Sergipe. Correspondendo a 410 pessoas, segundo os dados mais recentes do Instituto
Socioambiental - ISA (http://ti.socioambiental.org/#!/terras-indigenas/3631).
Após o intricado processo de homologação da Terra Indígena e de garantia do direito de
posse coletiva e usufruto dos seus meios básicos de produção e subsistência, o povo
Xokó depara-se com desafios próprios das relações que tornam ainda mais densa a
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questão indígena na etapa posterior à demarcação, tal como os diversos conflitos que
permeiam o processo civilizatório de integração à lógica de produção e consumo
capitalista e as novas formas de controle estabelecidas por um Estado historicamente
tutelar. As interações entre hegemônicos e subalternos são palcos de luta, mas também onde uns e outros dramatizam as experiências da alteridade e do reconhecimento. O confronto é um modo de encenar a desigualdade (embate para defender a especificidade) e a diferença (pensar em si mesmo através daquele que desafia). (CANCLINI, 2000, p. 279)
Ao longo das últimas três décadas, a lógica do ordenamento do território conduzida pelo
Estado Nacional para atingir níveis produtivos avançados que acompanhem as
tendências do mercado globalizante (per se, contraditório e excludente), seja através do
incentivo à modernização da produção ou à fluidez mercadológica, pouco tem
contribuído na efetivação de uma política de reconhecimento e valorização da
diversidade sociocultural que constitui a miscelânea da população brasileira. Ao mesmo
tempo, podemos depreender um endurecimento das posições anti-indígenas
conservadoras, sobretudo, no que diz respeito ao retraimento dos processos
demarcatórios, apesar dos avanços no relacionamento da sociedade e do Estado com os
povos indígenas desde a Constituinte de 1988.
Por outro lado, neste mesmo período, tem-se observado a ampliação da visibilidade da
questão indígena nacional nas suas mais diversas problemáticas e possibilidades de
superação, tal como a consolidação das organizações indígenas e o fortalecimento, em
todo o país, de um novo indigenismo pautado na profícua aproximação com os reais
interesses dos povos indígenas, concebido como contraposição à estéril política
indigenista de inspiração integracionista, militar, assistencialista e tutelar. A articulação
entre organizações indígenas e entidades indigenistas de caráter regional e nacional,
vem fomentando o debate conjunto acerca da questão indígena e, por sua vez, tem
viabilizado a constituição de uma agenda comum de mobilizações e atividades
pertinentes ao cumprimento dos direitos indígenas em todo o país, como também, no
que se refere à questões de grande importância para a sociedade em geral, como as
ambientais e culturais. Como exemplos temos: a) Organizações Indígenas: ANAÍ -
Associação Nacional de Ação Indigenista, UNI - União das Nações Indígenas,
CAPOIB - Conselho de Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Brasil,
CNPI – Comissão Nacional de Políticas Indigenistas, APIB - Articulação dos Povos
Indígenas do Brasil, APOINME - Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do
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Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo; b) Entidades Indigenistas: CTI – Centro de
Trabalho Indigenista, INBRAPI – Instituto Indígena Brasileiro para Propriedade
Intelectual, CIMI – Conselho Indigenista Missionário, CPT – Comissão Pastoral da
Terra, INESC - Instituto de Estudos Socioeconômicos e ISA – Instituto
Socioambiental.
Nesta nova dinâmica as organizações indígenas, reconhecidas ou não pelo Estado,
passam a ser concebidas como novas vias de interlocução junto as mais diversas
organizações comunitárias, órgãos do Estado, agências multilaterais e instituições
privadas, repercutindo diretamente na dinâmica das relações de poder reproduzidas nos
territórios indígenas. O surgimento das organizações indígenas tem sido considerado um avanço, quando visto da perspectiva da construção de alternativas, tanto à relação clientelista entre Estado e povos indígenas imposta pela estrutura tutelar, quanto à mediação de lideranças individuais que caracterizou momentos anteriores das lutas indígenas. Essas alternativas deverão possibilitar respostas culturalmente informadas e coletivas aos processos de territorialização impostos pelo Estado brasileiro. (LIMA, BARROSO-HOFFMAN, IGLESIAS, GARNELO & OLIVEIRA, 2004, p. 320)
Por conseguinte, esta conjuntura nos incita a buscar novas possibilidades de
entendimentos concernentes à questão indígena na atualidade, sobretudo no que diz
respeito às intervenções dirigidas ao desenvolvimento, sustentabilidade e gestão das
Terras Indígenas. Deste modo, considerando os diversos contextos da questão indígena
no Brasil, sugerimos aqui a problematização dos projetos de desenvolvimento que vêm
sendo progressivamente implementados, nas últimas três décadas, na Terra Indígena
Xokó.
