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TERRAS INDGENAS E UNIDADES DE CONSERVAO DA NATUREZA 37
Problemas de terra continuam no foco central do noti-
cirio desalentador que a mdia divulga a respeito dos n-
dios no Brasil. Infelizmente, o pblico continua mal infor-
mado por notcias que apenas denunciam tenses, sem as
remeter a uma histria continuada de conflitos, cuja trajet-
ria no s muito bem documentada, como fundada nas
prprias contradies da poltica indigenista brasileira.
O comentrio que segue no se ater anlise des-
ses conflitos, nem discusso dessas contradies, mas
tratar de outras tenses, que surgem na interseco en-
tre o conceito jurdico de Terra Indgena e a compreenso
antropolgica da territorialidade concebida e praticada por
diferentes grupos indgenas.(1) Territorialidade, como ve-
remos, uma abordagem que no s permite recuperar e
valorizar a histria da ocupao de uma terra por um gru-
po indgena, como tambm propicia uma melhor compre-
enso dos elementos culturais em jogo nas experincias
de ocupao e gesto territorial indgenas. Como exerc-
cio, proponho distinguirmos entre os conceitos que sus-
tentam as trs formulaes indicadas no ttulo.
Parece, de fato, essencial evidenciar que o enfoque
da mdia nos conflitos entre ndios e ocupantes no-ind-
genas procura quase sempre caracterizar como provas
de sua aculturao o engajamento dos ndios em ativi-
dades antes monopolizadas pelos no-ndios ou sua ar-
ticulao economia regional. Por exemplo, ativida-
des de criao de gado, de garimpagem etc... so apre-
sentadas como aspectos incongruentes com seus di-
reitos territoriais. Temos aqui um problema na compre-
enso da dimenso cultural envolvida na territorialidade
indgena: a imagem romntica de ndios nomadizando por
amplos territrios intocados domina ainda a viso da po-
pulao brasileira acerca dos usos, costumes e tradies
indgenas. Dos ndios que no estiverem correspondendo
a essa imagem, diz-se que perderam sua tradio. ndios
estes que acabam por serem responsabilizados pelos con-
flitos que a mdia documenta, como se as causas das ten-
ses brotassem do interior da condio de ndio.
Terras ocupadas? Territrios? Territorialidades?
Dominique Tilkin Gallois*
O CONTATO COLOCA UM GRUPO INDGENA DIANTE DE LGICAS
ESPACIAIS DIFERENTES DA SUA E QUE PASSAM A SER EXPRESSAS
TAMBM EM TERMOS TERRITORIAIS. AS DIVERSAS FORMAS DE
REGULAMENTAR A QUESTO TERRITORIAL INDGENA PELOS
ESTADOS NACIONAIS NO PODEM SER VISTAS APENAS DO NGULO
DO RECONHECIMENTO DO DIREITO TERRA, MAS COMO TENTATIVA
DE SOLUO DESSE CONFRONTO.
* Antroploga, docente do Departamento de Antropologia Social da
FFLCH-USP e coordenadora do NHII-USP (Ncleo de Histria Indgenae do Indigenismo)1 Agradeo a Nadja Havt, pelas profcuas discusses que mantivemos aolongo de muitos anos sobre a temtica aqui tratada, assim como suas valio-sas anlises da territorialidade Zo, algumas delas incorporadas no presentetexto (ver referncias na bibliografia).
Tal desvirtuamento grave, especialmente se consi-
deramos que, apesar das diferenas entre o conceito jur-
dico de Terra Indgena, tal como est posto na Constitui-
o, e a compreenso antropolgica dos fundamentos da
ocupao e territorialidade indgena, h evidentes inter-
seces e possibilidades de articulao. Seno vejamos:
o artigo 231 reconhece aos ndios os direitos originrios
sobre as terras que tradicionalmente ocupam; o texto
constitucional tambm indica que tal ocupao tradicio-
nal deve ser lida atravs das categorias e prticas locais,
ou seja, levando-se em conta os usos, costumes e tradi-
es de cada grupo. Logo, uma Terra Indgena deve ser
definida identificada, reconhecida, demarcada e homo-
logada levando-se em conta quatro dimenses distin-
tas, mas complementares, que remetem s diferentes for-
mas de ocupao, ou apropriaes indgenas de uma ter-
ra: as terras ocupadas em carter permanente, as utiliza-
das para suas atividades produtivas, as imprescindveis
preservao dos recursos ambientais necessrios a seu bem-
estar e as necessrias a sua reproduo fsica e cultural.
