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8/6/2019 Papel da Memória
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.-vnalise do discurso 2. Histor ia 3. Linguagem
.iistoria -1-.Memoria (Filosofia) 5. Semiotica
Sociolingutstica I.Achard. Pierre. II. Davallon.
"z III. Durand, Jean-Louis. IV. Pecheux, Michel,
-'~-19S~. V. Orlandi, Eni Puccinelli, 1942-.
' .:un,, '. Jose Horta. VII. Titulo.
DEDALUS - Acervo - FFCLRP
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20800022026
Dados Internacionais de Catalogacao na Puhlicacao (CIP)
(Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
~~:cd da memoria iPierre Achard ... [et al.] ;
. r. iducao c introducao Jose Horta Nunes. -
Campinas, SP Pontes, 1999.
Omros autores: Jean Davallon, Jean-Louis
__:~"j. "!iehel Pecheux. Eni Puccinelli Orlandi .
CDD-401.4
Indices para catalcgo sistematico:
:"' inguagcm e historia -1-01.4
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Copyright © 1999 dos Autores
Direitos de traducao gentilmente cedidos para a
Pontes Editores
Coordenacdo Editorial: Ernesto Guimaraes
Capa. Claudio Roberto Martini
Reuisdo: Equipe de revisores da Pontes Editores
iNDICE
Introducao 7
Memoria e Producao Discursiva do Sentido 11
A Imagem, uma Arte de Memoria 23
Memoria Grega 39
Papel da Memoria .49
PONTES EDITORES
Rua Maria Monteiro 1635
13025.152 Campinas SP Brasil
Fone (019) 252.6011
Fax (019) 253.0769
e-mail: ponteseditor@lexxa.com.br
Maio de 1968: Os Silencios da Memoria 59
1999
Impresso no Brasil
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INTRODUr;AO
o conjunto de quatro textos que ora apresentamos cons-
titui a sessao tematica «Papel da Memoria» inserida em Histo-
ria e Linguistica, uma publicacao das Atas da Mesa Redonda
«Linguagem e Sociedade», realizada na Escola Normal Superi-
or de Paris em abril de 1983. Esse coloquio reuniu especialistas
de divers as areas, tendo como ponto de encontro a relacao entre
lingua e historia. 0 tema particularmente enfocado aqui, a me-
moria, e visto sob diferentes aspectos: lembranca ou reminis-
cencia, memoria social ou coletiva, memoria institucional, me-
moria mitologica, memoria registrada, memoria do historiador.
Atravessando os artigos, a questao: 0que e produzir memoria?Como a memoria se institui, e regulada, provada, conservada,ou e rompida, deslocada, restabelecida? De que modo os aeon-
tecimentos - historicos, mediaticos, culturais - sao inscritos ou
nao na memoria, como e1essao absorvidos por ela ou produzem
nela uma ruptura ?
Estas quest6es se desenvolvem nos artigos atraves de di-
ferentes perspectivas disciplinares, inc1uindo-se elementos de
historia, serniotica, sociolingufstica, analise de discurso. Alern
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disso, a memoria e analisada em sua materialidade complexa,
com enfase para a relacao do texto com a imagern, para a passa-
gem do visfvel ao nomeado. Por urn lado, os textos fundadores
de memoria: mitos, relatos, enunciados, parafrases, Por outro, a
eficacia simbolica da imagem: a reproducao pictorica, 0meio
televisual e ate objetos arqueologicos, Ficam expostas ao leitor
diferentes praticas memoriais presentes na sociedade ocidental,
sejam aquelas da Grecia antiga, sejam as que emergem com as
recentes mudancas tecnologicas.
arquiteturas, etc.), como operadores de memoria social, traba-
lham no sentido de entrecruzar memoria coletiva (lembran<;a,
conservacjin do passado, foco da tradicao, monumento de remi-
niscencia) e historia (quadro dos acontecimentos. conhecimen-
to, documento historico),
Analisando a construcao discursiva do sentido e 0 funci-
onamento dos irnplfcitos, Pierre Achard mostra que a memoria
nao pode ser provada, nao pode ser deduzida de urn corpus,
mas ela so trabalha ao ser reenquadrada por formulacoes no
discurso concreto em que nos encontramos. 0 implfcito de urn
enunciado (Achard analisa 0 enunciado: «Neste memento, 0
crescimento da economia e da ordem de 0,5%») nao contern sua
explicitacao, nao se pode provar que ele tenha existido em al-
gum lugar. 0 que funcionaria entao seriam operadores
linguageiros imersos em uma situacao, que condicionariam 0
exercfcio de uma regularidade enunciativa. Haveria, deste modo,
a colocacao em serie dos contextos e das repeticoes forrnais,
numa oscilacao entre 0 historico e 0 lingiifstico. Atraves das
retomadas e das parafrases, produz-se na memoria urn jogo deforca simbolico que constitui uma questao social.
Do contemporaneo pass amos para 0 antigo. Jean-Louis
Durand faz uma interrogacao envolvendo as praticas memoriais
da Grecia classica. Ele coloca uma questao de enunciacao im-
portante: quem fala e com que direito, ao se produzir memoria?
No caso da Grecia antiga, a producao da memoria so se daria na
presenca do poeta epico - de Homero - por meio de urn texto
produzido fora do domfnio da cidade. No entanto, ha uma con-
tradicao na memoria, com a oposicao dos valores de grupo, dos
textos hornericos, aos valores eticos, politicos, sociais em umadada situacao. Ao examinar a imagem de urn vasa grego, Durand
nota a possibilidade de remissao ao mesmo tempo a urn heroi da
epopeia e a urn simples combatente da cidade, um guerreiro
anonirno. Se pensarmos nos sistemas atuais de memoria, pode-
remos ver a relacao das praticas memoriais greg as com as me-
morias heroicas estabelecidas em nossa sociedade.
Jean Davallon aponta, depois do aparecimento da im-
prensa, 0 desenvolvimento dos meios de registro da imagem e
do som como fatores que deslocam a questao da memoria soci-
al, que nao se encontraria mais nas «cabecas» dos indivfduos,
mas nas mfdias. 0 autor esboca uma reflexao sobre a imagem
contemporanea como operadora de memoria. Pela analise do
registro televisual de urn acontecimento (a posse do presidenteMitterrand na Franca), e questionada a distancia que separa a
«realidade» do «fato de significacao», DavaIIon lanca a hipote-
se de que os objetos culturais (livros, escritos, imagens, filmes,
Em seguida 0 livro, 0 artigo de Pecheux faz uma retoma-.
da das exposicoes anteriores, situando-as no contexto das pes-quisas em analise de discurso. Ele discute como as questoes de
lingiifstica e de discurso aparecem nos estudos sobre memoria,
introduzindo urn debate sobre as disciplinas de interpretacao.
Nesse sentido, ele pergunta: a lingufstica e uma disciplina pura-
mente experimental ou ela tern algo a ver com as disciplinas de
interpretacao? Por sua vez, a analise de discurso cada vez mais
busca se distanciar, afirma Pecheux, das evidencias da proposi-
cao, da frase e da estabilidade parafrastica. Ademais, ela permi-
te, apos os trabalhos de Benveniste e Barthes com a nocao de«significancia», avancar teoricamente e tecnologicamente na
relacao do texto com a imagem.
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Os textos aqui reunidos guardam as marcas do debate
em meio ao qual foram concebidos, com 0 tom urn pouco colo-
quial e as freqiientes remissoes a outros expositores. Como re-
sultado dessas discussoes, salientamos 0 seguinte comentario
de Pecheux: «A certeza que aparece, em todo caso, no fim desse
debate e que uma memoria nao poderia ser concebida como
uma esfera plena, cujas bordas seriam transcendentais histori-
cos e cujo contetido seria urn sentido homogeneo, acumulado
ao modo de urn reservatorio: e necessariamente urn espaco mo-
vel de divisoes, de disjuncoes, de deslocamentos e de retoma-
das, de conflitos de regularizacao ... Urn espaco de desdobra-
mentos, replicaspolemicas e contra-discursos». Pouco mais de
dez anos depois, este e urn momenta bastante apropriado para
retomar esse acontecimento, atualiza-lo, inseri-lo em nosso con-
texto para que produza sentido e memoria.
MEMORIA E PRODU9AO DISCURSIVA DO
SENTIDO
,,it.
Acrescentamos ainda nessa edicao 0 texto de Eni Orlandi
"Maio de 1968: os silencios da memoria", em que a autora apre-
senta uma reflexao sobre a relacao entre memoria e censura no
contexto da ditadura no Brasil. Neste caso rnostra-se que ha aeon-
tecimentos que nao se inscrevem na memoria, como se nao ti-
vessem ocorrido: os sentidos de Maio de 68, entre eles, os rela-
cionados a palavra "liberdade", sao evitados em urn processo
historico-polftico silenciador, de modo que se estabelece umafalta na memoria.
Jose Horta Nunes
Se, a partir de uma posicao de analise de discurso, que-
remos falar do papel da memoria, e, por conseguinte, do estatu-
to dos implfcitos, logo encontramo-nos em posicao delicada.
Mas se este e urn ponto em direcao ao qual e perigoso se aven-turar - sendo real 0 risco de uma interpretacao psicologista dos
implfcitos - e no entanto necessario se preocupar com ele. Ten-
tarei entao falar sobre isso, considerando que a estruturacao dodiscursivo vai constituir a materialidade de uma certa memoria
social. Bern entendido, nao se trata de avancar 0 termo
"materialidade" como mascara retorica para explicacoes que
seriam da ordem do inefavel ou do inconsciente coletivo, nem
de dar ao termo "memoria social" urn valor tal que nao terfamos
finalmente outro meio de analisa-lo senao coloca-lo.
Procurarei entao mostrar que e possfvel colocar urn cer-to mimero de hipoteses concernentes ao funcionamento formal
no discurso, hipoteses a relacionar com a circulacao dos discur-
sos; esta relacao deve permitir que nos afastemos de interpreta-
coes psicologicas da memoria em termos de "realmente-ja-ou-
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vido", memoria fono-magnetica ou registro mecanico, Para isso,
apoiar-me-ei sobre alguns exemplos.
memorizacao de uma forma maxima completa. Alern disso, esta
mernorizacao repousaria sobre urn consenso. Ora. se olhamos
mais de perto, a explicitacao desses irnplfcitos em geral nao enecessaria a priori, e nao existe em parte aIguma urn texto de
referencia explfcita que forneceria a chave. Essa ausencia nao
faz falta, a parafrase de explicitacao aparece antes como urn
trabalho posterior sobre 0explfcito do que como pre-condicao.
o que e pressuposto, esse consenso sobre 0 implfcito, e sornen-te uma representacao.
,I
t
t
Meu primeiro exemplo concerne ao funcionamento da
palavra "crescimento" no domfnio da Economia Polftica. Urn
enunciado como: "Neste momento, 0 crescimento da economiae da ordem de 0,5 %" faz apelo a urn certo mimero de irnplfci-
tos, dos quais evocarei apenas alguns. 0 primeiro deles e indu-
zido pela pressuposicao de que sepode aplicar uma "taxa" a um
"crescimento da economic", quer dizer, que a economia pode
ser medida (e nao simplesmente "verificada", como se diz da
temperatura em ffsica elementar). 0 segundo implfcito, que e
tambern urn implfcito segundo (quer dizer, que so toma seu sen-
tido em relacao ao primeiro), e a equivalencia, do ponto de vista
da taxa, entre as diferentes medidas possfveis. Particularmente,nesse caso, a diferenca entre PIB e PNB nao sera pertinente.
