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SOLNESS, O CONSTRUTOR. Peça teatral de Henrik Ibsen escrita em 1892.
PRIMEIRO ATOEm casa de Solness. Um gabinete de trabalho mobiliado de maneira simples, ao fundo, a sala de desenho, onde Knut e Ragnar Brovik fazem cálculos. Knut Brovik é um velho magro, de barba e cabelos brancos. Veste uma sobrecasaca preta, séria, embora um pouco gasta, e usa óculos. A gravata é de um branco amarelecido. Ragnar Brovik é um homem louro de uns trinta anos, bem vestido e um pouco encurvado. Kaia Fosli é uma moça delgada de vinte e poucos anos, vestida com apuro mas de aparência doentia. Os três trabalham algum tempo em silêncio. Por fim, Brovik explode.
BROVIK - Não! Isto não pode durar muito tempo!
KAIA - Estás te sentindo muito mal hoje, tio?
BROVIK - Sinto que vou piorando a cada dia
RAGNAR- Era melhor que fosses para casa, papai, e procurasses dormir.
BROVIK - Ir para a cama não! Queres que eu morra? Não sairei daqui antes dele chegar. Tenho de explicar-me hoje
mesmo... Com ele... com o patrão!
KAIA - Não, tio! Espera ainda, eu te peço!
RAGNAR- É mesmo, pai: será melhor que esperes.
BROVIK - Mas não tenho tempo para esperar.
Voltam ao trabalho. Depois de alguns momentos chega Halvard Solness, um homem de meia-idade, de aparência sadia e forte, cabelos curtos e crespos, barba preta aparada em ponta, sobrancelhas pretas e espessas. Dirige-se aos empregados que trabalham na sala de desenho.
SOLNESS - Não veio ninguém na minha ausência?
BROVIK - Sim, o jovem casal que quer construir uma casa de campo.
SOLNESS - Ah, aqueles dois? Que esperem! Ainda não fiz o plano.
BROVIK - Eles têm pressa de se instalar.
SOLNESS - Está bem, muito bem. E com essa pressa toda acabam se contentando com qualquer coisa... Ah, não! Que
se dirijam a outro. Diga-lhes isto quando voltarem.
BROVIK - A outro? Como? O senhor vai deixar escapar este pedido?
SOLNESS - Sim, sim, sim! Que diabo! Já que é assim... Antes isso do que construir no ar, de qualquer jeito. Sei lá quem
é essa gente!...
BROVIK - É gente séria. Ragnar os conhece. Freqüenta-lhes até a casa. Gente muito séria.
SOLNESS - Ora! Sérios!... Santo Deus! Será que vocês não me compreendem mais... vocês também? Não quero
negócios com esses estranhos. Procurem quem quiserem. Pouco se me dá.
BROVIK - O senhor está falando seriamente?
SOLNESS - É sim senhor! É o que estou dizendo
(PAUSA)
BROVIK - Posso falar um momento com o senhor?
SOLNESS - Perfeitamente.
BROVIK - Vai para a outra sala, Kaia!
SOLNESS - Sente-se. O que há?
BROVIK - Ah, é Ragnar que me preocupa... É nele que eu penso... É ele que me causa mais pesar. Que vai ser dele,
meu Deus!
SOLNESS - Seu filho? Naturalmente que ficarei com ele tanto tempo quanto ele quiser.
BROVIK - É justamente o que ele não quer. Acha que isso é cada vez menos possível.
SOLNESS - Eu creio, entretanto, que ele é bem remunerado. Mas no caso de ele querer mais, não estou longe de...
BROVIK - Não, não. Não se trata disso. É que ele quer afinal trabalhar por sua própria conta...
SOLNESS - Acha o senhor que Ragnar tenha bastante talento para isso?
BROVIK - Não. E o mal está justamente nisso: começo a ter dúvidas sobre o meu rapaz. O senhor nunca disse a
respeito dele uma palavra que... que deixasse perceber um elogio.
SOLNESS - Sim... Mas o caso é que ele nunca estudou nada a fundo, a não ser desenho.
BROVIK - O senhor também não entendia grande coisa do ofício, na época em que trabalhava em minha casa. Nem por
isso deixou de ir para a frente. O senhor subiu e nos esmagou a todos. A mim... e a muitos outros.
SOLNESS - Que quer o senhor! Tive sorte.
BROVIK - Tem razão: teve sorte em tudo. Mas creio que não pode ter a coragem de me deixar morrer... sem ter visto o
que Ragnar vale. Além disso, eu muito desejaria vê-los casados antes de ir-me.
SOLNESS - É essa também a opinião dela?
BROVIK - Não, não é bem a opinião de Kaia, mas... Enfim. Ragnar fala constantemente nisso. É preciso... é preciso o
senhor arranjar-lhe algum trabalho independente. É preciso que eu veja algum trabalho dele, do meu pobre rapaz, está
ouvindo?
SOLNESS - Mas que inferno! Eu, afinal, não posso fazer com que lhe venham encomendas da Lua!
BROVIK - Justamente agora ele poderia ter uma bela encomenda, um grande trabalho.
SOLNESS - Que trabalho é esse?
BROVIK - Ele poderia construir essa casa de campo.
SOLNESS - Essa casa de campo? Mas se sou eu que a vou construir!...
BROVIK - O senhor não faz questão disso.
SOLNESS - Não faço questão? Eu? Quem se atreve a supô-lo?
BROVIK - O senhor mesmo acaba de dizê-lo.
SOLNESS - Ora, não leve em conta tudo o que eu digo, assim. Acha que Ragnar poderia construir essa casa de
campo?
BROVIK - Sim. Ele conhece a família. E, além disso, ele fez... simplesmente para se divertir... ele fez os desenhos, o
orçamento, enfim, todo o projeto...
SOLNESS - E as pessoas que querem fazer essa construção estão satisfeitas com os desenhos?
BROVIK - O projeto dele agradou-lhes extraordinariamente. É alguma coisa de completamente novo, disseram eles.
SOLNESS - Realmente? Qualquer coisa de completamente novo... e não velharias como as que eu edifico, não é isso?
BROVIK - Eles acham diferente, eis tudo.
SOLNESS - Então, quer dizer que foi em busca de Ragnar que eles vieram... enquanto eu estava ausente!
BROVIK - Eles vieram procurar o senhor e saber se queria desistir.
SOLNESS - Desistir? Eu?
BROVIK - No caso em que os desenhos de Ragnar lhe parecessem...
SOLNESS - Eu? Ceder o lugar a seu filho?
BROVIK - Não, mas ceder-lhe o negócio. É isso o que eles pretendem.
SOLNESS - Dá no mesmo. Ah! É assim! Halvard Solness... começando a ceder o lugar! Dar lugar aos moços, aos bem
moços, talvez! Querem que ele ceda o lugar!... O seu lugar!
BROVIK - Ora, meu Deus! Há lugar para mais de um...
SOLNESS - Não há tanto assim. Mas a questão não é essa. Fique sabendo que, por minha vontade, eu jamais recuarei,
jamais, diante de quem quer que seja! Nunca, repito-lhe!
BROVIK - Nesse caso deixa-me ir deste mundo sem levar comigo nenhuma certeza, nenhuma alegria, nenhuma
confiança em Ragnar? Sem ver realizada nenhuma obra dele? É o que deseja?
SOLNESS - Não falemos nessas coisas.
BROVIK - Falemos sim. Preciso de uma resposta. Quer que eu parta deste mundo depois de ter perdido tudo?
SOLNESS - O senhor partirá dele como puder e como quiser.
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BROVIK - Está bem.
SOLNESS - Creia-me, não posso proceder de outra forma! Fui feito assim! Não posso mudar a minha natureza!
BROVIK - Sim, sim, compreendo, o senhor não pode...
SOLNESS - Boa-noite.
BROVIK - Boa noite. Durma bem... se puder
SOLNESS - Kaia, por favor. Então, segundo parece, quer casar-se.
KAIA - Ragnar e eu somos noivos faz quatro... cinco anos... e...
SOLNESS - E vocês acham que já é tempo que isso se realize, não é?
KAIA - Ragnar e o tio dizem que é preciso. Que me resta a fazer?
SOLNESS - Ouça, Kaia: confesse que, no fundo, você ama um pouco a esse Ragnar.
KAIA - Eu o amava muito... antes de vir para a sua casa...
SOLNESS - E agora? Nem mais um pouco?
KAIA - O senhor sabe perfeitamente que só amo a uma pessoa no mundo. Nunca amarei outra, nunca!
SOLNESS - Sim, você o diz, mas isso não a impede de ir-se e me deixar aqui a me debater sozinho no meio de tudo
isto.
KAIA - Mas não poderei ficar perto do senhor, mesmo se Ragnar?...
SOLNESS - Não. É completamente impossível. Se Ragnar me deixar e for trabalhar por conta própria, precisará de você
para a sua empresa.