Os antroplogos tm respondido a esses parmetros
atravs de sua participao nos processos de identifica-
o, nos termos da Portaria n 14/1996 do Ministrio da
Justia. Nesses relatrios, eles procuram evidenciar a exis-
tncia de diferentes lgicas espaciais que, em cada caso
especfico, promovem determinadas articulaes entre
essas distintas dimenses de uma Terra Indgena. Mas,
por outro lado, os antroplogos tambm se interrogam
teoricamente sobre a existncia de conceitos indgenas a
respeito de territrio, de limite, de posse etc... buscando
por eventuais correspondncias entre categorias locais e
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noes ocidentais que embasam o direito constitucional.
Nesse tipo de estudos, costuma-se concluir pela inexis-
tncia de correspondncias semnticas e pelas dificulda-
des em estabelecer tais correspondncias, apesar da equi-
valncia, to enraizada, entre terra e territrio.
Para ilustrar a necessidade de desmonte desta equi-
valncia, vamos a um exemplo de aplicao da definio
de Terra Indgena, verificando a sobreposio lgica entre
suas variadas dimenses, separadas na definio jurdica.
Trata-se do caso Zo. Como se explicitou no Relat-
rio de Identificao desta Terra Indgena (Gallois & Havt,
1998), a noo zo de -koha traz elementos importantes
para entender sua concepo de territrio, embora no
corresponda a uma traduo deste conceito. -Koha pos-
sui uma abrangncia mais ampla, no sentido de modo de
vida, bem viver ou qualidade de vida, o que significa
que as condies ambientais, ecolgicas e materiais so
componentes obrigatrios na definio. Alis, os Zo usam
esse termo tambm em referncia a algumas espcies
animais, vegetais e aos mortos. Em relao aos prprios
Zo, o conceito incorpora sua forma de organizar-se ter-
ritorialmente, dividindo-se em grupos locais formados por
famlias extensas. Por incorporar as condies ambien-
tais de sua existncia, indica o empenho do grupo em
conhecer o meio que ocupa. Para caracterizar os -koha
de animais e plantas, esse conhecimento sistemtica e
continuamente acumulado no prprio processo de ocupa-
o, no manejo e uso dos recursos, observando ciclos,
hbitos etc., o que, por sua vez, funciona como fator de
aumento na racionalidade do manejo.
Entretanto, os Zo esto ampliando ainda mais o uso
desse conceito. O contato, da mesma maneira que tem
contribudo para a formao de uma noo de identidade
Zo genrica, ou seja, de um coletivo que abrange todos
os grupos locais (ao qual se recorre segundo a necessida-
de de diferenciao frente outros ou para a constitui-
o de um ser ndio), tem motivado a construo de um
zo rekoha, tambm genrico. No contexto da partici-
pao do grupo nas atividades do GT de Identificao, os
Zo tentaram responder com a adaptao da noo de
-koha numa categoria capaz de traduzir para os kirahi
(os no-ndios) as articulaes entre os grupos locais na
ocupao territorial.
A alternncia de movimentos de disperso e de con-
centrao populacional, que marcam sua ocupao terri-
torial, um princpio que rege a qualidade de vida do
grupo, abrangendo desde as relaes interpessoais entre
famlias e entre grupos locais, at aquelas mantidas com
os no-Zo. Um princpio que impe limites ao uso do
espao e dos recursos e que se verifica, no territrio, tan-
to na relao entre distintos grupos locais e suas reas de
influncia, como tambm nos marcos sociais da ocupa-
o. Estabelecendo-se na regio em que os Zoe identifi-
cam hoje como sua rea de ocupao histrica, o grupo
desenvolveu detalhado conhecimento do ambiente, cujos
recursos utilizam segundo regras socioculturais que pre-
vem ocupao de reas diferentes por grupos locais di-
ferentes. E este modelo de ocupao territorial que im-
plica a superposio entre as reas imprescindveis pre-
servao dos recursos necessrios ao seu bem-estar e
aquelas necessrias sua reproduo fsica. Isso vale
tanto para a rea de ocupao atual e seus limites, como
para as reas de entorno. Suprimir desse territrio qual-
quer poro levaria ao aumento de presso sobre a rea
restante, pois o grupo local (ou grupos) prejudicado nes-
se processo passaria a exercer suas demandas sobre re-
gies ocupadas pelos outros grupos.