Focalizando nossa análise no emaranhado dessas relações de poder contemporâneas,
abre-se a possibilidade de elencar um quadro com os modelos mais emblemáticos dos
projetos de desenvolvimento recém-inseridos nesse território, sejam quais forem suas
origens idealizadoras (por exemplo, órgãos públicos, organismos da sociedade civil,
associações, conselhos gestores, instituições bancárias, representações não-
governamentais, entidades religiosas, organizações privadas e agências multilaterais) ou
setores estratégicos envolvidos (meio ambiente, agrário, patrimônio cultural, saúde
comunitária, educação escolar indígena, saneamento, segurança alimentar, entre outros).
Apresentamos, brevemente, alguns exemplos factuais para possíveis estudos de casos,
tais como:
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a) O projeto de edificação de canais para captação de água do rio São Francisco em
direção à lagoa da Caiçara (segundo local de maior volume de pesca utilizado pelos
Xokó), financiado pelo Banco do Nordeste em meados da década de 1990 e que,
atualmente, apresenta-se sem qualquer sinal de continuidade, vide o sucateamento dos
seus aparatos técnicos e a progressiva diminuição dos recursos pesqueiros e da vazão
hídrica da referida lagoa;
b) A implementação da Escola Estadual Indígena Dom José Brandão de Castro, sob os
encargos da Secretaria de Educação do Estado de Sergipe (SEED – DR07), capaz de
demonstrar um relativo avanço em suas atividades na medida em que um número
crescente de crianças e jovens Xokó são inseridos no sistema de educação nacional,
embora persistam inúmeras assimetrias entre os conteúdos transmitidos e a valorização
das práticas e conhecimentos tradicionais, principais referências culturais dessas
crianças e jovens;
c) O funcionamento de uma Unidade Básica de Saúde que, há vinte anos, adota as
mesmas diretrizes homogeneizantes da medicina curativa em detrimento das
potencialidades da medicina preventiva associada aos saberes e práticas da medicina
indígena tradicional;
d) A recém inserção da comunidade no Programa de Combate à Pobreza Rural – PCPR
II 2ª Fase, referente ao fomento de arranjos produtivos locais financiados pelo Banco
Mundial através da Secretaria de Planejamento do Estado de Sergipe (SEPLAN/SE)
que, a despeito de outras possibilidades inovadoras, acaba limitando seus recursos
unicamente ao fornecimento de implementos agrícolas (tratores, roçadeiras,
colheitaderas, etc.), sem ao menos os necessários acompanhamentos técnicos
periódicos;
e) Por fim, também nos podem ser úteis os estudos de projetos produtivos em pleno
desenvolvimento, como os apoiados pela Fundação Dom Helder Câmara e a Rede
Cáritas Brasileira (organismo da CNBB - Conferência Nacional dos Bispos do Brasil)
que, apesar de um certa carência criativa e inovadora, além da ausência de continuidade
da assessoria técnica, estão voltados para o manejo da caatinga, a apicultura, a produção
de leite e a criação de caprinos e bovinos.
Portanto, nesta proposta trazemos algumas das nossas reflexões referentes às dinâmicas
espaciais e temporais reproduzidas na Terra Indígena Xokó face à contínua inserção de
projetos de desenvolvimento. Tratar-se-ia do que Oliveira (1998, p. 08) denomina como
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análise processual do poder, isto é: “um conjunto de mecanismos, estratégias e
compulsões que são utilizados e intervêm sobre os indígenas e suas coletividades na
definição dos seus direitos territoriais”.
Desenvolvimento Concepções indígenas de desenvolvimento e suas possibilidades A relevância que a temática indígena vem configurando entre as mais variadas
instâncias políticas, meios midiáticos ou linhas de pesquisas acadêmicas, remete-nos
enquanto geógrafos, investigadores das problemáticas sócio-espaciais, a ter uma
participação mais efetiva nessas discussões de maneira a contextualizar as noções de
planejamento e ordenamento do território como primordiais para o entendimento das
relações em vias de análise.
