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UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE LETRAS
O papel simbólico da língua na construção das identidades nacionais:
o caráter identitário da discussão sobre o AO90 em Portugal
Silvia Valencich Frota
Orientador: Prof. Doutor Carlos Alberto Marques Gouveia
Tese especialmente elaborada para obtenção do grau de Doutor no ramo de Estudos de Literatura e de Cultura,
especialidade de Cultura e Comunicação
2016
UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE LETRAS
O papel simbólico da língua na construção das identidades nacionais:
o caráter identitário da discussão sobre o AO90 em Portugal
Silvia Valencich Frota
Orientador: Prof. Doutor Carlos Alberto Marques Gouveia
Tese especialmente elaborada para obtenção do grau de Doutor no ramo de Estudos de Literatura e de Cultura,
especialidade de Cultura e Comunicação
Júri:
Presidente: Doutora Maria Cristina de Castro Maia de Sousa Pimentel, Professora Catedrática e
Membro do Conselho Científico, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
Vogais:
- Doutor Fernando Ramallo Fernández, Professor Titular, Facultade de Filoloxia e Tradución da
Universidade de Vigo – Espanha:
- Doutora Marta Susana Filipe Alexandre, Professora Adjunta Convidada, Escola Superior de
Educação e Ciências Sociais do Instituto Politécnico de Leiria;
- Doutor Carlos Alberto Marques Gouveia, Professor Associado com Agregação, Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa.
- Doutora Maria Teresa Barbieri de Ataíde Malafaia, Professora Associada, Faculdade de Letras
da Universidade de Lisboa.
- Doutor Manuel Amador Frias Martins, Professor Auxiliar com Agregação, Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa.
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Indicação de direitos de cópia
A Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e a Universidade de Lisboa têm
licença não exclusiva para arquivar e tornar acessível, nomeadamente através do seu
repositório institucional, esta tese, no todo ou em parte, em suporte digital, para acesso
mundial. A Faculdade de Letras da Universidade Lisboa e a Universidade de Lisboa estão
autorizadas a arquivar e, sem alterar o conteúdo, converter a tese ou dissertação entregue para
qualquer formato de ficheiro, meio ou suporte, nomeadamente através da sua digitalização,
para efeitos de preservação e acesso.
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Aos meus pais
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Resumo
A língua, ainda hoje, figura como um importante e recorrente elemento de
identificação e, em especial, de identificação com uma certa identidade nacional. Neste
estudo, procura-se refletir sobre os diferentes modos como a relação entre língua e identidade
nacional é construída no âmbito do debate sobre a adoção do Acordo Ortográfico de Língua
Portuguesa, de 1990. Tal acordo, assinado por diferentes países, todos membros da CPLP
(Comunidade de Países de Língua Portuguesa), propõe, entre outros objetivos, a promoção da
unificação da grafia do português nos diversos países que o têm como língua oficial. Com
essa preocupação em mente, são analisados artigos de opinião sobre o acordo ortográfico,
publicados pelos jornais portugueses, em 2012.
O enquadramento teórico-metodológico adotado é o da análise do discurso, em sua
vertente crítica, entrelaçado com os princípios da linguística sistêmico-funcional. As
identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas numa perspectiva não essencialista,
que se fundamenta nos diferentes processos de contrução discursiva nos quais a língua
desempenha um papel relevante.
Parte-se de uma breve retrospectiva do desenvolvimento dos nacionalismos na Europa,
centrada no papel da língua, para, a seguir, identificar-se o contexto português, naquilo que
interessa a este estudo. Passando-se à análise propriamente dita, identifica-se e analisa-se um
conjunto de representações associadas à ideia de pátria, nação, soberania, povo, cultura,
identidade e matriz, que são, neste estudo, caracterizados como “marcadores identitários”.
Também as relações estabelecidas entre Portugal e outras entidades nacionais e
supranacionais são levadas em conta, num esforço de identificação de simetrias e assimetrias,
de movimentos de aproximação ou afastamento e de afirmação de força ou fraqueza, que, em
alguma medida, representam tentativas de caracterização de um “eu” e de um “outro”, sempre
marcadas por relações de poder.
Palavras-Chave: identidade nacional, cultura nacional, língua nacional, acordo
ortográfico, análise do discurso.
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Abstract
Language today still figures as an important and recurrent identification element and,
in particular, identification of a certain national identity. In this study, we try to realize the
different ways the relationship between language and national identity is built in the debate on
the adoption of the Portuguese spelling agreement (Acordo Ortográfico de Língua Portuguesa
de 1990). The agreement that is signed by different countries all of them members of the
CPLP (Community of Portuguese speaking countries) aims to promote the unification of
Portuguese spelling among others objectives. Considering this, opinion articles on the spelling
agreement published by the Portuguese newspaper in 2012 are analyzed.
The theoretical and methodological framework adopted is that of discourse analysis, in
its critical perspective, intertwined with the principles of systemic functional linguistics.
National identities, in this context, are understood within a non-essentialist perspective that is
based on different discursive construction processes in which language plays an important
role.
The starting point is a brief review of the development of nationalisms in Europe,
centered on the role of language. Then the Portuguese context is characterized as far as it is
considered relevant to this study. Turning to the analysis itself, a set of representations, which
are characterized as "identity markers" in this study, are identifyied and analyzed. They are
associated with the idea of homeland, nation, sovereignty, people, culture, identity and matrix.
Also the relationship between Portugal and other national and supranational entities are taken
into account in an effort to identify symmetries and asymmetries, approach or distance
movements, strength or weakness positions, which, to some extent, represent attempts to
define an "I" and an "other" and always embody power relations.
Keywords: national identity, national culture, national language, spelling agreement,
discourse analysis.
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Agradecimentos
Agradeço a todos aqueles que, de algum modo, contribuíram para que este projeto
chegasse ao fim: ao Manuel Frias Martins, pela primeira conversa sobre língua e identidade,
ainda antes do meu ingresso na FLUL; à Urbana Pereira, pela calorosa presença e pelos
constantes cuidados ao longo deste percurso; à Maria Krebber, pela amizade e cumplicidade,
que muito amenizaram as inseguranças, a solidão e as angústias que acompanham um projeto
como este. Por fim, e sobretudo, agradeço ao Carlos Gouveia pela orientação, pelo apoio e
pela amizade sempre.
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Índice
Introdução………………………………………………………………………. 3
PARTE I
Capítulo 1 – As identidades nacionais na Europa do século XXI ……………… 17
Capítulo 2 – Língua e identidade nacional……………………………………… 47
Capítulo 3 – A construção discursiva das identidades nacionais……………….. 77
PARTE II
Capítulo 4 – Contextualização e apresentação do corpus……………………….. 105
Capítulo 5 – Análise dos marcadores identitários………………………………. 129
Capítulo 6 – Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal 159
Capítulo 7 – Reflexão final……………………………………………………… 189
Conclusão……………………………………………………………………….. 211
Apêndice A……………………………………………………………………… 219
Apêndice B……………………………………………………………………… 223
Apêndice C……………………………………………………………………… 239
Apêndice D……………………………………………………………………… 249
Referências……………………………………………………………………… 263
Obs.: Anexos disponíveis apenas em suporte digital.
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Índice de Quadros
Quadro 4.1 – Total de artigos por jornal analisado 114
Quadro 4.2 – Total de artigos publicados por autor 115
Quadro 4.3 – Dispersão dos artigos ao longo do ano 116
Quadro 4.4 – Posição assumida face ao AO90 116
Quadro 4.5 – Síntese dos argumentos 124
Quadro 5.1 – Marcadores identitários 131
Quadro 5.2 – Marcadores identitários e contabilização de ocorrências 132
Quadro 5.3 – Pátria 132
Quadro 5.4 – Relação entre pátria e língua 134
Quadro 5.5 – Nação 135
Quadro 5.6 – Acepções de nação 136
Quadro 5.7 – Classificação de nacional/is 138
Quadro 5.8 – Povo 141
Quadro 5.9 – Classificação de povo 142
Quadro 5.10 – Cultura 145
Quadro 5.11 – Classificação dos usos da palavra cultura 145
Quadro 5.12 – Classificação de cultural/is 147
Quadro 5.13 – Identidade 149
Quadro 5.14 – Identidade: língua x ortografia 150
Quadro 5.15 – Relações de identidade 150
Quadro 5.16 – Matriz 152
Quadro 5.17 – Representações de matriz 154
Quadro 5.18 – Marcadores identitários: quadro-resumo 155
Quadro 6.1 – Situações de comparação e relações comparativas simples ou complexas 162
Quadro 6.2 – Relações simétricas ou assimétricas 162
Quadro 6.3 – Brasil como interveniente frequente no total de relações de comparação 163
Quadro 6.4 – Intervenientes que figuram nas relações de simetria 164
Quadro 6.5 – Brasil como interveniente frequente nas relações de simetria 164
Quadro 6.6 – Estratégias de representação do Brasil quando um dos intervenientes, ao
lado de outros países de língua portuguesa: referências explícitas e implícitas 165
Quadro 6.7 – Estratégias de representação do Brasil quando único interveniente:
referências explícitas e implícitas 166
Quadro 6.8 – Classificação das representações implícitas do Brasil quando único
interveniente 167
Quadro 6.9 – Relações simétricas: convergentes e divergentes 169
Quadro 6.10 – Relações simétricas convergentes e divergentes: Brasil e outros
intervenientes 169
Quadro 6.11 – Relações assimétricas: intervenientes 172
Quadro 6.12 – Relações assimétricas: o Brasil como interveniente 173
Quadro 6.13 – Relações assimétricas: outros intervenientes 173
Quadro 6.14 – Relações assimétricas: forças e fraquezas 174
Quadro 6.15 – Portugal no pólo forte: os PALOP como principais intervenientes 174
Quadro 6.16 – Portugal no pólo forte: Timor, Brasil e Espanha intervenientes 175
Quadro 6.17 – Relações assimétricas: quadro geral 175
Quadro 6.18 – Portugal no pólo fraco: principais intervenientes 176
Quadro 6.19 – Relações de simetria e assimetria: quadro-resumo 185
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Introdução
No final do século passado, apregoaram seu fim, mas, nesta segunda década do século
XXI, os Estados-Nação – e os nacionalismos que estão em suas respectivas origens – ainda
figuram como intervenientes relevantes neste jogo de azar que cria, desenvolve e regula
mercados globais de consumo de ideias, valores, produtos, capitais e, também, de pessoas, e
que constitui uma arena internacional de atuação social em sentido amplo.
