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OS USOS DA MEMÓRIA NO ESPAÇO URBANO: CAMINHADAS DE UMA
ANTROPÓLOGA NA “ESQUINA” DA “JOSÉ MALCHER” COM A
“GENERALÍSSIMO”, EM “NAZARÉ” (BELÉM-PA)1
Rosangela Marques de Britto, PPGA-UFPA.
Os usos dos espaços e formas arquitetônicas e urbanas, delimitada pelo cruzamento de duas ruas em “Nazaré” na cidade de Belém. A “esquina” escolhida à realização da “observação flutuante” e a “etnografia de rua” abriga desde 1903, o “Palacete Montenegro”, edificado para residência e espaço de trabalho do ex-governador do Pará, Augusto Montenegro. Depois foi residência de famílias tradicionais, em 1965, foi adquirida pela Universidade Federal do Pará para abrigar a sede da reitoria. Em 1984, foi criado o Museu da Universidade e instalado neste palacete, tombada pelo estado, em 2012. A etnografia realizada entre 2012 até março de 2014 priorizou compreender e interpretar as relações dos agrupamentos humanos no entorno desta “esquina”. As perspectivas êmicas de quatro trabalhadores de rua em relação à circulação das pessoas no “dentro” e no “fora” do muro (jardim) do Palacete, e do público visitante ao circularem no espaço arquitetônico do interior do Palacete, sobre os significados e as observações da existência de fronteiras socioculturais entre aquele espaço e forma urbana e social nos cotidianos de trabalho, educação e lazer dos grupos sociais que habitam aquele “reduto” da cidade. Os instrumentais aplicados foram as entrevistas e a elaboração de cartografias de memórias sobre os “espaços praticados” de dois moradores e artistas visuais que tiveram interação com aquele espaço musealizado, em situações e acontecimentos artísticos de suas
histórias de vida.
Palavras-chave : Espaço Urbano e Social. Memória Individual e Coletiva. Arquitetura
Musealizada
THE USES OF THE MEMORY IN A URBAN SPOT: AN ANTHROPOLOGY
WALKING IN THE STREET CORNER IN “JOSÉ MALCHER” WITH
“GENERALÍSSIMO” IN “NAZARÉ” (BELÉM - PA)
The uses of the architectural and urbans spots, bounded by the intersection of two streets in
“Nazaré” in Belém city. The street corner chosen by achievement of “floating observation” and
the “street ethnography” habited since 1903, the “Palacete Montenegro”, built to be an residence
of traditional families, in 1965, the Federal University of Pará purchase the building to reside
the rectory office. In 1984, it was created the University Museum and installed in this palace,
listed by state, in 2012. The ethnography conducted between 2012 until 2014 prioritized
understand and interpret the relationships about the crowd around this street corner. The emic
perspectives about four street workers in compare with the movements of persons “inside” and
“outside” the Palace’s wall (garden), and the visitors who moves in the architecture spot inside
the Palace, about the meanings and observation of the socio-cultural existents borders between
that spot and urban and social way in the daily work, education and leisure from the group who
habit that city stronghold. The applied tools were the interviews and preparation of memories
cartographies about the “practiced spots” from two dwellers and visual artists who have been
contacted with that spot museumlized, in artistics happenings in their life history.
Keywords: Urban and Social Spot. Individual and Group Memory. Architecture Museumlized.
1 “Trabalho apresentado na 29º Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de
agosto de 2014, Natal/RN.”
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Introdução
A tese resulta de um estudo etnográfico do cotidiano e das memórias de
indivíduos e grupos sociais urbanos, a partir de suas representações e práticas espaciais
de andar, trabalhar e exercer o lazer no meio urbano, especificamente nas ruas do bairro
de Nazaré, na cidade de Belém, capital do estado do Pará, na Região Norte do Brasil. A
pesquisa é parte do meu investimento na realização de um projeto individual ou
político-existencial que vai ao encontro da compreensão deste Outro que habita a cidade
de Belém, e mesmo em busca da minha própria alteridade, de uma artista plástica-
arquiteta-museóloga, que almeja se reinventar profissionalmente como antropóloga.
Na Figura 1, apresento os loci da pesquisa, que são pontos móveis, articulados
a partir do entorno do “Palacete Montenegro” (Museu da Universidade Federal do
Pará-MUFPA), de onde foi traçado um raio de observação de aproximadamente 1.000
metros até a Travessa Benjamin Constant, onde se situam as residências de dois
interlocutores.
Figura 1 - Mapa com a marcação das áreas dos loci da pesquisa.
Fonte: Mapa captado do Google Earth. Adaptação da autora, 2014.
O tema da pesquisa versou sobre o ato de experienciar, por meio das itinerâncias
urbanas, de indivíduos e grupos sociais no espaço das ruas de um “reduto” do bairro de
Nazaré. Utilizo o termo “reduto”, expressão aferida por Moisés Nahum, um dos
interlocutores do estudo, proprietário da banca de revistas localizada em frente ao
“Palacete Montenegro” (Figura 4). A expressão significa um setor do bairro de Nazaré.
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O objeto da pesquisa envolveu os relatos das memórias dos itinerários de deslocamentos
dos indivíduos/grupos em suas práticas culturais espaciais e cotidianas de andar,
trabalhar, morar, e de experienciar em seus tempos livres e de lazer os espaços urbanos
das ruas do bairro de Nazaré.
Por conseguinte, delimitei arbitrariamente os espaços da observação, mas isto não
quer dizer que os limites da observação se confundam com os limites de investigação,
seguindo as orientações metodológicas dos instrumentais e métodos da pesquisa sobre as
sociedades contemporâneas, conforme os pesquisadores associados, a um dos territórios-
mito da antropologia das sociedades contemporâneas, que é a “Escola de Manchester”.
