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CAETANO BRANQUINHO COELHO BARSOTELI
EDUARDO LÁZARO DE FREITAS PEREIRA
AÇÃO-ESCOLA: PARA UMA NOVA DEFINIÇÃO E PRÁTICA DE
ESCOLA EM BASES DE UM PARADIGMA ANARQUISTA
FRANCA 2015
CAETANO BRANQUINHO COELHO BARSOTELI
EDUARDO LÁZARO DE FREITAS PEREIRA
AÇÃO-ESCOLA: PARA UMA NOVA DEFINIÇÃO E PRÁTICA DE
ESCOLA EM BASES DE UM PARADIGMA ANARQUISTA
Trabalho de Conclusão de Curso, apresentado ao curso de Letras do Centro Universitário Municipal de Franca - Uni-FACEF - para obtenção do título de licenciatura. Orientação: Profa. Dra. Sheila Fernandes Pimenta e Oliveira
FRANCA 2015
CAETANO BRANQUINHO COELHO BARSOTELI
EDUARDO LÁZARO DE FREITAS PEREIRA
AÇÃO-ESCOLA: PARA UMA NOVA DEFINIÇÃO E PRÁTICA DE
ESCOLA EM BASES DE UM PARADIGMA ANARQUISTA
Trabalho de Conclusão de Curso, apresentado ao curso de Letras do Centro Universitário Municipal de Franca - Uni-FACEF - para obtenção do título de licenciatura.
Franca, 20 de outubro de 2015
Orientadora: ____________________________________________ Nome: Profa. Sheila Fernandes Pimenta e Oliveira Instituição: Uni-FACEF - Centro Universiário de Franca
Examinador (a):_________________________________________ Nome: Instituição:
We don’t need no education. We don’t need no
thought control.
Roger Waters - Pink Floyd
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo propor uma nova definição e prática de escola,
a partir dos princípios da filosofia anarquista, que aqui nos serve, também, para
articular uma análise crítica à escola como instituição a serviço da sociedade
capitalista e do Estado, estruturas rejeitadas veementemente pelos princípios
anarquistas, que postulam novas formas de comportamento e prática social,
baseados em pressupostos antiautoritários, solidários e liberais. A análise
crítica da escola como instituição leva em conta sua história, seus motivos e
suas funções sociais no decorrer do tempo, sempre analisados em face às
propostas antitéticas dos anarquistas. Tais propostas anarquistas visualizam a
nova escola com base num estilo de organização de autogestão, e assume o
estabelecimento dessa nova escola como atitude de resistência ao sistema
consolidado, ainda que misto ao mesmo. Para a análise crítica da escola como
instituição, recorremos, também, às inspeções feitas por Foucault sobre a
disciplina, e de Harris sobre a socialização em grupos, teoria fundamental para
a compreensão da natureza da formação de grupos. Com isso, propomos, em
última instância, medidas práticas para uma nova aplicação de pedagogia
anarquista na instrução em grupos: uma ação-escola.
Palavras-chave: Anarquismo. Instituição Escolar. Disciplina. Grupos.
Autogestão.
ABSTRACT
This work aims to propose a new definition and practice of school based on the
principles of anarchist philosophy, which here also serves us to articulate a
critical analysis of the school as an institution, in service of capitalist society and
the state, vehemently rejected structures by anarchist principles, which
postulate new forms of behavior and social practice, based on solidarity, anti-
authoritarian and liberal assumptions. A critical analysis of the school as an
institution takes into account its history, its motives and its social functions
throughout time, being analyzed in relation to anarchist’s antithetical proposals.
Such anarchists proposals envision the new school on the basis of self-
management style of organization, and assumes the establishment of this new
school as an attitude of resistance against the consolidated system, although
mixed to it. For critical analysis of the school as an institution we make use of
the inspections made by Foucault on discipline, and by Harris about group
socialization, a fundamental theory for understanding the nature of the
formation of groups. Thus, we propose, ultimately, practical steps for a new
application of anarchist pedagogy in groups: an action-school.
Keywords: Anarchism. School Institution. Discipline. Groups. Self-
Management.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO.................................................................................... 7
2 O ANARQUISMO ............................................................................... 9
2.1 O QUE É O ANARQUISMO .................................................................... 10
3 A ESCOLA ......................................................................................... 17
3.1 UMA BREVE HISTÓRIA DA ESCOLA .................................................... 17
3.2 O QUE FAZ A ESCOLA .......................................................................... 22
3.3 O QUE É A ESCOLA .............................................................................. 27
3.4 TEORIA DA SOCIALIZAÇÃO DE GRUPOS ........................................... 31
3.4.1 “Um por todos, todos por um” .............................................................. 32
3.5 A DISCIPLINA ......................................................................................... 41
3.5.1 A disciplina como fim de si mesma ...................................................... 41
3.5.2 A disciplina como ritual......................................................................... 46
4 UMA NOVA DEFINIÇÃO DE ESCOLA ...................................... 52
4.1 A AUTOGESTÃO .................................................................................... 54
4.1.1 O princípio da autogestão .................................................................... 55
4.1.2 Autogestão pedagógica ....................................................................... 59
4.2 OS LIMITES DE UMA EDUCAÇÃO ANARQUISTA ................................ 63
4.3 A QUESTÃO DA EDUCAÇÃO INDIVIDUALISTA ................................... 66
4.4 UMA EDUCAÇÃO EM VISTA DA SOCIALIZAÇÃO DE GRUPOS ......... 68
4.5 UMA NOVA CARA PARA A ESCOLA .................................................... 71
4.6 OS NÍVEIS DE UMA EDUCAÇÃO LIVRE ............................................... 74
5 PESQUISA-AÇÃO: AÇÃO-ESCOLA .......................................... 79
6 CONCLUSÃO .................................................................................... 87
REFERÊNCIAS ........................................................................................... 90
8
1 INTRODUÇÃO
Pretende-se, com este trabalho, constituir uma nova definição de
escola e uma consequente nova prática escolar. Procuramos, primeiramente,
erigir pilares filosóficos que propiciarão sustentáculo ideológico para se pensar
em uma nova escola, e que se justificarão ao longo do trabalho. Estes pilares
filosóficos derivam-se do anarquismo, paradigma que compreenderemos de
acordo com seus princípios, levando em consideração suas definições mais
básicas segundo Kropotkin (2007), Bakunin (1999), Chomsky (2005) e Ward
(2004), e também em vista da atualidade no choque com o sistema capitalista e
com a estrutura estatal da sociedade na qual nos inserimos.
Para isso, realizaremos uma crítica à concepção atual de escola,
através de uma investigação histórica empreendida por Reimer (1971) e
Matthews (2004), analisando a evolução da escola e da ideia de educação ao
longo do tempo, bem como uma crítica - embasada nos autores - ao que se
espera da escola enquanto instituição social e quais funções a mesma
desempenha em nossa sociedade e como isso afeta os indivíduos.
Revela-se igualmente importante para este trabalho a
compreensão de alguns fenômenos naturais associados à escolarização, como
a formação de grupos, que investigaremos em luz da psicologia social de
Harris (2009), na concepção de sua teoria de socialização de grupos; e a
disciplina, examinada segundo a investigação crítica e histórica de Foucault
(1977) em torno dos processos de controle individual e coletivo presente em
instituições como a escola.
Levantar-se-á, ainda, como antítese à concepção tradicional de
instituição escolar, a alternativa da autogestão, como discutida por Gallo
(1995), e que é derivada diretamente do pensamento anarquista, nos servindo
como pilar para uma nova concepção escolar que, como será exposto, deverá
9
ser necessariamente anarquista, isto é, resistente à estrutura atual do sistema
social.
A compreensão crítica da instituição escolar nos permitirá
enxergar além de seu formato atual, ainda que o fenômeno de grupos -
explicado a partir da teoria da socialização de grupos - e o fenômeno da
disciplina - entendido em sua natureza originária - sejam constituintes
inescapáveis de uma nova definição e prática escolar, ainda que
autogestionária segundo o paradigma anarquista.
Pretende-se, é importante frisar, não endossar a disciplina, mas
relativizar suas causas e seus efeitos, de modo a constituir uma concepção de
prática escolar que não subjugue as vontades individuais às coletivas, mas que
leve em consideração a inevitável instrução coletiva à qual devemos nos
submeter tanto por razões de organização social quanto por razões naturais da
constituição humana e efetividade do aprendizado, pois pretendemos entender,
também, como a coletividade é um fenômeno inevitável e que deve ser
equacionado junto à perspectiva de uma educação libertária que vise livrar o
indivíduo de forças maiores e conferir ao mesmo a oportunidade para
desenvolver seus interesses e aptidões individuais ao mesmo tempo em que
exerce solidariedade em relação ao seu grupo.
Assim, aterrissaremos numa nova definição de escola,
emprestando a noção de teias de aprendizagem de Illich (2007), e numa nova
prática escolar que proporemos, segundo o todo teórico levantado, com base
na metodologia da pesquisa-ação, como definida por Thiollent (1988), de forma
a delinear as etapas e as ações que irão estruturar a nova escola pensada,
através do exercício de uma ação-escola, que nos levará do campo conceitual
ao campo prático, interno ao sistema e misto ao mesmo, e que aos poucos
pretenderá constituir eixos e pontos de resistência e práticas de uma educação
verdadeiramente anarquista.
10
2 O ANARQUISMO
Elege-se o anarquismo como paradigma deste trabalho, não
apenas por simpatia aos preceitos e princípios de tal ideologia/filosofia, mas,
também por uma questão de coerência de pensamento. Como se intenta uma
proposta alternativa de escola, educação, ensino, através da análise crítica de
uma instituição escolar que, atualmente, e desde muito tempo, liga-se aos
interesses do poder, o anarquismo surge como uma possibilidade de reflexão.
Assim, é possível pensar o anarquismo como uma crítica social
que, sem dúvida, enviesa-se para o lado da negação daquilo que é
estabelecido como ordem atualmente e há tempos: a subordinação às
autoridades, às instituições de controle social, à hierarquia, ao Estado, à
exploração econômica, à política, à forma como as relações são organizadas e
contratadas.
É somente através da negação de todo este fundamento
autoritário e capitalista que se pode pensar numa mudança radical da escola. E
é no anarquismo que encontramos as bases para que essa mudança possa ser
efetivamente articulada.
A defesa que o anarquista russo Piotr Kropotkin faz a respeito da
importância do anarquismo, argumentando a causa, especifica mais dela:
[...] A anarquia foi compreendida por seus fundadores como
uma grande ideia filosófica. Ela é, com efeito, mais do que uma
simples causa de tal ou qual ação. Ela é um importante
princípio filosófico. É uma visão de conjunto que resulta da
autêntica compreensão dos fatos sociais, do passado histórico
da humanidade, das verdadeiras causas do progresso antigo e
moderno. Uma concepção que não se pode aceitar sem sentir
modificarem-se todas as nossas apreciações, grandes ou
pequenas, dos grandes fenômenos sociais, bem como das
pequenas relações entre nós todos em nossa vida cotidiana.
11
Ela é um princípio de luta de todos os dias. E se é um princípio
nessa luta, é porque resume as aspirações profundas das
massas, um princípio, falseado pela ciência estatística e
pisoteado pelos opressores, mas sempre vivo e ativo, sempre
criando o progresso, malgrado e contra todos os opressores.
Ela exprime uma ideia que, em todos os tempos, desde que
existem sociedades, buscou modificar as relações mútuas, e
um dia as transformará, desde aquelas que se estabelecem
entre homens encerrados na mesma habitação, até aquelas
que pensam estabelecer-se em grupamentos internacionais.
Um princípio, enfim, que exige a reconstrução de toda a ciência
física, natural e social (KROPOTKIN, 2007, p. 34-35).
É perceptível como a importância do anarquismo para Kropotkin é
de caráter não só ideário, mas de fenômeno natural em ação, que desaponta
notadamente de tempos em tempos, desde épocas imemoriais, e
constantemente, no dia-a-dia, como uma pulsão em direção ao progresso, ao
desmantelamento de estruturas opressoras e relações de poder: é um estado
de espírito humano, um estado de espírito que buscar a reconstrução daquilo
que não é dado por satisfeito.
Assim, a definição de anarquismo se torna um tanto quanto
complicada levando em conta a concepção acima. E é procurando expandir
essa concepção que o trabalho segue.
2.1 O QUE É O ANARQUISMO
De acordo com Ward (2004), a palavra “anarquia” vem do grego
anarkhia, significando o contrário de autoridade ou ausência de governante, e
foi usado num sentido pejorativo até 1840, quando foi adotado pelo anarquista
francês Pierre-Joseph Proudhon para descrever sua ideologia política e social.
Para os anarquistas, segundo Ward (2004), o próprio Estado é o
inimigo, e continuam a concluir o mesmo após cada desenlace de cada
revolução, ao longo dos séculos XIX e XX. E isso não se deve, afirma o autor,
ao fato de que o Estado vigia e pune aqueles que se rebelam contra ele, mas
ao fato de que todo Estado, necessariamente, protege os privilégios dos mais
fortes.
12
O movimento anarquista divide-se em várias vertentes. A vertente
mainstream, por assim dizer, é o anarco-comunismo, às vezes, também
chamada de anarco-coletivismo, que argumenta que a propriedade da terra, os
recursos naturais e os meios de produção deveriam ser mantidos em controle
mútuo por comunidades, e difere-se do socialismo estatal, por se opor a
qualquer autoridade central; já o anarco-sindicalismo enfatiza a ação de
operários mediante greves, a fim de expropriar das mãos dos capitalistas o
controle da indústria e de sua administração; o anarco-individualismo, por sua
vez, alega que a proteção de nossa própria autonomia e a associação com
outros, a partir de interesses em comum, promove o bem geral (WARD, 2004).
Além dessas principais vertentes, ainda há o anarco-pacifismo,
que enfatiza o antimilitarismo, o anarquismo verde e o anarco-feminismo,
autoexplicativos: todos ramos de uma mesma estrutura, e se interligam pela
rejeição de uma autoridade, seja esta a do Estado, a do empregador, a das
hierarquias administrativas ou das instituições estabelecidas, como a Escola e
a Igreja (WARD, 2004). Quanto ao chamado anarco-capitalismo, uma
contradição em termos, uma ressalva se faz necessária por Chomsky (2005, p.
123): “Anarquismo é necessariamente anticapitalista no sentido de que ‘opõe-
se à exploração do homem pelo homem’”, afirmando também que:
Um anarquista consistente deve se opor à propriedade privada
dos meios de produção e da remuneração que é componente
desse sistema, em razão de ser incompatível com o princípio
de que o trabalho deve ser um empreendimento livre e sob o
controle do produtor (CHOMSKY, 2005, p. 123).
A respeito da crítica anarquista ao Estado, Ward cita uma
declaração do anarquista alemão Gustav Landauer:
O Estado não é algo que pode ser destruído por uma
revolução, mas é uma condição, um certo relacionamento entre
seres humanos, um modo de comportamento humano; nós o
destruímos ao contratarmos outras relações, ao nos
comportarmos diferentemente (LANDAUER Apud WARD,
2004, p. 8).
Além da crítica à autoridade governadora, a solidariedade, ou
ajuda mútua, é outro importante princípio anarquista. Elemento nuclear de uma
economia anarquista (a mutualista), a solidariedade deveria, segundo o
13
anarquista Kropotkin (2007, p. 37), ser “passada ao estado de hábito social”.
Para o autor, a anarquia organiza-se na solidariedade, assim como o Estado
organiza-se no egoísmo, sendo solidariedade e egoísmo princípios contrários
para o anarquista russo. Ainda, de acordo com o mesmo, o homem é um ser
essencialmente sociável, cuja vida se compõe de fios inumeráveis que se
continuam visível e invisivelmente na vida dos outros: “Não há linha de
demarcação entre um homem e outro, nem entre o indivíduo e a sociedade:
não há meu e teu moral, assim como não há teu e meu econômico”
(KROPOTKIN, 2007, p. 50).
No entanto, a oposição de Kropotkin (2007) ao egoísmo é
ressalvada pelo mesmo, reconhecendo que o egoísmo nada mais é do que o
desejo do homem de satisfazer todas as suas necessidades. Nesse sentido,
Kropotkin assevera que somos e devemos ser todos egoístas, e que tanto
quanto as necessidades físicas - que não devem ser poupadas -, o homem
também sente necessidades morais. Para o autor, o homem não se alimenta
apenas de pão, mas também de moralidade. Nessa concepção, o homem livre
não deve abdicar nem da satisfação física, nem da satisfação moral:
[...] O homem deve gozar não apenas fisicamente mas também
moralmente, e se uma boa alimentação lhe é necessária, o
sentimento da solidariedade, o amor pelos camaradas, a
satisfação interior são-lhe ao menos igualmente necessários
(KROPOTKIN, 2007, p. 51).
Ainda assim, Kropotkin (2007) apanha-se no esforço de
esclarecer a controvertida concepção de solidariedade e seu relativo sinônimo,
o altruísmo, em confronto com a concepção de egoísmo. De acordo com o
anarquista, há quem diga que o homem é egoísta por natureza, e que o próprio
altruísmo é uma derivação do egoísmo, sendo a solidariedade fundada sobre
um cálculo de interesse. Admitindo essa condição, Kropotkin (2007), no
entanto, arremata definitivamente a imperatividade da solidariedade ao
racionalizar a respeito das transformações sofridas pela intenção originalmente
egoísta, que se torna, naturalmente, altruísta: afirma ele que uma amizade
pode ser, possivelmente, constituída pelo prazer que experimentamos ao
conversar com uma pessoa inteligente, pela ajuda que esta pessoa poderia nos
oferecer em algumas circunstâncias ou por outro motivo qualquer. Depois de
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um tempo, entretanto, este motivo pode perder sua eficácia, desaparecendo, e
assim passamos a gostar de nosso amigo por ele mesmo: “O efeito torna-se
independente da causa”, afirma Kropotkin (2007, p. 51), e “o sentimento
enraíza-se em nós, e gostamos porque gostamos. É a perfeição do
sentimento”.
Por fim, Kropotkin, defendendo o comportamento altruísta,
desfecha a questão da solidariedade com a seguinte máxima: “Visto que é
preciso ser egoísta, sejamo-lo como homens razoáveis, sejamo-lo por uma
razão evidente!” (KROPOTKIN, 2007, p. 52). O autor possibilita inferir um
sentido utilitário de seu pensamento altruísta, isto é, que toda boa ação se
caracteriza conforme o tamanho do benefício que pode ser proporcionado a um
indivíduo e, em extensão, à coletividade. De fato, agindo assim, ainda que,
inicialmente, por interesse próprio, os efeitos da ação determinarão o valor da
mesma, e, por consequência, sua relevância moral. Através deste cômputo,
altruísta em última instância, a solidariedade parece ser uma operação
realizável.
Ademais, outro caro princípio anarquista, essencial para a sua
definição, é o da liberdade. Sem dúvida alguma, a liberdade é um bem
desejável e reivindicado por qualquer ideologia política que seja. Mas o que
normalmente vemos são discursos e realidades em que a liberdade é um bem
restrito a poucos e conquistada na base da sujeição de muitos. Remetendo
mas substituindo os conceitos da famosa frase de George Orwell em A
Revolução dos Bichos: todos os seres humanos são livres, mas alguns são
mais livres que os outros.
Um dos principais anarquistas da história, Mikhail Bakunin,
possui uma das mais notáveis definições de liberdade anarquista:
[...] O homem isolado não pode ter a consciência de sua
liberdade. Ser livre, para o homem, significa ser reconhecido,
considerado e tratado como tal por um outro homem, por todos
os homens que o circundam. A liberdade não é, pois, um fato
de isolamento, mas de reflexão mútua, não de exclusão, mas
de ligação; a liberdade de todo indivíduo é entendida apenas
como a reflexão sobre sua humanidade ou sobre seu direito
humano na consciência de todos os homens livres, seus
irmãos, seus semelhantes (BAKUNIN, 1999, p. 47).
15
De fato, o anarquista russo admite uma liberdade, nas
concepções anarquistas, que somente se valida no âmbito social, defendendo
que a liberdade individual, ela própria, se define segundo a liberdade coletiva.
De acordo com Chomsky (2005), muitos estilos de pensamento e
ação, ao longo dos tempos, foram denominados “anarquistas”. Seria um
esforço sem esperanças, segundo o autor anarquista, tentar englobar todas
essas tendências conflitantes em alguma teoria ou ideologia geral.
Chomsky (2005) afirma ser difícil elaborar as doutrinas do
anarquismo numa específica e determinada teoria da sociedade e da mudança
social. Verifica-se que, diferente do socialismo, do comunismo e do capitalismo
com as suas variantes liberais, o anarquismo, na visão do historiador
anarquista Rudolf Rocker, citado por Chomsky, não é
um sistema social fixo e fechado dentro de si mesmo, mas, ao
invés, uma definitiva tendência no desenvolvimento histórico da
humanidade, o que, em contraste com a tutela intelectual de
todas as instituições clericais e governamentais, luta pelo
desenrolar sem obstáculos da liberdade de todos os indivíduos
e forças sociais da vida. Até mesmo a liberdade é apenas um
conceito relativo e não um absoluto, já que tende a sempre se
alargar e a afetar círculos mais amplos de maneiras múltiplas.
Para o anarquista, liberdade não é um conceito filosófico
abstrato, mas a possibilidade concreta e vital para que o ser
humano traga à tona o desenvolvimento total de suas
potências, capacidades e talentos com os quais a natureza o
dotou. Quanto menos esse desenvolvimento natural do homem
for influenciado pela tutela política e eclesiástica, mais eficiente
e harmoniosa se tornará a personalidade humana (ROCKER
apud CHOMSKY, 2005, p. 118).
Segundo Chomsky (2005), muitos questionam o valor de se
estudar uma “tendência no desenvolvimento histórico da humanidade” que não
articula uma teoria social específica e detalhada. De fato, muitos comentadores
dispensam o anarquismo, de acordo com o autor, ao acusá-lo de utópico,
amorfo, primitivo ou de qualquer modo incompatível com as realidades de uma
sociedade complexa. Mas muitos podem argumentar, segundo Chomsky, de
uma maneira bem diferente: de que a qualquer momento na história nossa
preocupação deve ser a de desmantelar as formas de autoridade e opressão
16
que sobrevivem desde uma era em que elas devem ter sido justificadas em
termos de necessidade de segurança ou sobrevivência ou desenvolvimento
econômico, mas que agora contribuem para - ao invés de aliviar - o déficit
cultural e material.