Por todas essas razes, mostra-se claramente inade-
quado, para o caso dos Zo, a noo de habitao per-
manente, no sentido de uma vida sedentria ou centrada
em aldeias. O grupo entremeia o perodo de cuidar das
roas com deslocamentos para outras aldeias onde man-
tm roas, e com expedies para fins de caa, pesca e
coleta. Inversamente, nos perodos que passam afasta-
das de suas roas, as famlias fixam-se em acampamen-
tos a partir dos quais fazem suas expedies de caa. A
agricultura e a roa demarcam o lugar dos Zo no mun-
do, mas este um elemento que satisfaz apenas parcial-
mente suas necessidades. As atividades de caa, pesca
e coleta exigem reas de ocupao mais amplas que o
permetro da roa, e os Zo esquadrinham completa e
permanentemente seu territrio, explorando todos os re-
cursos simultaneamente. Por outro lado, a delimitao de
reas fsicas fixas, permanentes e descontnuas para cada
grupo local, com base em sua regio de influncia atual,
tambm no seria apropriado, pois a relao dos grupos
com as regies de ocupao do territrio mudam no tem-
po em funo das alianas engendradas entre eles. As-
sim, as descontinuidades territoriais tambm podem ser
redefinidas de acordo com os perodos de aproximao e
distanciamento entre grupos, e de acordo com a extino
de uns e criao de outros. Um processo que s pode
ser compreendido e descrito a partir das lgicas de or-
ganizao territorial, ou seja, a partir da abordagem da
territorialidade.
Terra Indgena o mesmo que
territrio indgena?
So comuns idias como imemorialidade da ocupa-
o indgena em determinada regio, assim como cor-
rente a caracterizao do modo de vida indgena atravs
de seus vnculos com a natureza, ou com algum nicho
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ecolgico que acabaria configurando o que seria a sua
terra. Aparentemente, provar a ocupao continuada de
um grupo indgena numa rea e, a partir dessa relao
histrica, caracterizar um modo de vida indgena a partir
de sua adaptao ao ambiente ocupado seria suficiente
para configurar a relao que um grupo indgena mantm
com esta sua terra. Mas no to simples. Primeiro,
porque seria negar o tremendo impacto que a coloniza-
o teve sobre as populaes indgenas, muitas delas
rechaadas e refugiadas em reas que no correspondem
sua localizao histrica, nem extenso territorial ocu-
pada antes da dizimao gerada pelo encontro com fren-
tes de colonizao. Mas, ento, bastaria recuperar a do-
cumentao comprobatria e a memria do grupo acerca
de seu territrio para apoiar as demandas de demarcao
ou reviso de limites das Terras Indgenas? Nessa acep-
o, terra seria simplesmente uma parcela dentro de um
territrio historicamente mais amplo. Como se sabe, pra-
ticamente todos os grupos indgenas perderam grandes
pores de seus territrios, fragmentados em parcelas que
so reivindicadas e demarcadas, num parcelamento que
gera novas reivindicaes, assentadas no direito consti-
tucional que enfatiza os direitos originrios dos ndios
sobre suas terras, independentemente da demarcao.
Tal equao no suficiente. Territrio no apenas
anterior terra e terra no to somente uma parte de
um territrio. So duas noes absolutamente distintas.
Como expuseram vrios estudos antropolgicos,(2) a
diferena entre terra e territrio remete a distintas pers-
pectivas e atores envolvidos no processo de reconheci-
mento e demarcao de uma Terra Indgena. A noo de
Terra Indgena diz respeito ao processo poltico-jurdico
conduzido sob a gide do Estado, enquanto a de territ-
rio remete construo e vivncia, culturalmente va-
rivel, da relao entre uma sociedade especfica e sua
base territorial.
Todos os grupos indgenas possuem uma
idia de territrio?
Em muitos trabalhos acadmicos, a produo antro-
polgica evidencia um desconhecimento indgena do que
seja territrio, atestando inclusive a inexistncia dessa
noo para determinados grupos. Nesses casos, a mobi-
lidade espacial funciona como uma espcie de prova de
que no h territrio, ou, como afirma Rivire, de que h
ausncia de um senso de territorialidade (1984: 95).