Um dos contributos desta Escola foi em criar novos instrumentais de pesquisa e processos
interpretativos, como foi bem explicitado por Bela Feldman-Bianco (2010, p.19-56), na
coletânea de textos destes autores e outros organizados em seu livro sobre métodos de
pesquisa em sociedades contemporâneas.
Nesta comunicação darei ênfase ao debate sobre algumas inquietações advindas
da proposta do Grupo de Trabalho: “Antropologia da Arquitetura e do Urbanismo”, ao
refletir sobre os pressupostos empírico-conceituais relativos ao olhar antropológico
sobre o projeto sociotécnico realizado na edificação, e as mudanças e permanências na
paisagem urbana do local. Neste sentido, compreendo os projetos de preservação do
patrimônio histórico e da musealização do patrimônio, como projetos sociotécnicos. Ao
adjetivar ao termo, projeto a noção de sociotécnico. Refiro-me a um sistema composto
por partes interdependentes, significativo para uma sociologia do trabalho, que, segundo
Bruno Latour (2012), é um método, que considera a sociologia como a ciência do viver
juntos, de associações, reúne os humanos e os não humanos. Para o autor, toda interação
humana é sociotécnica, pois não se defronta somente com objetos e nem só se
encontram limitados aos vínculos sociais.
A arquitetura como obra de arte está relacionada a um sistema que envolve o
contratante/cliente, o produtor e o público. Da interação entre estes elementos surge o
produto arquitetônico. O produtor erudito e de formação especializada foi o italiano
Filinto Santoro (1878-1927), no caso da residência de Augusto Montenegro (1867-1915),
construída entre 1903 e 1904, que contou com o trabalho do mestre de obra italiano Luigi
Bisi. Foram utilizados materiais importados da Itália, que atendiam à tecnologia da época
- eram industrializados e aliados à linguagem arquitetônica de expressar as imagens de
progresso, saneamento e beleza, ao mesmo tempo em que havia uma preocupação de
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adequação da construção e do urbanismo às necessidades regionais, segundo as
informações da arquiteta Jussara Derenji (1998). O cliente/contratante dos serviços de
engenharia, Montenegro, como os demais representantes deste segmento social da elite
paraense, expressava-se no espaço urbano belenense da época através do uso da
arquitetura como um potente meio de divulgação da política à disposição da classe
dominante.
O Palacete construído para residência de Montenegro é assim denominado, um
diminutivo de palácio, pelas dimensões externas, monumentalidade e as dependências
internas, com um determinado padrão de luxo, pois essas residências eram muito mais que
uma simples casa de pessoas nobres e fidalgas. Como explicitado pelo arquiteto Carlos
Lemos (1989), este tipo de residência particular objetiva enobrecer o projeto de
modernização das cidades, no caso, a nova Belém do início do século XX. A locação da
residência no lote, no formato de “L”, atendia uma distribuição do prédio no terreno, em
que foram projetados recuos em todos os lados. O acesso principal se fazia pela “São
Jerônymo” (atual Governador José Malcher). A volumetria da edificação se alonga
conforme as dimensões do lote. As duas fachadas - a principal e a lateral - foram mais
trabalhadas, já a parte do terreno que restava para a “Avenida Generalíssimo”, era utilizado
como garagem, ver Figura 2 .
O partido arquitetônico adotado no projeto da residência foi planejado no intuito
de atender às necessidades do contratante ou proprietário, assim como acatar as
necessidades de uma pequena família, composta por três pessoas, e acolher a vida
pública de seu morador. Partido arquitetônico significa um conjunto de diretrizes gerais
que se fazem determinantes para o projeto arquitetônico. Os usos do palacete para
função residencial, depois adquirido pela UFPA, em 1965, para sede administrativa da
reitoria, e, em 1984 , passou a abrigar a sede do MUFPA. Neste período, teve várias
intervenções. A mais significativa foi realizada em 2003, uma intervenção restaurativa
que permitiu que as linhas arquitetônicas ecléticas, representativas do período da Belle
Époque paraense fossem, em parte, restituídas pelas ações restaurativas na arquitetura
da edificação, assim como o lote que equivale à parcela fundiária ou cadastral, que
também define a relação do edifício com o terreno, foi ampliado entre os anos de 1948
ou 1950, permitindo a criação de um jardim (Figura 2,à direita).
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Figura 2: Vista da paisagem urbana da pesquisa. Fonte: Belém da Saudade, SECULT, 2004.
Ao longo deste período sociohistórico a arquitetura do local sofreu as mudanças
da paisagem urbana. Às vezes são dinâmicas sutis, mas que deveriam ser estudadas no
intuito de contribuir para a melhoria da atual função da edificação, como museu da
UFPA. No intuito de posteriormente a etnografia deste espaço intersticial urbano possa
a vir colaborar com a elaboração de projetos, e consequentes ações, ao encontro da
realização da premissa que o museu pode vir a ser uma “zona de contato” (Museums as
contac zones), conforme explicitado por James Clifford (1997). Nesta premissa, o
museu é o “local onde [as] diferentes visões culturais e interesses comunitários são
negociados” 2 (CLIFFORD, 2007, p.8). A expressão “contact zone” é apresentada por
Clifford (1997, p.192), a partir de Mary Louise Pratt (1999).Ela se apresenta como um
espaço de contato, de encontro, tendo como referente as relações assimétricas
socioculturais no período pós-colonial.
Os museus implantados no patrimônio histórico tombado em Belém abrangem
prédios do século XVIII, XIX e início do XX, como o caso do MUFPA. Mas, até que
ponto eles são de fato, espaços de sociabilidades urbanas? O que significam estes
patrimônios culturais musealizados nos bairros da cidade de Belém para os habitués que
praticam seus entornos? Qual a ideia de patrimônio cultural musealizado presente no
bairro de Nazaré, a partir das narrativas existentes no cotidiano das ruas, de seus
trabalhadores, moradores e dos frequentadores do MUFPA?