Dessa forma, assevera Chomsky (2005) que não haverá doutrina
fixa de mudança social para o presente e o futuro, e nem um específico e
inalterável conceito de objetivos para onde a mudança social deveria tender.
Certamente, continua o autor, que nosso entendimento da natureza humana ou
do alcance de formas sociais viáveis é ainda tão rudimentar que qualquer
doutrina de longo alcance deve ser tratada com grande ceticismo, da mesma
forma que o ceticismo se eleva quando escutamos que a “natureza humana”
demanda essa ou aquela forma de opressão e governo autocrático.
Não obstante, Chomsky (2005) defende que, num tempo
particular, há todas as razões para se desenvolver, conforme permite a nossa
compreensão, uma percepção específica desta “definitiva tendência no
desenvolvimento histórico da humanidade” que seja apropriada ao momento.
Uma vez apresentada uma perspectiva sobre o anarquismo, que
não o toma como teoria sólida e específica, deve-se admitir o anarquismo mais
como uma filosofia, ainda que a mesma seja resoluta em seus princípios e
tenha seus pontos de crítica bem definidos e inalienáveis, de modo que o
paradigma anarquista não é, de forma alguma, vago em suas proposições. E,
muito embora os anarquistas não tenham, até hoje, mudado a sociedade da
forma como eles esperavam ser possível, o mesmo é verdade para os
defensores de qualquer outra ideologia do século passado, seja socialista ou
capitalista (WARD, 2004).
O que prevalece, no entanto, conforme dito por Rocker e atestado
por Chomsky, é o anarquismo como “definitiva tendência no desenvolvimento
histórico da humanidade”; o anarquismo, por assim dizer, como um estado de
espírito que sobreviveu e sobrevive nos pequenos atos e contribuições
libertárias que visaram e visam livrar o homem de sua condição infame de
subalternidade, de exploração capitalista, de escravidão, de opressão, de
desigualdade social, e de privação de sua liberdade, aliviando, assim, mesmo
17
em face de sucessivas desgraças sociais e misérias cotidianas, uma enorme
carga de sofrimento humano.
18
3 A ESCOLA
Para que se possa articular uma crítica à escolarização e à
instituição escolar tal como ela é conhecida e, em vista do paradigma
anarquista, propor uma alternativa à mesma, é imperativo que se compreenda
não só a história da escola (como ela se deu da forma como é), como também
sua função e do que é constituída.
Assim, analisam-se os componentes naturais que fundamentam a
configuração escolar, como a instrução em grupos e a disciplina, bem como a
ideia antitética à concepção escolar atual, e que se inscreve no paradigma
anarquista - a autogestão.
É, portanto, examinando a escola como instituição, sua atuação e
importância sociais, seus propósitos de existência e sua configuração normal,
bem como sua configuração alternativa, que proporemos uma nova definição e
prática escolar.
3.1 UMA BREVE HISTÓRIA DA ESCOLA
Para Reimer (1971, p. 37), “a escola é um estágio numa
sucessão de instituições especializadas”. De acordo com o autor, ritos pré-
históricos, mitos e xamãs, templos e castas sacerdotais, escolas suméricas,
gregas, alexandrinas e romanas, ordens monásticas, universidades ancestrais,
escolas medievais e públicas, todas desempenham um papel na história do
sistema escolar internacional que temos hoje. Até onde se tem registro, o
homem, segundo Reimer (1971), envolve-se em atividades especializadas que
têm algo a ver com o que ocorre nas escolas, cultivando lugares especializados
na prática de rituais, e desenvolvendo cargos para o desempenho dos
mesmos, como os xamãs, que, segundo Reimer (1971, p. 38), “combinava o
papel do professor com o do padre, do mágico, do ator, do artista, do poeta e
do idealista”.
19
Os ritos pré-históricos, de acordo com Reimer, compartilham
certos elementos com o atual currículo escolar: além de terem uma
demarcação etária específica, encenando os mitos relacionados ao
nascimento, à adolescência (puberdade) e à morte, eles também explicavam e
celebravam tanto os acontecimentos comuns quanto os aspectos incomuns do
mundo, promovendo atividades para períodos ociosos que sucediam a caça ou
a colheita (REIMER, 1971).
A divisão entre a pré-história e a história, como afirma Reimer
(1971), é marcada pela invenção da escrita, correspondendo, respeitadas as
proporções, com o tempo de estabelecimento de cidades e religiões. A escrita,
de acordo com Matthew (2004), se desenvolveu na Suméria (atualmente Iraque
e Kuwait) e no Egito, dando surgimento aos primeiros especialistas letrados: os
escribas. Estes, segue o autor, eram responsáveis por manipular a forma da
escrita a fim de monitorar riquezas, controlar o tamanho de exércitos e registrar
transações monetárias.
De acordo com Reimer (1971), a educação origina-se nos
templos e nas cortes, e seus primeiros praticantes são padres especialistas.
Segundo o autor, a própria escrita provavelmente foi inventada por tais
especialistas, sendo os padres e os xamãs centrais não só para a evolução de
professores e escolas, como também do homem. “Cérebro, mão e língua;
horda, vila e cidade; mágica, religião, arte e ciência - estes são os marcos do
desenvolvimento físico, social e espiritual do homem” (REIMER, 1971, p. 39).
Os escribas, segundo Matthews (2004), que também os chama
de intelectuais, existiam para servir aos interesses do poder, e a escolarização
foi, originalmente, planejada para que eles e outros funcionários pudessem
ocupar cargos administrativos e sacerdotais (padres). De acordo com o autor, a
relação interpessoal entre os estudantes e as figuras de autoridade que os
instruíam sempre esteve ligada ao funcionamento do poder. Matthews ainda
afirma que a contabilidade, a matemática, a química, a astronomia e uma
considerável quantidade de literatura preocupada com temas religiosos
surgiram destes primeiros ambientes intelectuais especializados - e que,
juntamente com todas essas atividades culturais, sempre existiu a ênfase sobre
20
a moralidade e as boas maneiras, sendo a renúncia raiz do trabalho e
essencial à escolarização. Da mesma forma, continua o autor, no oriente médio
escolas hindus ressaltavam a pureza mental e a autodisciplina tanto como
virtudes religiosas como escolares.
Segundo Reimer (1971), uma das origens da escola moderna
como ela é conhecida remonta à Suméria, onde salas de aulas construídas
para acomodar aproximadamente treze crianças, dada às limitações do tijolo
sumérico e da arquitetura, possivelmente determinaram o parâmetro de
tamanho das salas de aula nos tempos atuais.
Na Grécia, de acordo com Matthews (2004), se inicia a tradição
educacional no ocidente, sendo a educação grega preocupada, originalmente,
com o ideal do nobre guerreiro. Aos poucos, segue o autor, essa cultura
heroica foi se tornando também uma cultura de escribas. Por sua vez, em
Esparta, a educação era essencialmente de caráter militar, tendo como
principal objetivo o treinamento de soldados. Já a efébia de Atenas, segundo
Matthews (2004), antes uma escola para futuros soldados organizada pelo
Estado, perdeu seu foco militar e deixou de ser compulsória, começando a
ensinar filosofia e retórica para os ricos que nunca precisariam trabalhar.
À época, muitas cidades gregas e em especial Atenas, conforme
observa Matthews (2004), estavam desenvolvendo uma vida politicamente
ativa. Essa Atenas mais democratizada, segundo o autor, desenvolveu formas
de educação coletiva responsáveis por pavimentar o caminho para o
estabelecimento da escola como instituição. De acordo com Reimer (1971),
conforme Atenas se tornava mais democrática, os pupilos passaram a exceder
seus mestres em número, gradualmente substituindo as relações de tutoria por
instruções em grupo.
Os sofistas, assegura Matthews (2004), respondendo à
necessidade de um novo ideal de educação e começando a ensinar
estudantes, a fim de modelarem cidadãos bem-sucedidos (intelectuais,
cientistas e racionais), iam de cidade em cidade à procura de pupilos,
literalmente vendendo suas habilidades e se tornando, assim, os primeiros
professores pagos. Foram eles que, segundo Matthews (2004), estabeleceram
21
as fundações para a educação helenística, uma educação mais bem
desenvolvida que consistia na formalização de um curso complexo de estudos
tomado dos sete aos vinte anos de idade. Nesse período, de acordo com
Reimer (1971), as crianças primeiramente aprendiam leitura, escrita e
números, e mais tarde eram ensinadas ginástica, música e os clássicos da
literatura, geometria e ciência.
Conforme Roma estendia seu império, a influência Grega,
garante Matthews (2004), aumentava, e eventualmente as escolas romanas
foram criadas com o propósito de treinar administradores e funcionários do
Estado, mas, ainda assim, não havia política escolástica como a que viria a ser
desenvolvida pelo estado-nação moderno. O cristianismo, desenvolvido no
meio da civilização greco-romana, e sua prática intelectual, viriam a incorporar
tanto o intelectualismo grego quanto a severidade romana, afirma Matthews.
As primeiras escolas cristãs, segundo Matthews (2004), foram as
catequéticas dos primeiros séculos d.C.; eram instituições de alto aprendizado,
voltadas a um público mais velho. Preocupavam-se, principalmente, em instruir
indivíduos pagãos em crenças cristãs, tendendo aos seus batizados. Já as
escolas monásticas, originalmente criadas para futuros monges, apareceram,
de acordo com Matthews, no século IV, pouco antes da Idade Média, e se
tornaram as primeiras escolas genuinamente cristãs. Escolas catedráticas
ficaram para um desenvolvimento posterior, e o enriquecimento de seu
programa, afirma o autor, culminou no aparecimento das universidades durante
o período medieval.
Do século XI para frente, a Igreja começou a se preocupar com o
desenvolvimento de um efetivo programa educacional, tendo a educação, com
o crescimento do cristianismo, adquirido um escopo fundamentalmente moral
(MATTHEW, 2004). A escolarização jesuíta, segundo Reimer (1971),
desenvolveu um currículo e um método educacional deliberadamente
designado ao preparo do homem, não só para uma vida ordinária, como
também para uma vida de metas e desafios sem precedentes.
Matthews (2004) assegura que os liceus dos séculos XVI e XVII
(pós-Idade Média) já eram fisicamente separados das igrejas e constituíam um
22
produto da renascença e da reforma protestante. O humanismo da renascença,
segundo o autor, estimulou um grande interesse na atividade intelectual e no
aprendizado clássico, ao passo que a reforma protestante moveu-se para além
do tradicionalismo e do formalismo dos tempos medievais. Com a invenção da
prensa móvel de Gutenberg (o nascimento da imprensa), Matthews afirma que
a impressão de mais e mais Bíblias fez com que a educação universal e o ideal
humanista se tornasse rapidamente um ideal cristão, de modo que as escolas
provincianas e as escolas básicas cristãs foram fundadas principalmente para
combater a ignorância acerca de Deus e o ócio dos pobres.
De acordo com Reimer (1971), os sistemas escolares passaram a
tomar forma com o desenvolvimento do estado-nação. Assim, ainda que
escolas públicas primeiro surgissem nos Estados Unidos, os primeiros
sistemas integrados de escola, segundo o autor, desenvolveram-se na França
e na Prússia, tendo a escolarização prussiana se tornado um importante
modelo internacional. Afirma Reimer que, na Prússia, e mais tarde na
Alemanha, o desenvolvimento do sistema de educação, adjacente ao
desenvolvimento do estado-nação, foi deliberadamente designado para ser um
de seus pedestais.
Um dos aspectos do sistema alemão, segundo Reimer (1971),
era o ensinamento do alto-alemão, a língua da escola e a língua unificada do
Estado. Um currículo comum, avaliativo e integrado foi outro aspecto
característico designado a servir às necessidades militares, policiais e de mão
de obra da nação. Mas o mais importante de tudo, conforme o autor, foi a
cuidadosamente pensada filosofia da educação desenvolvida e refletida nas
organizações escolares, na logística, no currículo, no recrutamento de
professores, nos métodos de ensinamento e nos rituais escolásticos, e que se
destinou a desenvolver uma cidadania ajustada às especificações da
arquitetura do estado-nação Alemanha. Afirma Reimer (1971) que nenhum
outro sistema nacional fora tão sistematicamente desenhado quanto o alemão,
mas que todas as nações, ao copiarem em maior ou menor grau as principais
características desse sistema, adotaram, efetivamente, seus objetivos e seus
métodos.
23
Nos Estados Unidos, de acordo com Reimer (1971), o conceito
moderno de escola pública foi formulado por um educador chamado Horace
Mann. Nas escolas de Mann, prossegue Reimer, o comparecimento era
obrigatório, pois pessoas de diferentes origens, valores e credos deveriam ser
conduzidas à escola para partilharem de uma mesma concepção. Essa
ideologia escolar, segundo Reimer, contribuiu para a popularização de escolas
públicas entre privilegiados e desprivilegiados. Para os últimos, assevera o
autor, as escolas mantiveram a promessa de oportunidade igual; para os
primeiros, a promessa de progressão ordenada sob o controle da elite.
Reimer, a respeito da filosofia da educação que vê a escola como
uma instituição a serviço dos objetivos nacionais e da importância que se foi
dando à escola ao longo do século, ainda afirma que:
A popularidade de tal filosofia em um século que viu o número
de nações no mundo mais do que triplicar não é surpreendente.
A proliferação de estados-nação é claramente um dos maiores
fatores no crescimento do sistema escolar internacional.
Independentemente das razões, entretanto, o efetivo
desenvolvimento de tal sistema é um incrível fato da história
humana. [...] As escolas modernas se tornaram parte do
programa oficial de quase todas as nações. Cada estado deve
possuir uma universidade, cada cidade seu colégio, cada aldeia
sua escola primária. Todas as nações miram nas nações
líderes por modelos de currículo, organização e padrões
escolásticos (REIMER, 1971, p. 44).
De acordo com Matthews (2004), a escola primária se tornou a
meta de praticamente todos os governantes na era pós-Segunda Guerra
Mundial, tendo a educação superior sofrido, também, um significativo
crescimento nas nações industrializadas, de modo que mais e mais dinheiro
veio sendo gasto em vista de uma escolarização que produz massas de
pessoas, não indivíduos autônomos. Comenta o autor que a escolarização é
um tipo de propaganda sociológica, visando à integração do indivíduo no grupo
social - e que assim estudantes transitam de série em série, e a escolarização
como técnica de controle social se perpetua.
3.2 O QUE FAZ A ESCOLA
A escola, tomando em conta a concepção do senso-comum, deve
educar. Este é, sem dúvida, o dever inconteste da instituição escolar como a
24
conhecemos atualmente e, como vimos, desde os seus primórdios. De acordo
com Reimer (1971), diferentes escolas fazem diferentes coisas, mas cada vez
mais, ao redor do globo, escolas de todas as nações, de todos os tipos, de
todos os níveis, combinam quatro funções sociais distintas: o cuidado em
custódia, a seleção do papel social, a doutrinação, e, finalmente, a educação
normalmente entendida em termos de desenvolvimento de habilidades e
conhecimento. Para o autor, a combinação destas quatro funções torna a
escola demasiadamente cara, e é o conflito destas quatro funções que torna a
educação escolar ineficiente.
O cuidado em custódia, segundo Reimer (1971), determina que
crianças devem ser cuidadas. Os cuidados custam muito dinheiro, e é para
onde vai grande parte do orçamento das escolas. Já que o cuidado em
custódia, de acordo com o autor, é o serviço mais tangível provido pelas
escolas, e uma vez que os pais são naturalmente preocupados com a
qualidade dos cuidados, essa função tem prioridade reivindicada nos recursos
escolares. Assim, na visão de Reimer, a escola se qualifica como uma
instituição total, entendendo-se “total” pela extensão do controle - de corpo,
mente e espírito - exercido pela instituição sobre os indivíduos, uma vez que,
muito embora não possua guarda sobre os indivíduos de forma integral e
irrestrita, como acontece nos asilos, nas prisões e nos exércitos, além dos
internatos (um tipo de instituição escolar), a escola está presente na vida dos
indivíduos desde uma tenra idade, e os acompanha durante seus anos
formativos, exercendo sobre eles uma influência que nenhuma outra instituição
exerce. Foucault (1977), a respeito disso, trata da docilização dos corpos, tema
que é retomado no capítulo atual.
A respeito da segunda função social exercida pela escola, a da
seleção do papel social, Reimer (1971) observa que a seleção no mercado de
trabalho não é uma questão de mera escolha pessoal, mas do quão bem
alguém se dá na sua vida escolar. Nos dias de hoje, diferente de alguns anos
atrás, uma graduação no ensino superior ainda não é garantia de um bom
emprego, quanto menos ter apenas a formação do ensino médio completa. De
acordo com o autor, é o desempenho escolar que muito provavelmente
determinará onde o estudante poderá viver, com quem ele poderá se associar
25
e todo o resto de seu estilo de vida. O sistema escolar, afirma Reimer, tornou-
se, em menos de um século, o principal mecanismo de distribuição de valores
entre os indivíduos, substituindo, de certa forma, instituições como a da família
e a da Igreja. No entanto, Reimer faz uma ressalva quanto à valoração de
indivíduos numa sociedade capitalista, declarando que é mais adequado dizer
que as escolas confirmam, ao invés de substituir a distribuição de valores
exercida por instituições mais antigas. Para o autor, a família, a religião e a
propriedade (o poder econômico) detêm importante influência no acesso e no
sucesso dos indivíduos dentro da escola, de modo que a escolarização altera
pouco ou nada o valor das distribuições - preservando, desta forma, o valor
tanto dos já privilegiados quanto dos já desprivilegiados.
De acordo com Reimer (1971), as escolas definem o mérito de
acordo com a estrutura da sociedade à qual a escola está a serviço. A estrutura
de nossa sociedade caracteriza-se pelo consumo de produtos
institucionalizados, sendo a educação um desses produtos, oferecida,
oficialmente, de forma única e exclusiva pela instituição escola. Na opinião de
Reimer, o que as escolas definem como mérito é, principalmente, a vantagem
de se ter pais alfabetizados, livros em casa, a oportunidade de viajar e,
acrescentaríamos, todo um vantajoso background socioeconômico. Assim,
reproduzindo o sistema meritocrático da sociedade, que beneficia aqueles que
já nascem beneficiados e prejudicam aqueles que já nascem prejudicados, a
escola nada mais é do que uma instituição que valida, legitima, carimba e
outorga esses méritos já trazidos de casa pelo estudante, e praticamente nada
alterados por seu contato com o produto da educação institucionalizada.
A terceira função da escolarização, segundo Reimer (1971), é a
doutrinação. Mas “doutrinação” é uma palavra negativamente carregada. Existe
uma tendência, como observa o autor, de se considerar más as escolas
reputadas como doutrinadoras, enquanto que as boas escolas são aquelas que
ensinam valores básicos. Mas todas as escolas, segundo Reimer, ensinam o
valor da infância, o valor da competição e o valor de ser ensinado - ao invés de
aprender por si mesmo - o que é bom e o que é verdadeiro. De fato, todas as
escolas doutrinam, e de maneiras ainda mais efetivas do que é normalmente
considerado. Afirma o autor que quando as crianças se iniciam na escola, elas
26
já aprenderam a usar seus corpos, a usar a linguagem e a controlar suas
emoções - e tudo isso, é de se convir, ao dependerem, em relativa medida,
apenas delas mesmas, sem precisarem ser ensinadas, de nenhuma forma
sistemática, por seus pais. Na escola, elas são introduzidas à sistematização
do ensino, e passam a ser efetivamente ensinadas, aprendendo que é melhor
dependerem de professores - um valor que perdura durante toda a sua vida
escolar, até a adolescência e até mesmo, em muitos casos, dentro da
universidade. “O ‘o quê, quando, onde e como’ se aprender é decidido por
outros, e as crianças aprendem que é bom depender dos outros para o seu
aprendizado” (REIMER, 1971, p. 20).
As crianças não aprendem somente os valores escolares, de
acordo com Reimer (1971), mas aprendem a aceitar estes valores e, assim, a
serem bem-sucedidas no sistema; aprendem o valor da conformidade. Outros
valores implícitos nos aspectos mais comuns do currículo escolar, afirma o
autor, são as prioridades dadas às matérias escolares, como a prioridade dada
à matemática sobre a música, à física sobre a poesia, apenas para citar alguns
exemplos. Há, obviamente, boas razões para que essas prioridades sejam
assumidas, mas estas não são as reais razões pelas quais essas prioridades
são assumidas; as verdadeiras razões são derivadas da sociedade como ela é,
no seu modelo político e econômico de poder, ignorando reivindicações por
desejos de aprendizagem que diferem daquilo que é demandado pelos
modelos sociais em vigor. Além do mais, a hierarquia é outro valor implícito que
não se ensina diretamente, mas que é, ainda assim, apreendido na vivência do
currículo escolar, de modo que a escola, refletindo os valores dominantes e a
estrutura dominante social, reproduz a realidade estratificada, fazendo parecer
natural e inevitável a dependência por hierarquias (REIMER, 1971).
Finalmente, na perspectiva de Reimer (1971), as escolas também
oferecem, como quarta e última função social, o ensinamento de habilidades
cognitivas e a transmissão do conhecimento. A respeito da capacidade para se
ensinar e a respeito do resultado que pode surgir de um ensinamento, Reimer
afirma:
É claro que professores excepcionais podem ensinar e
estudantes excepcionais podem aprender no confinamento da
27
escola. Na medida em que os sistemas escolares se
expandem, reivindicando uma proporção aumentada de seus
recursos, absorvendo mais estudantes e professores e mais do
tempo de cada um deles, algumas experiências
verdadeiramente excepcionais estão fadadas a acontecer nas
escolas. Elas ocorrem, contudo, apesar e não em virtude da
escola (REIMER, 1971, p. 21).
A escola assume como um de seus principais propósitos o
ensinamento de habilidades, em especial linguísticas e matemáticas. A defesa
mais comum que se faz sobre escolas, segundo Reimer (1971), é a que se
configura na forma da seguinte pergunta: “Onde mais as crianças aprenderiam
a ler?”. A alfabetização, garante o autor, é na verdade um fato independente da
escola, e ainda afirma que há sempre mais membros alfabetizados numa
sociedade do que pessoas que tenham frequentado a escola. Ademais, de
acordo com Reimer, há ainda crianças que, a despeito de frequentarem a
escola, não sabem ler, e que, em geral, crianças de pais alfabetizados
aprendem a ler mesmo que elas ainda não frequentem a escola, ao passo que
crianças de pais analfabetos frequentemente fracassam em aprender a ler até
mesmo nas escolas.