Em terceiro lugar, pressupoe-se implicitamente que esse cresci-
mento seja calculado dentro do prazo de um ano, prazo consi-
derado como evidente. Enfim, numa ordem urn pouco diferen-
te, 0 local desse crescimento nao e indicado; isto implica que
me situo em urn universo descritivo nacional, e que falo por
conseguinte do crescimento da economia francesa - ou, mais
exatamente, do crescimento da economia que conCerne a nacao,
ao pafs no qual a enunciacao se situa. Eo que da a este implfcitourn estatuto diferente dos precedentes, ja que ele remete mais a
"situacao" que a "memoria". A "memoria" intervem, no entan-
to, para enquadrar implicitamente a situacao no espaco nacio-
nal, pela falta. Esse enquadramento pode ser explicitamente
deslocado (podemos falar de "crescimento da economia mun-
dial") ou utilizado no seu nfvel abstrato atraves da retomada em
urn percurso C'em media, no mundo, 0 crescimento foi ...").
Urn outro exemplo desse fato foi discutido na oficina
sobre os manuais escolares I : ainda que se considere que eles
constituam uma vulgata em relacao a textos mais "elaborados",
o exame dos manuais concretos e sua confrontacao permite co-
locar em evidencia nao somente que eles estao sujeitos a cntica,apresentam variacoes consideraveis de urn a outro, sao
insatisfatorios para 0 que se espera deles, mas ainda que e ao
nfvel dos proprios implfcitos supostos por eles que eles chegam
a constituir a dita vulgata. Em suma, eles constituem a ilustra-
t;ao do fato de que, enquanto um registro discursivo supoe uma
vulgata para funcionar, a tentativa de escIarecimento, de
explicitacao desta vulgata, jamais "contem" 0 que seria neces-
sario para funcionar na retomada, e constitui na melhor das hi-
poteses uma primeira retomada da vulgata.
A representacao usual do funcionamento dos implfcitosconsiste em considerar que estes sao sintagmas cujo conteiido e
memorizado e cuja explicitacao (insercao) constitui uma para-
frase controlada por esta memorizacao - no nosso exemplo,
Do ponto de vista discursivo, 0 implfcito trabalha entao
sobre a base de urn imaginario que 0 representa como memori-
zado, enquanto cada discurso, ao pressupo-Io, vai fazer apelo a
sua (rejconstrucao, sob a restricao "no vazio" de que eles res-
peitem as formas que permitam sua insercao por parafrase. Mas
jamais podemos provar ou supor que esse impIfcito
(re)construfdo tenha existido em algum lugar como discurso
autonomo.
Se levamos em conta os elementos enunciativos que es-
ses implfcitos comportam, podemos ver em que esse problema
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de (rejconstrucao dos implfcitos corresponde tambem aquele
que Robert Lafont, em 0 trabalho e a lingua, designa como
"regulagem do praxema'? . Com efeito, 0 funcionamento do dis-
curso (e e nisso que a nocao de discurso se distingue da de fala
no sentido do CLG), supoe que os operadores linguageiros s6
funcionam com relacao a imersao" em uma situacao, quer dizer,levando-se em consideracao as praticas de que eles sao porta-
dores. De outro modo, 0passado, mesmo que realmente memo-
rizado, s6 pode trabalhar mediando as reformulacoes que per-
mitem reenquadra-lo no discurso concreto face ao qual nos en-
contramos.
Para ilustrar de maneira menos elementar a dialetica en-
tre repeticao e regularizacao, utilizarei, de modo metaf6rico,
urn imaginario topol6gico. Creio que esta analogia e relativa-
mente bern fundada. Tomemos uma serie numerica, que seja,
para utilizar urn exemplo simples, a serie 0, 112,2/3, 3/4, (... ).
Dizer que esta serie tende a 1 pode ser formulado dizendo quetoda vizinhanca de 1 contern toda a serie exceto urn numero
finito de termos. Assim, se admitimos que 0 termo geral da serie
e da forma s = (n - l)1n, vemos que a vizinhanca de 1 definida
como 0 conjunto dos mimeros compreendidos entre 999 999
999/1 000000000 e 1 000000001/1 000000000 compreende
todos os term os da serie exceto urn mimero finito de termos (os
1 000000000 primeiros). Bern entendido, s6 posso reconhecer
que esta serie tende a 1 porque substitui a enumeracao dos pri-
meiros termos pela regra que permite formular 0 termo gera!.
Pelas necessidades da analise, vamos supor urn funcio-
namento linguageiro que comporta apenas urn registro
discursivo, e colocar af 0 problema do "sentido de uma pala-vra". Admitiremos (como hip6tese lexicol6gica) que 0 que ca-
racteriza a palavra e sua unidade, sua identidade a si mesma,
que permite reconhece-la em seus diferentes contextos. De ou-
tro modo, colocarei aqui a palavra como uma unidade simb6li-
ca cujo reconhecimento a identificacao permite definir em ter-
mos de repeticao. Cada nova co-ocorrencia dessa unidade for-
mal fornece entao novos contextos, que vern contribuir a cons-
trucao do sentido de que essa unidade e 0 suporte. Mas para
poder atribuir urn sentido a essa unidade, e preciso admitir quesuas repeticoes - essas repeticoes - estao tomadas por uma regu-
laridade' .E uma regularidade desta ordem que supomos com 0
termo "crescimento" no registro econ6mico. Essa regularidade,
no entanto, nao se deduz do corpus, ela e de natureza hipotetica,
ela constitui uma hip6tese do analista. No caso do crescimento,
a hip6tese de analise que utilizei consistiu em supor que "cres-
cimento" e urn termo operador que comanda urn certo ruimero,
fixo, de posicoes. 0 aparecimento em diversos textos das dife-
rentes posicoes me permite fazer urn inventario delas e estabe-lecer suas regularidades, e me permite em seguida designar, la
onde elas nao sao explicitamente instanciadas, os tipos de im-
plfcito por que elas clamam.
Sem esta formulacao, nada garante que, com relacao a
uma vizinhanca suficientemente pequena, 0 mimero das exce-
coes continue finito. E como existe certamente uma infinidade
de series que comecam pelos mesmos termos, nenhuma obser-
vacao ernpfrica do comeco de uma serie nos permite deduzir a
regra. Em term os linguisticos, isso corresponde a constatar que
o corpus nunca e suficiente para fundar a gramatica, e que a
regularizacao repousa sobre urn jogo de forca. Acrescentamosaqui que 0jogo de forca pode designar 0 sentido como limite".
Urn procedimento desta ordem parece necessario se que-
remos abordar a sernantica de outro modo que nao como uma
semantica dos enunciados, que seria baseada em uma lista uni-
versal de traces semanticos pre-existentes e em sua combinat6ria.
A hip6tese de uma construcao discursiva do sentido e certa-
mente discutfvel, mas parece frutffera, pela abertura as praticas
que podemos estudar ao nfvel da dialetica entre repeticao e re-
gularizacao. Com efeito, 0 fechamento exercido por todo jogo
de forca de regularizacao se exerce na retomada dos discursos e
constitui uma questao socia!. Se situamos a mem6ria do lado,
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nao da repeticao, mas da regularizacao, entao ela se situaria em
uma oscilacao entre 0historico e 0 Iingufstico, na sua suspensao
em vista de umjogo de forca de fechamento que 0 ator social ou
o analista vem exercer sobre discursos em circulacao. Este even-
tual jogo de forca e suportado pelas relacoes de formas, mas
estas sao apenas 0 suporte dele, nunca estao isoladas. Elas estaoeventualmente envolvidas em relacoes de imagens e inseridas
em praticas,
mada se localiza nesse nfvel ,
A regularizacao se ap6ia necessariamente sobre 0 reco-
nhecimento do que e repetido. Esse reconhecimento e da ordem
do formal, e constitui urn outro jogo de forca, este fundador.
Nao ha, com efeito, nenhum meio ernpfrico de se assegurar de
que esse perfil grafico ou fonico corresponde efetivamente a
repeticao do mesmo significante. E preciso admitir esse jogo deforca simbolico que se exerce no reconhecimento do mesmo e
de sua repeticao. Por outro lado, uma vez reconhecida essa re-
peticao, e preciso supor que existem procedimentos para esta-
belecer deslocamento, comparacao, relacoes contextuais. E nessa
colocacao em serie dos contextos, nao na producao das superff-
cies ou da frase tal como ela se da, que vemos 0 exercfcio da
regra. De outro modo, e engendrando, a partir do atestado
discursivo, parafrases, a considerar como derivacoes de posst-
veis em relacao ao dado, que a regularizacao estrutura a ocor-rencia e seus segmentos, situando-os dentro de series. 0 que
desempenha nessa hipotese 0papel de memoria discursiva sao
as valorizacoes diferentes, em termos por exemplo de familiari-
dade ou de Iigacao a situacoes, atribufdas as parafrases, que
entretern entao, gracas ao processo controlado de derivacao, re-
lacoes reguladas com 0 atestado. Na hipotese discursiva, pois,
ao contrario do modelo chomskiano, 0 atestado constitui um
ponto de partida, nao 0 testemunho da possibilidade de uma
frase, e a memoria nao restitui frases escutadas no passado masjulgamentos de verossimilhanca sobre 0que e reconstitufdo pelas
operacoes de parafrase. Estas consideracoes deslocam 0 estatu-
to do que e provavel historicamente, porque a operacao de reto-
o que distingue entao 0 analista de discurso do sujeito
historico nao e uma diferenca radical mas um deslocamento. A
analise de discurso e uma posicao enunciativa que e tambern
aquela de um sujeito historico (seu discurso, uma vez produzi-
do, e objeto de retomada), mas de urn sujeito hist6rico que se
esforca por estabelecer um deslocamento suplementar em rela-
c;ao ao modelo, a hipotese de sujeito historico de que fala. 0
que proponho neste texto e urn modelo de trabalho do analista,que tenta dar conta do fato de que a memoria suposta pelo dis-
curso e sempre reconstrufda na enunciacao. A enunciacao, en-
tao, deve ser tomada, nao como advinda do locutor, mas como
operacoes que regulam 0 encargo, quer dizer a retomada e a
circulacao do discurso. Entre outras consequencias desta con-
cepcao, levaremos em conta 0 fato de que urn texto dado traba-
lha atraves de sua circulacao social, 0 que supoe que sua
estruturacao e uma questao social, e que ela se diferencia se-
guindo uma diferenciacao das memorias e uma diferenciacao
das producces de sentido a partir das restricoes de uma forma
unica.
Pierre Achard
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BIBLIOGRAFIA
LAFONT, R. (1978), Le travail et la langue, Flamarion, Paris
SAUSSURE, F . (1964), COUTS de linguistique generate, publ.
por charles Bailly e Albert Secheye, com a colab. de A.
Riedlinger, Payot, Paris (Ira. ed. 1915)
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NOTAS
I. (NDT) As oficinas, exposicoes e textos do col6quio citados neste livro
encontram-se publicados em Histoire et Linguistique, Pierre Achard,
Max-Peter Gruenais , Dolores Jaulin (Orgs). Edi tions de la Maison des
Sciences de I 'Homme, Paris , 1984.
