Post on 21-Dec-2015
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A TERCEIRIZAÇÃO EM PERGUNTAS E RESPOSTAS: TENTANDO
DIMINUIR AS CONFUSÕES
Márcio Túlio Viana
Uma breve explicação
Esse artigo - pequeno e singelo - tenta deixar mais claro o fenômeno da terceirização.
Para isso, faz sete perguntas: 1) O que é terceirização? 2) Como distinguir as formas de
terceirizar? 3) De onde vêm as terceirizações? 4) Quais os sentidos das terceirizações?
5) Quais os efeitos das terceirizações? 6) Como enfrentar as terceirizações? 7) É
interessante ampliar as hipóteses de terceirização interna?
Para respondê-las, o artigo repete algumas colocações antigas, mas acrescenta as
últimas conclusões do autor, na esperança de diminuir as confusões.
Naturalmente, os pontos de vista aqui formulados podem não ser os melhores. Por mais
que já se tenha pensado sobre o tema, existem pontos que merecem, talvez, maior
reflexão. Por isso, naturalmente, críticas e contribuições serão sempre bem vindas.
1. O que é terceirização?
Em nossa língua, essa palavra costuma ser usada em dois sentidos. Refere-se a duas
realidades diferentes. E é aqui, exatamente, que começam as confusões. È muito
comum, por exemplo, uma pessoa criticar as terceirizações imaginando uma de suas
formas, e outra pessoa defendê-las pensando em outra de suas formas.1
Alguém se lembra, por exemplo, dos trabalhadores terceirizados que fazem faxina em
escritórios, e afirma em tom enfático:
1 Esse fato se repetiu várias vezes na audiência pública promovida pelo TST sobre o tema, quando os críticos da terceirização se referiam a uma de suas formas, e os seus adeptos respondiam com a outra. Mas outras vezes uns e outros também misturavam os comceitos, como se fossem uma coisa só.
1
- Sou radicalmente contra a terceirização, pois ela cria uma subclasse de
trabalhadores!.
O outro pensa então nos que trabalham em empresas subcontratadas (ou seja, em forma
de rede), e contesta:
- Não vejo como obrigar uma fábrica de carros a fabricar todas as suas peças, do
radiador aos pneus, inserindo num só lugar todos os trabalhadores!
Na verdade, o ideal seria encontrar uma segunda palavra para indicar o segundo desses
fenômenos. A essa altura, porém, a palavra “terceirização” - com seus dois sentidos -
já se incorporou de tal modo em nosso vocabulário, que o melhor parece ser adjetivá-la.
Foi o que ensaiamos há já bastante tempo, num primeiro esforço de classificação,
chamando uma de “interna” e a outra de “externa”. Na primeira, a empresa traz
trabalhadores alheios para dentro de si. Na segunda, joga para fora de si não só
trabalhadores seus, como etapas de seu ciclo produtivo.
Uma e outra podem ser vistas como faces de um mesmo fenômeno. Ainda assim, têm
componentes diferentes, geram efeitos nem sempre iguais e podem ser combatidas por
meios também distintos. Além disso, como veremos, as próprias palavras “externa” e
“interna” merecem uma nova observação.
2. Como distinguir as formas de terceirizar?
Vimos que, na terceirização interna, a empresa realmente internaliza trabalhadores
alheios – como acontece no trabalho temporário, nas empresas de asseio e conservação
e, de um modo geral, nas que exercem a atividade meio de suas contratadas. Assim, a
empresa A quer se dedicar só à fabricação de parafusos, livrando-se de seu pessoal de
escritório, e então contrata a empresa B, que lhe fornece esse mesmo pessoal.
Já na terceirização externa, a empresa quer, de fato, externalizar etapas de seu ciclo
produtivo – como acontece há muito tempo na indústria de automóveis e hoje é prática
cada vez mais disseminada no setor produtivo. Assim, a empresa A, que antes fazia um
2
relógio inteiro, hoje faz só a sua máquina, descartando a pulseira para B e as peças de
plástico ou de vidro para C.