De acordo com Reimer (1971), de um modo geral, em sociedades
escolarizadas, a maioria das crianças aprendem a ler na escola; mas,
considerando quando elas normalmente aprendem a ler e quando elas
começam a frequentar a escola, este fato não poderia ser diferente. No
entanto, segundo o autor, até mesmo numa sociedade devidamente
escolarizada, poucas crianças aprendem a ler fácil e bem, embora quase todas
aprendam a falar fácil e bem - uma habilidade aprendida independentemente
da escola. Aquelas crianças que aprendem a ler bem, leem por seu próprio
prazer, o que sugere que um bom domínio de leitura - como outras habilidades
- é o resultado de prática, afirma Reimer. Ainda, de acordo com o autor, dados
em matemática apoiam ainda menos a escola, uma vez que iletrados, no
contato com a economia monetária do dia-a-dia, aprendem a contar, adicionar,
subtrair, multiplicar e dividir, enquanto que poucas pessoas, numa sociedade
escolarizada, aprende muito mais do que isso.
Outro argumento em favor da escola, afirma Reimer (1971), é a
de que a escola ensina a gramática da língua e as teorias da matemática, das
28
ciências e das artes. Sem dúvida ela as ensina, mas a verdadeira questão,
pondera o autor, é se essas coisas são aprendidas na escola mais do que elas
seriam aprendidas de qualquer outro jeito. Para o autor, aqueles estudantes
que são interessados por esses assuntos os aprendem, e aqueles que não são
interessados, não. Se o interesse por esses assuntos, questiona Reimer, é
estimulado pelas escolas, é duvidoso.
Novamente de acordo com Reimer (1971), o efeito pernicioso das
escolas sobre o aprendizado cognitivo é mais bem visualizado ao
contrastarmos o impacto da escolarização sobre as crianças privilegiadas e
sobre as desprivilegiadas. Prossegue o autor que os desprivilegiados, aqueles
cujos ambientes familiares - e, acrescentaríamos, também a sua vizinhança -,
carecem dos recursos especializados providos pela escola, exibem
desempenhos relativamente mal-sucedidos nas escolas e são marcados com a
experiência do fracasso, uma convicção de inadequação e um desgosto pelos
mesmos recursos especializados de aprendizado do qual são privados. Por
suas vezes, os privilegiados, segundo Reimer, cujos ambientes familiares - e
vizinhanças - são abundantes em termos de recursos especializados para o
aprendizado, e que aprenderiam por eles mesmos a maioria do que é ensinado
nas escolas, gozam de um relativo sucesso dentro do ambiente escolar, e se
engancham num sistema que os recompensa por aprender sem o exercício do
esforço ou da iniciativa. Assim, segundo o autor, os pobres são privados tanto
da motivação quanto dos recursos, que as escolas reservam para os
privilegiados. Os privilegiados, em contrapartida, são ensinados a preferirem os
recursos escolares aos seus próprios, e a dispensar o aprendizado
automotivado pelos prazeres de ser ensinado.
3.3 O QUE É A ESCOLA
Para Matthews (2004), qualquer instituição que vise estruturar e
regulamentar a vida de um indivíduo, em certa medida, está em conflito com
este indivíduo. A questão curiosa é que nem sempre o indivíduo está em
conflito com a instituição. De acordo com o autor, isso se deve ao fato de que
os efeitos da subordinação são ignorados pelo indivíduo. Assim, é possível
considerar que a subordinação é, essencialmente, assumida pelo indivíduo
29
como condição sine qua non para que se tenha acesso ao produto oferecido
pela instituição - no caso da escola, a educação, seja esta educação verificada
em termos concretos, de absorção e prática do saber, ou em termos
simbólicos, de aquisição de um diploma. No entanto, não nos parece que a
subordinação é aceita apenas em virtude do produto permutado; a bem da
verdade, parece-nos que a subordinação, como sustenta Gallo (1995) ao tratar
do infrapoder - questão que este trabalho aborda em seguinte -, é um dado
adquirido despercebidamente, na pré-formação do indivíduo, como parte do
costume disciplinar presente em nossa sociedade. Em linhas gerais, Matthews
afirma o seguinte a respeito da subordinação:
Estudantes são ensinados, através do processo de
escolarização, a serem conformistas, carentes de imaginação,
dóceis, e várias outras coisas que são consideradas virtudes no
mundo do trabalho. Continue assim e você poderá nunca se
sentir bem consigo mesmo, mas você será congratulado por
figuras de autoridade pelo resto de sua vida. Acredito que os
sentimentos antagônicos que as pessoas têm a respeito da
escola refletem o que as escolas estão tentando fazer com
você (MATTHEWS, 2004, p. 03).
De acordo com Reimer (1971), pode-se definir a escola como
uma instituição que demanda frequência integral de grupos etários específicos
em salas de aula supervisionadas por professores para o estudo conforme um
currículo graduado (dividido em graus). Quanto mais essa definição se
enquadrar numa determinada instituição, mais essa instituição corresponderá
ao estereótipo da escola. As alternativas de educação são, geralmente,
definidas com base no afastamento desse estereótipo. Contudo, adverte
Reimer que a não ser que essas alternativas se distanciam o suficiente desse
estereótipo, de modo a escapar da “atração gravitacional” do sistema escolar,
elas serão absorvidas e assimiladas pelo sistema.
Ao especificar uma idade requerida para a frequência, as escolas
institucionalizam a infância. Em sociedades escolarizadas, a infância é
considerada um fenômeno universal. Mas crianças, no sentido moderno, não
existiam há trezentos anos e ainda não existem em sociedades e tribos
pequenas (REIMER, 1971). Baseando-se na pesquisa do historiador Philipe
Aires em seu livro Centuries of Childhood [História Social da Criança e da
30
Família], Reimer comenta que, antes do século XVII (quando as versões de
escolas existentes não eram voltadas para os mais novos), as crianças se
vestiam como adultos, eram expostas ao sexo, à doenças e à morte, e, em
geral, não possuíam um status especial. A subcultura da infância não existia. A
igreja medieval considerava que crianças, batizadas na primeira infância,
atingiam a idade da razão aproximadamente aos sete anos, o que significava
que, desta idade em diante, elas eram responsáveis por seus atos, não apenas
perante os homens, mas também perante a Deus (REIMER, 1971).
Todas as culturas, é claro, distinguem crianças e jovens
sexualmente imaturos de adultos; todas as culturas possuem ritos de entrada
na fase adulta (geralmente, quando se atinge a puberdade); todas as culturas
fazem alguma distinção entre o que os adultos e os não-adultos podem fazer.
Isso não significa, no entanto, que todas as culturas têm uma subcultura infantil
(REIMER, 1971).
De acordo com Harris (2009), entretanto, crianças, de fato,
possuem uma cultura, que apreende elementos da cultura adulta mas que é,
por si só, uma cultura. No entanto, e de acordo com a teoria de socialização de
grupos de Harris (que este trabalho trata detalhadamente mais à frente), é
preciso um grupo para algum senso de identidade coletiva (de grupo) ser
formada. Dessa forma, em sociedades tribais, em que as crianças têm papeis
menos distinguíveis dos adultos e convivem com um número muito menor de
outras crianças, o senso de cultura infantil é inexistente, e, por isso, só poderia
mesmo ser fomentado numa sociedade que incentivasse as diferenças entre
adultos e crianças.
E, de fato, em nossa sociedade, de acordo com o que comenta
Reimer (1971), há uma cultura infantil baseada nas diferenças impostas sobre
as crianças: não se espera que trabalhem, exceto em seus estudos; crianças
não são responsáveis por incômodos, danos ou crimes que cometem contra a
sociedade; crianças não são consideradas política e legalmente; espera-se que
crianças brinquem, divirtam-se e que se preparem para a vida adulta, e assim
se espera que compareçam à escola, e que a escola é responsável por elas,
por guiá-las e, temporariamente, assumir o papel de seus pais.
31
O tratamento de crianças anterior à invenção da infância, no
entanto, era indesejavelmente brutal, e, de acordo com Reimer (1971), no caso
da infância, a escola provavelmente serviu a um propósito útil, já que muitas
das proteções trazidas às crianças são importantes e necessárias, mas, apesar
destas, muitas das proteções e indulgências às crianças são também más,
como o prolongamento da idade da infância/adolescência a fim de que sejam
mantidas nas escolas e sejam impedidas de participar integralmente na
produção econômica da sociedade.
Uma vez que o conhecimento se torna um produto, de modo a
atender as demandas da era tecnológica, o currículo graduado segue uma
matriz de pacotes de conhecimento cada um com seu tempo e espaço
determinados. Nesta circunstância, o ensino se torna um problema quando os
estudantes passam a depender dele para o aprendizado. A frequência à sala
de aula se torna um problema quando suas paredes estéreis impedem a
infiltração da vida normal. E o currículo se torna um problema conforme se
aproxima de uma universalidade internacional (REIMER, 1971).
O currículo graduado, segundo Reimer (1971), pode ser a
característica mais significante da escola, especialmente em termos do papel
da escola na sociedade. Assevera o autor que isso se deve ao fato de que o
currículo é a pedra angular de um sistema baseado na infância
institucionalizada, no ensino e na frequência obrigatória. O currículo, segundo
Reimer, confere a estrutura para estes elementos, unindo-os de um jeito que
determina o impacto único da escola nos estudantes, nos professores e na
sociedade. Em si mesmo, a ideia central do currículo é simples e inevitável: o
aprendizado deve ocorrer em alguma sequência, e deve haver alguma
correlação entre as diferentes sequências de aprendizado (REIMER, 1971).
Para que o ensino funcione efetivamente como ele é programado
para funcionar, Reimer (1971) afirma ser necessária a integração do currículo
ao sequenciamento de graus previsto pelo sistema escolar. É este currículo
sequenciado que cria o sistema escolar propriamente dito. Assim, de acordo
com o autor, o currículo central das escolas secundárias é ditado pelos padrões
necessários para a admissão no colegial. O currículo deve direta ou
32
indiretamente determinar o horário de comparecimento, os parâmetros da sala
de aula, as qualificações dos professores e os requisitos para a admissão no
grau superior. Até mesmo as propostas de reforma escolar sobreviveriam caso
não ameaçassem a progressão de seus graduados aos degraus superiores de
seu sistema (REIMER, 1971).
É através do currículo padronizado, que, por sua vez, consolida a
escola em seu modelo de sistema, que, então, adquire um monopólio
internacional sobre os acessos a empregos e funções políticas e sociais, que a
escolarização determina sua estrutura interna e suas operações
características, bem como a relação entre as escolas e a relação entre a
instituição escolar e as demais instituições (REIMER, 1971).
3.4 TEORIA DA SOCIALIZAÇÃO DE GRUPOS
Como visto, a evolução da democracia grega foi um dos fatos que
contribuíram para o desenvolvimento de formas de educação coletiva,
antecedendo o estabelecimento da escola como instituição. O crescimento do
número de pupilos na Grécia antiga, obrigando seus mestres a desenvolverem
técnicas de instruções em grupo, precedeu as salas de aulas como as
conhecemos atualmente. E tão logo que educar coletivos de pessoas, massas
e massas de alunos tenha se tornado um desafio especial para estados-
nações, na sua constituição da cidadania e dos valores nacionais, a
escolarização compulsória se consolidou, exigindo o comparecimento de
crianças e jovens nas salas de aula e lançando mão de métodos de controle e
disciplina desenvolvidos, supostamente, para assegurar um aprendizado
universalizado e bem-sucedido.
Antes de entrarmos nos méritos disciplinares, cuja compreensão
detalhada é relevante para elucidar as maneiras através das quais a disciplina,
por mais abominável que seja, considerando-a no prisma do paradigma
anarquista, parece, efetivamente, produzir uma educação bem-sucedida (pelo
menos segundo a expectativa macrossocial de um sistema capitalista), é, em
primeiro lugar, preciso compreender quais os verdadeiros desafios que grupos
impõem, já que grupos são a exata causa para que mecanismos dominadores
como os da disciplina tenham sido desenvolvidos.
33
Parece-nos moral, numa perspectiva anarquista, privilegiarmos a
liberdade individual do estudante em detrimento de sua submissão às
necessidades de qualquer coletivo de pessoas, ou, para ser mais exato, de
uma casta superior (o professor, a escola). Mas, como veremos mais adiante,
um balanço é feito a partir da filosofia anarquista, que propõe a solidariedade
como núcleo de uma nova proposta educacional. Porém aqui adiantamo-nos,
pois a solidariedade não parece ser um fenômeno dado gratuitamente nos
agrupamentos de pessoas, e por alguma razão a colaboração entre indivíduos
em busca de um objetivo em comum - a educação, o conhecimento - não se
reflete na sala de aula, tendo, para isso, de serem controlados, disciplinados e
doutrinados ao gosto de seus superiores.
Assim, faz-se necessário entender o que o fenômeno grupo
realmente é, como se constitui, quais as suas particularidades, quais as suas
flexões e inflexões, e como a necessidade de controle, em vista do
estabelecimento de uma massa uniforme de indivíduos a serviço da sociedade,
pode ter causado o aparecimento das técnicas de dominação que a proposta
anarquista pretende desmantelar.
O começo deste entendimento é um começo que pretende
entender a criança e sua convivência com os próprios pais, para mais adiante
tratar de como essa criança desenvolve-se em luz da convivência com seus
pares, em luz de sua experiência em grupo.
3.4.1 “Um por todos, todos por um”
De acordo com Harris (2009), a criança é mais influenciada pelo
convívio com seus pares - normalmente outras crianças do mesmo sexo e
idade - do que por seus pais. Para ela, é questionável o quão efetiva é a
educação parental, o estilo de criação e a transmissão cultural de pais para
filhos durante o desenvolvimento da personalidade da criança até a fase adulta,
já que as consequências de tais práticas parentais são praticamente nulas e
sequer rivalizam com a influência que o meio social (exterior ao lar) exerce
sobre os indivíduos.
34
Segundo Harris (2009), isso acontece em razão da propensão
natural do indivíduo a adquirir traços comportamentais caros ao meio em que
se encontra. Portanto, dentro do núcleo familiar, a criança pode muito bem
aparentar possuir uma personalidade que reflete a educação que seus pais
exercem sobre ela, mas apenas dentro do núcleo familiar. É provado, de
acordo com a autora, que os ditames comportamentais dos pais não se
replicam em outros contextos sociais - como, por exemplo, o da escola. Não
são raros os casos em que pais se revelam surpresos ao descobrirem,
geralmente através de reuniões de pais, que seus filhos se comportam de
maneira x na escola, apesar de apresentarem um comportamento y dentro de
casa, sob a supervisão parental.
A razão pela qual a propensão de se adequar a grupos sociais
existe é, de acordo com Harris (2009), puramente evolutiva. Segundo a
pesquisadora, é vantajoso, de um ponto de vista evolucionista, adaptar-se aos
comportamentos estimados por seu grupo no contexto em que se insere, pois
um grupo mais robusto e unido fortalece as chances de sobrevivência de cada
um de seus indivíduos, através da proteção comunal do um-por-todos-todos-
por-um. Harris cita a observação de Charles Darwin de que “Um selvagem
arriscará sua própria vida para salvar um membro de sua comunidade”
(HARRIS, 2009, p. 101).
E as razões para tamanho sacrifício, numa perspectiva
evolucionista, são bastante claras, afirma Harris (2009, p. 101): “Um indivíduo
que sacrifica sua vida para proteger seu grupo está protegendo a vida de seus
irmãos, irmãs e crianças - pessoas com as quais ele compartilha cerca de 50%
de seus genes”. Mas o sacrifício individual em prol do grupo não se resume
apenas a uma questão de propagação de genes, ainda que a adaptabilidade
evolutiva também se defina em razão da propagação exitosa dos mesmos.
Qualquer agrupamento que se preze, independentemente de compartilharem
genes ou não, adquirirá para si uma identidade de grupo e conduzirá seus
indivíduos a atuarem de acordo com os interesses coletivos, e qualquer
dissidência individual ocasionará na expulsão ou punição do indivíduo pelo
grupo.
35
A razão disso é explicada por Harris a partir do que chama,
genericamente, de categorização. Os cérebros humanos são equipados para
nomear, classificar, categorizar, dividir pessoas ou coisas em grupos. Seria
ineficiente, segundo a autora, ter de aprender a lidar com cada objeto, cada
animal, cada pessoa individualmente, e que, por isso, colocamos tudo em
categorias, ou em conceitos. Tratando das consequências da categorização,
Harris afirma:
Essa é uma das consequências da categorização: ela nos faz
ver itens dentro de uma categoria como se fossem mais
parecidos do que realmente são. Ao mesmo tempo, nos faz ver
itens em diferentes categorias como mais diferentes do que
realmente são (HARRIS, 2009, p. 123).
Assim, a categorização faz com que as diferenças entre grupos
humanos aumentem, ao passo que as diferenças dentro dos grupos diminuam.
A tendência para que membros de um mesmo grupo se tornem mais parecidos
com o tempo, segundo Harris (2009), é chamada de assimilação. De acordo
com a autora, os grupos humanos demandam algum tipo de conformidade, o
que é especialmente verdadeiro quando um grupo contrastante avizinha-se, e
especialmente verdadeiro para as características que fazem os dois grupos se
diferenciarem (ou acreditarem que se diferenciam).
Dessa forma, a atuação de indivíduos em favor de seus grupos
ocorre porque o indivíduo está propenso a assumir as características do grupo
em que se insere em virtude do fenômeno de assimilação da identidade
coletiva ao seu comportamento individual. Portanto, quando crianças agem de
uma maneira x em casa e y no ambiente escolar, ela está apenas
desempenhando o comportamento adequado a cada um dos contextos sociais,
a cada um dos grupos. Da mesma forma, esta mesma criança pode
desempenhar um comportamento z, diferente do x (familiar) e y (escolar) caso
se encontre convivendo em um contexto social diferente dos dois supracitados;
provavelmente um contexto com demandas comportamentais e identidade de
grupo diferentes daqueles exigidos pelos pais e pelos colegas (não
professores) no ambiente escolar.
A identidade de grupo (e, consequentemente, a individual) que
uma criança adquire no ambiente escolar não é transmitida pelos professores.
36
O professor, normalmente, emite, em maior ou menor semelhança, os mesmos
modelos comportamentais emitidos pelos pais, e é natural que crianças se
comportem, de acordo com as normas estabelecidas pela escola e reforçadas
pelos professores quando estão na frente dos mesmos. A identidade de grupo
estimada pela criança e atuada em sua personalidade, na verdade, é aquela
carregada pelos seus pares, afirma Harris (2009); isto é, as outras crianças,
mais especificamente as que compartilham a mesma faixa etária, mais
especificamente as que são do mesmo sexo, mais especificamente as que
possuem a mesma etnia, mais especificamente as que possuem o mesmo
background socioeconômico, mais especificamente aquelas que dão mais valor
aos estudos ou menos valor aos estudos. É um fenômeno inegável dentro da
sala de aula: a separação por grupos, ou, mais popularmente, por “panelinhas”.
Um grupo, dentro de uma sala de aula, forma-se à medida que
uma quantidade suficiente de indivíduos que compartilham características
semelhantes são colocados em confronto com outros indivíduos que
compartilham características semelhantes entre si, mas diferentes da primeira
porção de indivíduos, resultando, assim, numa cisão em grupos, com duas
identidades diferentes, a partir do fenômeno de assimilação entre indivíduos
semelhantes.
Salas de aula já são divididas por séries, normalmente de acordo
com a faixa etária de seus alunos, o que automaticamente os leva a
diferenciar-se dos outros alunos pertencentes a séries inferiores ou superiores.
Além do mais, é comum a separação sortida por classes, pertencentes a uma
mesma série; uma divisão totalmente artificial mas que, ainda assim, cria o que
Harris (2009) chama de fenômeno de contraste de grupos, o que explica o
sentimento de pertencimento a um grupo independentemente das razões
artificiais para que a cisão entre os grupos tenha acontecido, e que leva os
indivíduos a se diferenciarem ainda mais das pessoas de outros grupos e se
identificarem ainda mais com aqueles pertencentes ao seu grupo. O contraste
de grupos causa o aumento na diferenciação entre grupos apenas pelo simples
fato de que são grupos diferentes. Caso as classes escolares sejam separadas
por critérios de desempenho, o contraste pode ser ainda mais robusto, e os
estudantes com desempenho escolar inferior (os “não-nerds”, que dão menos
37
valor aos estudos), tendem a dar cada vez menos valor aos estudos,
acontecendo o mesmo no caso contrário, em que estudantes com desempenho
escolar superior (os “nerds”, que dão mais valor aos estudos) continuam a dar
cada vez mais valor aos estudos e apresentar desempenhos satisfatórios.
Outra divisão comumente testemunhada é entre os sexos:
garotos e garotas tendem a andar separados uns dos outros. São grupos
distintos que naturalmente assumem a identidade comumente atribuída a cada
gênero. O contraste de grupos, teorizado por Harris (2009), mais uma vez
explica a situação. Enquanto indivíduos adaptam sua personalidade à
identidade do grupo, através de um processo de assimilação, o fenômeno de
contraste entre grupos agrava ainda mais a diferenciação entre indivíduos de
diferentes grupos, uma vez que, contrastando garotas e garotos, as
particularidades comumente atribuídas a cada um dos sexos durante a
juventude se tornam salientes:
Quando uma categoria social particular é saliente e você se
categoriza como um membro dela - é aí que o grupo terá a
maior influência sobre você. É nesse momento que as
similitudes entre os membros de um grupo estão mais
propensas a aumentar e as diferenças entre os grupos a subir
(HARRIS, 2009, p. 132).
A identidade de grupo, portanto, só se torna saliente na presença
de outros grupos. Assim, numa sala cheia de adultos, por exemplo, um adulto
não irá se identificar como adulto enquanto não houver um grupo contrastante
no mesmo ambiente; ele provavelmente adequará seu comportamento social
de acordo com outras categorias sociais salientes naquela sala (categorias de
diferenciação de grupo como, por exemplo, classe social, etnia, nacionalidade,
grau acadêmico etc.). Mas, basta colocar algumas de crianças nesta mesma
sala para que a categoria social “adulto” se torne saliente e este adulto passe a
se identificar, em contraste com as crianças, como um adulto, e a assumir para
si um comportamento social mais definidamente adulto (HARRIS, 2009).