2 “Here I focus particular on the museum as a place where diferent cultural visions and community
interests are negociated” (CLIFOORD, 1997, p.8, tradução de Pamela Ferreira).
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A questão central que guiaram a condução da pesquisa é: Como os indivíduos e
grupos sociais urbanos compreendem aquele “prédio da esquina” no seu cotidiano de
trabalho nas ruas e nos seus movimentos de ir e vir naquele microcosmo da cidade,
delimitado pela área de estudo, situada pela intercessão de duas avenidas, “José
Malcher” e “Generalíssimo”?
As respostas não foram conclusivas, nem houve esta intenção. A etnografia
partiu da análise dos arranjos dos agrupamentos sociais existente nas calçadas do
entorno do prédio histórico musealizado. Estabeleci como tática tornar-me cliente dos
serviços de venda de doces, pastéis, sucos, dentro outros; e usuária dos serviços do
sapateiro e do relojoeiro, assim como no interior do museu acompanhei o cotidiano dos
trabalhadores do MUFPA, e os grupos agendados às suas visitas educativas e às
exposições temporárias de artes visuais realizadas nos salões do palacete. As dinâmicas
culturais e sociais dos personagens-atores sociais e suas tramas foram seguidas por
mim, no intuito de construir uma relação de troca e traçar uma rede de conversações ou
de interlocutores, que me informaram sobre as mudanças e permanências daquela
paisagem urbana cotidiana vivida por eles em seus afazeres, nos espaços urbanos das
ruas e no seu bairro de nascença, e para outros como espaços de trabalho nas calçadas
das referidas ruas.
A paisagem urbana dos locais da pesquisa foi interpretada, nas suas dimensões
múltiplas, como memórias e palimpsestos; e nas perspectivas polifônicas, por suas
ressonâncias e dissonâncias. Ela é composta pelas organizações sociais, indivíduos,
grupos e, estruturalmente, pela dimensão do “ambiente construído”, representado pelo
“Palacete Montenegro” ou a “edificação antiga” da “esquina”. A expressão ”esquina” é
utilizada pelos trabalhadores de rua do local da pesquisa para denominar os “pontos
nodais” (LYNCH, 2006) de cruzamento de duas vias. Neste sentido, a percepção da
imagem do ambiente urbano na cultura ocidental, segundo Kevin Lynch (2006) se
referenda, em especial, nas ruas, nos cruzamentos e redes de vias, em que os sistemas de
referências no meio urbano citadino são o marco ou monumento, ou mesmo as zonas ou
bairros, os traçados das ruas e os nós. A leitura ou o posicionamento do humano no
meio urbano se dá a partir dos usos do sistema de orientação no espaço, que mudam
conforme cada cultura. Destaco, dentre os sistemas de orientação, segundo Yu-Fu Tuan
(1983), em primeiro lugar, o equilíbrio vertical do humano, e as noções de
acima/abaixo, esquerda/direita, horizontal/vertical, alto/baixo, longe/perto, dentre
outras, que são as maneiras de se orientar na cidade, segundo o urbanista José Lamas
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(1992), ao argumentar sobre a os estudos relativo à morfologia do urbano e ao desenho
da cidade, o meio ambiente urbano é composto pelas “formas urbanas” representadas
pelas ruas, calçadas e todos os mobiliários urbanos como pontos de ônibus, bancas de
revistas, dentre outros, como também pelos elementos vegetais e arborizações, cujas
materialidades representam diversos signos de múltiplas temporalidades na fisionomia
das cidades.
As redes de conversações, o “fora” e o “dentro”: reinventando as paisagens das
memórias do lugar
O limite físico é o muro do lote, o “dentro” (no palacete e no seu jardim) e o
“fora” (na rua e calçadas) - os diferentes modos de conhecer o passado tangível pelos
dizeres dos atores sociais que circularam naquela paisagem urbana. Neste ambiente,
deambulo na companhia do público pelo interior das salas do museu, observando tanto a
função expositiva quanto o processo histórico de musealização do “Palacete
Montenegro”, de 1975 a 1984, até a sua configuração atual como museu de artes
visuais, vinculado diretamente ao gabinete do reitor da UFPA.
A etnografia foi ancorada nos estudos sobre as “práticas do espaço” e nas
invenções do cotidiano, segundo o historiador Michel de Certeau (1998), que orienta:
um dos modos de conhecer a cidade é caminhando nela. O caminhar é uma experiência
de espaço antropológica e poética. No ato do caminhar se constrói uma retórica do
andar (CERTEAU: 1994, p.21-31). Essa retórica combina os usos e os estilos dos
caminhantes, em que o estilo e as escolhas dos percursos ou dos itinerários urbanos nas
ruas do bairro estão relacionados a uma maneira de ser e estar do indivíduo/grupo no
meio urbano, constituindo polifônicas vozes, que enunciam diferentes maneiras de
conceber e vivenciar o cotidiano ou as nomeadas “enunciações pedestres” (CERTEAU,
1994, p.177) no e do mundo urbano, que permitem transforma os espaços em “lugares
praticados” (CERTAU, 2008, p.202), pela experiência do humano.
Ao andar no meio urbano da rua, o corpo assume a dimensão da escala, ou seja,
é o elemento de relação de medida entre o humano e as fachadas das casas, edifícios, as
árvores, os letreiros, as cores, texturas, uma infinidade de elementos que, organizados
entre si, definem a forma urbana e divulgam a imagem urbana. Outra dimensão da
escala se dá entre os elementos que constituem a própria morfologia urbana, ou seja, a
cidade percebida na unidade mínima da rua, em escala setorial, em contraponto às
dimensões do urbano - ou a escala do bairro e a dimensão territorial, ou a escala urbana,
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segundo Lamas (1992). No caminhar, estas escalas se apresentam contínuas e
descontínuas, mas sempre em relação entre elas.