No contexto europeu, aqui equiparado ao contexto da União Europeia, os
nacionalismos se fazem presentes na manutenção da divisão política dos Estados-membros
em unidades nacionais, nos discursos de afirmação e proteção de uma língua ou de uma
cultura nacional, nas plataformas políticas defendidas principalmente pelos partidos de
extrema-direita, nas campanhas de incentivo ao turismo, nas disputas esportivas
internacionais, nos concursos televisivos como o Eurovisão, entre tantos outros casos e
situações.
Os exemplos acima corroboram, em alguma medida, a tese de que os chamados
Estados-Nação ainda são importantes intervenientes no cenário internacional, mas não
implicam afirmar que os papéis desempenhados por eles não se tenham transformado ao
longo das últimas décadas. Como regra geral, parece haver uma maior concorrência entre as
situações em que o Estado-Nação age sozinho e aquelas em que atua em concerto com outros
Estados-Nação, ou seja, cada vez mais, os Estados são chamados a atuar como membros de
uma instituição ou organização internacional, ou nesse contexto, do que a agir em nome
próprio e individual.
Essas transformações do papel dos Estados-Nação, e dos nacionalismos propriamente
ditos, está diretamente relacionada com os diferentes processos de globalização que marcaram
especialmente o século XX e que seguem se desenvolvendo na atualidade. Tais processos
extrapolam as fronteiras nacionais, mas não necessariamente prescindem da ideia de nação.
Pelo contrário, muitas vezes parecem se valer dela, quando, por exemplo, se organizam em
Introdução
4
torno de acordos comerciais ou tratados internacionais ou, ainda, exploram as especificidades
das diferentes e diversificadas culturas nacionais. Nesses cenários, a unidade de negociação é
a unidade nacional, embora o resultado que se busque alcançar seja, em geral, muito mais
amplo.
Nesse mesmo sentido, mas no âmbito específico das políticas adotadas pela união
europeia, parece haver um esforço recorrente, com vistas a assegurar uma suposta soberania
ou independência nacional – entendidas, neste contexto, como direito à autodeterminação –
que, em geral, surge como um valor a ser protegido e preservado. Com tal afirmação, no
entanto, não se pretende corroborar essa tese nem polemizar em torno dela. Por ora, basta
reconhecer a existência de movimentos em sentidos diversos: os que afirmam que a cautela
adotada na definição das políticas europeias no que diz respeito à proteção das soberanias
nacionais pode ser entendida como desejável e saudável; os que a consideram, não mais
desejável, mas necessária e incontornável; ou, ainda, os que entendem tal cuidado como
excessivo e prejudicial para a construção de uma identidade europeia comum.
Nesse contexto de transformação dos nacionalismos, no entanto, seja essa
transformação conducente ao fim das nações ou não, interessa agora verificar o que acontece
com as chamadas identidades nacionais. Pensando-se especificamente nos critérios
identitários, isto é, nos elementos que, no passado, e em especial, ao longo do século XIX e na
primeira metade do século XX, foram frequentemente associados à construção das
identidades nacionais – como os conceitos de território (e fronteira), soberania, etnia (e raça),
povo, história (e memória) e língua entre outros –, interessa refletir sobre seus respectivos
usos nos dias de hoje.
A noção de território nacional como sendo o espaço físico onde se localiza
espacialmente a nação e que delimita sua área de atuação, associado à ideia de fronteira, ou
seja, de limites físicos e de controlo de acesso ao território nacional, é fortemente impactada
pelo desenvolvimento das novas tecnologias de comunicação que redefinem, de certo modo, a
própria noção de espaço, que agora se amplia para dar conta do mundo digital e do mundo
virtual.
Além disso, sob pressão dos processos de globalização que conduzem ao
estabelecimento de novos mercados e novas solidariedades, os quais, em muitos casos,
concretizam-se na criação de entidades multi, inter ou transnacionais, essas fronteiras se
deslocam para além dos estados nacionais, muitas vezes instaurando uma zona cinzenta, de
indefinição entre o território de um país e o do país vizinho. Exemplo dessa situação é a
União Europeia e o seu esforço de abertura e de livre circulação interna, levado a cabo pela
Introdução
5
atribuição de maior porosidade às fronteiras, ao ponto de, às vezes, estas se tornarem
transparentes ou mesmo invisíveis.
A ideia de soberania da nação, por sua vez, como direito de autodeterminação e de
livre arbítrio, ou seja, como o reconhecimento da sua capacidade de e da sua autoridade para
tomar decisões no âmbito do seu território, sem sofrer ingerências externas, é relativizada pelo
contexto sócio-econômico global, que instaura um novo jogo de forças e interdependências.
Apenas como exemplo dessas transformações, pode-se citar duas situações recorrentes: a
globalização dos mercados financeiros e a globalização dos meios de comunicação de massas.
Com a mobilidade do capital – que se traduz na internacionalização das unidades de
produção, das instituições financeiras, assim como dos mercados de consumo entre outros – e
a consequente criação de novos e ampliados fluxos que transcendem os limites e o controlo
quer das nações de origem, quer das nações de destino, estabelece-se uma forte relação de
interdependência caracterizada por maior instabilidade e riscos de contaminação entre países.
Nessas condições, se é verdade que uma crise econômica pode ser deflagrada pela ação (ou
omissão) de um único país, dificilmente pode ser contornada sem o consórcio de muitos
outros, ameaçados pelos riscos de contágio.
Na perspectiva da internacionalização dos meios de comunicação, que implica, por
exemplo, a circulação de imagens e mensagens em âmbito global – muitas vezes em tempo
real, desafiando o controlo e a censura locais –, estes concorrem para a construção de
reputação e imagem dos diferentes sujeitos nacionais, interferindo nas relações estabelecidas
entre nações, nas negociações internacionais, no desempenho financeiro e influenciando,
inclusive, decisões de natureza política.
Também o conceito de raça sofre um profundo revés, em parte em função da sua
apropriação pelos regimes totalitários da primeira metade do século XX, com destaque para o
nazismo, e das dramáticas consequências que acarretou. Posto de lado o conceito de raça, com
seu sentido pejorativo e sua carga negativa, é preciso encontrar uma maneira de suprir sua
ausência, corrigir seus defeitos. A ideia de etnia, como indicativo de uma origem comum, é a
que melhor parece corresponder a tais necessidades.
Mas também o conceito de etnia é transformado, como bem ilustra a reflexão de
Fredrik Barth (1998) sobre o tema. O autor apresenta o conceito de etnia, não mais como um
fato consumado, isto é, como uma caraterística inata e irrevogável de um indivíduo ou de um
grupo, mas sim como o resultado de um processo de seleção e descarte de traços avaliados
positiva ou negativamente, ou seja, também como resultado de um processo de construção. O
Introdução
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recurso à etnia, portanto, deixa de ser uma referência estática e eterna e torna-se em algo, em
alguma medida, volátil e passível de transformação ao longo do espaço-tempo.
Nesse mesmo sentido, a noção de povo como os autores, isto é, os criadores originais
de uma nação e, ao mesmo tempo, como os seus legítimos e autênticos herdeiros, também é
reconfigurada à luz dos processos de globalização e da intensificação dos movimentos
migratórios. Multiplicam-se, assim, os deslocamentos, modificando-se os desenhos das
cidades, que, aos poucos, transformam-se em espaços multiculturais.
Pessoas de diferentes nacionalidades convivem num mesmo espaço, interagem,
estranham-se, identificam-se, num constante movimento de atração e repulsa. Os direitos de
cidadania – conquistados pelos antes estrangeiros e agora cidadãos – ampliam a capacidade
de ação do indivíduo, equiparam o que antes era desigual, atenuam ou mesmo apagam as
diferenças. Em muitos países, partidários do jus solis, filhos de pais estrangeiros, nascidos no
país são considerados nacionais ou, ao menos, têm essa possibilidade ao seu dispor,
alimentando em alguma medida o cenário de concorrência entre os conceitos de povo (no viés
de uma partilha étnica) e cidadão (no viés de uma partilha de direitos), que se confundem em
certas situações e constrastam em outras.