2. Lafont, 1978.
3. Saussure, 1964.
4. A nocao de imersao ("plongement") - que, nas matematicas, e urn con-
ceito - sup6e ao mesmo tempo a possibilidade de urn ponto de vista
intrinseco, e propriedades induzidas pela consideracao da situacao no
espa~o da irnersao.
5. Esse efeito, alias, e reforcado sobretudo pela existencia de varios regis-
t ros art iculados nos discursos reais. Por exemplo, em economia da edu-cacao, 0 discurso econ6mico desenvolve 0 papel de urn registro maior
no qual sao retomados e articulados os registros da pedagogia, registros
de consideracoes tecnol6gicas, politicas, etc., tornados como englobantes
ou englobados, conforme 0 caso, 0 que faz com que haja sempre, na
retomada metaf6r ica das palavras, urn deslocamento de uso que s6 pode
repousar sobre a regularizacao suposta do funcionamento da palavra no
registro fonte.
6. Bern entendido, os matematicos nao se interessar iam tanto pelas series
se elas convergissem sistematicamente a ruimeros, como 1,ja definidos
em outro lugar. E na medida em que as series permitem definir novos
mimeros que elas sao interessantes. Do mesmo modo, a perspectiva que
proponho por analogia tern essencialmente por interesse propor pers-
pectivas para uma sernantica que nao se limite a uma combinat6ria de
semas pre-existentes,
21
illl;
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A IMAGEM, UMA ARTE DE MEMORIA?
o aparecimento da imprensa parecia ja ter tornado fora
de uso as "artes da memoria" antigas e medievais! . Com razao
mais pertinente, 0 desenvolvimento dos m eios de registro da
imagem e do som (essas extens5es de nossos sentidos, se acre-
ditamos em Me Luhan), que permitem estocar depois restituir 0
saber quase tao bern quanta os acontecimentos, parece hoje nos
afastar definitivamente da necessidade de situar uma parte damem6ria social na "cabeca" dos (ou de certos) sujeitos sociais:
a mem6ria social estaria inteiramente e naturalmente presente
nos arquivos das mfdias.
Uma tal concepcao tecnicista da mem6ria social, que
em muitos pontos assimila esta a "memoria" do computador,
supoe resolvidas duas quest5es maiores. A primeira e bastanteingenua: registrar, descrever, representar a realidade (saber ou
acontecimento) e suficiente para produzir mem6ria? Ou ainda:
a partir de quando, e do que, urn acontecimento constitui me-
m6ria? A segunda e sociol6gica: 0 que ocorre, nessa reducao
tecnicista, com os processos de manutencao da coesao social;
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com a instituicao/re-instituicao societal de que 0 funcionamen-
to da memoria e 0 lugar, e mais particularmente ainda, com a
reproducao das relacoes sociais e polfticas fundada sobre a
dominancia desse funcionamento da memoria social?
Pensemos, a proposito, numa cerimonia politica comoaquela da posse do Presidente da Republica: com os multiples
jogos que surgem entre a referencia, de urn lado, a uma memo-
ria social ja existente (0 Panteao, os herois republicanos) e, de
outro lado, a producao de uma nova memoria, Pois 0 registro do
"acontecimento' deve constituir memoria, quer dizer: abrir a
dimensao, entre 0 passado originario e 0 futuro, a construir, de
uma comernoracao .
Com esta alusao rapida a urn exemplo politico contern-poraneo, vemos que entre 0 simples registro da realidade e a
memoria social; que entre a reproducao de urn acontecimento e
a funcao social de instituicao/re-instituicao do tecido social atri-
buida a memoria, ha toda a distancia que separa a "realidade"
do "fate de significacao", Faria essa distancia pensar, em suma,
que a memoria, como Jato social, comportaria uma dimensao
semiotica e sirnbolica que Ihe seria intnnseca ?
Assirn, e em vista dessa dupla dimensao da memoria so-
cial (como fato societal e como fato de significacao) que gosta-
ria de esbocar aqui uma reflexao sobre a imagem contempora-
nea como operadora dememoria, mas convern antes indicar com
algumas palavras 0 que e preciso entender par memoria social
quando nos interessamos pelos objetos culturais ' .
24
Memoria social e producoes cuIturais
Uma primeira constatacao se impoe imediatamente: para
que haja memoria, e preciso que 0 acontecimento ou 0 saberregistrado saia da indiferenca, que ele deixe 0dommio da insig-
nificancia. E preciso que ele conserve uma forca a fim de poder
posteriormente fazer impressao, Porque e essa possibilidade de
fazer impressao que 0 termo "lembranca" evoca na linguagem
corrente, Urn sociologo urn pouco esquecido hoje, e verdade,
mas que uma sociologia do conhecimento nao poderia ignorar -
a saber, M. Halbwachs - caracterizaria alias a memoria como "0
que ainda e vivo na consciencia do grupo para 0 individuo e
para a comunidade+.
Uma segunda constatacao complementa a prime ira: lem-
brar urn acontecimento ou urn saber nao e forcosamente mobili-
zar e fazer jogar uma memoria social. Ha necessidade de que 0
acontecimento lembrado reencontre sua vivacidade; e sobretu-
do, e preciso que ele seja reconstruido a partir de dados e de
nocoes comuns aos diferentes membros da comunidade social.
Esse fundo comum, essa dimensao intersubjetiva e sobretudo
grupal entre eu e os outros especifica, diz-nos Halbwachs, a
memoria coletiva". Mas a contrapartida seria que a memoria
coletiva "so retem do passado 0 que ainda e vivo ou capaz de
viver na consciencia do grupo que 0mantem. Por definicao, ela
nao ultrapassa 0 limite do grupo'" .
Estas duas constatacoes convidam a salientar 0 carater
paradoxal da memoria coletiva: sua capacidade de conservar 0
passado e sua fragilidade devida ao fato de que 0 que e vivo na
consciencia do grupo desaparecera com os membros deste ulti-
mo. Alias, em paginas que mereceriam uma outra atencao e uma
outra apresentacao, que estas rapidas e alusivas evocacoes nao
permitem, Halbwachs pode assim opor a memoria coletiva a
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historia, 0 "foco da tradicao" ao "quadro dos acontecimentos"? ,
a "lernbranca" (corrente de pensamento continua no seio do gru-
po social) ao "conhecimento" (descontinuo e exterior ao pr6-
prio grupo). Em compensacao, a hist6ria resiste ao tempo; 0
que nao pode a mem6ria.
monumento de recordacao,
Se a distincao efetuada por Halbwachs entre "memoria
coletiva" e "historia" permite desse modo compreender melhor
por que registrar ou ainda lembrar urn acontecimento nao e obri-
gatoriamente ipso facto urn fato de mem6ria social, ela nos in-
troduz acima de tudo em uma problematic a dos objetos cultu-
rais considerados como operadores de mem6ria social. Eu me
explico.
Por conseguinte, apoiando-nos sobre essa oposicao en-
tre "memoria coletiva" e "historia" para considerar os objetos
culturais, poderfamos adiantar, a tftulo de hip6tese. que ~stes
ultirnos van no sentido nao de urn antagonisrno, mas antes deuma conjuncao, de urn entrecruzamento, de uma smtese entre
mem6ria coletiva e hist6ria.
Evoquemos novamente 0 exemplo da ernissaotelevisionada que "representava" a posse do Presidente da Re-
publica. Compreenderemos muito facilmente a questao politica
e a importancia sociol6gica que estao ligadas a possibilidade de
"casar" hist6ria e mem6ria coletiva: de entrecruzar, de aliar a
resistencia ao tempo que caracteriza uma e 0poder de impres-
sao - vivacidade - da outra. Assim, 0acontecimento, como acon-
tecimento "memorizado" podera entrar na hist6ria (a mem6ria
do grupo podera perdurar e se estender alem dos limites ffsicos
do grupo social que viveu 0 acontecimento); mas enquanto "his-torico". ele podera se tomar, em cornpensacao, elemento vivo
de uma mem6ria coletiva. Esta ultima adquirira entao uma ou-
tra dimensao: aquela, se podemos dizer, de uma memoria
societal. Como esse entrecruzamento se opera? Qual e 0 seu
instrumento? 0 acontecimento - no caso, a cerimonia do Panteao
-, por ser representado (0 que e mais e outra coisa do que ser
simplesmente registrado ou difundido), tomara 0 valor de uma
especie de ponto originario da comunidade social: 0 aconteci-
mento se dara em urn momenta singular do tempo; mas a essen-cia do ato se encontrara para sempre na pr6pria estrutura do
objeto que 0 representara (a ernissao televisionada, por exem-
plo)". Ele se tornara indissociavelmente documento hist6rico e
Trata-se af de uma simples hip6tese de trabalho, mas ela
nao me parece sem interesse no quadro de uma reflexao sobre 0
papel da mem6ria. Ela torna com efeito a adiantar que os obje-
tos culturais abrem a possibilidade de urn controle da mem6ria
social; que esse controle esta de fato estreitamente ligado ao
funcionamento formal e significante desses objetos; e que, porultimo, ele e urn fato social nao desprezfvel. Eis, a meu ver, 0
que merece ser examinado; embora nao seja questao de preten-
der encarar, no estado atual, a verificacao des sa hip6tese, seria
em compensacao uma atitude bastante heurfstica voltar-se so-
bre aquilo que autoriza sua formulacao.
IIE 0 que veremos a prop6sito da imagem.
A imagem, operador de memoria social
Por que a imagem? Porque ela oferece - ao menos em
um campo hist6rico que vai do seculo XVII ate nossos dias _
uma possibilidade consideravel de reservar a forca: a imagem
representa a realidade, certamente; mas ela pode tambern con-
servar a forca das relacoes sociais (e fara entao impressao sobre
o espectador).
L. Marin alias mostrou muito bern como, por exemplo,
no funcionamento do poder absoluto na idade classica, 0 retrato
do rei expbe em uma viva pintura as qualidades reais descritas-
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"contadas" - no relato de suas acoes; de tal maneira que estas se
transformam em substancia real. Do relato desse acontecimento
a imagem do rei, 0 que era 0 menos representavel, 0 menos
mernorizavel (a forca), torna-se 0mais presente na ocasiao da
representacao do personagem hist6rico do rei. Posso somente
aqui remeter as analises de Marin no que concerne ao modocomo esse uso das imagens se ap6ia sobre seu pr6prio funcio-
narnento" .
se poderia esquecer este ponto - com que a irr.agerr: c':"'.rY'e
urn program a de leitura: ela assinala urn cerro Jugal ao ·~5pc2[J-
dor (ou melhar: ela regula uma serie com a passagem de urna a
outra posicao de receptor no curso da recepcac c ,,:::
"rentabilizar" par si mesma a competencia semiotic c . c ':.: C e '
desse espectador!". Este e urn fato bastante conhecido pelospublicitarios,
Adicionemos que poderiamos, em contraponto a essa
analise e de urn modo comparavel, mostrar como a publicidade,
desta vez, utiliza a imagem em complementaridade com 0enun-
ciado lingtifstico para apresentar - tornar presentes - as qualida-
des de urn produto e conduzir assim 0 lei tor a se recordar de
suas qualidades, mas tambern a faze-Io se posicionar em meioao grupo social dos consumidores desse produto; a se situar, a
se representar esse lugar. No entanto, desenvolver essas anali-
ses nos levaria longe demais e demandaria muito tempo; note-
mos entao somente que esses dois exemplos indicam, para cer-
tos perfodos e segundo diferentes modalidades, a eficacia da
imagem em poder se inscrever em uma problernatica da mem6-
ria societal.