Frente aos desafios contemporâneos são fecundas as contribuições que o conhecimento
científico pode proporcionar na elaboração planejada e dialogada de estratégias de
desenvolvimento, desde que sejam assegurados os reais anseios da comunidade de
modo a promover a valorização do arcabouço do conhecimento tradicional produzido
pelos Xokó, livres de qualquer manipulação exógena que tente impor seus valores e
percepções como únicos. O desenvolvimento enquanto processo multifacetado de intensa transformação estrutural resulta de variadas e complexas interações sociais que buscam o alargamento do horizonte de possibilidades de determinada sociedade. Deve promover a ativação de recursos materiais e simbólicos e a mobilização de sujeitos sociais e políticos buscando ampliar o campo de ação da coletividade, aumentando sua autodeterminação e liberdade de decisão. Seu estudo, portanto, exige ênfase em processos, estruturas e na identificação dos agentes cruciais e das interações entre decisões e aquelas estruturas, procurando revelar os interesses concretos em jogo. (BRANDÃO, 2008, p. 03)
Buscando incorporar as próprias concepções indígenas de desenvolvimento planejado e
solidário, consideramos oportuna a interação entre essas matrizes de conhecimentos não
apenas sob o ponto de vista acadêmico, mas também por suas possibilidades de oferecer
um suporte teórico-prático às decisões encaminhadas pela comunidade Xokó no
planejamento e execução de diferentes projetos de desenvolvimento voltados para a
melhoria das suas condições de vida, sobretudo os que assumem o caráter de
etnodesenvolvimento local, a despeito dos riscos que acompanham o atual processo de
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descentralização das políticas sociais via a transformação dos espaços locais em
territórios de acumulação do capital. O foco central de quaisquer programas ou atividades que visam o etnodesenvolvimento é o grupo étnico e suas necessidades econômicas e reivindicações políticas. Para tanto, o principal nível no qual se trabalha o etnodesenvolvimento é o local, justamente porque é nesse nível onde existem maiores oportunidades para os grupos étnicos exercerem influência nas decisões que lhes afetam e, como conseqüência, promover mudanças nas suas práticas econômicas e sociais. É no nível local que começa o processo de construção da autogestão étnica. (LITTLE, 2002, p. 40)
Deste modo, julgamos esta proposta de interação dialógica socialmente útil à
justificação dos interesses do povo Xokó frente às contingências da sociedade
contemporânea, mantendo como premissa a interlocução das suas percepções de mundo.
Logo, para promover os benefícios desta convivência intercultural em meio à incauta
sobreposição dos projetos de desenvolvimento, sem perder de vista os seus riscos e
formas de controle social, consideramos indispensável a incorporação das lideranças
tradicionais Xokó nos processos decisórios que determinam os encaminhamentos destas
ações e programas de desenvolvimento, afinal, estes interlocutores representam os
legítimos canais de manifestação dos valores e expectativas da sua comunidade, tão
imprescindíveis ao surgimento de propostas lúcidas, consistentes e organicamente
articuladas. A realidade tem revelado que os Estados nacionais têm absorvido as orientações emanadas de um poder global que toma as decisões, através de instituições e organismos multilaterais que interferem na vida social de todos os indivíduos. Localmente, nos países aparecem os discursos de autonomia e participação, com a adoção de políticas descentralizadoras que racionalizam recursos e promovem um “pseudopoder de decisão” para as esferas administrativas mais próximas do cidadão. (SANTOS, 2010, p. 27)
Apesar das contradições inerentes ao modelo de controle social via, por exemplo, a
regularização jurídica das organizações indígenas, o reconhecimento oficial das
entidades representativas do povo indígena Xokó é sintomático das atuais possibilidades
da política indigenista nacional, ampliadas pela consolidação de parcerias institucionais
e pela participação em diversas redes organizacionais, de maneira que manifesta o
empenho da comunidade na promoção dos necessários rearranjos estruturais que