Harris (2009) afirma que, quanto maior for uma sala de aula, mais
sensível ela é a fragmentar-se em categorias sociais, em grupos: os nerds, os
preguiçosos, os bad-boys, as patricinhas, os palhaços etc. De acordo com a
pesquisadora, o mau desempenho escolar está associado a questões de
38
heterogenia, isto é, quanto mais diferenciada for a sala de aula, mais dificultosa
será a tarefa do professor, mais fadado ao fracasso estará aprendizado. Em
salas menores, a quantidade pequena de alunos implica numa não
fragmentação em grupos, implica em união e no bom convívio entre os alunos,
na ajuda mútua e na sensação de pertencimento a um grupo consistente:
assim, é perfeitamente exitosa a separação de estudantes em classes
homogêneas, de acordo com o desempenho escolar, mas apenas para aqueles
que já apresentarem um bom desempenho escolar, pois os que apresentam
desempenho inferior, no convívio com seus semelhantes, continuarão
estimando a cultura da não valorização do estudo.
Segundo Harris (2009), escolas particulares não produzem bons
resultados pelo fato de serem particulares ou porque nelas o ensino é de
melhor qualidade: apresentam porque, em escolas particulares, a maioria dos
alunos vêm de um background socioeconômico privilegiado, que possibilita aos
seus pais o luxo de pagar uma escola para seus filhos e que, muito
provavelmente, em virtude de pertencerem a uma classe de maior acesso à
cultura, trazem de casa e da vizinhança a valorização do aprendizado. Aqueles
poucos estudantes oriundos de backgrounds socioeconômicos inferiores, que,
por meio de bolsas ou esforço financeiro de seus pais, conseguem ingressar
numa escola particular, muito provavelmente levam consigo uma valorização
mais baixa do aprendizado, mas, para garantirem a sua sobrevivência, ou ao
menos o seu sucesso pessoal dentro daquele grupo, no convívio com aquelas
crianças, ajustam-se à cultura de seus pares e são influenciados por eles
apenas pelo fato de que estes são a maioria, a porção dominante que define a
identidade do grupo.
Portanto, ainda que estas crianças menos favorecidas venham de
realidades diferentes, de vizinhanças mais pobres e continuem a se comportar,
nestes contextos sociais, como crianças menos favorecidas e pobres, nada
impede que, no contexto social da escola particular, elas se comportem
exatamente como a maioria e aprimorem seu desempenho escolar, já que
muito provavelmente não há, dentro da escola particular, um número suficiente
de indivíduos com o mesmo histórico socioeconômico desprivilegiado para que
se formem grupos e assim se dê o processo de diferenciação (HARRIS, 2009).
39
Em seu livro, Harris (2009) aponta exemplos de como a
existência de grupos de crianças imigrantes oriundas de um mesmo país e que
estudam o idioma de sua nova terra em uma mesma escola, na verdade,
provoca um efeito contraproducente ao aprendizado individual de cada um:
porque crianças imigrantes de um mesmo país tendem a se agrupar uns com
os outros e se diferenciarem ainda mais das crianças pertencentes a outros
grupos (os falantes da língua por eles desconhecida, no caso); e, apesar de
receberem aulas naquela nova língua e terem a oportunidade de conviverem
com pessoas dessa língua, insistentemente mantêm-se agrupadas com seus
semelhantes, que já falam sua língua, o que, consequentemente, não os leva a
praticar a nova língua que devem aprender.
Os resultados são mais positivos em casos estudados de
crianças imigrantes que se encontram sozinhas em escolas de outros países,
falantes de línguas que não a dela. Nessa imersão radical, a criança se vê
isolada e obrigada a se adequar a categorias sociais que lhe parecem salientes
de acordo com suas próprias características (sexo, idade etc.); mas o fato
inalienável de cada grupo em que essa criança se force a fazer parte é a
língua: sempre diferente da que ela fala. Assim, a criança exibe um
aprendizado muito mais veloz e eficiente da língua estudada do que se tivesse
semelhantes, falantes de sua língua natal, para poder com eles se agrupar
(HARRIS, 2009).
Harris (2009), teorizando a respeito de classes com
desempenhos bem-sucedidos em escolas, conta-nos a respeito da classe da
Srta. A, cujos alunos acompanharam a professora por consecutivos anos
letivos e se destacaram com notas acima de todas as outras classes dessa
mesma escola durante todos os anos que estiveram sob a tutela desta
professora. A hipótese de Harris é a de que, de alguma forma, apesar da
possível distinção em grupos que poderia haver dentro dessa classe, a Srta. A
conseguiu ofuscar as diferenças entre meninos e meninas, nerds e não-nerds,
e demais categorias sociais, e dar uma identidade una à sala, de modo que
todos adquirissem um sentimento de grupo e se unissem em prol de um único
objetivo, talvez o de ser a melhor classe da escola.
40
Assim, de alguma forma especial, a Srta. A conseguiu, por meio
da socialização de grupo, eliminar os revezes dessa propensão natural humana
e revertê-la em favor de todos, coletiva e, quiçá, individualmente. Mas o que a
Srta. A criou, a bem da verdade, foi um “inimigo em comum”. De acordo com
Harris, comentando a respeito de experimentos de socialização de grupos, dois
grupos só se unem em vista de um inimigo em comum, isto é, de um terceiro
grupo que ameace igualmente os dois primeiros ou de um objetivo em comum
que somente a união dos grupos permita alcançá-lo. Basta isso para que
distinções se confundam e os dois grupos adquiram uma identidade igual,
lutando por uma mesma causa. A façanha da Srta. A pode muito bem ter sido a
de colocar um reforço sobre essa meta em comum que todos,
independentemente de suas diferenças, deveriam atingir - o que os fizeram,
independentemente de outras propensões de grupo, identificam-se solidamente
como “A Classe da Srta. A”.
Harris (2009) ainda expõe como escolas exclusivamente para
meninas permitem com que garotas exibam melhores desempenhos em
disciplinas normalmente atribuídas à habilidade masculina, como a matemática,
que comumentemente se destaca mais entre meninos em escolas mistas. Uma
vez convivendo apenas entre meninas, e não tendo a pressão dos atributos da
categoria social contrastante, a dos meninos, as meninas são mais livres para
se associarem a atividades que, num confronto com meninos, seriam
reprimidas por puro efeito de contraste e assimilação de grupo (contrastariam
as características comumente aos meninos - o interesse por matemática - e
assimilariam as características comumente das meninas - a supor, o interesse
pelas ciências humanas).
Neste sentido, e levando em conta todos os dados, a segregação
por sexo, classe, etnia e background socioeconômico parece trazer melhores
resultados para o aprendizado das crianças. No entanto, a parte
desprivilegiada sempre será desprivilegiada, e os resultados escolares dos
alunos continuarão aproximadamente os mesmos: meninos continuarão de
destacando mais que meninas em ciências exatas; brancos continuarão de
destacando mais que negros em avaliações escolares, ricos se darão melhor
do que pobres etc. A solução, portanto, não é a segregação. Ainda assim,
41
entretanto, exemplos como o da classe da Srta. A parecem nos indicar
soluções que fortalecem mais ainda a concepção de massa em detrimento da
individualidade de cada um, em favor de um aprendizado generalizado.
Hairrs (2009) sugere que, assim como a Srta. A possivelmente
fez, crie-se categorias artificiais e inofensivas para a formação de grupos
escolares, e que ofusquem as distinções entre sexo, etnia, background
socioeconômico em prol de uma identidade geral compartilhada, normalmente
em busca de uma meta em comum, com um mesmo “inimigo em comum”.
Mas reverter os revezes da socialização em grupos em benefício
do aprendizado generalizado pode nem sempre ser fácil, quanto menos
funcionar verdadeiramente, afinal, produzir resultados em massa não é
sinônimo de aprendizado que recompense os alunos individualmente. Se se
unirem para se tornarem a melhor classe de um colégio, e tirarem notas que,
somadas, os farão alimentar um orgulho cada vez maior por sua classe, por
seu grupo, e consequentemente se sentirem mais e mais motivados a se
comportarem como “bons estudantes” quando em convívio com outros “bons
estudantes”, qual será o verdadeiro lucro intelectual obtido em suas vidas
individuais após saírem da escola, após deixarem de pertencer à “Classe da
Srta. A”?
Em conclusão, o estudo da socialização de grupos nos permite
inferir ao menos cinco entendimentos em relação ao ensino escolar: 1) educar
massas é uma tarefa ingrata; é indispensável que, para um bom aprendizado
individual, uma sala de aula seja cooperativa, mas conter as fragmentações em
grupo, propensas a ocorrer naturalmente, é um serviço hercúleo e muitas
vezes impraticável; 2) criar um grupo homogêneo, nem que, para isso, seja
necessário a categorização artificial de uma sala de aula, a fim de que
assumam uma identidade de grupo e passem a cooperar com o aprendizado,
de fato produz um ensino mais exitoso; 3) a união de um grupo prevê,
necessariamente, a assimilação entre os membros desse grupo, e, talvez, o
sacrifício de desejos e interesses individuais, o que impossibilitaria a ideia de
uma educação que estime a individualidade do estudante, visto que ou se
educa individualmente, ou coletivamente; 4) uma autoridade, como a da Srta.
42
A, pode, de fato, vir a calhar na necessidade de se formar um grupo
homogêneo, que lidere e imponha as condições para que todos os indivíduos
hajam de modo coordenado; e 5) a disciplina, isto é, o conjunto de normas e
costumes devidamente impostos, também se faz necessária para que se ponha
indivíduos díspares em coordenação, sendo o professor uma autoridade a
administrar, mas não a criar os mecanismos de uma disciplina, que, como
veremos, são complexos.
3.5 A DISCIPLINA
Explicar o fenômeno da disciplina nos ajuda a entender as suas
causas, mas, mais ainda, o seu mecanismo. E entender minuciosamente o
mecanismo da disciplina requer olhar atento e perscrutante para as suas
práticas.
No contexto geral que pretendemos esboçar, examinar
microscopicamente a disciplina pode se revelar como um esforço
recompensador, de modo que entenderemos, para além da perspectiva
histórica, e levando em consideração a investigação do fenômeno de grupos
realizado neste trabalho, qual a sua razão. Foucault (1977), fundamentação
teórica deste estudo, atenta menos para o sentido da disciplina e mais para a
precaução que do conhecimento dela tomamos.
É, portanto, a partir desta precaução que poderemos entender o
porquê da disciplina, se é ou não é dispensável na organização social que
temos atualmente, e, mais importante, se a disciplina deve ou não deve ser
aparato de nossa proposta de repensar a escola.
3.5.1 A disciplina como fim de si mesma
A disciplina nas escolas sempre foi parte fulcral do sistema como
ele é conhecido. Foucault (1977), em seu trabalho histórico sobre a violência
nas prisões, dedica parte de sua análise a escrutinar a disciplina, que ele
define por “métodos que permitem o controle minucioso das operações do
corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma
relação de docilidade-utilidade” (FOUCAULT, 1977, p. 126).
43
Esta submissão chamada de disciplina é, ao mesmo tempo,
processo - composto por métodos - e finalidade - não se chega a lugar nenhum
se não à própria submissão mais perfeita à disciplina. No entanto, a disciplina
como componente do currículo escolar sempre foi enfatizada como um método
produtivo, a fim de se alcançar um aprendizado mais totalizado, como se o
conhecimento pudesse ser mais bem assimilado na medida em que a
submissão à disciplina fosse mais bem efetuada.
A relação de docilidade-utilidade dos corpos, um dos aspectos da
disciplina, configura-se de maneira a tornar os corpos passíveis ao controle e
simultaneamente úteis a alguma finalidade intentada. Segundo Foucault (1977,
p. 126), “é dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que
pode ser transformado e aperfeiçoado”. A transformação e o aperfeiçoamento
do corpo são propósitos de utilização que miram unicamente no alcance de
uma disciplina cada vez mais apurada, de corpos cada vez mais controláveis e
em estado de prontidão:
Houve, durante a época clássica, uma descoberta do corpo como
objeto e alvo de poder. Encontraríamos facilmente sinais dessa grande
atenção dedicada então ao corpo – ao corpo que se manipula, se
modela, se treina, que obedece, responde, se torna hábil ou cujas
forças se multiplicam (FOUCAULT, 1977, p. 125).
O aprendizado da disciplina é proveitoso exclusivamente para o
aprendizado da disciplina, da parte de quem a sofre. Da parte de quem a
submete, a disciplina é proveitosa como método de controle - e não só em
escolas, como observa Foucault (1977, p. 126): “Muitos processos disciplinares
existiam há muito tempo: nos conventos, nos exércitos, nas oficinas também”,
sendo que, no decorrer dos séculos XVII e XVIII, tornaram-se fórmulas gerais
de dominação (FOUCAULT, 1977). A disciplina como fim de si mesma,
portanto, prescinde qualquer produto externo a ela, que derive diretamente de
sua prática, o contrário de outra forma de dominação, a vassalidade, da
seguinte maneira distinguida por Foucault:
Diferentes da vassalidade que é uma relação de submissão altamente
codificada, mas longínqua e que se realiza menos sobre as operações
do corpo que sobre os produtos do trabalho e as marcas rituais da
obediência (FOUCAULT, 1977, p. 127).
44
A disciplina, ao invés de uma prática produtiva que conduza ao
aprendizado intelectual, bem como físico e que, de alguma forma, sirva para
finalidades diversamente aplicáveis, é, para Foucault, uma anatomia política e
uma mecânica do poder, definindo como se pode ter domínio sobre os corpos
“não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como
se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina”
(FOUCAULT, 1977, p. 127).
Entendida como um método para que se aumentem as forças do
corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminua essas mesmas forças
(em termos políticos de obediência), a disciplina dissocia o poder do corpo,
tornando-o mais apto e capaz e, ao mesmo tempo, mais dócil e impotente,
acentuando sua dominação (FOUCAULT, 1977). A disciplina, segundo
Foucault, define uma nova microfísica do poder, que denuncia um novo regime
punitivo, focado nas minúcias, nos detalhes, numa tática de controle assim
definida pelo autor:
Pequenas astúcias dotadas de um grande poder de difusão, arranjos
sutis, de aparência inocente, mas profundamente suspeitos,
dispositivos que obedecem a economias inconfessáveis, ou que
procuram coerções sem grandeza [...] (FOUCAULT, 1977, pag. 128).
É imperativo que, na minuciosa investigação da disciplina
(porquanto minuciosa é a disciplina), não nos atenhamos demasiadamente ao
sentido da mesma, pois devemos, de acordo com Foucault, procurar nela
menos um sentido e mais uma precaução que vise à coerência de uma tática.
Comparando o apreço da disciplina pelo minúsculo à ênfase ao detalhe
identificado já nas tradições da teologia e do asceticismo, Foucault diz que
“Para o homem disciplinado, como para o verdadeiro crente, nenhum detalhe é
indiferente, mas menos pelo sentido que nele se esconde que pela entrada que
aí encontra o poder que quer apanhá-lo” (FOUCAULT, 1977).
Para a procedência da disciplina, entretanto, faz-se necessária
uma série de técnicas que visem a distribuição do indivíduo no espaço. A
primeira delas, como aponta Foucault, é a da clausura, que objetiva cercar o
indivíduo num local específico e heterogêneo a todos os demais. Nos colégios,
prevalece o modelo do convento, sendo o internato o regime de educação mais
45
perfeito existente. Ademais ao princípio da clausura, a disciplina exige também
o que Foucault chama de quadriculamento, uma forma de controlar a massa de
indivíduos e suas potenciais dispersões em grupos e subgrupos, vigiando-os e
utilizando-os. Assim, cada indivíduo tem seu lugar determinado
antecipadamente, e cada lugar, um indivíduo, de modo controlado e a evitar as
dispersões livres em grupos, distribuindo-os, rigorosamente, em células pré-
determinadas e úteis: “É preciso anular os efeitos das repartições indecisas, o
desaparecimento descontrolado dos indivíduos, sua circulação difusa, sua
coagulação inutilizável e perigosa [...]” (FOUCAULT, 1977, p. 131).
Não só se fazem necessárias as divisões pré-determinadas e
rigorosas de indivíduos em diferentes células úteis e vigiáveis, como os
espaços aos quais estes indivíduos são repartidos também são pré-
determinados, segundo Foucault, para que satisfaçam a necessidade de vigiar,
de romper comunicações perigosas, e de criar um espaço útil: são, como
define o autor, as localizações funcionais. Além disso, na disciplina, os
elementos utilizados e vigiados, isto é, os indivíduos, são intercambiáveis, uma
vez que se definem pelo lugar que ocupam na série. Nesse sentido, Foucault
discute a respeito da separação seriada de indivíduos em classes - assim
desdobrada principalmente depois de 1762 -, onde os indivíduos se colocam
uns ao lado dos outros sob os olhares do mestre. Assim, determinando lugares
individuais, a organização serial do espaço escolar tornou possível o controle
de cada um e o trabalho simultâneo de todos, fazendo o espaço escolar
funcionar como uma máquina de ensinar, mas também de vigiar, hierarquizar e
recompensar:
A ordenação por fileiras, no século XVIII, começa a definir a grande
forma de repartição dos indivíduos na ordem escolar: filas de alunos na
sala, nos corredores, nos pátios; colocação atribuída a cada um em
relação a cada tarefa e cada prova; colocação que ele obtém de
semana em semana, de mês em mês, de ano em ano; alinhamento das
classes de idade umas depois das outras; sucessão dos assuntos
ensinados, das questões tratadas segundo uma ordem de dificuldade
crescente. E nesse conjunto de alinhamentos obrigatórios, cada aluno
segundo sua idade, seus desempenhos, seu comportamento, ocupa
ora uma fila, ora outra; ele se desloca o tempo todo numa série de
casas; umas ideais, que marcam uma hierarquia do saber ou das
capacidades, outras devendo traduzir materialmente no espaço da
classe ou do colégio essa repartição de valores ou dos méritos.
Movimento perpétuo onde os indivíduos substituem uns aos outros,
46
num espaço escondido por intervalos alinhados (FOUCAULT, 1977, p.
134).
Ademais às táticas espaciais (de clausura, de localizações
funcionais e de séries), a disciplina também apreende a dimensão temporal, a
fim de reger através dela mais um grau de dominação e aperfeiçoamento da
vigilância e da utilidade dos corpos. A rigorosidade temporal nas escolas
remonta à velha herança das comunidades monásticas, em que cada hora da
vida de um monge correspondia a um lugar e uma tarefa determinadas
(REIMER, 1971). Além disso, de acordo com Foucault, sob a regência do
tempo, o poder disciplinador impõe uma regulamentação que é, ao mesmo
tempo, a lei de construção de uma determinada operação: assim, verifica-se na
instituição disciplinadora o quadro geral de atividades a serem executadas, de
acordo com o relógio; a elaboração temporal de um ato que demanda a
sustentação de cada movimento em direção, amplitude e duração numa ordem
de sucessão, dividida em etapas; a relação entre corpo e gestos, em que a
disciplina do primeiro confere a base para a eficiência dos últimos, repudiando
os gestos ociosos e inúteis; a relação entre o corpo e o objeto manipulado, de
modo a tornar destra a execução de tarefas instrumentais; e, por fim, a
utilização exaustiva do tempo, impondo normas temporais, estabelecidas por
sinais, apitos e comandos que possibilitam a realização de todas as operações
supracitadas ao intensificar a utilização do tempo, acelerando o processo de
aprendizagem e ensinando a rapidez como uma virtude (FOUCAULT, 1977).
Como vemos, a disciplina cria as condições para que o poder se
introduza nos mais meticulosos detalhes, estabelecendo entre eles relações de
dependência em vista de uma atitude geral, de uma compostura padrão, por
uma pose e por ações virtuosas firmadas no tempo e no espaço. O
enredamento dos processos disciplinares doma a agilidade e a destreza dos
indivíduos, tornando-os produtores cada vez mais eficazes de se produzirem
enquanto sujeitos da disciplina. A correlação entre os minuciosos processos
disciplinares não conduz, contudo, à produção de efeitos sobre o processo de
aprendizagem, cujos méritos não emergem das práticas disciplinares em
qualquer exame que se faça da mesma. A disciplina, em outras palavras, só
produz a disciplina.
47
3.5.2 A disciplina como ritual
Não obstante a disciplina ser o fim de si mesma, ela pode conferir
a ilusão de que ela mesma é a condição imprescindível para que se atinja um
aprendizado eficiente dentro da sala de aula. A disciplina, nesta concepção,
gera um efeito mistificado, que não emerge como valor direto dela mesma, mas
que, dissimuladamente, fabrica a aceitação de quem por ela está submetido.
Neste sentido, a disciplina pode ser entendida como um ritual - uma prática
cujos fundamentos são puramente místicos, e cujos efeitos, dissimulados, mas
que, não obstante, alimenta uma expectativa de utilidade.
Segundo Reimer (1971), a escola mesma é um ritual,
estabelecendo uma ponte entre a teoria social e a prática social. A teoria social
da escola pressupõe que escolas educam, e assim o estabelecimento do
currículo escolar assume a educação como a finalidade central, entretanto, a
disciplina, componente deste mesmo currículo escolar, está relacionada não à
aprendizagem, mas à docilidade dos estudantes, ao controle individual e
coletivo dos mesmos, a fim de que se disponham da mesma maneira perante o
conteúdo oferecido em sala de aula. Em termos psicológicos, de acordo com
Reimer, o ritual torna possível viver na dissonância cognitiva que emerge da
discrepância entre ideais e ações, teoria e prática. Para ilustrar essa condição
na escola, Reimer traça um paralelo com o ritual cristão:
As discrepâncias entre o preceito cristão e a prática cristã são bem
conhecidas, graças aos padres e ministros. O cristão deve fazer com
os outros o que ele gostaria que os outros fizessem com ele mesmo.
