Post on 25-Nov-2021
12º Encontro da ABCP
18 a 21 de agosto de 2020
Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa (PB)
Área Temática: Teoria Política
A HEGEMONIA EM A. GRAMSCI E SEUS ASPECTOS JURÍDICO-POLÍTICOS: O CASO
FRANCÊS
Sabrina Areco
Doutora em Ciência Política (UNICAMP)
Resumo
Este artigo explora o conceito de hegemonia nos Quaderni del carcere (1929-1935) escritos
por Antonio Gramsci (1891-1937) tendo como objeto a análise da França e da Revolução
Francesa. Essa experiência foi tratada pelo autor como emblemática na construção da
hegemonia e, por isso, mobilizada em diferentes momentos de seus escritos. Pretende-se
demonstrar como os elementos jurídicos e as disputas parlamentares aparecem na
elaboração do conceito de hegemonia sob dois eixos articulados: mobilizam tanto os
agentes políticos como os grupos sociais que demandam mudanças (em especial, os
estratos populares do campo); do que se depreende a existência de uma politização desse
estrato. Pretende-se assim destacar neste artigo a importância dos elementos jurídicos e da
política parlamentar francesa na elaboração do conceito de hegemonia, tratados por
Gramsci como instrumentos para a obtenção do consenso.
Palavras-chave: hegemonia. Antonio Gramsci. Revolução francesa (jacobinos).
Abstract
This article explores the concept of hegemony in the Quaderni del carcere (1929-1935)
written by Antonio Gramsci (1891-1937) with the object of analyzing France and the French
Revolution. This experience was treated by the author as emblematic in the construction of
hegemony and, therefore, mobilized in different moments of his writings. It is intended to
demonstrate how the legal elements and parliamentary disputes appear in the elaboration of
the concept of hegemony under two articulated axes: they mobilize both political agents and
social groups that demand changes (in particular, the popular strata of the field); than it
appears that there is a politicization of this stratum. It is intended, therefore, to highlight in
this article the importance of legal elements and French parliamentary policy in the
elaboration of the concept of hegemony, treated by Gramsci as instruments for obtaining
consensus.
Key words: hegemony. Antonio Gramsci. French revolution (jacobins).
2
INTRODUÇÃO
O intelectual e militante político A. Gramsci (1891-1937) tem na noção de hegemonia
uma de suas principais contribuições à teoria política do século XX1. O autor construiu o
conceito abordando diferentes processos históricos, colocando-os em confronto ou
identificando similaridades, de maneira a construir uma noção de hegemonia que tivesse
capacidade explicativa mais ampla, isto é, que conseguisse lidar com uma variedade de
casos empíricos aproximando-se de uma teoria geral das relações de forças sociais e
políticas que dão sustentação e fundamento ao Estado integral. Junto a essa capacidade
explicativa mais geral, o conceito de hegemonia também foi operacionalizado considerando
a configuração particular de cada experiência analisada. O conceito de hegemonia aparece,
portanto, entre o esforço de generalização ligado à construção de uma teoria das relações
de forças e à análise de casos particulares, com referência a diferentes países e contextos
históricos diversos2.
Este artigo explora o desenvolvimento do conceito de hegemonia de Gramsci
tratando do aporte da Revolução francesa ao tema. Na abordagem sobre a Revolução na
França, grande parte da atenção do autor foi delegada aos jacobinos, tratado como grupo
político que conseguiu dirigir a classe revolucionária para suas conquistas mais estáveis (Q.
1; Q. 13; ARECO, 2018)3. Considerando que a luta pela hegemonia conduzida pelos
1 O conceito tem diferentes origens ou fontes e uma trajetória particular na reflexão gramsciana. Emuma bastante breve síntese da literatura mais recente, ao conceito de hegemonia foram atribuídas asseguintes ascendências teóricas e históricas: 1) o debate linguístico da virada do século (PIPARO,1979); 2) a experiência vivida na URSS entre 1922-1923, no contexto de construção do Estadoproletário (THOMAS, 2018) e as ideias Lenin, assim como os debates políticos e culturais ligados àdiversidade étnica e linguística russa (SCHIRRU, 2008, 2011); 3) a filosofia de B. Croce, o que levariaa uma audaciosa articulação do neo-idealismo com o marxismo (MATTEUCCI, 1951) e 4) a históriafrancesa e a construção do Estado moderno no século XVIII, em especial a fase jacobina (1793-1794)(MÉDICI, 2000). 2Como observou Buttigieg (1990, p. 64) sobre a forma de elaboração teórica em Gramsci:“Certamente, quando fragmentos ou partes determinadas de uma informação ou observaçõesespecíficas levam a uma intuição geral ou generalizante qualquer, a generalização não alcança ostatus de uma teoria global que atribui às particularidades um significado definido, ficando autônomaem face delas. As generalizações ou os conceitos não estão nunca completos ou acabados; estãosempre numa relação fluida, crescentemente complexa diante de outras generalizações ouconceitos”. 3 Q. designa o caderno seguido do número do mesmo. Doravante utilizaremos § para indicar oparágrafo citado dos Q. Utiliza-se a edição crítica dos Quaderni del carcere (GRAMSCI, 1975) e aedição nacional (GRAMSCI, 2017) quando citado o Q. 1.
3
jacobinos dependeu tanto de sua aliança com estratos populares quanto das conquistas no
âmbito jurídico-político, a ideia de Gramsci é que tais elementos - a política radical dos
jacobinos e a noção de direito ligada aos princípios da Declaração de 1789 - estavam
entrelaçados e iam adaptando-se e sendo reformulados em razão das lutas colocadas pelo
contexto. Nesse aspecto, Gramsci notou alguns elementos que encontram ressonância em
produções historiográficas recentes e que identificaram que os jacobinos colocaram em
questão os princípios do livre mercado e do direito de propriedade. Isso foi feito com a
regulamentação econômica e com a formulação da ideia de direito à existência como
contraponto à propriedade privada (BOSC, 2013; GAUTHIER, 1992, 1985).
