Post on 11-Feb-2019
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PAR INSTITUTO DE CINCIAS JURDICAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREITO
CARLA SODR DA MOTA DESSIMONI
O PAPEL DO JUDICIRIO NA EFETIVAO DOS DIREITOS SOCIAIS
Belm, PA 2015
CARLA SODR DA MOTA DESSIMONI
O PAPEL DO JUDICIRIO NA EFETIVAO DOS DIREITOS SOCIAIS
Dissertao apresentada como requisito parcial para
a obteno do grau de Mestre em Direito pelo
Instituto de Cincias Jurdicas da Universidade
Federal do Par.
Linha de Pesquisa: Constitucionalismo, Democracia e
Direitos Humanos.
rea de Concentrao: Direitos Humanos e Polticas
Pblicas
Orientadora Prof. Dr. Violeta Refkalefsky Loureiro.
Belm, PA 2015
Dados Internacionais de Catalogao na publicao (CIP) Sistemas de Bibliotecas da UFPA
Dessimoni, Carla Sodr da Mota
O papel do judicirio na efetivao dos direitos sociais/ Carla Sodr da Mota Dessimoni; Orientadora, Violeta Refkalefsky Loureiro. - 2015.
110 f. : il. ; 29 cm Inclui bibliografias
Dissertao (Mestrado) Universidade Federal do Par, Instituto de Cincias Jurdicas, Programa de Ps-Graduao em Direito, Belm, 2015.
1. Direitos fundamentais. 2. Direitos sociais. 2. Poder Judicirio. 3.
Efetividade. 4. Polticas Pblicas. 5. Controle judicial. I. Loureiro, Violeta Refkalefsky, Orientadora. II. Titulo. CDD 22 ed. 341. 27
CARLA SODR DA MOTA DESSIMONI
O PAPEL DO JUDICIRIO NA EFETIVAO DOS DIREITOS SOCIAIS
Dissertao apresentada como requisito parcial para
a obteno do grau de Mestre em Direito pelo
Instituto de Cincias Jurdicas da Universidade
Federal do Par.
Linha de Pesquisa: Constitucionalismo, Democracia e
Direitos Humanos.
rea de Concentrao: Direitos Humanos e Polticas
Pblicas
Aprovado em: ___/___/2015
Banca Examinadora
Prof. Dr. Violeta Refkalefsky Loureiro. Orientadora-ICJ/UFPA
Prof. Dr. Jos Claudio de Brito Filho Examinador-UFPA)
Prof. Dr. Elder Lisboa Ferreira da Costa Examinador- ICJ/UNAMA
Conceito: __________
Belm, PA 2015
Para Bruna
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, Carlos Eduardo e Rozilda, por forjarem o meu carter, por
todo amor e apoio nos momentos mais difceis da minha caminhada at aqui. E,
principalmente, por terem dispensado de seu tempo para cuidar da minha filha para
que eu pudesse concluir os crditos do mestrado.
Ao meu marido Cesar pelo apoio e pelas palavras de incentivo, quando
pensei em desistir. Obrigada por cuidar de nossa filha nos meus momentos de
ausncia, seja para concluso do programa ou para o exerccio do meu mister em
Altamira.
A minha filha Bruna, que nasceu ainda no segundo semestre do programa
de ps-graduao, por superar a minha ausncia e ser o motivo pelo qual me
esforo todos os dias para ser um ser humano melhor.
A minha brilhante orientadora, Violeta Refkalefsky Loureiro, por todas as
valiosas sugestes e correes, e tambm pelo exemplo de educao, humildade,
vitalidade e alegria de viver que me serve como modelo a ser perseguido.
Aos professores do PPGD com os quais tive a honra de cursar disciplinas e
que contriburam valiosamente para o meu crescimento intelectual, especialmente
aos professores Jos Cludio Monteiro de Brito Filho e Antnio Jos de Mattos Neto,
que aceitaram participar de minha banca de qualificao e contriburam de maneira
mpar para a qualidade da minha dissertao.
Aos meus colegas no PPGD com os quais tive a feliz oportunidade de
vivenciar experincias de vida e dividir as alegrias e as angstias comuns aqueles
que se lanam na jornada do saber.
Muito obrigada.