Ele deve dar ao outro o dobro do que pedem. Ele deve compartilhar
tudo que tem e ir atrás daqueles com problemas para auxiliá-los em
suas necessidades. Na prática, a maioria dos cristão são homens de
negócios, profissionais ou trabalhadores que labutam duro, cuidam do
que é seu e de seus próximos, e consideram os pobres como
indolentes e não merecedores, e se mantêm o mais distante que
podem de prisões, favelas e instituições de caridade. As discrepâncias
entre o ensino e a prática são reconciliadas pela participação nos
rituais de comparecimento à igreja, no batismo, na comunhão, na
oração e no sepultamento cristão (REIMER, 1971, p. 30).
Uma das explicações fornecidas por Reimer para este fenômeno
é a de que pessoas são falíveis, de que suas intenções importam mais do que
suas ações e de que os rituais provêm um meio de expressar aquilo que está
em seus corações (REIMER, 1971). No ritual cristão, o comparecimento à
48
igreja compara-se ao comparecimento à escola, cerimoniosamente tratado
através da chamada escolar e devidamente registrado no diário de classe,
entre outros tipos de cerimônias e rituais presentes no meio escolar que
reforçam a intenção de que se está sendo educado, ainda que, de fato, muito
se deva à teoria do que deveria ser aprendido.
A respeito do exame escolar, Foucault denuncia seu caráter
ritualístico e cerimonioso, apontando o exame, além disso, como forma de
controle normalizante e vigilância que permite qualificar, classificar e punir.
Para Foucault, o exame põe em funcionamento relações de poder que
permitem obter e construir o saber (FOUCAULT, 1977). Essa construção do
saber tem por objetivo justamente a normalização do aprendizado, o
nivelamento das mentes e a consolidação de um conteúdo depositado sobre o
aluno que, além de consolidar aquilo mesmo que foi-lhe transmitido como
essencial para o seu avanço pessoal dentro do contexto escolar, legitima sua
sujeição aos processos disciplinares supostamente condutores do saber e
testa-o em luz deste mesmo saber, definitivamente amarrando um ao outro os
processos disciplinares e o saber pretendido, criando uma ilusão de causa e
efeito, através de um procedimento totalmente ritualístico.
Na escola, portanto, a rigorosidade disciplinar cria a ilusão de
eficácia prática, de causa e efeito, de dedicação e resultado. Quanto maior for
a dedicação, isto é, a sujeição à disciplina, maior será a sensação de que algo
está sendo colocado em prática e de que um resultado está sendo produzido, e
mais convicta será a expressão da intencionalidade de aprender. Reimer ainda
argumenta que, refletindo a estrutura de classes presente na sociedade, a
escola, ao perfazer semelhante divisão entre os estudantes, distribuídos em
séries distintas e de maneira hierarquizada, cria a ilusão do progresso
(REIMER, 1971). E, assim como afirma Foucault, a divisão seriada define os
indivíduos, que passam a competir por um passo adiante na escada escolar, a
fim de preencherem uma ocupação no degrau acima da série, assumindo uma
nova definição a cada ano escolar, a cada progresso intitulado - um processo
ritualístico que não possui valor intrínseco, mas que confere a sensação de
valoração crescente, de capacitação em andamento, de resultado obtido e
avanço efetuado. Em outras palavras, é um processo que permite a expressão
49
da intenção de educar, prevista na teoria social escolar, mas que efetivamente
não se traduz na prática e não possui correlação direta com o aprendizado
verdadeiro.
De acordo com Foucault, o processo seriado, que para Reimer
apresenta-se na forma de um ritual, gerando a ilusão do progresso, deve
decompor o tempo bem como o espaço em relação à execução de
determinadas atividades, a fim de capitalizar o tempo dos indivíduos ao inverter
em lucro ou em utilidade sempre aumentadas o movimento temporal
(FOUCAULT, 1977).
Disso surge o ensinamento divisório, estratificado, estruturado em
classes (séries) que se sucedem e alimentam o avanço progressivo dos
indivíduos na esteira. Pois, segundo Foucault, na capitalização do tempo,
procedendo da organização seriada, é errado mostrar a um soldado, bem como
a um aluno, todos os exercícios ao mesmo tempo, visto ser ineficaz; deve-se,
ao invés, decompor o tempo em sequências, separadas e ajustadas, de modo
a estabelecer um desenvolvimento contínuo mas segmentado. Além disso, é
imperativo que o ensino parta do elementar, dos componentes de base para o
comportamento útil, e que estes componentes se combinem numa
complexidade crescente, efetuando um treinamento geral que se desdobra
sucessivamente em direção ao estabelecimento da docilidade. E, para marcar
a finalização destes segmentos, é efetuada a prova - ou o exame -, que, além
de sua dimensão ritualística, atende a três funções: indicar se o indivíduo
atingiu o nível regulamentado, garantir que sua aprendizagem está em
conformidade com a dos outros, e diferenciar as capacidades de cada
indivíduo. Por fim, de acordo com Foucault, hão de se estabelecer séries de
séries, prescrevendo a cada indivíduo, de acordo com seu nível, os exercícios
que lhe convém; e, dentro destes exercícios, outras séries são comportadas,
impondo exercícios mais específicos e formando ramificações e subdivisões,
“de maneira que cada indivíduo se encontra preso numa série temporal, que
define especificamente seu nível ou sua categoria” (FOUCAULT, 1977, p. 144).
Ainda sobre a procedência seriada, Foucault afirma:
Esse é o tempo disciplinar que se impõe pouco a pouco à prática
pedagógica - especializando o tempo de formação e destacando-o do
50
tempo adulto, do tempo do ofício adquirido; organizando diversos
estágios separados uns dos outros por provas graduadas;
determinando programas, que devem desenrolar-se cada um durante
uma determinada fase, e que comportam exercícios de dificuldade
crescente; qualificando os indivíduos de acordo com a maneira como
percorrem essas séries [...] Forma-se toda uma pedagogia analítica,
muito minuciosa (decompõe até aos mais simples elementos a matéria
de ensino, hierarquiza no maior número possível de graus cada fase do
progresso) [...] (FOUCAULT, 1977, p. 144).
O processo seriado, com todas as suas divisões e subdivisões, é
uma forma de organização que da própria disciplina nasce. A necessidade de
tornar os corpos dóceis e úteis, cada vez mais aptos à dominação, demanda
uma arrumação nesse modelo; arrumação que se inscreve no espaço e no
tempo, e que se beneficia do caráter contínuo deste último para ritualizar o
processo e transformá-lo em progressão segmentada, fabricando a ilusão de
que se está indo para algum lugar, de que a avaliação (através de provas e
exames) está de fato qualificando o quão merecedor cada indivíduo é de subir
mais um degrau na escada, avançar mais uma etapa na série, e carimbar seu
ganho em termos de progresso.
A repartição em grupos, devidamente definidos pelo lugar que
ocupam na série (um lugar espacial bem como temporal), são categorias que
preponderam sobre os indivíduos e os forçam a se definir segundo a definição
de seus próprios grupos. Assim, e em consonância com a teoria de
socialização de grupos de Harris (2009), a disciplina nada mais intentaria do
que unificar os indivíduos, a fim de que o aprendizado se torne mais exitoso na
medida em que a maior parte dos indivíduos se prestem aos minuciosos
processos disciplinares com cada vez mais afinco. Neste sentido, a disciplina,
antes entendida como fim de si mesma (a manipulação de corpos para
desenvolver corpos cada vez mais manipuláveis), pode ser, ao contrário,
entendida como um firmamento necessário para que a força coletiva
(sobrepondo-se à vontade individual, por definição dissidente e desobediente,
ou seja, indisciplinada) produza resultados exemplares, ainda que estes
mesmos resultados sejam medidos segundo os mesmos critérios e parâmetros
utilizados para avaliar a admissão dos indivíduos nas séries, o que não deixa
de gerar suspeitas quanto à objetividade e à pureza destas avaliações e o que
elas verdadeiramente demonstram.
51
Assim, afigura-se uma disciplina útil que produz efeito para além
dela mesma. O aspecto ritualístico da submissão disciplinar, como afirmado por
Reimer, é capaz de gerar a impressão dissimulada de que a disciplina está
diretamente relacionada a uma educação mais eficaz, estabelecendo uma
ponte entre a teoria social escolar e sua prática. Mas, de fato, ainda que como
efeito indireto, a disciplina dá as condições para que resultados homogêneos e
bem-sucedidos sejam obtidos: é o caso da classe da Srta. A, discutida por
Harris (2009). Não há como saber o quão rígida era a imposição disciplinar
neste caso em questão, mas é certo que um dos êxitos da disciplina é
justamente a uniformidade coordenada por seus métodos. Como aponta
Foucault, a microfísica do poder que se inaugura no interior dos procedimentos
disciplinares, permitindo a dominação do que é mais diminuto na composição
da prática da disciplina, extrai poder dos dominados, transformando-os em
corpos dóceis, e acumula poder nas mãos dos dominantes - que se organizam
hierarquicamente, sendo o professor apenas mais um dominado na escala
global da estrutura escolar.
O benefício de uma coletividade bem assentada, em total
detrimento da individualidade de seus membros, é a da formação de um grupo
resoluto, menos suscetível a diferenciações internas e possíveis fragmentações
em subgrupos, mais homogêneo e, consequentemente, mais fácil de ser
manipulado, mais coeso em sua formação, mais uno em resultados. De fato,
um exército de homens, treinados sob princípios altamente disciplinares,
parece-nos o exemplo mais brilhante de união de grupo, batalhando em
harmonia, com precisa articulação interna e em busca de um resultado em
comum nitidamente delineado. O problema insolúvel é que, de acordo com a
teoria de Harris (2009), grupos necessariamente criarão cisões uma vez que
houver dentro deles categorias sociais díspares - e, como causa desta exata
disparidade em categorias sociais, acha-se a frouxidão disciplinar, a
possibilidade de dispersão dos indivíduos, de livre-associação a novos grupos.
Assim, a individualidade do aluno será sempre desrespeitada, quando a
necessidade for a de se produzir resultados coletivos, a partir de um
conhecimento unificado e de um grau seriado e progressivo que os alunos
devem atingir, e que só pode ser condicionado através de procedimentos
52
disciplinares, da ritualística que dociliza tendências individuais e coordena um
elemento em função do outro, um indivíduo em função de todos e todos em
função de um, gerando uma harmonia produtora.
Dessa forma, faz-se necessária uma alternativa para a educação.
Uma que leve em conta as inevitabilidades da instrução em grupo ao mesmo
tempo em que procure estimar o aluno em sua individualidade e dê a ele a
liberdade de perseguir seus interesses próprios, superando, de uma vez por
todas, o caráter disciplinar, baseado na dominação e na exploração do
indivíduo, que a instituição escola carrega desde tempos antigos, e que está
inteiramente a serviço da sociedade como ela é. Para isso, é necessário
adentrar finalmente no paradigma anarquista, visto que este contém as bases e
os princípios para pensarmos não só num ideal de educação (reflexo de um
ideal de sociedade) que abarque todos os desejos de mudança, mas também
em alternativas práticas para que as transformações necessárias sejam
realizadas.
53
4 UMA NOVA DEFINIÇÃO DE ESCOLA
Pensar numa nova definição de escola é pensar numa nova ação-
escola. Após realizarmos uma crítica à escola como instituição e aos métodos
utilizados por essa instituição para o controle da massa de estudantes, a fim de
inseri-la ao modelo da sociedade capitalista e autoritária, é momento de
tomarmos conta da principal alternativa anarquista para uma administração
escolar - a autogestão -, e, em seguida, propor expedientes práticos que nos
possibilitarão, de fato, a criar uma nova definição de escola.
As condições populacionais e sistêmicas de nossa sociedade não
nos propiciam a pensar a educação numa configuração de mestre-pupilo,
configuração esta que tem todas as características de uma educação exitosa
em termos de desempenho individual. No entanto, não pretendemos, aqui,
sequer propor uma educação que eleve o desempenho individual de seus
estudantes, uma vez que a concepção de desempenho é abstrata a priori,
dependendo dos critérios e dos métodos usados para medir esse próprio
desempenho.
E, como vimos, a educação só se transforma em grandeza
mensurada pela necessidade de se avaliar e de promover indivíduos na escala
progressiva que é da natureza institucional escolar. Negamos tudo isso de
maneira categórica. Pois, assumindo uma postura autogestionária para
pensarmos em uma nova definição de escola, e sem dúvida partindo dela,
devemos pensar a escola como ambiente horizontal, em que se fomente
cooperação ao invés de competição; em solidariedade em vez de egoísmo,
como é proposto no paradigma anarquista.
É preciso, no entanto, considerar muito atentamente o aspecto
social da escola. Uma vez descartada, por razões que não convêm mais
repetir, a configuração mestre-pupilo, precisamos continuar pensando, sim, na
54
escola em seu formato de instrução em grupo. Grupos são inevitáveis, e
mesmo numa suposta cultura em que o autodidatismo fosse um valor
incentivado, precisaríamos, ainda, de guias, orientações, métodos e referências
de estudo que, sem o preparo e a ajuda, ainda que indiretos, de outros
indivíduos, não possibilitaria qualquer aprendizado dito “autodidata”. O
conhecimento, seja ele qual for, não brota do nada absoluto, mas do contato do
indivíduo com coisas e outros indivíduos, em contextos espaciais e temporais.
Assim, temos de admitir a aprendizagem em grupo como
configuração inconteste de uma nova definição de escola. Por razões
evolucionistas, a formação de grupos é um fator irredutível das relações
humanas, e o paradigma anarquista leva em conta essas relações coletivas
como base para definir conceitos de solidariedade, liberdade e autogestão.
Por outro lado, compreendendo melhor as particularidades do
fenômeno grupo e seus processos, é razoável - ainda que jamais justificável no
paradigma que defendemos - a prática disciplinar de nossa sociedade. Na
socialização de grupos, membros de uma mesma categoria social tendem a se
assimilar mais com membros da mesma categoria social, à medida que se
contrastam dos membros de outras categorias sociais.
Na sala de aula, estes processos de assimilação e contraste são
o que fundamentam a necessidade de uma disciplina, que não é apenas o
reflexo da autoridade, da hierarquia, da estrutura estratificada, mas o aparato
que assimila estes elementos e os fazem funcionar harmoniosa e
produtivamente, dominando e explorando os indivíduos humanos que,
deixados livres num recinto, agrupar-se-iam entre si de maneira dispersa e
conflitiva, gerando mais atritos entre eles mesmos do que entre eles e a
instituição que ambiciona dominá-los; mas, ao mesmo tempo, permitindo a eles
a possibilidade de poder para confrontarem essa mesma instituição se se
organizassem adequadamente.
Inicialmente, parece-nos difícil propor uma definição de escola,
quanto menos uma ação-escola, que seja, ao mesmo tempo, autogestionária
(como veremos em detalhes), destacando o valor da coletividade, e
individualista, no sentido de poder satisfazer às necessidades individuais de
55
cada aluno e permitir que sejam livres para estudar aquilo que lhes apetecem.
Da mesma forma, torna-se nebuloso visualizarmos um cenário em que um
grupo possa ser instruído e orientado sem o uso da disciplina e, ainda assim,
não sofrer contingências de estudantes que simplesmente não estarão
dispostos ou não se sentirão beneficiados pela proposta de estudo do
programa.
Mas nem tudo é perfeito, nem todas as teorias políticas e sociais,
nem todos os paradigmas ideológicos e conceitos filosóficos. Nada é capaz de
encerrar nossa sociedade num modelo de organização à prova de eventuais
vicissitudes e resultados indesejáveis. Contudo, este fato não é motivo para
recuarmos em nossa proposta, afinal, a educação como ela é hoje tampouco
se apresenta bem aos olhos dos cidadãos, e ainda que nem todos sejam
capazes de enxergar e questionar as bases dessa educação e o que há de
errado com ela, ela é, incontestavelmente, falha, imperfeita, injusta e desigual.
A proposta de uma nova definição de escola, bem como a de uma
nova ação-escola, poderá ser efetuada, portanto, de acordo com o sustentado
adiante.
4.1 A AUTOGESTÃO
No paradigma anarquista, investigam-se, portanto, as soluções
ideais e práticas, em busca de uma nova configuração do ensino, de uma nova
escola. Para isso, é indispensável uma a escola pensada como resistência,
resistência à sociedade tal como ela é. Não somos ingênuos ao ponto de
esperar que mudanças estruturais ocorreram de cima para baixo. A sociedade
capitalista, inerentemente desigual, reproduzir-se-á eternamente até a sua
autoaniquilação. Uma resistência preferencialmente anarquista, portanto mais
prática em métodos de subversão e coesa em discurso anticapitalista e
antitotalitarista, é, assim, agudamente pertinente aos propósitos de
reestruturação (não apenas reforma) escolástica.
Não somos ingênuos, igualmente, de pensar que uma sociedade
anarquista deva antes tomar forma para que os princípios anarquistas sejam
colocados em prática. Uma esperança nessa proporção é, realmente, uma
56
mera utopia, e uma razão para que não façamos nada. Contudo, respeitadas
as devidas proporções na constituição do sujeito, do tempo e do espaço, face
ao paradigma anarquista, a ação é urgente, e embora o desenho de um plano
seja complexo, ações experimentais e imediatas já podem ser elaboradas e
praticadas de dentro do sistema, tendo, no entanto, o cuidado necessário e o
pertinaz compromisso de resistir aos mecanismos do sistema, inteligentes e
impiedosos na assimilação e no abatimento de qualquer insurreição que
ameace sua ordem. A presente proposta sugere um sistema misto que, passo
a passo, vá experimentando os processos e os resultados de novas formas de
organização escolar e, posteriormente, social.
Dessa forma, o início de uma mudança deve se dar de forma
pragmática, localizada e no interior do sistema, talvez sem o aparente caráter
de uma revolução. Assim, revela-se pertinente a ideia da autogestão, um dos
pilares anarquistas mais básicos e fundamentais para a instituição de uma
realidade justa, igualitária e livre.
4.1.1 O princípio da autogestão
A proposta anarquista, como foi vista, não procura apenas a
extinção do Estado, como também a de qualquer estrutura ou ação política
baseadas nas relações de poder e consequente dominação (GALLO, 1995).
Assim, o anarquismo também se coloca contra as teorias libertárias
capitalistas, que embora possam igualmente advogar o extermínio do Estado,
continuam se organizando através do livre-mercado e de suas inevitáveis
estratificações econômicas e sociais, gerando exploração e dominação, isto é,
relações de poder.
Mas se engana quem pensa que o anarquismo, ao querer acabar
com o Estado, também quer acabar com a política. Os anarquistas negam, sim,
a permanência da política clássica, baseada no poder e na dominação, mas
clama por uma nova política, fundada em outras bases. No entanto, se
tomarmos a política como a construção de uma hegemonia (construção da
massa), certamente, segundo Gallo (1995), são ingênuas as propostas
libertárias, uma vez que a hegemonia se constrói justamente através das
medidas de força e das relações de poder. Numa leitura segundo a análise de
57
Foucault (1977), então, a hegemonia se construiria através da imposição da
disciplina, uniformizando os corpos por meio de procedimentos de docilização e
utilização.
Contudo, a política fundada em outras bases que pretende o
paradigma anarquista nada mais é, segundo Gallo (1995, p. 100), que “a
política como relacionamento social entre os indivíduos no sentido da
construção e da manutenção de uma comunidade solidária”. De fato, uma outra
política, que busca estabelecer um acordo horizontal entre os indivíduos, ao
invés de uma imposição vertical, vinda de cima para baixo e intentando uma
construção hegemônica através de processos exploradores e disciplinadores.
Esta nova política, baseada na igualdade e na solidariedade e não
na injustiça e na exploração, é essencial à proposta anarquista, e faz surgir
aquela que é, na visão libertária, a resposta para o problema da organização
social uma vez que o Estado (o mandante todo-poderoso) deixa de existir: a
autogestão. De acordo com Gallo (1995), e a respeito das ideias do anarquista
francês Pierre-Joseph Proudhon, o princípio da autogestão se constitui no
plano microssocial, enquanto que, no nível macrossocial, o que se constitui é o
princípio federativo:
A autogestão e o federalismo propõem-se justamente a
organizar socialmente uma comunidade, sendo a política uma
decorrência da estruturação social e não o contrário: o
processo acontece de baixo para cima (GALLO, 1995, p. 102).
Assim, o federalismo nada mais é do que a associação de
instâncias sociais autogeridas; um pacto concreto e firmado num contexto de
democracia direta, participativa, que procura unir desde uma associação de
bairro até associações de municípios e unidades maiores (todas autogeridas),
de modo a se aglutinarem em círculos concêntricos cada vez mais
abrangentes, estruturando o poder político (as relações sociais) não de
maneira centralizada, no governo de um país, mas de maneira diluída entre os
indivíduos que o constitui, a fim de que este poder diminua de intensidade
quanto mais abrangente for a federação de associações (GALLO, 1995).
No que tange às relações econômicas, imprescindíveis para a
concepção de uma nova organização política e social, o paradigma anarquista
58
fornece, como já citado, o mutualismo, que é, segundo Proudhon e como
afirmado por Gallo (1995), a aplicação da autogestão no âmbito da economia,
tanto no aspecto de produção quanto de distribuição, através da ampla
participação comunitária. Além do mais, Gallo (1995) afirma que, de acordo
com Proudhon, é a própria estrutura econômica vigente, até mais do que a
organização social, a principal responsável por perpetrar a exploração dos
indivíduos, de modo que qualquer organização sustentada por princípios de
autogestão tenha de, necessariamente, resistir às implicações do sistema
econômico circundante, a fim de livrar os indivíduos da exploração capitalista.
A respeito da organização econômica e social autogerida, Gallo ainda
acrescenta:
[...] A autogestão com os indivíduos tomando às próprias mãos
a administração de seus negócios, seja a fábrica, seja a escola
ou a associação de bairro, vem opor-se à ferrenha
hierarquização da sociedade capitalista, que objetiva a
submissão do indivíduo aos poderes centralizadores no Estado
(GALLO, 1995, p. 108).
De acordo com Gallo, o próprio aparelho reprodutor de um sistema
econômico-social de produção cuida para que as relações determinantes no
nível macrossocial sejam também reproduzidas no nível microssocial. Em
outras palavras, perpetra-se a reprodução da produção, de modo que a escala
micro reflita a escala macro e vice-versa. Assim, nas escolas, um campo
microssocial, realiza-se aquilo que reflete o modo como o Estado gere a
sociedade, e que é o preciso contrário da autogestão, a heterogestão,
reproduzindo o mesmo modelo de gerência presente nos campos
macrossociais. Ainda sobre a reprodução da heterogestão, afirma Gallo (1995,
p. 152): “Esta heterogestão da sociedade é reproduzida, então, na
singularidade básica de cada indivíduo enquanto heteronomia inconsciente que
sustenta seu pensamento e sua ação”.
