Post on 09-Nov-2020
Repercussões e especulações: o Império brasileiro sob a ótica da anexação da
província de Chiquitos.
Maria do Socorro castro Soares1
Essa comunicação procura acompanhar o pensamento disseminado no ambiente revolucionário
das ex-colônias espanholas, de que o Brasil se apresentava como inimigo das nascentes
repúblicas emancipadas pelos Exércitos Libertadores de Simon Bolívar e Antonio José de
Sucre. Busca junto ao corpo documental e bibliográfico pesquisado, contrapor a tese de que o
Império brasileiro teria participado da tentativa de anexação da Província Alto peruana de
Chiquitos ao Brasil, através da Província de Mato Grosso. Para essa disseminação de ideias
muito contribuiu a imprensa platina, através do Jornal El Argos, que escudado no incidente
chiquitano, buscou sensibilizar a opinião pública platina e, principalmente, a de Simon Bolívar,
conclamando à “la guerra de la muerte” contra o Império brasileiro. Propõe um confronto
historiográfico entre a literatura brasileira e a boliviana que tratam do assunto, apoiando-se,
entre outros, principalmente, na interlocução do autor brasileiro Arnaldo Vieira de Mello e do
autor boliviano Alejandro Ovando Sanz.
Palavras-Chave: Império brasileiro; Política; Literatura; Mato Grosso; Emancipação
As primeiras décadas do século XIX testemunharam na América do Sul os ventos
que favoreceram os anseios libertadores das antigas amarras metropolitanas do “Velho
Mundo”. As colônias hispânicas, insatisfeitas com as determinações administrativas
externas, sentiam seus interesses internos prejudicados quando a metrópole privilegiava
os chapetones2 em detrimento dos criollos3. Assim, os motivos que deram origem às
ações independentistas se sobrepuseram às questões ideológicas e se fundamentaram muito
mais em elementos de ordem econômica e política (JUSTINIANO, 2004, p.128).
Embora não se possa falar de homogeneidade ideológica no que tange às aspirações
emancipadoras, há que se considerar que após a vitória de Ayacucho as tropas do Exército
Libertador bolivariano tinham como último reduto realista a ser conquistado apenas a região
alto peruana, ainda ocupada pelas forças realistas, comandadas pelo General Pedro Antonio de
Olañeda. Entretanto, essa última resistência realista já se encontrava circunscrita
apenas à cidade de Potosi, sendo o seu General assassinado por seus próprios comandados.
1 Doutora em História (UFMT); Professora da Rede Estadual de Educação do Estado de Mato Grosso
(SEDUC-MT). E-mail: helpsoares@yahoo.com.br 2 Colonos nascidos na Espanha 3 Descendentes espanhóis nascidos na América.
Em que pese interesses ideológicos distintos, entre criar uma única confederação
republicana das ex-colônias (pensamento de Bolívar) e repúblicas autônomas, o fato é que em
1825, as ex-colônias hispânicas na América já se encontravam livres do jugo espanhol.
A notícia da capitulação de Ayacucho chegou à província alto peruana de Chiquitos em
março de 1825, quando a referida Província era governada pelo absolutista, Coronel de
Cavalaria, Dom Sebastião Ramos, que segundo Vazquez-Machicado:
[...] se vio indeciso ante la situación que se presentaba; absolutista como era,
se debatía impotente ante el naufrágio de sus princípios, pero por outra parte
no se resignaba a abandonar el mando que tenia. Em consecuencia, y mientras
se definían los horizontes y el mismo resolvia lo conveniente, creyó que lo
mejor era plegarse em princípio a los nuevos triunfadores [...] (VAZQUEZ-
MACHICADO, 1938, p. 371).
Entretanto, embora tendo comunicado sua adesão à causa independentista, Sebastião
Ramos recorreu à proteção do Império brasileiro, através da vizinha Província de Mato Grosso,
sob o agenciamento de Manuel Velozo Vasconcelos que, oportunamente era Comandante das
Armas da Província e Secretário do Governo Provisório de Mato Grosso. A proposta de
Sebastião Ramos baseava-se em se colocar sob proteção do Império brasileiro e permanecer
com a prerrogativa de governador até a retomada da América espanhola por Fernando VII. Em
contrapartida, o Império brasileiro seria usufrutuário dos rendimentos auferidos pela Província
chiquitana.
Foi nesse cenário de lutas e disputas territoriais que o episódio de Chiquitos serviu de
estopim para o desencadeamento da construção de uma imagem negativa do Império brasileiro
junto às novas repúblicas que se formavam. A essas novas Repúblicas se sobrepunha a ótica de
que a sede expansionista brasileira visa à extensão de suas fronteiras em detrimento do “Direito
das Gentes”.
Segundo as novas Repúblicas, o Império brasileiro já havia “usurpado” a Banda oriental,
pertencente às províncias Unidas do Rio da Prata e, não satisfeito, invadiu também a Província
de Chiquitos no Alto Peru. Assim o incidente passa a ser utilizado como justificativa para um
possível acordo militar contra o Império brasileiro.
A esse respeito Santos esclarece que:
Para os vizinhos do Império[...], o incidente de Chiquitos ganhou foros de
agressão premeditada contra as repúblicas, especialmente, no momento em
que a posse brasileira sobre a província Cisplatina voltava a ser contestada.
Nesse quadro, a atitude intempestiva das autoridades de Mato grosso quase
que acabou por catalisar a formação de uma poderosa aliança antibrasileira.
(SANTOS, 2002, p. 26)
O pensamento de que o Governo brasileiro pudesse se constituir em “reserva” da Santa
Aliança na América para a recolonização das jovens Repúblicas e obstaculizar o processo
emancipatório, foi ganhando espaço no imaginário republicano das ex-colônias hispânicas e se
fazendo presente em parte da sua literatura historiográfica.
