Post on 15-Feb-2021
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Orelha 1
Observando e Anotando
Raimundo Rocha
Raimundo Rocha nasceu em Patú (RN), em
1919, e faleceu em São Luís no ano de
1969.Como ocorre freqüentemente com os
nordestinos, morou em muitas cidades
diferentes antes de chegar a São Luís, onde
viveu seus treze últimos anos. Esse livro
testemunha sua vida em Patú, Lucrecia,
Assú, Pau dos Ferros, Mossoró, Teresina,
Fortaleza, Pedreiras e São Luís, reunindo
suas observações ali realizadas,
especialmente sobre aspectos da cultura
nacional menos controlados pelas elites e
que normalmente fogem aos interesses da
Ciência e da Cultura Erudita. Além de
comerciante, foi também folclorista,
jornalista e um estudioso da origem do povo
brasileiro, ligando-se a várias associações
profissionais e culturais. Publicou seus
trabalhos em diversas revistas, entre elas:
Centelha, Bando, Legenda, Encontro com o
Folclore, Revista Genealógica Latina,
Almanaque Cariri, Boletim do CRN e
outras. Divulgou também vários deles no
Jornal do Dia, no Jornal do Maranhão, no
Jornal Cidade de Pinheiro e na Tribuna de
Pinheiro. Planejava reunir seus escritos em
um livro, quando foi surpreendido por um
colapso cardíaco, antes mesmo de esboçar o
plano de sua obra. Observando e Anotando
reúne seus trabalhos publicados e inéditos
localizados pela família, procurando
respeitar seu estilo literário e a forma de
apresentação por ele adotada. O título
corresponde à denominação de uma das
seções do seu caderno de pesquisa.
Raimundo Rocha descreve em seus
trabalhos a vida nas pequenas cidades do
interior do Rio Grande do Norte, pintando
com vivas cores a escola, a família rural, a
instabilidade e as contingências da pequena
burguesia local, de onde saiu, e os costumes
sertanejos. Descreve também manifestações
folclóricas nordestinas pouco pesquisadas,
sendo seus trabalhos freqüentemente citados
nas obras de Alceu Maynard Araújo.
Mundicarmo Ferretti
Organizadora
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Orelha 2
Raimundo Rocha para o escritor e amigo
Raimundo Nonato
“Há certas criaturas iluminadas pelos
clarões da bondade que, continuam
presentes na memória dos seus
contemporâneos, como se vivas
continuassem sendo.
O fenômeno não é estranho ao raciocínio, e
uniu-o Câmara Cascudo, num daqueles
rasgos de sua geniosidade, quando
determinou numa manifestação de
sentimentos de afetividade que: “A morte
existe, os mortos não” (...).
“Espírito expansivo, claro, sem
embutimento de ideais, mergulhou nos
estudos da pesquisa e não tardou Raimundo
Rocha a encontrar-se e estabelecer
relacionamento com as figuras mais
destacadas do campo folclórico, a exemplo
de Câmara Cascudo, M. Rodrigues de Melo,
Vingt-un Rosado, Veríssimo de Melo e
Alceu Maynard, este de São Paulo, falecido
recentemente.
Seu trabalho teve o mérito da originalidade,
e justificá-lo plenamente, ainda mais, pelo
espírito de equanimidade com que dividia as
honras de um trabalho, que ele sempre
considerava de grupo, e que por isso, devia
pertencer a outrem”.
Raimundo Nonato, 1974.
“Aroeira do Patú – Jequitibá no
Maranhão”
“Por demais foi intensa a atividade
jornalística de Raimundo Rocha naquele
importante centro cultural (São Luís-MA),
tomando parte ativa nos seus movimentos
literários e no trabalho das suas instituições
em particular das que se dedicavam à
promoção no campo do folclore e da
antropologia”.
Raimundo Nonato, 1972.
“Raimundo Rocha – seus verdes dias no
sítio do Junco”
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RAIMUNDO ROCHA
OBSERVANDO
E
ANOTANDO
GP-MINA
São Luís
2017
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Organização e notas MUNDICARMO MARIA ROCHA FERRETTI
Colaboração MARIA DO CARMO ROCHA
JULIA MARIA ROCHA
SERGIO FIGUEIREDO FERRETTI
Revisão MARIA DE FÁTIMA SOPAS ROCHA
Rocha, Raimundo.
Observando e Anotando/Raimundo Rocha – São Luis: Gp-Mina/UFMA, 2017.
168 p.: 34 il.; 22 cm.(???)
1. Folclore Nordestino. 2. Cultura Nacional. 3. Literatura Norteriograndense -
memórias. 4. Folclore Maranhense. 5. Família Nordestina. I. Rocha, Raimundo. II.
Título.
CDD 398.09812
CDU 398 (812/914)
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Caríssimo compadre Mundico
Continue a escrever. Gostei dos seus últimos trabalhos. Vá
escrevendo e um dia você ajuntará tudo num livro.
São Paulo, 17/06/1968.
Alceu Maynard Araújo1
1 Nota da organizadora - Escritor, folclorista, professor, membro da Academia Paulista de Letras e autor de
Antologia do Folclore Nacional – 3 vol. Ed. Melhoramentos, 1964 e de várias outras obras.
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SUMÁRIO
PREFÁCIO, 8
Pedro Dantas da Rocha Neto
APRESENTAÇÃO, 11
Mundicarmo Maria Rocha Ferretti
VIDA E OBRA DE RAIMUNDO ROCHA, 13
Sergio Figueiredo Ferretti
FOLCLORE MARANHENSE, 20
1. ROMARIA DAS CARROÇAS A RIBAMAR (11/1957), 21
2. PREGÕES DE SÃO LUÍS (08/1968), 24
3. A MEDICINA CASEIRA MARANHENSE (10/1968), 27
FOLCLORE DO PIAUÍ, 28
1. "ELE NÃO DÁ CRUZEIRO" (02/1949), 29
2. BENEDITO, MESTRE ESCOLA DA TRIBO GAVIÃO (06/1949), 31
3. O BUMBA-MEU-BOI (08/1959), 33
4. SÃO GONÇALO DO PIAUÍ (1950), 36
5. AINDA A DANÇA DE SÃO GONÇALO (11/1951), 41
6. A FESTA DOS CACHORROS (06/1954), 46
7. MARCHA DOS DEZ MANDAMENTOS (06/1967), 48
FOLCLORE DA SECA, 50
1. ADVERTÊNCIA PARA O MEU FUTURO (10/1949), 51
2. UM POUCO DE FOLCLORE, 53
3. PARECE MENTIRA, PARECE..., 60
4. ONDE MORREU JESUÍNO BRILHANTE (10/1967), 62
5. EU CONHECI ANTÔNIO SILVINO (03/1968), 64
6. PELO SINAL DO SERTANEJO (1972), 68
LEMBRANÇAS DO PATÚ. 70
1. OLHO D'ÁGUA DO PINGA (09/1947), 71
2. DIVAGANDO... (11/1947), 73
3. FIGURAS PITUENSES - JOÃO DE HOLANDA (12/1949), 74
4. SINHÁ PROFESSORA (01/1950), 76
5. BICHO DO MATO (02/1959), 79
6. POPULARES DO PATÚ (05/1950), 81
7. SOBRENOMES E APELIDOS (06/1950), 84
8. JUNCO - PARAÍSO INFANTIL (12/1966), 87
FAMÍLIA ROCHA, 89
8
1. FAMÍLIA ROCHA (genealogia) (07/1961), 90
2. MÃE-VELHA (12/1949), 95
3. MÃE MIMOSA (12/1949), 97
4. PROFESSOR ROCHA, MEU PRIMEIRO MESTRE (02/1967), 99
5. MEU PAI (06/1967), 101
6. VERSO DO AÇUDE DO SALÔBO (de poeta popular), 103
7. IRMÃOS ROCHA – NOTAS (1944-1965), 105
FIGURAS NOTÁVEIS, 125
1. HUMBERTO DE CAMPOS (06/1947), 126
2. VASCONCELOS - OPERÁRIO DA AGULHA E DA PENA (12/1948), 129
3. DUBAS - UM MESTRE E UM AMIGO (01/1950), 131
DISCURSO NA ENTREGA DA COMENDA VITAL BRASIL (10/1967), 135
ROTEIRO AUTOBIOGRÁFICO (05/1969), 137
RAIMUNDO ROCHA PARA ESCRITORES E AMIGOS, 140
1. VERÍSSIMO DE MELO - "Marcha dos dez mandamentos" (02/1951), 141
2. ALCEU MAYNARD DE ARAUJO - "Minha roseira do Maranhão" (09/1970), 143
3. RAIMUNDO NONATO - "Raimundo Rocha – seus verdes dias no sítio Junco"
(09/1972), 145
4. CARLOS CUNHA - "A queda do jequitibá não abalou a floresta" (07/1974), 148
5. RAIMUNDO NONATO - "Aroeira do Patú – Jequitibá no Maranhão" (08/1974),
150
6. JOSÉ AQUINO – “Homenagem a Mundico (Carta a Mundicarmo)" (11/1983), 153
7. JOSÉ JACOME BARRETO - "Raimundo Rocha (Mundico) – um depoimento
sentimental (01/1984), 157
FOTOGRAFIAS, 160
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PREFÁCIO
MUITO TEMPO PARA ESCREVER, POUCO TEMPO PARA CONVIVER.
Levei muito tempo até tomar da caneta e escrever alguns pensamentos que fariam às
vezes de prefácio para esta magnífica coletânea de escritos reunidos cuidadosamente pela
minha irmã Mundicarmo.
Outro dia estava divagando quando me ocorreu a idéia de como foi curta a
convivência do filho Rocha Neto com o seu pai. Não demorou mais do que treze anos. Isto, se
contarmos apenas o tempo de convivência a partir da "idade da razão", como diria a minha
mãe, até o meu casamento, quando, normalmente, deixamos a casa dos pais para construirmos
a nossa. Temos que descontar os anos em que vivi longe do convívio familiar e que foram
quatro. Nestes quatro anos fiquei interno em Recife e Campina Grande, por decisão pessoal,
quase malcriada, cuidando dos estudos e da minha formação para tornar-me, como queria, um
professor: um Irmão Marista.
Acho que este livro é um tratado de como as pessoas podem encarregar-se do próprio
desenvolvimento. Na família freqüentemente brota a idéia de que o pai e a mãe são
supostamente amadurecidos e a criança, totalmente dependente dos adultos. O que
aprendemos desde o nascimento até a idade adulta relaciona-se essencialmente com isto.
Sem dúvida, muito do que aprendemos na vida decorre de processo inconsciente. A
nossa importância para o mundo e as nossas habilidades para enfrentar a caminhada são-nos
transferidas, no início da vida, através de convincentes lições inconscientes captadas dessa
convivência com os pais.