possibilitem apreender as populações indígenas por um prisma não paternalista e fora
do âmbito tutelar hegemônico. Atualmente, a comunidade Xokó estabelece suas
relações institucionais a partir de duas entidades civis organizadas, com inscrição no
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Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ) - a Associação Indígena do Povo Xokó e
a Associação Indígena das Mulheres Xokó (a mais atuante). A criatividade, fruto da interlocução interna à comunidade, instrumentaliza o desenvolvimento de projetos adequados às condições sócio-culturais locais. Em conjunto, estudos técnico-científicos e projetos de longa duração somam-se ao saber empírico local, e tornam efetivo e producente o conhecimento sobre o lugar. A afirmação da identidade cultural é imprescindível ao fortalecimento da comunidade em seu ambiente, possibilitando-lhe a escolha das melhores soluções e, consequentemente, a condução do processo de desenvolvimento local. (KASHIMOTO, MARINHO & RUSSEF, 2002, p. 41)
A fim de entender o surgimento das novas instâncias de representação sociopolítica
engendradas pelos Xokó e, por sua vez, o estabelecimento de novos canais de
interlocução, lançamos mão sobre a noção de “identidade de projeto” proposta por
Castells (1999, p. 24) que nos indica como elemento de elucidação a prática dos atores
sociais que, utilizando-se de qualquer tipo de material cultural ao seu alcance,
constroem uma nova identidade capaz de redefinir sua posição na sociedade. Neste
sentido, também nos instiga a acepção de Oliveira (1999, p. 20) a respeito do que ele
designa por territorialização: Processo de reorganização social que implica: i) a criação de uma nova unidade sócio-cultural mediante o estabelecimento de uma identidade étnica diferenciadora; ii) a constituição de mecanismos políticos especializados; iii) a redefinição do controle sobre os recursos ambientais; iv) a reelaboração da cultura e da relação com o passado.
Reconhecendo as particularidades Xokó na (re)produção das suas acepções tradicionais
e projeções futuras, ininterruptamente atualizadas, enfatizamos a necessidade do
entendimento destes princípios, pois, segundo considerações de membros da liderança
Xokó, a falta de sincronia entre os interesses locais e os sobrepostos por agentes
externos tem sido uma das principais causas dos malogros dos projetos de
desenvolvimento implementados na Terra Indígena Xokó, nas últimas três décadas.
Para o entendimento destas relações, sugerimos uma penetrante reflexão sobre a
identidade Xokó motivada por novas estratégias políticas e organizacionais assumidas
na contemporaneidade, com realce aos aspectos simbólicos da recriação sucessiva dos
ideais comunitários e às práticas solidárias cotidianas, denotando como dimensão
interpretativa essencial a territorialidade. A territorialidade, além de incorporar uma dimensão estritamente política, diz respeito também às relações econômicas e culturais, pois está intimamente
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ligada ao modo como as pessoas utilizam a terra, como elas próprias se organizam no espaço e como elas dão significado ao lugar. (HAESBAERT, 2005, p. 03)
A Territorialidade Xokó face os projetos de desenvolvimento A paisagem se configura como um mosaico de habitats construído pelas interações entre
processos naturais e antropogênicos. Para uma descrição analítica das relações
ambientais estabelecidas pelo povo Xokó no esboço da sua paisagem, torna-se
apropriado apreender esta realidade sistêmica em seus aspectos físicos e humanos, em
contínua transformação, evidenciando-se a substituição de um meio natural por outro
cada vez mais artificial e instrumentalizado (SANTOS, 1996, p. 186).
Neste sentido de totalidade, aspectos humanos se integram aos ambientais numa
simbiose de fenômenos que serve de suporte à idealização de um espaço natural
originário, basilar na edificação memorial da noção de pertencimento, proteção e
conservação da Terra Indígena Xokó. Por conseguinte, pode-se depreender uma
associação direta entre meio ambiente e visão do mundo, sendo esta última alimentada
pelos ritmos, potencialidades e limitações da dinâmica natural, onde os aspectos físicos
se constituem em teto protetor da natureza e sua miríade de conteúdos (TUAN, 1980, p.