Segundo Jo Takahashi (2003, p.147-164), faz-se necessário compreender uma
visão perspectivada do corpo, para situar a sua locação, e dimensão pessoal no cenário
urbano. A primeira dimensão do homem com o seu corpo é a pele, que representa a
fronteira física entre o corpo e a dimensão espacial do entorno. A segunda fronteira é a
roupa que veste o corpo ou a segunda pele, geralmente uma indumentária composta por
uma gramática e estilo pessoal. Dessa extensão do corpo aparecem às conformações que
excedem a semântica da dimensão pessoal, a tessitura dos espaços, a organização
ambiental da cidade e do desenho da paisagem urbana: “Essas camadas sobre camadas
constituem a perspectiva por meio da qual podemos visualizar a relação do corpo com a
cidade” (TAKAHASHI, 2003, p.147). A perspectiva do corpo para refletir sobre a
cidade passa a ser também considerada pelos urbanistas, a partir dos anos 80 do século
XX.
Outros cinco autores foram significativos no processo de constituição dos
aportes empírico-conceitual da pesquisa. O primeiro, o geógrafo Yi-Fu Tuan (1980;
1983), com ênfase na “topofilia”, que se refere aos estudos do espaço e do lugar, na
relação deste com as experiências humanas no ambiente. O segundo, que me permitiu
adentrar por uma “poética do espaço”, versa sobre a abordagem do filósofo Gaston
Bachelard (1988; 2008; 2010), sobre o tema da duração do ritmo do tempo e do espaço
pela perspectiva da “ritmanálise” e “topoanálise”, respectivamente, relacionado à
dialética de duração e do espaço. Outro enfoque refere-se à “antropologia de grupos
urbanos”, guiada pela perspectiva da abordagem das cidades em processo de
urbanização, conforme apontado pelo antropólogo Ruben Oliven (1984; 2007).
Aventurei-me pelos caminhos da perspectiva da “antropologia na cidade” (incluindo-se
a pesquisa no museu universitário, como parte da pesquisa de campo), de espaço
intersticial do bairro, seguindo os ensinamentos das antropólogas Ana Luiza Carvalho
da Rocha e Cornelia Eckert (1998, p.243-260; 2005; 2013), em especial sobre a
“etnografia de rua” (ROCHA; ECKERT: 2003, p.101-227, p.102), que equivale a uma
experiência e prática etnográfica que tem como intuito conhecer a cidade “como locus
de interações sociais e trajetórias singulares de grupos e/ou indivíduos, cujas rotinas
estão referidas a uma tradição cultural que as transcende”. Assim como, a “observação
flutuante” (observation flottante), segundo Colette Pétonnet (1982, p.37-47), consiste
em “não mobilizar a atenção para um objeto especifico, mas a deixar flutuar a fim de
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que as informações penetrem sem filtro, sem a priori, até os pontos de referencia, das
convergências, aparecem e em seguida chega para descobrir as regras subjacentes”.
Neste sentido, esta foi uma metodologia que me conduziu aos meandros das memórias
individuais e coletivas dos grupos sociais urbanos que participaram dos processos de
interlocução ou das redes de conversações criadas por mim, no ato de análise dos
agrupamentos sociais, distribuídos espacialmente nas zonas de observação dos cenários
da pesquisa, situados nas “esquinas” do entorno do “Palacete Montenegro”.
Em minha opinião, a noção sobre grupos urbanos torna-se fundamental para a
interpretação do espaço urbano e arquitetônico da rua e do bairro. Nesta direção
temática dos estudos do cotidiano, na relação dos indivíduos e grupos sociais urbanos,
ou mesmo de indivíduo/pessoa e sociedade, identifiquei os agrupamentos sociais
observados na pesquisa de campo no meio urbano, situados no cruzamento de duas ruas
do bairro de Nazaré, na forma de “grupos sociais”, conforme explicitado por Joseph
Fichter (1973, p.140), que caracteriza o grupo social como “uma coletividade
identificável, estruturada, contínua, de pessoas que desempenham papéis recíprocos,
seguindo determinadas normas, interesses e valores sociais, para a consecução de
objetivos comuns” (FICHTER, 1973, p.140). A noção de “quase grupos”, seguindo
Adrian Mayer (2010, p.139-170), configura-se como um campo de recrutamento de
pessoas. Outra noção de Mayer é o “quase grupo interativo”, este tipo de associação de
indivíduos apresenta certo grau de organização, mas, mesmo assim, ainda não é um
grupo. Já relativo às configurações de indivíduos e grupos sociais, na forma de redes
sociais, foram interpretados segundo os estudos de John Barnes (2010, p.171-204). Esta
noção foi sendo desenvolvida “na antropologia social, tendo em vista a análise e
descrição dos processos sociais que envolvem conexões que transpassam os limites de
grupos e categorias sociais” (BARNES, 2010, p.175). Outro termo empregado foi
“grupo organizado”, segundo Elizabeth Bott (1976), para referir-me a unidades sociais
mais coesas, em que os indivíduos desempenham seus papeis sociais em função de
atuação profissional no âmbito de um processo museológico e de administração do
patrimônio cultural sob a responsabilidade da organização, no caso, o MUFPA.