RESUMO
A atuao do poder judicirio para efetividade dos direitos sociais uma questo
relevante, sendo objeto de debate tanto no meio jurdico quanto no poltico. O tema
aqui tratado ganha maior relevncia em virtude do crescimento do papel judicirio
como guardio da Constituio Federal e, consequentemente, dos direitos
fundamentais previstos na Carta Constitucional. inegvel que atrelado
efetividade dos direitos sociais est o incremento do gasto pblico para a realizao
desses direitos, chamados de direitos prestacionais, garantidos pela Constituio,
que necessitam de prestaes positivas do Estado. Diante desse panorama, mostra-
se importante situar os direitos sociais no direito internacional, a fim que se perceba
a real dimenso desses direitos no mbito global. Ser estudado o papel do
judicirio na efetivao dos direitos sociais, analisando-se os elementos fticos e
jurdicos que podem ser levados em considerao pelo julgador na sua aplicao no
caso concreto como a reserva do possvel, o mnimo existencial, o oramento
pblico e a chamada teoria dos custos dos direitos. Ser analisada ainda a questo
da legitimidade e da possibilidade de se impor limites a essa atuao jurisdicional no
controle das polticas pblicas criadas pelos demais poderes, fundamentando-se o
posicionamento aqui adotado na teoria da justia distributiva e na democracia
constitucional. Por fim, ser abordada a racionalidade da deciso judicial e a teoria
da integridade formulada por Dworkin para embasar o estudo ora desenvolvido.
Sero objeto de anlise ainda as decises atuais do Supremo Tribunal Federal
acerca da temtica abordada.
Palavras-chave: Direitos fundamentais sociais. Poder Judicirio. Efetividade. Polticas Pblicas. Controle judicial.
ABSTRACT
The role of the judiciary for effective social rights is an issue, the subject of much
debate in the legal environment and politically. The hereof theme gains greater
relevance due to the growth of the judicial role as guardian of the Constitution and
hence of fundamental rights provided in the Constitutional Charter. It is undeniable
that tied the effectiveness of social rights is the increase in public spending for the
realization of these rights, called rights of provide, guaranteed by the Constitution
that require positive state benefits. Against this background, proves important to
situate social rights in international law in order to realize that the real dimension of
these rights at the global level. We will study the role of the judiciary in attaining
social rights, analyzing the factual and legal elements that can be taken into
consideration by the judge in its application in this case as the reserve as possible,
the existential minimum, the public budget and the theory of the cost of rights. Still it
will be considered the question of legitimacy and ability to impose limits on this legal
action in the control of public policies created by other powers, the positioning
adopted here in the theory of distributive justice and constitutional democracy.
Finally, the rationality of judicial decision and the theory of integrity formulated by
Dworkin to support the study now developed will be addressed. Will be analyzed
further the current decisions of the Supreme Court about the theme.
Keywords: Fundamental Social Rights. Effectiveness. Public Policy. Judicial Control.
SUMRIO
1 INTRODUO.....................................................................................
9
2 DIREITOS HUMANOS E DIREITOS FUNDAMENTAIS.................... 15
2.1 Contextualizao Histrica.............................................................. 15
2.2 Diferena entre os Direitos Humanos e os Direitos Fundamentais................................................................................... 17
2.3 A dignidade da Pessoa Humana..................................................... 19
2.4 Direitos Humanos e a Constituio de 1988.................................. 24
2.5 Os Direitos Fundamentais............................................................... 27
2.5.1 Caractersticas dos Direitos Fundamentais........................................ 27
2.6 Classificao dos Direitos Fundamentais........................................... 29
2.6.1 Direitos fundamentais de defesa........................................................ 29
2.6.2 Direitos fundamentais de prestao................................................... 30
2.7 Direitos fundamentais sociais......................................................... 32
2.8 Os direitos sociais e a Constituio de 1988................................. 34
3 ELEMENTOS TERICOS E FTICOS CONDICIONADORES EFETIVAO DOS DIREITOS SOCIAIS.......................................... 39
3.1 O mnimo existencial........................................................................ 39
3.2 A reserva do possvel....................................................................... 44
3.3 A posio do Supremo Tribunal Federal acerca do mnimo existencial e a clusula da reserva do possvel............................ 48
3.4 Custos financeiros dos direitos prestacionais............................ 57
3.5 O oramento pblico e os direitos sociais.................................. 60
4 A QUESTO DA LEGITIMIDADE DO PODER JUDICIRIO....................................................................................... 65
4.1 A separao de poderes.................................................................. 65
4.1.2 A legitimidade democrtica............................................................. 69
4.2 A Justia Distributiva....................................................................... 74
4.3 A racionalidade jurdica................................................................... 77
4.4 O Direito como integridade.............................................................. 82
4.5 Os limites da interveno judicial na efetivao dos direitos sociais apresentados pela doutrina ptria..................................... 88
4.6 A posio do Supremo Tribunal Federal acerca do tema............ 91
5 CONSIDERAES FINAIS............................................................... 97
REFERNCIAS.................................................................................. 104
9
1 INTRODUO
Na ltima dcada no Brasil houve um aumento significativo da demanda por
justia por parte da sociedade brasileira e a ascenso institucional do Poder
Judicirio provocou uma intensa judicializao das relaes polticas e sociais, que
passaram a ter nos tribunais a sua instncia decisria final. Podem ser tomados de
exemplo os seguintes casos recentes que foram decididos pelos tribunais
superiores: o uso das clulas tronco para pesquisa e tratamentos mdicos, a
legitimidade da interrupo da gestao em certas hipteses de inviabilidade fetal e
o reconhecimento da unio estvel homoafetiva como unidade familiar.