KAIA - Mas não poderei me separar do senhor! Isso me parece de todo impossível!
SOLNESS - Nesse caso trate de tirar da cabeça de Ragnar esse capricho tolo. Case-se com ele quantas vezes quiser...
Quero dizer... convença-o a conservar-se no bom emprego que tem aqui em casa. Assim, querida Kaia, eu poderei
conservá-la... a você também.
KAIA Que felicidade, se isso pudesse se arrumar assim!
SOLNESS - É que não posso passar sem você, Kaia. Preciso sempre tê-la a meu lado.
Aline Solness entra no escritório. É uma mulher que ainda conserva alguns vestígios de beleza, mas em seu rosto vêem-se as marcas de um grande sofrimento. Está vestida de negro. Fala muito lentamente, sempre com voz chorosa.
ALINE - Halvard!
SOLNESS - Ah, és tu querida!
ALINE - Parece-me ter chegado mal a propósito.
SOLNESS - De modo nenhum. A senhorita Fosli tem simplesmente de escrever uma carta.
ALINE - Sim, estou vendo.
SOLNESS - Tens alguma coisa a dizer-me, Aline?
ALINE - Nada, a não ser que o doutor Herdal está aí ao lado, na saleta. Quem sabe se o queres ver?
SOLNESS - Hein? O doutor faz muita questão de me ver?
ALINE - Não, ele não faz questão nenhuma... Ele veio ver-me e queria aproveitar para te fazer uma visita.
SOLNESS - Muito bem. Nesse caso pede-lhe que espere um momento.
ALINE - Pelo menos, não te esqueças de vir, Halvard.
SOLNESS - Kaia, é melhor que você vá agora. E trate de resolver aquele outro assunto, ouviu?
KAIA - Se isso dependesse de mim, eu...
SOLNESS - Quero que o assunto fique resolvido, já lhe disse! Amanhã, sem mais tardar!
KAIA - Se não houver outro meio... consinto em romper com ele.
SOLNESS - Romper! Ora essa! Está louca?
KAIA - Prefiro isso. É preciso que eu fique aqui. Não posso deixá-lo! É impossível!
SOLNESS - E Ragnar, com os diabos? Mas se é Ragnar que eu...
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KAIA - É então por Ragnar acima de tudo que o senhor...
SOLNESS - Claro que não! Você não compreende as coisas. É você quem eu quero conservar. É você, Kaia. Mas é
justamente por isso que você deve convencer Ragnar a não sair do escritório. Vamos, vá agora para casa.
KAIA - Sim, boa noite.
SOLNESS - Boa noite. Diga-me: os desenhos de Ragnar estão aí, não é? Quero examiná-los um pouco.
KAIA - Sim, faça isso!
SOLNESS - Por você, querida Kaia.
KAIA - Boa noite. E pense em mim com bondade.
SOLNESS - Sim, é o que sempre faço. Boa noite, querida Kaiazinha. Vá, vá.
ALINE - Já terminou a carta?
SOLNESS - Sim, eram poucas palavras para escrever.
ALINE - Deves estar contente, Halvard, por teres encontrado essa moça, não?
SOLNESS - Certamente. Ela entende de tudo.
ALINE - É uma coisa que se está vendo.
Aline retira-se. O Dr. Herdal e Solness conversam então longamente sobre as estranhas coincidências que Solness percebe em sua vida: Kaia Fosli, por exemplo, veio oferecer-se para trabalhar depois de uma visita que fez a seu noivo no escritório. Solness, ao vê-los embevecidos um com o outro, pensou que a melhor forma de reter Ragnar seria empregar-lhe a noiva. Apenas pensou isto, nada disse. Olhou firme para Kaia e ela no dia seguinte apresentou-se para empregar-se. O Dr. não compreende nada deste raciocínio e já prepara-se para ir visitar um doente quando chega Hilda Wangel. É uma jovem esbelta de vinte e poucos anos, em traje de turista - saia mais curta que o habitual, gola estilo marinheiro e chapéu. Seu rosto está queimado pelo sol, ela traz uma mochila às costas e um bastão de alpinista. O Doutor reconhece-a: é a filha do médico do distrito de Lysanger. Solness então lembra-se da torre que construiu para a velha igreja da cidadezinha. O Doutor vai, enfim, ver seu doente e Solness e Hilda podem então entregar-se às recordações do passado.
HILDA - Sim, foi naquele verão.
SOLNESS - Foi há muito tempo isso.
HILDA - Exatamente dez anos.
SOLNESS - Era uma criança naquele tempo, não?
HILDA - Oh! Nem tanto assim: eu podia ter doze para treze anos.
SOLNESS - É a primeira vez que vem por aqui, senhorita Wangel?
HILDA - É a primeira vez.
SOLNESS - E sem dúvida não conhece ninguém aqui?
HILDA - Ninguém mais a não ser o senhor. É verdade, conheço também sua senhora.
SOLNESS - Sim, conhece minha mulher?
HILDA - Muito pouco. Estivemos juntas uns dias no sanatório em que ela estava fazendo um tratamento.
SOLNESS - Admira-me que ela nunca tenha me falado nisso.
HILDA - Peço-lhe que me dê hospitalidade aqui por esta noite. É que não tenho outro traje a não ser o que trago
vestido. Só roupa branca na minha mochila. E assim mesmo bem suja... Preciso mandar lavá-la.
SOLNESS - Bem, muito bem. Vamos arranjar isso. É preciso somente que avise à minha mulher... Aline! Vem cá! Ouve!
Está aqui uma senhorita Wangel que tu conheces.
ALINE - Quem é? Ah, é a senhorita! Ei-la aqui na nossa cidade!
SOLNESS - A senhorita Wangel acaba de chegar e pede para pousar hoje aqui em casa.
ALINE - Aqui em casa? Será um prazer.
SOLNESS - Compreendes... Só o tempo necessário para pôr o vestuário em ordem.
ALINE - Tratarei de ajudá-la do melhor modo possível. É o menos que posso fazer. Com certeza vão trazer a sua mala.
HILDA - Não tenho mala.
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ALINE - Enfim, creio que arranjaremos isso. Mas espere-me um pouco aqui no gabinete do meu marido. Vou ver se
lhe arrumo um bom quarto.
SOLNESS - Não poderíamos dar um dos quartos de crianças? Estão todos arrumados.
ALINE - Podemos sim. Temos lá mais lugar do que é preciso. Sente-se e descanse um pouco.
HILDA - O senhor tem muitos quartos para crianças?
SOLNESS - Há três desses quartos aqui em casa.
HILDA - Tantos assim? Tem então uma legião de crianças?
SOLNESS - Não, não temos filhos. Mas a senhorita fará as vezes de um filho, durante uns momentos.
HILDA - Mestre Solness, o senhor é muito esquecido, não?
SOLNESS - Esquecido? Eu? Que eu saiba não.
HILDA - Então não quer que continuemos a conversa que tivemos lá em cima?
SOLNESS - Em Lysanger? Parece-me que não tivemos conversa nenhuma.
HILDA - Quando terminaram a construção da torre, houve uma grande festa.
SOLNESS - Sim, foi um dia que jamais esquecerei.
HILDA - Havia música em frente à igreja, e centenas e centenas de pessoas. Nós, as meninas do colégio, estávamos
vestidas de branco e cada uma trazia na mão uma bandeirinha.
SOLNESS - Ah, sim. Lembro-me bem.
HILDA - O senhor subiu no andaime, até lá em cima, bem no alto. E levava na mão uma grande coroa de folhagens. E,
essa coroa, o senhor pendurou no catavento.
SOLNESS - Era meu hábito naquele tempo. Uma velha tradição...
HILDA - Que impressão dava aquilo! Ver o senhor assim, para nós, cá de baixo... ‘’E se o construtor caísse?’’
SOLNESS - Sim, sim, era uma coisa que podia acontecer. Porque um daqueles diabretes, de branco, mexia-se tanto e
gritava tão alto ao me olhar...
HILDA - ‘’Viva mestre Solness!’’ Não foi?
SOLNESS - ... e agitava tanto a sua bandeira que eu... que quase tive uma vertigem.
HILDA - Esse diabrete era eu.
SOLNESS - Agora tenho certeza. Era a senhorita.
HILDA - Era... porque havia naquilo qualquer coisa de tão belo, de tão comovente... Eu não acreditava que houvesse,
no mundo inteiro, outro construtor capaz de construir uma torre tão alta. E ao vê-lo lá em cima, bem no alto, em carne e
oss,; vendo que o senhor não tinha a menor vertigem, era isso... sobretudo... que se tornava vertiginoso!
SOLNESS - Mas como podia ter certeza de que eu...
HILDA - Certamente! Eu sentia isso no íntimo. De outra forma, como poderia, o senhor, cantar lá em cima?
SOLNESS - Cantar? Eu então cantei?
HILDA - Cantou, sim.