Dentre os autores pesquisados, o boliviano Jorge Alejandro Ovando Sanz, apresenta
argumentações bem severas em relação ao Império brasileiro, quando afirma categoricamente:
[...] el ataque brasileño de 1825 se produjo como expresión de una nueva
política expansionista, más agressiva, puesta en ejecución por la Corte de los
Braganza, a partir de 1822, cuando Pedro I formó el império del Brasil. Detrás
de las aparentemente caprichosas maniobras pro española de Carlota Joaquina,
estaba la no menos absurda ambición de la família real portuguesa de
coronarse con el cetro de un Imperio Andino, en la supocisón de que la
cordillera de los Andes pertenecia al Brasil. (SANZ, 1986, p. 29)
O fato de o Alto Peru ter pertencido ao Vice reinado do Peru e posteriormente ao Vice
Reinado do Rio da prata, serviu como condicionante para colocar essa região como alvo de
disputa entre os antigos Vice reinados, desconsiderando a própria autonomia Alto peruana. Em
relação a isso Simón Bolívar se posicionou, em carta a Francisco de Paula Santander, datada de
18 de fevereiro de 1825, afirmando a complexidade da região, circunstância em que asseverou:
[...] el alto Perú pertenece de derecho al Rio de la Plata, de hecho a espana, de
voluntad a la independência de sus hijos que quieren un Estado aparte, y
pretención pertenece al Perú que lo há poseído antes y lo quiere ahora.
(MELLO, 1963, p. 67)
Desse pensamento também comunga Gabriel Rene Moreno quando afirma:
Tenemos aqui en mismo campo três soberanias; primera, la del Alto Perú
llamado a decidir sobre su suerte; segunda y terceira soberanias, las del
Congreso Peruano y Congreso Argentino [...] Con solo enunciar la
coexistência se advierte que, por propia naturaliza o si quiere por causa de
incompatibilidade radical, la soberania alto peruana era excluyente de las otras
dos. (MORENO, 2014, p. 511-512)
Entretanto, Ovando Sanz contrapõe afirmando que a disputa pelo Alto Peru passava pelo
crivo de cinco soberanias, ou seja, a essas três juntavam-se também a ex-metrópole hispânica e
o império brasileiro. O autor sustenta ainda que a ação brasileira em Chiquitos buscava
incorporar ao Império brasileiro “[...] una vastíssima región fabulosamente rica en recursos de
toda índole [...]”. (SANZ, 1986, p. 29)
Percebe-se que Sanz enfatiza a condição de riqueza” para enaltecer a região
chiquitana, apontando como uma possível justificativa para a ocupação da província por tropas
brasileiras. No afã de apontar o Império brasileiro como responsável pela investida, o autor
entra em choque com a descrição apontada por Oscar Tonelli Justiniano, quando se referindo à
mesma região e ao mesmo período cronológico a descreve da seguinte forma:
Las consecuencias económicas y sociales que trajo aparejada la Guerra
de la independencia en Alto Perú, fueron diversas y muy significativas.
En el caso especifico de Chiquitos, se puede decir que sumieron a una
provincia que ya se encontraba en decadencia, en uma situación de relativo
desorden y desolación. […] todo lo anterior, pero especialmente las
contribuciones forzosas, determinaron que en Chiquitos se campeara la
miseria y que por ende la población pasara necesidades e inclusive llegara a
sufrir hambre. (SANZ, 1986, p. 29)
Se durante o período das guerras de independência a província de Chiquitos havia
contribuído, forçosamente ou não, com o fornecimento de braços para a disputa armada, grãos,
carne vacum, muares, equinos, armas e outros bens e produtos, ao término das pelejas
independentistas, a mesma província se encontrava exaurida. A agricultura, em função
da diminuição de braços para o trabalho reduziu sensivelmente os rendimentos.
A diminuição da força de trabalho nessa área deveu-se, principalmente, às constantes
migrações de jovens nativos, que diante das circunstâncias buscavam em outros lugares
alimentar melhores expectativas de vida, como esclarece Justiniano Tonelli:
[...] después de 15 años de revolución, debieron quedar
pocos hogares chiquitanos sin bajas, heridos o lisiados o
miedo da hambre y miseria determinaron o éxodo de
muchas familias […] (JUSTINIANO, 2004, p. 144)
Diante dessa situação de desgaste e penúria, a teoria de que a invasão de Chiquitos foi
obra da sede imperialista do Imperador Pedro I vai se diluindo, à medida que se considera
que a própria província mato-grossense (lócus da tentativa de anexação), se encontrava
também em situação de instabilidade político-econômica interna.
Em que pese a determinação imperial para a constituição de um Governo Provisório uno
em Mato Grosso, a província continuava com os cofres públicos extenuados, situação que
parecia aprofundar ainda mais a acirrada disputa pelo poder administrativo entre seus
principais núcleos urbanos: Vila Bela da Santíssima Trindade e Cuiabá.
Esses elementos se constituem como contrassenso a um possível projeto de “usurpação
territorial”, que traria ao Império brasileiro, além do ônus econômico de uma província em
decadência, um desgaste diplomático desnecessário com as incipientes repúblicas vizinhas.
O contexto dos acontecimentos durante o processo e período imediatamente pós-
independente das colônias hispânicas e as relações destas com o Império brasileiro, foi
formando opiniões e sedimentando a construção historiográfica da imagem do Brasil. Tomando
como parâmetro o episódio da tentativa de anexação da província de Chiquitos ao Império
brasileiro, Juan Bautista Alberdi assegura:
Con la disolución del virreinato de Buenos Aires debido a la victoria de
Ayacucho, en el que Bolívar se emancipa de la energía española estas
provincias argentinas, el Brasil juzgaron el momento propicio para colocar
en el suelo la provincia de Chiquitos, pero Sucre, llevando a la empuñadura
de la mano de la espada, pidió explicaciones, que no tomó el emperador
d. Pedro dando por asignar esta responsabilidad a un error del Presidente de
Mato Grosso. (ALBERDI, 1946, p. 279)
A esse respeito, também comenta o agente americano em Buenos Aires, John
Murray Forbes, em correspondência com seu governo, em 27 de junho de 1825:
[...] não podia ser outro, senão o ressentimento de um exército patriótico,
numeroso e triunfante, sob as ordens de Bolívar e Sucre, contra essa
torpe tentativa do Imperador do Brasil de estender um domínio que só em
meio a tremores pode manter em seu próprio país. (Apud MELLO, 1963, p.65)
Ainda segundo Forbes, já havia desembarcado no Rio de Janeiro reforços vindos da
Áustria para auxiliar o Império brasileiro na disputa que se descortinava, evidenciando o
apoio da Santa Aliança ao interesse expansionista do Imperador brasileiro. Em que pese
o tom nacionalista, essa assertiva suscitou críticas do historiador integralista Gustavo
Barroso, quando rebate essas afirmações como “[...] torpe invencionice [...] quando na
realidade tudo em Chiquitos não passara de uma leviandade provinciana”.