Portanto, o que se pretende explicitar é que, considerando a experiência francesa, a
hegemonia dependeu de um conjunto de instrumentos que tem nos elementos jurídicos
relevância de primeira ordem. Os revolucionários apoiaram-se em uma linguagem jurídica,
em especial nos chamados direitos naturais e imprescritíveis, a saber, liberdade, segurança,
propriedade e a resistência à opressão4. Não obstante, a atuação dos mesmos dependeu da
capacidade de adaptação desses mesmos princípios, daí a importância também da atuação
parlamentar dos jacobinos, como uma arena na qual as elaborações acerca dos direitos
naturais eram colocadas em disputa.
O tema será tratado neste artigo considerando também que a noção de hegemonia
sofreu uma mudança no interior dos Q. (Quaderni del carcere), passando de uma definição
mais restrita e ligada aos elementos políticos institucionais e à função de direção de uma
classe ou grupo sobre as demais; para uma concepção na qual a hegemonia passava a ser
entendida como um processo no qual se articulam dominação e direção e que, no caso
francês, conjugou movimentos sociais e um tipo de linguagem particular - a linguagem
jurídica.
I. HEGEMONIA (POLÍTICA)
O caso da França do século XVIII foi mobilizado em diferentes momentos dos Q., ao
qual Gramsci considerou que deveria ser “aplicado ao exame dos estudos históricos
concretos” (Q. 4, § 39, p. 707)5. A hegemonia naquele país foi conquistada - de acordo com
4Os direitos naturais foram proclamados no artigo 2 da Declaração dos direitos dos homem e docidadão. A declaração foi preâmbulo da Constituição de 1789, que instaurou uma monarquiaconstitucional, e na Constituição de 1791, que transferiu a soberania ao povo.5Sobre a presença da França no pensamento do autor ver: GERVASONI, 1998. A Revolução
4
o autor dos Q. - através de uma longa e radical revolução que promoveu uma ruptura com a
antiga ordem. Essa ruptura a diferencia de outros processos políticos históricos, como no
caso italiano, no qual a revolução (que ele chamou de passiva) mobilizou sobretudo grupos
dominantes, em especial a aristocracia rural e forças estatais que dirigiram o processo de
Unificação. Por isso, neste último caso, não houve a superação do passado, mas um arranjo
no qual as antigas forças sociais mantinham-se e davam um contorno do Estado italiano
pós-Risorgimento no qual se excluíam as demandas das massas populares (Q. 19).
O que particularizou a experiência francesa, para Gramsci, foi a atuação dos
jacobinos. Eles foram tratados como um partido radical e vinculado às necessidades da
burguesia. Não obstante, não atuaram circunscritos às necessidades imediatas e sim
orientados por um projeto futuro e que, portanto, deveria considerar as formas de
estabilização das conquistas da classe (Q. 13; ARECO, 2018; MÉDICI, 2000). Em um
processo no qual a classe burguesa construía sua hegemonia, a legislação foi um elemento
crucial para a definição da República. Com o período jacobino, as tensões entre os
parlamentares e os movimentos sociais, em especial com os camponeses, foram de certo
modo dirimidas pela assumpção dos jacobinos às reivindicações populares.
No Q. 1, § 44 (p. 48) Gramsci tratou dos jacobinos e iniciou sua reflexão acerca do
conceito de hegemonia. Intitulado Direzione politica di classe prima e dopo l’andata al
governo [Direção política de classe antes e depois da chegada ao governo], apontou que a
classe deve ser dominante de duas formas: dirigente dos aliados e dominante das classes
adversárias; e que ela “pode e deve ter uma “hegemonia política” também antes da chegada
ao Governo e que não pode contar apenas com o poder e a força material que esse dá para
exercitar a direção ou hegemonia política”. Deve-se notar, aqui, nesta primeira utilização do
termo hegemonia, sua adjetivação como política; a utilização de aspas e o sentido atribuído
ao termo como exercício de direção ou supremacia (COSPITO, 2009, p. 266).
Gramsci explorava então a questão territorial italiana articulada com a atenção a sua
composição. A fragmentação que pode ser tratada como a oposição entre o Norte urbano e
o Sul rural na Itália aparece neste trecho do Q. 1 (§ 43, § 44) como síntese da cisão
profunda e histórica do país, ao mesmo tempo que a superação da oposição rural e urbano
é tratada como um problema mais amplo e ligado ao próprio processo de consolidação dos
Estados nacionais em geral e não apenas a uma questão italiana. Esse caráter amplo foi
apontado, ainda no Q. 1, § 44, quando elaborou uma comparação da Itália com a França.
francesa em Gramsci foi analisada em Areco (2018).5
Diferente do Partido da Ação, que atuou no Risorgimento italiano, os jacobinos teriam lutado
para estabelecer uma relação entre campo e cidade como forma de criar uma unidade que
fosse não apenas territorial, mas também política e social. A unidade era, assim, um
conteúdo das lutas dos jacobinos (Q. 1, § 44, pp. 48-67).
Portanto, há nesta primeira elaboração do conceito de hegemonia nos Q. a
referência à França e aos jacobinos. O destaque é a capacidade da experiência francesa
servir como contraponto para a análise do processo de formação do Estado italiano
moderno para em seguida expandir-se para tratar dos processos de formação dos Estados
nacionais em geral. A luta pela hegemonia havia levado o partido francês a um duplo
movimento: abandono das reivindicações corporativas, ganhando assim uma dimensão
efetivamente política e não restrita às lutas econômicas e aos agentes diretamente
envolvidos, atuando como dirigentes de um projeto de classe com intenção de estabilizar-se
e manter-se ao longo do tempo; e por isso amparado nas camadas populares, isto é,
exercendo a direção de amplos estratos. Neste caso, a questão da propriedade rural foi
central. Os jacobinos superaram uma visão na qual “a questão agrária era apresentada
como separada da questão nacional [...]: a província aceitava a hegemonia de Paris, isto é,
os rurais entenderam que seus interesses estavam ligados aos da burguesia” (Q. 1, § 44, p.
63).