Tenho gravada na memória a cena em que meu pai, agilmente, com apenas os dois
indicadores das mãos, elaborava cuidadosamente o início do álbum de família composto não
de fotos, mas de narrativas preciosas. Cada um de nós era tratado ali como se, todos, fôssemos
criaturas predestinadas.
O verdadeiro "diário" da convivência com os filhos ocupa parte destes documentos,
revelando também os dotes marcantes do escritor RAIMUNDO ROCHA, "doublé" de
empresário, mais pela necessidade de prover o sustento da sua família, do que propriamente
por vocação.
Sua vocação mesmo era, sem dúvida, a de escritor.
É deliciosa a leitura das narrativas das festas e manifestações folclóricas do Piauí e
do Maranhão, sua terra adotiva. Magníficas lições da história e da cultura popular desses dois
Estados, àquela época ainda íntegra e sem influências externas devido ao isolamento
geográfico quase absoluto desse rincão brasileiro nos anos 50.
Esta obra, aqui reunida graças ao espírito pesquisador e detalhista de Mundicarmo,
aqui e ali nos revela o extraordinário naipe de amigos intelectuais que compartilhavam,
animada e produtivamente, de uma amizade e companheirismo notáveis. Lá está
RAIMUNDO ROCHA dentre figuras como Luiz da Câmara Cascudo, o Cascudinho, como a
ele se referia com intimidade; Alceu Maynard Araújo, da Academia Paulista de Letras, autor
da Antologia do Folclore Nacional, concedendo a RAIMUNDO ROCHA, em sua obra, sem
favor e sem bajulação, três importantes citações de trabalhos seus.
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Aqui no Maranhão, nas reuniões freqüentes motivadas pelas questões do intelecto,
das artes, da literatura, da música, ali estava, "achando um tempinho" em meio às canseiras do
dia-a-dia, o agitado RAIMUNDO ROCHA esgueirando-se por entre a platéia que ouvia atenta
o discurso inflamado do Cônego Ribamar Carvalho ou a declamação apaixonada daquele belo
soneto de Augusto dos Anjos, dramaticamente encenada pelo poeta Carlos Cunha.
Certamente, nos intervalos, cochichava ao ouvido atento de Domingos Vieira Filho
talvez, quem sabe, apoiado no cabo do indefectível guarda-chuva do professor Rubem de
Almeida.
A leitura deste documento-coletânea é uma experiência extraordinária. O seu
conteúdo vibrante apela para o meu senso de humor, para a minha percepção das fraquezas
humanas, aprofundando o meu conhecimento de como funciona a mente humana conduzida
pela vontade férrea de vencer. À medida que leio, identifico-me com as pessoas e os fatos que
ele descreve e, por que não dizer, tenho o prazer de rir de mim mesmo constatando o quanto
tenho ainda que aprender.
Lamento haver demorado tanto para escrever estes rabiscos. Por muitos anos privei,
involuntariamente, muitas pessoas de se deliciarem com a qualidade dos pensamentos e o
nível de informações aqui reunidas.
Estavam todos a esperar por mim.
Mas isto não é tanto tempo assim, sobretudo considerando o tão curto lapso de tempo
que foi minha convivência direta com o meu pai. Convivi apenas por quinze anos conscientes
em sua companhia...
E... eu ainda nem havia percebido!
Pedro Dantas da Rocha Neto2
Março/1994
2 Nota da organizadora - Pedro Dantas da Rocha Neto, Bacharel em Direito, é o segundo filho de Ramundo
Rocha e foi quem tomou a frente os negócios da família após o seu falecimento.
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APRESENTAÇÃO
Uma das características da chamada "civilização ocidental" é a rígida separação entre
"atividades materiais" e as "coisas do espírito"- consideradas mais elevadas que aquelas.
Em decorrência dessa visão, era comum, no passado, jovens de origem popular
envedarem pelo caminho das letras, conquistando através da atividade literária uma posição
de prestígio que não lhes fora dada pelo "berço".
Para tal, deveriam, no entanto, dedicar-se a ela inteiramente, mesmo que para isso
tivessem que viver uma vida de miséria e que sacrificar sua família, pois nem sempre o
trabalho intelectual produzia resultados rentáveis.
São muitos os que consideram até inconcebível a congregação de atividades
materiais e espirituais. Mas, graças principalmente à difusão do pensamento do italiano
Antônio Gramsci3, essa idéia hoje tem sido posta em questão. Cresce o número dos que
consideram intelectuais, não apenas os que se dedicam exclusivamente às "coisas do espírito"
e os que são ligados à cultura erudita, já são muitos os que compreendem por intelectuais
todos aqueles que tomam para si a tarefa de sistematizar e de expressar idéias, valores e
sentimentos de uma sociedade ou de uma época.
Entre as camadas populares, um estivador é um intelectual quando, por exemplo,
assumindo o papel de "amo" numa brincadeira de "Bumba-meu-boi", compõe toadas e cria
autos que serão apresentados pelo grupo, sistematizando e expressando o gosto e a visão do
mundo de sua sociedade.
Raimundo Rocha foi um intelectual-comerciante. Sendo de família pobre; perdendo o
pai aos 13 anos; casando-se aos 23; e, morrendo aos 49, deixando 11 filhos, não conheceu o
"ócio"- nem mesmo o "ócio com dignidade" de tantos escritores e artistas. Não seria exagero
dizer que nunca teve férias.
Sua produção literária, iniciada em 1947, acompanhou sua lida de comerciante,
sendo mesmo preterida por esta no período 1955-1965, quando compromissos financeiros o
obrigaram a dedicar-se inteiramente ao trabalho que garantia o sustento de sua família e a
educação de seus filhos.
Apesar de sentir grande atração pelas letras e de se orgulhar de sua produção literária,
queria ser bem sucedido economicamente, sentindo também orgulho ao ser considerado e
prestigiado em 1965 como "próspero" comerciante.
Por volta de 1954 deixou praticamente de escrever, só retornando a essa atividade em
fins de 1966, graças ao estímulo de escritores amigos como Alceu Maynard Araújo, de São
Paulo, e dos conterrâneos: Francisco Rodrigues Alves e, principalmente, Raimundo Nonato,
com quem manteve uma correspondência quase semanal nos últimos anos de sua vida. E, sem
dúvida alguma, graças à boa situação financeira conquistada pela Cerealista Maranhense Ltda,
empresa por ele fundada em São Luís, em 1957.
Raimundo Rocha é um exemplo de não incompatibilidade entre produção "espiritual"
e "material", é um testemunho de que, quando alguém se dedica à segunda, consegue uma
situação financeira que lhe permite "respirar", essa produção pode se tornar abundante e de
boa qualidade.
3 GRAMSCI, Antonio. Literatura e vida nacional. 2.ed., Rio de Janeiro: Ed. Civilizações Brasileiras, 1978.
12
Embora não fosse portador de títulos acadêmicos, escreveu e publicou trabalhos que,
em quantidade e qualidade, superam às vezes os produzidos ainda hoje pela maioria dos
professores universitários.
Sua obra é marcada pelo interesse etnológico ou folclórico e pelo sentimentalismo e
religiosidade de migrante nordestino, nascido no sertão do Rio Grande do Norte, em 1919.
Essa tônica, embora considerada, atualmente, por muitos do meio intelectual urbano, como
"fora de moda"ou "ultrapassada”, tem grande receptividade no gosto popular e tem legado à
ciência muitos dados importantes, possibilitando o resgate da nossa história e das raízes
culturais do nosso povo.
Só uma coisa é, de fato, lamentável na vida e na obra de Raimundo Rocha - o seu
desaparecimento precoce, numa das fases mais promissoras de sua atividade literária e quando
mal começava a ver os frutos do que plantara com tanto sacrifício. Só pôde assistir à
graduação universitária dos seus dois primeiros filhos e só teve tempo de ver 4 dos seus 11
filhos completarem 20 anos - felicidade que seu pai não pôde ter nem mesmo em relação a seu
primogênito.
A coletânea que hoje está sendo apresentada não é completa. Muita coisa trabalhou
contra ela: o desaparecimento repentino do autor; o esforço sobre-humano dos seus filhos
homens para continuar sua empresa; a perda de documentos decorrente de duas mudanças de
sede da Cerealista e três de domicílio da família, aliados ao estrago causado pelas chuvas e
pelos cupins de São Luís; e o próprio tempo, foram obstáculos difíceis de transpor.
O que hoje aparece de público é fruto do esforço conjugado de muitas mãos e de
muitos anos. Foram necessários não só os recursos financeiros gerados pelo trabalho de seus
filhos homens. Foi preciso o trabalho de sua esposa, filhas, noras e genros, aliados à
colaboração de amigos e cunhados que, mesmo de longe, contribuíram fornecendo
informações e documentos.
O título da obra é o mesmo que abre o caderno de pesquisa por ele deixado
incompleto. Foram incluídas aqui todas as obras localizadas, mesmo as que não se tem certeza
se foram publicadas. Deixados de incluir apenas a versão preliminar de “Meu Pai”, em virtude
desse texto ter sido resumido e publicado, em 1967, por Raimundo Rocha.
O livro começou a ser organizado em 1983/1984, quando foi concluída a pesquisa e
foram datilografados, por Maria do Carmo Rocha (viúva de Raimundo Rocha), os trabalhos
localizados. Em 1994, por ocasião dos 70 anos daquela, Pedro Dantas da Rocha Neto escreveu
o Prefácio, mandou digitar e imprimir uma cópia da obra completa, para presenteá-la. Doze
anos depois, participando em Mossoró (RN), como palestrante, de evento promovido pela
Fundação José Augusto, então dirigida por Isaura Rosado, fizemos referencia a trabalhos
produzidos e/ou publicados naquela cidade por meu pai – Raimundo Rocha. O interesse
despertado em representantes daquela Fundação nos animou a retomar a organização da obra e
mais tarde a sua disponibilização na internet, no site do nosso grupo de pesquisa
www.gpmina.ufma.br.
São Luís, abril de 2017.
Mundicarmo Maria Rocha Ferretti4
4 Mundicarmo Maria Rocha Ferretti, Doutora em Antropologia e membro da Comissão Maranhense de Folclore,
é a primeira filha de Raimundo Rocha e quem assumiu a organização de Observando e Anotando.
http://www.gpmina.ufma.br/
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VIDA E OBRA DE RAIMUNDO ROCHA
14
VIDA E OBRA DE RAIMUNDO ROCHA
Nascido no município de Patú, no Rio Grande do Norte, a 21 de novembro de 1919,
Raimundo Rocha faleceu em São Luís do Maranhão, em 22 de setembro de 1969, aos 49 anos
de idade, deixando viúva sua esposa, D. Maria do Carmo Rocha, com onze filhos, sendo cinco
menores. Hoje os seus filhos já estão quase todos formados na Universidade, têm vários filhos
e residem e trabalham no Maranhão.
Como comerciante, Raimundo Rocha trabalhou nos primeiros anos em Patú, em Pau
dos Ferros, onde se casou com D. Maria do Carmo e em Mossoró, no Rio Grande do Norte.