Se procuramos 0que serve de fundamento a eficacia sim-
b61ica da imagem, duas caractensticas semi6ticas parecem en-
tao bastante consideraveis,
Em primeiro lugar, uma imagem pode ser compreendida
ou recebida segundo dois nfveis diferentes. Cada urn desses dois
nfveis possui regras de funcionamento que Ihes sao, ao menos
parcial mente, pr6prias. Par exemplo, os c6digos perceptivos
mudam menos rapido que os c6digos iconol6gicos: par isso,
ficamos sensiveis a composicoes ou representacoes de quadros
da Renascenca (ou de publicidades do infcio do seculo) de que
ignoramos parcialmente a significacao: a potencia perceptiva
perdura, enquanto as significacoes se perdem. Resta uma orga-
nizacao formal que continua a constituir urn dispositive.
Eis 0 que nos conduzira talvez a encarar a imagem soburn prisma particular: rnenos a nos interessar pelo que a imagem
pode representar (as objetos do mundo), ou ainda pela informa-
<;;aoque ela pode oferecer, nem mesmo pelo modo como ela
efetua urn ou outro desses processos, do que a pres tar atencao a
maneira como certa imagem con creta e uma producao cultural-
quer dizer, a levar em consideracao sua eficacia simb6lica. Com
efeito, aquele que observa uma imagem desenvolve uma ativi-
dade de producao de significacao; esta nao Ihe e transmitida ou
entregue toda pronta. Esse estado de coisas abre, como alias
insistem em nos fazer observar, a uma liberdade de interpreta-
<;;ao0que quer dizer que 0conteudo "legfvel", ou antes "dizfvel",
pode variar conforme as leituras); mas 0que faz tambern - e nao
Sabemos, desde 0 artigo em muitos aspectos fundador
de E. Benveniste, aparecido em Semiotica em 1969, que exis-
tern dois modos de significacao: urn semiotico, fundado sobre 0
reconhecimento de unidades de significacao previamente defi-
nidas (eu reconheco 0 sentido das palavras), outro semdntico e
meta-semantico, fundado sobre a cornpreensao do senti do do
texto em sua totalidade (eu compreendo 0 sentido do conjunto
de uma frase, por exemplo) e que inclui os mecanismos da
enunciacao, Benveniste adianta que a imagem funciona antesde tudo sob 0modo sernantico e que ela nao pode conjugar os
dois modos de significacao (somente a lingua poderia operar
essa conjuncao) e ha urn largo acordo entre os semioticistas para
reconhecer que a imagem depende de uma abordagem textu-
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al". De minha parte, resumirei as coisas como segue: existe
uma especie de aproximacao entre as oposicoes formais (de for-
ma, de cor e de topologia) e a instancia textual e enunciativa: na
publicidade, por exemplo, certa relacao de cor ou certo contras-
te de forma retem 0 olhar e, ao mesmo tempo, quer nos dizer da
qualidade que distingue urn produto dos outros. Essa aproxima-
r.:aoescamoteia - se posso dize-Io - urn nivel interrnediario que
teria por homologo na linguagem 0nivel das palavras; a lingua-
gem supre alias essa escamoteacao (pode-se sempre descrever
uma irnagem):". Em cornpensacao, essa aproximacao possui a
vantagem de trabalhar sobretudo com os sistemas de oposicao e
simultaneamente com as relacoes entre emissor, receptor, men-
sagem e contexto.E porque a imagem e antes de tudo um dispo-sitivo que pertence a uma estrategia de comunicacdo: dispositi-
vo que tem a capacidade, por exernplo, de regular 0 tempo e as
modalidades derecepcao da imagem em seu conjunto ou a emer-
gencia da significacao!'. E e um dispositivo, lembremo-nos, quepor natureza e duravel no tempo.
Em segundo lugar, a imagem e um operador de
simbolizacao. Conviria observar, a esse proposito, que a difi-
culdade, conhecida por todos os semioticistas da imagem, em
segmentar esta se deve menos a sua ma-formacao semiotica do
que a aproxirnacao que eu assinalava logo acima entre oposi-
coes formais e instancia textual e enunciativa, entre a
materialidade e 0 sentido. Entrecruzando esses dois niveis, a
imagem teria assim capacidade para integrar os elementos que a
compoem em uma totalidade. E porque compreenderiamos 0
sentido global antes de reconhecer a significacao dos elemen-
tos; e atingirfamos primeiro 0 efeito dessa integracao; estarfa-
mos sob 0 charme desse efeito formal, estetico; toda imagem
pareceria assim se apresentar como iinica origem dela mesma
assim como de sua significacao; e enfim, ela introduziria uma
diferenca de natureza, um saIto qualitativo entre os componen-
tes (os que a analise pode repertoriar) e ela mesma considerada
em sua totalidade.
30
Esse apagamento da passagem dos componentes a tota-lidade tern por consequencia essencial interditar que se reen-
centre a maneira como 0 efeito estetico e significante e produzi-do. A genese se apaga; a (rejconstrucao de uma origem mftica eaberta, com mais urn efeito de forca viva. Entao, comeca a deri-
va indefinida (e nao infinita) que caracteriza toda interpretacao
de imagem; nao obstante, se nos volvemos para essa deriva,
percebemos que essa busca, essa "reproducao" da significacao
do dispositivo, se faz segundo 0proprio programa trazido pelo
dispositivo. Do mesmo modo que a recitacao do mito ou os ges-
tos litiirgicos seguem a estrutura do mito ou do ritual, cada lei-
tura e em si mesma uma pequena recitacao, Momento central,
ato que fornece a imagem sua razao de ser, que esta fora do
espaco da imagem, assim como, alias, 0acontecimento memo-
rizado.
Conclusao
Eis entao 0que leva a pensar a imagem como um opera-
dor de memoria social no seio de nossa cultura. Assim, volte-
mos a nossa hipotese, Com efeito, se a imagem define posicoes
de leitor abstrato que 0 espectador concreto e convidado a vir
ocupar a fim de poder dar sentido ao que ele tern sob os olhos,
isso vai permitir criar, de uma certa maneira, uma comunidade -
urn acordo - de olhares: tudo se passa entao como se a imagem
colocasse no horizonte de sua percepcao a presenca de outros
espectadores possfveis tendo 0mesmo ponto de vista. Do mes-
mo modo como - explicava Halbwachs - a reconstrucao de urn
acontecimento passado necessita, para se tornar lembranca, da
existencia de pontos de vista compartilhados pelos membros da
comunidade e de nocoes que lhes sao comuns':"; assim a ima-
gem, por poder operar 0 acordo dos olhares, apresentaria a ca-
pacidade de conferir ao quadro da historia a forca da lembran-ca. Ela seria nesse momenta 0 registro da relacao intersubjetiva
e social.
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Restaria, entao e enfim, considerar como a imagem in-
tervern concretamente no estabelecimento de uma forma de
memoria societal propria a nossa epoca e a nossa sociedade; e
sobretudo, qual e a relacao que se instaura entre 0 que poderfa-
mos chamar "a memoria interna" (aquela situada nos membros
do grupo) e "a memoria externa" (aquela dos objetos culturais),
mas isto seria perguntar sobre as caracterfsticas das estruturas
mentais de nossa cultura e se engajar na psicologia historica" .
Jean Davallon
32
BIBLIOGRAFIA
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33
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YATES, F . A. (1975), L 'a rt d e fa m em oire, Trad. do ingles [The
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1.. Como assinala Yates, 1966. Lembremos que 0autor define assim a arte
da mem6ria: "Esta arte visa permitir a memorizacao gracas a uma
tecnica de 'lugares' e 'de imagens ' que impressionam a memoria".
2. Penso particularmente na "cerimonia da memoria" que se desenrolou
durante as jornadas de posse de F. Mitterand, em 21 de marco de 1981.
o que esta entao emjogo, para alem da referencia decJarada ao cerimo-
nial repub1icano herdado em grande parte das festas revolucionarias
(ou ao menos de sua ideologia), e 0 estatuto que se atribui aos meios de
difusao e de representacao do acontecimento - no caso: it ernissao
televisionada desta cerim6nia.
3. Entendo por "objetos culturais" 0 conjunto dos objetos concretos (l i-
vros, escritos , imagens, f ilmes, arquiteturas, etc.) que resultam de uma
producao formal e que sao dest inados a produzir urn efeito simb61ico.
Sobre esse ponto ver Davallon, 1983.
4. Halbwachs, 1950, p. 70.
5. Ibid., p. 13: "Niio basta reconstruir pe(;a por peca a imagem de um
acontecimento passado para se obter uma lembranca. E preciso que
essa reconstrucdo se opere a partir de dados e de nocoes comuns que
se encontram tanto em nosso espirito quanta no dos outros, porque
eles passam sem cessar destes aquele e reciprocamente, 0 que so Ifposs ivel se eles jazem e continuam afazer parte de uma mesma soci e-
dade. Somente assim podemos compreender que uma lembranca possa
ser ao mesmo tempo reconhecida e reconstruida",
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- Ibid., pp. 74-79. Na sequencia da exposicao. empregarei 0 termo "es-
p ec tad or u m m ovim en to q ue u ltra pa ssa a sim ples co mp ree nsiio do es-p etd cu lo p ro po sto e s e [a: p ro du to ra d e s en ti do . C ompos ic ii o, mo nt a-
g em , r it mo conduiem da vistio ii compreensao", F. Albera, 1980, p. 9.
IS. Com relacao it mem6ria coletiva, a mem6ria individual estaria na ver-
tente oposta aquela em que se situa 0 objeto cultural. Uma abordagem
que se refira it psicologia hist6rica seria entao possivel (Meyerson, 1948).
-, rr.emoria coletiva: "e u ma c orren te d e p e nsa me nto c on tin uo, d e u ma
_ ' : .- : ,: : lidadeque ndo tem nada de ar ti fi c ia l , pois ela so retem d o pas -
',' q ue d el e ainda e \'i\'O all cap a : de viver na consciencia do
,:U qu e a mantem" Ibid., p. 70.
13. Para a analise detalhada, ver: Davallon, 1983.
14. Halbwachs insiste varias vezes sobre a partilha de urn ponto de vista e
sobre a cornunhao dos dados de referencia como fundamentos da me-
m6ria coletiva, por exemplo: o p c it , pp. 3, 48-53, 61, etc.,
S. Assim acontece com a representacao do juramento no momento da
Revolucao Francesa ou ainda com a representacao do heroi revolucio-
nario: 1. Davallon, 1981.
9 . "D e um l ad o, e ntiio , um [ co ne q ue e a p re sen ca rea l e 'viv a' d o m on ar-
ca; de outro, um r el at o q u e e seu uimulo subsistindo para sempre.A
representaciio como poder; 0 p od er c om o representacdo sao um e ou-
tro um sacramento na imagem e um 'monumento' na linguagem. onde,
cambiando seus efeitos, 0 olhar d es lumb ra do e a leitura admirativa
consomem 0 corpo radioso do monarca, um recitando su a historia em
seu r et ra to , 0 o utro c on tem pla nd o u ma de su as p erje il;(}e s n o re lato
qu e eterniza a manifestaciio", L. Marin, 1981, p.