Se num primeiro momento os direitos sociais eram considerados apenas
como normas programticas previstas na Constituio Federal, sendo raras as
intervenes judiciais nesta seara, em nome da preservao do princpio da
separao de poderes, hoje o quadro se modificou significativamente. Atualmente,
so inmeras as decises, tanto nas esferas federal quanto estadual, garantindo a
aplicabilidade desses direitos, seja individualmente ou em prol da coletividade.
Diante do agigantamento das demandas sociais no Pas, o poder judicirio
acabou por evoluir o seu entendimento com relao eficcia dos direitos sociais,
como expresso dos direitos fundamentais, apresentando-se a via judicial como um
forte instrumento colocado disposio dos cidados brasileiros em prol da defesa
dos direitos individuais e sociais, visando a observncia do mnimo existencial e a
garantia de uma vida digna.
De outra banda, o debate judicial, pela sua prpria natureza, permite o
crescimento da democracia, uma vez que trazendo para discusso temas caros
sociedade, como o direito de greve, direito ao aborto e outros, amplia o espao de
discusso democrtica, uma vez que exige certo grau de racionalidade s propostas
colidentes.
Contudo, a questo da judicializao das polticas pblicas, entendida como
a possibilidade do controle das polticas pblicas pelo Poder Judicirio vem
rendendo grandes discusses no meio doutrinrio e jurisprudencial, com severas
crticas expanso da jurisdio constitucional e a sua legitimidade para intervir no
carter discricionrio do administrador pblico com relao s polticas pblicas.
O crescente impacto financeiro no oramento pblico gerado por aes que
demandam a efetivao de direitos sociais, notadamente o direito sade e
10
educao, tem gerado crticas que questionam a legitimidade do poder judicirio
para determinar gastos pblicos em questes de polticas pblicas, atrelada ainda
falta de capacidade tcnica dos juzes para controlar as polticas pblicas.
Embora neste trabalho defenda o entendimento doutrinrio acerca da
possibilidade de o Poder Judicirio conhecer e atuar em conflitos que envolvam
direitos sociais, garantindo-se maior efetividade ao texto constitucional, parte da
doutrina entende necessria a existncia de parmetros mnimos processuais e
materiais para que se possa dar efetividade aos direitos fundamentais sociais
consagrados na Constituio, sem prejuzo discricionariedade da administrao
pblica para a alocao de recursos atinentes as polticas pblicas.
Para ns, a atuao do poder judicirio na efetividade dos direitos individuais
e sociais mostra-se relevante e essencial na realizao dos direitos fundamentais
sociais, sendo um espao de participao poltica da sociedade civil para a
conduo das polticas pblicas para os direitos sociais, principalmente para os
menos favorecidos, que podem se valer da jurisdio para ter garantido direito no
prestado ou prestado de forma deficiente pela administrao pblica.
Todavia, h vrias dificuldades polticas e econmicas que devem ser
enfrentadas para que se possa traar os limites para a atuao positiva do poder
judicirio em prol da efetivao dos direitos sociais, ressaltando-se que as decises
judiciais devem estar amparadas nas disposies constitucionais (sem esquecer dos
tratados internacionais dos quais o Brasil seja signatrio em matria de direitos
econmicos, sociais e culturais).
Uma das questes principais colocadas pelos opositores do entendimento
acima esposado que os recursos disponveis so finitos, o que traz tona a
discusso sobre a pertinncia da atuao do poder judicirio na efetivao dos
direitos sociais, sobretudo na rea de sade pblica, mormente em situaes
pontuais em que o direito vida de um indivduo que dependa de tratamento
mdicos caros e no disponveis na rede pblica pode por em risco o atendimento
aos demais cidados.
A questo do controle das polticas pblicas envolve tambm a demarcao
do limite adequado entre matria constitucional e matria a ser submetida ao
processo poltico majoritrio. Se, de um lado, a Constituio protege os direitos
fundamentais e determina a adoo de polticas pblicas aptas a realiz-los -
cabendo ao poder judicirio zelar pela observncia do texto constitucional, por outro,
11
atribuiu as decises sobre o investimento de recursos ao executivo e legislativo, o
que dificulta o desenvolvimento de parmetros objetivos de controle de polticas
pblicas.
Outro ponto nevrlgico acerca do tema a amplssima cartela de direitos
individuais e sociais brasileiro, no se limitando aos direitos expressos na
Constituio Federal, no havendo qualquer limite para a atuao jurisdicional. Por
isso, parte da doutrina questiona a legitimidade do poder judicirio em interferir nas
decises do poder executivo na alocao dos recursos pblicos para determinados
fins sociais.
O fato de os membros do poder judicirio no serem eleitos pelo povo,
tampouco responderem politicamente perante o povo, suscita, por alguns, a falta de
legitimidade para interferir na realizao das polticas pblicas estatais.