Seguindo o caminho tradicional dos Nordestinos em direção à Amazônia, transferiu-se para
Fortaleza, Teresina e Pedreiras (MA), estabelecendo-se finalmente em São Luís, a partir de
1956, onde se dedicava ao comércio do arroz, açúcar e outros gêneros.
Aos treze anos ficou órfão do pai tendo vivido uma juventude atribulada. Dedicava
grande amor e admiração ao pai, Pedro Dantas da Rocha, que faleceu muito jovem, deixando
vários filhos menores. Aprendeu as primeiras letras com o avô, que era mestre-escola em
Patú. Possuía poucos anos de instrução formal, embora sempre tenha dedicado grande
interesse a atividades culturais. Dispunha em sua residência, ao falecer, de vasta biblioteca
com obras sobre ciências, artes, literatura, folclore e cultura geral, além de excelente discoteca
com obras clássicas e populares de alto nível. Gostava de artes, teatro, cinema e fotografia.
Fotografou e filmou várias cenas da vida familiar e da cidade. Como reflexo de seu interesse
pelos estudos, sempre fez questão de encaminhar os filhos à escola, estando hoje dez dos seus
filhos já formados na Universidade.
Em São Luís, onde se estabeleceu por mais tempo, ao lado de suas intensas
atividades de comércio, dedicava-se a várias atividades culturais. Colaborava sempre com
diversas entidades de cultura como o Instituto Cultural Brasil Estados Unidos, do qual foi
Secretário, a Associação Comercial do Maranhão, órgão de que foi um dos Diretores, a
Associação Comercial de Pedreiras e várias outras. Sempre que podia assistia a palestras,
conferências e exposições de arte, adquirindo obras, apoiando o trabalho de artistas e
intelectuais da terra.
Foi membro igualmente de várias entidades culturais de outros Estados, como da
Comissão Piauiense de Folclore, de que foi sócio fundador, da Casa de Euclides da Cunha, de
Natal, do Grêmio Literário Ferreira Itajubá, em Mossoró, do Centro Norteriograndense do
Estado da Guanabara (hoje Rio de Janeiro), do Clube Folclórico de Piracicaba, do Instituto
Genealógico Brasileiro de São Paulo, da Associação de Profissionais da Imprensa de São
Paulo e outros.
Quando o tempo lhe permitia, participava de Cursos de Extensão Cultural,
promovidos por entidades locais, como o Curso de Jornalismo promovido pela Universidade
Federal do Maranhão em 1966, Curso de Administração de Empresas do SENAC, em São
Luís, Curso de Psicologia Educacional do Movimento Familiar Cristão, etc. Em suas
atividades culturais ganhou várias medalhas como as de Vital Brasil e Nina Rodrigues em
1965, e as de Couto Magalhães, Cândido Rondon e Euclides da Cunha em 1967, recebendo o
título de Personalidade do Ano em Natal, em 1967.
15
Cultivava com dedicação a amizade com grandes folcloristas brasileiros e, quando
possível, promovia sua vinda a São Luís, hospedando-os em sua residência e organizando
conferências, como ocorreu em julho de 1967 com o seu compadre, o folclorista paulista Dr.
Alceu Maynard Araújo. Colaborava com o folclorista Veríssimo de Melo em Natal,
correspondia-se assiduamente com o folclorista norteriograndense Raimundo Nonato da Silva
e vários outros, e nas paredes de sua casa, figurava um retrato seu ao lado de Câmara
Cascudo, do qual muito se orgulhava.
Para cultivar os laços de parentesco e de amizade, gostava de escrever cartas e
constantemente se correspondia com filhos que estudavam em outras capitais e com parentes e
amigos de outras cidades. Sempre que viajava trazia como lembranças e presentes, quadros,
discos, livros e objetos de cultura. Interessado em Genealogia, correspondia-se com o Instituto
Genealógico Brasileiro de São Paulo, tendo mandado confeccionar um Brasão de Armas para
sua família. Tinha grande orgulho por ter trabalhos de sua autoria citados pelo folclorista
Alceu Maynard Araújo, em sua obra O Folclore Nacional, publicado em 3 volumes pela
Edições Melhoramentos, de São Paulo, em 1964, bem como na obra A Província Literária, de
Raimundo Nonato da Silva.
Em 1968, a Câmara Municipal de Patú, sua cidade natal, resolveu dar o seu nome a
um Grupo Escolar da cidade, homenageando igualmente o seu progenitor, dando o nome deste
à Biblioteca de referido Grupo. Raimundo Rocha angariou entre familiares e amigos e
adquiriu pessoalmente, grande número de livros que doou ao Grupo Escolar que lhe prestara
tal homenagem, tendo paraninfado a turma dos alunos formados em 1968. Na época,
aproveitou a viagem a sua terra para fazer uma peregrinação ao Santuário de Nossa Senhora
dos Impossíveis, na Serra do Lima, pois era muito devoto desta santa a quem recorria
constantemente para ajudá-lo em situações difíceis.
Homem simples, dedicado ao trabalho, à família e aos amigos, acompanhava com
vivo interesse as manifestações de cultura popular como o Bumba-meu-boi, o Tambor de
Mina, o Tambor de Crioula em São Luís e manifestações folclóricas do Maranhão e em outros
Estados em que residiu, demonstrando entusiasmo pelas tradições autênticas da cultura
popular. Benquisto por familiares, amigos e subordinados, que sempre tratava com sincera
amizade, gostava de receber os amigos com todas as honras da casa, demonstrando sempre,
afetivamente, a cordial hospitalidade nordestina. Quase todas as noites e nas manhãs de
domingo recebia em casa amigos que vinham bater um papo e beber alguma coisa.
Diariamente ia bem cedo ao mercado fazer compras, conhecia os vendedores dos
melhores produtos e os operários especializados em diversas profissões, estando pronto a
indicar a um amigo o melhor mecânico, carpinteiro, eletricista, encanador ou pedreiro da
cidade, que eram também seus velhos amigos. Geralmente, aos sábados à tarde ia a São José
de Ribamar conversar com algum compadre, comprar peixe e fazer uma visita à igreja,
levando filhos ou amigos num agradável passeio. Às noites, após o jantar, gostava de dar uma
volta de carro pelas ruas do centro da cidade para adormecer os filhos pequenos e visitar
algum amigo.
Nas horas vagas gostava de escrever artigos para jornais e revistas, que eram
publicados em São Luís, Teresina e principalmente no Rio Grande do Norte. Assim,
colaborou no período de 1947 a 1969, escrevendo diversos artigos que foram publicados nos
16
seguintes órgãos: Centelha, revista do Grêmio Literário Itajubá, de Mossoró, Boletim
Bibliográfico da Biblioteca Pública Municipal de Mossoró, Poliantéia, revista comemorativa
do primeiro aniversário de falecimento do jornalista J. Vasconcelos, de Mossoró, Bando,
revista da Casa Euclides da Cunha, de Natal, Legenda, revista de São Luís, Almanaque do
Cariri, revista de Teresina ,Boletim do Centro Norteriograndense, do Rio de Janeiro,
Encontro com o Folclore, revista publicada no Estado do Rio de Janeiro, Revista Genealógica
Latina, de São Paulo, Jornal do Dia, de São Luís, e Jornal do Maranhão, órgão da
Arquidiocese de São Luís.
Para a presente publicação pensou-se inicialmente em reunir apenas 21 artigos de
Raimundo Rocha, escritos e publicados em vida, entre 1947 e 1969. Depois foram sendo
localizados outros trabalhos seus, igualmente interessantes, como o Caderno de Notas sobre
os Irmãos Rocha, o Caderno de Pesquisa, a pasta de Correspondências e outros trabalhos
publicados de que não se tinha notícia. Resolveu-se, então, publicar todos os seus trabalhos
localizados. Podemos subdividir os 36 escritos aqui reunidos nos seguintes temas: etnografia,
folclore e personalidades, 21 artigos; lembranças da terra natal, 8 artigos; pessoas de sua
família e autobiografia, 7 escritos. Os dois temas básicos de todos os seus trabalhos são a vida
familiar e o folclore.
Entre seus temas favoritos destacam-se as lembranças da terra natal, dos tempos de
infância e a grande admiração pela figura paterna. A paisagem física de sua região natal é
descrita no belo artigo "Olho d'água do Pinga", que narra uma excursão à terra do Patú em
1947. No mesmo ano, o artigo "Divagando..." comenta a volta, depois de vários anos de
ausência, à sua cidade natal, revendo lugares onde passou anos felizes na infância, e a visita
ao túmulo paterno no Dia de Finados. No artigo "Figuras Patuenses - João Holanda", relembra
as estórias imaginosas e divertidas que ouvia, quando criança, daquela personalidade
pitoresca, que colecionava caixas de fósforos e contava estórias de assombramento, de
lobisomem, mulas, etc. Um dos temas que lhe é mais grato é a recordação de seus antigos
professores primários. Em "Professor Rocha, meu primeiro mestre", descreve detalhes
curiosos da escola primária rural no sítio do Junco, em que os alunos eram separados em salas
diferentes por sexo e onde era comum o uso de palmatória e de outros castigos. Apesar de
tudo, o professor era querido e estimado e as aulas transcorriam em meio a atividades
domésticas e rurais. No artigo "Sinhá Professora", lembra a rigidez e a eficiência do ensino
particular da velha professora formada nos tempos do Império. No artigo "Bicho do Mato",
recorda sua antiga professora na escola pública, D. Eulália Diniz, e o Professor Raimundo
Soares de Andrade, que também o ensinava a caçar passarinhos, e as brincadeiras dos colegas
de infância. No artigo "Dubas - Um mestre e um amigo", fala com admiração e
reconhecimento do professor e amigo Manoel Jácome de Lima, com quem manteve
correspondência por muito tempo. Relembra no artigo "Populares do Patú", vários loucos que
eram atormentados pelos moleques, e alguns que viviam acorrentados, como era costume
naquela terra que "era boa pra doido", conforme dizia um deles. No artigo "Sobrenomes e
Apelidos", escrito em Teresina em 1950, refere-se a trabalhos dos folcloristas nordestinos
Veríssimo de Melo e Raimundo Nonato, com quem colaborava. Procura enriquecer com suas
observações, as anotações daqueles estudiosos potiguares a respeito do hábito tão brasileiro de
dar alcunhas e apelidos sonoros que se ajustam bem aos tipos. Cita prodigiosa quantidade de
nomes e apelidos curiosos que recolheu em várias cidades nordestinas. Em "Junco - Paraíso
Infantil", publicado em 1966, lembra os anos felizes da infância no sítio do Junco onde
brincava com filhos de vaqueiros e tomava banho no açude, na estação invernosa.