10. Esta particularidade da imagem foi notavelmente bern estudada pela
serniologia do cinema. Como indica F.Albera, e ela que S. M. Eisenstein
: i : : : s : ; = - . . 2 ~c~.:'terrae ._~f f :er!Gt i5mo: ; . ; . 0 qu e caracteriza e je fiv am en te es -
~J
C ; " "= . : tie 5 E n _ i 1 , ~ Toulouse-Lautrec. V an G og h.~ _ _ . . _ ~ <_ ; : _ . . . : . ( : : . . _ _ ~ :_ ' : : . : = - ~ ~ ~; esiudar para com preender esta 120-
~ i:« 5:", cons rr ur, :ao imp ii e ao espect ado r um
-c'" :,.:',;~.;5,';~G s imp les COl ll p reensao do espetticulo pro-
c , -, , -' ,; ~pr cdLITo ra de s ent ido . Composicdo. monta gem ; r itmo
7:,::,:elll da v is ti o ii compreensao", F. Albera, 1980, p. 9.
II. Esse artigo de E. Benveniste foi retomado em P ro blema s d e llngiiistica
geral, t. 2., 1974. Essa dominancia do modo sernantico e meta-semen-
tico foi reconhecida bern cedo pela semiologia (J .L. Schefer, 1969; R.
Barthes, L. Mart in, etc.), depois apoiada e corroborada pelas analises
da serniotica visual que se referem it teor ia de A. J. Greimas.
1
12. Este ponto exigiria uma analise precisa e circunstanciada. Encontrare-
mos uma primeira e indispensavcl abordagem em Metz, 1975. I36
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MEMORIA GREGA
Escolhi propor-Ihes, para introduzir 0 debate desta ma-
nha, nao uma descricao de nossas proprias praticas memoriais,
uma analise de nossa propria gestae da memoria, mas uma in-
terrogacao envolvendo aquelas da Grecia antiga, da Grecia clas-
sica. Observar em que posicao particular os gregos se coloca-
yam com relacao a sua propria memoria, a gestae que eles podi-
am fazer dela. Serei rapido, portanto esquernatico, e aquelesque conhecem esses problemas queiram desculpar a brutalida-
de deste esboco grosseiro. A discussao permitira, espero, voltar
a todos os pontos que se desejar que eu retome.
Os gregos apresentam urn problema com sua memoria,
urn problema muito simples. Nao e possfvel para 0 nao-grego,
digamos, para 0 barbaro (0que nao e urn termo necessariamen-te negativo), reconhecer-se grego sem referencia a toda uma
serie de relatos com todo seu peso, seu valor normativo, sejameles retomados coletivamente ou nao, e sejam eles fixados ou
nao em formas "literarias" precisas: 0Mito. Mas 0mito e tam-
bern algo de muito organizado, em uma forma codificada, diga-
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mos, a epopeia, E imediatamente coloca-se 0 problema funda-
mental. Falo certamente aqui situando-me como observador em
uma Atenas do seculo V sempre tao mftica e sempre tao neces-
saria.
em resumo, valores politicos e sociais, no qual nos situamos, as
coisas se apresentam de outro modo e a contradicao aparece.
Se, como esse menino grego, sou educado atraves da
salmodia de Homero, ou se, como grande diva percorrendo as
cidades gregas, interpreto 0poeta durante manifestacoes coleti-
vas, festas que organizam e estruturam 0 grupo, nao produzo
uma epopeia, Quero dizer com isso que aquele que recita 0 tex-
to epico pode apenas retomar indefinidamente uma mem6ria
organizada em urn texto que se tornou fechado e em relacao ao
qual ele rnantem uma relacao que podemos chamar demonfaca,
que ultrapassa entao as estruturas da memoria humana, uma re-
lacao que 0 faz entrar em contato, de maneira quase possessoria,
com 0 pr6prio poeta ou alguma coisa que resta dele e se trans-
mite por sua palavra. Por que? Porque 0 poeta, ele mesmo, 0
aedo, nao possui fala pr6pria. No momento em que recita as
proezas dos her6is, 0 aedo s6 0 faz porque a Musa fala atraves
dele, por ele. Quer dizer que nao ha possibilidade de producao
da mem6ria na cidade fora da presenca do poeta epico, diga-
mos, para ser breve, de Homero. Os gregos apresentam, entao,
como principal meio de reconhecimento de si mesmos, urn dos
textos que se produziram e se fixaram fora de seu domfnio e que
eles sao forcados a repetir sem meios de modi fica-los em fun-
cao de novas exigencias sociais. Textos que Ihes fornecem as
categorias de percepcao do mundo no qual se encontram. 0
garoto educado em Atenas aprende rmisica, recita a epopeia, e
sabe assim definir 0mar em oposicao a terra, a tempestade em
oposicao ao ceu sereno, etc. Ele recebe toda uma serie de meios
de categorizar 0 real, que 0 situam como grego. Em contraste
com os vizinhos persas, que possuem calcas, modos de viver
diferentes, que percebem as coisas diferentemente, etc. 0 pro-blema afnao e maior, isso funciona de modo bastante imediato.
Mas a partir do momenta em que olhamos nao mais as categori-
as de percepcao da realidade, mas 0 sistema de valores eticos,
Se pretendemos, por exemplo, fazer a guerra, a guerra
da cidade, como 0 fazia Aquiles, arriscamos com os nossos nas
piores dificuldades. Observemos 0modo como as coisas se pas-
sam nesse texto celebre (analisado por P.Vidal Naquet)' , a cena
dos escudos em os Sete contra Tebas': 0 guerreiro do mito e
atingido pelo menos, esse furor que possui sua alma eo rende.
Ele e invadido pela ira de matar, orientado para realizar os gran-
des feitos que sao objeto do canto epico, Isto 0 coloca em con-
tradicao total com as regras do grupo social no quadro da cida-
de, regras que supoem uma guerra racional e democratica. A
igualdade dos combatentes e af fundamental: nao se trata de
combater para se fazer ilustre no combate mas de defender a
cidade com os companheiros de linha, cada urn solidario urn
com 0 outro, na falange. Ha verdadeiramente uma contradicao
inevitavel em uma mem6ria que estabelece ao mesmo tempo 0
sistema categorial que nos define como partidarios de nosso
grupo, e valores sociais que nos colocam em oposicao a ele.
Isto teve como efeito imediato na producao cultural, para reto-
mar a f6rmula proposta logo acima, a tragedia. A tragedia na
qual vemos estabelecidas ao mesmo tempo a necessidade do
mito e as dificuldades que ele provoca. Nao podemos nos livrar
do Edipo nem se acomodar com ele. De onde a necessidade de
interrogar 0 mito em funcao do sistema de valores da cidade
contemporanea, ja que nao podemos leva-lo tal qual em consi-
deracao.
Por outro lado, existe a necessidade de se produzir uma
memoria, urn memoravel valido para 0 tempo da cidade, e, de
certa forma, nos trabalhos de memoria, estamos sempre em ri-
validade com Homero. Quando, por exemplo, as primeiras pra-ticas historiadoras aparecem (F. Hartog, ausente da Franca, es-
taria melhor posicionado do que eu para falar disso), vemos
bern que a necessidade da pesquisa vern da necessidade de fa-
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Para nao multiplicar os casos de figura, gostaria agorade observar 0 modo como a imagem pode se inserir nesse dis-
positivo de producao (seguindo desta vez F. Lissarrague que
nao pode estar aqui hoje. Espero nao trair ninguem, enfim nao
muito, fazendo falar tantos amigos ausentes i).A imagem possui
uma vantagem fundamental: ela representa e ao mesmo tempo
produz sentido. De outro modo, quando a imagem e representa-cao, ela pode representar urn guerreiro da cidade, 0 hoplita car-
regando 0 corpo de seu companheiro morto. Atraves de alguns
elementos do dispositivo iconico, e possfvel mostrar que 0 guer-reiro morto e urn heroi parecido com 0 da epopeia, com 0 guer-
reiro epico: a forma do escudo, 0 tipo de penteado, por exem-
plo. A imagem pode conter nomes, Aquiles, Ajax, com uma
referencia evidente aos dados epicos, Ela e representacao ou
motor de discursos, ocasiao assim de reatualizar a memoria para
retomar 0 que estava dito antes, a memoria dos valores do epos.
Em uma cena desse genero, podemos introduzir Atena. A deu-
sa, sabemos, mantem uma relacao especffica com os herois do
ciclo troiano: ela pode entao fazer parte dessas representacoes.Se suprimimos as indicacoes de nomes, Atena continua reco-
nhecivel gracas aos elementos que a definem (armas, coruja,
etc.) mas 0 guerreiro carregador ou carregado, torna-se simples-
mente urn guerreiro em presenca de Atena. 0que faz com que
uma representacao desse genero seja ao mesmo tempo valida
para 0 heroi e para a situacao na qual 0 combatente da cidade, 0
hoplita, e declarado comparavel aos herois, com uma verdadei-
ra metaforizacao interna a imagem. Podemos ir ainda mais lon-
ge, nesse sentido, adicionando por exemplo no dispositivo car-
regador/carregado, em presenca de Atena, urn lean que desfilacom os personagens da imagem, ao fundo do conjunto. 0valor
rnetaforico da imagem e assim assinalado do interior do proprio
dispositivo, 0 lean nao tendo outra significacao possfvel em urn
contexto como esse. Alias, 0 ritual dos funerais piiblicos nao
tinha rigorosamente nada 0 que fazer com 0 que era representa-
do nas imagens dessc tipo (eu deveria, desculpem, te-lo dito no
comeco), quer dizer com esse transporte individual do cadaver
inclufdo no universo epico. Os mortos celebrados pelo ritual
ateniense sao anonimos, coletivamente honrados, etc. e disso a
imagem nao diz nada. Podemos assim ver como a imagem pode
jogar nessa estrategia da memoria onde as margens de mano-
bras sao bastante reduzidas. Visto que as questoes de enunciacao
nao se colocam mais no interior do novo conjunto onde a ima-
gemjoga com suas condicoes especfficas de producao, torna-se
possivel praticar urn" polftica de memoria mais flexfvel nesse
mundo, somando-se tudo, tao complexo que e 0 domfnio gre-
go. Penso que seria necessario desdobrar um pouco mais tudo
isso diante de voces.
bricar urn memo ravel adequado ao mundo dos contemporane-
os. Ao mesmo tempo coloca-se a questao da enunciacao. Quem
fala e com que direito? 0 poeta com suas garantias nao esta
mais af para faze-lo em meio aos seus. Aquele que produz 0
memoravel para a cidade, assim, tern sempre, de certo modo, a
nostalgia da epopeia definitivamente impossfvel. Quando a ci-
dade produz urn discurso adequado pelo qual ela se funda, fa-
bricando seu proprio mernoravel mftico, quando ela pratica a
oracao fiinebre, ela 0 faz em referencia aos valores do epos (N.
Loraux, de novo aqui, seria bern melhor que eu para falar dis-
so). 0orador oficial narra entao a grandeza de Atenas pela gran-
deza de seus guerreiros mortos aomodo dos herois, incorporan-
do os valores que servem a isso.