Na disputa parlamentar, na qual se antagonizavam os jacobinos e os girondinos, a
política agrária foi um ponto fundamental. Para os girondinos a distribuição de terra
contrapunha-se ao direito de propriedade herdado da antiga aristocracia rural, isto é,
colocava tais títulos em questão. Os jacobinos, por sua vez, aderiram à defesa da partilha
dos bens rurais que era reivindicada por movimentos políticos camponeses da época e que
era defendido pelo grupos dos Enragé, também presente no parlamento. Para Gramsci, ao
aderirem a tal reivindicação, os jacobinos foram estratégicos, atentos à necessidade
colocada pelas circunstâncias as quais “não podiam renunciar sob a pena de suicídio” (Q. 1,
§ 44, p. 63). Os jacobinos estavam fragilizados e o apoio popular, obtido por meio da defesa
dessa política, seria a forma de enfrentar os antagonistas no âmbito do parlamento ao
mesmo tempo que possibilitaria o “alargamento dos interesse da classe burguesa,
encontrando apoio em outros estratos do Terceiro Estado” (Q. 1, § 44, p. 62). Por isso os
jacobinos “capturaram” a base popular dos Enragé e ao assumir a defesa da política agrária
(divisão de terras) puderam evitar que a aristocracia e os grandes proprietários rurais se
fortalecessem. Com a ideia de “república una e indivisível”, contra o federalismo girondino,
6
os jacobinos ainda lograram articular a questão nacional com a questão agrária, o que pode
ser entendido como a criação de um projeto de república dos pequenos proprietários com
esses produtores sentindo-se integrados à unidade política e estabelecendo uma relação
com a terra de tipo formal amparada no direito à propriedade.
Os jacobinos teriam, assim, exercido uma dupla função: expandem a Revolução
burguesa, através da base social conferida pelos segmentos populares; ao mesmo tempo
que canalizam as reivindicações que poderiam fazer com que a República avançasse para
além dos limites da classe burguesa. Gramsci estava apoiado na historiografia que entendia
que eram esses os limites de atuação dos jacobinos - eram burgueses - e sua atenção recai
portanto sobre a questão da aliança com os demais estratos. Frosini (2016) propõe uma
leitura algo diferente, considerando que para Gramsci os “excessos democráticos” dos
jacobinos, no movimento de estabilização do Estado burguês, foram substituídos pela
“moderação e controle”. Isto é, os jacobinos seriam a instabilidade e os excessos,
impossíveis de serem combinados no exercício da hegemonia sob risco de fraturas
disruptivas. Não obstante, em outras partes dos Q. Gramsci combinou jacobinismo e
estabilidade burguesa, como ao afirmar que o jacobinismo de conteúdo é aperfeiçoado pelo
parlamentarismo (Q. 1, § 48, p. 71). O que isso significa? No nosso entendimento, é a ideia
de que a concepção de unidade presente nos jacobinos (cidade + campo, formando a
República una e indivisível) não pode ser abandonada na medida em que foi substrato para
as alianças, por um lado, e, por outro, é instrumento para a formação de consenso, do que
depende também o exercício equilibrado da hegemonia. Portanto, a hegemonia burguesa foi
conquistada e estabilizada não apesar do jacobinismo, mas sim com a importante
contribuição desse grupo político e do desenvolvimento teórico-prático posterior de seus
princípios.
Exercer a direção (ou a hegemonia política) sobre os demais segmentos do Terceiro
Estado dependeu do fato de que:
os jacobinos não eram abstratos [...]. A linguagem dosjacobinos, a sua ideologia, refletiam perfeitamente asnecessidades da época, segundo as tradições e a culturafrancesa (cfr. na “Sagrada Família” a análise de Marx a partirda qual resulta que a fraseologia jacobina correspondiaperfeitamente às formas da filosofia clássica alemã, a qual sereconhece hoje a maior concretude e que deu origem aohistoricismo moderno) (Q. 1, § 44, p. 62).
7
A linguagem que permitiu ligar os jacobinos aos segmentos populares foi a
linguagem jurídica, colocada em termos de direito, de maneira que ela se tornou um dos
instrumento da hegemonia se a entendemos como construída pela obtenção do consenso
(direção) e domínio (exercício também da força) (COSPITO, 2017, p. 27). Juntamente com
Marx, Gramsci considerou-a adequada às necessidades revolucionárias daquele contexto,
articulada à cultura francesa da época. Portanto, pode-se entender que a direção política
dependeu do compartilhamento de uma linguagem particular, de maneira que a hegemonia
política (tal como Gramsci utilizou o termo no Q. 1, § 44) exercida pelos jacobinos não foi
arbitrária, mas amparada em elementos culturais e históricos assentados na cultura
francesa. Esses elementos remetem desde a filosofia iluminista e à ideia de direitos
humanos e naturais e às elaborações então em curso no próprio processo revolucionário.
Nesse aspecto, não é possível afirmar que há em Gramsci uma distinção entre direito
positivo e direito natural, mas que ele os trata em uma perspectiva que é considerada por
parte dos estudiosos do direito e das leis como uma abordagem artificialista, isto é, que
compreende o direito como construtor ou elaborador de costumes e comportamentos
(PRETEROSSI, 2018, p. 241). Há, portanto, um aspecto bastante interessante em Gramsci
na medida em que a ideia de linguagem jurídica, ao tratar da Revolução francesa, acena
concomitantemente ao passado e ao futuro; isto é, pautada em uma certa direção cultural
pré-existente na cultura francesa e ao mesmo tempo indica que ela é capaz de, por meio
dessa linguagem, construir elementos para a estabilização da dominação de classe em seu
desenvolvimento futuro.
A elaboração de Gramsci acerca da França, tal como exploramos até aqui, permite-
nos pensar sobre as relações entre as lutas parlamentares e as mobilizações populares. A
atuação parlamentar era orientada pelo interesse de classe. Mas isso alcança apenas uma
parte do fenômeno: os conflitos entre os jacobinos e girondinos eram disputas no interior da
própria classe revolucionária. Enquanto os girondinos ficaram limitados à defesa
intransigente da propriedade privada, os jacobinos contribuíram para a expansão - através
da aliança - da base de seu partido. A linguagem jurídica utilizada pelos jacobinos servia-lhe
tanto como instrumento de mobilização das massas como um elemento a ser reformulado
ou adaptado, em um contexto em que as formulações contidas na Declaração dos direitos
dos homens eram discutidas e deveriam ser elaboradas nos termos do direito positivo.