SOLNESS - Nunca cantei na minha vida.
HILDA - Nesse momento o senhor cantou. Ouviam-se no ar acordes de harpa... Mas foi depois disso... sim... foi depois
disso que veio o essencial.
SOLNESS - O essencial?
HILDA - Deve lembrar-se da grande recepção que lhe ofereceram no clube?
SOLNESS - Lembro-me muito bem. Foi naquela mesma tarde, porque parti no dia seguinte.
HILDA - O senhor tinha sido convidado para passar a noite lá em casa, depois do clube.
SOLNESS - Perfeitamente, senhorita. É admirável como todos esses pequenos acontecimentos se gravaram no seu
espírito.
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HILDA - Esses pequenos acontecimentos! Teria sido também um pequeno acontecimento o fato de estar eu só na
sala, quando o senhor entrou?
SOLNESS - Era então a senhorita?
HILDA - O senhor disse que me achava encantadora com o meu vestido branco e que eu parecia uma princesinha.
SOLNESS - Isso devia ser verdade, senhorita Wangel. E além disso, nessa noite, eu me sentia tão alegre, tão livre...
HILDA - E o senhor disse mais:disse que, quando eu fosse grande, eu seria a sua princesa.
SOLNESS - Como? Eu também disse isso?
HILDA - Sim, o senhor disse. E, quando eu lhe perguntei quanto tempo teria de esperar, o senhor respondeu que dentro
de dez anos, voltaria para me raptar e me levar para a Espanha, ou não sei aonde. E que uma vez que chegássemos lá
o senhor me compraria um reino.
SOLNESS - Sim, depois de uma boa refeição, fica-se muito generoso. Mas então é certo que eu disse tudo isso?
HILDA - Sim. E disse até o nome desse reino. Devia chamar-se o Reino de Orângia.
SOLNESS - Por Deus que aí está um nome bem convidativo.
HILDA - Pois não me agradou. O senhor parecia estar zombando de mim.
SOLNESS - E com certeza não era assim.
HILDA - Não, não era possível julgar isso, depois do que o senhor fez em seguida.
SOLNESS - Que teria eu feito, santo Deus?
HILDA - O senhor me tomou em seus braços e me beijou, senhor Solness!
SOLNESS - Como! Eu fiz isso?
HILDA - Sim, o senhor me pegou nos seus dois braços, me inclinou para trás e me beijou não sei quantas vezes.
SOLNESS - Ora, querida senhorita Wangel!...
HILDA - Acho que não vai negar isso?
SOLNESS - Sim, nego-o completamente!
HILDA - Está muito bem!
(PAUSA)
SOLNESS - Senhorita Wangel! (PAUSA) Não fique aí assim como que petrificada. O que acabou de dizer deve ter sido
um sonho. (PAUSA) Pois bem, sim! que me leve o diabo! Eu o fiz, pronto!
HILDA - Confessa então?
SOLNESS - Sim. Tudo o que quiser.
HILDA - Que me tomou nos seus braços?
SOLNESS - Sim, sim.
HILDA - Que me inclinou para trás?
SOLNESS - Quase até o chão.
HILDA - Que me beijou?
SOLNESS - Que a beijei.
HILDA - Várias vezes?
SOLNESS - Tantas quanto quiser.
HILDA - Já vê que eu acabei por lhe fazer confessar tudo.
SOLNESS - Como pude esquecer-me de uma coisa dessas!
HILDA - Oh, o senhor deve ter beijado tanto na sua vida!...
SOLNESS - Não, julga-me mal.
HILDA - E a data?
SOLNESS - A data?
HILDA - Sim, o dia em que o senhor colocou a coroa no alto da torre? Vamos, diga-a depressa!
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SOLNESS - A data?... Esqueci a data. Sei somente que isso foi há dez anos.
HILDA - Foi há dez anos... No dia 19 de setembro.
SOLNESS - Sim, é mais ou menos isso. Mas... espere!... Hoje é dia 19 de setembro!
HILDA - Sim, 19 de setembro. E os dez anos passaram. E o senhor não veio como havia prometido.
SOLNESS - Pôde acreditar seriamente durante todo esse tempo que eu voltaria?
HILDA - Sim, seguramente! Eu acreditava que o senhor voltaria.
(PAUSA)
SOLNESS - Faz muito que sabe que sou casado?
HILDA - Sim, soube-o logo. Por que me pergunta isso?
SOLNESS - Por nada... Uma idéia... (PAUSA) Por que veio?
HILDA - Quero o meu reino. O prazo está esgotado.
SOLNESS - A senhorita tem graça.
HILDA - Que saia o reino, mestre Solness! Vamos! Apresente-me o reino!
SOLNESS - Seriamente: por que veio? Que veio fazer aqui, diga-o com franqueza?
HILDA - Oh, primeiro quero visitar a cidade e ver tudo que o senhor construiu.
SOLNESS - Nesse caso vai ter muito que andar.
HILDA - É verdade. O senhor fez tantos edifícios!
SOLNESS - Sim, principalmente nestes últimos anos.
HILDA - E inúmeras torres de igreja, não é? Muito, muito altas?
SOLNESS - Não. Eu não construo mais torres de igrejas... nem igrejas.
HILDA - Que é que constrói, nesse caso?
SOLNESS - Casas onde os homens possam estabelecer seu lar.
HILDA - E nessas casas o senhor não podia acrescentar uma pequenina... uma pequenina torre?
SOLNESS - Que quer dizer com isso?
HILDA - Penso em alguma coisa... que se erga... que se erga livremente nos ares... e cujo catavento gire numa altura
vertiginosa.
SOLNESS - É singular. Isso de que me está falando é o que mais me seduz.
HILDA - Mas, nesse caso, por que não o faz?
SOLNESS - Porque os homens não o querem.
HILDA - Eles não querem? É espantoso!
SOLNESS - Mas agora estou construindo um lar novo para mim mesmo. Aqui em frente.
HILDA - Para o senhor mesmo?
SOLNESS - Sim. A casa está quase construída. E é encimada por uma torre.
HILDA - Por uma alta torre?
SOLNESS - Dirão, talvez, que é demasiado alta... para uma casa, para um lar.
HILDA - Quero ver essa torre, já amanhã de manhã.
SOLNESS - Diga-me senhorita Wangel... como se chama?... O seu nome de batismo, bem entendido...
HILDA - Chamo-me Hilda... O senhor sabe.
SOLNESS - Hilda?
HILDA - Como? Tinha esquecido? O senhor me chamou de Hilda... no dia em que foi tão impertinente.
SOLNESS - Não é admirável? Quanto mais penso nisso, mais me parece que durante todos esses anos intermináveis
eu me torturei por...
HILDA - Por?
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SOLNESS - Por procurar lembrar-me de alguma coisa que me tivesse acontecido, como eu acreditava, e que tivesse
esquecido. Mas nunca encontrei a pista do que era. Foi uma boa coisa ter vindo procurar-me neste momento.
HILDA - Realmente? Foi bom?
SOLNESS - Sim. Eu estava aqui, tão só, a olhar para diante de mim, sem poder nada contra todo esse... É preciso que
lhe diga... estou com um tal medo... um tão horrível medo da juventude.
HILDA - Ora! será que a juventude pode causar medo?
SOLNESS - Certamente que sim. E eis por que eu me encerro aqui fechado a chave. Fique sabendo que a juventude
quer invadir minha casa!
HILDA - Parece-me que, nesse caso, o senhor deveria abrir as portas para a juventude.
SOLNESS - Abrir?
HILDA - Sim, para que a juventude possa entrar em sua casa. Como amiga, compreende?
SOLNESS - Não, não e não! A juventude... a juventude é a expiação, ouviu? Virá à frente ca reviravolta. Chegará,
digamos assim, com uma bandeira nova.
HILDA - Pensa em empregar-me em alguma coisa, senhor Solness?
SOLNESS - Sim, posso fazê-lo! Justamente neste momento! Porque, a senhorita também, posso dizer, chega com
bandeira nova. Será, então, juventude contra juventude.
(ALINE INTERROMPE)
ALINE - Está tudo providenciado, senhorita Wangel. Seu quarto está pronto.
HILDA - Oh, como a senhora é gentil comigo!
SOLNESS - Um dos quartos de criança?
ALINE - Sim, o do meio. Mas antes temos de ir para a mesa.
SOLNESS - Vamos! Hilda vai ter um quarto de criança.
ALINE - Hilda?
SOLNESS - Sim. A senhorita Wangel chama-se Hilda. Eu a conheci menina.
ALINE - É verdade, Halvard? Está muito bem... E agora vamos jantar.
HILDA - É verdade o que me disse? Pode empregar-me em algum serviço?
SOLNESS - Você é tudo quanto me estava faltando.
HILDA - Oh! Que bom! Consegui!
SOLNESS - Como?
HILDA - Alcancei o meu reino... Ou quase...