A Figura 3 apresenta a imagem elaborada das redes de conversações ou
interlocuções tecidas por mim na pesquisa (estrela, alfa), das quais partem as conexões
de três agregados, a saber: a) agregado residencial, composto por quatro moradores; b)
agregado funcional, os trabalhadores de rua, composta pelo grupo familiar da família
“Bandurra”, integrada pelo pai Jerônimo (bombonzeiro), e dois filhos Zeca (sapateiro) e
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Benedito (vendedor de doces de castanha), que desempenham seus ofícios de
trabalhadores de rua e dois “quase grupos interativos”, de quatro trabalhadores
“licenciados” e nove trabalhadores “não licenciados”. Assim eles se autodenominam
para se diferenciarem dos que pagam as taxas à prefeitura, e os que não são legalizados;
c) os agregados sociais do tipo funcional, que envolve o conjunto de trabalhadores do
MUFPA, que foram identificados como grupos sociais organizados e “quase grupos
interativos”. As redes de conversações são representadas pelos conjuntos de pessoas que
estão interconectadas, e que mostram as interações sociais diretas e indiretas, as linhas
contínuas e as tracejadas, que geralmente se entrecruzam, formando uma abstração da
realidade concreta da vida social dos agrupamentos humanos.
Antropologia da arquitetura e do urbanismo: reflexões metodológicas
O ambiente tem significados especializados em determinados contextos. No
caso, refiro-me ao meio ambiente urbano. O urbano e o rural são aqui compreendidos
sem dicotomias, conforme explicitado por Henri Lefebvre (1999; 2008). O urbano é um
conceito teórico - ele existe, enquanto forma urbana, pela simultaneidade, que agrega
coisas, pessoas e signos. Lefebvre informa que realmente o essencial em relação ao
urbano é a “reunião e a simultaneidade” (LEFEBVRE, 2008, p.85). O espaço da cidade
é diferenciado do espaço rural por seu modo de produção, e pela divisão de trabalho no
interior da sociedade. Nestes termos, a noção de “tecido urbano” utilizada por Lefebvre
Figura 3: Redes sociais urbanas de interlocuções ou conversações . Elaboração da autora, 2014.
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“não designa, de maneira restrita, o domínio edificado nas cidades, mas o conjunto das
manifestações do predomínio da cidade sobre o campo” (LEFEBVRE, 1999, p.15). A
cidade como explicito por Lefebvre (2008), é um objeto espacial que ocupa um sítio.
Sendo um objeto, a cidade é estudada por diferentes técnicas e métodos (econômicos,
políticos, demográficos, dentre outros).
Nesta pesquisa, as tramas, os interlocutores, e os cenários - são os três
elementos que configuraram o tecido urbano do bairro, que foram aprendidos na relação
dos indivíduos e grupos sociais urbanos em suas práticas de sociabilidade, no contexto
das ruas do bairro de Nazaré, e em alguns limites a outros bairros, conforme os
encadeamentos dos modos de conhecer o passado tangível pela memória, a história e os
fragmentos, como sintetiza David Lowenthal (1998). A percepção do passado
relembrado é o resultado de todo um continuum. Neste sentido, a memória é multiforme
e as lembranças não significam meras reflexões do passado, mas são reconstruções
ecléticas, baseadas em maneiras de agir e em percepções posteriores, que são códigos
que se renovam, e por meio do qual o humano delineia, simboliza e classifica o mundo
à sua volta. Neste caminho de estudos, a função da memória “não é preservar o passado,
mas sim adaptá-lo, a fim de enriquecer e manipular o presente” (LOWENTHAL, 1998,
p.103).
A arquitetura e os museus3 no espaço urbano foram percebidos na pesquisa
como patrimônios culturais tangíveis. Neste sentido, segundo Andreas Huyssen (1994),
estas são objetos materiais e simbólicos fundamentais na negociação de uma
“sensibilidade compensatória” (Huyssen, 1994, p. 35-55; p.46), em relação à perda da
memória no dinâmico modo de vida urbano contemporâneo da urbe, ao relacionar a
arquitetura e os museus, como espaços híbridos, bons para pensar, agir, educar, se
divertir e comprar nas suas lojinhas, pois estão inseridos em um sistema de “cultural de
massa, ou seja, como um espaço de mise-em-scéne espetaculares” (HUYSSEN, 1994, p.
35-55; p.35). A arquitetura, de valor histórico e artístico musealizado no meio urbano,
pode vir a ser representada pelos “lugares de memória”, segundo Pierre Nora (1993,p.1-
28). São lugares topográficos ou não, que exercem o papel de mediação dos
indivíduos/grupos com seu passado, a partir de seus tempos presentes.
As relações ou interações socioculturais de indivíduos/grupos com os
patrimônios culturais musealizados no espaço urbano belenense são um tema instigante,
3 A instituição e não o conceito indicado por M, maiúsculo, Museu.
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porque o museu e o patrimônio cultural são uma determinada forma de representação do
outro na cidade, conforme afirma Jose Reginaldo Santos Gonçalves (2007). Este autor
reitera que os objetos materiais classificados como patrimônio cultural por determinado
grupo, desempenha uma função social e simbólica de mediação entre o passado, o
presente e o futuro do grupo, assegurando-lhe a sua continuidade no tempo e sua
integridade no espaço. A categoria patrimônio foi interpretada como um conceito
polissêmico, compreendido desde o conjunto de elementos que cada indivíduo entende
como pertencente a sua esfera pessoal, até o conjunto de evidências naturais e de
produtos do fazer humano, definidores ou valorizadores das identidades de
determinados indivíduos e grupos sociais, conforme sugerem as museólogas Tereza
Scheiner (2004) e Rosangela Britto (2009).