Essa primeira elaboração carcerária sobre o conceito de hegemonia, na citada nota
do Q. 1, § 44 sobre a qual nos detemos até agora, foi escrita entre fevereiro de 1929 e maio
8
de 1930 e está inserida em uma reflexão sobre a formação dos intelectuais italianos. Desde
o § 43 pode ser identificada uma virada política na reflexão de Gramsci6. No § 46, Gramsci
voltou a tratar da hegemonia, agora sem aspas e sem o adjetivo política, abordando a força
dos moderados sobre os intelectuais italianos, pensando então no movimento de direção no
contexto do Risorgimento e na articulação entre intelectuais e política (Q. 1, § 46, p. 68).
Ainda no Q. 1, portanto, a noção de hegemonia, embora não tenha o sentido ainda
estabilizado, estava sendo desenvolvida e inserida no léxico dos Quaderni articulada a um
conjunto de conceitos e de análises políticas concretas e que dedica atenção especial à
França e aos jacobinos em particular.
Na nota 47, ainda no Q. 1, a temática do Estado emergiu de forma mais categórica
com a referência a Hegel e Marx. Embora não utilize aqui o conceito de hegemonia,
Gramsci elaborou neste parágrafo a relação entre Estado e sociedade civil. A sociedade civil
em Hegel, indica Gramsci, é econômica e não propriamente política - sociedade civil como
trama privada do Estado formada por corporações - ainda que o filósofo alemão tenha
intuído, pela experiência da Revolução francesa, o “estado parlamentar com o regime de
partidos” (Q. 1, § 47). Não era possível, ainda, para Hegel apreender a forma política então
em desenvolvimento, multiplicada no século XIX e XX em diferentes organizações como
partidos, sindicatos, associações, etc.; com a formação de grupos regulares e de atividades
permanentes, voltados para a atividade política e encontrando estratégias comuns e
compartilhadas de atuação. No § 48 (Q. 1), os jacobinos foram considerados como um
movimento inicial, quase extemporâneo, da forma de organização política moderna e que se
consolidaria no século XIX.
A questão importante para nosso argumento é que a experiência francesa foi
retomada nos Q. 1, nos § 47 e § 48, contribuindo com a definição de Estado como
“Governo com o consenso dos governados, mas consenso organizado, não genérico e vago
que se afirma no momento das eleições: o Estado tem e demanda o consenso, mas também
‘educa’ este consenso com as associações políticas e sindicais, que no entanto são
organismo privados, deixados à iniciativa privada da classe dirigente” (Q. 1, § 47, p. 69).
Trata-se de um passo adiante na definição da hegemonia, sendo então tratado como uma
6 O tema dos intelectuais, ao ser articulado com a análise do Estado, havia expandindo a definição corrente domesmo, indicou o próprio Gramsci (LC 210, de 7 de setembro de 1931) (GRAMSCI, 1973). Sobre Estadoampliado, a referência essencial é BUCI-GLUCKSMANN, 1980.
9
dinâmica inserida no âmbito da sociedade civil, cuja definição dependeu também do
processo de mudança histórica marcada pela complexificação da sociedade civil. Como
Frosini assinalou, o conceito de hegemonia no textos carcerário passou por um crescente
intercruzamento entre sociedade civil e sociedade política, ou entre as esferas públicas e
privadas, e tem nessa fase da redação dos cadernos e na referência à elaboração hegeliana
de sociedade civil presente no § 47 um momento essencial (FROSINI, 2016)7.
Gramsci passou a explorar na mesma nota - § 47 - o processo no qual diversas
instituições da sociedade civil foram criadas, demonstrando como a Revolução francesa
forneceu um repertório de instituições e de organizações de natureza política que passaram
a fazer parte da política nos séculos subsequentes: “A Revolução francesa oferece dois
tipos prevalentes: os clubs, que são organizações não rígidas, tipo “comício popular”,
centralizada por indivíduos políticos singulares, cada um com seu próprio jornal, com os
quais obtém a atenção e o interesse de uma determinada clientela diferenciada nas
margens, que depois apoia as teses do jornal nas reuniões dos clubes.” Essa organização
contém grupos internos mais restritos, “que se conhece reciprocamente e que se reunia à
parte”. No período entre 1815 e 1830, passa a existir uma notável “diferenciação no campo
político popular”, aperfeiçoado mais tarde dando origem a personalidades como Blanqui e
Filippo Buonarroti (Q. 1, § 47, p. 70), ou seja, ao tipo político prevalente nos eventos de
1848 e que tem uma orientação socialista e revolucionária8.
A referência historiográfica de Gramsci no § 47 foi a produção de A. Aulard,
possivelmente a obra Histoire politique de la Révolution française (1901). Aulard foi um
historiador cuja a produção detinha repercussão acadêmica e espaço em círculos mais
7 Frosini (2016) sublinhou justamente a importância da leitura particular feita de Hegel e sua definiçãode Estado e sociedade civil. A aproximação com Hegel poderia ter sido mediada pela obra Lesdoctrines politiques des philosophes classiques de l’Allemagne (Leibnitz-Kant-Fichte-Hegel) de VictorBasch, que Gramsci tinha na prisão em Turi. Segundo Frosini, no livro de Basch existiam muitasreferências e paráfrases de Principes de la Philosophie du droit de Hegel, além de destacar aaproximação de Hegel com os ideais da Revolução francesa. 8Interessante notar que Gramsci aproxima os clubs franceses da definição de partido moderno,podendo ser visto, portanto, como uma forma germinal dos mesmos - com o que Vovelle (2000) maistarde concordou atribuindo em particular aos jacobinos uma forma organizacional mais madura, quetinha um programa geral definido e eficazes cadeias de comunicação que ligavam Paris e asprovíncias. Essa forma de organização expandiu-se em diferentes países, como na Itália. Ao seexpandir, ganhava um caráter artificial em razão das escassas relações com o conteúdo nacional dospaíses onde aportava (VOVELLE, 2000).