Necessrio ainda ponderar acerca da possibilidade da tutela efetiva dos
direitos fundamentais em contraponto ao princpio da separao dos poderes, pois
h doutrinadores que defendem a superioridade hierrquica do princpio da
separao dos poderes em detrimento dos direitos fundamentais em caso de
coliso, rejeitando qualquer interveno do poder judicirio nas questes que
envolvam direitos prestacionais.
A ausncia de regulamentao ampla acerca da possibilidade de
interveno do poder judicirio na realizao das polticas pblicas do Estado, no
antevendo o ordenamento jurdico ptrio todas as necessidades de direito material,
bem como a precariedade dos estudos doutrinrios acerca do tema, no podem
representar obstculos para a concretizao dos direitos fundamentais, dentre os
quais os direitos sociais, que por sua relevncia, devem ser viabilizados pelo Estado
da forma mais efetiva possvel.
A doutrina divergente em relao ao tema, no havendo consenso sobre
os limites da atuao do poder judicirio na efetivao dos direitos sociais,
principalmente, por fora da diversidade de direitos abarcados pela Constituio de
1988, o que dificulta a harmonizao dos posicionamentos doutrinrios.
Ponto importante da problemtica apresentada identificar se os direitos
sociais podem ser objeto da tutela jurisdicional. No caso positivo, deve-se perquirir
os limites da atuao jurisdicional, ante a escassez de recursos materiais do Estado
para a concretizao plena dos direitos fundamentais, principalmente nos entes
12
federativos que tenham diminuta dotao oramentria, bem como outras limitaes
colocadas pela doutrina ptria e estrangeira.
A discusso do tema ora proposto mostra-se relevante diante do avano da
atuao do poder judicirio na efetivao dos direitos fundamentais sociais, o que
implica na necessidade de se determinar se existem limites para essa atuao e
quais seriam esses limites, bem como discutir se o poder judicirio possui
legitimao para faz-lo.
Assim, a questo posta em debate se justifica pela crescente demanda da
populao brasileira pelos direitos sociais, que acaba desembocando no poder
judicirio quando a administrao pblica no atende as demandas dos indivduos, o
que de fato gera uma sobrecarga financeira aos cofres pblicos pelos custos,
inerente aos cumprimentos de direitos garantidos pelas decises judiciais
concessivas de direitos sociais, o que torna necessrio estudo mais aprofundado do
tema, a fim de evitar decises temerrias ao equilbrio financeiro do Estado.
Registre-se que o conceito de poltica pblica que ser adotado neste
trabalho o que entende como polticas pblicas o conjunto organizado de atos e
programas de ao governamental para a realizao de objetivos socialmente
relevantes e politicamente determinados para a realizao dos direitos sociais
insculpidos na Constituio brasileira e os objetivos do Estado Democrtico de
Direito.
Dessa forma, nossa proposta identificar e analisar os aspectos
fundamentais dos direitos sociais, bem como a possibilidade de interveno do
poder judicirio com vistas eficcia desses direitos no Brasil, identificando e
destacando os entraves prticos e doutrinrios na sua realizao, bem como
apresentar os parmetros colocados pela doutrina para sua atuao, com o intuito
de contribuir com a discusso doutrinria acerca do tema.
Para tanto ser necessrio analisar a evoluo dos Direitos Humanos como
fator que influenciou no resgate do princpio da dignidade da pessoa humana, que
serve de fundamento ordem jurdica ptria, permitindo a realizao dos direitos
sociais pelas polticas pblicas, e a possibilidade de interveno do poder judicirio
para a garantia dos direitos sociais no Brasil, identificando os limites prticos e
doutrinrios na sua realizao.
Na busca de respostas adequadas ao tema proposto ser utilizado como
referencial terico a teoria da integridade de Dworkin, que entende o Direito como
13
um exerccio interpretativo, defendendo a coerncia de princpios como exigncias
morais, sendo as proposies jurdicas verdadeiras se constam ou derivam dos
princpios da equidade e devido processo legal, que oferecem a melhor
interpretao construtiva da prtica jurdica da comunidade.
No caso especificamente brasileiro, ainda reduzido o nmero de
demandas judiciais relacionadas implementao dos direitos sociais e econmicos
a exceo do direito sade e educao, sendo em sua grande maioria aes
individuais.
A interveno judicial na efetivao dos direitos sociais perpassa o problema
da prpria legitimao do poder judicirio e a discusso acerca da necessidade de
imposio de limites para essa atuao, a fim de preservar o Estado Democrtico de
Direito.
Repise-se que a judicializao dos direitos sociais questo ainda
controvertida na doutrina ptria e aliengena, existindo teorias divergentes acerca da
possibilidade interveno do poder judicirio no controle das polticas pblicas com o
fim de garantir efetividade aos direitos sociais.