Anlises como esta procuram descrever as concepes
indgenas a partir de noes abertas de territrio e de li-
mites, extremamente variveis. Esses estudos tambm
mostram que a idia de um territrio fechado s surge
com as restries impostas pelo contato, pelos proces- 2 Ver Seeger & Viveiros de Castro (1979) e Oliveira Filho (1989 e 1996).
sos de regularizao fundiria, contexto que inclusive
favorece o surgimento de uma identidade tnica. Tera-
mos ento de analisar, caso a caso, as respostas dos gru-
pos indgenas converso de seus territrios em terras,
uma vez que, como sugere Joo Pacheco de Oliveira: No
da natureza das sociedades indgenas estabeleceram li-
mites territoriais precisos para o exerccio de sua sociabili-
dade. Tal necessidade advm exclusivamente da situao
colonial a que essas sociedades so submetidas (1996: 9).
Na transformao de um territrio em terra, passa-se das
relaes de apropriao (que prescindem de dimenso
material) nova concepo, de posse ou propriedade.
Um exemplo desse tipo de anlise pode ser resumido
a partir da experincia dos ndios Wajpi que vivem no
estado do Amap. Entre a primeira proposta de delimita-
o desta Terra Indgena, encaminhada Funai em 1978,
e a concluso da demarcao fsica em 1996, os Wajpi
modificaram radicalmente sua auto-imagem. Era antes
construda como uma esparsa rede de sociabilidade, que
se estendia alm das fronteiras do grupo Wajpi e que as
ameaas e presses dos no-ndios no chegavam a
enrijecer. Hoje, todas as relaes com o exterior encon-
tram-se integradas uma rede interna e nesse proces-
so que surgiu uma idia de territrio, antes inexistente.
Sintetizando, passaram de:
uma auto-representao no-centralizada (e sem co-
notao tnica), baseada nos padres de sociabilidade
interna, onde a organizao e ocupao territorial limita-
vam-se apropriao de percursos historicamente reme-
morados com que marcavam grosso modo reas de trn-
sito dos grupos locais (-wan); no existia um territrio
mas zonas suporte do modo de ser fragmentado, como
se pode traduzir a expresso ekowa (lugar onde eu vivo
meu modo de ser) usada por um indivduo para designar
seu pertencimento um grupo local;
para uma auto-representao tnica, a categoria ns
Wajpi, que nasceu do enfrentamento ao modo de ser
alheio e que, gradativamente, veio a se expressar na rei-
vindicao de uma base territorial exclusiva: jane yvy, nos-
sa terra. Termo este que s existe enquanto conceito glo-
bal acoplado ao ns Wajpi, pois no faria sentido, nem
ontem nem hoje, atribuir aos grupos locais uma base
territorial. S h terra para esse todo construdo, a noo
de um coletivo Wajpi, produzido ao longo de mais de
duas dcadas.
Para tanto, foi necessrio gerir novas formas de rela-
cionamento intercomunitrio, em moldes radicalmente
diferentes do intercmbio tradicional, marcado por ten-
ses (nas trocas matrimoniais, rituais e sobretudo de agres-
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ses xamansticas). Quando assumiram realizar a de-
marcao, os Wajpi provaram que haviam alcanado
uma etapa significativa no longo processo de adaptaes
sociopolticas internas convivncia com o exterior.
Se a terra para os Wajpi de hoje um suporte de sua
etnicidade, o que parece bvio resultou, na verdade, de
um longo processo de aprendizado de gesto do coletivo.
Processo que s se cristalizou com a apropriao de uma
territorialidade limitada, pois sem limites, nada precisava
ser coletivo. A expresso jane yvy uma inveno dos
anos 80, usada como sinnimo da auto-designao Wajpi,
que tampouco era pronunciada nos anos 1970. Ambas
so construes em constante transformao. Pois a apro-
priao interdependente de limites tnicos e territoriais
necessariamente uma construo em aberto, e por isso
no necessariamente vivida enquanto um encapsula-
mento definitivo (Gallois, 1998).