E isso para remeter, certamente, dentro de uma perspec-
tiva antropologica, que ell defendia ontem em uma outra ofici-
11a,a nossa propria pratica memorial, no sistema com memoria
institucional que eo 110SS0.Temos historiadores, universidades
onde se ensina a hist6ria. Gostaria simplesmente que nos inter-
rogassernos, enquanto produtores de memoria, com relacao ao
funcionamento grego da pratica memoria!. E gostaria, para ter-
minar e a guisa de incitar a discussao, de me perguntar se 0 fato
de que a primeira memoria heroic a produzida no cursu do esta-
belecimento de nossa historia republicana gire em torno de per-
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sonagens como Vercingetorix ou Joana d' Arc, que eu diria
massivamente "mfticos" a grega, e urn acaso ou se isso coloca
quest5es sobre nossa pr6pria gestae da mem6ria no quadro da
instituicao que a produz.BIBLIOGRAFIA
lean-Louis Durand
VIDAL-NAQUET, P. (1978), "Les boucliers des heros ...",
Revue des Etudes grecques, no XVI.
ESCHYLE. Les Sept contre Thebes, texto elaborado e traduzi-
do por Paul Mazon, Paris, Les Belles Lettres, 1a ed., 1963; re-
vista em 1966.
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NOTAS
1. Vidal-Naquet, P., 1978. Les boucliers des heros ... , Revue des Etudes
grecques, no XVI.
2. Eschyle. Les Sept contre Thebes, texto elaborado e traduzido por Paul
Mazon, Paris, Les Belles Lettres, la ed., 1963, revista em 1966.
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PAPEL DA MEMORIA
Nao pretendo fornecer urn levantamento exaustivo do
trabalho da manha, nem resumir as tres apresentacoes de que
nos beneficiamos. Gostaria simplesmente de dar a tonalidade
delas, acentuando 0 que me pareceu ser as nervuras principais
do debate.
De infcio, uma observacao de conjunto sobre as tres apre-sentacoes: Pierre Achard trabalha em sociolingiifstica e em ana-
lise de discurso, Jean Davallon em semi6tica e sociosemi6tica
do espaco e Jean-Louis Durand efetua pesquisas semi6ticas so-
bre 0 gestual na antiguidade ateniense classica.
Corrfamos 0 risco entao de ter discuss5es agradavelmente
paralelas, sem ponto de contato: por exemplo, uma sobre os
textos e os discursos, e outra sobre a imagem. De fato, a questao
do papel da mem6ria permitiu urn encontro efetivo entre temas
a princfpio bastante diferentes. Esta questao conduziu a abordar
as condicoes (mecanismos, processos ...) nas quais urn aconteci-
mento historico (urn elemento hist6rico desconnnuo e exterior)
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e suscetfvel de vir a se inscrever na continuidade interna, no
espaco potencial de coerencia pr6prio a uma mem6ria.
tacoes e na discussao, sobre a especificidade da ordem propria-
mente lingufstica (definida por exemplo como a da variacao
combinat6ria, a qual J.-c. Milner se referiu em sua apresenta-
c;ao), em relacao a ordem do discursivo, e afortiori em relacao
as do iconico, do simb6lico ou da simbolizacao,Mem6ria deve ser entendida aqui nao no sentido direta-
mente psicologista da "mem6ria individual", mas nos sentidos
entrecruzados da mem6ria mitica, da mem6ria social inscrita
em praticas, e da mem6ria construfda do historiador. 0 risco
evocado de uma vizinhanca flexfvel de mundos paralelos se deve
de fato a diversidade das condicoes supostas com essa inscri-
c;ao:e a dificuldade - com a qual e preciso urn dia se confrontar
- de urn campo de pesquisas que vai da referencia explfcita e
produtiva a lingufstica, ate tudo 0 que toea as disciplinas de
interpretacao: logo a ordem da lingua e da discursividade, ada
"Iinguagem", ada "significancia" (Barthes), do simb61ico e da
simbolizacao ...
Nao e de se admirar, nessas condicoes, que a ideia de
uma fragilidade, de uma tensao contradit6ria no processo de
inscricao do acontecimento no espaco da mem6ria tenha sido
constantemente presente, sob uma dupla forma-limite que de-
sempenhou 0 papel de ponto de referencia:
o fato de que possa existir Iocalizacao de traces distinti-
vos e de oposicoes pertinentes na esfera do iconico, por exem-
plo, nao conduziu ninguem a supor que, mesmo para uma
sincronia dada, haveria universais do iconico (pessoalmente, a
impensabilidade de uma sintaxe do iconico me parece marcada
pela inexistencia da negacao e da interrogacao no interior da
imagem). A questao de uma possfvel combinat6ria culturalmente
determinada dos segmentos gestuais (a prop6sito da qual J.-L.
Durand mencionou certos trabalhos etnol6gicos americanos re-
centes) coloca provavelmente urn problema bern diferente, mas
nao desemboca mais em impossiveis universais gestuais.
- 0 acontecimento que escapa a inscricao, que nao chega
a se inscrever;
Concebemos desde entao que 0 fato incontornavel da
eficacia simb6lica ou "significante" da imagem tenha atraves-
sado 0debate como urn enigma obsediante, e que, por seu lado,
os fatos de discurso, enquanto inscricao material em uma me-
m6ria discursiva, tenham podido aparecer como uma especie
de problematica-reserva, Essa negociacao entre 0choque de urn
acontecimento hist6rico singular e 0 dispositivo complexo de
uma mem6ria poderia bern, com efeito, colocar emjogo a nfvel
crucial uma passagem do visivel ao nomeado, na qual a imagem
seria urn operador de mem6ria social, comportando no interior
dela me sma urn program a de leitura, urn percurso escrito
discursivamente em outro lugar: tocamos aqui 0 efeito de repe-
tic;ao e de reconhecimento que faz da imagem como que a reci-
tacao de urn mito. Na transparencia de sua compreensao, a ima-
gem mostraria como ela se Ie, quer dizer, como ela funcionaenquanto diagrama, esquema ou trajeto enumerativo. Refiro-
me a tudo 0 que Jean Davallon adiantou a esse respeito.
- 0 acontecimento que e absorvido na mem6ria, como se
nao tivesse ocorrido.
No que concerne aos miiltiplos registros evocados aci-
rna, que formam uma continuidade problematic a entre a Iingufs-
tica e as disciplinas de interpretacao (restando saber em que
medida a pr6pria lingufstica e ou nao uma disciplina de inter-
pretacao), urn acordo muito amplo se manifestou, nas apresen-
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Tocamos aqui urn dos pontos de encontro com a questao
da mem6ria como estruturacao de materialidade discursi va com-
plexa, estendida em uma dialetica da repeticao e da regulariza-
cao: a mem6ria discursiva seria aquilo que, face a urn texto que
surge como acontecimento a ler, vern restabelecer os "implfci-
tos'' (quer dizer, mais tecnicamente, os pre-construfdos, elemen-
tos citados e relatados, discursos-transversos, etc.) de que sua
leitura necessita: a condicao do legfvel em relacao ao pr6prio
legfvel. Ora, acontece que esta e uma das questoes cruciais atu-
almente abordadas pela analise de discurso: uma discussao aberta
a esse respeito, que - sem ser puro negocio de butique - reveste
apesar de tudo urn carater relativamente "tecnico", A questao e
saber onde residem esses famosos implfcitos, que estao "ausen-
tes por sua presenca" na leitura da sequencia: estao eles dispo-
nfveis na mem6ria discursiva como em urn fundo de gaveta, urn
registro do oculto? P. Achard levanta a hip6tese de que nao en-
contraremos nunc a, em nenhuma parte, explicitamente, esse dis-
curso- vulgata do implfcito, sob uma forma estavel e sedimentada:
haveria, sob a repeticao, a formacao de urn efeito de serie pelo
qual uma "regularizacao" (termo introduzido por P.Achard) se
iniciaria, e seria nessa pr6pria regularizacao que residiriam os
implfcitos, sob a forma de remissoes, de retomadas e de efeitos
de parafrase (que podem a meu ver conduzir a questao da cons-trucao dos estere6tipos). Mas, sempre segundo P.Achard, essa
regulanzacao discursiva, que tende assim a formar a lei da serie
do legfvel, e sempre suscetivel de ruir sob 0 peso do aconteci-
mento discursivo novo, que vern perturbar a mem6ria: a mem6-
ria tende a absorver 0acontecimento, como uma serie materna-
tica prolonga-se conjeturando 0 termo seguinte em vista do co-
meco da serie, mas 0 acontecimento discursivo, provocando
interrupcao, pode desmanchar essa "regularizacao" e produzir
retrospectivamente uma outra serie sob a primeira, desmascarar
o aparecimento de uma nova serie que nao estava constitufdaenquanto tal e que e assim 0produto do acontecimento; 0aeon-
tecimento, no caso, desloca e desregula os implfcitos associa-
dos ao sistema de regularizacao anterior.
Haveria assim sempre umjogo de forca na mem6ria, sob
o choque do acontecimento:
- urn jogo de forca que visa manter uma regularizacao
pre-existente com os implfcitos que ela veicula, conforta-Ia como
"boa forma", estabilizacao parafrastica negociando a integracao
do acontecimento, ate absorve-lo e eventualmente dissolve-lo;
- mas tambern, ao contrario, 0 jogo de forca de uma
"desregulacao" que vern perturbar a rede dos "implfcitos".
Em relacao com a questao da regularizacao, ada repeti-
~ao (dos itens lexicais e dos enunciados) prolongou 0debate: a
repeticao e antes de tudo urn efeito material que funda comuta-
coes e variacoes, e assegura - sobretudo ao nivel da frase escri-
tal - 0 espaco de estabilidade de uma vulgata parafrastica pro-
duzida por recorrencia, quer dizer, por repeticao literal dessa
identidade material.
Mas a recorrencia do item ou do enunciado pode tam-
bern (este e urn ponto introduzido por Jean-Marie Marandin na
discussao) caracterizar uma divisao da identidade material do
item: sob 0 "mesmo" da materialidade da palavra abre-se entao
o jogo da metafora, como outra possibilidade de articulacaodiscursiva ... Uma especie de repeticao vertical, em que a pr6-
pria mem6ria esburaca-se, perfura-se antes de desdobrar-se em
parafrase,
Esse efeito de opacidade (correspondente ao ponto de
divisao do mesmo e da metafora), que marca 0 momenta em
que os "implfcitos" nao sao mais reconstrutfveis, e provavel-
mente 0 que compeJe cada vez mais a analise de discurso a se
distanciar das evidencias da proposicao, da frase e da estabili-dade parafrastica, e a interrogar os efeitos materiais de monta-
gens de sequencias, sem buscar a princfpio e antes de tudo sua
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Trata-se, de outro modo, de retirar-se provisoriamente,
taticamente, da questao do sentido, sabendo ao mesmo tempo
que a questao da interpretacao e incontornavel e retornara sem-
pre. A esse propos ito, devo fazer urn esc1arecimento a respeitoda fala de Sylvain Auroux, que me atribuiu uma controversia
com l-C. Milner sobre a questao de saber se ele se estimava ou
nao ser colega de Beauzee: parece-me util explicar urn pouco
de que se trata! A questao concerne de fato ao estatuto da lin-
gufstica frente as disciplinas de interpretacao. Eu tinha pergun-
tado a Vidal-Naquet (a partir da alusao ao artigo de Nicole
Loraux "Tucidides nao e urn colega", muito citado no decorrer
dessas j ornadas), se, para ele, Tucfdides, sem ser seu colega, era
nao obstante urn historiador; questao a qual P.Vidal-Naquet res-pondeu: "Sim, certamente!", 0 que implica que nao ha comeco
historico assinalavel para a disciplina historic a, na medida em
que a historia e uma disciplina de interpretacao: para urn ffsico,
par exemplo, 0 problema de saber se Aristoteles e urn coleganao se coloca. Aristoteles nao e para ele nem urn colega, nem
urn ffsico. Minha questao a J.-C. Milner concernia entao de fato
a posicao da lingufstica a respeito da interpretacao. Perguntar-
se se ha ou nao urn momento historico assinalavel em que se
pode dizer de alguem "e urn lingiiista", nao e entao colocar urnmero poblema de datacao, mas levantar a questao de saber se a
linguistica e uma disciplina puramente "experimental", ou se
ela tern necessariamente algo a ver (de modo complexo, equi-
voco, ambfguo ... mas algo a ver) com as disciplinas de interpre-
tacao, desde a historia ate a psicanalise.
gestos de designacao antes que sobre os designata, sobre os pro-
cedimentos de montagem e as construcoes antes que sobre as
significacoes? A questao da imagem encontra assim a analise
de discurso por urn outro vies: nao mais a imagem legfvel na
transparencia, porque urn discurso a atravessa e a constitui, mas
a imagem opaca e muda, quer dizer, aquela da qual a memoria
"perdeu" 0 trajeto de leitura (ela perdeu assim urn trajeto que
jamais deteve em suas inscricoes).
significacao ou suas condicoes implicitas de interpretacao.