10
amplos, como em revistas e demais publicações de natureza político-militante
(FRANCESCO, 2013; FRIGUGLIETTI, 2008). A referência a Aulard na nota gramsciana é,
porém, bastante sucinta, indicando apenas que ele era uma fonte a ser consultada para
desenvolver o tema da Revolução francesa. Mas Gramsci demonstrou acompanhar, à
distância, o debate historiográfico sobre a Revolução francesa em curso no país vizinho. Em
1907, Aulard havia publicado a obra Taine historien de la Révolution français, na qual fazia
uma crítica profunda da leitura de Taine, político e historiador conservador, que tratou a
Revolução como arbitrariedade histórica. Gramsci afirmou que a “questão de Taine e da
Revolução francesa deve ser estudada porque teve certa importante na história da cultura
do século passado” (Q. 2, § 92 , p. 363). Tratava-se para o autor dos Q. de compreender as
relações da Revolução com a história precedente, com a intenção de amparar sua
afirmação acerca do caráter não-abstrato daquele movimento histórico.
A relevância dos jacobinos na elaboração do conceito de hegemonia pode ser
percebido sob dois aspectos. O primeiro é o caráter paradigmático ou exemplar que
Gramsci atribuiu ao grupo político francês no processo de construção da hegemonia. Esse
aspecto destaca o jacobinismo como fenômeno histórico, isto é, está ligado aos militantes
revolucionários do século XVIII. Outra elaboração é a definição do jacobinismo como
conceito e que aproxima o jacobinismo (que Gramsci chama de jacobinismo de conteúdo)
da política parlamentar moderna e das formas encontradas para o exercício da hegemonia:
“O desenvolvimento do jacobinismo (de conteúdo) encontrou seu aperfeiçoamento formal no
regime parlamentar, que realiza no período mais rico de energia “privada” na sociedade a
hegemonia da classe urbana sobre toda população, na forma de hegeliana de governo
como consenso permanentemente organizado (com a organização deixada à iniciativa
privada, portanto moral ou ético, porque consenso ‘voluntário’ de uma forma ou de outra)”
(Q. 1, § 48, p. 71). O jacobinismo foi desenvolvido ou aperfeiçoado com a organização do
consenso permanente deixado à iniciativa privada. Os momentos mais relevantes desse
aperfeiçoamento correspondiam aos eventos políticos de 1830 e 1848, afirmou Gramsci,
demonstrando, portanto, que na atividade político-prática que vão sendo encontradas novas
fórmulas para o exercício da hegemonia.
II. HEGEMONIA (TOUT COURT)
A separação entre as camadas populares e os jacobinos havia ficado clara com o
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“limite” colocado com a “lei Chapelier ou o máximo é superado e alargado através de um
processo complexo, teórico-prático (jurídico-político = econômico), através do qual se obtém
o consenso político (se mantém a hegemonia) alargando e aprofundando a base econômica
com o desenvolvimento industrial e comercial até a época do imperialismo e da guerra
mundial” (Q. 1, § 48, p. 71).
No projeto político dos jacobinos as reivindicações dos estratos populares não
podiam mais serem atendidas, tendo sido encerrada as possibilidades de associação em
uma mesma direção política. Os elementos que demarcam essa separação, indicou
Gramsci, foram a lei Chapelier e a lei do máximo. Essas leis teriam contribuído para a
estabilidade da hegemonia da classe burguesa, pois permitiram o alargamento e
aprofundamento desse consenso.
É interessante que Gramsci tenha colocado lado a lado as duas leis - Chapelier e
máximo9. A primeira, de 1791, tratou da proibição de organizações civis e demais formas de
associação, tanto com finalidade de produção, como no caso das corporações de ofício, e
também de tipo reivindicativas. A proposição apoiava-se na ideia de que era necessário o
vínculo direto do cidadão com a República, única forma de se constituir uma unidade sem
mediações. Portanto, a lei define o estabelecimento de relações entre indivíduos autônomos
como a base da República, limitando a possibilidade de representação de interesses à
forma parlamentar. Isso impôs o fim das nascentes organizações dos trabalhadores.
A lei do máximo, de 1793, tratou da imposição de um limite de preços, assim como
estabeleceu maneiras desse limite ser respeitado. Para isso, recorreu à possibilidade de
confisco da produção para evitar que os produtores deixassem de lançar grãos no mercado.
Essa lei refere-se assim a uma diretriz de ordem econômica, vista como uma medida
necessária em um contexto de crise de abastecimento depois da iniciativa de Turgot de
instituir o livre comércio de grãos como estratégia para que através das leis do mercado ele
chegasse a um preço adequado. Tal iniciativa levou ao aumento dos preços e favoreceu os
grandes produtores. O máximo, como uma intervenção estatal na economia, contribuiria
9 No § 44 Gramsci afirmou que a Lei do máximo foi consequência da Lei Chapelier, grafando máximo comaspas ;no mesmo parágrafo tornou a identificar tais leis como expressão do limite da associação dos estratospopulares e jacobinos, porém primeiramente falou da Chapelier e depois adicionou, entre as linhas, a lei domáximo, novamente entre aspas. O mesmo ocorreu no § 48, ou seja, inclusão posterior da expressão máximo,mas neste parágrafo sem as aspas. Porém, no § 48 não registra mais uma consequência (uma lei levou a outra) enem uma adição (“a lei do máximo e a lei Chapelier demonstram o limite de classe dos jacobinos”); mas fala queuma ou outra exerceu tal função. A hipótese é que ele revisava o parágrafos depois de ter tido acesso à obra deMathiez, Révolution française, que trata cuidadosamente do tema. Sobre o § 48 nos aprofundaremos maisadiante.