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A estas recordações da infância e da terra natal, acrescenta-se seu grande interesse
por diversos aspectos da vida familiar, como as lembranças de sua velha avó no artigo "Mãe
Velha" e de uma tia em "Mãe Mimosa", com quem conviveu durante os primeiros anos no
sítio do Junco. No artigo "Família Rocha", publicado em 1961 no número 13 da Revista
Genealógica Latina, procura reconstruir elementos da árvore genealógica de sua família entre
1850 e 1960. Em "Irmãos Rocha - Notas" divulga-se aqui uma resenha de seu caderno de
Anotações, redigido entre 1944 e 1965, em que acompanha o desenvolvimento físico e
psicológico dos onze filhos que teve com sua esposa, D. Maria do Carmo Rocha. Recorda
sobretudo os momentos agradáveis passados com os filhos, datas de aniversário, passeios,
presentes, brincadeiras, não lhes poupando elogios. A partir de 1954 estas, anotações vão se
tornando escassas devido a afazeres e viagens, mas o interesse pelos filhos aparece sempre em
sua correspondência. Em vários de seus escritos Raimundo Rocha valoriza e ressalta a figura
de seu pai, de quem guardava as gratas recordações e dedicava grande estima. No artigo 'Meu
Pai", de 1967, descreve com grande orgulho seu pai, Pedro Dantas da Rocha, que foi mestre
escola e ocupou vários cargos na Vila do Patú. Homem esclarecido, comunicativo, gostava de
ler e escrever, tendo falecido muito jovem, com apenas quarenta e um anos, mas que sempre
lhe serviu como modelo de conduta. Em "Advertência para o meu futuro", escrito em Teresina
em 1949, refere-se aos últimos meses de vida de seu pai que então trabalhava fornecendo
gêneros para a construção de um açude. Raimundo Rocha, que trabalhava com o pai, lembra-
se com revolta das injustiças sofridas pelos trabalhadores na construção, com quem convivia,
criticando a corrupção dos administradores públicos. Lá seu pai contraiu o mal que o levou ao
túmulo, lamentando não poder ver o filho aos vinte anos. A lembrança do pai, porém, exerceu
sempre grande influência na formação de seu caráter.
No artigo "Humberto de Campos", publicado em Mossoró em 1947, narra algumas
passagens da vida difícil do grande escritor maranhense, que era um de seus heróis prediletos,
e que ascendeu na vida tendo se originado das camadas populares mais baixas. Assumindo a
profissão de tipógrafo, como Benjamim Franklin, e depois de jornalista, atingiu
posteriormente as mais elevadas posições na literatura nacional. Cita suas principais obras,
que lia com interesse e anotava. Refere-se à influência de Coelho Neto sobre Humberto de
Campos e à sua posse na Academia Brasileira de Letras, lembrando sua liberdade de
consciência em defesa dos mais fracos e oprimidos. Outra figura literária que freqüentemente
cita com admiração e respeito, é Machado de Assis, também humilde, que igualmente
trabalhou como tipógrafo e chegou a fundar e dirigir a Academia Brasileira de Letras, a
principal entidade de cultura do país na época. Cita em vários artigos, escritores eruditos
como Casimiro de Abreu, Graça Aranha, Euclides da Cunha e outros, que admirava e cuja
obra possuía e conhecia. No artigo "Vasconcelos - Operário de Agulha e da Pena", publicado
em 1948 em Mossoró, relembra o escritor , poeta, historiador e folclorista norteriograndense,
Martins de Vasconcelos, também de origem humilde, tipógrafo e jornalista, a quem foi
apresentado por seu saudoso pai Pedro Dantas da Rocha, com quem fora em viagem a
Mossoró, nos primeiros caminhões que entravam pelo sertão.
Em "Um pouco de folclore", transcrito de seu caderno de notas, Raimundo Rocha
demonstra seu interesse pelo folclore, procurando complementar elementos da literatura
popular oral, transcrita por Veríssimo de Melo em "Parlendas", recolhidas em Natal, e
acrescenta variantes conhecidas na Zona Oeste potiguar. Outros aspectos da literatura oral
surgem nos seus escritos: "Parece mentira, Parece”... também transcrito de suas anotações ;
"Pelo Sinal do Sertanejo", recolhido no interior do Rio Grande do Norte e Publicado por seu
amigo Alceu Maynard Araújo, que se refere em versos à fome e à seca do Nordeste. Em
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"Verso do Açude Salôbo" encontrado entre sua correspondência, transcreve poesia popular de
sua terra fazendo referência a seu pai e a seu avô.
Em 1967 e 1968, publicou dois interessantes artigos sobre cangaceiros nordestinos.
Em "Eu conheci Antônio Silvino" lembra Jesuíno Brilhante, Antônio Silvino e Lampião,
verdadeiros flagelos do sertão, sobre os quais pairava "um halo de simpatia e admiração, não
porque o sertanejo admirasse os cangaceiros, mas porque gosta de homens valentes e bem
dispostos". Conta como viu Antônio Silvino, velho e alquebrado, saindo de um bar em
Campina Grande, dando-lhe mais a impressão de um pastor evangélico, do que daquele que
durante vinte anos atacara cidades, vilas, povoados e fazendas, distribuindo aos humildes e
famintos, o dinheiro que subtraía aos ricos e a que passou longos anos na penitenciária de
Recife. Fala do medo e da angústia que sentia na infância ao ouvir, à noite, as estórias do
cangaço e a decepção que sentiu ao conhecer aquele que fora chamado de "Governador do
Sertão”, ou o "maior cangaceiro do século vinte". No interessante artigo "onde morreu Jesuíno
Brilhante" procura complementar pesquisas de Gustavo Barroso e Raimundo Nonato tentando
identificar o local da morte de Jesuíno Brilhante, nascido em Patú, então Município de
Martins, e considerado por Gustavo Barroso como "o maior cangaceiro do século dezenove”.
Relembra fato que lhe foi narrado por seu padrinho, contestando o local em que teria morrido
o famoso cangaceiro. O escritor Raimundo Nonato, com quem manteve longa
correspondência, dedicou à memória de Raimundo Rocha, seu trabalho "Jesuíno Brilhante, o
Cangaceiro Romântico (1844-1879)", publicado no Rio de Janeiro em 1970, onde reproduz
parte deste artigo.
Em 1949, Raimundo Rocha publicou em Natal dois artigos sobre os Índios Gaviões,
de Grajaú no Maranhão, demonstrando sua grande curiosidade em conhecer e documentar
coisas de nossa terra e lamentando a situação de desamparo em que se encontravam os nossos
silvícolas. Descreve o tipo físico dos índios, o modo de trajar, seus interesses, atividades,
recolhe diversas palavras de seu idioma e reclama da falta de assistência dos poderes públicos
para com estes autênticos brasileiros.
Há ainda no material que nos deixou Raimundo Rocha, oito interessantes artigos
sobre o folclore do Piauí e do Maranhão. O folclore foi sempre um dos seus principais temas
de interesse desde os primeiros escritos de 1949, até seus últimos trabalhos em 1968.
Descreve o Bumba-meu-boi do Piauí, transmitindo cantigas de um boi coletadas na cidade de
Campo Maior. Demonstra grande interesse pelas festas populares e em dois artigos descreve
aspectos da festa de São Gonçalo do Amarante, transcrevendo versos coletados em Campo
Maior e vários outros aspectos interessantes da dança. Assinala variantes e divergências de
outras versões do São Gonçalo, recolhidas por vários folcloristas. Transcreve outros versos
que coletou e comenta detalhes constatando não ser festas só de negro e que pertence tanto ao
rico quanto ao pobre. Em "A Festa dos Cachorros", escrita em 1954, documenta esta curiosa e
pouco conhecida festa de devoção a São Lázaro ou a São Roque, realizada na região do Ceará
ao Maranhão. Narra a festa que lhe foi descrita por Albertina Vieira Brito, no Piauí, e amplia
as informações com novas pesquisas, comentando a ingenuidade e a simplicidade da
religiosidade popular. Em "Marcha dos Dez Mandamentos",transcreve os belos versos de um
cantador que encontrou em Campo Maior em 1950, que foram comentados e parcialmente
publicados por Veríssimo de Melo, no Diário de Natal, em 1951, e republicados por
Raimundo Rocha, em 1967.
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Sobre o folclore maranhense, Raimundo Rocha deixou-nos apenas três artigos, sobre
temas até hoje ainda pouco documentados. Certamente seus muitos afazeres e compromissos
não lhe deram tempo de registrar por escrito suas observações, algumas das quais
acompanhamos pessoalmente. No belo artigo "Romaria das Carroças a Ribamar" que inicia
esta coletânea, descreve a pouco conhecida procissão organizada anualmente pelos carroceiros
da Ilha de São Luis à cidade de São José de Ribamar, num domingo de lua cheia, após a festa
de São José, durante toda a noite, por mais de 30 quilômetros. Narra o longo trajeto da
romaria, sua chegada a Ribamar e a festa na cidade no dia seguinte. Este trabalho foi citado
por Alceu Maynard Araújo em Folclore Nacional, de 1964, e publicado em 1967 em jornais
do Maranhão. Os costumes e a linguagem popular são descritos em "Medicina Caseira
Maranhense", que fala da simpática figura do mezinheiro, que ensina e vende remédios nos
mercados de São Luís. O belo artigo "Pregões de São Luís", descreve vendedores ambulantes
típicos da cidade, que oferecem frutas e comidas maranhenses com um linguajar
característico. Se tivesse vivido mais, e em época tranqüila, certamente teria escrito ainda
sobre outros aspectos da vida familiar ou da vida do povo, que tanto o interessava e a que
sempre se referia, analisando com simpatia e simplicidade seus variados aspectos.
Raimundo Rocha, infelizmente para seus amigos e familiares, viveu pouco tempo.
De origem humilde, como nos narra em suas páginas, ascendeu na vida graças à dedicação ao
trabalho. Como comerciante, estabeleceu-se nos últimos anos em São Luís num belo sobrado
da Praia Grande em que, por sugestão de amigo Dr. Alceu Maynard Araújo, colocou uma
placa com o nome de Solar do Barão de Patú, local aonde veio a falecer numa manhã de
trabalho, em 1969. Tivesse vivido mais tempo, certamente nos teria deixado muitas outras
páginas bonitas e poéticas como as que estão aqui reunidas, documentando cenas familiares e
costumes tradicionais das terras nordestinas, que não cansava de admirar e que gostava de
descrever e pesquisar. Estas páginas nos revelam um pouco de sua rica e variada
personalidade de curioso, observador de tudo que o cercava.
São Luís, janeiro de 1984.
Sergio Figueiredo Ferretti5
5 Sergio Figueiredo Ferretti, carioca radicado em São Luís, Doutor em Antropologia e reorganizador da
Comissão Maranhense de Folclore, é genrro de Raimundo Rocha.