SEGUNDO ATOUm pequeno salão agradavelmente mobiliado em casa de Solness. Por uma porta envidraçada, ao fundo, vê-se uma varanda e, para além dela, um jardim. É cedo ainda. Aline está pronta para ir até a cidade: está vestida de negro, como no primeiro ato. O chapéu, o casaco e a sombrinha estão sobre uma cadeira. Antes de sair, entretanto, ela rega os vasos de plantas e flores enquanto Solness, sentado no sofá olha os desenhos de Ragnar, detendo-se atentamente sobre alguns deles. Kaia Fosli vem avisar que já chegou e traz notícias de Knut Brovik: seu estado piorou muito e ele teve que ficar de cama. Ao ver que Solness está examinando os desenhos de Ragnar anima-se a perguntar-lhe se gostaria de falar com o rapaz quando ele chegar mas Solness afirma não ter nada de particular a dizer-lhe. Kaia retira-se. Solness tenta iniciar uma conversa com Aline, apesar das dificuldades que têm de falar de si mesmos e de sua vida em comum.
SOLNESS - Até que acabamos por utilizar um dos quartos de crianças, não é, Aline?
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ALINE - É verdade.
SOLNESS - Sempre é melhor, creio eu, que vê-los sempre vazios, os três.
ALINE - Oh, esse vazio é apavorante! Tens razão.
SOLNESS - Vais ver, Aline, que daqui por diante tudo vai melhorar. A vida será mais agradável... sobretudo para ti.
ALINE - Dizes isso... por ela ter vindo?
SOLNESS - Não, refiro-me... à nova casa, onde brevemente nos instalaremos.
ALINE - Essa nova casa não me interessa nem um pouco.
SOLNESS - É-me muito penoso ouvir-te falar assim. Porque se a construí foi principalmente pensando em ti.
ALINE - Tens feito tanta coisa para mim!...
SOLNESS - Não, Aline, não deves dizer isso! Não o posso consentir!
ALINE - Está bem, Halvard, calar-me-ei.
SOLNESS - Mas eu não me convenço do contrário. Vais ver que tudo te correrá bem na nova casa.
ALINE - Oh, para mim...
SOLNESS - Sim, sou eu quem te diz isso! Vais encontrar tanta coisa que te fará lembrar o teu antigo lar...
ALINE - O lar de meu pai e de minha mãe... Tudo o que se queimou...
SOLNESS - Sim, minha pobre Aline! Aquilo foi um golpe bem rude para tua alma.
ALINE - Podes construir tudo o que quiseres, Halvard... mas nunca tornarás a dar-me um verdadeiro lar!
SOLNESS - Pois bem, nesse caso, não falemos mais nisso.
ALINE - Não é nosso hábito falarmos nesse assunto. Tu sempre hás de repelir essas recordações.
SOLNESS - Eu? E por que o faria? Por quê?
ALINE - Oh, Halvard, eu te compreendo bem. Queres antes de tudo poupar-me. Fazes tudo o que podes.
SOLNESS - Tu! És mesmo tu que assim falas, Aline?
ALINE - Sim, sou eu mesma.
SOLNESS - Era só o que faltava!
ALINE - Porque a velha casa... meu Deus! O que aconteceu, aconteceu... Já que essa desgraça devia vir...
SOLNESS - Sim, tem razão. Nunca se pode impedir que a desgraça chegue.
ALINE - Mas as consequências do incêncio... essas horríveis consequências!... Oh, foi isso! Foi isso que...
SOLNESS - Não deves mais pensar nisso, Aline!
ALINE - Sei. Mas preciso pensar. Preciso, também falar disso, afinal! Não posso mais! E quando penso que nunca terei
o direito de me perdoar a mim mesma...
SOLNESS - A ti mesma?...
ALINE - Sim. Porque eu tinha deveres por dois lados. Para contigo e para com as crianças. Deveria ter sido forte. Não
me deixar abater nem pelo medo, nem pela dor de ter perdido o meu lar. Ah, se eu tivesse podido, Halvard.
SOLNESS - Aline... precisas prometer-me que nunca mais te deixarás invadir por pensamentos desta natureza.
Promete, vamos!
ALINE - Ora, meu caro! Prometer... prometer... Não custa nada prometer...
SOLNESS - Oh, não agüento mais! Nunca um pouco de sol, Nunca um simples raio de sol neste lar!
ALINE - Mas isto não é um lar, Halvard.
SOLNESS - Não. E bem o podes dizer. E sabe Deus se não tens razão... Sabe Deus se alguma coisa melhorará na
nova casa...
ALINE - Nada melhorará. Será sempre o mesmo vácuo, o mesmo deserto... tanto lá, quanto aqui.
SOLNESS - Mas então para que construir essa casa? Podes dizer-me?
ALINE - Não. Responde tu mesmo.
SOLNESS - Que queres dizer, Aline? Tens uma expressão tão estranha... Dir-se-ia que ocultas algum pensamento.
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ALINE - Não, asseguro-te que...
SOLNESS - É inútil tentares iludir-me. Eu sei o que sei. Tenho bons olhos e bons ouvidos, Aline, não duvides.
ALINE - Mas que há, santo Deus?
SOLNESS - Confessa que achas qualquer dissimulação, qualquer coisa de insidioso em todas as minhas palavras...
mesmo as mais inocentes.
ALINE - Eu?
SOLNESS - Compreende-se, Aline. Quando se tem de viver com um homem doente...
ALINE - Doente?... Estás doente, Halvard?
SOLNESS - Meio louco, pronto!... Um homem que já perdeu o juízo.
ALINE - Halvard... Por favor!
SOLNESS - Mas você se engana. Ainda não cheguei ao ponto que imaginam. No fundo, não tenho nada.
ALINE - Não, não é? Mas então de onde te vêm essas idéias?
SOLNESS - De onde elas me vêm? É que, de quando em quando, me sinto esmagado por essa dívida terrível.
ALINE - Uma dívida? Mas, Halvard, não deves nada a ninguém!
SOLNESS - Sim, estou endividado, terrivelmente endividado contigo... contigo... Aline.
ALINE - Que significa isso? Prefiro que me digas imediatamente.
SOLNESS - Não há nada de concreto. Nunca te fiz mal... pelo menos propositalmente, conscientemente. Sinto-me,
contudo, como esmagado pelo peso de uma dívida.
ALINE - É então verdade, Halvard: estás... estás doente.
SOLNESS - É possível. Ou, então, é coisa parecida. Ah, aqui está um raio de luz!
HILDA - Bom dia, senhor Solness.
SOLNESS - Dormiu bem?
HILDA - Admiravelmente. Como se estivesse num berço. Ah!... Estendi-me na cama como... como uma princesa.
ALINE - Agora, Halvard, preciso ir à cidade. Tratarei de conseguir-lhe certas pequeninas coisas de que poderá precisar.
HILDA - Oh, adorável senhora Solness! A senhora é realmente muito gentil.
ALINE - Faço apenas o meu dever e gosto de cumpri-lo. Até logo.
HILDA - Foi o senhor quem desenhou tudo isso?
SOLNESS - Não, é um rapaz que trabalha no meu atelier.
HILDA - Um rapaz a quem o senhor ensinou?
SOLNESS - Sim. Alguma coisa ele aprendeu aqui.
HILDA - Francamente! E eu que não sabia que era tão tolo...
ALINE - Tão tolo? Julga-me então muito tolo?
HILDA - Julgo-o sim. Para perder seu tempo ensinando a esses cabeças de vento...
SOLNESS - Como! Que há nisso de tão extraordinário?
HILDA - Ora, meu caro senhor Solness! Que quer! Só o senhor deveria ter o direito de construir. Pronto!
SOLNESS - Hilda!... De onde lhe vêm essas idéias?
HILDA - Por que pergunta? Acha-as assim tão aloucadas?
SOLNESS - Não, não é isso. É que vivo aqui, continuamente... a ruminar em silêncio na minha cabeça... esse
pensamento que acaba de exprimir.
Solness mostra a Hilda, pela janela, a casa nova. Diante de seu espanto ao saber que lá também haveria três quartos de crianças, sem crianças, Solness conta-lhe que ele e Aline tiveram, há treze anos, dois meninos, gêmeos que viveram apenas quinze dias. Logo depois do nascimento das crianças, sobreveio um incêndio que destruiu a velha propriedade da família de Aline onde o casal morava. Todos se salvaram mas Aline ficou extremamente abalada pelo medo e pela perda de tudo o que havia pertencido a seus pais. Teve a febre do leite mas insistiu em amamentar os bebês, pois considerava que este era o seu dever. As crianças não resistiram. A vida de Aline encerrou-se ali. Para Solness, apesar do sofrimento pela perda dos filhos, o incêndio representou
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o grande impulso de que sua carreira de construtor necessitava: ele loteou o terreno e ali construiu habitações, lares. Nunca mais, por livre e espontânea vontade, no entanto, Solness construiu nem igrejas nem campanários.