Nesta compreensão, e considerando o patrimônio cultural como categoria de
pensamento ou gênero discursivo, conforme apontado por Gonçalves (2002; 2007), o
que caracteriza cada conjunto como patrimônio é a sua apropriação, ou não, pelos
indivíduos ou grupos sociais, a partir de valores internos assinalados pelos indivíduos e
grupos em seus processos de mediações culturais e sociais no mundo vivido, voltado à
temática dos usos e as experiências dos indivíduos/grupos no meio ambiente urbano,
diante de suas categorias temporais, espaciais e de memória.
Este patrimônio histórico musealizado no meio urbano da cidade apresenta-se de
maneira geral, como parte do resultado de uma política estatal de preservação da
memória e do patrimônio internacional, nacional e regional, que está relacionado aos
processos diferenciados de “patrimonialização” e de “musealização” dos bens culturais
tangíveis e intangíveis. Os museus instalados em prédios de valor histórico, que foram
adaptados para a esta função, ou em edificações constituídas para tal fim, representam
um lugar de múltiplas práticas e de saberes, envolvendo uma diversidade de
profissionais de distintas áreas de conhecimento. As arquiteturas de museus no meio
urbano são espaços de socialização e de aprendizagem, produtores e indutores de
significados e sentidos de diversas temáticas, e também são locais que estão ligados a
uma rede de produção, circulação e consumo artístico, estético, cultural, cientifico e
filosófico.
A musealização é um processo científico, que compreende um conjunto de
atividades do museu, envolvendo o trabalho de preservação (seleção, aquisição, gestão,
conservação), de pesquisa (documentação e catalogação) e de comunicação (exposição,
educação e outros meios de difusão). O patrimônio cultural musealizado pode ser
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considerado materialmente como o passado tangível (prédio histórico ou patrimônio
histórico) que foi convertido em museu. Ademais, o ato de musealizar o patrimônio
cultural, compreendido como processo, me permite afirmar com Mathilde Bellailgue
(1992), que a teoria museológica se elabora a partir da prática museal, quando o museu
é o laboratório da museologia, por sua vez, tem o seu material de experimento no real.
O real, no museu, é representado pelo objeto, compreendido em seu sentido amplo: ele é
tangível e intangível, como as duas faces de uma moeda, que se complementam.
Na pesquisa propus pesquisar segundo Gonçalves (2002; 2007), o patrimônio
cultural enquanto discurso do cotidiano, na dimensão da rua, ou seja, do espaço urbano-
social. O referente na paisagem é o “palacete Montenegro” (MUFPA), museu instituído
pela UFPA no intuito de preservar a edificação, sem uma noção do que seria organizar
um museu, conforme explicita Jane Beltrão, a sua primeira diretora. Então, atualmente
existe na paisagem urbana da cidade de Belém uma concentração de museus em prédios
históricos, que foram restaurados e adaptados para a função museológica, como em
outros estados brasileiros.Esta é uma política de preservação da memória coletiva
amplamente adotada.
O estudo da percepção da “musealidade” (SCHEINER, 2005) dos belenenses
está relacionado à pesquisa do patrimônio cultural como categoria pensamento
(GONÇALVES, 2002) - ou mesmo às “práticas culturais espaciais de consumo
cultural” (CERTEAU, 2008, p.37-53; MAYOL, 2008, p. 37-45). Compreendo a
musealidade, como o objeto de estudo da museologia, que é uma relação especial entre
o homem, a memória, o espaço e o tempo (SCHEINER, 2005, p.8).
O “Palacete” foi considerado um documento, em que o espaço construído é
protagonista da arquitetura. Neste sentido, ele foi interpretado em sua trajetória,
ressaltando-se a sua “biografia cultural” (KOPYTOFF, 2008, p.85-121). Nos termos de
Igor Kopytoff, a abordagem biográfica das coisas nas sociedades complexas apresenta
um padrão semelhante. Mas em um contexto homogeneizado das mercadorias, a
biografia de uma coisa implica a perspectiva histórica de suas várias “singularizações,
das classificações e reclassificações num mundo incerto de categorias cuja importância
se desloca com qualquer mudança do contexto. Tal como ocorre com as pessoas, o
drama aqui reside nas incertezas da valoração e da identidade” (KOPYTOFF, 2008,
p.121).
Nestes rumos, pesquisei a historicidade da materialidade da casa-palacete e seus
diferentes usos e funções, assim como, por meio da etnografia da relação dos indivíduos
14
e grupos sociais urbanos com a edificação, e as entrevistas com os interlocutores, foram
fundamentais para a compreensão dos significados e sentidos do “prédio antigo da
esquina”. O primeiro passo que interpretei nos espaços das calçadas das ruas foi a
demarcação de territórios dos agrupamentos sociais, que se processou pela delimitação
de fronteiras, ora por laços de amizades ou de parentesco, ora por certo respeito ao uso
de um determinado espaço pela oferta de um serviço específico em detrimento a outros,
num pequeno fragmento das ruas no mundo urbano do bairro. Num, segundo momento,
a identificação dos agrupamentos sociais em cada território, com o intuito de
compreender de qual modo às divisões ou fronteiras, são feitas pelos indíviduos/grupos,
e como são legitimadas, ou não, pelos variados segmentos sociais. O terceiro passo foi
compreender as gramáticas nativas sobre o que significava para os indivíduos/grupos
aquele prédio da esquina, e as mudanças e permanências daquele local, no tempo que
estavam ali, realizando os seus saberes e ofícios ou práticas sociais e espaciais.
Considerando as delimitações de fronteiras, nem sempre visíveis nas ruas do
bairro de Nazaré, destaquei a geometria habitada da casa – o “espaço construído” (o
interior da arquitetura, que configura a edificação): o muro, que é o limite físico do lote,
em contraposição ao espaço aberto, portanto, sem nenhuma edificação, o que nos leva a
relações entre polos complementares presentes num continuum: espaço aberto e
fechado, interno e externo, fora e dentro.