Acontece, no entanto, como já dizíamos, que mesmo essa divisão em “interna” e
“externa” – por sugerir lugares diferentes - pode gerar alguma confusão,
É que, às vezes, a empresa usa trabalhadores alheios, mas que não ficam dentro dela. É
o que acontece, por exemplo, em setores de call-center. Outras vezes, inversamente, a
empresa descarta etapas de seu ciclo produtivo, mas suas parceiras não ficam fora dela,
e sim na mesma planta. É o que às vezes sucede na própria indústria automobilística.
Desse modo, para entendermos melhor as diferenças e os significados das duas formas
de terceirizar, talvez seja interessante voltar a uma velha e sábia lição de Olea, ao
comparar o trabalho por conta própria com o trabalho por conta alheia2.
No trabalho por conta própria, o produto pertence ao trabalhador do início ao fim do
processo produtivo. O artesão faz o seu cesto de vime e só num segundo momento o
transfere – se quiser – para as mãos do comprador.
Já no trabalho por conta alheia, o produto vai passando imediatamente para o
empresário, em tempo real, na medida em que está sendo fabricado. É como se, pouco a
pouco, o cesto do artesão fosse escorrendo de suas mãos e encontrando as mãos do
outro.
Pois bem. A terceirização externa lembra o trabalho por conta própria. Uma empresa
contrata a outra, mas o que lhe interessa é o produto final. Por isso, só ao término da
produção passa a ter propriedade sobre ele. Já a terceirização interna se articula com o
trabalho por conta alheia. A empresa tomadora vai se apropriando do trabalho dos
terceirizados na medida em que eles o executam.
3. De onde vêm as terceirizações?
2 Olea, Alonso. Introdução ao Direito do Trabalho. Coimbra: Alamedina, 1965, passim.
3
A pergunta não atende a mera curiosidade. É muito importante fazermos uma breve
viagem ao passado, pois só assim o Leitor poderá entender o nosso pensamento e a
realidade atual. Por isso, pedimos cinco minutos de sua paciência.
Pois bem. Quase dois mil anos atrás, na Grécia, já havia empresas que alugavam
escravos para outras – em geral, para o trabalho das minas. Mas o período mais
interessante, para o nosso estudo, é o que antecede o capitalismo industrial – mais ou
menos entre os séculos XVI e XVIII.
O que acontecia, então?
Entre várias outras práticas, passou a ser comum, já naquele tempo, um modo de
produzir bem parecido com a rede de empresas de hoje. O capitalista – que não tinha
ainda sua fábrica – despejava matéria prima (em geral, tecidos) nos lares camponeses, e
depois os recolhia, prontos para ser tingidos e depois vendidos.
É claro que, muitas vezes, o que havia era verdadeiro trabalho a domicílio, com todos os
pressupostos que hoje vemos na relação de emprego. Ainda assim, nem sempre isso
ocorria, e a organização geral, como dizíamos, era bem próxima à da atual produção em
cadeia. No mínimo, podemos ver, já naquela época, uma forma embrionária de
terceirização externa.
Pouco a pouco, no entanto, esse modo de produzir foi-se tornando incompatível com o
mercado nascente - e que se fazia cada vez mais exigente. Era difícil racionalizar
aquela espécie de fábrica difusa3, cujos trabalhadores se dispersavam em grandes áreas,
mal servidas por estradas, e escondiam os gestos de trabalho entre as quatro paredes de
suas casas. Além disso, não estavam habituados a horários, nem seguiam outras formas
de comando, O resultado é que nem sempre entregavam o produto a tempo e a hora,
com a qualidade desejada, e não raras vezes desviavam ou surrupiavam matéria prima,
compensando desse modo os seus salários de fome.
Foi por isso – ou também por isso – que o capitalista, tempos depois, organizou sua
fábrica – já agora uma fábrica inteira, verdadeira, de cimento e tijolos. Ali, entre aquelas
3 A expressão é conhecida; escapa-nos o nome de quem a criou.
4
novas paredes – que eram de propriedade dele, não dos operários - ele podia muito
mais facilmente disciplinar os corpos4 e racionalizar a produção. Quem passava pela
porta de entrada deixava com o porteiro uma boa fatia de liberdade.
No início, o capitalista procurou os rios – às vezes fora das cidades – para aproveitar a
força motriz das águas. Ele próprio morava ali, como um novo senhor do castelo, e as
relações com os trabalhadores conservavam, em regra, os mesmos traços paternalistas
do passado.