Com base no pensamento de autonomia política do filósofo
Cornelius Castoriadis, Gallo estende o entendimento sobre a heterogestão
sustentando que toda sociedade instituída exerce o que se chama de
infrapoder, uma espécie de poder que se instaura na pré-formação do
indivíduo, de tal modo que, por si mesmo, ele faça o que gostariam que fizesse,
59
sem qualquer necessidade de dominação ou poder explícito para manipulá-lo,
de modo que, para o sujeito submetido a essa formação, haja a aparência da
mais completa espontaneidade, que, na realidade, manifesta a mais total
heteronomia (GALLO, 1995). Ora, parece óbvio que a instituição microssocial
que dá mais condições para a instauração do infrapoder é a escola, que cuida,
justamente, da formação ou pré-formação do indivíduo desde sua idade tenra.
É possível, a partir da correlação com a definição de infrapoder -
ainda que o mesmo, como sustentado por Gallo, dispense métodos de
dominação e poder explícito -, assentarmos na disciplina, como entendida por
Foucault (1977), já que a imposição de atitudes e postura decompostas nunca
se dá por meio da força ou da ameaça, mas de um costume estabelecido sobre
as raízes de uma ilusão, a ilusão da educação, do aprendizado, do progresso,
como enfatiza Reimer (1971) ao falar dos rituais. Assim, e levando em conta a
natureza reprodutora do modelo de produção da economia vigente, o indivíduo
participante de uma realidade microssocial gerida de cima para baixo, em
camadas hierárquicas, isto é, heterogestionária, cultiva uma atitude que será
também exigida dele assim que sair da escola e adentrar o mercado de
trabalho, a fábrica, a empresa, a indústria, que da mesma maneira reproduzem
aquilo que, realizado na escala macrossocial, define o modo de produção do
sistema capitalista. Trocando em miúdos, o indivíduo é educado na disciplina,
numa estrutura heterogestionária, para aprender a disciplina e reproduzir
facilmente o comportamento disciplinado requerido por todo o regime.
Uma alternativa de resistência a este regime político e social
calcado na heterogestão não só se faz necessária e imperativa para uma
iniciativa de mudança, como é também normalmente prevista na perspectiva
histórica das relações sociais humanas, como bem explicita Gallo:
Enquanto vivemos historicamente uma sociedade [...] baseada
na heterogestão, podemos perceber momentos históricos em
que o projeto de construção da autonomia traduz-se
socialmente em experiências de organização da produção em
que procura-se um gerenciamento não separado da instância
mesmo do trabalho, mas realizado pelos próprios produtores; a
essas experiências convencionou-se chamar, principalmente a
partir da segunda metade do nosso século, de autogestão
(GALLO, 1995, p. 153).
60
O caráter imediato da resistência autogestionária pode ser
depreendido da fala do anarquista russo Mikhail Bakunin, asseverando que a
autogestão não pode esperar pelo desaparecimento do Estado para ser posta
em prática, e que, ao invés, ela própria deve ser um instrumento na luta contra
esse Estado. Piotr Kropotkin, por sua vez, procurou fundamentar
cientificamente a organização autogestionária ao conduzir amplos estudos de
campo nas áreas de geografia, geologia, biologia e etnologia, demonstrando
que, na natureza, a solidariedade ou ajuda mútua (discutida anteriormente)
entre os indivíduos de uma espécie é fator fundamental na luta pela
sobrevivência da espécie, tendo, consequentemente, um importante lugar no
processo de evolução (GALLO, 1995). Como vimos, na teoriza de socialização
de grupos de Harris (2009), é propensão natural humana, por razões
evolutivas, a adequação do indivíduo ao grupo em que se insere, uma vez que
a proteção comunal, o um-por-todos-todos-por-um, é vantajosa para a
sobrevivência do grupo, para a continuidade da espécie.
Assim, a solidariedade parece ter tanto lugar no processo evolutivo
quanto a individualidade, sobre a qual se assenta a heterogestão capitalista,
sendo, pois, apenas uma questão de eleição do que é mais pertinente para
determinado modo de organização, se hetero ou autogestionário, e de
comprometimento com o modo de se relacionar política e socialmente. Mas, de
fato, e de acordo com a causa anarquista, só através da solidariedade da ação
comum do grupo os resultados podem ser melhores do que através da
exploração de poucos do trabalho de muitos (GALLO, 1995).
4.1.2 Autogestão pedagógica
De acordo com Gallo (1995), foi na escola onde se desenvolveram
as mais abrangentes - e com resultados muitas vezes espantosos -
experiências de autogestão. Estabelecendo os contornos da aplicação
autogestionária na pedagogia, Gallo afirma que:
A aplicação do princípio autogestionário à pedagogia envolve
dois níveis específicos do processo de ensino-aprendizagem:
primeiro, a auto-organização dos estudos por parte do grupo,
que envolve o conjunto dos alunos mais o(s) professo(res),
num nível primário e toda a comunidade escolar - serventes,
secretários, diretores, etc.-, num nível secundário; além da
61
formalização dos estudos, a autogestão pedagógica envolve
um segundo nível de ação, mais geral e menos explícito, que é
o da aprendizagem sócio-política que se realiza
concomitantemente com o ensino formal propriamente dito
(GALLO, 1995, p. 167).
Sustentando o pensamento do sociólogo francês Georges
Lapassade, Gallo diz que, na autogestão, o professor renuncia sua autoridade
de transmissor de mensagens, interagindo com os alunos através dos meios de
ensino, deixando que eles escolham os programas e os métodos de
aprendizagem. Divide, ainda, a aplicação da autogestão à pedagogia em três
grandes tendências: a primeira, iniciada, segundo Lapassade, pelo pedagogo
soviético A. Makarenko, é denominada de autoritária, pois o professor, a
princípio, toma a iniciativa autoritária de propor ao grupo de alunos técnicas de
autogestão; a segunda, denominada de tendência Freinet, em nome do
pedagogo anarquista francês, tem como característica central a criação de
novos métodos e técnicas pedagógicas, sendo muito próxima à
individualização e à autoformação; a terceira tendência seria a libertária e
colocaria mesmo em prática a ideia anarquista em que os professores deixam
nas mãos dos alunos quaisquer orientações no sentido de instituir um grupo de
aprendizagem, limitando-se a ser consultores deste grupo (GALLO, 1995).
Como se pode constatar, as tendências enumeradas por
Lapassade e reproduzidas por Gallo têm como ponto em comum o
distanciamento, no sentido autoritário, entre professor e alunos, ainda que, no
princípio, a iniciativa seja preferencialmente autoritária da parte do professor,
mas visando, sem dúvida alguma, à diluição dessa autoridade entre o próprio
grupo de alunos. Na perspectiva de Bakunin, discute Gallo que não há
qualquer impedimento para a relação do professor com os alunos, já que não
se deseja uma libertação do aluno da responsabilidade do professor como se
isso fosse levar, necessariamente, o aluno a construir seu próprio
conhecimento de maneira eficaz; Bakunin atenta-se, entretanto, para a meta a
ser atingida, que é a da progressiva crítica da autoridade em nome da
liberdade constituída pelo grupo, de modo que as intervenções do professor se
ajustem no sentido de alcançar essa meta (GALLO, 1995).
62
De fato, o papel do professor, nesta concepção anarquista, é
diametralmente oposta ao papel que o professor desempenha e vem
desempenhando desde que a escola foi instituída. Como figura central da
heterogestão, o professor, segundo a crítica à escolarização realizada por
Reimer, desempenha três funções em uma - a de árbitro, juiz e advogado:
Como árbitro, o professor rege o que é certo e o que é errado,
distribui notas e decide quem será promovido. Como juiz, o
professor induz culpa naqueles que trapaceiam, negligenciam
suas tarefas escolares, ou que de outro modo falham em
atender as expectativas das normas morais da escola. Como
advogado, o professor ouve desculpas pelos fracassos para
atender os padrões tanto acadêmicos quanto morais e
aconselha o estudante a respeito das escolhas que deve fazer
dentro e fora da escola. Essa descrição só não soa estranha
porque os estudantes são consideradas pessoas sem direitos
civis. Imagine combinar o papel do policial, do juiz e do
advogado de defesa em um só [...]. Num sentido puramente
formal, o estudante nessa situação está desamparado,
enquanto o professor é onipotente (REIMER, 19771, p. 26).
É em direção ao desmantelamento dessa autoridade onipotente do
professor, centralizadora das funções de julgar, sentenciar e punir e
instrumento do infrapoder, que uma concepção pedagógica autogestionária
deve rumar. Com efeito, Bakunin acreditava nisso, tomando a educação por um
processo de crescimento, de desenvolvimento, que deve iniciar-se pela
autoridade (a iniciativa autoritária do professor) e paulatinamente negar esse
ponto de partida à medida em que se aproximar da meta de chegada; deve-se,
portanto, partir da autoridade para que seja possível chegar até a liberdade
(GALLO, 1995).
A importância dessa autoridade inicial, que aparentemente deveria
ser, por definição, rejeitada num paradigma anarquista, não é difícil de ser
compreendida, uma vez que é diferente, aqui, o professor que parte da
autoridade anexa à sua posição para se livrar dela junto ao grupo de
estudantes - isto é, um professor claramente a serviço da resistência e da
autogestão -, do professor que retém para si as três funções observadas por
Reimer e, de modo inflexível e permanente, estabelece uma relação autoritária
e disciplinadora com seus alunos - este, sim, um professor à serviço do sistema
capitalista vigente e heterogestionário. Assim, é de se convir que um aluno
63
simplesmente liberto da autoridade do professor, da mesma maneira ficaria à
mercê do sistema vigente, reproduzido em qualquer outra instância
microssocial disciplinadora e autoritária, baseada na exploração, configurando-
se, assim, esse próprio ato “libertário” como irresponsável. Compreende-se,
portanto, a importância de um espaço autogestionário necessariamente de
resistência, e do papel inicialmente dotado de poder de orientadores
(professores) que ajudarão os alunos e serão, no processo, ajudados pelos
mesmos em busca da construção de uma educação autogestionária, passo
fundamental para uma sociedade autogestionária e, quiçá, organizada num
modelo federativo. Na concepção de Bakunin, dita nas palavras de Gallo,
arremata-se o argumento sobre a concepção de educação antiautoritária que
da seguinte maneira defende a autoridade inicial:
Uma educação antiautoritária não significa abandonar as
crianças a sua própria sorte, esperando que supostas leis
naturais ajam no sentido de garantir-lhes um desenvolvimento
harmonioso rumo à liberdade, muito ao contrário, uma
educação antiautoritária implica numa sadia diretividade do
processo, partindo da autoridade mesma para construir
coletivamente uma liberdade que não é nenhum dom divino
nem da natureza, mas um bem conquistado única e
exclusivamente pela ação humana. Assim como a não-
diretividade implicaria na inocente submissão das crianças a
desejos externos mais fortes que o delas, gerando na verdade
indivíduos politicamente manipuláveis pela mídia, a pedagogia
antiautoritária de Bakunin busca fortalecer o desejo, a
consciência e a autonomia dos indivíduos, de modo que sua
ação social futura seja a confirmação de uma liberdade
conquistada e conscientemente assumida (GALLO, 1995, p.
173).
É de se deter, contudo, à distinção que Bakunin faz da autoridade
como princípio de partida para a educação do indivíduo criança e da autoridade
que é lançada sobre indivíduos adultos, que já passaram pela fase inicial de
formação e se encontram desenvolvidos racionalmente; neste caso, o uso da
autoridade deixa de ser natural para ser manipulação política (GALLO, 1995).
Mas, ainda no caso das crianças e dos jovens, de acordo com Gallo, a escola
deve engajar-se num processo de luta pela transformação da sociedade, que é
corrupta e injusta, pois sozinha e isolada, a escola estaria condenada ao
fracasso de um sonho passageiro.
64
Integralmente, por fim, segundo a concepção de Bakunin, a
educação anarquista abarcaria três níveis específicos, que são: 1) a educação
intelectual, de instrução científica e baseada na apreensão do saber científico
bem como na compreensão de seu método, de modo que todo indivíduo possa
ser um produtor de ciência; 2) a educação física, por sua vez dividida em três
aspectos: o físico propriamente dito, desenvolvido através de exercícios e
jogos que visem à solidariedade; o motor, baseado no desenvolvimento
sensório-motor da criança através da manipulação dos mais diversos tipos de
objetos e instrumentos; e o profissional, em que o indivíduo passa pelo
aprendizado de diversas atividades industriais; e 3) a educação moral,
consistindo numa crítica do modo de vida burguês e na proposta de uma ação
social diferenciada, não através de discursos, mas da vivência mesmo de uma
nova estrutura de coletividade participativa, situando-se, de vez, a autogestão
pedagógica, e procurando estabelecer, contra a “democracia” eletiva do
capitalismo, uma democracia direta, participativa, ao desenvolver atividades
com o grupo de alunos que fortaleçam sua capacidade de crítica e autonomia,
para sucessivamente ir aumentando sua participação nas reuniões
comunitárias (GALLO, 1995).
4.2 OS LIMITES DE UMA EDUCAÇÃO ANARQUISTA
Numa proposta de educação anarquista, como discutida por Gallo
(1995) na explanação que faz sobre a escola autogestionária, inevitavelmente
deve-se direcionar alguns valores em oposição a outros valores (o valor de
uma sociedade anarquista em oposição à sociedade capitalista), isto é, deve-
se doutrinar. A autogestão exige resistência, resistência ao sistema, subversão
de uma ordem. Assim, num paradigma anarquista, a educação jamais poderia
ser neutra, porque seria também vulnerável. Um problema se afigura na
medida em que, por um momento, adotamos uma postura niilista e deixamos
de lado os nossos valores, para concluirmos que ninguém tem o direito de
eleger os seus valores como superiores aos dos outros. O questionamento
filosófico, nesse estágio de reflexão, não permite estabelecer um juízo de valor
intrínseco ao que elegemos, e qualquer eleição de valores, seja ela anarquista,
socialista ou capitalista, terá inicialmente a mesma igualdade valorativa.
65
Gallo (1995) trata dessa questão ao trazer à tona a suposição de
uma educação neutra, explicando a distinção que o militante anarquista
Ricardo Mella faz entre explicar (a maneira neutra de transmitir conteúdos) e
ensinar (a maneira doutrinária de transmissão):
Pode-se, por exemplo, explicar o sistema geocêntrico em
geografia, demonstrando que ele não é correto, e ensinar o
sistema heliocêntrico, atualmente aceito. Isto é, a explicação
implicaria na compreensão de um determinado assunto, mas
sem implicar necessariamente numa concordância com ele; já
o ensino pressupõe que determinado assunto é explicado como
sendo necessariamente verdadeiro, exigindo, pois, a
concordância com ele. Em outras palavras, o ensino implica em
compreensão e aceitação, enquanto que a explicação pede
apenas a compreensão. Deste ponto de vista, Mella diz que
pode-se explicar dogmas religiosos, mas não se deve ensiná-
los. Do mesmo modo, uma coisa é explicar o que seja
democracia, socialismo ou anarquia, e outra muito diferente é
ensiná-las como verdades absolutas, apenas porque temos a
convicção de que realmente o sejam (GALLO, 1995, p. 204).
Assim, Gallo (1995) explica que, diante desta perspectiva
apresentada por Mella, a proposta de educação libertária, que pretende
suscitar nos jovens o desejo de saber por si mesmos e formar suas próprias
ideias, deveria, portanto, abdicar-se totalmente do caráter doutrinário, mesmo
que o preço a pagar seja que os jovens educados jamais concordem com suas
ideias.
No entanto, o autor rapidamente se opõe a essa concepção que,
embora lógica em sua argumentação, é impensável por razões consequenciais.
Com efeito, ainda que seja, até certo ponto, possível praticar uma educação
neutra (que explique e não eduque), esta prática estaria esvaziada de
responsabilidade social, assim que os efeitos da mesma pudessem ser
averiguados, pois defende Gallo (1995) que, deixada de ser tratada a questão
política na escola, fatalmente a criança e o jovem tomarão contato com ela na
igreja, no clube, em casa, na rua e, com mais intensidade ainda, através dos
meios de comunicação que, explícita ou implicitamente, encarregam-se disso.
Abdicando da formação política, o jovem torna-se presa fácil das
demais instituições sociais, normalmente em mãos de classes dominantes.
Portanto, uma escola na concepção libertária de Mella, segundo Gallo (1995),
66
seria uma escola necessariamente reacionária e conservadora, ou seja, uma
escola que elegeria, ainda que não reconhecendo, o valor capitalista como o
correto. Portanto, uma vez averiguadas as consequências de uma educação de
feição neutra, a neutralidade mesma da educação seria colocada em xeque.
Não há educação neutra, não há entremeio entre um valor e outro
valor. A problemática filosófica é insolúvel no que aspira a uma resposta ideal,
e a própria ação de abdicarmos de uma escolha nos implica uma escolha
realizada. Assim, ou se escolhe uma educação baseada na igualdade, ou se
escolhe uma educação baseada na exploração; ou se faz uma educação
anarquista resistente ao sistema, ou não se faz uma educação anarquista.
Essa insolubilidade filosófica é assumida por Gallo (1995) como
limite da educação anarquista. Mas assim como esse limite é o limite da
educação anarquista, ele também é, assim como igualamos o valor primordial
de cada escolha, o limite de qualquer educação que se defina como tal. Dessa
forma, para uma nova definição de escola, é preciso aceitar que,
necessariamente, a educação tem limites, e que ela deve, dessa forma, ser
necessariamente doutrinária.
Outro limite da educação, por fim, é o da dissidência. Na
educação atual, a dissidência do sistema, caracterizada pela desobediência às
normas escolares ou pelo não cumprimento das atividades curriculares, é um
comportamento passivo de ser punido pelo aparato disciplinador em serviço.
Numa educação anarquista, em que não há aparado disciplinador, a punição
seria repudiada, e um dissidente da doutrina escolar deveria ser aceito como
um fato insolúvel e uma marca da falibilidade prevista a qualquer método de
educação, além de um fato natural que está de acordo com os direitos do
indivíduo de agir livremente e se rebelar contra aquilo que lhe está sendo
ensinado.
Também Reimer (1971) concorda com o fato de que nenhum
programa educacional pode garantir que todos aprenderão o que precisa ser
aprendido, e muito menos que, se aprendido, o indivíduo agirá de acordo com
esse aprendizado. A oportunidade para tal aprendizado, porém, deveria ser
mantida em aberto, segundo o autor, e não somente durante a juventude do
67
indivíduo, mas também ao longo da vida de cada pessoa. Uma das maiores
complicações da educação, continua, é o costume universal de acharmos que
sabemos melhor do que os outros o que é do interesse deles. As escolas são
quase que totalmente concentradas na disputa de ensinar às pessoas o que
outras pessoas querem que elas saibam, afirma Reimer.
Sob essa visão, não é de se espantar a tamanha aceitação que a
disciplina e o currículo padronizado possuem nas instituições escolares.
Reimer (1971) ainda segue dizendo que aqueles que decidem o que deve ser
aprendido na escola, fingem agir no interesse dos aprendizes. Mas, como
sabemos, aqueles que decidem o que deve ser aprendido agem, na verdade,
no interesse das classes sociais dominantes, o que indica, mais uma vez, uma
ação indispensavelmente resistente na constituição de uma educação
anarquista.
4.3 A QUESTÃO DA EDUCAÇÃO INDIVIDUALISTA
Por individualista, pretendemos afastar a noção contida na
concepção de egoísmo associada às práticas capitalistas pela crítica
anarquista. Por individualista, pretendemos, ao invés, discutir uma noção de
que o indivíduo é estimado pelas qualidades particulares que naturalmente traz
de outros ambientes que não a escola ou que produz no ambiente escolar. Um
ensino massificado, como é pretendido desde a consolidação dos estados-
nações, conforme visto na história da escola, é um ensino que
necessariamente reduz a individualidade do estudante e força-o a se adequar a
uma coletividade.
Essa adequação, como explicitado por Foucault (1977), é
realizada através da disciplina, mediante seus variados e minuciosos
processos e mecanismos de docilidade. Sabemos também, por meio da teoria
de socialização de grupo desenvolvida por Harris (2009), que o ser humano
possui uma propensão natural a se identificar com grupos, assumindo a
identidade dos mesmos e se assimilando a outros membros de um mesmo
grupo mais do que verdadeiramente são semelhantes a eles. Com efeito,
aparenta-se a individualidade, na verdade, ser constituída pela soma das
personalidades sociais de um indivíduo e pelo que deixa filtrar de uma no
68
contexto da outra - como bem observa Harris -, além do que cada indivíduo
carrega de genético.
Na prática, a individualidade do aluno pode ser verificada olhando
para as ações e reações do mesmo, no modo como se comporta na presença
de seus colegas, no modo como reage à exposição de determinado
conhecimento, no modo como age no exercício de determinado saber, e
naquilo que traz de espontâneo, de interesse próprio e aptidão natural para
aprender e executar. Observar essa individualidade num contexto de educação
em massa, de caráter disciplinador, é, muitas vezes, impraticável, visto exigir
do professor um olhar que transpasse justamente o que se espera que coloque
em prática no exercício de sua função. Além do mais, observar essa
individualidade quando o aluno está envolto de categorias sociais com as quais
ele irá necessariamente se adequar, fica ainda mais difícil.
Assim, distinguir os gostos e aptidões pessoais do aluno e
estimá-los adequadamente no exercício do ensino é um ideal que não parece
se verificar na prática, e que demandaria do professor um esforço
humanamente ineficaz. Gallo (2005), discutindo sobre os ideais pedagógicos
do educador Paul Robin, expõe o seguinte a respeito do perfil do educador na
consideração individual do aluno:
[...] O educador, se não é um déspota que imprime às crianças
o que ele bem entende, não importando se elas tenham ou não
condições de acompanhar, não é também um mero
observador, ou um joguete, um instrumento nas mãos de
déspotas em miniaturas que fazem o que querem. O educador,
consciente da liberdade das crianças, conhecedor que é dos
aspectos de seu desenvolvimento racional e psicológico por um
lado, sensório e motor por outro, deve ter o feeling de saber
adaptar às circunstâncias - condições de desenvolvimento das
crianças, seus desejos e os aspectos de sua vivência - a
aplicação dos instrumentos metodológicos de que dispõe para
possibilitar um desenvolvimento saudável e harmônico dessas
crianças. O ensino não é, de modo algum, não-diretivo, mas o
professor também não impõe, autoritária e arbitrariamente o
que bem entende (GALLO, 1995, p. 181).