Hilda avalia que, feitas as contas, Solness deve ser um homem feliz. Ele discorda: se os outros acham que ele é um homem feliz, é porque não percebem o preço que ele teve de pagar por isto. Para dar às famílias lares onde é bom viver, ele teve de renunciar a ter sua própria família: depois do incêndio, Aline nunca recuperou totalmente a saúde. Os quartos de crianças são, para eles, a marca do impossível, do impossível que solicita e atrai. Hilda retoma o fio do raciocínio de Solness: se ele conhece o poder de sedução do impossível é porque para ele também há feitiçaria. Solness concorda: é inevitável que alguém constantemente favorecido pela sorte, como ele, acabe por tornar-se um pouco feiticeiro. No entanto, a moeda que ele ofereceu ao destino foi a felicidade, a dele e a de outros, especialmente Aline. Ela teria sido uma excelente mãe mas sua vocação foi destruída e de tudo o que ela poderia ter feito, nada restou. Esta é a culpa que atormenta Solness dia e noite.
SOLNESS - Suponha por um instante que eu tenha alguma culpa...
HILDA - O senhor!... Culpa do incêncio?...
SOLNESS - De tudo o que aconteceu. E talvez... inocente apesar de tudo.
HILDA - Oh, senhor Solness! Para falar dessa forma... é preciso que de fato esteja doente!
SOLNESS - Creio que nunca me restabelecerei.
(ENTRA RAGNAR)
RAGNAR- Queira desculpar-me, senhor Solness...
SOLNESS - Pelo que me disseram seu pai não está melhor?
RAGNAR- Meu pai está piorando cada vez mais. E isso me leva a suplicar-lhe que escreva numa dessas folhas
algumas palavras boas!... Qualquer coisa que eu possa mostrar ao pai antes dele...
SOLNESS - Não quero mais ouvir falar de todos esses desenhos!
RAGNAR- Examinou-os?
SOLNESS - Sim... examinei-os.
RAGNAR- E não valem nada? E eu tampouco, não valho nada?
SOLNESS - Ouça, Ragnar, fique aqui em casa. Você estipulará, você mesmo, as suas condições. Case-se com Kaia.
Não terá preocupações. Talvez mesmo venha a ser feliz. Mas renuncie a trabalhar por conta própria.
RAGNAR- Voltarei à casa para levar sua resposta a meu pai. Prometi-lhe fazer isso. Devo realmente dizer isso a meu
pai antes dele morrer?
SOLNESS - Diga-lhe... diga-lhe o que quiser. Andaria mais acertado se não lhe dissesse nada! Não posso agir de outro
modo, Ragnar!
RAGNAR- Nesse caso posso levar os desenhos?
SOLNESS - Sim, leve-os! Estão ali, em cima da mesa.
RAGNAR- Obrigado.
HILDA - Não, não! Deixe-os aí.
SOLNESS - Por quê?
HILDA - Quero vê-los.
SOLNESS - Mas se já os viu. Vamos. Deixe-os aí.
RAGNAR- Com muito prazer.
SOLNESS - E volte para junto de seu pai.
RAGNAR- Já que o permite...
SOLNESS - Não me deve pedir o impossível, Ragnar! Está ouvindo, Ragnar... Não deve...
RAGNAR- Está bem, desculpe-me. Já estou indo.
HILDA - Procedeu muito mal, agora.
SOLNESS - Mas ainda há pouco, a senhorita não dizia que só eu deveria ter o direito de edificar?
HILDA - Eu posso dizer isso. O senhor, não.
SOLNESS - Cabe principalmente a mim dizê-lo. Lembre-se do preço que me custou o lugar.
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HILDA - Sei-o perfeitamente. Custou-lhe a alegria do lar, como diz, e tudo mais que se segue...
SOLNESS - Sem falar na tranquilidade de minha alma. Vou lhe contar uma coisa interessante.
HILDA - Que é?
SOLNESS - À primeira vista, parece tratar-se de um gracejo. Imagine simplesmente uma fenda num cano de chaminé.
HILDA - Uma fenda num cano de chaminé?...
SOLNESS - Eu a tinha notado, muito tempo antes do incêndio. Toda vez que ia ao sótão, verificava se ela não havia
desaparecido.
HILDA - Não preveniu ninguém?
SOLNESS - Não.
HILDA - E não se lembrou de fazer consertar a chaminé?
SOLNESS - Sim... Lembrar-me, lembrei-me. Mas foi só. Todas as vezes que ia providenciar o conserto, eu tinha a
impressão de que qualquer coisa me impedia. Hoje não, pensava eu. Amanhã. E nunca se fez nada.
HILDA - Mas por que essa moleza?
SOLNESS - Porque eu tinha uma idéia. A sorte podia chegar-me por aquela fenda.
HILDA - Oh, como devia ser emocionante!
SOLNESS - Era-me impossível proceder de outro modo. Eu achava aquilo tão simples, tão natural. Eu queria que aquilo
acontecesse no inverno... um pouco antes do meio-dia. Nessa hora, Aline e eu estaríamos fora. Em casa, os criados
teriam acendido um bom fogo... Quando chegássemos já toda a casa estaria em chamas... Eis como eu queria que a
coisa viesse.
HILDA - Mas o senhor tem certeza de que foi aquela pequena fenda na chaminé que provocou o incêncio?
SOLNESS - Pelo contrário: tenho certeza que ela não foi a causa dele.
HILDA - Como assim?
SOLNESS - Está perfeitamente provado que o fogo se iniciou num guarda-roupa, na extremidade oposta da casa.
HILDA - Mas nesse caso, por que me fala da chaminé?
SOLNESS - Não acredita como eu, Hilda, que haja certos eleitos, certos homens excepcionais que tenham recebido a
graça, a faculdade, o poder de almejar uma coisa, de desejá-la, de querê-la... com tanta intensidade... tão
implacavelmente... que por fim a obtém? Não crê nisso?
HILDA - Se é assim, veremos um dia se estou no rol dos eleitos.
SOLNESS - Não é possível obter sozinho esses efeitos poderosos. Não. Para consegui-los, é necessário ter-se
ajudantes e servidores. Estes não se apresentam espontaneamente. É preciso chamá-los com persistência para que
venham. Chamá-los pelo pensamento, compreende?
HILDA - O senhor acredita que, se não tivesse desejado o incêndio, ele se teria dado da mesma maneira?
SOLNESS - Admitamos que a casa tivesse pertencido ao velho Knut Brovik. Ela nunca teria ardido tão a propósito.
Porque ele não sabe chamar em seu auxílio os ajudantes e os servidores. Está vendo bem, Hilda que, afinal, eu tenho
alguma culpa se a vida dos dois pequeninos foi sacrificada.
HILDA - Mas uma vez que foram esses ajudantes, esses servidores que...
SOLNESS - Quem os chamou a esses ajudantes, a esses servidores? Eu! Foi à minha vontade que eles vieram
submeter-se. Aí está o que se chama ter sorte. Pois bem! Vou dizer-lhe o que se sente, quando se tem essa sorte. É
como se se tivesse aqui, no peito, uma chaga viva. E os ajudantes, os servidores, vão cortando pedaços de pele dos
outros para enxertá-los nessa chaga. Mas a chaga jamais cura... Jamais... Jamais!
HILDA - Está doente, senhor Solness. Muito doente.
SOLNESS - Diga louco. É o que pensa.
HILDA - Não, não creio que o senhor esteja louco.
SOLNESS - Ah, Hilda, há pelo mundo uma tal quantidade de demônios que nós não vemos!...
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HILDA - Demônios também?
SOLNESS - Sim, demônios. Alguns bons, outros maus. Se pelo menos a gente soubesse de que demônios depende!
Então seria fácil entender-se com eles.
HILDA (PAUSA) - Diga-me, senhor Solness: tem certeza de nunca me ter chamado... pelo pensamento?
SOLNESS - Tenho quase certeza de que a chamei.
HILDA - Que queria de mim?
SOLNESS - Você é a juventude, Hilda.
HILDA - Essa juventude de que o senhor tem tanto medo?
SOLNESS - Essa juventude a que tanto aspiro. Eis a verdade.
HILDA - Então... Aqui estão aqueles desenhos...
SOLNESS - Deixe aí esses rabiscos...
HILDA - E as palavras que tinha de escrever?
SOLNESS - Escrever?... Isso nunca!
HILDA - Uma vez que o velho pai está para morrer!... Não lhes poderia dar essa alegria... ao filho e a ele? E além disso
esses desenhos talvez possam servir ao rapaz.
SOLNESS - Sem dúvida.Ele iria construir de acordo com esse plano.Foi uma oportunidade que ele mesmo se reservou.
HILDA - Pois, se é assim... não poderia o senhor pregar uma mentirazinha?