A história, com sua forte carga temporal e de continuidade, também é reinventada, ao
lado da ideia de memória. A história deixa de ser o resgate ou o registro de fatos e
acontecimentos do passado e tranforma-se numa narrativa, isto é, numa versão motivada,
parcial e sempre inacabada desse passado. Torna-se, desse modo, objeto de disputa entre
indivíduos, instituições, ideologias, governos – e o mesmo pode-se afirmar da memória, seja
individual, seja coletiva.
As relações de poder entretecidas nessas narrativas de história-memória têm, afinal,
sua existência reconhecida, mesmo que nem sempre seus conteúdos sejam facilmente
identificáveis. Essa história-memória perde seus contornos essencialistas e afirma-se como
invenção. Agora, portanto, não mais se presta com tanta facilidade à comprovação
incontestável da existência secular de uma nação, recurso muito frequente no passado dos
nacionalismos.
Finalmente, resta referir o papel da língua como elemento de identificação, isto é, o
recurso à língua como critério de nacionalidade, que ainda parece estar em vigor. A
associação entre uma língua e uma nação está muitas vezes presente, por exemplo, nos
discursos de proteção à língua, seja ela minoritária ou não, contra o risco de extinção –
ameaçada por línguas mais fortes, como o inglês – ou de ser maculada ou contaminada por
expressões e palavras estrangeiras. Nesse sentido, não são incomuns iniciativas, às vezes no
Introdução
7
campo jurídico, que visam proibir o uso dos chamados estrangeirismos ou mesmo de instituir
multas pecuniárias por erros gramaticais – caracterizados como atentados contra a língua –
em contexto de publicidade ou de circulação pública de informação.
Também reforçam essa relação entre língua e identidade os discursos que atribuem
valor cultural e econômico às línguas, como, por exemplo, as iniciativas que procuram reunir
países que partilham uma mesma língua em busca, entre outras, de vantagens comerciais e
políticas, como a lusofonia ou a francofonia. Nesse contexto, a língua é entendida como
patrimônio ou bem passível de ser possuído e rentabilizado.
A associação entre língua e cultura também contribui para a valorização do papel das
chamadas línguas nacionais como força que une os indivíduos nacionais e os diferencia dos
estrangeiros ao estabelecer uma relação entre a língua e um certo caráter nacional, isto é, um
suposto padrão de comportamento cristalizado em representações, em geral idealizadas e
arquetípicas, que muitas vezes exercem grande influência nos processos de autoidentificação
e também no modo como a nação é percebida pelos outros.
Mas, se o caráter identitário da língua parece persistir na Europa atual, não se pode
negar que o contexto de uso das línguas se tenha transformado, até porque todos os critérios
acima indicados estão ligados e são interdependentes, fazendo com que a transformação de
um afete de algum modo os demais. Com os processos de globalização, o desenvolvimento
das tecnologias de comunicação, o aumento da mobilidade de dados, bens e pessoas e a
multiplicação das migrações, o contato entre línguas também se intensifica. A língua única,
como valor, perde espaço para a diversidade linguística – agora, é esta última que é
valorizada. O indivíduo monolíngue perde potencial competitivo face ao indivíduo plurilingue
tanto nos mercados de trabalho como na sociedade em geral.
No contexto europeu, o multilinguismo é a ideologia linguística adotada, embora não
isenta de contestação, o que significa dizer que a identidade europeia se constrói em torno da
diversidade linguística e não em torno da construção de uma só língua para a Europa (cf. a
Resolução do Conselho da União Europeia de 21 de novembro de 2008, sobre uma estratégia
europeia a favor do multilinguismo). Mas, nesse cenário, as línguas também podem assumir
diferentes papéis. Com o esbatimento das fronteiras físicas e a virtualização e fragmentação
do espaço no interior do continente, as línguas parecem se sobressair como uma espécie de
barreira natural, a separar ingleses, franceses, portugueses ou alemães. Em reforço a tais
discursos, a língua ainda figura como um importante canal de acesso ao exercício pleno da
cidadania, quando não à aquisição primeira dessa cidadania em muitos casos.
Introdução
8
Resta saber qual é o impacto dessas mudanças e transformações na relação entre
língua e nação, ou melhor, no modo como o indivíduo se vale da língua para construir sua
identidade nacional ou a de outrem. O objetivo desta pesquisa é refletir sobre esse tema no
contexto da União Europeia de hoje. Será que o potencial da língua como elemento de
identificação nacional realmente permanece? E, se permanece, mantém-se inalterado ou se
transforma? Nesse contexto, o que se pode dizer sobre a relação entre língua e identidade
nacional no âmbito do projeto europeu: ela surge como um empecilho para a construção de
uma identidade europeia ou consiste numa estratégia relevante para a sua construção?
Com tal objetivo em mente, analisa-se o caso de Portugal, às voltas com um acordo
ortográfico (AO) que visa uniformizar a grafia da língua entre os países lusófonos e que tem
suscitado polêmica no país, parte dela em torno de questões de identidade. Para desenvolver
essa reflexão, estuda-se o caráter identitário das discussões sobre o AO, a partir da análise de
artigos de opinião publicados na mídia impressa em Portugal.
A presente pesquisa está dividida em duas partes. Na primeira, que reúne os capítulos
de 1 a 3, constrói-se o enquadramento teórico e metodológico que servirá de norte para o
desenvolvimento do estudo do caso português e, ao mesmo tempo, de contraponto para a
análise dos dados obtidos. Na segunda parte, que reúne os capítulos de 4 a 7, desenvolve-se a
análise de caso propriamente dita.
No primeiro capítulo, faz-se um recorte das teorias sobre as identidades a fim de se
delinear aquelas que são objeto deste estudo: as identidades nacionais. Parte-se da perspectiva
dos estudos culturais sobre o tema, explorando-se seu caráter transdisciplinar e,
especialmente, as relações entre identidade e modernidade, marcadas nos tempos atuais pela
ideia de crise, fragmentação e multiplicação, ou seja, discute-se o fim da identidade singular e
inteira, por um lado, e a configuração de um cenário de concorrência entre identidades
diversas, que ora se completam, ora se contradizem ou se anulam.
Dentre as identidades, desenvolve-se o conceito de identidade nacional, traçando-se
uma breve retrospectiva da história dos nacionalismos na Europa especialmente a partir do
século XIX. A ideia de nação como comunidade imaginada, proposta por Anderson (2006), é
o pano de fundo contra o qual se desenha essa identidade, num processo que mobiliza
diferentes critérios como os conceitos de raça, etnia, língua, território, povo, soberania,
cultura, história, memória entre outros.
A seguir, explora-se a relação entre identidade nacional e cultura – conceitos que, em
certos momentos, parecem se sobrepor. A própria definição de Anderson (2006: 4) de
nacionalismo como sendo um tipo especial de artefato cultural já aponta para essa
Introdução
9
interconexão. O recurso a um conjunto de valores, comportamentos, tradições, memórias,
visões de mundo e tantos outros elementos que podem ou não fazer parte dessa ideia de
cultura nacional serve também aos processos de identificação individual e coletiva, de
classificação de si mesmo e de outrem, de reconhecimento da igualdade e da diferença.
Por fim, essa reflexão sobre as identidades em geral e as identidades nacionais
especificamente debruça-se sobre a atualidade dos processos de globalização e seus impactos
sobre o conceito de nação e de identidade nacional. Tal contexto é em muito devedor da ideia
de que os nacionalismos estariam perto do seu fim, isto é, de que já não seriam a grande força
de transformação social que foram ao longo do século XIX e da primeira metade do século
XX, como destaca Hobsbawm (2012).
As identidades nacionais são ainda o foco do segundo capítulo, mas, desta vez, a
ênfase da análise recai especificamente sobre o papel da língua em sua construção. Segundo
Hobsbawm (2012), é nas décadas finais do século XIX que a língua adquire papel de destaque
na construção dos nacionalismos, configurando, assim, uma espécie de nacionalismo
linguístico. A máxima uma língua, uma nação conquista terreno e impulsiona a construção
das chamadas línguas nacionais, às quais é associado um ideário de pureza e superioridade em
relação às demais línguas, ou versões dela, faladas num dado território.
Mas, se a princípio parece ser a qualidade da língua como meio de comunicação e
expressão que se destaca, numa reflexão mais aprofundada sobre as identidades nacionais o
que chama a atenção é a forte carga simbólica que as línguas adquirem. Nesse sentido,
interessa analisar a ideia de língua como símbolo da nação e dos nacionalismos; de língua
como matéria-prima do indivíduo nacional, como edificadora de mundos, ou melhor, de
representações dele, conformando o espaço de ação da nação e do seu povo.
No espaço de interação entre língua e identidade nacional acima delineado, o conceito
de cultura também se faz presente. Aliás, muitas vezes parece difícil delimitar os campos de
ação de cada um desses conceitos – língua, identidade nacional e cultura – dada a forte
correlação estabelecida entre eles. A língua é identificada como elemente essencial da cultura
nacional, contribuindo para sua formação e constituindo-se no interior dessa cultura
simultaneamente. Cabe também à língua a importante função de transmissão dessa cultura
nacional – no bojo da qual se engendram e manifestam as identidades nacionais –, como se a
língua carregasse, isto é, transportasse cultura.
Nesse contexto, e levando-se em conta o projeto europeu, interessa refletir sobre essa
relação entre língua, identidade e cultura no âmbito da diversidade linguística, ou melhor, no
âmbito da ideologia ou política linguística adotada pela Europa: o multilinguismo. Na
Introdução
10
construção de uma identidade europeia, que papel a língua desempenha? Se as línguas
carregam cultura e se as identidades são dependentes desse contexto cultural, é possível
construir uma identidade singular para a Europa? É com essa discussão que se encerra o
segundo capítulo.