91). Assim, além de sustentáculo material para a existência do grupo, a natureza
protagoniza uma relação subjetiva idealizada e praticada pelos índios Xokó no
processo constituição da sua memória coletiva, transcendendo aspectos meramente
materiais e utilitários. Da perspectiva dos povos indígenas, a ameaça à biodiversidade é vista como algo que põe em risco a garantia da sua própria sobrevivência. Consideram que o reconhecimento de seus direitos a seus territórios deveria ser uma pré-condição para a conservação, já que isto permitirá que prossigam com seus estilos de vida auto-suficientes e sustentáveis. (GRAY, 2004, p. 121)
Os modos coletivos de concepção, uso e ocupação da terra por parte dos Xokó
evidenciam um conjunto de especificidades que consideramos fundamentais na
elaboração e execução dos projetos de desenvolvimento, no entanto, em muitos dos
casos, essas ações e programas estratégicos tem adotado uma visão utilitarista,
homogeneizante e economicista da terra como forma de cooptação ao sistema de
produção e consumo capitalista, num processo que denota as atuais formas
compulsórias de integração sistemática das populações indígenas à sociedade brasileira.
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Há muito, os Xokó vêm construindo um profundo conhecimento tradicional a respeito
do seu ecossistema, por meio de experimentações sucessivas, desenvolvendo sistemas
tradicionais de manejo e viabilizando a reprodução de suas práticas sócio-culturais na
atualização constante do seu auto-reconhecimento étnico. Continuamente são
aprimorados saberes e técnicas na apropriação material e simbólica dos recursos
naturais, que são ajustados aos anseios cotidianos da comunidade. Tal arcabouço de
conhecimentos fundamenta-se num conjunto de experiências de relações múltiplas com
a natureza, desenvolvidas através de diferentes gerações, fundamentadas em paradigmas
de respeito, proteção e conservação. Portanto, representa parte significativa do
patrimônio cultural produzido historicamente por esse povo. Conhecimento tradicional é definido como um conjunto de saberes e saber-fazer a respeito do mundo natural e sobrenatural, transmitido oralmente, de geração em geração. (...) Há uma interligação orgânica entre o mundo natural, o sobrenatural e a organização social, (...) não há uma classificação dualista, uma linha divisória rígida entre o “natural” e o “social” mas sim um continuum entre ambos. (DIEGUES & ARRUDA, 2001, p. 29)
O espaço cotidiano vivido pelos Xokó se projeta como um suporte para distintos
interesses individuais que, por força da necessidade recíproca de solidariedade entre os
membros do grupo, são articulados de maneira a se tornarem unos e consensuais. Isso não
exclui a existência de discordâncias dentro da comunidade, pois, em se tratando de
território, relações conflituosas de poder são variáveis inerentes ao espaço (RAFFESTIN,
1993, p. 158). Todavia, os Xokó procuram estabelecer estratégias de organização estáveis
e simétricas, cuja principal seria a valorização identitária e territorial.
Diante deste panorama, a análise interpretativa da territorialidade Xokó incita à
consideração de elementos ambientais e ecossistêmicos que compõem tal complexo
sócio-espacial. Assim sendo, reconhecer os profundos vínculos de pertencimento
identitário dos Xokó para com o seu território coletivo é essencial para a compreensão
dos discursos, práticas e fenômenos que constituem as vicissitudes da participação da
comunidade no emaranhado das relações de poder que perpassam pelos projetos de
desenvolvimento em questão. O território não é apenas o resultado da superposição de um conjunto de sistemas naturais e um conjunto de sistemas de coisas criadas pelo homem. O território é o chão e mais a população, isto é, uma identidade, o fato e o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence. O território é a base do trabalho, das trocas materiais e espirituais e da vida, sobre as quais ele influi. (SANTOS, 2008, p. 96)
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Modelando os contornos do nosso estudo, a identidade cultural regula as relações de
identificação de um determinado grupo e seus indivíduos a um território, atribuindo-lhe
funções e afetividades a partir de distintos interesses, estímulos e circunstâncias. Sobre
essa maneira topofílica de sentir e vivenciar um lugar, individual e coletivamente,