SOLNESS - Uma mentira? Hilda... vá embora com esses desenhos!
HILDA - Puxa! Que ferocidade! Não vai me morder, não é? Onde tem pena e tinta?
SOLNESS - Não há aqui.
HILDA - Mas acharei ali, com aquela senhorita.
SOLNESS - Fique, Hilda!... Eu deveria mentir, disse você. Oh, sim. Poderia fazê-lo por causa do velho pai que em
outros tempos arruinei...
HILDA - Como os outros?
SOLNESS - Eu precisava de lugar. Mas quanto a esse Ragnar... Não! Não quero que ele suba. Por nada deste mundo!
HILDA - Pobre rapaz! Não é provável que o consiga. Já que ele não serve para nada...
SOLNESS - Se Ragnar Brovik triumfar, ele me derrubará, me destruirá, como eu destruí o pai dele.
HILDA - Ele o destruirá? Então tem algum valor?
SOLNESS - Ah, sim, pode ter certeza! Ele faz parte dessa juventude que está pronta a bater-me à porta... a liquidar o
grande construtor Solness.
HILDA - E o senhor não quer abrir!... É lamentável!
SOLNESS - Paguei minha vitória com o meu sangue!... E além disso, tenho medo de perder meus ajudantes e meus
servidores.
HILDA - Ora, o senhor trabalhará só, se não houver outro meio.
SOLNESS - Seria em vão, Hilda. A reviravolta virá de qualquer forma... mais cedo ou mais tarde. Não se esqueça de
que a expiação obedece a seu próprio fatalismo... e não se deixa manobrar.
HILDA - Não fale assim! Quer matar-me!... Quer tirar-me o que prezo mais do que a vida?
SOLNESS - Que é?
HILDA - A felicidade de vê-lo grande... de vê-lo um dia com uma coroa nas mãos. Alto, bem no alto de uma torre de
igreja! Vamos, um lápis, depressa! Tem, ao menos um lápis consigo?
SOLNESS - Aqui tem um.
HILDA - Está bem. Agora escreva
Por insistência de Hilda, Solness escreve algumas palavras nos desenhos de Ragnar. Pergunta-lhe, então, seriamente por que veio. Ela reitera que veio em busca de seu reino. Aline chega com vários embrulhos: são as compras que fez para Hilda. Solness devolve os desenhos a Kaia e demite-a, bem como a Ragnar. Kaia,
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trêmula, obedece e parte. Aline inquieta-se com esta decisão, mas seu marido afirma-lhe que sua única preocupação agora deve ser a inauguração da casa nova: ainda esta tarde a coroa será colocada no alto da torre. Hilda entusiasma-se com a oportunidade de ver mestre Solness subir novamente a uma altura vertiginosa. Aline, no entanto, não acredita que seu marido, que sofre de vertigens a ponto de não poder manter-se firme na varanda de um segundo andar, queira subir. Ao perceber que a situação é séria, ela se apavora e decide escrever ao Dr. Herdal para que venha impedir esta loucura. Hilda não se conforma com o que acabou de ouvir. HILDA - Isso é verdade? Sim ou não?
SOLNESS - Que sou sujeito a vertigens?
HILDA - Que meu arquiteto não ouse... não possa subir tão alto quanto o que ele constrói?
SOLNESS - É assim que interpreta as coisas?
HILDA - Sim.
SOLNESS - Dir-se-ia que nem um recanto em mim lhe escapa.
HILDA - Lá em cima! Bem no alto!...
SOLNESS - Lá, num quarto, bem no alto da torre, você poderia morar, Hilda. Ficaria instalada... como uma princesa.
HILDA - Sim. Foi o que o senhor me prometeu.
SOLNESS - É verdade mesmo que lhe prometi?...
HILDA - Que pergunta! O senhor me disse que eu me tornaria princesa, e que me daria um reino. E depois o senhor...
SOLNESS - Tem certeza de que não foi uma espécie de sonho... de alucinação?
HILDA - Como! Então isso não aconteceu?
SOLNESS - Eu mesmo não sei. Mas o que agora sei, é que...
HILDA - É que?... Diga!
SOLNESS - ... é que deveria ter acontecido.
HILDA - Não. O senhor não sofre de vertigem!
SOLNESS - Esta tarde colocaremos a coroa... princesa Hilda!
HILDA - Sim. Sobre o seu novo lar.
SOLNESS - Sobre a nova casa... que para mim nunca será um lar.
HILDA - Terrivelmente emocionante!
TERCEIRO ATONa varanda da casa de Solness: dali vê-se o jardim e parte da casa nova, especialmente a torre ainda cercada
pelos andaimes. O sol poente dá uma coloração dourada à cena. Aline Solness, envolta num grande xale de
crepe branco, repousa numa poltrona. Logo chega Hilda vindo do jardim com um pequeno ramo de flores do
campo enfeitando a blusa.
ALINE - Percorreu o jardim, senhorita Wangel?
HILDA - Sim, dei um passeio.
ALINE - E encontrou flores, pelo que vejo... Quase nunca vou por ali. Tenho a impressão de não estar mais no que é
meu. Parece-me que ele nem me pertence mais.
HILDA - Por que diz isso?
ALINE - Não, não é mais o meu jardim. Não é mais o mesmo do tempo de meus pais. Ah! senhorita Wangel, se
soubesse como o mutilaram... a esse pobre jardim. Construíram nele casas para estranhos, para gente que eu não
conheço... e que de suas janelas pode me ver.
HILDA - Diga-me uma coisa, Senhora Solness...
ALINE - Que é?
HILDA - Permite-me ficar um momento a seu lado?
ALINE - Com muito prazer... se isso lhe dá prazer também.
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HILDA - Ah! como se está bem aqui! Como é bom a gente se aquecer, como um lagarto ao sol!
ALINE - É uma gentileza de sua parte ficar aqui perto de mim. Eu pensei que fosse ter com meu marido.
HILDA - Para quê?
ALINE - Para ajudá-lo.
HILDA - Muitíssimo obrigada. Aliás, ele está lá com os operários! Eu o vi, mas tinha o aspecto tão carrancudo, que não
me arrisquei a abordá-lo.
ALINE - E, contudo, ele tem uma natureza tão meiga, tão terna!...
HILDA - Ele?
ALINE - Ainda não o conhece bem, senhorita Wangel.
HILDA - Está contente por ir morar na casa nova?
ALINE - Deveria estar, porque é esse o desejo de Halvard.
HILDA - Não é assim que eu compreendo as coisas.
ALINE - Sim, senhorita Wangel. É um dever, para mim, fazer a vontade dele. Mas obedecer, não é sempre muito fácil.
HILDA - Quando se passou por tantas provações...
ALINE - Como o sabe?
HILDA - Seu marido me disse.
ALINE - É tão raro ele se abrir comigo... Sim, senhorita Wangel, sofri muitas provações na minha vida, pode crer!...
HILDA - Pobre Senhora Solness! Primeiro esse incêndio...
ALINE - Sim, tudo que me pertencia se queimou.
HILDA - E isso não é ainda o mais triste.
ALINE - E que mais então?
HILDA - Perderam dois filhinhos.
ALINE - Ah! sim. Mas isso é outra coisa.Era um decreto da Providência.Devemos submeter-nos dando graças aos céus.
HILDA - Mas não vejo...
ALINE - Sim, senhorita Wangel... Não me fale mais dessas duas criancinhas. Só devemos pensar na felicidade delas.
São agora tão felizes... tão felizes! Não, o que despedaça a alma são as pequenas perdas da vida... a perda daquilo que
para os outros não significa nada, nada. Meu Deus! Todos aqueles velhos retratos pendurados nas paredes e os velhos
vestidos de seda... Estavam na família desde tempos imemoriais. E as velhas rendas feitas por minha mãe e por minha
avó... Tudo isso se foi!... Imagine só... até as minhas jóias! (Com um suspiro profundo) E todas as bonecas!...
HILDA - As bonecas?...
ALINE - Eu tinha nove bonecas encantadoras.
HILDA - E todas se queimaram?
ALINE - Todas! Oh, isso me causou tanto pesar, tanto!
HILDA - Sim? A senhora tinha conservado todas essas bonecas? Desde a infância?
ALINE - Não as conservei. As bonecas e eu continuamos a viver juntas.
HILDA - Mesmo depois que a senhora ficou grande?
ALINE - Sim, muito tempo depois.
HILDA - Depois que se casou?
ALINE - Sim. Quando ele não me via, eu... Mas o fogo destruiu-as todas, as pobrezinhas! Ninguém se lembrou de salvá-
las... Oh! Fico tão triste ao pensar nisso... Não deve rir-se de mim, senhorita Wangel.
HILDA - Eu não rio, absolutamente.
ALINE - Porque elas tinham uma espécie de vida. Eu as trazia dentro do coração, como criancinhas que estivessem por
nascer.