O terceiro capítulo é dedicado ao enquadramento teórico-metodológico propriamente
dito, que tem como ponto de partida a noção de discurso. Parte-se da proposta de Foucault
(1997), isto é, da ideia de discurso como modo de organização de significados, para explorar
o seu papel como elemento estruturante de e estruturado por relações sociais, transpassado por
relações de poder e disputas ideológicas.
De entre a amplitude de discursos possíveis, destacam-se aqueles produzidos e
veiculados pela mídia, isto é, os discursos midiáticos, uma vez que são estes os que
constituem o corpus desta pesquisa. Considerando-se as funções desempenhadas pela mídia
nas sociedades modernas e as relações sociais que ela estabelece e inspira, o discurso
midiático parece sobressair como elemento formador de opinião pública, conquistando, assim,
uma certa relevância.
Nesse contexto, as propostas de investigação apresentadas pela análise do discurso
ganham destaque e são elas que orientam esta investigação. A vertente da linguística
sistêmico-funcional é central nesta abordagem e serve como diretriz para o levantamento e
análise dos dados obtidos a partir de uma seleção de artigos de opinião publicados sobre o
acordo ortográfico nos jornais portugueses ao longo de 2012.
Por fim, explicita-se a posição assumida no estudo das identidades nacionais como
sendo a da construção discursiva. Afasta-se, assim, as visões essencialistas das identidades,
em geral produzidas em torno de certas representações recorrentes e resistentes à mudança, e
afirma-se o seu caráter de processo e construção, sempre dinâmico e em constante
transformação. Nesse contexto, as identidades são entendidas como tomadas de posição no
âmbito do discurso, em consonância com Tann (2010).
Com o quarto capítulo, tem início a segunda parte desta pesquisa, voltada
especificamente para a contextualização, a identificação, o tratamento e a análise de dados.
Parte-se da elaboração de uma breve retrospectiva histórica de Portugal, onde são
identificados alguns episódios potencialmente relevantes para a análise do papel da língua na
construção das identidades nacionais portuguesas, como a fixação das fronteiras do país e a
participação de Portugal na chamada era dos descobrimentos.
A seguir, é o contexto da língua que ganha relevância, mas, desta vez, a ênfase recai
sobre a atualidade. Neste século XXI, interessa observar que discursos se digladiam no debate
Introdução
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sobre a língua portuguesa e sobre as suas perspectivas – ou não – de desenvolvimento,
valorização econômica, afirmação cultural entre tantas outras. Com essa análise, busca-se
refletir sobre o futuro da língua portuguesa como elemento de construção identitária das
diferentes nações que a adotam.
Em continuidade a essa reflexão, passa-se à apresentação, justificativa e descrição do
conjunto de dados que será analisado, isto é do corpus, que consiste em matérias de opinião
publicadas nos jornais portugueses, ao longo de 2012, sobre o acordo ortográfico, como já
referido anteriormente. Na análise desses textos, são considerados exclusivamente os
discursos de caráter identitário, alguns explícitos, outros não. Com essa afirmação, ficam
excluídos da análise muitos outros discursos sobre o acordo ortográfico, cuja natureza técnica,
jurídica ou política não apresentam, a priori, conotação identitária.
Por fim, encerra-se este capítulo com o delineamento das estratégias de análise, que
serão apresentadas de forma pormenorizada nos capítulos cinco e seis. Tais estratégias estão
divididas em duas partes principais. Na primeira delas, procura-se analisar certos elementos
que, com alguma frequência, surgem nos discursos dos nacionalismos. Na segunda, reflete-se
sobre as diferentes posições contruídas por e para Portugal na relação com outros países
citados nos textos.
No quinto capítulo, parte-se para a análise propriamente dita do corpus, que será
desenvolvida também no capítulo seguinte. Nesta primeira parte da análise, a perspectiva
adotada é a da identificação dos principais elementos – designados como marcadores
identitários – a serem mobilizados na construção de discursos em torno da ideia de identidade
nacional, em geral, e identidade nacional portuguesa em particular.
Pátria, nação, soberania, povo, cultura, identidade e matriz são os temas mobilizados
via tais marcadores, definidos em função de suas respectivas frequências ao longo do corpus
– verificada pela contagem de palavras do texto – e da sua relevância para os discursos e
teorias sobre os nacionalismos, elaboradas e desenvolvidas especialmente a partir do século
XIX, na Europa.
Por fim, analisa-se o modo como tais marcadores são utilizados, assim como os
discursos e representações de identidade nacional sinalizados por eles. Nesse processo,
procura-se realçar as relações estabelecidas entre os mesmos e o conceito de língua – aqui
entendido de forma abrangente para incluir a ideia de ortografia. O papel simbólico
desempenhado pela língua na construção das identidades nacionais é, assim, posto em
destaque.
Introdução
12
No sexto capítulo, a estratégia de análise desloca-se dos marcadores identitários para
se concentrar nas relações estabelecidas entre Portugal e outras entidades nacionais ou
supracionais, com o intuito de se compreender melhor de que forma as identidades são
estabelecidas por via da construção da ideia de um ou vários outros. É dessa tensão entre um
eu e um outro que se pretende inferir o papel da língua como símbolo de uma certa identidade
nacional.
Com tal objetivo, primeiro busca-se identificar os discursos que relacionam Portugal a
outras entidades nacionais e supranacionais, para, a seguir, analisar tais relações em função
das simetrias e assimetrias que são estabelecidas. Nos casos das relações de simetria, isto é, de
equivalência de forças ou posições, estas são classificadas como positivas ou negativas,
dependendo do modo como são valoradas em seus respectivos contextos. Nos casos das
relações de assimetria, busca-se identificar que posição Portugal ocupa: se o pólo forte –
relação assimétrica em que Portugal assume posição de vantagem – ou o pólo fraco – relação
assimétrica em que Portugal ocupa posição de desvantagem.
Por fim, tais relações – simétricas e assimétricas – são analisadas em conjunto, de
forma constrastada, de modo a se construir um panorama alargado das diversas relações
estabelecidas entre Portugal – na perspectiva do eu – e diferentes entidades nacionais ou
supranacionais – na perspectiva do outro. Os principais resultados identificados a partir dessa
ação são reunidos num quadro-resumo.
No sétimo e último capítulo, busca-se relacionar os discursos teóricos desenvolvidos
nos capítulos 1 a 3 às análises de dados desenvolvidas nos capítulos 4 a 6, numa perspectiva
comparada. Considerando-se, portanto, a evolução dos conceitos de identidade e de
identidade nacional, pretende-se compreender melhor que papel a língua, como símbolo,
desempenha hoje na construção dessas identidades no contexto europeu.
Com essa finalidade, retomam-se os conceitos estudados no âmbito dos marcadores
identitários, que são agora novamente analisados à luz do conjunto de resultados obtidos e
dentro do enquadramento teórico-metodológico definido para esta pesquisa. Do mesmo modo,
os diferentes discursos de representação de Portugal, que afloram na perspectiva da
comparação entre o país e outras entidades nacionais e supranacionais, são mais uma vez
avaliados.
Por fim, a partir do conjunto de dados, conceitos, discursos e representações reunidos
e construídos ao longo desta pesquisa, busca-se refletir sobre o conceito de identidade
nacional hoje e o espaço ocupado pelas línguas, numa perspectiva simbólica, em sua
construção. No presente cenário, propõe-se o exercício do questionamento das forças e
Introdução
13
fraquezas que são atribuídas às identidades nacionais, assim como das oportunidades e
ameaças que se lhe apresentam.
PARTE I
Capítulo 1
As identidades nacionais na Europa do século XXI
Identidade e modernidade
Identidade nacional
Identidade nacional e cultura
Identidade nacional e globalização
Identidade é uma palavra recorrente nos discursos atuais, tanto na academia, como nos
jornais, na televisão, no cinema, nos videojogos, na internet, nas conversas do dia-a-dia, nos
consultórios médicos. No entanto, tanta insistência em torno do seu uso – às vezes abusivo –
não torna mais fácil a sua definição; pelo contrário. Identidade parece ser mais uma noção do
que um conceito propriamente dito, muitas vezes confundindo-se com subjetividade,
personalidade, imagem, cultura, comunidade entre tantos outros termos. Ainda assim, apesar
desses contornos fluidos e difusos, surge como tema central nas discussões sobre a
modernidade – aqui entendida como os tempos atuais (ou, mais precisamente, como
modernidade tardia ou pós-modernidade).
Este capítulo se inicia precisamente com uma reflexão sobre a ideia de identidade na
modernidade. A partir dos estudos de Hall (2014), entre outros, procura-se explorar os papéis
desempenhados pelas identidades na caracterização da atualidade. Identidades múltiplas ou
identidades fragmentadas? Identidades em crise ou a era das identidades? Identidades
líquidas? Esses são alguns dos temas que orientam a discussão.
Parte-se do princípio de que o debate sobre as identidades é prolífico e pode assumir
contornos distintos a partir das perspectivas que sejam adotadas. Identidades de gênero, etária,
religiosa, étnica, profissional são apenas algumas delas, entre as quais destaca-se as
identidades nacionais, que serão aqui analisadas. Com essa finalidade, parte-se da elaboração
de uma breve retrospectiva histórica dos nacionalismos na Europa, explora-se o tema das
identidades nacionais e alguns dos seus possíveis significados.