(BARROZO, 1965, p.71)
Barroso contesta de forma entusiasmada a não participação imperial no assunto
e critica de forma severa a atitude do agente americano esclarecendo que:
É incrível que um agente diplomático tenha servido de veículo a tão ridícula
atordoada. O Imperador da Áustria nunca mandou um soldado ao Brasil e as
relações entre ele e D. Pedro I foram sempre frias [...]. O Brasil recém-
emancipado não podia se vincular à Santa Aliança, que o ameaçava tanto
quanto às outras novas nações americanas. (BARROZO, 1965, p.71)
O pensamento de que o Brasil se apresentava como inimigo das nascentes repúblicas e
que receberia reforços da Europa, parece ter feito morada no imaginário efervescente do
ambiente revolucionário daqueles anos, pois, também Bolívar, em carta a Antonio José de
Sucre, em 20 de janeiro de 1825, deixa patentes seus receios em relação ao trono brasileiro:
[…] por las noticias que vienen de Europa y del Brasil sabemos que la
Santa Alianza trata de favorecer al Emperador del Brasil con tropas
para subyugar la América española, por consagrar el principio de
la legitimidad y destruir la revolución. También he sabido que los españoles
del Perú habían entrado en relaciones con el emperador del Brasil con la mira
de entrar en el gran proyecto de subyugación general, adhiriendo entre sí a los
principios monárquicos. (LIMA, 2003, p. 71)
E a imagem do Brasil em relação às Repúblicas que se iam formando foi sendo
pintada com as cores que lhe queriam dar. Como ocorreu em assembleia parlamentar
em Buenos Aires, com data de 8 de julho de 1825, quando o deputado argentino Julian
Segundo Agüero, justificando a necessidade de reforços e de maior atenção na questão da
Banda Oriental, por parte do seu governo declarou:
Yo sostuve entonces, que no había que engañarnos, y que estaba ya marcada
la época en que el Gobierno del Brasil debía desplegar sus planes para la
ocupación completa de la Banda Oriental, en los cuales va envuelta la
ocupación de los puntos ulteriores, sin los cuales la Banda Oriental no tendría
una perfecta seguridad. Han sobrevenido señores, sucesos que nos
han manifestado, que se extiende à mucho mas la ambición de aquella
corte. Quien habría pensado u la provincia de Chiquitos hubiera sido invadida,
como en efecto lo ha sido, y del modo que se la hecho, con el mismo objeto y
los mismos planes de engrandecimiento de aquel Estado sobre la ruina de uma
Republica imediata. (RAVIGNANI, 1937, p. 72)
Já o agente americano no Brasil, Condy Raguet, escrevendo também ao seu governo, em
27 de agosto de 1825, trata da questão de Chiquitos dando conta da desaprovação do
governo brasileiro, porém, deixando transparecer uma ótica tendenciosa, colocando em
dúvida a não participação brasileira na tentativa de anexação:
[...] não obstante a aparente desaprovação, não faltam os que suspeitam
suficientemente para crer que o governo de Mato Grosso não se teria
aventurado nunca a empresa tão arriscada como a invasão do Peru sem
ordens da autoridade Superior, expedidas antes do mês de fevereiro, época
em que as últimas informações daquele país apresentavam como
bamboleante a causa republicana e o exército Real numa situação de obter
benefícios com a cooperação do Imperial [...]. Confesso que me sinto um tanto
cético quanto à autenticidade do documento. Se resultasse autêntico não
revelaria senão uma torpe demonstração da habilidade dos seus autores
para saírem do dilema, pois dificilmente provável que o tratado de União tenha
podido ser ratificado sem a assinatura do Presidente ou do Ministro aqui, se à
primeira vista não tivessem descoberto que os procedimentos foram obra de
uma minoria. (MELLO, 1963, p. 67)
A questão de Chiquitos também não passou impune pela pena da imprensa rio-platense,
que não economizou tinta para levar à opinião pública uma imagem depreciativa do
governo brasileiro, conforme publicação do El Argos, jornal argentino ligado ao governo,
com data de 25 de junho de 1825:
[...] recebemos, não sem assombro, a notícia de que uma divisão de brasileiros
de Mato Grosso introduziu-se no Alto Peru e ocupou a província de
Chiquitos, sem observar nenhuma das formas que prescreve o Direito das
Gentes às nações que se dizem civilizadas [...]. Jamais acreditamos que
chegasse a tal ponto a imprudência e o desejo desenfreado de conquista o
levasse a investir contra as considerações mesmas a que deve sua
existência. E não contente de atrair sobre si a inimizade de todas as Repúblicas
do continente, ostentando a sua política arbitrária e perigosa com a retenção
da Banda Oriental; quis mais, chocando-se abertamente com elas e
provocando-as a uma guerra imediata [...]. (Apud MELLO, 1963, p.69)
O empenho jornalístico do El Argos continuou fomentando a discórdia, na tentativa de
demonstrar que um conflito entre o Exército Libertador e o Império brasileiro, além de
necessário era inevitável. Sendo o Jornal El Argos ligado ao governo rio-platense, o
interesse em angariar a simpatia pública e, principalmente do Libertador, contra o Império
brasileiro, justifica-se quando é analisada a posição de Bolívar em relação à participação de um
conflito armado entre o Brasil e as Províncias Unidas do Rio da Prata.