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FOLCLORE MARANHENSE
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ROMARIA DAS CARROÇAS A RIBAMAR6
Os carroceiros da Ilha de São Luís do Maranhão festejam o seu dia, todos os anos,
com muito entusiasmo e até mesmo com grande sacrifício. O seu dia é comemorado com a
Romaria das Carroças à cidade de Ribamar. Essa romaria constitui uma das festas tradicionais
mais bonitas do Maranhão, ao lado do Divino e do Bumba-meu-boi. É inteiramente ligada a
quantos trabalham em carroças movidas por animais. Data de tempos imemoráveis, a sua
existência. Desconhece-se por completo, quando ela nasceu e a quem pertence a sua
paternidade.
A Romaria das Carroças à Ribamar, atualmente, é patrocinada pelo órgão da classe,
Sindicato dos Condutores Autônomos de Veículos Rodoviários de São Luís, fundado a 16 de
novembro de 1958 e tem sua sede provisória à rua Cândido Mendes, 471, 1º andar. O
carroceiro Evandro Vieira dos Santos é o seu atual Presidente. Dirige o Sindicato com
inteligência, operosidade, merecendo a confiança e apoio de todos os seus associados.
O Sindicato que congrega os carroceiros de São Luís está sob a proteção de Nossa
Senhora das Vitórias, Padroeira da cidade. A Romaria das Carroças existe apenas na Ilha de
São Luís. Não se registra a sua presença em qualquer outro município do Estado. Participam
dessa Romaria interessante não só os carroceiros de São Luís, como também os de Paço do
Lumiar e de Ribamar, municípios em que se divide a chamada Ilha Rebelde. Poderíamos dizer
até que é a confraternização, porque dela participam todos os carroceiros, quer sejam
sindicalizados ou não, residentes nos três municípios da Ilha.
O dia da Romaria das Carroças é marcado, todos os anos, levando-se em conta o
término da Festa do prestigioso São José, Padroeiro da cidade de Ribamar. Regra geral, é
escolhido o primeiro domingo de lua-cheia, após a festa de São José. Assim permitirá que a
Romaria se realize à luz da lua, no sábado, à noite, verificando-se a chegada a Ribamar, às
seis horas da manhã do domingo.
Para fazer face às despesas com fogos, velas e "bóia", o Sindicato recolhe a quantia
de NCr$ 3,00 de cada associado.
O ponto de concentração dos romeiros é a sede do órgão da classe. Contudo, por
conveniência de cada um, aqueles que residem nas proximidades do caminho por onde
passará a romaria, poderão ficar no local mais próximo, para se reunirem ao cortejo. Em frente
à sede do Sindicato, a imagem de Nossa Senhora das Vitórias, Protetora dos carroceiros, já se
acha sobre a carroça, escolhida com antecedência, para conduzir neste ano o andor. É uma
deferência especial para o carroceiro escolhido conduzir o vulto de sua padroeira. Portanto a
carroça é preparada e embandeirada cuidadosamente e bem iluminada, oferecendo um
espetáculo encantador, dentro da noite, aos romeiros, seus familiares e adesistas.
6 Nota da organizadora - Publicado no Jornal do Maranhão, em 03/12/1967, p. 3; no Jornal de Pinheiro, em
25/12/1967, p.5; na Revista CNR (informativo do Rio Grande do Norte), em 05/1968, p.8; na Revista
Maranhense de Cultura (FUNC), ano II, nº 2, jan-jun 1978; no Boletim da Comissão Maranhense de Folclore,
nº 27, dez. 2003, p. 14. Sobre esse artigo afirmou o folclorista Alceu Maynard Araújo, em dezembro de 1967, em
carta a Raimundo Rocha: A sua Procissão das Carroças marca o seu retorno com as letras. Gostei muito do seu
artigo. Continue e quero vê-lo na Academia Maranhense de Letras. É lá o seu lugar!”
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Há um detalhe importante a assinalar: a carroça que conduz o vulto de N. Senhora
das Vitórias a Ribamar, será a mesma que a trará de regresso. Não é permitida uma
substituição.
A partida de São Luís se verifica às vinte e uma horas, da frente do Sindicato, ao
pipocar de foguetes em grande quantidade, ao som de agradável banda de música, que
acompanha os romeiros cantando a Ave Maria de Lourdes:
Vestida de branco
Ela apareceu...
trazendo no cinto
as cores do céu...
Ave, Ave, Ave, Maria...
Demandando a Praia Grande - rua Portugal, de belas tradições no comércio atacadista
local, a Romaria prossegue rumo ao viaduto, Palácio do Governo, na Pç. Pedro II. Atravessa a
Pç. João Lisboa, entra pela rua Oswaldo Cruz, para alcançar, cortando a cidade de Oeste a
Leste, Monte Castelo, bairro do João Paulo, Filipinho, Anil, onde finalmente pega a estrada
que leva a Ribamar, a Trinta e seis quilômetros da cidade de La Ravardière. Toda essa
distância é devorada a pé, durante a noite de sábado para domingo, por aquele grupo de
romeiros religiosos. Apenas os familiares dos carroceiros têm o privilégio de ocupar as
carroças entre as duas cidades.
A chegada a Ribamar se verifica ao redor de seis horas da manhã do domingo. Todas
as carroças são dispostas em filas, assistem piedosamente à Santa Missa. Daí, temos a segunda
etapa da Romaria, a Festa propriamente dita.
As carroças são recolhidas à casa da Festa. Esta casa foi alugada com antecedência e,
lá, já os espera a comedoria, cerveja, cachaça, orquestra composta de violão, saxofone,
pandeiro, reco-reco, etc. E o forró "vira" o dia todo. Há sempre nessas ocasiões um elemento
errado para atrapalhar os outros. Neste ano houve briga. Um elemento mesmo de Ribamar,
cismou de atrapalhar a folia. Não teve graça. Foi pego a muque e posto para fora, a bem da
moral.
Este ano a Romaria caiu no dia vinte e um de outubro. A missa foi a vinte e dois,
domingo, consagrado a Santa Maria Salomé, no calendário católico.
Não temos conhecimento de que a Romaria das Carroças seja participada noutra
cidade do Maranhão, fora da Ilha de São Luís.
Em São Paulo, o folclorista Alceu Maynard Araújo, no seu monumental FOLCLORE
NACIONAL (1964, Ed. Melhoramentos), registrou na cidade de Tatuí, por ocasião da "Festa
de Santa Cruz" a "procissão das carroças de lenha". É muito curiosa e interessante essa festa
em que toma parte toda a comunidade religiosa local, inclusive o Vigário da Paróquia daquela
cidade do interior bandeirante. Porém é um pouco diferente da nossa Romaria.
Tive a grata satisfação de contemplar e sentir o encanto dessa Romaria, na sua
passagem pelo rio São João, no interior da Ilha, alta madrugada, no sítio SAYONARA, de
propriedade de um amigo. Dormia no alpendre da casa, à margem do caminho. Ao lado havia
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uma frondosa mangueira, que soltava os seus apetitosos frutos, de momento a momento, ao
soprar do vento. Acordei pelo estrondar de foguetões e ao som da orquestra que acompanhava
a Ave Maria, cantada pelos Romeiros que regressavam, cada um empunhando uma lanterna
com luz acesa. O andor também iluminado,conduzindo o vulto de N. Senhora das Vitórias,
sobre a carroça. Muita música, em plena floresta, imponentes palmeiras, compondo a
grandiosidade desse quadro, iluminado pelo disco de ouro da lua-cheia.
Despertei, francamente, naquela madrugada feliz, porém permaneci como que em
sonho ouvindo com emoção aquela sinfonia dentro da mata, no gostoso sítio SAYONARA,
no rio São João. Senti a impressão, meio acordado, de que me encontrava ante aquela
belíssima cena de "Os Pirilampos", descrita pelo escritor Graça Aranha no seu livro CANAÃ.
São Luís, 26/11/1967.
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PREGÕES DE SÃO LUÍS7
Uma legião de vendedores anônimos invade toda São Luís, desde as primeiras horas
da manhã, todos os dias, oferecendo os produtos de sua mercadoria ambulante, dando uma
nota típica à Cidade dos Azulejos.
O carvoeiro passa muito cedo, sob o peso enorme de dois cofos de carvão, presos às
extremidades de uma vara robusta, que carrega sobre o ombro, por certos pontos da cidade
para atender o cliente que o espera. Um grito bem fino, muito característico, se ouve à
proporção que ele passa em frente da cada casa. Este grito denuncia a sua aproximação. A
empregada já sabe e o espera à porta ou à calçada para receber o carvão. Ele não falha. E
quem desconhece o detalhe, o grito fininho, não imagina que ele significa a aproximação
dessa figura humilde e simpática do carvoeiro, a passos firmes, ligeiros e cadenciados, sob o
peso de muitos quilos de carvão que carrega nos cofos sobre os ombros.
O seu freguês é certo, compra o carvão suficiente para o consumo do dia. E ele
percorre diariamente, quase sempre, as mesmas ruas da cidade. O abastecimento cotidiano já
constitui um compromisso tático com a clientela.
Ele grita e prossegue rua acima e rua abaixo, indiferente ao bulício da cidade que
desperta e se agita para o trabalho rotineiro e cotidiano.
É lamentável que esse pregoeiro secular esteja condenado a desaparecer de nossas
ruas, das nossas grandes cidades, em nome do progresso. O carvoeiro é uma tradição. E o
progresso chega e fulmina impiedosamente tudo o que é tradição, antiguidade. Pouco importa
se aquilo nos proporcionou conforto e bem-estar, durante algum tempo, uma vida. O carvão
cedeu já lugar ao gás, subproduto do petróleo, e, aliás, com grandes vantagens inegavelmente.
O gás é, na realidade, um descanso para a empregada, para a dona de casa. É rápido para fazer
a chama, não há tisna para encardir as mãos da cozinheira, não suja as vasilhas, não produz a
fumaça irritante nem tisna o vestido da dona de casa.
Cheiiiiro verde! ... - anuncia o verdureiro mais distante. Alegre, às vezes, canta um
versozinho para fazer graça e merecer a simpatia da freguesia....
Mannnnga foice... - grita o vendedor de frutas.
Mannnnga bacurí..., manguita..., banana comprida...,
Banana couruda...., casca verde..., baé....,
Banana casada..., pitomba...., juuuçara....
A petizada faz uma festa. E temos que comprar todo esse mundo de guloseima para a
gurizada.
Outro pregoeiro alarma:
7 Nota da organizadora - Publicado na revista Legenda, São Luís, Ano I, nº 4, set. 1968, p. 36; e na Revista
Maranhense de Cultura (FUNC), Ano II, nº 2, jan.-jun. 1972; no Boletim da Comissão Maranhense de Folclore,
nº 46, jun. 2010, p. 16.
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Tem laranja..., tem lima..., tem tanja...,
Tem bacuri e tem cupu...
(Frutas regionais, uma delícia, faz correr água na boca).
Na Feira do Matadouro, encontramos um grupo de vendedores anônimos, anunciando
os mais diversificados produtos de sua mercancia. Destacamos o vendedor de cerâmica, entre
os demais, que traz o seu produto pendurado numa vara.