Mas, se tentarmos ampliar este caso para outras situa-
es, no encontraremos as mesmas transformaes. De
fato, as respostas dos grupos indgenas variam enorme-
mente e sob muitos aspectos. Por isso, no possvel
concluir que a apropriao de uma terra necessaria-
mente resulte na transformao da identidade tnica em
marcador territorial. Concepes nativas de territrio,
quando existem e considerando-se suas variaes, so
essenciais ao entendimento das relaes de natureza so-
cial que so tecidas entre diferentes comunidades, em
redes extensas de troca de diversos tipos, apesar do en-
capsulamento em terras fragmentadas.(3)
Este exemplo evidencia que o estudo da organizao
territorial de uma dada sociedade indgena deve levar em
conta contextos especficos, historicamente localizados e
no se limitar a tomar como dado que limites tnicos
correspondem a limites territoriais.
Para abarcar essas variadas dimenses das formas
de organizao territorial indgenas, necessrio passar
a outra perspectiva terico-metodolgica, adequada ao
entendimento de lgicas espaciais diferenciadas. A van-
tagem em adentrar por estas lgicas da territorialidade
que se poder falar de territrios indgenas fora dos
quadros da etnicidade, do Estado-nao e da posse da
terra. Mas, claro, sempre considerando que a relao
entre uma sociedade indgena e seu territrio no natu-
ral ou de origem (Oliveira Filho,1989). H construes a
serem consideradas, que remetem a diferentes experin-
cias da territorialidade.
Prticas territoriais e territorialidades
A premissa bsica aqui proposta de que nenhuma
sociedade existe sem imprimir ao espao que ocupa uma
lgica territorial. Sairemos de definies pela ausncia,
para verificar como um senso de territorialidade imple-
mentado, de diversas maneiras, em diferentes contextos.
Nessa abordagem, o contato efetivamente uma expe-
rincia que acrescenta elementos territorialidade, levan-
do criao de novas estratgias.(4) Mas o contato no
uma prtica do territrio em si. Como vimos acima, ape-
nas em relao terra e na transformao do territrio
em terra pode-se falar em posse e propriedade. Espao
e territrio s podem ser apropriados. essencial insistir
nessa diferena, tendo em vista que o territrio de qual-
quer grupo pode ser abordado em um estudo antropolgi-
co, independente da possibilidade de equivalncia do con-
ceito ocidental moderno com algum conceito local.
Para tratar dessa perspectiva da territorialidade, in-
teressante voltar ao ponto inicial da discusso, acima, que
apontava a dificuldade de articular histria (presente na
idia de imemorialidade) e modo de vida (presente na
idia de adaptao a ambientes ecologicamente diferen-
ciados). Pois Terra Indgena, especialmente se constitu-
da como parcela de um territrio outrora mais amplo, no
representa necessariamente um nicho ecolgico ao qual
uma populao se adapta, ou se encapsula, atravs de
seu modo de vida. Inmeras situaes evidenciam hoje
que a defesa de um territrio parece dizer menos respeito
preservao de formas tradicionais de manejo de um espa-
o e de seus recursos do que a questes mais delicadas da
convivncia intertnica. O panorama da fragmentao de
Terras Indgenas confirma que no se pode abordar a terri-
torialidade como questo prxima s das cincias ecolgi-
cas, ou relacionadas a disputas por nichos de recursos. Se
disputas existem, no sero equacionadas a partir de abor-
dagens semelhantes s da Etologia, por exemplo.
Dizer que uma forma especfica de ocupao espa-
cial traduz-se em territrio falar de prticas sociais que
regulam o uso do espao, como sugere Raffestin (1993).
Autores da Geografia fornecem pistas interessantes para
equacionar o lugar e impacto de determinantes culturais
nos processos de territorializao. Segundo Costa (1988),
os grupos sociais estabelecem determinados modos de
3 Outro exemplo patente de existncia de uma noo prpria de territrio, queno terei oportunidade de desenvolver neste artigo, o caso Guarani. Essanoo ativada em sua prtica de mobilidade territorial, como atesta a inten-sidade dos laos sociais entre unidades territorializadas ou desterritorializadas.Como mostram os estudiosos desses grupos [ver, especialmente, Maria InsLadeira, 2001], territrio no uma noo que remete apenas ao espaofsico mas sobretudo a concepes cosmolgicas.4 O contato impe a necessidade de elaborar conhecimentos acerca da lgicasubjacente s polticas de controle territorial conduzidas pelo Estado (porexemplo, noes de limites fixos, ao mesmo tempo que parmetros paraidentificar-se e ser reconhecido como ndio) e elaborar tambm estratgiasterritoriais para lidar com essa lgica (por exemplo, reordenar a ocupao emfuno da localizao de postos de assistncia, ou de atividade ligada co-mercializao de produo indgena etc.).