A metodologia a ser utilizada ser a pesquisa jurdico-terica, valendo-se de
consultas a textos tericos, legislao, doutrina e jurisprudncia do Brasil,
tendo em vista que a pesquisa destina-se primordialmente a encontrar soluo para
os parmetros e/ou limites para a atuao jurisdicional na realizao das polticas
pblicas pelos entes federativos, com enfoque na garantia da realizao do princpio
da dignidade da pessoa humana no mbito nacional, funcionando os elementos de
direito como exemplos e possveis fontes de inspirao na criao de um modelo
eficaz para a resoluo do problema.
No primeiro captulo sero abordados os principais pontos do processo de
evoluo dos direitos humanos como a distino dos direitos humanos e direitos
fundamentais, trazendo os principais aspectos dos direitos fundamentais sociais, a
fim de permitir o adequado entendimento do objeto de discusso do presente
trabalho.
Em seguida sero discutidos os principais elementos condicionadores dos
direitos sociais elencados pela doutrina nacional para efetividade dos direitos
fundamentais sociais, atendo-se a trs questes que so temas recorrentes: a teoria
da reserva do possvel, o mnimo existencial, os custos financeiros dos direitos
14
prestacionais, uma vez que servem de argumentos para aqueles que defendem a
impossibilidade de controle de polticas pblicas pelo Poder Judicirio.
Aps traar o panorama geral acerca do tema, sendo vencidos os chamados
elementos condicionadores dos direitos sociais, ser travada a discusso que
entendo ser muito importante para a concluso do trabalho que a chamada
judicializao dos direitos sociais, sendo abordada a questo da legitimidade do
poder judicirio no controle de polticas pblicas relativas aos direitos sociais e
posio da jurisprudncia ptria dos tribunais superiores acerca do tema.
A ltima parte da dissertao abordar o objetivo central da discusso que
a definio do papel do poder judicirio na efetivao dos direitos sociais, a
importncia da racionalidade jurdica para a correta delimitao dos parmetros da
interveno judicial na efetivao dos direitos sociais, sendo discutido o carter
discricionrio do administrador pblico na escolha das polticas pblicas,
fundamentando-se a posio aqui adotada na teoria da justia distributiva e na
democracia constitucional. Por fim, ser abordada a racionalidade da deciso judicial
e a teoria da integridade formulada por Dworkin para embasar o posicionamento
apresentado neste trabalho.
15
2 DIREITOS HUMANOS E DIREITOS FUNDAMENTAIS
2.1 Contextualizao Histrica
As doutrinas ptria e aliengena citam alguns documentos que so
entendidos como antecedentes dos direitos humanos, como a Carta Magna das
Liberdades, declarao solene assinada pelo rei Joo Sem-terra, de 1215 (Magna
Charter Libertatum), firmada entre o rei, os bares e bispos ingleses com o propsito
de reconhecer e garantir certas liberdades a uma parcela da sociedade, como a
liberdade eclesistica para designao de autoridades, permitindo o reconhecimento
ao longo dos sculos dos direitos fundamentais pelas constituies nacionais.
A declarao de direitos dos povos da Virgnia, de 1776, foi o primeiro
documento a positivar os direitos naturais do homem, sinalizando o incio de uma
nova fase para os direitos humanos, marcando a transio entre as liberdades legais
inglesas para os direitos fundamentais constitucionais (SARLET, 2012).
O primeiro documento a afirmar os princpios democrticos na histria da
poltica moderna foi a declarao de independncia dos Estados Unidos. A sua
importncia histrica reside no fato de ser o primeiro documento poltico que
reconhece, ao lado da soberania popular, a existncia de direitos inerentes a todo o
ser humano, independentemente de caractersticas individuais (COMPARATO,
2013).
A declarao de direitos do homem e do cidado de 1789, nascida da
revoluo burguesa na Frana, tambm um documento de suma importncia para
entender a evoluo dos direitos fundamentais, uma vez que reconheceu a todo ser
humano direitos naturais imprescritveis e inalienveis.
Comparato (2013) ressalta que as declaraes de direitos norte-americanas
e francesa significam a emancipao do indivduo em face dos grupos sociais aos
quais pertenciam como a famlia, o cl ou as organizaes religiosas, porm
tornaram o indivduo mais vulnervel aos reveses da vida.
Contudo, os direitos humanos como direitos reconhecidos
internacionalmente ganharam propulso aps a constatao das atrocidades
cometidas contra a raa humana pelo nazismo nas dcadas de 30 e 401. Aps a II
1 O legado da segunda Guerra mundial apresentava o Estado como grande violador de direitos humanos. O perodo do ps-guerra buscou reconstruir a noo de respeito pessoa humana,
16
Guerra Mundial o ideal de tutela global dignidade da pessoa humana passou a
figurar na pauta de discusso dos lderes mundiais em mbito internacional
inicialmente. Declaraes e Pactos sobre os direitos humanos foram firmados com a
criao de cortes internacionais, a fim de impedir que o mundo protagonizasse
novas histrias de holocausto.