Tem jarrrro e tem pote...
Tem "muringa" e tem bilha...
No Mercado Central, está presente, além do que já nos reportamos, outro tanto de
produtos regionais, e os pregões se multiplicam:
Jaçannnnãããã...
Peixe fresco..., tem pescada e camarão fresquinho...
Tem cumurupim e tem curimatã... do Lago-Açu...
O sol esquenta. A garganta resseca. É a vez do vendedor de picolé. Ele faz um
esforço tremendo, sobre-humano, anunciando a variedade de fruta de seu picolé. O esforço é
maior, quando anuncia as frutas da região. Há até trocadilho, vejamos:
Tem cupu..., bacuri e tem ameixa...
Ameixa..., bacuri e cupu...
Cupu..., ameixa e bacuri...
Tem bacuri..., ameixa e murici...
O Luís Almeida é extraordinário, na exploração de seu comércio. Tem qualidades de
grande vendedor. Criou um fraseado sonoro, pomposo para despertar a atenção da freguesia.
O seu carrinho é bem cuidado, limpo e bem pintado. E abre o par-de-queixo, rua afora:
Tem picolé... seu José...
É de juçara, Da. Januária...
É de murici... Da. Lili...
É de açúcar, seu Manduca...
É de abacaxi, seu Gigi...
É de coco, seu Tinoco...
É de caju, Da. Juju...
É de maracujá, Da. Sinhá...
É uma beleza, Da. Tereza...
É um suplício, seu Simplício...
É um coquinho, seu Agostinho...
E finalmente para os cabeludos:
É um tremendão, seu Brandão...
É interessante. Chama a atenção por onde passa. Seria imperdoável finalizar, sem
fazer uma referência especial ao gostoso "mingau maranhense" que é vendido diariamente no
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Mercado Central de São Luís, como também a juçara com farinha d'água que se encontra à
venda no portão da Feira da Praia Grande, preparada por uma roxinha muito habilidosa.
Quem prova do mingau maranhense de da juçara com farinha d'água, jamais
esquecerá.
São Luís, 11/08/1968.
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A MEDICINA CASEIRA MARANHENSE (Medicina Prodigiosa)8
Também nos mercados e nas feiras de São Luís encontramos a figura simpática do
mezinheiro, o mago da medicina prodigiosa e caseira, a ensinar e vender raízes de pau, para
curar essa e aquela doença. É um comércio interessante e bem movimentado. O cliente não é
apenas gente humilde, há gente bem, que vai sempre ao raizeiro, à procura dos cheiros para os
banhos miraculosos ... na esperança de cura do seu mal.
Ficamos horas a fio observando um deles que nos chamou a atenção, na Feira do
Matadouro, oferecendo as suas raízes, os cheiros, usando uma lábia irresistível.
É um "escurinho" (escurinho no Maranhão é sinônimo de preto, no resto do
Nordeste), sempre a gritar com entusiasmo, convencendo de que está vendendo um produto de
grande e eficiente qualidade.
Tem alfazema ..., tem tempero seco ... e tem corante ...
Tem boldo - remédio para os rins e para o fígado ...
Defronte, outro anuncia com mais ênfase:
Tem jucá ... e tem pau d'arco roxo ... (está na moda).
E surge mais outro ao lado:
Tem defumador de chama! ..., tem Sete flecha ... e tem Flecheiro
Tem alecrim e tem incenso de igreja ...
Que maravilha ... e como o povo gosta. E outro mais:
Tem "Vence Tudo"..., desperta e abre caminho ...
Tem Quebra-Barreira ..., tem Catinga de Mulata ... e tem Diabo Preto.
Concluindo essa coisa fabulosa, da medicina caseira e prodigiosa do Maranhão, o
pregoeiro enfatiza o seu pregão:
Tem contra-erva para constipação
e se faz lambedor com ovos de galinha ...
São Luís, 05/10/1968.
8 Publicado no Jornal do Dia, São Luís, em 24/10/1969; na Revista Maranhense de Cultura (FUNC), Ano II, nº
2, jan.-jun. 1972, p. 22; e na Tribuna de Piracicaba, em 01/08/1974, com o título: Medicina Prodigiosa e
Caseira de São Luí;s no Boletim da Comissão Maranhense de Folclore, nº 48, dez. 2010, p. 04..
28
FOLCLORE DO PIAUÍ
29
ELE NÃO DÁ CRUZEIRO9
João é o mais velho, o chefe. São dez, o número dos que compõem o grupo de índios
"civilizados", que se encontra nesta Cidade-Verde, ou mais propriamente, Chapada-do-
Corisco (Teresina). Pertencem à tribo Gavião, cujo pajé (parré) se chama Boaventura. Sua
maloca se acha situada nas proximidades de Barão-de-Grajaú, no vizinho Estado do
Maranhão.
Todos têm nome português. Teresa e Senhorí (Senhorinha?) chamam-se as mulheres;
Pedro e Fabrício, os do sexo forte. São fisicamente uns super-homens. Não obstante adaptados
ao nosso meio, ainda conservam as principais características da tribo. Os homens têm os
supercílios raspados, cabelos negros e lisos, que se alongam cobrindo as omoplatas. Trazem a
parte inferior da orelha cortada verticalmente, sendo entretanto ligada a extremidade. João,
como pai e chefe, exagera um pouco, elastecendo a parte cortada da orelha e laça, na abertura,
a parte superior da mesma. As mulheres usam as orelhas furadas, como se nelas houvessem
usado brincos. Igualmente, de maneira curiosa, todos, na altura das orelhas, têm uma camada
do cabelo cortado, formando assim como que uma boina. Fabrício traz invariavelmente a
calça arregaçada na altura do joelho e entre este e a "batata da perna" um cordão amarrado.
Num arranco de curiosidade, procurei conversar com esses genuínos brasileiros,
ficando extraordinariamente surpreendido quando verifiquei que não havia nenhuma
dificuldade para isto. Já se comunicam regularmente no mesmo idioma do poeta dos
Timbiras.
João me disse inicialmente que o motivo da sua vinda a esta cidade, foi não só o
desejo de deixar sua vida selvagem, mas também "pedir auxílio ao papai-grande", o governo.
Mas bateram à sua porta, porém foram informados que o "papai-grande" estava viajando...
Para eles não existe o Serviço de Proteção aos Índios e, num franco desafio aos
responsáveis pelos nossos destinos, eles permanecem, o grupo de dez, mais uma vez nesta
terra, aumentando o número dos desocupados, dos que vivem da caridade pública, margeando
"o velho monge". Quase ninguém os reconhece como seres humanos. Não há para eles
qualquer apoio ou controle ao trabalho continuando assim uma vida errante na cidade,
famintos e esfarrapados.
Nesta hora difícil que atravessamos, quando necessitamos de produção e braços para
o desenvolvimento de nossa agricultura, é com tristeza que verificamos que esse elemento,
elemento de casa, é deixado à margem e passamos a receber o elemento dos mais variados
climas e raças, às vezes, indesejáveis aos nossos interesses, oferecendo-lhes casa, conforto,
enfim tudo.
O nosso elemento, os mais lídimos brasileiros, afluem às cidades sem amparo, sem
lar, entregando-se à mendicidade para fugir à morte pela fome. Não desejam mais a vida nas
selvas, a monotonia de suas malocas.
9 Publicado na revista Bando, nº 6, p. 11, Natal, 1949.
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Ao sair, João confessou que sua tribo não prende mais "cristão", são mansos. E como
pedi para dizer algo em sua língua ele, em seu próprio idioma, falou para uma das
companheiras: "ELE NÃO DÁ CRUZEIRO?..."
Teresina, fevereiro de 1949.
31
BENEDITO, MESTRE ESCOLA DA TRIBO GAVIÃO10
Estão em Teresina mais cinco índios da tribo Gavião. Como sempre, movidos pelo
natural interesse de conhecer de perto o que é nosso, de colher detalhes sobre a vida, os
costumes e atividades dessa raça fadada a desaparecer. Entrei em contato com dois deles:
Salomão e Amazonas. E alguns minutos decorridos, conversávamos como se fossemos velhos
conhecidos que de súbito ali se encontravam.
Vieram incumbidos de uma bem delicada missão que lhes fora imposta pelo grande
chefe, e não para pedir inutilmente amparo ao "papai-grande". Verificada que foi a fuga de
MIPLI (Maria), encantadora rapariga da tribo, o pajé Boaventura, expedira incontinenti o
grupo de cinco índios - Salomão, Amazonas, irmão de Milpi, Militão, Frimiano (?) e Belizário
- para sair à procura da fugitiva e fazer que ela reverta, de qualquer maneira, à maloca.
Viajando pela via-férrea que liga o Maranhão ao Piauí os emissários do chefe
indígena, saltaram nesta cidade, onde já se achava Milpi. Esta porém recusara o convite de
regressar à tribo, "tinha pena deixar mulher", mesmo assim temia os rudes castigos a que seria
irremediavelmente submetida, em reparação ao seu erro. Não a comoveram os apelos do
irmão, nem tão pouco os pedidos de sua desolada mãe, que ficara nas matas maranhenses,
banhada em lágrimas frente a tão profundo golpe. Para Milpi, maior que o amor materno já é a
amizade, a gratidão àqueles que, na hora incerta e decisiva da sua vida, lhe deram acolhimento
à margem do Parnaíba. Eles, ante tudo isto, levados talvez por pseudos sentimentos de
humanidade, fracassaram fragorosamente no cumprimento da missão.
"Milpi diz não volta, tem pena deixar mulher” e, continuou Salomão,
"nós quer bem”, "ele não leva à força, ele não quer ir”. E, tomado de grande
tristeza, concluiu: “Boaventura fica zangado, tem raiva, se não levar Milpi e
diz - vocês são moles!”
Quatro desses índios são tipos comuns e aparentemente medíocres. Um deles, no
entanto, o Salomão, merece referência especial pela sua aguda inteligência. Forte, simpático,
usando roupa bem cuidada em relação aos companheiros, de paletó branco e camisa vermelha,
óculos escuros, face à cinta, lanterna e tamanco, é, em suma, desses que á primeira vista
deixam seus companheiros num plano de inferioridade, absorvendo para si toda a nossa
atenção. Conta dezoito anos de idade, “com seus descontos”. Acompanharam-me à minha
residência, onde os apresentei aos irmãos Rocha, que lhes ofereceram, surpreendidos e
alegres, várias guloseimas. Valendo-me dessa oportunidade, colhi um sem número de
informações, detalhes, em torno de suas atividades, seus costumes, enfim, tudo que diz
respeito à sua tribo. Esta conta, aceitando os números fornecidos por Amazonas, cerca de
trezentos índios, "todos comem salgado e andam vestidos”. Entre eles está muito bem
desenvolvida a agricultura. Plantam arroz, milho, feijão, fava, batata e inhame, "modubim",
mandioca e cana; criam bode, porco, galinha e "angulis" (guiné), peru, pato, seis reses e dois
cavalos "de carreira boa, forte".