A imagem muda e par exemplo 0 choque opaco de uma
imagem de vasa grego: a arquelogia possui apenas 0olho, quer
dizer, imagens e textos, sem coincidencia, e nao, como a antro-
pologia de hoje, 0 "a mais" do ouvido (a voz, a "trilha sonora").
o que evoco aqui remete a apresentacao de J.-L. Durand, que
mostrou como a epopeia heroic a grega fazia irrupcao nas cenasvisuais da democracia ateniense (em particular as cenas funera-
rias), atraves de telescopias burlescas por seu anacronismo (mais
ou menos como se mostrassemos Vercingetorix a bordo de urn
aviao a jato).
No outro extremo, 0 choque opaco do acontecimento
televisual e tambem algo que nao se inscreve, na medida em
que esta sempre "ja la", no retorno de urn paradigm a pesado
que se repete no interior de sua aparicao instantanea: por exem-plo (intervencao de Maurice Mouillaud), a historia do submari-
no sovietico perdido no Baltico, quando este vern a superffcie
da tela de TV; 0 submarino esta sempre Ia, nao necessariamente
no fundo do mar, mas nas profundezas de urn paradigma que
estrutura 0 retorno do acontecimento sem profundidade.
Fecho este parentese para retornar a questao da interpre-
tacao em analise de discurso: P.Achard caracterizou esse movi-
mento de retirada provisorio da questao do sentido e da vontade
de interpretar, lembrando 0proverbio chines "Quando the mos-
tramos a lua, 0 imbecil olha 0 dedo". Com efeito, por que nao?
Por que a analise de discurso nao dirigiria seu olhar sobre os
Reencontramos assim, para finalizar, a questao da reIa-
<;aoentre a imagem e 0 texto: no entrecruzamento desses dois
objetos, onde estamos, tecnologicamente e teoricamente, hoje,
com relacao a esse problema que, apes Benveniste, Barthes de-
signou com 0 termo "significancia"?
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Em que pe estamos com relacao a Barthes? Barthes era
tanto lingiiista dos textos como te6rico das imagens, ou de pre-
ferencia nao era nem urn nem outro (quer dizer, nem lingiiista,
nem semi6logo, nem analista) mas antes de tudo 0 esboco con-
tradit6rio de gestos que tentamos hoje reencontrar, e que ele
soube agenciar a sua maneira talvez unica, quer dizer, em pes-
soa - logo tambem, e de maneira equfvoca: como pessoa? NOTAS
A certeza que aparece, em todo caso, no fim desse deba-
te e que uma mem6ria nao poderia ser concebida como uma
esfera plena, cujas bordas seriam transcendentais hist6ricos e
cujo conteiido seria urn sentido homogeneo, acumulado aomodo
de urn reservat6rio: e necessariamente urn espaco m6vel de di-
visoes, de disjuncoes, de deslocamentos e de retomadas, de con-
flitos de regularizacao ... Urn espaco de desdobramentos, repli-
cas, polemic as e contra-discursos.
1. Assinale-se a esse proposito uma intervencao de Francoise Madre,
problematizando a relacao escrito/oral do ponto de vista da repeticao e
da memoria.
2. Penso nas teses desenvolvidas por Paul Veyne, que poderiam bern i lus-
trar esse pantextualismo que foi designado como risco cons tante nodecorrer dos debates. 0 ultimo livro de P. Veyne "Les Crees ont-ils em
a leurs mythes" da uma ideia desse frasco ideal do relativismo absoluto.
E 0 fato de que exista assim 0 outro intern0 em toda
mem6ria e, a meu ver, a marca do real hist6rico como remissao
necessaria ao outro exterior, quer dizer, ao real hist6rico como
causa do fato de que nenhuma mem6ria pode ser urn frasco sem
exterior.
Michel Pecheux
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MAlO DE 1968: OS SILENCIOS DA MEMORIA *
Introducao
Falando de hist6ria e de politica, nao ha como nao consi-
derar 0 fato de que a mem6ria e feita de esquecimentos, de si-
lencios. De sentidos nao ditos, de sentidos a nao dizer, de silen-
cios e de silenciamentos.
Os sentidos se constr6em com limites. Mas ha tambem
limites construfdos com sentidos. E quando penso maio de 68, 0
que vern a frente da cena - poJitica e hist6rica - e 0 silcnciamento,sao os sentidos que impoem !imites. A tortura, a censura, a agres-
sao da ditadura a sociedade, a cidadania.
Mais do que ver no acontecimento maio-68 a constatacao
dessa violencia, interessa ve-Io, enquanto acontecimento
discursivo, justamente, como fato desencadeador de urn pro-
cesso de producao de sentidos que, reprimido, vai desembocar
na absoluta dominancia do discurso (neo)liberal. No entanto,
enquanto tal, no momenta em que apareceu, maio-68 abria para
uma nova discursividade, produzindo efeitos metaf6ricos que
afetavam a hist6ria e a sociedade, demaneira explosiva, em varias
59
para significar. E e isso a materialidade discursiva, isto e ,
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Para trazermos essa questao para a reflexao, podemos
referir 0 texto de M. Pecheux (p. 33 aqui mesmo), no qual ele
procura compreender, junto a lingiiistas, semioticistas e histori-
adores, a fragilidade no processo de inscricao do acontecimen-
to no espaco da mem6ria que, segundo ele, joga em uma dupla
forma: a. 0 acontecimento que escapa a inscricao, que nao che-ga a inscrever-se, e b. 0 acontecimento que e absorvido na me-
m6ria como se nao tivesse ocorrido.
lingufstico-hist6rica. Da interpelacao do indivfduo em sujeito
pel a ideologia resulta a forma-sujeito hist6rica. Em nosso caso,
a forma-sujeito hist6rica capitalista corresponde ao sujeito-jun-
dico constitufdo pela ambiguidade que joga entre a autonomia e
a responsabilidade sustentada pelo vai-e-vem entre direitos e
deveres. Podemos dizer, entao, que a condicao inalienavel para
a subjetividade e a lingua, a hist6ria e 0mecanismo ideol6gico
pelo qual 0 sujeito se constitui.
direcoes: politicamente, culturalmente, moralmente. E 0que vai
se dar com essa discursividade no futuro? 0 que significa maio
de 68 hoje?
o caso que estou apresentando nao se enquadra nem na
primeira, nem na segunda possibilidade. E uma nuance entre
elas: e como se nao tivesse ocorrido (b), nao porque foi absorvi-do mas, ao contrario, justamente porque escapa a inscricao na
mem6ria (a). E este, penso eu, 0 caso da censura em geral. Nes-
se sentido, embora eu explore aqui uma situacao particular de
censura, essa minha reflexao pode contribuir para a compreen-
sao da relacao entre mem6ria e censura em geral.
Por outro lado, esse sujeito, uma vez constituido, sofre
diferentes processos de individualizacao (e de socializacao) pelo
Estado. Assim, se temos 0 individuo como ponto de partida para
o assujeitamento ao simb6lico - e, quanta a este assujeitamento
o sujeito nao tern controle pois ele se passa "antes, em outro
lugar e independentemente" - temos sobre esse sujeito proces-
sos que 0 individualizam e que derivam das diferentes formas
de poder. E af as Instituicoes e 0 Poder constitufdo tern urn
papel determinante. E nessa instancia que se dao as lutas, os
confrontos e onde podemos observar osmecanismos de imposi-
cao, de exclusao e os de resistencia.
E ja conhecido, na analise de discurso, que hi interpela-
~ao do indivfduo em sujeito pela ideologia. E assim que se con-
sidera que 0 sujeito se constitui em sujeito por ser afetado pelo
simb6lico. Daf seu assujeitamento, ou seja, para que 0 sujeito
seja sujeito e necessario que ele se submeta a lfngua. E e porestar sujeito a lingua, ao simb6lico, que ele, por outro lado, pode
ser sujeito de.
Pois bern, e assim, partindo dessa posicao te6rica, que
procuraremos compreender 0 que tenho chamado de "proces-
sos de de-significacao'' que estao presentes em discursividadescomo as que incidem sobre maio de 68. Portanto, nao tratare-
mos 0 sujeito como algo que se trabalha do ponto de vista de
uma sua essencia, mas pensando sua existencia como constitui-
da pel a sua relacao com a lingua e com a hist6ria onde se con-
frontam 0 simb6lico e 0 politico.
Urn pouco de teo ria
E a nossa questao e: 0 que aconteceu com os sentidos
que constituem 0 evento maio-68?
Alem disso, e preciso que a lmgua se inscreva na hist6riaPara falar disso retomamos 0 fato de que falar e esque-
cer. Esquecer para que surjam novos sentidos mas tambem es-
60 61
quecer apagando os novos sentidos que ja foram possiveis mascusa a uma vida reduzida a regras e a urn trabalho que, por sua
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foram estancados em urn processo hist6rico-politico silenciador.
Sao sentidos que sao evitados, de-significados.vez, reduz 0 homem em suas possibilidades de vida.
A definicao de formacao discursiva diz que ela delimit a
"aquilo que pode e deve ser dito par urn sujeito em uma posicao
discursiva em urn momenta dado em uma conjuntura dada"
(Haroche, Henry, Pecheux, 1975).
Uma parafrase agora, com 0 tempo ja deslocado, mostra
a conversao desse discurso em urn processo que 0 de-signifi-
cou. Essa parafrase aparece, em maio de 1998, em urn poster
de propaganda no metro de Paris: urn casal nu, tatuado com
flores no peito, dirigindo-se a uma exposicao, e, embaixo, osdizeres "Entrada livre. Isso faria sonharem seus pais...".