O Dr. Herdal chega atendendo ao chamado de Aline e toma conhecimento da intenção de mestre Solness de subir à torre para colocar ele mesmo a coroa que celebrará a inauguração da casa nova. Ao perceber que seu
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marido se aproxima, Aline recomenda a Hilda que, pelo amor de Deus, tire-lhe esta idéia da cabeça. Em seguida, entra em casa com o Doutor. Solness comenta que sua mulher sempre se retira quando ele chega mas que isso lhe causa uma espécie de alívio: é-lhe muito penoso contemplar sempre o sofrimento e a tristeza de Aline. Depois de um silêncio, Hilda comunica que decidiu partir. Solness não se conforma mas ela não vê possibilidade de ficar depois de ter-se tornado amiga da Sra. Solness. Ele fica desesperado: o que será de sua vida depois que Hilda partir?
SOLNESS - De agora em diante não farei mais grande coisa.
HILDA - Já sei o que o senhor construirá!
SOLNESS - Pois bem! Diga! Que será?
HILDA - O castelo. Não me prometeu um reino?
SOLNESS - Sim! É o que deve ser feito.
HILDA - Pois então! Depressa! Construa-o.
SOLNESS - Como assim?... Imediatamente?
HILDA - Sim! Os dez anos estão decorridos e não quero mais esperar. Vamos, vamos, meu castelo, depressa!
SOLNESS - Confesso que não é brincadeira dever-lhe alguma coisa, Hilda.
HILDA - Não devia ter prometido.Agora é demasiado tarde. Vamos!Que saia o castelo!Ele é meu!Eu o quero. Aqui. Já!.
SOLNESS - Será permitido ao construtor subir aos aposentos da princesa?
HILDA - Se o construtor quiser.
SOLNESS - Nesse caso creio que o construtor irá.
HILDA - Sim... o construtor irá.
SOLNESS - Mas depois disso ele deixará de edificar... o pobre construtor.
HILDA - Oh! não! Edificaremos juntos o que há de mais delicioso no mundo.
SOLNESS - Hilda!... Diga-me o que é.
HILDA - Esses construtores são pessoas bem... bem bobas!
SOLNESS - Sim, já se sabe disso. Mas, diga-me, que é que vamos construir juntos?
HILDA - Castelos no ar!
SOLNESS - Castelos no ar?
HILDA - Sim, realmente! Eles são tão acessíveis, os castelos no ar... E tão fáceis de construir... Principalmente para os
arquitetos propensos a vertigens.
SOLNESS - De agora em diante, Hilda, construiremos juntos.
Entra Ragnar Brovik trazendo a coroa de folhagens, enfeitada com flores e fitas de seda.
HILDA - A coroa! Oh! Como vai ser esplêndido!
SOLNESS - É você, Ragnar, quem traz a coroa?
RAGNAR - Prometi ao contramestre trazê-la.
SOLNESS - Vejo que seu pai melhorou.
RAGNAR- Não.
SOLNESS - Não o reconfortou ler o que eu escrevi à margem dos seus desenhos?
RAGNAR- Chegou tarde. Quando ela trouxe a pasta, ele havia perdido os sentidos.
SOLNESS - Mas então volte para casa! Vá cuidar de seu pai!
RAGNAR- Ele não precisa mais de mim.
SOLNESS - Mesmo assim. Você há de querer ficar perto dele.
RAGNAR- Ela está lá para velá-lo.
SOLNESS - Quem? Kaia?
RAGNAR- Sim, Kaia...
SOLNESS - Volte para casa, Ragnar. Fique com eles. E dê-me a coroa.
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RAGNAR - Não é o senhor que?
SOLNESS - Sou eu quem a dependurará... E agora volte. Não precisamos de você hoje.
RAGNAR - Sei que não precisa mais de mim. Mas, hoje, ficarei.
SOLNESS - Pois fique, já que faz tanta questão.
HILDA - É daqui que ficarei olhando para o senhor.
SOLNESS - Para mim?
HILDA - Vai ser muito comovente.
SOLNESS - Tornaremos a falar nisso, Hilda.
HILDA - Parece-me que o senhor bem podia ter agradecido.
RAGNAR- Agradecer-lhe?... A ele?...
HILDA - Sim. Era o que deveria ter feito.
RAGNAR - Era à senhora que eu deveria agradecer.
HILDA - Como assim?
RAGNAR - Mas tome cuidado, senhorita Wangel! A senhora ainda não o conhece.
HILDA - Oh! Eu o conheço melhor do que ninguém.
RAGNAR - Agradecer a ele! Ele, que durante anos me conservou na obscuridade! Ele, que é a causa de meu pai ter
duvidado de mim... de eu mesmo ter duvidado de mim!... E tudo isso por quê?
HILDA - Por quê? Diga depressa!
RAGNAR - Porque queria que ela ficasse junto dele.
HILDA - A senhorita da escrivaninha?
RAGNAR- Sim.
HILDA - É falso! O senhor mente!
RAGNAR- Eu não acreditei até que ela me dissesse... hoje mesmo.
HILDA - Que disse ela? Quero saber! Depressa! depressa!
RAGNAR - Ela me disse que ele fizera com que ela perdesse o juízo, que ele se apoderara de todos os seus
pensamentos, que ela nunca se poderia afastar dele, que sempre lhe seria dedicada...
HILDA - Ela não tem esse direito!
RAGNAR - E quem lhe proíbe?
HILDA - Ele mesmo, entre outros!
RAGNAR - Agora compreendo tudo. Daqui por diante ela se tornaria um obstáculo.
HILDA - O senhor não compreende nada!... Eu lhe direi o motivo pelo qual ele a queria.
RAGNAR - Sim, diga. Por quê?
HILDA - Para conservar o senhor com ele.
RAGNAR-- Foi ele quem lhe disse isso?
HILDA - Não. Mas é a verdade! É preciso que seja verdade! Eu quero... quero que seja verdade.
RAGNAR - E foi justamente quando a senhora chegou ... que ele a largou.
HILDA - Foi o senhor... o senhor quem ele largou! Julga por acaso que ele seja homem capaz de se preocupar com
qualquer senhorita?
RAGNAR-- Será que ele teve medo de mim durante todo esse tempo?
HILDA - Medo?... Ele?... O senhor é realmente muito presunçoso!
RAGNAR - Oh! Ele terá percebido, há muito tempo, que eu também prestava para alguma coisa. Quanto ao medo...
Solness não é inacessível a ele.
HILDA - Ora, deixe-se disso!
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RAGNAR - Sim, é como lhe digo. Esse grande construtor... que não receia destruir a felicidade dos outros, que agiu
como agiu com meu pai e comigo... tem medo de subir a um simples andaime. Oh! Quanto a isso ele nunca se animará.
HILDA - Ah! Devia tê-lo visto na altura em que o vi! Era de se ter vertigem.
RAGNAR - A senhora viu isso?
HILDA - Sim, eu o vi. Livre e altivo, de pé, no cimo de uma torre de igreja! E lá suspendeu a coroa!
RAGNAR - Eu sei que ele se animou a fazê-lo uma vez na vida. Uma única vez. Entre nós, os moços, esse fato foi
muito comentado. Mas nenhuma força humana será capaz de o fazer repetir a façanha.
HILDA - Verá isso, hoje!
RAGNAR - Ah! sim? Havemos de ver!
HILDA - Certamente.
RAGNAR - É mais fácil vir o mundo abaixo.
HILDA - Eu quero vê-lo. Eu quero e assim será!
RAGNAR - Ele não se animará. O grande construtor... tem medo!
ALINE - Ele não está aqui! Onde estará?
RAGNAR - O senhor Solness está com os operários.
HILDA - Levou a coroa com ele.
ALINE - A coroa! Oh! meu Deus... Meu Deus! Vá procurá-lo Ragnar! Procure trazê-lo!
RAGNAR - Devo dizer a ele que a senhora quer falar-lhe?
ALINE - Não, não lhe diga isso! Diga-lhe que alguém o espera... e que ele venha imediatamente.
RAGNAR - Está bem, senhora. Vou já.
ALINE - Senhorita Wangel, não pode imaginar as angústias que ele me causa.
HILDA - Mas o que há nisso de tão apavorante?
ALINE - A senhora deve compreender. Imagine só se, de fato, ele resolveu subir no andaime...
HILDA - Acredita que o faça?
ALINE - Oh! Nunca se sabe do que ele é capaz!
HILDA - A senhora então o julga... como direi...?
ALINE - Nunca se sabe do que ele é capaz. Por favor, retenha-o com as duas mãos, peço-lhe. Preciso receber a
senhoras que estão chegando para a inauguração da casa nova. É minha obrigação.
HILDA - Não seria melhor a senhora mesma tentar retê-lo?
ALINE - Sim, meu Deus! Seria meu dever. Mas quando se tem deveres por todos os lados...
Aline entra em casa, enquanto Solness aproxima-se pela escada que vem do jardim.