Nesse contexto, importa ressaltar que, não raras vezes, as identidades nacionais se
confundem com o conceito de cultura ou identidade cultural. Nesses casos, identidade
nacional e identidade cultural passam a indicar uma mesma coisa, girando em torno da
construção de uma suposta cultura nacional como recurso de identificação individual e
coletiva. Essas relações entre cultura e identidade são analisadas na tentativa de se melhor
compreender os significados possíves das identidades nacionais hoje.
As identidades nacionais na Europa do século XXI
20
Por fim, na “Europa da Nações”, engajada num processo de integração, em diferentes
níveis, entre nações soberanas e na construção de uma entidade supranacional, interessa
refletir sobre o que acontece com as identidades nacionais. Mais do que isso, na era da
globalização, pode-se ainda falar em identidades nacionais? Essas são algumas das questões
que se pretende discutir ao final deste capítulo.
O objetivo deste capítulo é, portanto, introduzir o tema das identidades e, mais
especificamente, das identidades nacionais, a partir de uma reflexão teórica e de uma breve
retrospectiva do desenvolvimento e transformação da ideia de identidade. Entre tantos
caminhos possíveis, procura-se, aqui, traçar um pequeno recorte que servirá como ponto de
partida para este estudo.
Identidade e Modernidade
O conceito de identidade é historicamente situado. Essa afirmação, que, a princípio,
pode parecer banal e desnecessária, marca uma posição que deve ser explicitada desde já: as
identidades não são inatas nem eternas; não são uma força da natureza ou um fato à espera de
constatação. Na maioria das vezes, quando se fala em identidade, seja na esfera pública, seja
na privada, em geral dá-se como certo o mútuo entendimento; mas convém frisar que tal se dá
menos em função de um conhecimento partilhado e indisputado do seu significado do que
pela operação de um mecanismo de naturalização e essencialização que incorpora as
identidades aos discursos da atualidade.
Para refletir sobre o tema, pode-se partir, por exemplo, acompanhando Hall (2014), da
Europa do iluminismo. O paradigma da racionalidade, que aflora no século das luzes, traz à
tona o sujeito racional, movimento este bem representado pela máxima de Descartes: “Penso,
logo existo”. Uma certa noção de individualidade ganha corpo e se propaga no espaço – em
especial, no espaço urbano, com o desenvolvimento das cidades. É nas cidades que o sujeito
se depara com uma infinidade de outros: rostos, vozes e movimentos que passam, muitas
vezes, sem retorno.
Se, no espaço rural, isto é, no campo, a vida avança entre cores, odores e vozes
conhecidas, o mesmo não acontece nas cidades. A consciência de si e da diferença, no
reconhecimento de um ou muitos outros, está no cerne dessa primeira noção de identidade,
tendo a razão ou a racionalidade como motor e justificativa. Como bem destaca Benjamim
As identidades nacionais na Europa do século XXI
21
(2006: 40), citando Georg Simmel, o desenvolvimento dos meios de transporte coletivo
constitui um bom exemplo desse estranhamento no contato com o outro e do incômodo que
provoca:
“As relações recíprocas dos seres humanos nas grandes cidades… caracterizam-se por um
evidente predomínio da actividade do olhar sobre a do ouvido. As causas principais deste
estado de coisas são os meios de transporte colectivos. Antes do aparecimento dos autocarros,
dos comboios dos eléctricos no século XIX, as pessoas não conheciam a situação de se
encontrarem durante muitos minutos, ou mesmo horas, a olhar umas para as outras sem
dizerem uma palavra.” A nova situação não era, como reconhece Simmel, nada
tranquilizadora.
Como descreve Hall (2014: 17-22), o crescimento e a multiplicação das cidades,
associados à crescente complexidade da vida social e do nível de organização necessário para
mantê-la em funcionamento e sustentá-la, implicam o estabelecimento de novas fidelidades.
O indivíduo racional, pouco a pouco, cede seu lugar ao sujeito social, num deslocamento que
parece refletir as novas exigências e capacidades inerentes e necessárias à vida em grupos
alargados e heterogêneos, ou seja, em círculos sociais ampliados.
Os processos de socialização, a formação de e a interação entre grupos e as novas
relações de poder operam sobre aquele indíviduo racional, transformando-o em sujeito social,
que, por sua vez, desempenha novos papéis em sociedade. Esses novos papéis ou identidades
sociais fornecem, em alguma medida, estabilidade e segurança, proporcionando uma sensação
de conforto e de pacificação de conflitos, ao instilarem no sistema um certo grau de
previsibilidade e de expectativas pré-fixadas.
Do indivíduo racional ao sujeito social, chega-se ao século XX, marcado, ao menos na
perspectiva europeia, por duas grandes guerras em sua primeira metade e pelo despoletar de
movimentos de acirramento e multiplicação de contatos entre pessoas, grupos e entidades
(associações, instituições e organismos de natureza diversa), identificados como processos de
globalização, que provocariam um forte impacto no tecido social, promovendo profundas
transformações, especialmente nas últimas décadas do século passado e neste início de século
XXI.
A noção de identidade – em suas diferentes versões – vai tomando forma ao longo
dessas transformações, sem que seja possível (ou mesmo importante) fixar um ponto de
partida. Apenas como referência, vale a pena notar que no vocabulário de termos relevantes
em cultura e sociedade (Keywords: A Vocabulary of Culture and Society), de Raymond
Williams (1981), publicado em 1976, o verbete “identidade” sequer aparece. No entanto, em
As identidades nacionais na Europa do século XXI
22
sua versão revista e ampliada (New Keywords: A Revised Vocabulary of Culture and Society),
editada por Tony Bennett, Lawrence Grossberg, Meaghan Morris, publicada em 2005, o
verbete “identidade”, elaborado por Kevin Robins (Bennett et al, 2005), não só é incluído
como aparece com algum destaque.
A perspectiva adotada por Robins, em tal verbete, é a da identidade como
identificação, isto é, como uma percepção de igualdade individual ou coletiva, que
supostamente se mantém inalterada ao longo do tempo. Essa ideia de permanência contida na
ideia de continuidade atuaria como uma espécie de estratégia de organização da complexidade
da vida moderna tanto no campo subjetivo (psicológico) como social. Os caráteres de unidade
e continuidade das identidades serviriam de contraponto ao pluralismo, à diversidade e à
transformação tão característicos desta modernidade tardia:
Identity is to do with the imagined sameness of a person or of a social group at all times and
circumstances; about a person or a group being, and being able to continue to be, itself and not
someone or something else. Identity may be regarded as a fiction, intended to put an orderly
pattern and narrative on the actual complexity and multitudinous nature of both psychological
and social worlds. The question of identity centers on the assertion of principles of unity, as
opposed to pluralism and diversity, and of continuity, as opposed to chance and transformation.
(Bennet et al, 2005).
Essa definição de identidade é apenas uma entre tantas possíveis, uma vez que os
estudos de identidade são objeto de disciplinas diversas como a sociologia, a psicologia, a
antropologia e os estudos culturais em meio a outras possibilidades. A abordagem adotada
nesta pesquisa, entretanto, é a dos estudos culturais, que não só reconhece os diferentes vieses
adotados por áreas de conhecimento distintas, como se vale deles para construir sua reflexão –
tarefa que pode ser desenvolvida a partir de estratégias diferentes e que, portanto, deve ser
clarificada. Com tal intutito, propõe-se aqui pensar-se em três categorias distintas,
identificadas como “multidisciplinar”, “interdisciplinar” e “transdisciplinar”.
Entende-se a multidisciplinaridade como a opção que se vale de diferentes áreas do
conhecimento na análise de um dado objeto ou na reflexão sobre um tema qualquer. Nessa
perspectiva, a divisão do conhecimento em áreas distintas e estanques é assumida à partida e
respeitada. O resultado obtido é uma espécie de soma das diferentes mais-valias oferecidas
por cada área. Ao longo desse processo e segundo seus críticos, faz-se presente o receio de
contaminação entre elas, associado ao risco de perda de rigor científico ou de coerência
teórico-metodológica.
https://en.wikipedia.org/wiki/New_Keywords:_A_Revised_Vocabulary_of_Culture_and_Society
As identidades nacionais na Europa do século XXI
23
Entende-se a interdisciplinaridade como a opção que, embora também opere a partir
das múltiplas disciplinas, não reconhece a existência de limites claros e definidos entre elas.
Pelo contrário, reconhece o contato e a sobreposição, ou seja, a existência de um espaço
liminar, valorado positivamente e explorado nessa perspectiva. No entanto, segue
reconhecendo a divisão do conhecimento em áreas de saber com suas características e
especificidades.
Entende-se a transdisciplinaridade como a opção que rompe com a clássica divisão do
conhecimento em disciplinas independentes, construindo-se a partir de diferentes teorias e
ideias de origens diversas. Não se quer aqui pôr em causa a classificação e divisão do
conhecimento para fins didáticos – esse não é o tema em discussão. O que se reclama é uma
perspectiva de conjunto, que trabalha a partir de ideias e reflexões, recusando-se à
classificação tradicional ou mesmo à ideia da classificação como um fim em si mesma – a
classificação é aqui entendida como um recurso de raciocínio, estratégia de reflexão. Há um
potencial de transformação que é valorizado nessa abordagem, sem que isso signifique
abdicar do rigor científico ou da coerência teórico-metodológica – embora, muito
provavelmente, atribuindo-se a tais termos significados em alguma medida diferentes dos
tradicionais.