Além disso, como era ainda difícil contratar, selecionar e dirigir o pessoal, ele recorria
com frequência a intermediários – os gatos de hoje - que arrebanhavam não só
camponeses e artesãos, mas crianças (que podiam ser os seus próprios filhos), mães
solteiras, mendigos e desocupados de toda espécie. Em geral, esse mesmo intermediário
chefiava o seu grupo, como uma espécie de capataz. Era uma forma – também rude – de
terceirização interna.
Com o tempo, também isso mudou. O empresário foi-se tornando mais organizado,
mais profissional, e se pôs ele mesmo a escolher, treinar e comandar o seu pessoal. . Ao
fazê-lo, também atendia às exigências crescentes do mercado, pois radicalizava o
disciplinamento e com isso aumentava não só a produtividade e a qualidade do produto
como a extração de sua mais-valia.
Acontece que a fábrica, criada assim, gerou uma contradição inesperada. Ao juntar os
trabalhadores num mesmo local, acabou fazendo com que eles se vissem melhor, como
num espelho, partilhando emoções e aprendendo a conspirar.
E a consequência foram as greves, o sindicato e – em última análise – o próprio Direito
do Trabalho. Não fosse aquela contradição, ele dificilmente teria nascido como nasceu,
mesmo se levarmos em conta sua utilidade para o próprio sistema. Aliás, o sistema não
precisaria dele - ou tanto dele - como de fato precisou.
Naquele tempo, a contradição criada pela fábrica parecia invencível. Afinal, era preciso
reunir para produzir, e o ato de reunir os corpos tinha como efeito unir corações e
4 Veja-se, a propósito, especialmente a obra de Foucault.
5
mentes. Com o passar do tempo, porém, o sistema foi inventando vários modos de
reduzi-la, fosse influindo – ideologicamente - naqueles mesmos corações e mentes,
fosse cooptando o próprio sindicato, ou cedendo os anéis para não perder os dedos.
Hoje, a tecnologia5 permite ressuscitar as duas formas de terceirização – e superar, desse
modo, a contradição que a fábrica criara. Em outras palavras, já é possível produzir sem
reunir, sem os inconvenientes de antes. E, mesmo quando reune (fisicamente) a fábrica
consegue desunir (subjetivamente), opondo terceirizados a não terceirizados, na medida
em que uns e outros ora se invejam, ora se temem, dependendo da posição que
eventualmente ocupam. Assim, as duas formas de terceirizar se completam.
É claro que há outros fatores em jogo. Nossa análise é sintética e (nesse sentido)
reducionista. Em linhas gerais, porém, podemos concluir que, no limite, a terceirização
externa supera aquela contradição principalmente em termos objetivos (produzir sem
reunir), ao passo que a interna a supera principalmente em termos subjetivos (reunir sem
unir).
4. Quais os sentidos das terceirizações?
Vejamos primeiro a externa.
Na aparência, não há diferença entre essa forma de terceirizar, hoje tão comum, e a que
vem fazendo – desde meados do século passado – a indústria de automóveis. O que
haveria de novo, na empresa em rede, parece ser apenas a disseminação dessas práticas,
aliada à possibilidade (bem maior) de ingerência de uma parceira nas outras.
No entanto, o que a indústria de automóveis aprendeu a fazer, desde meados do século
passado, não parece ter tido o propósito – ou pelo menos o propósito principal – de
fragmentar a classe trabalhadora ou precarizar as condições de salário e trabalho. Na
verdade, naquele tempo, era outra a lógica da política econômica, e mesmo a da política
empresarial. O capitalismo saía de uma grave crise, o modelo soviético ainda era uma
ameaça, e os direitos de segunda geração (ou dimensão) ganhavam força. A ideia era
repartir renda, transformando (praticamente) todo homem em trabalhador, todo
5 É claro que outros fatores também atuam, como a própria ideologia.
6
trabalhador em empregado e todo empregado em consumidor, e desse modo
realimentando o ciclo. Em outras palavras, a contradição era vista e enfrentada de outras
maneiras. Além disso, a produção em larga escala dependia tanto do braço humano que
nem mesmo a fragmentação do processo produtivo impedia a formação de grandes
contingentes operários, tanto nas montadoras como nas fábricas de autopeças.