(In) Conclusão: as gramáticas nativas sobre bairro, rua e patrimônio musealizado
Edna Sequeira, moradora do bairro, com 78 anos de idade, mãe de Alexandre
Sequeira que pertence a uma família de quatro irmãos. A Edna e seu filho moram na
Avenida José Malcher nº1631, em área contígua ao MUFPA. A D.Edna como moradora
do bairro há quase setenta anos, relata as mudanças e permanências de algumas
paisagens do entorno de seu local de moradia. Sobre as suas lembranças desta esquina,
ela descreve:
Já, era uma família muito rica, que era a família Chamiê. Eram ricos, eram umas pessoas assim [...] era uma vida muito estilosa.[...]. Vão perdendo o dinheiro e vão perdendo o status, mas era a família deles, me lembro, inclusive, que em cima morava a família mais abastada e no porão, na parte de baixo, moravam uns parentes assim, que eles deixavam uns tios, mas, sempre foi de esquina.
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Alexandre Sequeira, 53 anos, é arquiteto e urbanista; professor da Faculdade de
Artes Visuais da UFPA e artista visual. Ele é filho de Edna e Joaquim Sequeira. Seu pai
foi professor de direito na Faculdade de Arquitetura, mas se dedicou à área
administrativa e de consultoria jurídica; trabalhou diretamente ligado ao primeiro reitor
da UFPA, Mário Braga Henriques e com o segundo reitor, Silveira Neto. Á época, a
reitoria da UFPA funcionava no “Palacete”. Ele narra suas memórias dos lugares, a rua
e sobre o palacete, no seu uso como reitoria:
[E]u voltava a pé da escolinha do NPI [Núcleo Pedagógico Integrado, a Escola da UFPA], que ficava na frente do Nazaré, já era uma coisa bem tranquila né? A gente pequenininho, voltava a pé e aí eu entrava na reitoria.Era ótimo uma criança entrando e aí bater na sala do reitor né? Ficava lá, sentado, conversando com o meu pai, lembro daquela casa [...], como reitoria mesmo. [O gabinete do reitor] eu acho que, se eu não me engano, eram aquelas [salas] que dão pra frente do prédio mesmo, lá no 2° andar, pra lá que eu lembro que subia pra falar com meu pai [...].Eu me lembro também num capitulo incrível, teve um momento que a gente morou ali naquela Vila, que é a Passagem Ramos, do lado da Semec [Secretaria Municipal de Educação], pertinho, alguns metros, minha mãe estava grávida da Daniela, era em 1968, e teve uma grande confusão, política mesmo. Estudantes e policiais, na frente da reitoria e cavalaria passando e tudo, e a minha mãe super nervosa, e o meu pai era professor na Faculdade de Direito, e o meu pai desceu e foi pra lá, pra confusão. Eu lembro da minha mãe gritando, pedindo pra ele não ir, pelo amor de Deus. Tinha tiro, não sei o quê [...]. A minha mãe chorando e ele foi, e a minha mãe entrou em trabalho de parto e a Daniela nasceu nessa madrugada, foi uma madrugada de uma grande confusão e o palco era aí, a porta da reitoria. Eu não vi claro, porque eu era moleque, tinha uns 7 anos de idade, mas eu via toda a movimentação dessa confusão em 68.
O significado do Bairro e do espaço urbano para Alexandre:
Eu acho que o bairro...eu pelo menos por muito tempo, ele funcionou
pra mim como uma cidade né, por exemplo, por muito tempo até onde o meu limite só compreendia ali, aquilo era um território onde
sobre aquele território eu poderia falar com propriedade , eu poderia é...é como se você enquanto morador, você se apropria daquele dado como seu também, aquele território como seu, então,
esse território é meu tanto que você se identifica né. Um dos dados solicitados pra qualquer ficha de identificação é o bairro né, então, é você, é curiosamente como você incorpora aquilo como algo seu e sobre ele você fala propriedade, você briga com muita propriedade né, pelo direito até de não mudar o nome de uma rua, às vezes, eu me pego em ato falho, mas, eu sei de onde ele vem, falando São Jerônimo né, que eu moro na São Jerônimo e acho muito mais lindo falar São Jerônimo do que falar Governador, o nome de um governador né.[...]. Então, eu acho que é isso, eu acho que o bairro é como se fosse um
estágio em que você passa a tentar compreender um pouquinho
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mais o macro né, então, aonde você alcança o macro e digere esse macro o mesmo [...]. [C]ompreender o que é o sentido de urbano, mas, numa escala capaz dela se apropriar daquilo como seu também, como compreender aquilo, falar daquilo, porque eu acho que uma cidade como Belém tá hoje com quase 2 milhões de habitantes, você não tem mais essa propriedade, você não tem como falar da Marambaia, você não tem como falar de Canudos, de Terra Firme, pra você ter uma ideia até eu como arquiteto né, eu tenho ideia exatamente onde ele tá, mas, eu não tenho como falar como eu falo
do bairro de Nazaré né, que eu vou buscar na história e que é afeto
mesmo, é afeto no sentido de afeto pela cidade, relação de pertencimento, então, eu acho que parece o sentido que a gente constrói em família, primeiro a gente só conhece o útero da mãe, depois pai e mãe, depois irmão, depois...então você vai criando uma rede e ali você aprende a se impor, você aprende a firmar questões assim, todas as relações sociais, do mesmo modo como a cidade,
você tem o seu quarto, a sua casa, o seu quintal, a rua né, um
conjunto de ruas até onde o teu pai deixa e depois um bairro.
Moisés Davi Nahum, o primeiro ator social do estudo, apresentado em seu
ambiente de trabalho diário, nas calçadas da rua, em sua banca de revistas. Moisés é
proprietário há 14 anos da banca de revista situada na fachada principal do “Palacete
Montenegro”, “ao lado do IESAM” (Instituto de Ensino Superior da Amazônia). No site
do MUFPA, no item de informações ao público, é assim que o MUFPA informa aos
interessados o seu endereço e como a instituição se localiza no bairro (Figura 4).