A depreciação do Império brasileiro e a possível participação de Bolívar no conflito
atenderiam frontalmente aos interesses de Buenos Aires em relação à margem Oriental. Nessa
perspectiva, sabendo da ocupação de Chiquitos por tropas de Mato Grosso:
[...] muy celebró el gobierno de Buenos Aires, el sucesso de Chiquitos, porque
creyó que el Libertador, entraria de seguro en sus miras, si quería vengar la
inmerecida ofensa. Sin embargo, la participación Bolivariana no se observo
(PAZ, 1999, p. 696)
Ovando Sanz, em suas análises sobre a questão de Chiquitos, aponta este episódio como
base para a justificativa de um enfrentamento bélico contra o Império brasileiro, e mais,
a ocupação da tropa mato-grossense na região chiquitana, por si só, já justificaria a
realização do Congresso do Panamá:
[...] La olvidada guerra de Chiquitos, es la clave no sólo de la lucha por la
independencia de la Banda Oriental del Uruguay, sino también de la
convocación al Congreso de Panamá, con vistas a formar una Gran
Federación Americana. (SANZ, 1986, p. 100)
Pelo contexto dos acontecimentos, é possível se compreender que uma condicionante
responsável pela não participação de Bolívar no conflito pode ser atribuída à oposição da
Inglaterra quanto ao envolvimento do Exército Libertador na questão cisplatina. Essa oposição
fez com que Bolívar determinasse a Sucre grande cautela em relação à questão de
Chiquitos, afirmando que agisse “[...] com muita prudência e delicadeza, a fim de não
faltarmos ao nosso governo nem desgostarmos a nossa amiga” (SANTOS, 2000, p.29)
No Brasil, um dos precursores dos estudos da hispano-américa e dos poucos autores
que trataram da questão de Chiquitos foi o pernambucano Sílvio Júlio de
Albuquerque Lima4. Porém, sua aproximação profissional com as repúblicas andinas parece
ter feito com que este autor preferisse tratar do assunto de forma reduzida e colocar sob suspeita
a não participação do Imperador brasileiro na questão. Segundo Sílvio Júlio, Mato Grosso
aceitou a incorporação por que:
[...] adivinhou, pressentiu a direção da política de Pedro I e quis alcançar-lhe
as simpatias [...]. A maioria ousou cometer a falta, na quiçá esperançosa
aprovação de Pedro I. [...] insignificantes figurinhas de uma obscurantíssima
junta governativa lá da fronteira jamais dariam um passo de tanta
periculosidade, caso não supusessem que atendiam, assim, aos desejos
do poder central e supremo [...]. As autoridades de Vila Bela, nunca
4 Historiador, professor, ensaísta, jornalista, filólogo, poeta e contista brasileiro; nasceu em Pernambuco em 1895.
Lecionou na Universidade do Brasil (UFRJ), ocupando a cátedra de História da América. Lecionou na Universidad
Mayor de San Marcos, no período de 1960 a 1973. Foi um dos primeiros acadêmicos brasileiros a se dedicar,
sistematicamente, a estudos sobre a América hispânica; orientou, entre outras, a primeira tese de doutorado em
história, defendida por uma mulher, no Brasil, a historiadora Eulália Lobo, especialista em História hispano-
americana. Disponível: www.revistas.usp.br/revhistoria/article/viewFile. Acesso em: 24/11/2014
procederiam como procederam se o ambiente nacional não estivesse
impregnado da mentalidade bucaneira de Pedro I. (LIMA, 1961, p. 199)
Sílvio Júlio, imbuído de admiração pela causa republicana das ex-colônias e aos feitos
bolivarianos, refere-se ao governo provisório de Mato Grosso de forma pejorativa e externa sua
repulsa à monarquia, na pessoa de D. Pedro I. Fazendo alusão ao sistema monárquico, ensaia
uma apologia às recentes repúblicas platinas inferindo que “[...] Antes da independência
tudo era escuridão, servidão, submissão à monarquia absoluta; com a independência
surgem a luz, a soberania nacional, a liberdade republicana”. (LIMA, 1957, p. 8)
Insinua atribuições ao Imperador brasileiro, colocando-o sob suspeita de ter autorizado o
governo provisório de Mato Grosso a aceitar a incorporação da província chiquitana e à invasão
da tropa na província alto-peruana.
Em relação à desaprovação enérgica da anexação por D. Pedro I, Sílvio Júlio informa:
É compreensível [...] a raiva, a ferocidade com que repeliu, ao senti-
lo impossível de efetivá-lo [...]. Quando se inteirou do fato, não teve
nenhum dos arrancos epileptoides que o invadiam constantemente. Só ao
se informar das reações que aquela parvoíce estava suscitando a criar-
lhe em torno muralhas de desconfiança é que ordenou a publicação de 6 de
agosto de 1825. (LIMA, 1961, p.199)
Sílvio Júlio chega a sustentar que a “Corte do Rio de Janeiro soubera do caso de 13 de
abril de 1825 antes de 6 de agosto de 1825 [...]”(LIMA, 1957, p. 8) e sugere que a distância
entre a capital do Império e Mato Grosso poderia ser percorrida em tempo bem inferior a quatro
meses de viagem. A afirmação de que o Império brasileiro já tinha conhecimento da anexação
em datas anteriores à da Portaria Imperial de 6 de agosto, induz a concluir que Sílvio Júlio
sugere, entrelinhas, que se o Império brasileiro soube, antes da comunicação oficial, e não
tomou providências em desfazer a anexação é porque não tinha interesse que fosse desfeita, ou
então, o mesmo Império, poderia ter, inclusive, autorizado tal medida. Entretanto, o autor não
apresenta nas obras consultadas nenhuma fonte que confirme suas insinuações.