Os ideais pedagógicos de Robin puderam ser testados na prática,
uma vez que o educador foi diretor do Orfanato Prévost, na França,
estabelecido no ano de 1861. E, de acordo com Gallo (1995), a respeito tanto
69
de seus ideais quanto de sua experiência prática, registrada em literatura,
Robin pôde efetivamente realizar, se não uma autogestão pedagógica
precisamente, uma importante experiência de práticas libertárias na educação.
Ainda que não traga detalhes a respeito dessa estimação da individualidade de
seus alunos na prática, Gallo expõe que, de um modo geral, o balanço foi
positivo, já que, além deste ideal do feeling do professor sobre os desejos e os
aspectos da vivência do aluno, a pedagogia de Robin também pregava a
consciência sobre a coletividade.
Calcular o balanço ideal entre o individualismo e a coletividade é
deveras complicado. No paradigma anarquista, para além da crítica ao
individualismo capitalista, há o anarco-individualismo, que, como vimos, define-
se pela busca da autonomia pessoal e pela associação com outros indivíduos
com base em interesses comuns. Este simples teorema parece simplificar toda
a questão a ser calculada. De fato, se tomarmos a liberdade individual como
pedra angular da libertação proposta pelo anarquismo, ainda assim
chegaremos ao individualismo como fenômeno diretamente relacionado às
relações coletivas. Não podemos nos esquecer, a propósito, da definição de
liberdade para Bakunin: uma liberdade que necessariamente se define em
relação aos outros.
4.4 UMA EDUCAÇÃO EM VISTA DA SOCIALIZAÇÃO DE GRUPOS
Como demonstrado, a teoria de socialização de grupos de Harris
(2009) desvenda muitos segredos do comportamento humano social. Uma vez
que grupos são fenômenos inevitáveis, e são a precisa razão para que o
aparato disciplinador tenha sido instaurado, bem como a precisa razão que
explica o desempenho escolar, desde sempre, não produzir resultados
homogêneos, deparamo-nos com um problema localizado no entremeio de
duas condições: a condição de um grupo, como proposto por Harris, unificado
sob uma identidade em comum, a fim de se atingir um resultado pretendido e
igual para todos os alunos; e a condição de um grupo disperso, como temem
os propositores da disciplina, conforme Foucault (1977), em que alunos
fragmentam-se em grupos, de acordo com as categorias sociais mais salientes,
70
perpetuando, assim, a condição privilegiada dos já privilegiados e a condição
desprivilegiada dos já desprivilegiados.
Em maior ou menor medida, as duas condições são condições da
escola atual. A disciplina, mais rigorosa antes do que é atualmente, afrouxa-se
o bastante para permitir que subgrupos, dentro de uma mesma sala de aula
(como visto, quanto maior for a classe, mais sensível ela é a subdividir-se),
surjam e condicionem aqueles menos favorecidos - pobres, negros, alunos com
algum tipo de déficit de aprendizado - a continuarem em suas condições
desfavorecidas, fiéis, por um fenômeno de assimilação natural, ao grupo com o
qual já se identificam desde antes de chegarem à escola. Os privilegiados, em
seus turnos, continuam gozando de seu privilégio, e procuram grupos com o
qual se assemelham. A disciplina, que deveria harmonizar e unificar todos os
corpos, tornando-os úteis na mesma medida, é também falha o bastante para
que nem todos trabalhem num processo em comum, com eficiência e utilidade
em comum.
É demonstrado por Harris (2009), no entanto, que salas menores
e homogêneas tendem a apresentar resultados melhores, ainda que, na teoria,
uma classe de alunos pobres continue a reproduzir aquilo que os alunos já
carregam com eles - provavelmente, a desvalorização do estudo, fruto de um
background cultural neles impresso e compartilhado entre seus pares.
Assim, e tendo em vista esse prospecto teórico, é razoável
levantarmos a questão de um estudo não individualista a rigor, mas
relativamente individualista, focado, ao invés, em categorias sociais específicas
e a partir de um ensino diretivo a princípio (a iniciativa da autoridade) que,
como primeiro passo fundamental, examine e proponha conteúdos e métodos,
baseados, é claro, num projeto autogestionário, de acordo com o que há de
mais pertinente, relevante e urgente nas necessidades de determinado grupo
de alunos.
Como esses grupos seriam formados e definidos, é uma questão
que pede outras considerações, que trataremos mais adiante. Por ora,
sabemos que, de fato, não seria inteligente nem precavido esperar que a
ordem natural dos fenômenos sociais se desenrole e que simplesmente
71
pincemos grupos de alunos para um trabalho direto, uma ação pedagógica
prática no sentido de averiguar qual o conteúdo e a metodologia de ensino
mais bem adequados a eles.
Mas um primeiro caminho seria, muito provavelmente, e ao
contrário do conselho conformista de Harris (2009), eliminar qualquer distinção
artificial que se faça dentro do ambiente escolar. Assim, acabaríamos com as
classes e, em seguida, também com as séries, desestruturando radicalmente a
ilusão de progresso no aprendizado, como observada por Reimer (1971), e a
definição dos estudantes no tempo e no espaço, numa escala seriada, como
analisa Foucault (1977).
Com efeito, uma desestruturação de tal ordem geraria, imagina-
se, a verdadeira quebra da ocupação disciplinar de avaliar, classificar,
categorizar e manter o controle sobre quando e onde os alunos devem se
encaixar no tempo e no espaço. Assim, a dispersão de alunos em grupos seria
ainda mais fluída, acabando com as categorias artificiais de classe e série. Em
compensação, continuariam eles se agrupando conforme suas similitudes
naturais, as de sexo, etnia e background socioeconômico.
Conter os efeitos desses agrupamentos pode ser, de fato, um
beco sem saída. Mas assim como a disciplina que, em alguns casos, consegue
amortecê-los, também são passíveis de serem amortecidos uma vez que, no
ambiente escolar, a livre-associação por interesses individuais seja incentivada
a fim de que grupos de estudo e aprendizagem se formem em busca de um
objetivo em comum: aprender determinado assunto ou habilidade; discutir a
respeito de determinado assunto ou passatempo; articular determinado projeto
ou iniciativa; agir para determinado fim ou causa.
À frente dessas associações, professores - ou orientadores -
tomariam para si, de acordo com o princípio da educação antiautoritária como
proposta por Bakunin, a iniciativa da autoridade, conduzindo um ensino diretivo
e focado nas necessidades do grupo, que seriam, por extensão, as
necessidades individuais. O comportamento autogestionário seria incentivado e
ensinado pelo próprio professor, que, com o tempo, desvincular-se-ia da
72
autoridade inicial até se tornar quase tão igual em poder decisório quanto os
alunos.
4.5 UMA NOVA CARA PARA A ESCOLA
De acordo com Reimer (1971), alternativas para a escola devem
ser mais econômicas do que as instituições escolares. Devem ser baratas o
suficiente para que todos possam compartilhá-la e mais efetivas para que
custos baratos não impliquem em menos educação. O monopólio, também,
deve ser evitado, declara o autor, da mesma forma como o sistema escolar não
deve ser substituído por outro e as alternativas devem ser plurais. Deveria
haver competição entre alternativas, mas não entre estudantes, e nem deveria
o sucesso de um estudante se dar à custa do fracasso de outro. Alternativas
para a escola não deveriam manipular o indivíduo, mas, ao contrário, preparar
indivíduos para gerir e recriar instituições, incluindo o governo.
A educação, continua Reimer (1971), não deveria ser separada
do trabalho e do resto da vida, mas integrada a eles. A educação não deveria
preparar os indivíduos para algo além ou ser um subproduto de algo mais.
Deveria, ao invés, ser uma atividade autojustificada destinada a ajudar o
homem a ganhar e manter controle sobre si mesmo, sua sociedade e seu
governo. Alternativas para a escola, acima de tudo, deveriam permitir a todos a
oportunidade de aprender o que precisam aprender, a fim de agirem
inteligentemente em favor de seus interesses.
Assim, pensar numa escola não institucionalmente, no sentido de
instituir uma ordem dominante, mas organizacionalmente, num sentido de
organização coletiva, funcional e harmoniosa, impõe-nos outro desafio, ainda
que tenhamos as diretrizes para superá-lo. Conforme Ward (2004), é possível
distinguir quatro princípios que moldariam uma suposta teoria anarquista de
organizações. Para o autor, as organizações deveriam ser 1) voluntárias; 2)
funcionais; 3) temporárias; e 4) pequenas. E afirma:
Elas deveriam ser voluntárias e funcionais por razões óbvias.
Não há sentido em advogar pela liberdade individual e pela
responsabilidade se nós estabelecermos organizações em que
a filiação seja obrigatória, ou que não possuam qualquer
propósito. Há uma tendência para que organizações continuem
73
a existir após terem obsoletado suas funções. Elas deveriam
ser temporárias precisamente porque a permanência é um dos
fatores que dificultam as artérias de qualquer organização,
conferindo-a um investido interesse em sua própria
sobrevivência, ou em servir aos interesses de seus detentores
de cargos ao invés de desempenhar suas funções ostensivas.
Finalmente, elas deveriam ser pequenas porque em pequenas
organizações, cara-a-cara, as tendências burocráticas e
hierárquicas herdadas por todas as organizações têm menos
oportunidades de se desenvolverem (WARD, 2004, p. 31).
De fato, dentro de um paradigma anarquista, o primeiro item,
concernente à frequência voluntária, é ponto pacífico. No entanto, poderia se
levantar o argumento de que, uma vez livres da obrigação de frequentar a
escola, um grande número de jovens deixariam de frequentá-la e, por
conseguinte, tornar-se-iam presas do sistema, no contato constante com outras
instituições e manipulações político-ideológicas. Portanto, em consideração a
esse argumento, seria razoável admitir uma organização anarquista
compulsória, que obrigue, da mesma forma como a instituição escolar obriga
atualmente, a frequência de alunos em salas de aula.
Num ideal de sociedade anarquista, em que a escala
macrossocial já estaria organizada sob os preceitos autogestionários, a
obrigatoriedade escolar não seria uma necessidade, porquanto espera-se que
todos os indivíduos teriam a livre iniciativa de frequentar centros de
aprendizado, escolas ou não, e que independentemente da educação
direcionada, cultivariam um comportamento libertário sem o perigo de coação
ideológica, uma vez que instituições coercivas não mais seriam uma realidade.
Mas, mais uma vez, apanhamo-nos no entremeio de duas
condições, e diante delas propomos aqui uma não-sugestão, que não deixa de
ser, ainda assim, uma sugestão. Já que não estamos falando, ainda, de um
ideal de sociedade anarquista, que não entra nos méritos de uma ação urgente
principiada de dentro do sistema, precisamos considerar o que o sistema nos
oferece de recursos e condições justamente para criarmos um ponto de
resistência e articularmos uma oposição ao mesmo.
Assim, a não-sugestão sugestiva que propomos é a de não
deliberarmos se a obrigatoriedade é ou não necessária, mas aprendermos a
74
utilizá-la como instrumento benéfico para os nossos fins. A obrigatoriedade,
como fato da escolarização institucionalizada de nossa sociedade, é uma
condição a ser revertida em nosso favor, de modo a nos aproveitemos dela
para gerar resistência e oposição. E que melhor forma de nos aproveitarmos do
comparecimento obrigatório de alunos às escolas se não a de instaurar os
eixos de resistência e oposição dentro das próprias escolas?!
É claro que pontos de resistência podem ser criados em centros
independentes, locais privados ou públicos, ou praticamente qualquer estrutura
à disposição para o início de um novo desenvolvimento educacional. Porém, é
inquestionável que os eixos seriam mais efetivos dentro das próprias escolas,
constituídos velada e obliquamente dentro da instituição, transversal ao
currículo da escola, e liderados por alunos bem como professores e demais
funcionários da escola, que devem ser, através de processos de
convencimento e ações práticas-ideológicas, incentivados a resistirem e
repensarem a prática pedagógica da estrutura curricular e toda a estrutura
institucional, transitando da heterogestão para a autogestão.
A respeito dos itens de organizações funcionais e temporárias,
há uma interdependência a ser considerada entre eles, uma vez que, como
mesmo sugeriu Ward, organizações funcionais devem agir em respeito àquilo
que estabelecem como propósito para além delas mesmas; organizações,
assim, devem constituir um arranjo de elementos e funções a fim de alcançar
um objetivo ou uma série de objetivos externos, e não a perpetuação de si
mesmas, como inconfessavelmente age a escola. Dessa forma, o caráter
temporário das organizações vem a calhar, uma vez que uma organização
deve ter consciência da finitude de sua função, e findar ou se modificar quando
seu propósito não mais importar.
Por fim, o princípio de que organizações anarquistas deveriam ser
pequenas remete aos efeitos da socialização de grupos nas mediações de uma
sala de aula, como bem posto por Harris (2009) anteriormente, afirmando que
em salas menores, a quantidade pequena de alunos implica numa não
fragmentação em grupos, implica em união e no bom convívio entre os alunos,
na ajuda mútua e na sensação de pertencimento a um grupo consistente. A
75
ideia proposta de grupos formados por livre-associação de indivíduos,
baseados em interesses em comum, e direcionados por professores ou
orientadores, convoca-nos a pensar não na organização, como uma entidade
alternativa, necessariamente pequena em si mesma, mas pequena no sentido
de oportunizar, dentro dela mesma, agrupamentos pequenos e independentes,
sem dúvida autogestionários, que possam transitar entre eixos de resistência e
pontos de oposição à educação tradicional como bem quiserem.
Estes pequenos grupos, dessa forma, teriam a sua própria
disciplina, que seria mais conveniente chamar de autodisciplina, através da
cooperação solidária, da prática altruísta e da consciência coletiva, moralizante
mas não impositiva, e que, assim, atenderia aos interesses individuais em
comum de todos os seus membros, enquanto esses interesses permanecerem
os seus. A dissidência de um grupo, neste caso, não seria tratada com punição
nem condenaria os indivíduos ao ostracismo, mas seria fato natural da
natureza de grupos numa perspectiva anarco-individualista, e o indivíduo seria
livre para associar-se a outros grupos de estudo e aprendizagem, ou até a mais
de um simultaneamente, e abandoná-los quando bem entendesse.
4.6 OS NÍVEIS DE UMA EDUCAÇÃO LIVRE
Uma vez obrigados a comparecerem às escolas, crianças e
jovens seriam incentivados, através de iniciativas de resistência calcadas num
pensamento de autogestão, a se organizarem livremente e por espontâneo
desejo, adquirindo, assim, um novo costume, como asseverado por Reimer
(1971, p. 27) em oposição à frequência obrigatória: “Pessoas livres, escolhendo
livremente como indivíduos e em grupos voluntários entre uma ampla matriz
de alternativas, podem tomar melhores decisões”.
De fato, é um sonho libertário essa autonomia aprendida. E a
possibilidade de autogestão pedagógica se aciona justamente em virtude deste
sonho, alcançável uma vez principiada a resistência. Mas, para pensar em
liberação de pessoas, especialmente em crianças e jovens, primeiro devemos
pensar em etapas.
76
Assim, e sem entrar no mérito não urgente da frequência
compulsória, organizações escolares deveriam necessariamente cuidar, em
relação a crianças e jovens, dos três níveis de educação anarquista como
propostos por Bakunin e visto anteriormente: a educação intelectual, educação
física e educação moral. Nesta última é que a concepção autogestionária, os
valores de coletividade participativa e o desenvolvimento autônomo de todos os
envolvidos seriam estabelecidos com devida ênfase.
De acordo com Gallo (1995), a respeito dos ideais pedagógicos
de Paul Robin - alguns deles já discutidos mais acima -, o primeiro período da
educação deveria se dirigir à criança como ser isolado, buscando trabalhá-la
em sua individualidade, para favorecer o desenvolvimento de suas diversas
faculdades físicas, intelectuais etc.. Essa primeira fase da educação, segundo
Robin e conforme explicitado por Gallo, deve ser espontânea, pois a crianças
tem uma curiosidade insaciável e enorme capacidade de assimilação de
informações, ainda que sem uma ordenação lógica racional. E, embora
respeitando a liberdade e a espontaneidade das crianças, o professor tem um
papel fundamental a desempenhar em seu processo de educação.
Assim, em vista de uma proposta autogestionária e de livre-
associação em grupos de aprendizagem, o professor, detentor desta admitida
autoridade inicial, na prática da diretividade, deveria não só ser responsável
pela orientação dos alunos em grupos de estudo e aprendizagem, como ser
também responsável, num período inicial do ensino de crianças pequenas -
ainda num estágio precoce de desenvolvimento -, por assumir a função de
agente social que procurará desenvolver grupos, de acordo com as
necessidades observadas em seus alunos, independentemente das classes ou
séries em que se encaixam. A ação autogestionária, ainda em processo
germinante, pode adotar como pontapé inicial a associação de professores
com professores ou de professores com demais funcionários da instituição
escolar e alunos mais velhos e bem formados, de modo a flexionar as
possibilidades de ajuda e solidariedade no tratamento pragmático de grupos de
alunos e metodologias pedagógicas, a fim de eliminar o abismo entre as
hierarquias e promover uma diluição de poder entre toda a escola.
77
Dessa forma, se estabeleceria uma base firme e sólida de
formação de estudantes que, mais cedo do que permite a concepção de
infância e adolescência de nossa cultura, tornar-se-iam seres autônomos que
eventualmente, também, aprenderiam ensinando e ajudando a ensinar os mais
novos, e assim sucessivamente, numa progressão não ritualística e não ilusória
de avanço educacional, mas prática, imediata e cujos efeitos seriam atestados
em um período muito mais breve de tempo já no interior da organização
escolar, sem a necessidade de classificações abstratas na forma de notas e
através de métodos avaliativos.
Para substituir os exames, aliás, que não teriam vez numa
definição de escola tal como estamos sustentando, deveria ser praticado o
feedback construtivo, isto é, uma avaliação formativa, que intentaria não
classificar e promover alunos, como é praxe no sistema educacional atual, mas
direcioná-los e respaldá-los nos conteúdos e práticas que escolhem aprender.
Numa primeira etapa, em se tratando de crianças, o feedback deveria ser
fornecido tendo em vista a necessidade observada pelo(s) professo(res) e
aluno(s) encarregados de guiar determinado grupo de estudantes, enquanto
que, numa segunda etapa, ela deveria, preferencialmente, ser exigida pelo
próprio aprendiz, a fim de sentir o retorno de seu aprendizado.
Ademais, a atestação do conhecimento deveria depender menos
de questionários orais e escritos, e mais de um saber posto em prática, no
interior escolar. O saber teórico seria desenvolvido através de grupos de
discussões e de aprendizado retribuído (o aluno auxiliando no ensino ou
efetivamente ensinando outros alunos), ao passo que o saber prático seria
possibilitado nas mediações escolares ou fora dela, através de ações sociais
que se expandiriam ao longo da sociedade, ou mesmo da ajuda manual de um
estudante em favor do outro.
De acordo com a proposta de uma nova concepção de ensino
defendida por Illich (2007), fundada sobre sua ideia de desesrolarização da
sociedade, alguém que deseja aprender sabe que precisa da informação e da
crítica dos outros. Segundo o autor, num bom sistema educacional, o acesso
às coisas deve estar disponível ao simples aceno do aprendiz, enquanto o
78
acesso aos informantes requer, ainda, o consentimento de outros. Sobre isso,
Illich ainda afirma que:
As críticas podem provir de dois lados: de colegas ou de
pessoas mais adultas, isto é, de aprendizes cujos interesses
imediatos coincidem com os meus, ou daqueles que desejam
partilhar comigo suas experiências mais amplas. Os colegas
podem ser pessoas do mesmo nível com as quais se discute
um assunto, companheiros de leituras amenas e agradáveis
(ou árduas) ou de passeios, adversários em qualquer tipo de
jogo. As pessoas mais idosas podem ser consultores sobre que
espécie de aptidão aprender, que método seguir, que tipo de
companheiros procurar em dada época; podem ser guias para
indicar questões que devem ser discutidas entre os
companheiros e para cobrir as deficiências das respostas
dadas (ILLICH, 2007, p. 77).
Para Illich (2007), a maioria destes recursos existe em
abundância, mas não são comumente percebidos como recursos educativos, e
nem é fácil ter acesso a eles, para fins de aprendizagem, sobretudo se o
aprendiz for menos favorecido. Segundo o autor, devemos pensar em novas
estruturas relacionais, intencionalmente montadas, para facilitar o acesso a
esses recursos de todos os que queiram procurá-los para melhorar sua
formação.
Assim, Illich (2007) propõe uma estrutura que tem o aspecto de
teia, as chamadas teias de aprendizagem, que não só se assemelham ao que
propomos aqui (um espaço escolar aproveitado para o estabelecimento da
autogestão pedagógica, indo contra as imposições curriculares da instituição e
promovendo a livre-associação de grupos), como também parecem admitir o
acesso de outras pessoas a essa rede, isto é, pessoas de fora da escola que
se unem a ela em busca de possibilidades de associação em grupos de
aprendizagem.
Em conclusão, resume-se os níveis e suas respectivas diretrizes
pedagógicas da seguinte maneira:
Em primeiro lugar, a criança deve ser educada em grupos
preferencialmente pequenos e homogêneos, organizados pelo próprio
professor, preferencialmente com a ajuda de outros professores, funcionários
da instituição e alunos mais velhos. O professor e seus auxiliares devem
79
assumir a iniciativa da autoridade sobre as crianças pequenas, organizando-se,
entre eles, num modelo de autogestão, e ministrando nas crianças
procedimentos que visem, já, a desenvolver práticas solidárias,
autogestionárias e altruístas, além da autonomia, não se esquecendo, é claro,
do desenvolvimento físico e cognitivo e dos conhecimentos elementares
necessários.