Comparato (2013) assinala que a Declarao Universal dos Direitos
Humanos de 1948 e a Conveno Internacional sobre preveno e punio do crime
de genocdio (aprovada um dia antes da primeira) ambos documentos elaborados
pela Organizao das Naes Unidas - constituem os marcos inaugurais da nova
fase histrica que se encontra em desenvolvimento na atualidade.
Com a declarao de 1948, tem incio a terceira e ltima fase, na qual a afirmao dos direitos , ao mesmo tempo, universal e positiva: universal no sentido que os destinatrios dos princpios nela contidos no so mais apenas os cidados deste ou daquele Estado, mas de todos os homens; positiva no sentido de que pe em movimento um processo em cujo final os direitos do homem devero ser no mais apenas proclamados ou apenas idealmente conhecidos, porm efetivamente protegidos at mesmo contra o Estado que os tenha violado. No final desse processo, os direitos do cidado tero se transformado, realmente, positivamente, em direitos do homem. (BOBBIO, 1992, p. 30).
A Declarao Universal dos Direitos Humanos o documento internacional
de maior importncia para a afirmao dos Direitos Humanos, que embora tenha a
forma de simples recomendao feita pela Assembleia Geral da Organizao das
Naes Unidas (ONU), tem reconhecida sua fora vinculante pelos Estados
membros.
A criao da ONU bem como a edio da Declarao dos Direitos Humanos
de 1948 e outros pactos internacionais que se seguiram, assinados e ratificados por
um nmero cada vez crescente de Estados ampliou a discusso acerca da proteo
e promoo dos direitos humanos para os Estados Nacionais, os quais tambm
passaram a se preocupar internamente com a proteo dos novos direitos.
Outros dois documentos de suma importncia para a expanso dos Direitos
Humanos so os chamados Pactos Internacionais de Direitos Civis e Polticos e o
Pacto de Direito Econmico, Social e Cultural, ambos datados de 1966.
Ressalte-se que a Comisso de Direitos Humanos da ONU tentou elaborar
um pacto internacional nico que englobaria todos os direitos protegidos e
delimitando o conceito de soberania nacional perante aos direitos humanos. A concepo contempornea dos direitos humanos inicia o seu processo de consolidao (UGATTI, 2008, 75).
17
reconhecidos pela ordem internacional. Mas, a ausncia de entendimento entre os
pases que compunham a Organizao das Aes Unidas poca impediu a
realizao de um nico documento. A divergncia entre os pases resultou na
confeco de dois tratados: o Pacto Internacional dos Direitos Civis e o Pacto pelos
Direitos Sociais e Econmicos, ambos de 1966.
Os direitos humanos, em sua concepo contempornea, so definidos pela
Declarao Universal dos Direitos Humanos de 1948. Sobre este ponto afirma
Piovesan que:
Essa concepo fruto da internacionalizao dos direitos humanos, que constitui um movimento extremamente recente na histria, surgindo, a partir do ps-guerra como resposta s atrocidades e aos horrores cometidos durante o nazismo. nesse cenrio que se vislumbra o esforo de reconstruo dos direitos humanos, como paradigma e referencial tico a orientar a ordem internacional contempornea. Com efeito, no momento que os seres humanos se tornam suprfluos e descartveis, no momento em que vige a lgica da destruio, em que cruelmente abolido o valor da pessoa humana, torna-se necessria a reconstruo dos direitos humanos, como paradigma tico capaz de restaurar a lgica do razovel (PIOVESAN, 2007, p. 8-9).
Dessa forma, o movimento de internacionalizao dos direitos humanos se
fortalece e se expande, o que se observa pelo crescente nmero de documentos
internacionais e a criao de mecanismos de promoo, defesa e controle para
efetivao dos direitos humanos.
2.2 Diferena entre os Direitos Humanos e os Direitos Fundamentais
No tocante aos termos direitos humanos e direitos fundamentais,
considerando a existncia de pontos de contato entre os dois termos, deve-se
entender que os direitos fundamentais so sempre direitos humanos, contudo nem
todos direitos humanos podem ser abrangidos pelo termo direitos fundamentais.
A sua diferenciao se mostra necessria, uma vez que no sero utilizados
como sinnimos, tendo cada um o seu conceito definido e delineado como ficar
claro a seguir.
Embora o entendimento adotado acerca do tema objeto dessa dissertao
no se filie ao positivismo jurdico, deve-se destacar a distino trazida por Bobbio
para afastar o conceito de direitos humanos do direito natural, afirmando que os
direitos do homem nascem como direitos naturais universais, desenvolvem-se como
18
direitos positivos particulares, para finalmente encontrarem sua plena realizao
como direitos positivos universais (BOBBIO, 1992, p. 30).