Em relação à distância apontada por Sílvio Júlio, Arnaldo Vieira de Mello (1963),
esclarece:
[...] prova o autor que não leu a correspondência da época entre o Rio de
Janeiro e Mato Grosso. Porque a precariedade e lentidão das
comunicações se faziam sentir até nos casos mais urgentes, como se verifica
pelo aviso da declaração de guerra do Brasil às Províncias Unidas que,
remetido a Mato Grosso em 23 de dezembro de 1825, só teve o seu
recebimento acusado em Cuiabá no dia 15 de abril de 1826. (MELLO, 1963,
p. 25)
Na historiografia brasileira consultada que trata da tentativa de anexação de Chiquitos,
com exceção de Sílvio Júlio de Albuquerque Lima, todos atribuem o ônus da negligência à
inabilidade política dos membros do Governo Provisório de Mato Grosso e não ao Imperador
brasileiro. Esse é o caso de Hélio Vianna que, embora não comente de forma mais ampla a
respeito da questão de Chiquitos, tem a preocupação de esclarecer que a tentativa foi feita por
alguns membros do Governo Provisório de Mato Grosso, porém, alguns membros deste
mesmo governo “[...] mais esclarecidos, voltaram atrás de sua resolução [...]
anulando as providências tomadas antes”. (VIANNA, 1961, p; 64)
Antonio Pereira Pinto é um dos poucos autores brasileiros que tratam da questão de
Chiquitos, embora que superficialmente. Este autor afirma que o assunto não foi bem difundido
pela historiografia brasileira. Assevera que a política de conquista jamais foi meta nos planos
do governo brasileiro. Justifica que o vazio historiográfico em relação ao assunto deveu-se
principalmente ao “[...] cuidado que os estadistas do primeiro Império sempre manifestaram
de respeitar a integridade das Repúblicas circunvizinhas”. (PINTO, 1871, p. 21)
Contudo, essa justificativa se debilita quando se analisa que a posição dos “estadistas”
brasileiros deveria ser justamente o contrário, uma vez que a imagem do Império se encontrava
fragilizada frente às repúblicas vizinhas. Ou seja, divulgar e dar transparência aos fatos
seria, naquele momento, a maior prova de “respeito” à “integridade” das repúblicas que se
estavam erigindo.
Apesar de Pereira Pinto fazer alusão ao assunto, deixa lacunas em relação aos elementos
que deram causa e as consequentes repercussões da tentativa de anexação da província alto-
peruana de Chiquitos ao Império brasileiro. Na breve exposição do episódio, o autor, referindo-
se ao teor do documento Imperial que desaprovou a conduta do Governo provisório de Mato
Grosso, sai em defesa do Império brasileiro concluindo que:
[...] tão recta linguagem, tão elevados sentimentos como os que exprimem a
resolução imperial [...] redarguem victoriozamente às allusões, tantas
vezes reproduzidas contra a política de absorpção atribuída ao governo
brasileiro. (PINTO, 1871, p. 21)
Outro autor brasileiro que dá conta da lacuna historiográfica de Chiquitos na literatura
brasileira é o diplomata e historiador Argeu Guimarães. O mesmo faz uma crítica à
inércia historiográfica brasileira em relação ao tema afirmando que:
[...] o fato, longe de constituir para nós mácula ou desdouro,
representa, ao invés, padrão de glória, pela lealdade e honradez com
que desautorizou o gesto desasado de Araújo e Silva e, espontânea
e decorosamente, restituímos o território anexado. (GUIMARÃES, 1938.
p.133)
Guimarães em sua fala deixa transparecer, quase, uma justificativa para que
o tema seja explorado na seara da historiografia brasileira, quando afirma que, ao
contrário da omissão, o fato deve se constituir em marco de “lealdade e honradez”, pela
forma “decorosa” com que a anexação foi desfeita por “nós” brasileiros. Nessa mesma linha, o
acompanha Basílio de Magalhães, quando também enaltece a desanexação informando que
“[...] revestiu-se de íntegra nobreza o procedimento do Brasil em relação a esse deplorável
incidente [...]”. (MAGALHÃES, 1940, p. 293)
Porém, estes autores não tiveram, em suas obras, a anexação de Chiquitos como objeto
de estudo. Não apresentam um aprofundamento que concatene causas e consequências. Isso
fica claro quando Guimarães se refere a Araújo e Silva como se o mesmo fosse responsável
direto pela invasão, deixando de considerar que Araújo e Silva era um militar e para que
empreendesse uma missão dessa natureza teria que, necessariamente, ser autorizado por seus
superiores, responsáveis pelos destinos político-administrativos da província. Portanto,
entende-se que “o gesto desasado” de Araújo e Silva obedeceu à determinações superiores de
ordem provincial, até por que se fossem imperiais, o contingente que acompanhou o
Comandante militar provavelmente contaria com uma tropa muito maior.
Na perspectiva de que a anexação de Chiquitos foi obra do Governo Provisório de Mato
Grosso e não de ambições expansionistas territoriais do império brasileiro, corrobora
a informação notificada no Diário Fluminense em 20 de agosto de 1825, que
embora longa, é interessante por se tratar de uma manifestação que expressa o
posicionamento do Império brasileiro em relação ao assunto:
[...] é tão repreensível o comportamento do Governo Provisório
, que escusaria nossas reflexões, se nós quiséssemos deixar este
objeto às variadas interpretações de alguns gênios prevenidos. –
Que ideias tinha o Governo Provisório daquela Província quando
aceitou a precipitada federação? Tinha ele por ventura os olhos
sobre a imensidade do Brasil? Que novos grãos de força, ou de
riqueza lhe pretendia dar por uma aquisição impolítica, odiosa,
e reclamadora do direito das gentes? Quando? Em que tempo mostrou
o Governo de S. M. I. que tinha intenções agressoras contra os
Estados seus conterrâneos? [...] era, portanto, de se esperar que S. M.