A terceirização externa era, assim, não tanto um modo de dividir e precarizar (ou dividir
para precarizar), mas uma necessidade imposta pela complexidade crescente do produto
e pelas exigências também maiores do consumo. Em outras palavras, já não era viável
– por razões técnicas ou análogas - reunir toda a fabricação do automóvel num único
lugar, do mesmo modo que nunca foi possível produzir todos os nossos bens de
consumo numa única fábrica.
Hoje, porém, a política econômica é outra, a política das empresas também. Os direitos
de primeira geração passam à frente dos de segunda, quando não os atropelam6. Assim,
entra em cena a ideia de resolver de uma vez por todas a contradição original - e em
seus dois aspectos, objetivo e subjetivo. E o instrumento (re)encontrado, como vimos,
é a terceirização, também em suas duas formas. Se ela já foi possível, mas depois se
inviabilizou, hoje volta a ser possível, e por isso se expande.
No caso específico da terceirização externa, a razão pode não ser apenas esta. Afinal, a
razão antiga – ligada à tecnologia – permanece, e até se acentua. Todos os produtos –
não apenas o automóvel – vão se tornando cada vez mais complexos e sofisticados, e
por isso a tendência às especializações passa a ser cada vez mais forte. Só para dar
alguns exemplos banais, não se pode pretender que uma fábrica de bicicletas produza os
selins e a campainha, e menos ainda que uma fábrica de computadores construa os seus
chips ou mesmo os softwares.
No entanto, como dizíamos, nem sempre isso acontece, e mesmo quando é assim o útil
vem junto com o agradável: a fábrica simplesmente se aproveita da antiga razão que
levou a indústria de automóveis a se fragmentar (necessidade de especialização) para 6 Até certo ponto, na prática, a ênfase em direitos como os de não discriminação, preservação da intimidade e outros do gênero, que não implicam distribuição de renda, parece abrir uma espécie de crédito para que se reduza a importância dos chamados “direitos sociais”. A propósito, cf. o nosso texto: Direito Civil x Direito do Trabalho: caminhos que se cruzam. In: Reis, Daniela Muradas et alii (coord.). Trabalho e Justiça Social: um tributo a Mauricio Godinho Delgado. São Paulo: LTr, 2014.
7
atender ao objetivo (não confessado) de dividir a classe operária e - até por
consequência disso - precarizar salários e condições de trabalho.
Já no caso da terceirização interna - salvo uma ou outra possível exceção – inexiste
sequer aquela primeira justificativa. A fábrica de parafusos que usa trabalhadores
alheios em seus escritórios poderia muito bem utilizar os dela; não se confunde com a
fábrica de aviões, que precisa usar os produtos – computadores, por exemplo – de outra
fábrica.
Aqui, nem sequer a razão da eficiência pode servir de pretexto, já que, como se sabe, o
trabalhador terceirizado – por suas próprias circunstâncias - não tem o mesmo apego ao
trabalho ou à empresa onde presta serviços. Assim, a terceirização interna revela de
forma ainda mais clara o objetivo de superar aquela grande contradição que o sistema
criou.
5. Quais os efeitos das terceirizações?
No plano dos fatos, como dizíamos, as duas terceirizações tendem a resolver – também
de duas formas – o dilema histórico da fábrica, que sempre se viu forçada a reunir para
produzir, sem poder evitar a união nascida da reunião, com todas as suas
consequências. Em termos mais imediatos, servem como luva à implementação da onda
neoliberal, que bate de frente com o sindicato e sua proposta de direitos crescentes.
É verdade, como também dizíamos, que aquelas consequências – que em última análise
podem ser resumidas no próprio Direito do Trabalho – também são úteis ao o sistema7.
No entanto, como escreveu alguém, o capitalismo é hoje capaz de sobreviver com um
número bem menor de consumidores, graças ao aumento de riqueza dos que já eram
ricos; e pode se dar ao luxo de ir diminuindo, a seu critério - e na medida de sua
conveniência - os limites, os conteúdos e a própria essência daquele ramo do Direito.
Em regra, as duas formas de terceirização aviltam salários, degradam o ambiente e
fragmentam a classe operária. Mas há uma diferença entre elas, no plano dos fatos.