comenta Ladouceur: A identidade cultural não se traduz somente em relação à história e à memória coletiva: ela congrega igualmente uma espacialidade e, assim, a identidade cultural corresponde ao pertencimento a um território (distante ou imediato). Camponeses sem-terra, indígenas ou quilombolas despossuídos de seus territórios afirmam sua diferença e reivindicam esse território que não possuem, ou melhor, que está controlado por um grupo dominante. (2003, p. 13)
Essa maneira de sentir intimamente o lugar por meio de um enraizamento identitário,
que pressupõe a preocupação com o destino e a construção do futuro (SANTOS &
SILVEIRA, 2011, p. 19), fortalece a coesão da comunidade perante os percalços
internos e externos, possibilitando a continuidade de um imprescindível sentimento
comunitário que, no caso da nossa proposta, envolve o povo Xokó e suas formas
particulares de apropriação e organização do espaço, sintetizadas na territorialidade. A territorialidade se configura como uma mediação na relação entre os homens e a destes com o espaço, já que a apropriação da natureza, de certa forma, exterioriza a dominação entre os homens. Assim, a territorialidade evidencia e caracteriza a maneira como uma sociedade lida com o território, denota concepções e racionalidades diversas que marcam as fronteiras simbólicas que separam sociedades e grupos sociais distintos. (ISOLDI & SILVA, 2009, p. 31)
Conclusões As provocações suscitadas nesta proposta de reflexão sobre os projetos de
desenvolvimento implementados na Terra Indígena Xokó, sobretudo, após o
reconhecimento oficial deste território, nos indicam que a sistematização dessas ações
compensatórias não tem logrado efeitos duradouros e, de fato, não se propõem a alterar
as relações de poder estabelecidas pela ordem envolvente, reificadas pela indução de
demandas, pelo despreparo dos seus agentes gestores e pela incitação à lógica da
competitividade interna e externa por recursos e/ou mercados, dentre outras limitações
burocráticas ou (des)interesses particulares. Além disso, percebe-se a cristalização de
um complexo de limitações que impossibilitam a comunidade de conduzir com real
autonomia a gestão do seu território tradicional, pois suas lideranças e sujeitos
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comunitários pouco participam das decisões que envolvem os projetos de
desenvolvimento introduzidos por agentes externos, como também, não dispõem da
infraestrutura material e da capacitação técnica necessárias para sua elaboração e
execução, de maneira que ficam condicionados às concepções de outras organizações e
subordinados ao poder público na busca por recursos que viabilizem a melhoria das suas
atuais estratégias de sobrevivência, tendo em vista a plenitude dos seus direitos
enquanto povos indígenas.
A projeção no território das problemáticas sócio-espaciais vividas pelo povo Xokó nos
serve como elemento de verificação analítica das inúmeras contradições que envolvem
o planejamento, a formulação e a execução dos projetos de desenvolvimento que vêm
sendo fomentados na comunidade após o seu reconhecimento oficial como única etnia
indígena de Sergipe. Além disso, a constante atualização desses desafios, sobretudo, no
que se refere à manutenção das referencias culturais tradicionais e ao manejo dos
recursos ambientais, permite-nos traçar uma formulação provisória que considera a
continuidade desses conflitos como sintomática das frequentes incongruências
existentes entre as limitações dialógicas que os projetos desenvolvimento acabam
adotando e a complexidade dos fundamentos da territorialidade Xokó.
Destarte, entendemos os projetos de desenvolvimento ajustados aos anseios locais como
um complexo multifacetado que permite a sinalização de campos de atuação
revigorados e focos de engajamento alternativos, capazes de constituir novos
parâmetros nas formas de estabelecer as redes organizacionais e de fomentar com
equidade o diálogo entre os sujeitos envolvidos nos projetos de desenvolvimento. Tendo
em vista a ampliação deste diálogo transformador sugerimos essa proposta de estudo em
andamento como uma sucinta contribuição para a reflexão que envolve a questão
indígena e a dinâmica das territorialidades protagonizadas pelos povos indígenas
brasileiros.
Notas __________________________ 1 Licenciado em Geografia pela Universidade Federal de Sergipe (1998-2001), Mestre em Geografia pela Universidade Federal de Sergipe (2002-2005), Mestre em Estudios Ameríndios pela Universidad Complutense de Madrid (2006-2007). Atualmente, é doutorando em Geografia Pela Universidade Federal da Bahia, como também é bolsista da CAPES e membro do Grupo de Pesquisa GeografAR (POSGEO/UFBA/CNPq). E-mails: avelargeo@yahoo.com.br; avelargeo@hotmail.com
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