12
para uma concepção na qual o direito à propriedade sofreu uma limitação (GAUTHIER,
1985).
A leitura de Gramsci sobre a Revolução francesa e os jacobinos, deve ser destacado,
mantém-se no âmbito das análises clássicas que a veem como uma revolução burguesa.
Apesar disso, acena à compreensão de que existiam diferentes concepções políticas e
econômicas, e, portanto, de liberalismo, que estavam em disputa naquele momento. A
abordagem gramsciana poderia ser interpretada como uma leitura que articula o que ele
chamou de processos políticos-jurídicos ou teóricos-práticos. Em outras palavras: as
experiências, tentativas, recuos, avanços eram maneiras práticas através das quais o
liberalismo ia sendo formulado e reformulado. Naquele contexto em particular, a linguagem
jurídica desempenhava um papel relevante. As ideias de direitos naturais e de direitos dos
homens deveriam encontrar uma manifestação concreta capaz de conformar o direito à
propriedade com a noção de igualdade, que ia ganhando força para os diferentes estratos
sociais.
Gramsci não explorou de maneira pormenorizada as leis citadas, mas as incluiu em
sua análise do processo de hegemonia na França dando-lhes destaque. A referência
elíptica, ao acenar às iniciativas legais, foi a obra do historiador Albert Mathiez. O historiador
fez uma leitura atenta das lutas e das manifestações populares nas diferentes províncias, e
não apenas em Paris, propondo uma abordagem que poderia ser vista como a partir de
baixo. Assim, ao abordar as disputas parlamentares, as articula à dinâmica dos movimentos
dos grupos populares e suas reivindicações10.
A referência a Mathiez nos textos de Gramsci é, assim, bastante importante e deve
ser destacada. Há alguns ecos da leitura do historiador na análise de Gramsci, nem todos
explicitados. Mathiez produziu um estudo clássico sobre as lutas contra o alto preço dos
grãos intitulado La vie chère et le mouvement social sous la Terreur (1927). Analisando de
maneira detalhada os movimentos sociais no campo e na cidade e a reação dos
parlamentares às sublevações populares, o historiador mostrou como a construção de uma
forma nova de organização do mercado, baseada nas teorias fisiocratas e defendida por
10A leitura de que existiam projetos em disputa na Revolução francesa e que tenta articular as lutaspolíticas e a reflexão teórica e filosófica apoia-se na elaboração de Gathier (1985). Ela considera que,em geral, a historiografia deixou de articular teoria e prática em razão mesmo da especializaçãoacadêmica que levou à separação entre a historiografia da Revolução francesa e a história das ideiase da teoria.
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parte substantiva do parlamento, encontrou resistência popular. Entre 1789 e 1791 ocorreu
uma série de iniciativas populares contra o livre mercado, que havia sido instituído por um
conjunto de leis que iam pouco a pouco impondo o laissez faire na produção e comércio de
grãos. O resultado foi o aumento dos preços não acompanhado do aumento dos salários,
concomitante à inflação decorrente da emissão de moeda. As mobilizações foram iniciadas
com a demanda por regulamentação dos preços, defendendo o tipo de controle da produção
que era feito antes de 1789.
Os clamores populares eram vocalizados no parlamento pelos Enragés e
posteriormente passaram a englobar a questão da propriedade da terra. O liberalismo
econômico e o consequente favorecimento do grande proprietário deveria ser superado por
um aumento no número de produtores que geraria ampliação da oferta e para isso deveriam
ser divididas as grandes propriedades entre os pequenos e os que não detinham nenhum
terra. A posição majoritária buscava frear tais iniciativas, defendendo de “forma dogmática a
liberdade econômica” (MATHIEZ, 1927, p. 48).
As medidas tomadas para controlar a crise eram “circunstanciais ou empíricas, sem
um projeto de horizonte”, afirmou Mathiez (1927, p. 609). Neste contexto há a separação
dos jacobinos e dos girondinos. Os jacobinos, contrapondo-se ao federalismo girondino e a
defesa da propriedade sem limites e buscando ainda enfrentar a potencial desagregação do
III Estado promovida pelo grupo de J. Roux e aos monarquistas da reação, assumiram o
programa dos Enragés como forma de capturar o apoio popular que estes detinham.
Robespierre passou a articular um discurso político amparado em uma interpretação da
Declaração de 1789 na qual o direito à propriedade era contraposto ao direito à existência. A
noção de direito à existência estava ligado à reavaliação do direito natural: o direito à
propriedade não foi tratado como parte da natureza, diferente do direito à vida que depende
do acesso aos meios necessários à existência. Se a República funda-se sobre uma base
social, deve buscar a liberdade e o interesse geral, de modo a permitir o direito à existência
de todos (MATHIEZ, 1927, p. 97). Com esse discurso, Robespierre buscou afirmar que a
regulamentação da economia não era um passo atrás na Revolução, mas sim adiante, ainda
que mobilizasse também a noção medieval de preço justo para amparar sua formulação
política. “Para resistir, a Revolução era obrigada a cada dia a abandonar pouco a pouco
seus princípios liberais” (MATHIEZ, 1927, p. 71), argumentou analisando tal contexto.
Trata-se assim de um grupo que mobilizou os instrumentos políticos reforçados pela
Revolução, isto é, a forma representativa desenhada desde a convocação dos Estados
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Gerais e o papel do parlamento e das proposição de leis, assim como a organização política
próxima dos partidos políticos modernos. Ao lado disso, ligou-se aos movimentos populares
do campo e da cidade, como maneira de executar um projeto de classe. Pode-se falar que
Gramsci assimilou vários pontos dessa obra de Mathiez: as novidades das formas de
organização e de movimentos políticos, a separação dos grupos e classes em projetos que
se cindiram depois de terem se reunido no III Estado contra o Antigo Regime e a
compreensão da lógica parlamentar no contexto francês após 1789, assim como a
composição de classe dos partidos.