o Imperador estranhasse com a mais pronunciada indignação a
conduta do Governo provisório de Mato Grosso, pela incompetência
de sua conduta [...]. As províncias limítrofes do Império já
deveriam conhecer este sentimento da nossa política; mas parece que o
gênio da intriga se esforça em algumas para romper o vínculo da boa
inteligência, que o Governo deseja ver inofenso. Não é, contudo, de
supor, que as suas ideias, tão solenemente enunciadas, caiam
do conceito, em que deveriam ser consideradas, pela conduta
irregular de uma Província, que se autorizou por si mesma a cometer
a violência em questão. (DIÀRIO FLUMINENSE, agosto de 1825)
A nota procura esclarecer que coube à província de Mato Grosso a participação
autônoma na contenda anexionista. A preocupação com a margem do governo brasileiro
se evidencia na redação jornalística quando é atribuída ao “gênio da intriga” a
responsabilidade pela disseminação pejorativa incidida ao Império brasileiro. Parte
dessa “intriga” pode ser entendida quando se lê no El Argos, de 2 de julho de 1825, a
seguinte publicação:
[…] Había visto la conducta de este trono inicuo y
despreciable. Atravesar desiertos inmensos de sus territorios a
robar uno de su vecino y robarla como escandalosa e
indignante: seduciendo a su jefe tan entregada, y presentarte con
todo el aparato de guerra, sin observar las formas en que la cultura
requiere [...]. La guerra de la muerte es el único medio de conciliación.
(Apud MACHICADO,1988, p. 80)
Tem-se, pois, a questão colocada sob a ótica de dois veículos de imprensa oficial
responsáveis por expressarem e divulgarem os interesses de seus respectivos governos.
O Diário Fluminense ligado ao governo brasileiro e El Argos a Buenos Aires. Sendo
as matérias veiculadas por ambos ideologicamente direcionadas, percebe-se o empenho
da redação no sentido de sensibilizar e justificar atos e fatos.
No caso do Diário Fluminense, a preocupação em eximir Sua Majestade de
qualquer responsabilidade na questão de Chiquitos chega a ser redundante; a província
de Mato Grosso recebe o ônus de sua imperícia política e desobediência ao Direito das
Gentes. A preocupação com uma imagem positiva do Império brasileiro foi sendo
tecida pelas tintas tipográficas do Diário Fluminense.
Em contrapartida o El Argos, escudando-se no episódio de Chiquitos,
busca sensibilizar a opinião pública platina e, principalmente, a de Simon Bolívar,
conclamando à “la guerra de la muerte”. O apoio bolivariano atenderia aos
anseios de Buenos Aires de trazer para si o jugo da
Banda Oriental, intento, segundo o pensamento platino, passivo de ser
alcançado caso o Exército Libertador fizesse frente no combate bélico contra
o Brasil.
A respeito das Portarias Imperiais de 6 e 13 de agosto de 1825, publicadas no Diário
Fluminense, as quais tornam sem efeito a anexação da província de Chiquitos, o autor
boliviano Ovando Sanz contrapõe afirmando ser essa determinação uma “versão
brasileira” da ocupação, manifestando a tese defendida por ele de que:
Naturalmente tal versión se vería en la imposibilidad de probar que
ella era la mejor forma de precautelar la defensa de la capital
de Mato Grosso pero si estaría em condiciones de demonstrar no solo
que las autoridades de esa provincia actuaron para hacer un
servicio a Su Majestad Imperial y al Imperio, sino que respondía a
los objetivos expansionistas de la Corona, y que fue iniciativa
de ella. Lógicamente, los términos de la orden no son en absoluto
convincentes, en especial si se toma en consideración la tardanza con
que fueron redactados, alegando falta de conocimiento oportuno del
assunto. (SANZ,1986, p. 126)
Ou seja, segundo este autor, os documentos dão conta da necessidade
de negar uma intenção expansionista por parte do Império brasileiro, como
também objetivava “maquiar” a imagem imperial para viabilizar o seu
reconhecimento pelas nações europeias.
Em relação à “tardanza” no posicionamento do governo brasileiro sobre
o assunto, convém saber que mediante as dificuldades de comunicação da época, a Corte
brasileira só tomou conhecimento do fato em agosto de 1825, quando D. Pedro I ordenou
Portaria, firmada pelo então Ministro do Império, Estevão Ribeiro de Resende, em 15 do
mesmo mês, tornando sem efeito a tentativa de anexação.
O recebimento desse documento foi acusado já na gestão do Presidente da
Província de Mato Grosso, José Saturnino, em 25 de dezembro de 1825. Ou
seja, O Governo Provisório já tinha inclusive deixado de existir. Isso prova a
precariedade das comunicações entre o Rio de Janeiro e a província mato-grossense,
condição óbvia da falta de celeridade nas informações.
O que o nobre historiador boliviano deixou de esclarecer em sua obra é que seria
pouco provável que ao Império brasileiro interessasse um conflito dessa natureza,
considerando o respeito que este mesmo Império tinha pela causa republicana das
repúblicas vizinhas. Isso poderia ter sido explorado pelo autor se o mesmo tivesse
considerado o que diz o Diário Fluminense em 3 de março de 1825:
[...] Vimos cartas comerciais de Lima, datadas de 31 de agosto de
1824, relatando o descorsoamento das autoridades espanholas
em relação aos avanços do Exército Libertador. [...] os
espanhóis [...] sentiram grande consternação sabendo sua
impossibilidade de contenderem com a cavalaria colombiana [...]. O
Exército de Bolívar estava muito entusiasmado e na melhor
ordem. (DIÁRIO FLUMINENSE, março de 1825)
Ainda no Diário Fluminense do dia 4 de março de 1825, é publicada a seguinte
nota:
Finalizou enfim a renhida contenda dos independentes espanhóis da
América com os realistas, e triunfou a causa da justiça e da razão;
sim, Bolívar, este imortal propugnador da independência da
América espanhola, conseguiu expulsar por uma vez para fora do
território americano ao Vice-rei do Peru D. José de La Serna. [...] não
temos por hora obtido os detalhes da ação, que decidiu a
independência da América espanhola, ansiosamente os procuramos,
e logo que os tenhamos nos apressaremos em os apresentar a nossos
leitores. (DIÁRIO FLUMINENSE, março de 1825)
Promessa cumprida. Em 18 de março de 1825, o Diário Fluminense deu
conta da capitulação do Exército espanhol no Peru, tornando público os Artigos
da Capitulação propostos por D. José Cauterac, Tenente Coronel dos Reais Exércitos de
Sua Majestade Católica. (DIÁRIO FLUMINENSE, março de 1825)
Vê-se, portanto, que o Império brasileiro não estava alheio ao processo das lutas
independentistas das repúblicas vizinhas e, nem tampouco, parece demonstrar
interesse em uma vitória espanhola. Pelo contrário, percebe-se expectativas
positivas em relação ao Exército Libertador de Simon Bolívar, quando enaltece a
figura do Libertador por ter conseguido “ expulsar por uma vez para fora do território
americano ao Vice-rei do Peru D. José de La Serna”. (DIÁRIO FLUMINENSE, março
de 1825)
Essas publicações se constituem em grande relevância por terem sido publicadas
em datas anteriores aos acontecimentos de Chiquitos. Entende-se que essas
manifestações públicas, através de um meio de comunicação que representava o
pensamento do governo vigente no país, e, portanto, formador de opinião, não arriscaria
cair no descrédito público, autorizando a ocupação de uma província que não lhe
pertencia.