Silva (1998, p. 182) sustenta que
no qualificativo fundamentais acha-se a indicao de que se trata de situaes jurdicas sem as quais a pessoa humana no se realiza, no convive e, s vezes, nem mesmo sobrevive; fundamentais do homem no sentido de que a todos, por igual, devem ser, no apenas formalmente reconhecidos, mas concreta e materialmente efetivados.
Sarlet (2012) assevera que no existe identidade necessria entre o elenco
dos direitos que compem os direitos humanos e os direitos fundamentais, nem
entre o direito constitucional dos diversos Estados e o direito internacional nem entre
as Constituies, ficando muitas vezes o catlogo de direitos fundamentais
constitucionais aqum ou alm dos direitos humanos contemplados nos documentos
internacionais. Para Sarlet os termos direitos humanos e direitos fundamentais no
possuem o mesmo significado, sendo que os direitos fundamentais nascem e se
desenvolvem com as Constituies nas quais foram reconhecidos e assegurados
(SARLET, 2012, p. 35).
A locuo direitos fundamentais reservada aos direitos relacionados com
posies bsicas das pessoas, inseridos nos diplomas normativos de cada Estado.
So direitos vigentes numa ordem jurdica concreta, garantidos e limitados no
espao e no tempo, uma vez que so assegurados na medida em que cada Estado
os consagra (MENDES; COELHO; BRANCO, 2009). Brito Filho (2013) adota a
distino entre os direitos humanos e direitos fundamentais, sendo os direitos
fundamentais como os direitos humanos reconhecidos pelo Estado como regras
constitucionais escritas como necessrios dignidade da pessoa humana2.
A positivao dos direitos fundamentais significa a incorporao na ordem
jurdica positiva de direitos considerados naturais e inalienveis, porm os direitos
fundamentais devem ser alados a fonte fundamental do direito que so as normas
constitucionais, permitindo a proteo dos direitos fundamentais mediante controle
de constitucionalidade dos atos normativos desses direitos. (CANOTILHO, 2003).
2 Para Brito Filho (2013, p. 27) No obstante, para ns, Direitos Humanos e Direitos Fundamentais tenham definies baseadas na necessidade de seu reconhecimento como forma de garantir a dignidade da pessoa humana, elas diferem no sentido de que nem sempre haver coincidncia entre ambos, pois, alm de ser comum que, no plano interno dos Estados, nem todos os direitos humanos consagrados no plano internacional sejam reconhecidos, comum tambm que alguns direitos s sejam reconhecidos como fundamental em algum ou em alguns Estados.
19
Num primeiro momento apenas os direitos civis e polticos foram
reconhecidos como direitos humanos. Os direitos econmicos, sociais e culturais
somente foram reconhecidos como parte da cartela de direitos fundamentais aps a
afirmao dos direitos civis e polticos. Por ltimo, estendeu-se o conceito de direitos
humanos ao direito ao meio ambiente, direito ao patrimnio comum da humanidade.
Assim, os direitos fundamentais so apresentados pela doutrina como um
conjunto de direitos formados pelos direitos individuais, polticos e sociais, bem
como os direitos de fraternidade plasmados nas Constituies.
Os direitos fundamentais individuais so associados aos direitos de
liberdade, o livre exerccio dos direitos civis, livre da atuao estatal. Os direitos
polticos representam os direitos associados livre participao dos indivduos na
vida pblica do Estado, sendo corolrio do princpio da igualdade. Por ltimo, os
direitos sociais, econmicos e culturais compem a ideia de direitos fundamentais, a
serem respeitados e fomentados pelo Estado a fim de garantir a existncia plena
dos indivduos.
Mendes; Coelho e Branco (2009, p. 273) resumem o papel dos direitos
fundamentais na sociedade ocidental contempornea afirmando que:
os direitos fundamentais assumem posio de definitivo realce na sociedade quando se inverte a tradicional relao entre Estado e indivduo e se reconhece que o indivduo tem, primeiro, direitos, e, depois, deveres perante o Estado, e que os direitos que o Estado tem em relao ao indivduo se ordenam ao objetivo de melhor cuidar da necessidade dos cidados.
2.3 A dignidade da Pessoa Humana
O valor da dignidade da pessoa humana o principal fundamento que
justifica o respeito e a promoo dos direitos humanos, bem como os direitos
fundamentais positivados pelos Estados.
O ponto de partida para a concepo contempornea da dignidade da
pessoa humana como condio inerente ao prprio ser humano a concepo
defendida por Kant, que sustenta que todo ser humano um fim em si mesmo. Para
ele o homem, e duma maneira geral, todo ser racional, existe como um fim em si
mesmo, no como meio para uso arbitrrio para essa ou aquela vontade. Pelo
contrrio, em todas as suas aes, tanto aquelas que se dirigem a outros seres
20
racionais, ele tem que ser considerado simultaneamente como um fim (KANT, 1980,
p. 134 -135).