A perspectiva da transdisciplinaridade, no enquadramento dos estudos culturais, é
aquela adotada nesta pesquisa, o que não implica desconsideração pelos riscos inerentes à
transposição de um conceito de uma área para outra. Considera-se, no entanto, que um
conceito – ou uma ideia, um pensamento, uma reflexão, uma teoria – é indissociável do seu
contexto, isto é, do contexto no qual é produzido. Desconsiderar tal relação, impossibilita esse
exercício nos moldes propostos. Em outras palavras, o que se defende é que o conhecimento é
construído a partir do diálogo, da relação e do embate entre ideias. Partir de uma ideia
desenvolvida por outro/s, apropriar-se dela e transformá-la é atividade inerente à produção do
conhecimento e não uma ameaça à mesma.
Claro que não se está isento do risco de se construir ideias ou relações inconsistentes
ou incoerentes, que, nesse caso, logo serão constestadas, criticadas, descartadas ou
transformadas. Mas tal movimento é salutar para o desenvolvimento e a produção de
conhecimento. Também é preciso considerar que, muitas vezes, compreender mal significa
simplesmente discordar da corrente dominante, isto é, compreender diferentemente de outros
ou não conseguir convencer seus pares da validade e pertinência de uma perspectiva – isso se
dá em função de vários fatores, que, em geral, envolvem relações de poder, prestígio e
posição de quem fala ou de contra quem se fala.
As identidades nacionais na Europa do século XXI
24
A discussão em torno dos conceitos de multi, inter e transdiciplinaridade, além de
controversa, não é, no entanto, objeto deste estudo. O que se pretende é simplesmente
explicitar a posição aqui adotada. Feito esse alerta e esclarecido tal ponto, retoma-se a
discussão sobre as identidades no contexto atual, caracterizado como pós-modernidade ou
modernidade tardia.
Em A Condição Pós-Moderna (1986), Lyotard reflete sobre os tempos atuais,
marcados pelo aumento da complexidade das relações sociais entre sujeitos e pela
fragmentação e multiplicação dos centros. É o momento que representa o suspiro final das
grandes narrativas que caracterizavam o período que lhe antecede, ou seja, o fim dos
discursos com pretensão de generalidade e universalidade que serviam de justificativa e de
estrutura para uma dada sociedade – não mais a busca por regras gerais, aplicáveis a toda
multiplicidade e complexidade de situações e casos, mas sim o caso específico e particular,
sempre contingente.
Para o autor, esse cenário constitui uma mudança, uma transformação suficientemente
relevante para marcar uma distinção entre a noção de modernidade e de pós-modernidade,
também chamada de modernidade tardia – expressões utilizadas para denominar o período
que se estende da segunda metade do século XX até a atualidade. No âmbito deste trabalho,
como regra geral, as referências à modernidade, contemporaneidade e modernidade tardia
remetem para o tempo presente.
É nesse contexto da modernidade tardia que Stuart Hall (2014: 22-28) afirma que as
identidades perdem seu centro, num processo marcado, principalmente, por cinco
movimentos: o pensamento marxista, o surgimento da psicanálise, a semiologia de Saussure,
as ordens do discurso de Foucault e as teorias feministas. Essa afirmação se assenta num
cenário anterior no qual as identidades teriam adquirido uma certa estabilidade ou fixidez ou,
ao menos, seriam assim percebidas.
Tanto o pensamento marxista, desde o século XIX, como os movimentos feministas, a
partir dos anos 60 do século XX, ao promoverem um novo tipo de identidade ampliada,
colaboram para esse processo de deslocamento do centro (ou descentramento) das
identidades. A promoção de uma identidade da classe trabalhadora assim como a de uma
identidade feminina promovem a ideia de identidade desterritorializada e descontínua, isto é,
estabelecem uma relação identidade/diferença que não depende da vinculação a um território
ou a uma progressão temporal contínua. Pressupõem uma identidade motivada pelo status
social e econômico – pela ideia/condição de trabalhador – ou pelo status social e biológico –
pela ideia/condição de mulher.
As identidades nacionais na Europa do século XXI
25
As teorias psicanalíticas, a partir de Freud e depois com Lacan, promovem a noção de
subjetividade, ao mesmo tempo em que ressaltam o papel do inconsciente no
desenvolvimento humano e na construção do indivíduo. Os discursos em torno da supremacia
da razão e do predomínio do indivíduo racional na construção da identidade são fortemente
influenciados pela noção de inconsciente e da sua relevância na formação do ser humano.
A semiologia de Saussure, ao se debruçar sobre os modos de criação e troca de
significados, ou seja, sobre os processos de comunicação, põe em evidência a complexidade
da interação humana e sua dependência de um sistema de trocas simbólicas. A língua é
afirmada como um sistema social e simbólico, dotado de um repertório de significados –
construídos e reconstruídos ao longo do tempo-espaço – do qual o indivíduo se vale para
viver em sociedade.
A teoria sociológica de Foucault, que posiciona o discurso como elemento estruturante
da sociedade, põe em causa mais uma vez a autonomia do indivíduo racional, suspendendo a
invisibilidade, ou melhor, revelando as redes sociais (poder/saber) que limitam e delimitam a
possibilidade de ação e manifestação humanas. São as ordens do discurso que pré-determinam
o que pode ou não ser dito, de que modo, por quem, em que contexto, com qual valor, numa
espécie de condicionamento da autonomia e do poder de agência do indivíduo.
Em comum, todas elas anunciam o fim da supremacia do indivíduo racional como o
principal – ou mesmo, o único – ator social, dotado de autonomia, capaz de determinar seu
próprio destino, contrariando, de certo modo, a máxima de Descartes (“Penso, logo existo”).
Fazem-no ao trazer à luz uma série de outras perspectivas e forças que interagem e
condicionam em algum grau a vida em sociedade. O indivíduo torna-se sujeito numa dupla
perspectiva: do ser e do estar, ou seja, quer numa perspectiva estática e essencialista, quer
numa perspectiva dinâmica e performativa.
A ideia de fragmentação, recorrente nos discursos da modernidade tardia, parte do
paradigma de uma identidade una e indivisa que se perde ou se parte, ou seja, de identidades
que se fragmentam. Com o fim das grandes narrativas, a narrativa das identidades, em sua
completude, também se perde. A complexidade da vida moderna, a multiplicação das
variáveis que regulam as relações entre sujeitos, as difíceis e confusas equações de
interdependência entre fatores e o consequente aumento da especialização, associado ao
aumento da quantidade de informação e dados a circular, permitiriam no máximo vistas
parciais, fragmentos que poderiam ou não ser combinados.
Essas identidades fragmentadas instauram um estado de tensão permanente, quer em
função de um exercício incessante de combinação e conjugação das partes, nem sempre
As identidades nacionais na Europa do século XXI
26
conseguido, mas muitas vezes desejado – numa busca pela estabilidade ou pelo equilíbrio –,
quer em função da ansiedade gerada pela tentativa de se reconstituir um todo indiviso – meta,
agora, impossível de ser alcançada.
Essas tensões transparecem, muitas vezes, nos discursos de afirmação de uma certa
“crise das identidades” que se teria instalado nas sociedades modernas. A perda de pontos de
referência seguros e estáveis, além da multiplicação das possibilidades de identificação,
provocam insegurança e ansiedade no sujeito social moderno, que vivencia essa situação
como crise.
Ora em paralelo, ora em concorrência com a ideia de fragmentação das identidades –
que pressupõe, como já afirmado, a existência anterior de um todo, de uma totalidade, que se
perde – está a noção de multiplicação: não mais identidades fragmentadas, mas sim
identidades múltiplas. Para dar conta da complexidade do sistema social é preciso se
multiplicar – não mais fragmentar o todo, mas sim multiplicá-lo em sua inteireza. Trata-se, na
verdade, de uma justificativa ou estratégia diferente para dar conta do mesmo resultado: o fim
de uma identidade una e indivisível e o desenvolvimento de novas e diversas identidades.
Essa perspectiva parece inverter a ideia de crise convertendo-a em oportunidade. A
modernidade tardia não é mais caracterizada pela “crise das identidades”, mas sim como a
“era das identidades” – em vez da fragmentação, a multiplicação. Para fazer face à
complexidade da modernidade, o indivíduo se vale de várias identidades distintas e
independentes: de gênero, etária, profissional, nacional, etc.
Nesse sentido, cada indivíduo teria um repertório de identidades à sua disposição, que
poderiam ser utilizadas sempre que necessário, segundo o critério de cada um, para melhor
atender as necessidades da vida em sociedade. Na era das identidades, o indivíduo exercitaria
seu poder de escolha e sua capacidade de compra, como se de um bom consumidor se
tratasse, beneficiando-se de um livre-mercado das identidades (Billig, 1995: 134). A
identidade de consumidor, desse modo, ganharia proeminência, especialmente numa
sociedade caracterizada como sociedade de consumo.