Isso levar a crer que esse meio de comunicação provavelmente não desconsideraria
o que, a pouco mais de trinta dias da tentativa de anexação da província de
Chiquitos, havia referido com tanta ênfase à pessoa do “imortal Libertador”, citado
na nota do dia 4 de março de 1825. Portanto, anterior à comunicação feita pelo Governo
Provisório de Mato Grosso, informando ao Império a anexação, datada de 15 de abril de
1825.
Como dar crédito a uma ação premeditada do Império brasileiro, quando esse
mesmo Império reconhecia que a participação de Bolívar no processo emancipador da
América representava o triunfo da “justiça” e da “razão”? Que adjetivava a pessoa de
Bolívar como o “propugnador da independência da América”?
Duvidoso também conceber a ideia de que o Governo brasileiro tinha intenções em
fortalecer ao Vice-Rei do Peru, La Serna, contra os patriotas. Basta considerar que após
a vitória de Ayacucho o Vice-Rei, em seu retorno à Espanha, demorou alguns dias no Rio
de Janeiro acompanhado de alguns oficiais superiores, subalternos e alguns civis,
recebendo do Governo brasileiro todo o favorecimento burocrático para que os mesmos
seguissem viagem.
Caso o Brasil estivesse alicerçado pelos interesses da Santa Aliança como
desconfiavam os independentistas, não seria esse um momento propício para a
possibilidade de colocar em prática um plano de ação? Entretanto, o Ministro Carvalho e
Melo assina uma Ordem em 24 de março, publicada pelo Dário Fluminense em 2 de abril
de 1825 com a seguinte determinação:
Manda S. M. o Imperador, pela Secretaria de Estado dos Negócios
Estrangeiros, que o Brigadeiro-Governador da Fortaleza de
Villegagnon, passe as convenientes ordens aos oficiais incumbidos do
Registro do Porto, para que deixem seguir viagem sem impedimento
algum ao Vice-rei do Peru, D. José de La Serna, Conde dos Andes, e
demais espanhóis constantes da relação, assinada pelo oficial maior
desta Secretaria de estado [...] os quais tendo arribado ao Porto
desta capital, no navio francês Ernestina, em que vieram do Peru, no
mesmo continuam viagem para Bordeaux. (DIÁRIO FLUMINENSE,
abril de 1825)
Em que pese a nação brasileira ser regida por um sistema monárquico,
a simpatia do Governo Imperial, ao menos de público e oficialmente, era pelos
revolucionários, que, embora republicanos, lutavam contra as mesmas forças reacionárias
que teimavam em não reconhecer a independência brasileira.
Nessa perspectiva, embora com regimes políticos divergentes, o “inimigo” era
comum e o respeito à soberania necessariamente deveria ser condição primordial. Nesse
caso a união contra um mesmo adversário passa a ser considerada. A esse respeito José
Carlos Brandi Aleixo informa que em 1822, o último Ministro de Negócios Estrangeiros
nomeado por D. João, Silvestre Pinheiro Ferreira, propôs um projeto de "Tratado de
Confederação e Mútua Garantia de Independência" às repúblicas que se estavam erigindo
no Continente americano. Esse projeto tinha como objetivo:
Assegurar a obra de regeneração da grande família hispano-
lusitana, composta de diferentes Estados que, apesar de
independentes entre si, estavam natural e necessariamente unidos
em uma confederação de independência em relação a qualquer
potência agressora deste direito, o mais sagrado e inalienável de todas
as nações. (MELLO, 1963, p.77)
Esse pensamento pode ser observado também em carta de José Bonifácio de
Andrada e Silva, ainda em junho de 1822, dirigida a Bernardino Rivadávia,
ministro de governo em Buenos Aires nos seguintes termos:
[...] o mesmo senhor (Príncipe D. Pedro), como Regente do Brasil, não
deseja nem pode adotar outro sistema que não seja o Americano, e
está convencido de que os interesses de todos os Governos da
América sejam quais forem se devem considerar homogêneos, e
derivados todos do mesmo princípio; ou seja: uma justa e firme repulsa
contra as pretensões da Europa. (Apud ALEIXO, 2014, p. 86)
Considerando-se a condição de única nação monárquica no continente, a
busca pelo seu próprio reconhecimento político frente às nações estrangeiras,
somadas às próprias condições econômicas, políticas e sociais internas do Brasil, é
possível compreender que um confronto armado com as vizinhas repúblicas não se
constituiria em medida que favorecesse ao país.
Consultando a literatura histórica brasileira, com exceção de Sílvio Julio de
Albuquerque Lima, foi possível perceber que os poucos autores que fizeram referência
à anexação de Chiquitos o fizeram reprovando o episódio e atribuindo o ato
precipitado ao localismo provincial e não ao governo Imperial, como afirma o
jurista cearense Clovis Beviláquia, referindo-se ao parágrafo 26 do Capítulo dos
Deveres, em seu Compêndio do Direito Público Internacional:
Considerando-se a condição de única nação monárquica no continente, a
busca pelo seu próprio reconhecimento político frente às nações estrangeiras,
somadas às próprias condições econômicas, políticas e sociais internas do Brasil, é
possível compreender que um confronto armado com as vizinhas repúblicas não se
constituiria em medida que favorecesse ao país.