TERRAS INDGENAS E UNIDADES DE CONSERVAO DA NATUREZA 41
relao com o seu espao, ou seja, valorizam-no a seu
modo e no interior deste processo que se pode identifi-
car relaes culturais com o espao, em sentido estrito.(5)
O espao pode ser o ponto de partida para pensar o
territrio, enquanto suporte fsico que territorializado:
relaes so estabelecidas, criando limites e canais de
comunicao, proximidades e distncias, interdies, fron-
teiras seletivamente permeveis conforme a lgica terri-
torial do grupo que territorializa uma dada poro de es-
pao. As relaes de apropriao do espao so aspecto
central nesse tipo de abordagem. Levam a considerar as
articulaes entre as diversas possibilidades de relaes
de apropriao do espao com a organizao sociopoltica
de um grupo, a qual fornece coordenadas e referncias
para a elaborao dos limites fsicos, sociais e culturais
que regulam a distribuio do espao e dos recursos
ambientais. Nesse sentido, pode-se dizer que o contato
coloca um grupo indgena diante de lgicas espaciais di-
ferentes da sua e que passam a ser expressas tambm
em termos territoriais. Como j se viu, o contato um
contexto de confronto entre lgicas espaciais. Por este
motivo, as diversas formas de regulamentar a questo
territorial indgena implementadas pelos Estados Nacio-
nais no podem ser vistas apenas do ngulo do reconhe-
cimento do direito terra, mas como tentativa de solu-
o desse confronto.
Superposio das diferentes dimenses
de uma Terra Indgena
Levando o argumento adiante, a abordagem da terri-
torialidade exige uma avaliao cuidadosa das intrincadas
relaes entre terras ocupadas em carter permanente,
terras utilizadas para atividades produtivas, terras im-
prescindveis preservao dos recursos ambientais ne-
cessrios a seu bem-estar e as necessrias a sua repro-
duo fsica e cultural. As sobreposies, sempre exis-
tentes, entre essas dimenses s podem ser percebidas
atravs da anlise de formas de organizao territorial de
cada grupo indgena. Se no forem consideradas as for-
mas especficas atravs das quais diferentes grupos ind-
genas imprimem sua lgica territorial ao seu espao, o
risco ser de reduzir a abrangncia das relaes terri-
toriais produo e s atividades de subsistncia. Se des-
crevermos apenas tais relaes a partir da suposta adap-
tao cultural (habitualmente tida por tradicional) a ni-
chos ecolgicos, toda a riqussima variao de formas de
territorializao indgena se ver reduzida definio de
limites da terra como modo de produo.
Argumentamos, acima, que essa categoria de terra
um dos elementos constitutivos do territrio, mas no
seu equivalente. A no-equivalncia entre terra e territ-
rio representando, enfim, a principal contribuio da an-
tropologia, que postula h tanto tempo a no-uniformida-
de no tratamento da Terra Indgena. A necessidade de
estudos caso a caso funo da existncia de diferen-
tes lgicas espaciais indgenas e, portanto, de diferentes
formas indgenas de organizao territorial. nesse sen-
tido que o territrio de um grupo pode ser pensado como
um substrato de sua cultura.
Referncias bibliogrficas
5 Prosseguindo a citao: Exprimir, a partir dessa relao, uma srie demanifestaes: mitos, ritos, cultos, socializaes etc. Do mesmo modo, ex-primir, com seu trabalho e sua tcnica, formas de apropriao e exploraodesse espao, marcando-o com as suas necessidades e seu modo de produ-zir e, por que no dizer, impregnando-o assim com sua cultura... O especficoa reter, no nosso caso, entretanto, diz respeito ao fato de que esse grupo projetasobre o espao as suas necessidades, a organizao para o trabalho e a culturaem geral, mas projeta igualmente as relaes de poder que porventura se de-senvolvam no seu interior... Por isso, toda sociedade que delimita um espaode vivncia e produo e se organiza para domin-lo, transforma-o em seuterritrio. Ao demarc-lo, ela produz uma projeo territorializada de suasprprias relaes de poder (Costa, 1988: 18; grifos no original).
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