Moisés é morador do bairro de Nazaré, primeiro morava no bairro da Campina,
nasceu lá e depois veio há quase 60 anos morar em “Nazaré”, em um edifício situado na
Travessa Benjamim Constant, próximo algumas quadras deste local. Moisés, ele é uma
pessoa muito reservada, o primeiro contato com ele foi ao dia 12 de Abril de 2012, na
condição de cliente dos produtos ofertados por Moisés.
Figura 4: Banca em frente ao “Palacete”, Moisés na cadeira
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Moisés: É, mais de quatorze horas, e direto; venho sete horas e saio nove horas- é isso aí, a cabeça não pensou, o corpo padece. Rosangela: É o senhor tinha me falado do IESAM, que ocupou toda essas casas no entorno do prédio do museu. Moisés: Sim, ela já comprou, já comprou até lá, quase embaixo,
aqui na frente também é do IESAM, pra lá também é o IESAM,
só faltava vender o museu (risos). Rosangela: Mas, o senhor acha que deveria mudar de função o prédio? Deixar de ser museu aí? Moisés: Não, tinha que ter mais museus em Belém, porque tem
poucos . Rosangela: O senhor já visitou quais Museus? Moisés: Teatro da Paz, Waldemar Henrique. Moisés: Devia ter dinheiro federal, devia ter dinheiro pra isso, ou estadual pra manter os prédios, principalmente os prédios mais
antigos que aqui em Belém tem tanto, estão se acabando, muitos
prédios se acabando né, enquanto não cai ou não coisa, depois vira tudo edifício, esse dali [gesto da mão apontando na direção da José Malcher], não o de lá, o maior era um pomar bonito que tinha uma
casa, deixaram acabar, depois que acabou daí tiraram as árvores,
tal, fizeram um edifício grande aí. Rosangela: Mas, o senhor visitou aí [o MUFPA] ? Moisés: Fui só ali por baixo, não subi não. Rosangela: O senhor só foi lá no Porão[biblioteca], embaixo? Moisés: Não, aqui em cima [falou gesticulando e apontando para o prédio]. Rosangela: Na sala de exposição? Moisés: Tava tendo uma exposição de quadros, mas, lá pra cima
não foi, tava em reforma. Rosangela: Mas, aí o que fez que o senhor foi lá, visitar a exposição? Lhe convidaram pro senhor visitar essa exposição de quadros? Foi curiosidade? Moisés: Botam a placa pra aí, pra ir, eu fui dar uma olhada, não
conhecia, mas não entendi nada.
Moisés: Ah! Vê se a senhora fala com a Jussara [diretora do museu] pra mandar ver essa mangueira, principalmente isso aqui, um prédio
tão bonito ficar assim. Rosangela: Mas, se tirar toda essa mangueira, vai tirar a sua sombra. Moisés: Eu sei, [...] tem que tirar esses galhos daí, que tá feio aí, no
prédio, pro prédio ficar mais bonito. Tem gente que vem tirar retrato, ai foto aí, aí bate foto aí, de vez em quando, tão ai batendo foto de fora aí [falou apontando para fachada principal].Dai de fora do prédio. Moisés: Não vá dizer nada que eu falei, diga que você viu. Rosângela: Por quê que eu não posso dizer que foi observação sua(risos)? Moisés: Ela [a diretora] vai dizer que eu tô me intrometendo na manutenção do prédio. Moisés: É, com certeza, é melhor não falar.
No relato apresentado do Moisés, ele não faz diferença entre as funções dos
prédios de valores históricos na cidade, se o mesmo abriga um teatro ou um museu. Ele
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se mostra muito sensível à preservação do patrimônio histórico na cidade e aos seus
usos públicos. Como ele me respondeu: “Não, tinha que ter mais museus em Belém,
porque tem poucos”, mesmo sem ele ter visitado os museus existentes na cidade.
Quando perguntei se já havia visitado o MUFPA, ele se sente convidado a entrar,
incentivado pela programação visual que fica exposta na fachada no prédio. Também
me relatou do atrito que teve com a diretora do MUFPA, pois ele e os fregueses usavam
a parte inferior do muro como assento, e às vezes, ele queria usar a grade como suporte
para expor a cartela de anúncio dos créditos telefônicos. Por este motivo, ele expôs a
sua preocupação com a preservação do “prédio antigo”, porém se recusa ou teme falar
ou tentar dialogar diretamente com a administração do espaço.
Este breve relato do Moisés e dos outros interlocutores apontam a fronteira
sociocultural, que a própria materialidade e espacialidade da forma arquitetônica da
edificação impõem - sua soberania e riquezas à paisagem do local. De certa maneira, a
sua herança formal de outros usos afasta o possível público na função museológica.
Fora, o atrito ou ausência de diálogos do MUFPA com sua vizinhança, que envolve
diferentes grupos sociais e urbanos. No geral, ao ouvir trinta três visitantes, e ao
perguntar os seus locais de lazer na cidade, se destacaram dois espaços museológicos, o
Bosque Rodrigues Alves e Museu Paraense Emílio Goeldi, respectivamente o “lugar
das plantas” e o “lugar dos bichos”. Talvez o lugar de estudo, o MUFPA e o seu
entorno, no bairro de Nazaré, aponta-me que a ideia dos belenenses de Museu em
espaço fechado, numa “casa” (palácio ou palacete que foram restaurados e
musealizados) está relacionada à “coisa velha e antiga”, causando repulsa destes locais
em contraste com os espaços abertos, parques, bosques.
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