Consultando a literatura histórica brasileira, com exceção de Sílvio Julio de
Albuquerque Lima, foi possível perceber que os poucos autores que fizeram referência
à anexação de Chiquitos o fizeram reprovando o episódio e atribuindo o ato
precipitado ao localismo provincial e não ao governo Imperial, como afirma o
jurista cearense Clovis Beviláquia, referindo-se ao parágrafo 26 do Capítulo dos
Deveres, em seu Compêndio do Direito Público Internacional:
§ 26. — Não devem aceitar que se incorpore, ao seu organismo político,
uma parte de outra nação, que tente desagregar-se delia, por
movimento insurrecional. E, igualmente, ilícita a incorporação de
uma parte de outro Estado, sem a livre aquiescência deste.
(BEVILÁQUIA, 1910.p 175)
Ainda é Beviláquia que, chamando atenção para o que estabelece este
parágrafo, toma o caso de Chiquitos como parâmetro e a desaprovação do Império
brasileiro como exemplo do cumprimento dos deveres do Estado:
[...] seria de uma lealdade duvidosa o procedimento de uma nação, que
aproveitasse a exaltação dos ânimos, o impulso irrefletido dos ódios
políticos, para, à sombra de sentimentos de interesseira benevolência,
ensanchar as suas fronteiras. (BEVILÁQUIA, 1910.p 175)
Estabelecendo relação com essa mesma linha de pensamento, Pandiá Calógeras
assevera que aceitar o alvitre da anexação de Chiquitos:
[...] desencadearia a guerra em toda a fronteira, e armaria contra o
Brasil e a dinastia todas as forças republicanas da América do Sul,
certos os brasileiros de antemão de que a elas se ligariam os
elementos antimonárquicos existentes no território nacional.
(CALÓGERAS, 1998, p. 420)
As afirmações contrárias ao não envolvimento ou desconhecimento do
governo brasileiro na tentativa de anexação da província chiquitana ao Império
brasileiro não se sustentam por não apresentarem provas que fundamentem a
participação ou o aval do governo brasileiro na negociação. As fontes pesquisadas pelos
autores que tratam dessa “suspeita” não apresentam provas cabais, apontam apenas
suposições, apoiadas em um contexto histórico específico das lutas independentistas, que
enxergavam o Brasil monárquico como um possível inimigo da causa libertadora, apoiado
pelos interesses da Santa Aliança.
Entretanto, o corpus documental e bibliográfico analisados na elaboração desta
tese, dá conta de provas que afirmam o incidente de Chiquitos como interesses
isolados de alguns membros pertencentes ao Governo Provisório de Mato Grosso.
Portanto, entende-se que só esses membros não representavam os interesses do Governo
Provisório enquanto representante político-administrativo da Província e, muito
menos, do Império brasileiro como um todo.
Esses interesses se evidenciam quando a documentação aponta que o Império
brasileiro só tomou conhecimento do ocorrido meses depois, quando o próprio
Governo de Mato Grosso, alguns meses antes, em assembleia com a presença de
todos os representantes do Governo, já havia deliberado a anulação do acordo.
É possível afirmar que a tentativa de anexação foi um ato de interesse individual
de Sebastião Ramos, Governador de Chiquitos e a inabilidade política de Manoel
Veloso Rabelo de Vasconcelos, Comandante provincial das Armas e Deputado, que
respondia, naquele momento, pela Presidência do Governo Provisório de Mato Grosso e
que, possivelmente, tenha acreditado ser possível obter a simpatia do Imperador
colocando sob proteção imperial brasileira um realista.
Até onde a pesquisa alcançou não se encontrou nenhum indício que leve a crer
que o Império brasileiro, em algum momento, tenha fomentado, mesmo que
indiretamente, qualquer iniciativa no sentido da anexação, pensamento inclusive
defendido por Humberto Vazquez Machicado, historiador boliviano, quando assegura:
“No cuentan en Mato Grosso, incluso con un [..] consentimiento tácito del emperador, y
todos habían sido forjada dentro de los limites [..] el localismo provincial” (VAZQUEZ-
MACHICADO, 1938, p. 379)
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Aires: ELE, 1946 p. 279. Disponível:
tps://archive.org/details/elimperiodelbras00albeuoft. Acesso em: 20/11/2014
ALEIXO, José Carlos Brandi. O processo de independência do Brasil e suas relações
com os países vizinhos. Disponível:
http://www.flacso.org.br/portal/pdf/serie_estudos. Acesso em: 18/12/2014.
BARROSO, Gustavo. A questão da Banda Oriental vista por um norte-americano. O
Cruzeiro. 15 de março de 1958.
BEVILÁQUIA, Clóvis. Direito publico internacional: a synthese dos princípios
e a contribuição do Brazil. Tomo I. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1910.
Buenos Aires: Universidade de Buenos Aires, 1937, p. 62. Disponível:
http://ravignanidigital.com.ar/asambleas/asa2/asa2110000.html?h=62.Acesso:
21/12/2014
CALÓGERAS, João Pandiá. Política exterior do Império. Vol. II: O Primeiro
Reinado. Brasília: Senado Federal, 1998.
Diário Fluminense, 2 de abril de 1825. Nº 72, Vol. 5. Hemeroteca da Biblioteca
Nacional, Rio de Janeiro.
Diário Fluminense, 18 de março de 1825. Nº 60, Vol. 5. Hemeroteca da Biblioteca
Nacional, Rio de Janeiro.
Diário Fluminense, 20 de agosto de 1825. Nº 42, Vol. 6. Hemeroteca da Biblioteca
Nacional, Rio de Janeiro.
Diário Fluminense. 4 de março de 1825. Nº 44, Vol. 5. Hemeroteca da Biblioteca
Nacional, Rio de Janeiro.
Diário Fluminense. 3 de março de 1825. Nº 44, Vol. 5. Hemeroteca da Biblioteca
Nacional, Rio de Janeiro.
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Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1938.
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