7 Nesse sentido, ensina Tarso Genro que ele carrega em suas entranhas não só “os germes de resistência dos dominados”, mas traços da opressão dos dominadores (Direito Individual do Trabalho. S. Paulo: LTr, 1994)
8
Na terceirização externa, as indignidades podem estar ou não presentes, e mesmo
quando presentes podem variar de grau. Para o trabalhador, pode até ser indiferente
trabalhar na fábrica que monta bicicletas ou na que produz a corrente, a campainha ou
os selins.
É verdade que, na empresa em rede, a precarização é hoje um fato comum; e essa pode
ser, com frequência, a razão principal ou única de sua própria existência enquanto rede.
É que a tecnologia permite – de forma muito melhor do que antes – o controle
(recíproco ou vertical) entre as parceiras, o que garante a unidade real do processo
produtivo; e desse modo também viabiliza as formas pequenas, ocultas e disfarçadas de
fabricação dos produtos. Hoje, até uma fabriqueta de fundo de quintal – ou uma fazenda
com trabalho escravo - pode servir à grande e hipermoderna empresa capitalista.
No entanto, o que queremos dizer é que – por mais comum que seja - a precariedade não
é um componente estrutural, essencial ou mesmo necessário à terceirização externa.
Já no caso da terceirização interna – para além dos salários baixos, ou das más
condições de saúde e segurança – o que há é a comercialização pura e simples do
homem. A empresa o aluga ou arrenda a quem lhe aprover, ganhando na troca.
Entenda-se: o que se comercializa já não é a força de trabalho, mas o homem que
trabalha, com todas as suas carnes e ossos. Nesse sentido, a terceirização sempre
precariza. Se o capital tem por lógica transformar tudo em mercadoria, agora ele rompe
a última barreira, chega ao último reduto, atinge o seu climax, o seu ponto absoluto, e
desse modo se torna – digamos assim - coerente por inteiro.
É verdade que mesmo na terceirização externa o homem pode ser tratado como
mercadoria, ou como bicho, e as várias formas de trabalho escravo também nos
mostram isso. No entanto, uma coisa é ser tratado assim, como se não tivesse direitos, e
outra é se tornar de fato uma mercadoria, respaldada pelo direito, por mais que os
efeitos materiais possam ser parecidos.
9
A propósito de algumas desssas consequências, vale a pena ler a dissertação de
mestrado de Grijalbo Fernandes Coutinho, ex-presidente da Associação Nacional dos
Magistrados da Justiça do Trabalho – ANAMATRA – e uma das maiores autoridades
no assunto8. Em belo trabalho de pesquisa - orientado pela Professora Daniela Muradas,
da UFMG - ele nos mostra com dados impressionantes como os acidentes de trabalho,
por exemplo, têm atingido muito mais os terceirizados que os trabalhadores comuns. Só
na Copa do Mundo, dos 12 operários mortos na construção dos estádios, 11 eram
terceirizados!
Por outro lado, as duas formas de terceirizar também se distinguem quanto aos efeitos
jurídicos. A terceirização interna é regulada por algumas leis esparsas e mais
completamente pela Súmula no. 331, do TST (que tambem se refere àquelas leis). A
terceirização externa encontra abrigo no art. 2º § 2º, da CLT, que trata do grupo de
empresas.
6. Como enfrentar as terceirizações?
No mundo (capitalista) em que nós vivemos, não há como proibir as terceirizações
externas. Aliás, a essa altura do desenvolvimento humano, até mesmo em outro sistema
econômico isso parece inviável. Como impedir que as fábricas de aviões, relógios ou
televisões comprem vidros, poltronas ou computadores de outras fábricas? E se é assim
hoje, o que não será no futuro, quando estaremos cercados de produtos ainda mais
complexos e sofisticados?
Uma possibilidade teórica seria distinguir entre as empresas que precisam e as que não
precisam, efetivamente, fragmentar o seu ciclo produtivo. Em outras palavras, separar,
de um lado, as que querem apenas produzir, e não têm como fazê-lo sozinhas, por
questões técnicas ou análogas; e, de outro, as que buscam apenas superar aquela
contradição, dividindo a classe operária e atingindo o Direito do Trabalho.