Não é possível afirmar que o italiano leu a obra de Mathiez, La vie chére…, porém o
historiador reproduziu uma abordagem similar no compêndio Histoire de la Révolution
française, que Gramsci consultou, citou e tinha no cárcere (ARECO, 2018, p. 178). Em
especial, deve-se notar como a análise cuidadosa de Mathiez das disputas parlamentares e
dos debates e leis produzidos naquele contexto articulam-se com a ideia que o marxista
explorou algumas vezes nos Q. de que a linguagem jurídica foi a forma particular através da
qual aquela revolução foi conduzida. Importante entender que tal linguagem não era restrita,
como podemos verificar com os estudos de Mathiez e com a produção historiográfica
recente, a segmentos sociais específicos. Pelo contrário: as camadas populares,
mobilizadas a participarem da luta contra o Antigo regime, foram estimuladas a expressarem
suas demandas sob tal linguagem.
Essa questão é importante e liga-se às formas de participação política. Com a lei
Chapelier, como já acenado, foram proibidas as associações de trabalhadores e greves em
um momento em que as reivindicações se ampliavam. Assalariados eram obrigados a pedir
mediação do poder público, agindo através de petições e no terreno político parlamentar.
Foi, assim, uma iniciativa que canalizou para os regime representativo e de partidos tais
demandas. Para Mathiez, a lei Chapelier, ao proibir as organizações e associações,
constitui-se como parte do instrumental repressivo dos liberais contra as iniciativas anti-livre
mercado (MATHIEZ, 1927, p. 114). Ao inseri-la em uma dinâmica mais ampla, combinando a
Lei Chapelier e a Lei do Máximo, Gramsci pode pensá-las como mecanismos
complementares capazes de obter o consenso dos governados.
III HEGEMONIA (POLÍTICO-JURÍDICO = ECONÔMICO)
Estamos, portanto, diante de uma noção na qual sociedade civil e sociedade política
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ligam-se organicamente de modo a conformar o Estado integral na definição gramsciana. No
Q.1, § 48 Gramsci articulou sua leitura sobre Hegel e a sociedade civil com a análise dos
jacobinos e das leis, destacando que o jacobinismo foi aperfeiçoado no regime parlamentar
com a obtenção do consenso permanentemente organizado deixado para a iniciativa
privada. Nesse passo do processo de elaboração fica claro como, junto à expansão da
noção de Estado, também os jacobinos deixam de ser mobilizados exclusivamente para
referir-se ao grupo histórico do século XVIII para também alcançar um arco temporal mais
vasto, em sua forma modificada e amadurecida através de processos teórico-práticos. Os
jacobinos e o jacobinismo passaram a serem operados como categorias teóricas para
análise da política.
Depois de um longo processo, de séculos, de experiências institucionais e de formas
de organização, avanços e recuos, como no caso da expansão do sufrágio, foi estabelecido
um equilíbrio relativamente contínuo entre força e consenso, ou seja, de hegemonia. A
particularidade do terreno político francês, no século XIX e início do século XX, deriva
dessas experiências do passado que foram formando também pessoal político adequado
para atuação no Estado, de maneira que lá “a hegemonia burguesa é muito forte e há
muitas reservas” (Q. 1, § 48, p. 73). Com o processo de urbanização e alargamento da base
industrial, também foi conformada uma base econômica que reforçava a relação de direção
da cidade sobre o campo e, ao mesmo tempo, a unidade e indissolubilidade da República.
Gramsci fala de jacobinismo econômico (Q. 1, § 44, p. 45; Q. 19, § 24, p. 2018), síntese da
fórmula político-jurídico = econômico. A experiência francesa é emblemática, assim, não
apenas no momento da luta e conquista da hegemonia, mas também no exercício da
mesma quando logrou tanto constituir vastas reservas políticas (pessoal político e
intelectuais) e a iniciativa econômica que trouxe a questão rural como um ponto fundamental
para a unidade social e territorial da república.
No parágrafo intitulado I costumi e le leggi [Os costumes e as leis] do Q. 6 , o direito foi
tratado como elemento que não reflete os costumes e lhe sanciona, mas é visto como “luta
pela criação de novos costumes” sendo que “a função máxima do direito é essa: pressupor
que todos os cidadãos devem aceitar livremente o conformismo assinalado pelo direito, que
todos possam tornar-se elementos da classe dirigente; no direito moderno isto é implícito na
utopia democrática do século XVIII” (Q. 6, § 98, p. 773). Trata-se do caráter artificial
atribuído às leis, isto é, como conformadora de um modo de vida, que não “exprime toda a
sociedade, [...] mas a classe dirigente”. Portanto, está ligado à questão da educação das
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massas, de sua formação segundo as exigências e objetivos da sociedade e através do
direito “‘o Estado’ torna homogêneo o grupo dominante e tende a criar o conformismo social
que seja útil a linha de desenvolvimento do grupo dirigente” (PRETEROSSI, 2018, p. 247).
Porém:
Alguma coisa de verdadeiro existe na opinião de que ocostume deve preceder ao direito: nas revoluções contra osEstados absolutos, existia já como costume [e como aspiração]uma grande parte do que se tornou direito obrigatório: é com onascimento e desenvolvimento da desigualdade que o caráterobrigatório do direito aumentou, assim como aumentou a zonade intervenção estatal [...]. (Q. 6, § 98, p. 773)
O direito, no contexto da luta pela hegemonia na França do século XVIII, ligou-se às
expectativas de superação da dominação feudal com a defesa dos direitos do homem. Mas
também estava articulada a uma forma diferente de se conceber o regime de propriedade. A
definição do regime de posse dependendo de um duplo movimento político subsequente:
reivindicações populares e mudanças legislativas que definiam critérios para o acesso à
terra e a definição da titularidade (CLERE, 2005; BRASSART et al, 2015; BODINIER, 2005;
CALLAWAY, 2018).