A ideia de livre-mercado das identidades acentua a noção de voluntarismo e a
perspectiva sócio-econômica associadas ao tema ao delinear um cenário em que as
identidades se transformam em mercadoria, passíveis de serem adquiridas ou descartadas em
função do poder aquisitivo do consumidor e da sua vontade. Essa contaminação da lógica de
mercado a tantas outras esferas da vida social é também uma característica dos discursos da
modernidade.
As identidades nacionais na Europa do século XXI
27
A metáfora da liquidez, tão bem explorada por Bauman (2006), parece útil na
caracterização das identidades nesse contexto de modernidade tardia como “identidades
líquidas”. A matéria em estado sólido se transforma. O estado de liquidez acentua o caráter
fluido e de certo modo volátil das identidades, que estão em permanente estado de
transformação e acentua também sua flexibilidade, isto é, a sua capacidade de assumir formas
diferentes em função do seu entorno.
O que as perspectivas da crise e da era das identidades têm em comum, no entanto, é a
valorização do papel desempenhado por elas nas sociedades atuais. Essa afirmação é em parte
corroborada pelo volume de trabalhos produzidos em torno do tema e pela frequência dos
discursos que dela se valem. Apesar da grande variedade de posições e conceitos veiculados,
é possível refletir sobre o tema a partir de duas visões antagônicas que atravessam essas
discussões: as visões essencialistas e as visões não-essencialistas das identidades.
Considerando-se os dois extremos, pode-se caracterizar as visões essencialistas como
aquelas que partem da ideia de identidade como algo dado, algo que nasce com o indivíduo e
o acompanha – mesmo à sua revelia – até a morte. Faz dele o que ele é, regula seus atos,
determina seu comportamento, isto é, constitui sua essência. Sendo assim, não pode ser
modificada ou transformada. Essas perspectivas retiram poder e autonomia do indivíduo, que
passa a estar sujeito a essa identidade, e são compatíveis com os discursos de descoberta, isto
é, da ideia do indivíduo que parte em busca de si mesmo.
Do lado oposto, estão as visões não-essencialistas que negam o caráter inato das
identidades, afirmando seu potencial de criação e transformação. O indivíduo não nasce com
uma identidade, mas sim a constrói na relação com si mesmo e com os outros. As identidades
resultariam, assim, de um processo de construção. No âmbito dessas teorias, esses processos
de construção podem ser descritos e caracterizados de formas bastante distintas, mas, em
geral, em todas elas o indivíduo adquire algum poder de participação – maior ou menor, mais
ou menos ativo, mais ou menos condicionado. O indivíduo, desse modo, pode escapar à
situação de sujeição e passar à posição de sujeito.
A grande maioria das teorias e reflexões sobre as identidades em vigor hoje, no
entanto, parecem se situar entre um extremo e outro, combinando perspectivas essencialistas e
não-essencialistas. Partindo-se dessa premissa, pode-se delinear algumas das concepções mais
frequentes a partir de duas analogias: a do núcleo-duro e a da moda, que serão desenvolvidas
a seguir.
Uma dessas perspectivas de construção identitária pode ser pensada recorrendo-se a
uma analogia com o conceito de “núcleo-duro”, retirado do direito. O sistema jurídico-
As identidades nacionais na Europa do século XXI
28
constitucional é construído a partir de um núcleo-duro, isto é, de um conjunto de regras e
valores fundamentais – estáveis e, praticamente, inalteráveis – aos quais outras normas
jurídicas são associadas e incorporadas, sendo consideradas válidas apenas se e à medida que
forem compatíveis com ele. Do mesmo modo, as identidades seriam constituídas a partir de
um núcleo-duro, de um centro irradiador de controlo, validade e sentido – perspectiva
essencialista – em torno do qual o indivíduo construiria sua identidade ao longo da vida –
perspectiva não-essencialista.
Na segunda perspectiva, recorrendo-se à moda como metáfora, as identidades seriam
como as roupas, um traje que se veste e se despe segundo o livre-arbítrio, a escolha, o humor
do indivíduo – para cada situação, um traje diferente. Nesse modelo, a noção de estilo permite
uma certa ligação entre um traje e outro, criando, em seu conjunto, alguma unidade. Desse
modo, seria possível reconhecer o indivíduo independentemente do traje utilizado ao se
reconhecer o seu estilo. Embora esse modelo se aproxime mais das visões não-essencialistas,
quando comparado com o anterior, ainda é compatível com um viés de essência, presente na
definição de cada traje a ser utilizado, ou seja, na definição de um repertório de identidades
pré-fabricadas à disposição do indivíduo.
A perspectiva adotada nesta pesquisa parte de uma visão não-essencialista das
identidades, em que estas são o resultado de um processo constante de construção. Tal
processo consiste na tomada de posição no âmbito do/a discurso/prática social. Com essa
afirmação, não se pretende fazer qualquer juízo sobre os elementos que condicionam tais
processos – sua validade, possibilidade, credibilidade – mas sim afirmar seu caráter relacional
e sua necessária fluidez, sua eterna incompletude e sua natureza de projeto sempre em
andamento.
A discussão desenvolvida até o momento girou em torno das identidades, consideradas
no presente contexto num alto grau de abstração. Agora, no entanto, o que interessa é fazer
um recorte mais específico de modo a focar naquela que, entre tantas e tão variadas
possibilidades, é o objeto principal desta reflexão: a identidade nacional ou, melhor, as
identidades nacionais.
Como alerta Kuper (1999: 235), as identidades, mesmo na perspectiva individual e
privada, são vividas no mundo, no diálogo com o/s outro/s – e, na perspectiva construtivista,
são aí construídas. No entanto, são vivenciadas individualmente, ou seja, numa perspectiva
subjetiva, o indivíduo descobre essa identidade em si mesmo, no seu interior. Essa identidade
consiste na identificação com o outro, com o/s grupo/s com o/s qual/is estabelece relação/ões
As identidades nacionais na Europa do século XXI
29
de pertença, encontrando, assim seu lugar no mundo – seja uma nação, uma minoria étnica,
uma classe social ou um movimento político ou religioso, como exemplifica o autor.
Tais recursos à identificação com o outro e ao estabelecimento de relações de
pertença, como referido acima, conduzem ao “mito da nação”, que, como afirma Billig (1995:
137), assim como o mito da tribo ou o da religião, oferece algum conforto ao indivíduo ao
propiciar a possibilidade do resgate de uma certa integridade, de uma certa inteireza, isto é, de
uma noção do todo em meio à fragmentação e à insegurança inerentes à contemporaneidade.
Identidade nacional
Dois eventos são frequentemente indicados como sendo os precursores dos
nacionalismos na Europa: a declaração da independência americana, em 1776, e a revolução
francesa, em 1789. Mas é o século XIX aquele caracterizado como sendo o da “era das
nações”, ou seja, o período em que os nacionalismos – como movimento político, social e
econômico e como ideologia – ganham força e as nações são construídas.
Em sua primeira metade, a Europa passa por grandes transformações, com o início da
era industrial e a incidência (e persistência) de uma crise econômica que se espraia pelos
campos, promovendo insatisfação e conflitos que culminam com uma série de levantes
populares um pouco por toda a Europa, período identificado como sendo o da “primavera dos
povos” ou “primavera das nações” (1848).
O poder dos reis é posto em causa e sua origem divina é questionada pelas novas
teorias liberais, com destaque para os pensamentos de Rousseau e Adam Smith, que se
fundamentam na ideia de que o poder pertence ao povo e só em seu nome pode ser exercido.
Trata-se do período que representa o início do fim dos regimes monárquicos e a ascenção da
democracia.
Fichte, Korais, Rousseau, Herder e Mazzini, cada um na sua época e à sua maneira,
são identificados como os fundadores dos nacionalismos na Europa e, portanto, precursores
do seu estudo. No entanto, embora tais estudos constituam uma referência importante para
esta pesquisa, é importante ressaltar que seu foco são as identidades nacionais e os
nacionalismos como projeto político, meio de mobilização das massas, movimento liberal,
requisito democrático entre tantas outras possibilidades, sendo que, muitos desses temas, não
são aqui explorados. O que se busca identificar nessas teorias são elementos que contribuam
As identidades nacionais na Europa do século XXI
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para a reflexão sobre o papel simbólico das línguas na construção das identidades nacionais
num contexto bastante específico: a Europa do século XXI.
Todas as transformações acima referidas e as instabilidades que lhe são inerentes
contribuíram para o deflagrar das duas grandes guerras (1914-1918 e 1939-1945) que
marcaram a primeira metade do século XX na Europa e redefiniram suas fronteiras. Não por
acaso, esse período se confunde com aquele identificado por Hobsbawm (2012) como sendo o
do apogeu dos nacionalismos: de 1918 a 1950.
É no desdobramento desses conflitos, em 1951, que nasce a Comunidade Europeia do
Carvão e do Aço (CECA), que viria a ser o embrião do que é hoje a União Europeia. A CECA
é sucedida pela Comunidade Econômica Europeia (CEE), em 1967, e, finalmente, pela União
Europeia, em 1992. Em seu primeiro momento, trata-se de um acordo comercial estabelecido
entre França, Itália, Alemanha Ocidental, Bélgica, Holanda e Luxemburgo. Ao longo dos
anos seguintes, no entanto, passa por vários alargamentos e transformações em natureza,
funções e objetivos, chegando à sua configuração atual como entidade supranacional,
constituída por 28 países soberanos, em busca de integração nos mais variados níveis e
engajada na construção de uma identidade própria.