Em segundo lugar e por fim, a criança deve ser, de acordo com
constatações observadas na prática - e não através de exames - e
direcionadas por professores e auxiliares, paulatinamente conduzida a também
ensinar, auxiliar no ensino de crianças menores e, aos poucos, exercer sua
autonomia para escolher o que deseja seguir aprendendo, sob a orientação de
alunos mais velhos ou de demais professores que deverão, sempre, exercer
um mínimo de autoridade, que necessariamente deve abrandar-se ao longo do
processo pedagógico e das relações estabelecidas no interior da organização
escolar.
80
5 PESQUISA-AÇÃO: AÇÃO-ESCOLA
A fim de que possamos, realisticamente, propor uma ação-escola,
devemos ir além das definições de uma nova escola, que agora estão
suficientemente expostas diante de tudo o que foi levantado e sustentado. A
elaboração teórica, por assim dizer, de um arquétipo de resistência à instituição
escolar, de autogestão pedagógica e de livre-associação em grupos clama por
um passo adiante. De fato, a tentativa de tornar mais concreta a visualização
de mudanças efetivas nos motivou a imaginarmos a prática e seus supostos
resultados, como fizemos no capítulo anterior. Mas da imaginação-prática para
a ação-prática, da nova definição de escola para uma ação-escola baseada
nessa definição, uma articulação ainda mais pragmática precisa ser definida.
Dessa forma, elegemos uma metodologia para a presente
investigação. Uma metodologia que não está diretamente relacionada a
qualquer caráter libertário, mas que, ainda assim, oferece as condições para se
executar mudanças de baixo para cima. Esta metodologia é a pesquisa-ação.
Segundo a definição fornecida por Thiollent, a pesquisa-ação é:
Um tipo de pesquisa social com base empírica que é concebida
e realizada em estreita associação com uma ação ou com a
resolução de um problema coletivo e no qual os pesquisadores
e os participantes representativos da situação ou do problema
estão envolvidos de modo cooperativo ou participativo (1988, p.
14).
Para a realização de uma pesquisa-ação, segundo Thiollent
(1988), faz-se necessária a participação das pessoas implicadas no problema,
que, no nosso caso, compreendem tanto professores, quanto funcionários nos
mais diversos cargos escolares, quanto, é óbvio, estudantes. Uma pesquisa-
ação, assim, só se qualifica como tal quando houver realmente uma ação por
parte das pessoas ou grupos implicados no problema sob observação. Além
disso, discute Thiollent, é preciso que a ação seja uma ação não-trivial, o que
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quer dizer uma ação problemática, merecendo investigação para ser elaborada
e conduzida.
Com efeito, a investigação, ainda que completamente
bibliográfica, é um elemento que temos em nossas mãos: uma proposta,
detalhadamente delineada (a autogestão e demais definições de uma nova
escola), e uma compreensão do problema através de análises críticas do
mesmo (a história da escola e sua função, a disciplina, a natureza de grupos).
Sem dúvida que, também, temos uma noção clara de como as pessoas e
grupos implicados no problema podem e devem agir para a resolução do
mesmo.
Ainda assim, é razoável assumirmos certo grau de
experimentação nessa empreitada. Afinal, os problemas continuarão sob
observação, e sujeitos a atitudes e alternativas redesenhadas ainda sob o
estágio de pesquisa-ação, de efetivação das mudanças propostas. Thiollent
(1988) afirma que na pesquisa-ação os pesquisadores desempenham um
papel ativo no equacionamento dos problemas encontrados, no
acompanhamento e na avaliação das ações desencadeadas em função dos
problemas. Ele ainda afirma que:
Sem dúvida, a pesquisa-ação exige uma estrutura de relação
entre pesquisadores e pessoas da situação investigada que
seja de tipo participativo. Os problemas da aceitação dos
pesquisadores no meio pesquisado têm que ser resolvidos no
decurso da pesquisa (THIOLLENT, 1988, p. 15).
Quanto a isso, é de fato dificultosa a tarefa dos pesquisadores na
execução das propostas de educação anarquista, uma vez que o contraste
entre as propostas libertárias ao que é estabelecido dentro do sistema é
radical, e assim, a aceitação dos pesquisadores no meio escolar
institucionalizado enfrentaria oposição tanto dos alunos, imbuídos de costumes
e atitudes totalmente diferentes em relação ao ensino e à aprendizagem, bem
como dos professores e funcionários mais destacados da escada hierárquica,
que certamente se oporiam a muitas das práticas pretendidas e atuariam
autoritariamente ou para barrá-las logo de início, ou para sabotá-las ao agir de
má fé ainda que aceitassem participar da ação.
82
De acordo com os três casos de pesquisa-ação distinguidos por
Thiollent (1988), a proposta de uma educação autogestionária e de livre-
associação de grupos se encaixaria tanto no segundo quanto no terceiro caso,
a ver:
Num segundo caso, a pesquisa-ação é realizada dentro de
uma organização (empresa ou escola, por exemplo) na qual
existe hierarquia ou grupos cujos relacionamentos são
problemáticos. A pesquisa pode vir a ser utilizada por uma das
partes em detrimento dos interesses das outras partes. Nesse
caso, o relacionamento dos pesquisadores com os grupos da
situação observada é muito mais complicado do que o caso
precedente, tanto no plano ético quanto no plano da prática da
pesquisa. Considera-se, no plano ético, que os pesquisadores
da linha da pesquisa-ação não podem aceitar trabalhar em
pesquisas manipuladas por uma das partes nas organizações,
em particular por aquela que está mais vinculada ao poder.
Após uma fase de definição dos interessados na pesquisa e
das exigências dos pesquisadores, se houver possibilidade de
conduzir a pesquisa de um modo satisfatoriamente negociado,
os problemas de relacionamento entre os grupos serão
tecnicamente analisados por meio de reuniões no seio das
quais todas as partes deverão estar representadas.
Num terceiro caso, a pesquisa-ação é organizada em meio
aberto, por exemplo, bairro popular, comunidade rural, etc.
Nesse caso, ela pode ser desencadeada com uma maior
iniciativa por parte dos pesquisadores que, às vezes, devem se
precaver de possíveis inclinações “missionárias”, sempre
propícias à perda do mínimo de objetividade que é requerido na
pesquisa. Frequentemente a pesquisa é organizada em função
de instituições exteriores à comunidade. Os pesquisadores
elucidam os diversos interesses implicados (THIOLLENT, 1988,
p. 17).
Assim, precisamos, mais do que nunca, pensar na prática da
educação anarquista no contexto hierárquico da instituição, em vista de formas
de burlar essa mesma instituição hierárquica, que tem todo o poder de minar
intervenções dessa ordem. Num sentido ético, como explicitado no segundo
caso, a pesquisa-ação confere apoio à construção de eixos de resistência nas
escolas, afirmando ser inaceitável ceder às manipulações (que podem se
disfarçar em tentativas de ajuda) das partes da instituição que se vinculam ao
poder. Caso a negociação não seja possível, como provavelmente não será na
maioria dos casos, o que propomos é, em poucas palavras, uma atuação
mista, algo que, como já dito, se execute transversalmente ao currículo escolar,
83
estabelecendo alianças com alunos, professores e funcionários que se
proponham a efetivamente fazer a mudança.
No terceiro caso, a proposta de atuação anarquista ainda se faz
pertinente, embora periférica em relação à atuação principal que deve
necessariamente se dar no seio da escola. De acordo com Harris (2009), a
respeito de programas de intervenção que visam mudar o comportamento e a
personalidade de crianças e jovens nos ambientes escolares e familiares, a
teoria de socialização de grupos prevê que, no ambiente escolar, as tentativas
de mudança dos indivíduos são ineficazes, uma vez que os estilos de
educação parental não surtem efeitos replicáveis no comportamento dos filhos
em outros contextos, como, por exemplo, o da escola. Por sua vez, a
intervenção que ocorre dentro da escola apresenta resultados mais notáveis,
uma vez que atuam mudanças de comportamento dentro de grupos,
influenciando suas normas:
Para que programas intervencionistas funcionem, eu acredito
que eles devem modificar o comportamento e as atitudes de
um grupo de crianças. Para que programas do tipo produzam
efeitos de longo prazo, as crianças devem permanecer em
contato umas com as outras para que elas possam continuar a
pensar nelas mesmas como um grupo. Assim, eu premeditaria
que programas destinados a uma escola cheia de crianças
seria mais bem-sucedidos que aqueles que pinçam dezessete
crianças de dez ou doze escolas diferentes (HARRIS, 2009, p.
237).
Harris (2009) ainda completa afirmando que intervenções
destinadas aos pais melhoram o comportamento das crianças dentro de casa
mas não na escola; e intervenções em meio escolar melhoram o
comportamento na escola mas não em casa. Assim, como explicitado pelo
terceiro caso de pesquisa-ação de Thiollent (1988), é pertinente que pelo
menos atuações periféricas de alternativas autogestionárias de educação
sejam também efetivadas na comunidade e no bairro de onde vem o aluno, a
fim de causar, assim como no meio escolar, uma implicação nesses locais, de
modo que o aluno cultive a mesma cultura de valorização do aprendizado,
tanto na escola quanto na sua vizinhança, e que, assim, não lhe escape, em
nenhum contexto de seu cotidiano, a oportunidade de assumir uma postura
positiva em relação ao ato de aprender.
84
Para Thiollent (1988), no entanto, a participação dos
pesquisadores não deve chegar a substituir a atividade própria dos grupos e
suas iniciativas. Certamente, se os pesquisadores assumissem as atividades
dos grupos, poderiam correr o risco de, sem querer, monopolizar suas
execuções, e acomodar o grupo às suas indicações. Assim como propõe a
atuação do professor na proposta autogestionária e na iniciativa de livre-
associação em grupos, o pesquisador deve tomar a iniciativa da autoridade e,
desde sempre, com vista no abrandamento dessa autoridade e no fomento da
autonomia dos alunos, deixar que os grupos, objetos de sua ação-pesquisa,
sejam implicados por suas intervenções e reajam livremente a elas, com o
devido acompanhamento realizado.
A participação dos grupos de alunos, professores e demais
funcionários é imprescindível para que a pesquisa-ação não se torne
meramente uma pesquisa de aspecto acadêmico e burocrático, como são a
maioria das pesquisas convencionais, de acordo com Thiollent (1988). Assim, o
contexto escolar, sob as diretrizes de uma proposta de educação anarquista, é
sem dúvida um contexto favorável para a pesquisa-ação. Segundo o autor,
adeptos da pesquisa-ação “querem pesquisas nas quais as pessoas implicadas
tenham algo a ‘dizer’ e a ‘fazer’” (THIOLLENT, 1988, p. 16). Não se trata, ainda
de acordo com o autor, de um simples levantamento de dados ou de relatórios
a serem arquivados, mas sim de desempenhar um papel ativo na própria
realidade dos fatos observados.
Nesta perspectiva, segundo Thiollent (1988), é necessário definir
com precisão, de um lado, qual é a ação, quais seus agentes, seus objetivos e
obstáculos e, por outro lado, qual é a exigência de conhecimento a ser
produzido em função dos problemas encontrados na ação ou entre os atores
da situação. O autor ainda resume, em seis aspectos, as condições que
possibilitam considerar a pesquisa-ação como ela é, e quais as exigências
metodológicas que essas condições impõem à iniciativa. Assim, enumeraremos
e relacionaremos com respostas em vista de nossa proposta cada um desses
seis aspectos.
85
O primeiro aspecto é o da ampla e explícita interação entre
pesquisadores e pessoas implicadas na situação investigada, sobre o qual já
elucidamos mais acima ao falarmos da iniciativa autoritária para o
estabelecimento de um projeto autogestionário de ensino e aprendizagem
(THIOLLENT, 1988).
O segundo aspecto expõe que dessa interação resulta a ordem
de prioridade dos problemas a serem pesquisados e das soluções a serem
encaminhadas, sob forma de ação concreta, ao que, certamente, nos cabe
algumas delineações (THIOLLENT, 1988). Para isso, utilizamo-nos das etapas
de uma educação livre como explicitadas no capítulo seis como estrutura de
nosso procedimento, mas não só: além de um procedimento que se dá com
maior autoridade da parte do pesquisador quanto menor for o grupo de alunos
tratados, adotamos como prioridade a erradicação de qualquer sustentáculo da
máquina de produção que é a educação institucionalizada, abolindo notas e
avaliações e abolindo a disciplina sobre os corpos, de modo que atividades
tanto sensório-motoras quanto físicas e mentais sejam realizadas tendo como
base não mais a competição, mas a solidariedade.
Ademais, é primordial que, antes mesmo de iniciar os primeiros
procedimentos, o pesquisador procure separar os estudantes em pequenos
grupos que podem ou não se denominar artificialmente, de modo a gerar
identidades de grupo inofensivas, contribuindo para a união dos estudantes
sem que, no entanto, estruture qualquer ordem de competição entre os grupos,
sabendo desafixá-los quando necessário e promover outras combinações com
base em necessidades, interesses e aptidões individuais, observadas ao longo
do processo.
O pesquisador deve, necessariamente, agregar o professor às
atividades, sempre em constante monitoramento de sua prática autoritária, e
promovê-lo a orientador dos grupos, de acordo com seus interesses e aptidões
pessoais. Outros funcionários da escola, de maneira mais ou menos
improvisada, podem também ser agregados à iniciativa, a depender dos
contextos escolares específicos e das necessidades brotadas ao longo do
processo.
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O terceiro aspecto explicita que o objeto de investigação não é
constituído pelas pessoas, mas pela situação social e pelos problemas de
diferentes naturezas encontrados nesta situação (THIOLLENT, 1988). De fato,
o objeto da pesquisa-ação em nossa proposta de educação anarquista não são
pessoas, mas a relação dessas pessoas com as outras e com a instituição
autoritária e disciplinadora que as reúnem. Até mesmo quando os problemas
são individuais, em estimo do olhar individualista a ser praticado na educação
libertária, eles são tratados em face de como se dão nos limites do contexto
social e quais dimensões assumem.
O quarto aspecto assevera que o objetivo da pesquisa-ação
consiste em resolver ou, pelo menos, em esclarecer os problemas da situação
observada (THIOLLENT, 1988). Certamente que é nesse sentido que mira a
proposta de uma pedagogia de autogestão, procurando esclarecer os
problemas da situação bem como resolvê-los. E mais: temos perfeito
conhecimento de como a disciplina se dá e de seus métodos e procedimentos,
de modo a nos precipitarmos logo cedo a desarranjar esse aparato na medida
em que nos dispomos a um tratamento coletivo, sob a perspectiva da
socialização de grupos, que também nos fornece fundamentação da psicologia
social para imediatamente percebermos problemas em relação aos fenômenos
implicados na formação de grupos, dando ainda mais subsídios para
detectarmos e atacarmos questões surgidas.
O quinto aspecto expressa a necessidade de realização, durante
o processo, de um acompanhamento das decisões, das ações e de toda a
atividade intencional dos atores da situação (THIOLLENT, 1988). O
acompanhamento é, sem dúvida, um aspecto importante no estabelecimento
de uma pedagogia autogestionária, uma vez que os procedimentos de estímulo
à solidariedade, ao pensamento coletivo bem como à autonomia de
aprendizagem, e todo o empenho de desconstrução do aparato disciplinador e
da estrutura de heterogestão, são procedimentos realizados na base de
decisões tomadas, ações realizadas e intenções colocadas em jogo pelos
atores - professores, estudantes e funcionários - dessa pesquisa-ação, de
modo que a observação e o registro de decisões, ações e intenções sejam
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fundamentais para eventuais reflexões acerca do que pode e do que não pode
funcionar e por que pode e não pode funcionar.
O sexto e último aspecto afirma que a pesquisa não se limita a
uma forma de ação (risco de ativismo), mas que pretende aumentar o
conhecimento dos pesquisadores e o conhecimento ou o “nível de consciência”
das pessoas e grupos considerados (THIOLLENT, 1988). Evidentemente,
conforme proposto por Bakunin anteriormente, no nível de educação moral por
ele proposto, a crítica ao modo de vida burguês e a proposta de uma ação
social diferenciada deve vir não através de discursos, o que implicaria em um
ativismo, mas da vivência mesmo de estrutura de coletividade participativa, de
autogestão pedagógica, de modo que todas as ações tomem formas
diferenciadas mas sob uma fundamentação coerente - a do paradigma
anarquista. Assim, acreditamos que crianças e jovens não responderiam como
autômatos às nossas indicações (são autômatos mais quando submetidos à
disciplina da instituição escolar), mas como seres em processo de
desenvolvimento de novos valores, comportamento e formas de contratar uns
aos outros.
A ação libertária não se resumiria a um cacoete ideológico,
ensinada na base de induções repetitivas de comportamentos e valores, mas
sim, estender-se-ia à possibilidade de uma experiência totalizante e
diferenciada, repleta de estímulos novos e desafios construtivos, que permitiria
aos alunos, professores e demais atores dessa pesquisa-ação a descobrirem
novos meios e novos conteúdos de aprendizado, tanto quanto de princípios,
iniciativas e formas novas e experimentais de se organizar socialmente e de se
entender como ser humano livre, autônomo e dotado de fantásticas
potencialidades.
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6 CONCLUSÃO
A concepção atual de escola se associa intimamente à
concepção de função social que se espera de cada indivíduo, membro da
sociedade capitalista, submetido à estrutura estatal. A escola é mais uma das
instituições de controle social que visam enquadrar indivíduos em modos de
atuação social pré-determinados. Peça do todo sistêmico, a escola como
instituição ganhou espaço fixo na sociedade com o surgimento do estado-
nação e sua necessidade de uniformização do povo, para a constituição de
valores nacionais e coletivos.
Assim, a disciplina veio a calhar como aparato para estabelecer
esse controle social, essa uniformização de forma eficaz e útil, e se inscreveu
em instâncias microssociais de maneira a reproduzir a configuração
macrossocial, articulando o sistema em sua totalidade mas a partir de
instâncias menores, a partir de inúmeras instituições localizadas, como a
escola. A disciplina é um meio desenvolvido para que indivíduos possam ser
coordenados em harmonia, constituindo uma massa, e para que estes mesmos
indivíduos, uma vez trabalhando coletivamente, atinjam objetivos iguais.
A socialização de grupos, um fenômeno evolucionista observado
nas mais variadas instâncias de organização humana, permite aos indivíduos
vantagens em relação aos outros, facilitando sua sobrevivência. Separar coisas
e sujeitos em grupos (categorias sociais, definições) não é só natural por
razões cognitivas, de certo modo particulares à espécie humana, como por
razões de sobrevivência, particulares à toda espécie animal. Assim, a
associação de indivíduos em grupos é um fenômeno espontâneo e inevitável,
que se dá num processo de assimilação entre indivíduos, formando identidade
de grupo, e diferenciação entre grupos, diferenciando os coletivos.
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O aprendizado, como exposto, se dá em grupos, e na proporção
social presente é impensável o aprendizado no seu formato estritamente
interpessoal, entre pupilo e mestre, de modo que a instrução de grupos é uma
realidade que não pode ser vencida, mas que pode ser convertida
vantajosamente para benefícios coletivos (sociais) e individuais (que não
deixam de ser uma extensão dos próprios benefícios coletivos).
Assim, a disciplina, uma mera tentativa de conter a associação
dispersa (e espontânea) de massas em subgrupos, de modo a assentar uma
uniformidade pretendida pela estrutura hierárquica da sociedade, deve ser
relativizada e ser própria de cada grupo de indivíduos que se associam, de
modo a trabalharem solidariamente em favor dos interesses do grupo;
interesses que se constituem a partir da soma dos interesses individuais, ou
seja, do que há de comum entre os membros dos grupos e que dá origem às
suas formações.
Dessa forma, o paradigma anarquista entra como base para
pensarmos em concepções de organização a fim de que estes méritos
coletivos e individuais possam entrar em concordância e possam se coordenar
sem prejuízos tanto para a sociedade quanto para a individualidade de seus
cidadãos. A autogestão, pilar das organizações sociais anarquistas, se faz
presente aqui de forma a estabelecer os parâmetros para que indivíduos
rejeitem a autoridade compulsória e possam trabalham a fim de um mesmo
objetivo, embora de maneira mais livre, mais diversa, mais espontânea e
horizontal, oportunizando o desenvolvimento de potencialidades humanas que
são, em grande parte, apagadas em favor de uma constituição social
hierarquizada, uniformizada, seriada e estratificada.
Se assentando sob princípios de liberdade (individual e, por
extensão, social), solidariedade e autogestão, o paradigma anarquista é útil
para a definição de uma nova escola, ainda que esta nova definição leve em
conta os fenômenos naturais da constituição de grupos, de modo a convertê-
los beneficamente para a realização do aprendizado individual.
A ação-escola, que parte desta nova definição, pretende colocar
em prática no campo da escola institucionalizada, de maneira transversal e
90
conciliada com as práticas pedagógicas convencionais, isto é, mista ao
sistema, pontos e eixos de resistência que procurem oportunizar novas
vivências de escola, novas formas e possibilidades de aprendizagem, em
método e conteúdo, estabelecendo críticas ao sistema e fornecendo,
concomitantemente, as chances de se comportar de modos diferentes, de
contratar novas relações, de constituir associações livres e variadas, de colocar
em prática experimentações de ensino que possibilitarão repensar a sociedade
e repensar a nossa própria natureza humana, no estabelecimento de novos
valores e novos vínculos sociais, no estabelecimento de uma prática libertária,
que livre o indivíduo de todas as presas, grades e amarras impostas pelo
sistema, que faça surgir, definitivamente, indivíduos renovados e profusos em
liberdade.
REFERÊNCIAS
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CHOMSKY, Noam. Chomsky On Anarchism. Oakland: AK Press, 2005.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. Petrópolis:
Ed. Vozes Ltda, 1977.
GALLO, Silvio. Educação Anarquista: um paradigma para hoje. Piracicaba: Ed.
Unimep, 1995.
HARRIS, Judith Rich. The Nurture Assumption: why children turn out the way
they do. Nova York: Free Press, 2009.
ILLICH, Ivan. Sociedade Desescolarizada. Porto Alegre: Deriva, 2007.
KROPOTKIN, Piotr. O Princípio Anarquista e Outros Ensaios. São Paulo:
Hedra, 2007.
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THIOLLENT, Michel. Metodologia da Pesquisa-Ação. São Paulo: Cortez, 1988.
WARD, Colin. Anarchism - a very short introduction. Nova York: Oxford, 2004.