Ainda em minha casa, após ouvirem gravações de Luiz Gonzaga e Luiz Americano,
pediram que repetíssemos alguns discos que mais agradaram, porque estavam aprendendo
para ensinar aos outros.
10
Publicado na revista Bando, Ano I, nº 10, p. 10, Natal, out. 1949
32
Salomão, fortemente emocionado, nos deus as costas e balbuciou: " Tô com saudade
do pai"... Amazonas, olhando o astro-rei agonizante, disse - "Esta hora mãe está chorando"...
Não foi pequena a luta para fotografá-los. Amazonas, justificando sua recusa, dissera
que "tinha em casa muito retrato, tinha retrato até no Ceará". Salomão só não queria "porque
não prestava". Este, no entanto, a custo, se deixou vencer e decidiu-se: "Vou deixar meu
retrato pru você, mas eu quero um". E alinhando as franjas, os cabelos negros e longos,
preocupado em saber se daquela forma estava bonito, posou para minha objetiva ... Este
selvagem não se cansa de prestar informações e detalhes, tendo também o devido cuidado de
observar se está sendo bem entendido.
"Eu não gosto quando a pessoa não pergunta bem".
Confirmaram serem de sua tribo os índios que aqui estiveram, e pronunciou o nome
de cada um: João, Miguel, Antenor, Fabrício, Floriano, Bento, Mundico, Vicente, Teresinha e
Senhorinha, e não como dissemos em trabalho anterior, Teresa e Senhori.
Seu comércio, permuta de cereais por roupa e outros objetos, é de preferência feito
com o caboclo Pacuá e Nascimento, na cidade de Amarante.
Pondo em suas mãos algumas moedinhas com a efígie de Getúlio, Salomão sorrindo
contou Cr$ 2,00.
Salomão deixou-me boquiaberto ao revelar que nas matas maranhenses existe forte
movimento de alfabetização entre os índios. A tribo Gavião não está indiferente a este
movimento que se processa em todo o território nacional. Ela prepara-se para o futuro, tem
seu mestre-escola, Benedito.
O Benedito é o tal, afirmou o índio. Aprendeu ler junto "cristão" e
saiu na Geraldo (Geral?), não quis mais11
. Ele é nosso, você "cristão". Sou
BRASILEIRO. Ele ensina nós. Tive uma noite e três dias na escola, viajei aqui.
O nosso bate-papo nesse ínterim, se transformara numa proveitosa aula.
"Açúcar, lata, quaje mesma coisa sua língua" e pronunciava....
Passei a dizer-lhe algumas palavras e ele dava a correspondente em sua língua|:
dia - acmocrô, machado - coi, bom-dia - têmo cameá-crem, Urubu - Tzuní,
faca - uacu, Deus - Pat (?), faquinha – uacurê.
E finalizou com o nome de alguns deles:
Cutxi - Boaventura, o pajé; Prôcatê – Salomão; Carô – Amazonas; Mipli -
Maria, a desertora.
Teresina, junho de 1949.
11
Nota do autor - Após a publicação desse artigo, li que a Serra Grande era conhecida também como Geral. Não
tenho dúvidas de que o índio pronunciou Geral e não Geraldo.
33
O BUMBA MEU BOI12
O BOI é a tradição junina que, no Piauí, empolga de modo geral desde a criança até o
velho recurvado no seu bordão. Ninguém aqui estranharia um "São João" sem fogueira, sem
milho verde, sem o clássico baile à matuta. Mas, sem o BOI, seria inadmissível, inacreditável.
É a brincadeira característica da região. Dizem que ela é de origem africana, havendo chegado
ao Maranhão com os escravos. Daí, espalhou-se pelo Pará e Piauí. Aparecem na mesma
época, no Maranhão, também os popularíssimos "pássaros" e "animais" outros, numa perfeita
imitação ao BOI.
Os ensaios iniciam-se um mês antes. Já por esse tempo as crianças começam a
confecção de minúsculos BOIS de talo de burití, revestidos de papel de seda de cores
extravagantes. E são expostos à venda nos mercados ou nas ruas, proporcionando instante de
intensa alegria à petizada.
As "cantigas" se renovam todos os anos. O grupo de "foliões" varia entre dezoito e
vinte e quatro anos. São - 1º Amo, 2º Amo, Chico, "Catirina", o Vaqueiro, o Caboclo Real, o
Caboclo Guerreiro, 1º Rapaz, 2º Rapaz, Doutor Cachaça, Doutor "Pilantra", e outros caboclos.
Tem indumentária própria de cores fortes, espécie de fantasia carnavalesca, inclusive os
caboclos que se trajam com tangas, nas quais empregam penas de pássaros, à semelhança dos
índios.
Porém "o BOI antigo - dizem - era bem diferente". Está se modernizando e, com isto,
perdendo o que tinha de mais original e mais belo. Sua pancadaria constituída por matracas,
cedeu lugar a cuícas, pandeiros, tambor, maracás e apitos, que à distância imprimem um
aspecto macabro à brincadeira.
É costume local contratarem o BOI de sua preferência, o de mais popularidade, para
cantarem nas residências para divertimento da família. É por isso que nos últimos dias de
Maio, os BOIS estão aptos a atenderem a chamados ou fazerem assaltos por toda a cidade. Os
dias máximos são de 23 a 28 de junho, ligando o "São João" ao "São Pedro". A brincadeira
finaliza invariavelmente com a morte e ressurreição do BOI. Cada BOI pode morrer diversas
vezes numa só noite. Morre em cada casa ou local, onde se exiba. Noite de São Pedro, em
suma, fixam a data para a definitiva morte do BOI, no mês de julho.
Cada localidade ou cidade maior tem o seu BOI, qual deles goza de maior fama.
Merece referência especial o BOI de José Alves de Sousa, vulgarmente conhecido por
PASSARINHO, no bairro do Matadouro, em Teresina. No ano passado o seu BOI se chamou
"Jardim do Amor". Este ano foi "Brilho do Amor". Saiu bem modernizado com as "cantigas
novas". Entrou na Política. Pela ZYQ-3, Rádio Difusora de Teresina irradiou, Noite de São
Pedro, um programa em homenagem a Ademar de Barros e Dr. Agenor Almeida.
12
Publicado na revista Bando, nº 17, out. 1950. p. 10-11, Natal, 1949; Palavras de Raimundo Nonato, em carta
sem data, sobre o artigo acima: “Ontem remeti-lhe o Bando, agora saído. Seu artigo vai na mesma. Muito bom e
oportuno, aliás. A propósito, o M. Rodrigues fez-lhe um elogio sem favores, colocando-o entre as colaborações
necessárias”; Citado em 1964 por Alceu Maynard Araújo em Folclore Nacional v. 1, São Paulo, Ed.
Melhoramentos, p. 406; no Boletim da Comissão Maranhense de Folclore, nº 47, ago. 2010, p. 15..
34
As "cantigas" que abaixo transcrevemos são de um BOI da cidade de Campo-Maior,
em cuja ortografia, fizemos ligeira alteração:
Eu tenho, moreninha, mas não dou,
Meu canário cantador.
Eu vou botar meu canário
pra cantar com o beija-flor
Lá vai, lá vai
A estrelinha pelo chão.
Ó borboleta do inverno,
Andorinha do verão ...
Lá vai, lá vai
Jogando água pra o fundo,
Meu boi que vai passando
Eh! Moreninha, avisa a todo mundo!
Eu tenho meu baralho novo,
Que a morena me mandou.
Meu baralho está na mesa,
Está na mão do jogador.
Eu tenho meu baralho novo,
Que comprei, mandei buscar.
Meu baralho novo está na mesa,
Quem quiser pode jogar...
Lá vai, lá vai
O nosso boi guerreiro,
Leva o nosso boi, vaqueiro,
Pra rua da redondeza.
Lá vai, lá vai
O boi de fama, Serrador,
Morena, varre o terreiro,
Te prepara que já vou.
Mas eu vou, eu vou, Seu colega
Se as moças forem, eu vou também
(Bis)
Quero bem a bananeira
da raiz até o meio.
Quero bem estas meninas
do vestido no joelho.
Quero bem a bananeira
da raiz até o cacho.
35
Quero bem estas meninas
de doze anos pra baixo...
O couro do meu boi
No salão alumeia,
Ou no sereno brilha,
Ou no salão balanceia.
Vai, vai, vai, vai reparando
Eh, negro Chico,
os caboclos estão te esperando...
Lá vem a lua saindo
Lá pra banda do nascente.
Quem beija boca de moça,
Não sente mais dor de dente.
Ôôô... vai morrer, ôôô... vai morrer,
Balanciou...
A fama do BOI guerreiro,
Hoje mesmo se acabou...
Nós somos caboclos guerreiros,
Que viemos das aldeias,
Pra prender o pai Francisco,
Pra meter na cadeia...
Xô, xô, xô, Jerumenha (Bis)
Xô, xô, xô, Jerumenha (Bis)
Os caboclos se prenderam,
Foi com muita da razão,
Se não fosse o BOI estrela,
Eu não ia preso, não...
Xô, xô, xô Jerumenha (Bis)
Xô, xô, xô Jerumenha (Bis)
Negro Chico tira a língua,
Nego, se tu queres tirar.
Entrega à dona da casa,
Que meu senhor mandou dar.
Daqui, daqui pra acolá,
É pra você mais Seu José,
Me dê mais um bocadinho,
Para interar o café...
Teresina, 09 de agosto de 1950.
36
SÃO GONÇALO NO PIAUÍ13
São Gonçalo é, incontestavelmente, um dos santos mais festejados e queridos da
família piauiense. O seu prestígio pode ser equiparado ao que desfrutam Santo Antônio, São
João e São Pedro, entre a gente que mora no sertão potiguar.
"São Gonçalo" era o nome da atual cidade de Regeneração. Foi uma "homenagem ao
santo do nome do governador que ali recolheu 434 índios”. Patrono do templo católico de
Amarante desde 1865. Coincidiu assim com o de sua homônima na península ibérica. E não
há dúvidas, trata-se de uma homenagem a Portugal, por influência de seus filhos na fundação
do lugar.
E qual o filho de Amarante ou quem lá decidiu que, pelo menos, não guardam na
memória uma estrofe do bendito que se canta na Matriz, em louvor ao seu querido padroeiro.
Achamos indispensável a transcrição de uma delas que, vezes sem conta nos foi repetida:
Bendito louvado seja
A luz do sol tão brilhante
Na hora em que nasceu
São Gonçalo do Amarante...
Além do culto oficial que lhe presta a Igreja, São Gonçalo é alvo de um culto
esquisito entre a população ingênua e simples que habita o interior do Estado. A igreja
combate e critica a prática desse ritual devocional por ser profano e supersticioso, mas persiste
o costume, embora com as deturpações que lhe têm sido impostas pelo tempo. A opinião de
pessoas amigas por nós ouvidas a respeito do São GONÇALO, é que " essas festas
apareceram, no Piauí, com a chegada de uma família de portugueses que se localizou em
Amarante”. Daí se espalhou por todo o Estado.