A ideia de nação como uma espécie de força da natureza, embora dormente, à espera
de irromper constitui o ponto de partida de muitos dos nacionalismos europeus. Nesse
contexto, a nação é concebida como o resultado de séculos de vivência em comum, partilhada
por indivíduos que se assemelham, que possuem uma mesma origem, que ocupam um dado
território, que partilham uma mesma história, uma língua, uma cultura. Todos esses elementos
se mobilizam e conjugam na formação de um Estado-Nação – uma nação politicamente
constituída e reconhecida –, dotado de autodeterminação, estrutura política e jurídica,
instituições públicas, etc.
Nesse sentido, a posição construída por Renan (1994) e defendida num importante
discurso, proferido em 1882, intitulado “Qu’est-ce qu’une nation?” (“O que é uma nação?”)
representa mudança significativa. Para o autor (ibidem:17), a nação seria um “princípio
espiritual”, uma entidade dotada de alma e capaz de inspirar sentimentos de solidariedade e
sacrifício. Nessa concepção de nação, o que faz de uma determinada comunidade nacional
uma nação propriamente dita é o sentimento de solidariedade que ela é capaz de inspirar e que
une todos aqueles que dela fazem parte. Tal sentimento seria suficientemente forte para
justificar sacrifícios – matar e morrer em nome da nação e daqueles que no passado, hoje e
também no futuro, estiveram, estão e estarão dispostos a fazer o mesmo.
As identidades nacionais na Europa do século XXI
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O principal critério de existência nacional seria o desejo de um povo de permanecer
unido, a vontade de ser uma nação. Nesse mesmo sentido, pertencer a uma nação seria uma
questão de escolha, e não de origem étnica, língua materna, local de nascimento ou de
qualquer outro critério objetivo. Para Renan, a pertença nacional consiste num compromisso
livremente assumido e reafirmado diariamente numa espécie de “plebiscito diário” (Renan,
1994).
O pensamento de Renan rompeu com os modelos clássicos dos nacionalismos em
vigor até àquele momento – que, em geral, se afirmavam a partir de elementos como etnia,
língua, território, povo, religião, história, antiguidade, etc. – e exerceu grande influência nos
estudos sobre o tema. Renan foi, nesse sentido, o precursor de uma série de desenvolvimentos
que levariam a uma guinada no campo teórico a partir dos anos 80 do século XX, como
exemplificam Anderson (2006) e Hobsbawm (2012).
Em geral, as novas teorias nacionalistas se afastam das visões essencialistas da ideia
de nação e assumem o viés da construção. Nesse sentido, as ideias de Gellner são um bom
indicativo da mudança. Para o autor, são os nacionalismos que engendram a nação, e não o
contrário. Gellner (1994: 63) contesta a visão do “despertar da nação”, que enfim toma
consciência de si, da sua história e das suas raízes – discurso corrente nos nacionalismos. Para
o autor, os nacionalismos consistem em novas formas de organização social, baseadas em
sistemas de educação pública organizados, controlados e instituídos pelo Estado.
Gellner contesta o mito da nação como uma força latente, mergulhada num sono
profundo e ininterrupto, apenas à espera de se manifestar ou, ainda, como uma ordem natural
e universal de classificar os homens em grupos distintos. Nesse mesmo sentido, o autor nega a
ideia de nação como destino inexorável, apenas postergado, sempre na expectativa de
emancipação. Para o autor, as nações são fabricadas a partir de um processo seletivo,
arbitrário e inconsciente que se vale de culturas pré-existentes e ora as apaga ora as
transforma radicalmente. Nesse processo, vários elementos são mobilizados, com destaque
para as línguas, as tradições e um sentido de autenticidade e pureza que seriam característicos
da alma da nação (1994: 63-64):
Nationalism sees itself as a natural and universal ordering of the political life of mankind, only
obscured by that long persistent and mysterious somnolence. (…) It´s nationalism which
engenders nations, and not the other way round. Admittedly, nationalism uses the pre-existing,
historically inherited proliferation of cultures or cultural wealth, though it uses them very
selectively, and it most often transforms them radically. Dead languages can be revived,
traditions invented, quite fictitious pristine purities restored.
As identidades nacionais na Europa do século XXI
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A nação seria, portanto, uma “comunidade inventada”, numa perspectiva que põe em
causa a existência de comunidades homogêneas, compostas por indivíduos que partilham uma
mesma origem, traços genéticos, língua, etc. e que parece não se sustentar face a uma análise
detalhada, um olhar perscrutador. Mas a inexistência – e mesmo a impossibilidade – dessa
homogeneidade não impede que uma comunidade seja percebida ou se perceba como tal.
Anderson parte das reflexões de Gellner e constrói sua própria teoria, que ainda hoje
exerce grande influência nos estudos dos nacionalismos. Critica o recurso à “invenção”,
presente no conceito de Gellner, por acreditar que essa expressão remete para o universo da
arbitrariedade, da fabricação de uma mentira, dificultando o seu entendimento. Anderson
(2006: 5-6) propõe, como alternativa, a definição de nação como comunidade “imaginada”,
ressaltando seu caráter “limitado e soberano”, como ilustrado abaixo:
In an anthropological spirit, then, I propose the following definition of the nation: it is an
imagined political community – and imagined as both inherently limited and sovereign.
It’s imagined because the members of even the smallest nation will never know most of their
fellow-members, meet them, or even hear of them, yet in the minds of each lives the image of
their communion.
É interessante observar que, embora Anderson defina os nacionalismos como artefatos
culturais, como referido na introdução deste estudo, o autor define nação como comunidade
política – e não cultural, religiosa ou étnica, por exemplo. Esse entendimento de nação e
nacionalismo parece condizer com o ideário do Estado-Nação, que remete para a ideia de
Estado como nação politicamente organizada, ao mesmo tempo em que acentua o papel da
cultura em sua construção.
A substituição de inventada por imaginada pretende ressaltar a dependência do
processo de construção da nação em relação a elementos pré-existentes. As nações não
surgem do nada, nem no vácuo, mas sim da mobilização (ativação/passivação,
afirmação/negação, apagamento/insersão, transformação/cristalização) de certos elementos
que lhe são anteriores ou não, ou seja, o processo de imaginar a nação não é arbitrário, pelo
contrário, há sempre condicionamentos.
Na comunidade imaginada como nação proposta por Anderson, a noção de soberania
que caracteriza os Estados é associada à ideia nação, acentuando o seu direito de se
autodeterminar. A definição de limites pode ser interpretada como o estabelecimento de
fronteiras, de limites territoriais, mas também de uma clara linha divisória a marcar a
diferença, definindo critérios de inclusão e exclusão. Em ambos os casos, a analogia com o
As identidades nacionais na Europa do século XXI
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modelo de Estado-Nação pode ser retomada – mesmo que apenas como destino, esperado,
desejado ou almejado.
Partilhando a ideia de nação de Anderson, Hobsbawm desenvolve sua análise dos
nacionalismos numa perspectiva histórica. Reconhecendo que o processo de imaginação da
nação é, como já alertavam Gellner e Anderson, em muito dependente do sistema educativo e
da apropriação seletiva de culturas pré-existentes, Hobsbawm debruça-se sobre o papel da
tradição, que, para ele, também é resultado de um processo de construção. Num célebre artigo
sobre a invenção da tradição, Hobsbawm (1994: 77-78) identifica três desenvolvimentos que
considera prioritários para a invenção das tradições: o desenvolvimento de um sistema
nacional de educação primária, a criação de cerimônias públicas e a produção em massa de
monumentos públicos.
Hobsbawm (1994: 76) chama a atenção para o paradoxo que envolve as nações que,
embora se afirmem e percebam como entidades naturais e seculares, muitas vezes à espera de
serem afirmadas e reconhecidas, mas sempre profundamente enraizadas e cujas origens se
perdem no tempo, são, pelo contrário, bastante atuais – são o resultado de um processo de
construção, isto é, são organizações características da modernidade.
Nesse mesmo sentido, Giddens (2002) afirma que os Estados-Nação são a mais
destacada forma social produzida pela modernidade. Assim, o Estado-Nação se distinguiria de
outras entidades sociopolíticas tradicionais pela sua forma particular de territorialidade,
vigilância e controlo, onde se destaca o monopólio do uso legítimo da força, como registrado
abaixo:
Modernity produces certain distinct social forms, of which the most prominent is the nation-
state. As a sociopolitical entity the nation-state contrasts in a fundamental way whith most
types of traditional order. It develops only as part of a wider nation-state system (which today
has become global in character), has very specific forms of territoriality and surveillance
capabilities, and monopolises effective control over the means of violence. (Giddens, 2002:
15).
O papel da tradição também é explorado por Giddens (2000: 60-61), que estabelece
uma relação com o conceito de “memória coletiva” proposto por Hallbwachs (1990). Segundo
este último, a memória não implica a preservação do passado, pois este é continuamente
revisto e reescrito em função do presente. A memória, portanto, seria essa reconstrução, em
parte individual, mas, sobretudo, social e coletiva desse passado.
A tradição, para Giddens, consiste num “meio de organização da memória colectiva”
(2000: 61), envolvendo a ideia de ritual e um caráter de obrigatoriedade, que o autor
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caracteriza como dotado de conteúdo moral e emocional. Giddens, portanto, também se afasta
de uma abordagem essencialista do tema, explorando outras dimensões da ideia de tradição.
Deslocando-se o foco do conceito de nação para o de povo,