SOLNESS - Disseram-me que há aqui alguém perguntando por mim.
HILDA - Sim, senhor Solness: sou eu.
SOLNESS - Ah! é você, Hilda? Estava com medo que fossem Aline e o Doutor.
HILDA - O senhor facilmente tem medo.
SOLNESS - Acredita?
HILDA - Sim, dizem que o senhor tem medo de subir nos andaimes.
SOLNESS - Isso é uma outra história.
HILDA - Então é verdade?
SOLNESS - Sim, é verdade!
HILDA - Tem medo de cair e de morrer?
SOLNESS - Não.
HILDA - Então, de que é que tem medo?
SOLNESS - Temo a expiação, Hilda.
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HILDA - A expiação? Não compreendo.
SOLNESS - Eu lhe disse que comecei a vida construindo igrejas.
HILDA - Sim, sei.
SOLNESS - Nada me parecia mais grandioso do que construir igrejas. E ouso dizer que todas essas pobres igrejas, eu
as construí com tanto zelo, fervor e piedade que... Que eu julgava realmente ter contentado àquele cuja glória elas
deviam celebrar.
HILDA - Ah! Muito bem! Mas como sabe que Ele não está satisfeito com o senhor?
SOLNESS - Ele, satisfeito comigo? Como pode crê-lo, Hilda? Ele, que desencadeou toda essa feitiçaria em cima de
mim! Ele, que mandou para me servirem, dia e noite... todos esses... todos esses...
HILDA - Todos esses demônios...
SOLNESS - Sim, esses demônios de toda espécie. Ah! Não! Eu senti perfeitamente que Ele não estava satisfeito
comigo. Foi por isso, sabe, que Ele fez com que a velha casa se incendiasse.
HILDA - Sim? Foi por isso?
SOLNESS - Não compreende? Era para me ajudar a me tornar um verdadeiro mestre... a fim de que as minhas igrejas
O honrassem mais. No começo eu não compreendia, mas de repente meus olhos se abriram.
HILDA - Em que época?
SOLNESS - Foi quando eu construía o campanário de Lysanger.
HILDA - Que fez o senhor?
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SOLNESS - Fiz o impossível. Exatamente como Ele.
HILDA - O impossível?
SOLNESS - Até então, eu nunca pudera atingir livremente as alturas. Nesse dia eu o fiz.
HILDA - Sim, o senhor o fez!
SOLNESS - E quando cheguei bem no alto, no momento de pendurar a coroa, eu disse:’’Ouve-me, Todo-Poderoso!
Daqui por diante quero ser senhor no meu domínio, como Tu o és no Teu. Nâo Te construirei mais igrejas: construirei
somente habitações para os homens.’’
HILDA - Foi esse o canto que ouvi nos ares.
SOLNESS - Mas tudo isso foi pregar no deserto.
HILDA - Que quer dizer com isso?
SOLNESS - Construir habirações para os homens, Hilda... não vale nada.
HILDA - O senhor acha?
SOLNESS - Sim. Porque hoje vejo que os homens pouco se interessam pelo seu lar. Eles não encontram a felicidade
ali. Não edifiquei nada de sólido, nem sacrifiquei nada para construir alguma coisa que pudesse durar. Nada, nada!
HILDA - E daqui por diante o senhor não construirá mais nada?
SOLNESS - Pelo contrário! Agora é que vou começar.
HILDA - Como? Diga-me como!
SOLNESS - Quero construir um edifício para nele instalar a felicidade humana... o único em que ela pode morar.
HILDA - Mestre Solness... o senhor está pensando no nosso castelo no ar...
SOLNESS - Sim, estou pensando no nosso castelo no ar...
HILDA - Receio que tenha uma vertigem, antes de alcançarmos a metade do caminho.
SOLNESS - Não, Hilda. Não haverá vertigens... se caminharmos de mãos dadas, você e eu.
HILDA - Mas então quero vê-lo escalar a torre, sem receio, até o alto.
SOLNESS - Não, Hilda, essas coisas não se repetem todos os dias.
HILDA - Mas eu quero! Eu quero! Ainda uma vez, uma só! Sim? Faça o impossível!
SOLNESS - Se conseguir fazê-lo, Hilda, me elevarei até Ele e Lhe falarei mais uma vez.
HILDA - E que Lhe dirá?
SOLNESS - Direi: ‘’ Ouve-me, Senhor Todo-Poderoso e julga-me como Te aprouver. Mas daqui por diante só construirei
uma coisa... a mais doce que há no mundo...’’
HILDA - Sim... sim... sim!...
SOLNESS - ‘’ E quero construí-la em companhia de uma princesa a quem amo... ’’
HILDA - Sim, sim, diga-Lhe isso!
SOLNESS - ‘’ Agora eu a tomarei em meus braços e a cobrirei de beijos... ’’
HILDA - ... de mil beijos! Diga-Lhe isso!
SOLNESS - ... ’’ de mil e mil beijos!’’ Eu Lhe direi isso!
HILDA - E depois?
SOLNESS - E então, abanarei com o chapéu... descerei... e farei como disse a Ele.
HILDA - Ah! Foi assim que o senhor me apareceu quando ouvi um cântico nos ares.
SOLNESS - Como foi que você se tornou o que é hoje, Hilda?
HILDA - Como foi que o senhor me fez tal qual eu sou?
SOLNESS - A princesa terá o seu castelo.
HILDA - Oh! Mestre!... Meu lindo castelo!... Nosso castelo!...
Vê-se, por entre as árvores do jardim, a pequena multidão que chegou para presenciar a inauguração. Música de fanfarra. O Doutor, Aline e as visitas vêm para a varanda. Ragnar avisa que está tudo preparado.
RAGNAR - O contra-mestre manda dizer-lhe que está pronto para subir a fim de pendurar a coroa.
SOLNESS - Está bem. Vou até lá.
ALINE - Que vais fazer lá, Halvard?
SOLNESS - Devo estar entre os meus homens.
ALINE - Sim, mas ficarás embaixo, não é?
SOLNESS - Não é esse o meu hábito?...
Aline e o Doutor juntam-se à multidão. Na varanda ficam apenas Hilda e Ragnar Brovik.
RAGNAR - Está vendo, senhorita, todos aqueles rapazes lá?
HILDA - Sim.
RAGNAR - São os camaradas que vieram para ver o Mestre.
HILDA - Por que querem vê-lo?
RAGNAR - Porque eles sabem que ele tem medo de subir na sua própria casa... e eles fazem questão de constatá-lo.
HILDA - Realmente? Queridos rapazes...
RAGNAR - Ele nos manteve tanto tempo embaixo... Hoje é a nossa vez de vê-lo embaixo.
HILDA - Não, não o verão!
RAGNAR - Ora essa! E que é que veremos então?
HILDA - Vocês o verão lá em cima, bem no alto!
ALINE - Olhem! Ali está o contramestre na escada. Está levando a coroa.
RAGNAR - Mas é...
HILDA - O construtor, ele mesmo!
ALINE - Sim, é Halvard! Deus Todo-Poderoso! Halvard! Halvard! Quero ir ter com ele! Quero que ele desça!
HILDA - Está subindo! Subindo! Cada vez mais alto. Sempre mais alto! Olhem! Olhem!
RAGNAR - É preciso que ele desça. Não deve continuar.
HILDA - Vai subindo! Vai subindo! Está quase no alto. Ei-lo de pé, sobre as últimas tábuas! Bem no alto! Enfim!...Enfim!
Torno a vê-lo livre e grande!
RAGNAR - Sim, mas...
HILDA - Durante dez anos eu o vi assim. Como ele está firme! Oh! Como é impressionante! Olhe-o! Pendurou a coroa!
RAGNAR - Parece-me impossível o que estou vendo!
HILDA - Sim, é o impossível! Não vê outra pessoa lá em cima?
RAGNAR - Não. Não vejo ninguém.
HILDA - Sim!... Ele está discutindo com alguém.
RAGNAR - A senhorita está enganada.
HILDA - Não ouve um cântico no ar?
RAGNAR - É o vento que sopra nas árvores.
HILDA - Ouço um cântico... um cântico poderoso. Veja! Veja! Tirou o chapéu! Está saudando cá para baixo. Porque a
obra está realizada. Viva Mestre Solness!
Hilda apanha o xale branco de Aline e agita-o. Todos agitam lenços e dão vivas a Mestre Solness. Subitamente o silêncio se instala e depois a multidão lança um grito de terror. Vislumbra-se em meio às árvores um corpo que cai entre as vigas e tábuas. Aline desmaia. Doutor Herdal corre com outros homens em direção aos andaimes. Ragnar está completamente paralisado, trêmulo, ao lado de Hilda que exclama com uma expressãode desvario e triunfo:
HILDA - Meu mestre!... meu mestre!
FIM DO TERCEIRO E ÚLTIMO ATO
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