Forrnacoes Discursivas e Esvaziamento de Sentido
No modo como 0 politico se simboliza nos anos 60 ha
todo urn possivel dizer da sociedade, da cultura que coloca os
sujeitos em medida de uma transforrnacao hist6rica e social degrande dimensao, Essa possibilidade eclode nos movimentos
de 68 tendo a palavra liberdade como carro-chefe. No mundo
todo ha manifestacoes de rua em que uma discursividade can-
dente trabalha os muitos sentidos postos na reivindicacao das
liberdades concretas necessarias a sociedade em suas novas
posssiveis formas.
Esse enunciado par sua vez mostra a forma como os sen-
tidos concretos e explosivos de liberdade, que estavam levando
a uma revolucao social e cultural, a novos sentidos para os su-
jeitos e para a historia, foram barrados violentamente pelo status
quo. Pelas instituicoes, pelo poder. E, no caso do Brasil, mais
violentamente ainda parque estavamos em uma ditadura e era
bern diferente dizer "E proibido proibir" aqui em uma rua de
Sao Paulo e em uma rua de Paris ...
No poster dos anos 90 "entrada livre" e gratuita reduz 0
sentido de liberdade ao preco de urn parque de divers6es.
Sao assim enunciados que funcionam em suas relacoes
parafrasticas, relacionando-se em suas diferentes forrnulacoesao que pode significar "liberdade":
o interditado que toma a forma do impossivel
Que, em suas diferentes formas de dizer, afirmam a re-
Entao, sentidos possfveis, historicamente viaveis foram
politicamente interditados. E tornaram-se inviaveis, Essa im-
possibilidade, posta pela censura e pela forca, se naturaliza e
funciona como urn pre-construfdo restritivo a certos sentidos de
Iiberdade, de tal maneira, que eles parecem impossiveis. Foram
assim desmoralizados, amolecidos, inviabilizados, de-signifi-
cades, postos fora do discurso. E a palavra "liberdade" aparecefeito florzinha que se prende com urn bottom numa roupinha
maneira ... Ao mesmo tempo, pela outra mao, ada direita, nesse
mesmo processo, se estabelecem as bases do discurso neo-Iibe-
a. "E proibido proibir!".
b. "Faca amor e nao faca guerra l" que deriva ainda para
"Paz e Amor!",
c. "Boulet, Metro, Dodo!" em portugues: "Trabalho,
Conducao e Cama!".
62 63
ral em que se individualiza a questao da liberdade, destituindo-
a da forca concreta historica que ela tinha na outra formacaoe esquecidas, ao longo do tempo e de nossas experiencias de
linguagem que, no entanto, nos afetam em seu "esquecimento".
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discursiva - a da esquerda, em que 0 partido comunista propu-
nha em seu programa a necessidade de construcao de uma de-
mocracia fundada nas liberdades concretas necessarias para as
novas formas sociais - em que haviam se alocado sentidos ex-
plosivos de liberdade. E 0 que e silenciado em uma formacao
discursiva e acolhido em outra formacao discursiva, esta, domi-
nante, que corresponde ao vies pragrnatico e empresarial da
polftica neo-liberal desembaracada dos sentidos mais corrosi-
vos, transform adores do politico. Essa liberdade sem determi-
nacoes concretas, agora generalizada, pode ser reivindicada,
individualizando-se, ate pelos neo-nazistas que, em nome dela,
exigem 0 direito de usar a suastica em suas roupas opressivas.
Assim como a lingua e sujeita a falhas, a memoria tambem e
constitufda pelo esquecimento; daf decone que a ideologia, diz
M. Pecheux (1982), e urn ritual com falhas, sujeito a equfvoco,
de tal modo que, doja dito e significado, possa irrornper 0novo,
o irrealizado. No movimento contfnuo que constitui os sentidos
e os sujeitos em suas identidades na historia,
Ainda em M. Pecheux (aqui mesmo, p. 36) temos: "uma
especie de repeticao vertical, em que a memoria esburaca-se,
perfura-se antes de desdobrar-se em parafrase". 0 que da, se-
gundo esse autor (idem, p.39), a ideia de memoria como urn
espaco m6vel de divisoes, de disjuncoes, de deslocamentos e
de retomadas, de conflitos de regularizacao. Urn espaco de des-
dobramentos, replicas, polemicas e contra-discursos (1).
o que e isto companheiro?
Memoria e Censura
Nao e nada disso, companheiro, diz uma parafrase de
Jose Simao que, com seu humor, evoca 0jogo discursivo que
atravessa esse enunciado em sua mem6ria, agora transformada
de romance em filme.
E a questao e, sem dtivida uma questao de mem6ria. No
sentido discursive. A mem6ria - 0 interdiscurso, como defini-mos na analise de discurso - e 0 saber discursivo que faz com
que, ao falarmos, nossas palavras facam sentido. Ela se consti-
tui pelo ja-dito que possibilita todo dizer.
o que acontece com maio-68 porem e de outra ordem. A
falha e constitutiva da mem6ria, assim como 0 esquecimento.
No entanto 0que acontece com os sentidos de 68 e que eles nao
falham apenas nessa memoria, eles foram silenciados, censura-
dos, exclufdos para que nao haja urn ja dito, urn ja significadoconstitufdo nessa mem6ria de tal modo que isso tornasse, a par-
tir dai, outros sentidos possfveis. Ha faltas (2) - e nao falhas -
de tal modo que eles nao fazem sentido, colocando fora do dis-
curso 0 que poderia ser significado a partir deles e do esqueci-
mento produzido por eles para que novos sentidos af significas-
sem. Ha, assim, "furos", "buracos" na memoria, que sao luga-
res, nao em que 0 sentido se "cava" mas, ao contrario, em que 0
sentido "falta" por interdicao. Desaparece. Isso acontece por-
que toda uma regiao de sentidos, uma formacao discursiva, eapagada, silenciada, interditada. Nao ha urn esquecimento pro-
Pois bern, como dissemos no infcio, 0 sujeito e
assujeitado, pois para falar precis a ser afetado pela lingua. Por
outro lado, para que suas palavras tenham sentido e preciso que
ja tenham sentido. Assim e que dizemos que ele e historicamen-
te determinado, pelo interdiscurso, pela mem6ria do dizer: algofala antes, em outro lugar, independentemente. Palavras ja ditas
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duzido par eles, mas sabre eles. Fica-se sem mem6ria. E isto
impede que certos sentidos hoje possam fazer (outros) sentidos. to a repressao porque resvala para 0que, hoje, se considera como
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Como a mem6ria e , ela mesma, condicao do dizfvel, esses sen-tidos nao podem ser lidos.
ilegal, indo na direcao do que se considera "mobilizacao soci-
al", ilegal, e que, em maio-68, estava absolutamente dentro das
espectativas do politico.
Para observarmos isso basta pensarmos nos sentidos dos
nossos "companheiros" de maio-68 trucidados pela tortura e pela
repressao militar. Eu vi, em meu silencio, muitos de meus cole-
gas com suas fotos afichadas como perigosos guerrilheiros em
pilares da rodoviaria de Sao Paulo toda vez que ia tomar oni-
bus. Eram lidos, vistos, pensados como perigosos terroristas.
Por onde passam os sentidos do terrorismo? Por onde passam
os sentidos da resistencia politica de 68? Os sentidos de liber-
dade?
Para tenninar, eu gostaria de dizer que 0 real hist6rico
faz pressao, fazendo que algo irrompa nessa objetividade mate-rial contradit6ria (a ideologia). 0 que foi censurado nao desa-
parece de todo. Ficam seus vestigios, de discursos em suspenso,
in-significados e que demandam, na relacao com 0 saber
discursivo, com a mem6ria do dizer, uma relacao equfvoca com
as margens dos sentidos, suas fronteiras, seus des-limites.
Acontece que estes sentidos - excluidos, silenciados -
nao puderam e nao podem significar, de tal modo que Mtodauma nossa hist6ria que nao corresponde a urn dizer possive!.
Nao foram trabalhados socialmente, de modo a que pudesse-
mos nos identificar em nossas posicoes. Do mesmo modo ficam
sem ser politicamente significados os feitos da tortura e do que
resultou dela na nossa politica. Toda vez que vamos votar, mes-
mo que nem pensemos nisso, 0 fato de que 0Brasil e urn paisque tortura os dissidentes politicos faz parte de nossa mem6ria
e de nossos gestos politicos. E isso nao mereceu ainda sua
explicitacao politica (3). Esta fora da memoria, como umasua mar gem que nos aprisiona nos limites desses sentidos. 0
que esta fora da mem6ria nao esta nem esquecido nem foi traba-
lhado, metaforizado, transferido. Esta in-significado, de-signi-
ficado (4).
Eni P . Orlandi
Em consequencia, a discursividade politica tern seus
pontos de tensao nos indfcios desses silenciamentos. Hoje, dis-
cursos como os do MST, que sao uma ruptura no discurso poli-
tico neo-liberal, tern dificudade de significar-se nessa margemem que muitos sentidos nao podem fazer 0 sentido do politico,
onde palavras como "movimento" podem significar algo sujei-
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BIBLIOGRAFIA
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couppure saussurienne: langue, langage, discours" in Langages,
Larousse, Paris.
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Campinas.
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sentado em mesa-redonda da ANPOLL, Campinas.
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Jose Horta Nunes, in Cadernos de Estudos Lingtifsticos , n° .
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Ed. Pontes, 1999, Campinas.
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NOTAS
* Urna primeira versao deste texto foi apresentada em Santa Maria
(RS), no Col6quio "Utopias e Distopias", em maio de 1998.
Agradeco a Amanda Scherer a oportunidade e a convivencia com os
que estiveram no evento.
1. As teses de Bethania C. S. Mariani, sobre 0 discurso do Partido
Comunista no Brasil (1997) , a de Suzy Lagazzi Rodrigues sobre 0
discurso do Assentamento (1998) e a de Maria Onice Payer sobre
mem6ria da l ingua, na situacao da imigracao italiana (em curso) ,
trabalham todas elas esses aspectos de cristalizacao, de apagamento,
ou de ruptura e resistencia.
2. Estou aqui fazendo uma distincao - falha constitutiva e falta por inter-
dicao - que corresponderia, em paralelo, a dist incao que faco entre nao-
sent ido (que aponta para 0 sentido que podera vir, 0 irrealizado) e 0
sem-sentido (0 que ja significou e que nao faz mais sentido). No caso, a
falha e 0 lugar do possfvel, do sentido a vir; e a falta, e 0que foi tirado
do senti do, 0 que nao pode significar. Essas formas se indistinguem e,
na maior parte das vezes, nao e facil separa-Ias, E esta aijustamente, doponto de vista da ideologia, a eficacia de seus efei tos.
3. Mais recentemente, ha referencias piiblicas a tortura, mas que permane-cern a margem, como acasos sem hist6ria, violencia que nao aparece
como parte da polit ica mas a parte dela. Transferida para a poHcia.
4. Conferir - a respeito da falta de trabalho da mem6ria, da dificuldade de
dizer, de se identificar e de transferir (metaforizar) sentidos que se pode
perceber na falta de palavras, na tensao dos gestos, dos olhares e do
silencio constrangido (e constrangedor para n6s cidadaos brasileiros ...)
dos corpos - 0 filme "15 Filhos": a imaterialidade da morte (sob tortura,
fabricam-se os desaparecidos, a morte fica sem corpo ... ) e a
imaterialidade da vida diz urn dos, ou melhor, uma das fi lhas.
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