Nos debates parlamentares decorrentes do Decreto de 1789, a supressão dos
direitos senhoriais foi visto como uma forma de infringir ao direito à propriedade e entrava
portanto em oposição à corrente fisiocrata, ou às “ideias dos economistas”, como se
argumentou no Parlamento. Oriundos das camadas urbanas médias e altas, os
parlamentares tinham como horizonte a reforma do Estado e as questões de direito público
e constitucional, orientados mais fortemente para o enfrentamento dos privilégios da
nobreza do que para a realidade do sistema senhorial. Por isso, a legislação oscilava entre
manter os direitos senhoriais e afirmar o fim do mundo feudal, em um período no qual aos
poucos avançava o liberalismo nas relações de propriedade no mundo rural francês
(CLERE, 2005; BRASSART et al, 2015; BODINIER, 2005; CALLAWAY, 2018).
A partir de 1792, com a ampliação das manifestações no campo combinadas à
recusa do pagamento das taxas senhoriais e a demanda por distribuição de terras, o
Parlamento pressionado dispôs sobre a partilha dos bens comunais ao mesmo tempo em
que insistia na indenização dos antigos senhores com o Decreto de 10 de junho de 1793. A
medida não atendeu as reivindicações dos camponeses e não resultou na passivação desse
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segmento. Apenas em 17 de julho de 1793, após a queda dos girondinos e a direção por
parte dos jacobinos da Convenção, foram finalmente abolidas as propriedades rurais sem
indenização, além de se propor uma ampla distribuição de terras, em um movimento no qual
os jacobinos assumiram a defesa dos estratos populares rurais como forma também de
fortalecer o apoio desse grupo à continuidade da Revolução (CLERE, 2005; BRASSART et
al, 2015; BODINIER, 2005; CALLAWAY, 2018).
Para o historiador A. Aulard, os jacobinos se aproximaram dos camponeses com a
política agrária para disputar com os girondinos, mas em uma abordagem que se atém à
esfera das disputas parlamentares e aos projetos de poder dos partidos. Para Mathiez os
jacobinos tinham efetivamente uma orientação política diversa dos girondinos, estando os
primeiros mais próximos de um tipo de socialismo ou em busca de uma economia social.
Gramsci tem uma linha diferente: não se trata de uma disputa apenas partidária, posto que
mobiliza relações sociais e econômicas profundas, ao mesmo tempo que argumenta não há
uma orientação socialista nos jacobinos.
Atualmente, parte dos historiadores identifica a existência, naquele período, de um
processo de politização do campo e a utilização de uma linguagem jurídica nestas
mobilizações amparada nos termos da declaração dos direitos dos homens: os cidadãos
eram “informados da legislação e pressionam por sua aplicação, o que as autoridades locais
fizeram por vezes ultrapassando mesmo as decisões da Convenção, Girondina ou
Montanhesa, pouco preocupadas com a reforma agrária real (BODINIER, 2005, p. 12)”.
A noção de hegemonia em Gramsci evidencia, portanto, os grupos e classes sociais
em disputa dentro e fora do parlamento, expressando os acordos táticos e as estratégias
utilizados pelos mesmos, de forma que a experiência concreta ajudaria a se esboçar uma
teoria das relações de forças em Gramsci. Essa teoria não se limitaria à abordagem do
momento político, mas estaria relacionada a uma mudança social e cultural profunda que,
no caso da França do século XVIII, dependeu da liberalização gradativa das relações no
campo, com a mudança do estatuto da terra e sua mercantilização; a politização do estrato
camponês, com suas mobilizações amplas e radicalizadas entre 1789 e 1793; e a utilização
da linguagem jurídica, difundida por diferentes canais em um movimento ligado seja às
correntes filosóficas ou na relevância que os debates parlamentares assumiram naquele
contexto. Em síntese: na França revolucionária foi a obstinação camponesa que forçou os
Parlamentares e os jacobinos em particular a assumirem as reivindicações populares,
expressando-as também sob a fórmula jurídica, assim como fizeram os segmentos
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camponeses que reivindicavam a terra.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O esforço aqui apresentado de reconstruir o conceito de hegemonia nos Q. com
ênfase na análise das disputas parlamentares na França e sua revolução do século XVIII
deriva da importância que Gramsci deu ao tema. Tratava-se, para ele, de um caso exemplar
ou emblemático, pretendemos ter demonstrado, não apenas na construção de hegemonia,
mas também na elaboração de seus instrumentos de manutenção.
No tratamento feito pelo autor acerca dos aspectos jurídico-políticos desvela-se a
premissa gramsciana explorada em diferentes partes de seu texto na qual aqueles
elementos chamados de superestruturais são considerando em sua autonomia, que, no
entanto, não é absoluta, ao mesmo tempo em que são articulados às relações entre as
classes e grupos sociais. Considerando os Q., pode-se afirmar como mais relevante na
relação entre o conceito de hegemonia e os aspectos jurídicos-políticos a oposição de
Gramsci a tratá-los como abstração. Considera-os, em realidade, um tipo de linguagem
particular desenvolvida naquele país e que se articula com sua história e a com a cultura
francesa. As leis analisadas cuidadosamente por Mathiez e trazida por Gramsci - lei do
Máximo e lei Chapelier - demonstram a capacidade de iniciativa dos jacobinos em dois
aspectos: 1) estabelecer uma política econômica na qual o liberalismo sofreu uma inflexão
ou adaptação de forma a englobar os interesses das camadas populares ao mesmo tempo
em que ganhavam a disputa parlamentar ao trazer para si o apoio dessas camadas,
fortemente mobilizadas por suas demandas; 2) limitar a associação entre os trabalhadores,
de maneira que a forma por excelência passasse a ser o âmbito parlamentar. Isso faz com
que na França se fortalecesse ao longo dos séculos as formas de organização e
participação ligadas a democracia parlamentar (partidos e eleições), como se naquele país
estivessem sendo experimentadas formas de exercício de hegemonia e que depois
passaram a fazer parte do repertório político dos demais Estados modernos.
A forma de abordagem das leis citadas pressupõem e reafirmam a distinção entre
dominantes e dominados; ao passo que implica também em uma mudança (regulamentação
do mercado) que tem uma função de repressão e conservação. Esses seriam a dupla
característica dos aspectos jurídicos-políticos e do papel das disputas parlamentares em
Gramsci e, por essa chave, que eles são instrumentos da hegemonia.
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