8 O título da obra – que deve ser publicada em breve – é: Terceirização e Acidentalidade (Morbidez) no Trabalho: uma estreita relação que dilacera a dignidade humana e desafia o Direito. Ainda sobre o tema, outra doutrinadora que merece seer lida é Gabriela Neves Delgado (vejam-se especialmente, de sua autoria: Direito Fundamental ao Trabalho Digno. São Paulo: LTr, 2006. e Terceirização: paradoxo do direito do trabalho contemporâneo. São Paulo: LTr, 2003.
10
Isso nos parece viável em casos-limite, quando a empresa, por exemplo, deixa de
produzir o que antes fazia diretamente, e a própria singeleza do produto – digamos, uma
garrafa de plástico – deixa bem claro que não há outro objetivo, senão o de precarizar. E
há também, naturalmente, os casos de fraude, em que o empregador financia um testa
de ferro – que pode ser um empregado seu – e o transforma em “parceiro”; ou quando
contrata alguém (ou uma empresa) sem a menor idoneidade econômica, à semelhança
do que acontece com as falsas parcerias.
No comum dos casos, porém, não nos parece que essa ideia seja praticável – mesmo
porque, quase sempre, as coisas se misturam, os objetivos se casam. Mesmo tendo que
se fragmentar, em razão da natureza do produto, a fábrica de automóveis ou de
bicicletas - nos tempos de hoje - quer também dividir a classe trabalhadora.
Desse modo, o que nos resta é criar instrumentos para reduzir os estragos, tanto no
plano não jurídico – redes sindicais globais, por exemplo – quanto no plano juridico –
aplicando-se à hipótese, como dizíamos, a figura do grupo de empresas, ainda que
tenhamos de ampliar (doutrinariamente) o seu conceito. Com isso, a simples existência
da rede já seria suficiente para que todas as parceiras fossem solidariamente
responsáveis; e o empregador real seria o grupo.
Já no caso da terceirização interna, seria possível – e necessário - proibi-la em todos os
casos, o que certamente não afetaria a produção industrial, e muito menos as nossas
vidas. Mas como, na prática, o atual contexto parece desfavorável, devemos no mínimo
manter – e tentar aperfeiçoar - os critérios da Súmula no. 331 da CLT. É o que tentamos
fazer em nota de rodapé9.
9 Em sintese, como também já escrevemos, eis algumas conclusões específicas :1) A terceirização externa
(de atividades empresariais) se rege pelo art. 2º § 2º da CLT; 2) A norma acima referida deve ter leitura
expansiva, de modo a abarcar os grupos de formação horizontal e a abranger formas mais sutis ou
disfarçadas de agregação empresarial; 3) A terceirização interna (de serviços) está disciplinada em parte
pela legislação extravagante e completada pela Súmula no. 331 do TST, que a ela também se refere; 4)O
ideal seria proibir qualquer forma de terceirização interna que fugisse aos termos precisos daquela
legislação; 5)Não sendo isso possível, os critérios daquela Súmula devem prevalecer como regra geral,
mas podem ser aperfeiçoados; 6)Para aperfeiçoá-los, parece-nos importante: a) Adicionar ao critério que
separa as atividades meio das atividades fim o critério da precarização das condições de trabalho e/ou
salário, de tal modo que, mesmo em se tratando de atividade meio, a relação, no caso, formar-se-ia com o
11
7. É interessante ampliar as hipóteses de terceirização interna?
Essa discussão ganhou corpo com um projeto do deputado Sandro Mabel, e, mais
recentemente, em processo judicial, que na época desse texto ainda tramitava no
Supremo Tribunal Federal.