O devoto ingênuo faz uma promessa a São Gonçalo. Pede pra ficar bom de um mal,
que, muitas vezes, já não tem mais cura. Implora pela restituição da saúde de um ente querido.
Pede tudo: que lhe volte às mãos o objeto perdido, o animal que desapareceu. A mulher deseja
a volta do esposo, a mocinha pede um noivo. Obtido o milagre, a graça, São Gonçalo recebe a
sua "festa”.
A imagem de São Gonçalo é posta em um andor e levada em acompanhamento a
determinada casa de pessoa amiga. Aí, realiza-se a "festa". E pelo caminho, todos cantam:
São Gonçalo vai saindo,
Saindo de porta a fora,
Parecendo a Estrela Dalva,
Quando vem rompendo a aurora.
13
Publicado no Almanaque Cariri – Edição especial do Centenário de Teresina. 2ª ed. 1952, p.856-861,
coordenado por Francisco de Assis Leite; publicado também em 1954 em Dança de São Gonçalo, plaquete
organizada por Assis Silva e publicado pela Biblioteca Municipal de Mossoró. Esse trabalho, como também
Ainda a dança de São Gonçalí, foram citados por Alceu Maynard Araújo em Folclore Nacional, vol. II, p. 36,
como estudos criteriosos sobre a dança de São Gonçalo no Piauí e no Maranhão, assinalando sua presença nos
dias atuais; no Boletim da Comissão Maranhense de Folclore, nº 47, ago. 2010, p. 15.
37
Ôôô que caminhos tão longe,
Ôôô que areias tão quente,
Os milagres de São Gonçalo
Fez abalar tanta gente...
Minhas alvíssaras, minha gente,
São Gonçalo já chegou,
Foi chegando e foi dizendo:
Minhas alvíssaras, eu aqui estou!
O vulto do santo é colocado num altar sobre a mesa, na sala ou em latada, à frente da
casa para melhor agasalho dos gonçalinos. Rezam-se algumas orações, seguindo-se um
intervalo no qual ingerem algumas "chamadas" de aguardente e outras bebidas para melhor se
expandirem, para ficarem mais desenvolvidos nas danças. Um grupo, quase sempre, de 12
mulheres, que ostentam miçangas no cabelo, no traje vistoso, nos braços, e 4 homens "os
guias" e "contra-guias" - além dos tocadores de viola e de tambor, inicia "as danças". Forma-
se a roda ante a imagem do santo. Começam as cantigas, as danças, ao som da viola e batuque
de tambor. Os versos que transcrevemos, foram recolhidos de uma "festa de São Gonçalo",
realizada no município de Campo-Maior. Foram-nos gentilmente cedidos por pessoa amiga,
os quais não sofreram nenhuma alteração:
Nas horas de Deus amém,
Padre, Filho, Espírito Santo,
É a primeira cantiga
Que eu a São Gonçalo canto
Padre, Filho, Espírito Santo,
Nas horas de Deus amém,
É a primeira cantiga
Que eu a vós canto também.
Eu vou dar uma despedida,
No bico da saracura,
A boca de São Gonçalo
Parece um cravo maduro.
Eu vou dar uma despedida,
Numa caneca de ouro,
Meu senhor São Gonçalo,
Essa é em seu louvor.
Eu vou dar uma despedida,
Numa caneca de ouro,
Meu senhor São Gonçalo
Adeus que eu já vou-me embora.
São Gonçalo disse ontem,
Hoje tornou a dizer
38
Que eu “vinhesse” as vossas danças
Que ele queria me ver.
Eu vou dar uma despedida,
No laço da fita roxa,
Viva, viva São Gonçalo!
Viva, viva o tocador!
Eu vou dar uma despedida,
No bico da siricora,
Vou-me embora com as nuvens
Que é coisa que não demora.
Eu vou dar uma despedida,
No galho do alecrim,
Meu senhor São Gonçalo,
Vossas danças estão no fim.
Eu vou dar uma despedida
Numa caneca de prata,
Meu senhor São Gonçalo,
Vós desculpe algumas falta.
Entre serras e serrotes,
Mora três padres galantes,
São Francisco, Santo Antonio,
São Gonçalo de Amarante.
São Gonçalo diz que é santo,
Mais também tem seus amores...
Todo dia recebendo,
Os seus raminhos de flores.
Santo Antonio e São Gonçalo,
São dois santos enteresseiros,
SãoGonçalo pelas danças,
Santo Antonio pelo dinheiro...
E, aproximando-se dos violeiros, continuam os cantores:
Estes "guias" que aqui estão,
Vinheram do Rio de Janeiro,
Vós levais eles pro céu,
Para os pés de Deus verdadeiro.
Meu senhor São Gonçalo,
Aqui estão os "contra-guias",
Vós levais eles pro céu,
Para os pés da Virgem Maria.
39
Meu senhor São Gonçalo,
Aqui tenho duas amigas,
Vós levais ela para o céu,
Enquanto são bem amigas.
Meu senhor São Gonçalo,
Vou lhe fazer um pedido,:
Fortuna e felicidade,
Gonçalo pra nossa vida.
Meu senhor São Gonçalo,
Aqui tem duas irmãs,
Vós levais elas para os céus,
Uma hoje, outra amanhã.
Meu senhor São Gonçalo,
Aqui tem duas açucenas,
Cravo branco roxeado,
Meninas de cor morena.
Meu senhor São Gonçalo,
Meu Jesus de Nazaré,
Dai-me licença, meu santo,
Eu beijar em vossos pés.
Passemos, gente, passemos,
Passemos com pé ligeiro,
Depois não saiam dizendo
Tem barroca no terreiro.
Passemos, gente, passemos,
Tornemos a repassar,
Dancemos as danças direito,
Pro santo nos ajudar...
Começando à "boca da noite" a dança se prolonga até muito tarde, dependendo,
porém, do número de jornadas a serem realizadas. Estas são em geral, 12. Há uma pessoa
determinada com os caroços de milho à mão, os quais correspondem ao número exato de
jornadas. À proporção que vão terminando uma, essa pessoa joga um caroço de milho fora.
Isto é para evitar engano. A última jornada habitualmente é reservada para o dono da casa ou à
pessoa que organiza a função, a qual, quase sempre, é contemplada com a maior parte dos
gastos.
Não deixa de ser muito interessante o modo por que termina essa "festa”. Consta da
arrematação de um arco, após as danças. O arco foi adredemente preparado, com a devida
antecedência. Muito enfeitado com papel de seda de variadíssimas cores, flores artificiais e
naturais em abundância. Há neles inúmeros cachos de frutas de diversas qualidades, rodas de
bolo, etc. No centro, foi colocado muito de propósito, uma penca de banana ou das melhores
40
frutas. É motivo de gracejos e pilhérias do leiloeiro, visando animar o ambiente. Antes,
porém, de anunciados os objetos, cantam algo interessante e original. Uma desagradável
advertência contra infalíveis caloteiros que esperam a sua grande oportunidade:
Senhores e minhas senhoras
Atenção me queiram prestar.
Vai-se arrematar o arco
De meu senhor São Gonçalo.
Mas vou lhes dizendo logo
Que eu não vendo fiado,
Pois fiado me dão pena
E pena me dão cuidado,
E mesmo assim eu não posso,
Pois o santo fica zangado...
Teresina, 1950.
41
AINDA A DANÇA DE SÃO GONÇALO14
Bendito louvado seja,
A luz do sol tão brilhante,
Na hora em que nasceu
São Gonçalo do Amarante...
É o início do Bendito em louvor ao Patrono da Matriz de Amarante, no Piauí.
Amarante escolheu padroeiro idêntico ao de sua homônima na península ibérica. E, por isto,
achamos possível que, entre os seus fundadores, houvesse a influência do elemento português
para justificar essa dupla homenagem à pátria mãe.
Em nossas constantes pesquisas em torno das festas tradicionais piauienses - o
Tambor, o Reisado, os Caretas, o Divino, São Benedito, os Marujos, etc. - sempre ouvimos
dizer que o São Gonçalo foi uma festa que apareceu no Piauí com a chegada de uma família
portuguesa que foi morar em Amarante. Daí a dualidade de culto ao milagroso santo. Um com
a aprovação da Igreja; outro por ela combatido. Mas, seja como for, dessa época, ou de outra
mais remota, São Gonçalo continua recebendo as costumeiras homenagens do piauiense que
habita o interior, apesar de combatido e criticado pela Igreja, por ser uma festa de cunho
profano e supersticioso. A sua prática mais se acentua nos lugares menos visitados por padres,
onde inegavelmente e instrução religiosa permanece em nível muita a desejar.
Assis Silva, em interessante artigo publicado em BANDO (outubro de 1950), cujo
título é análogo ao destas notas, assinala divergência entre versões recolhidas por folcloristas
do Norte e do Sul do país, referentes à celebração desse culto exótico. Há aqui também
divergências não apenas em versos, porque cada grupo tem os seus, mas no motivo do culto,
cujos "devotos" pertencem tanto ao preto e ao branco, como ao rico e ao pobre. Não é, pois,
uma "festa" só de negros, como encontrou Assis Silva, em Portalegre, no Rio Grande do
Norte. Seu "devoto", como um católico praticante, recorre à intercessão do milagroso santo,
prometendo fazer "um São Gonçalo", se alcançar a graça da concretização do seu desejo, a
solução do seu caso, muitas vezes tão curioso quanto a própria "festa".
Num andor, a imagem de São Gonçalo é levada em acompanhamento a determinada
casa de pessoa amiga, na qual se realizará a "festa”. Colocado o vulto do Glorioso Santo sobre
uma mesa na sala ou no terreiro, rezam-se algumas orações. Seguindo-se, os Gonçalinos em
frente à imagem à roda e começam as danças, de modo mais ou menos idêntico ao descrito
pelo autor do artigo mencionado.
14
Publicado na revista Bando, Ano V, Vol. III, nº 4, Natal, set. 1953, Natal. Apresenta pequena modificação ao
publicado no Almanaque do Cariri (1950-1952) e no plaquete organizado por Assis Silva Sobre a Dança de São
Gonçalo (1954), com o título São Gonçalo no Piauí; no Boletim da Comissão Maranhense de Folclore, nº 37,
jun. 2007, p. 07. Esse trabalho, como também São Gonçalo no Piauí, foram citados por Alceu Maynard Araújo
em Folclore Nacional, vol. II, p. 36, como estudos criteriosos sobre a dança de São Gonçalo no Piauí e no
Maranhão, assinalando sua presença nos dias de hoje.
42
Vítima da sorte nessa estranha "festa", como o "devoto" Assis Silva, uma jovem
campo-maiorense, de uma retentiva privilegiada, nos oferece a