tomador; b)Em casos de dúvida, aplicar o princípio da norma mais favorável ( in dubio pro operario); c)
Evitar a redução dos conceitos de subordinação e pessoalidade, para concluir se a terceirização é lícita ou
não; d) Estender a todos os terceirizados o princípio da isonomia das condições de trabalho e salário;
e)Reforçar as normas existentes, garantindo explicitamente aos terceirizados o grau necessário de
segurança e higiene no trabalho; f)Substituir o critério da responsabilidade subsidiária pelo da
responsabilidade solidária; g) Aplicar o critério da solidariedade entre contratante e contratada não só no
caso da terceirização lícita, mas na hipótese de terceirização ilícita, independentemente do
reconhecimento do vínculo de emprego com o tomador; h) No caso de uma cadeia de tomadores e
fornecedores, aplicar o critério de solidariedade entre todos; i) Proibir a terceirização no curso da greve,
salvo na hipótese do art. 9º. § 1º., da Lei no. 7783; j) Proibir a terceirização nos seis meses que se
sucederem a despedidas coletivas. 7) No plano coletivo: a) Construir uma interpretação que permita que o
sindicato representativo dos terceirizados possa ser, indistintamente, tanto o que tem como
correspondente o sindicato das empresas fornecedoras de mão de obra, como o que tem como
correspondente o das empresas tomadoras de serviço; b) Não se considerando isso possível, que se
procure construir uma interpretação que insira os terceirizados em sindicatos dos trabalhadores nas
empresas tomadoras de serviço; d) Não se considerando nenhuma das hipóteses como viáveis, que se
assegure de todo modo aos terceirizados, ainda que sejam abrangidos por convenção ou acordo coletivo
diferente, as mesmas condições de trabalho e de salário dos trabalhadores da tomadora, caso estas se lhe
revelem mais benéficas. 8) No plano da administração pública: a) Tentar construir, no futuro, a idéia da
presunção relativa de culpa da Administração, na hipótese de inadimplemento das verbas trabalhistas por
parte da empresa contratada; b) No presente, adotar como critério, para aferir sua responsabilidade, a
perfeita adequação do órgão público às normas que disciplinam o processo de licitação e à fiscalização
que deve acompanhá-lo, no tocante ao cumpr imento das obrigações trabalhistas e previdenciárias. 9)
Como princípio geral: manter uma postura sempre restritiva no tocante às terceirizações internas (de
serviços), sejam elas quais forem, e um olhar sempre crítico e vigilante em relação às terceirizações
externas (de atividade empresarial). Para além do Direito: estender a luta contra a precarização para o
circuito do consumo, através de práticas como o boicote.
12
Entre vários outros argumentos – que em geral se lembram da liberdade de empresa,
mas se esquecem de sua função social – alega-se que a distinção entre atividade meio e
atividade fim é artificial e gera dúvidas. Ignora-se, de forma conveniente, o princípio do
in dubio pro operario10, que manda decidir a dúvida a favor do empregado...
Ora, se ampliarmos as hipóteses da Súmula 331, o mais provável é que a terceirização
se espalhe por todos os cantos, com todas as suas trágicas consequências. E, nesse caso,
não só o trabalhador se veria – para sempre – transformado em mercadoria, com todas
as consequências objetivas e subjetivas desse fato, como o Direito do Trabalho sofreria
o mais forte dos abalos.
É que a terceirização é também um discurso: ela aponta para um novo paradigma, um
novo modo de pensar e de fazer as leis, uma nova lógica entre o capital e o trabalho. É
um símbolo, e por isso também um aceno, um convite, sinalizando para o desmonte
progressivo das conquistas operárias. No mínimo, o trabalho se veria refém por inteiro –
ou em muito maior escala - do capital.
De fato, num contexto assim, de autêntica e generalizada marchandage, qual sentido
assumiria o princípio da proteção? E quais outras criaturas estranhas não entrariam
depois por aquela porta? Como fazer valer a CLT, se até uma pequena lei, ou uma
simples súmula, for capaz de desafiar e até de ridicularizar a própria essência do Direito
do Trabalho? Qual seria a postura dos novos juizes, ao aplicar as antigas normas, se até
mesmo o trabalho indigno se naturalizaria, a ponto de se tornar uma regra jurídica?
E como evitar novas investidas aviltantes se o Direito do Trabalho, em última análise,
estaria todo impregnado e deturpado pela idéia da terceirização? Como pretender que o
sindicato atue, ajudando a criar e a reforçar o Direito estatal, se esse mesmo Direito
conspira contra ele? O que esperar desse novo trabalhador – em seus variados papéis de
empregado, pai de família ou cidadão que constrói seu país – se ele se vê ou se sente
não como homem inteiro, mas como um homem-coisa, que pode até acabar se
habituando com isso?
10 A terminologia é de Plá Rodriguez. O nosso grande Maurício Godinho Delgado prefere inseri-lo no princípio da norma mais favorável.
13
São coisas para se pensar.
14