Em outra passagem importante em defesa do tema, Kant (1980) afirma que
a qualidade peculiar e insubstituvel da pessoa humana a dignidade, que est
acima de todo preo, o que no permite sua troca por outro equivalente. Difere das
demais coisas do mundo s quais podem ser atribudas um preo e, portanto,
permitem equivalentes. Dessa forma, todo o ser humano tem dignidade e no um
preo, e como os tm as coisas que podem ser substitudas por outras equivalentes.
Sarlet conceitua a dignidade da pessoa humana como:
A qualidade intrnseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e considerao por parte do Estado e da Comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condies existenciais mnimas para uma vida saudvel, alm de propiciar e promover a sua participao ativa e co-responsvel nos destinos da prpria existncia e da vida em comunho com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida. (SARLET, 2012, p. 73).
A dignidade da pessoa humana serve de fundamento aos documentos
internacionais que regulam os direitos humanos, a exemplo da Declarao Universal
dos Direitos Humanos de 1948, que dispe no artigo 1 que todos os seres
humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Dotados de razo e
conscincia, devem agir uns com os outros em esprito e fraternidade.
Dessa forma, a dignidade da pessoa humana no um direito a ser
concedido pelo ordenamento jurdico, mas atributo inerente a qualquer ser humano,
sendo que o seu reconhecimento pelo Estado significa o dever de respeito, fomento
e proteo dos direitos fundamentais que se alicercem direta ou indiretamente no
seu preceito.
O conceito de dignidade humana pode ser expresso em um feixe de condies concretas, que devem estar (ou no podem estar) presentes para que a dignidade da pessoa humana seja garantida. Sobre essas condies possvel haver consenso. Assim, a dignidade humana no garantida se o indivduo humilhado, estigmatizado, perseguido ou proscrito. Acerca de outras condies possvel haver controvrsias, como, por exemplo no caso de se saber se o desemprego de longa durao de algum que tenha vontade de trabalhar - continua (ALEXY, 2015, p. 355).3
3 Alexy discute a dignidade da pessoa humana quando analisa o artigo 1, 1 da Constituio Alem, que dispe que a dignidade da pessoa humana inviolvel.
21
Deve ser ressaltado que o princpio da dignidade da pessoa humana atua
simultaneamente como limite dos direitos e limite dos limites, isto , barreira contra a
atividade restritiva dos direitos fundamentais (SARLET, 2012). Duarte (2012, p. 56),
defende que a dignidade da pessoa humana deve funcionar, como, pelo menos, um
dos critrios identificadores do contedo material (ou fundamentalidade material) dos
direitos materialmente constitucionais, ainda que no formalmente constitucionais.
O princpio da dignidade possui um papel hermenutico importante,
funcionando como diretriz para a interpretao das normas de todo ordenamento
jurdico, em razo de ser fundamento basilar da ordem constitucional (SARMENTO,
2002).
No mesmo sentido, Sarlet (2011) diz que a dignidade da pessoa humana
princpio fundamental da ordem constitucional brasileira, dotada de plena
normatividade, sendo referencial no mbito do processo hermenutico.
Os direitos fundamentais, sociais e econmicos, tanto os direitos de
liberdade e de justia se originam da dignidade humana, sendo que sua prpria
natureza de princpio fundamental faz com que a dignidade humana se irradie para
toda a Constituio e imante todo o ordenamento jurdico (TORRES, 2003, p.14).
A ideia da pessoa como um fim em si mesma implica no s o dever
negativo de no prejudicar um terceiro, mas tambm implica o dever positivo de
obrar no sentido de favorecer a felicidade do outro. Constitui a melhor justificativa do
reconhecimento dos direitos e das liberdades individuais, bem como dos direitos
humanos para a realizao de polticas pblicas de contedo econmico e social,
como enunciados na Declarao Universal dos Direitos Humanos (COMPARATO,
2013).
A dignidade da pessoa humana tem sido reconhecida pelos principais
instrumentos internacionais e textos nacionais como ponto fundamental dos Direitos
Humanos.
Porm, deve ser ressaltado que a dignidade da pessoa humana deveria
prescindir de previso legal, no sendo um direito a ser concedido pelo ordenamento
jurdico, mas atributo inerente a qualquer ser humano, sendo que o seu
reconhecimento pelo Estado significa o dever de respeito, fomento e proteo dos
direitos fundamentais que se alicercem direta ou indiretamente no seu preceito.
22
Para Brito Filho (2008) os direitos humanos podem ser entendidos como o
conjunto de direitos necessrios garantia da dignidade da pessoa humana. Dessa
forma, quando determinado direito for entendido como essencial para o respeito
dignidade humana, dever ser considerando parte integrante dos direitos
fundamentais. Defende ainda que a dignidade funciona ao mesmo tempo como um
m e como um freio. Como o primeiro para atrair todos os direitos indispensveis a
uma vida digna do ser humano, e como o segundo para impedir a tentao, s
vezes desenfreada de alguns, de querer incluir todos os direitos como direitos
humanos (BRITO FILHO, 2008, p. 33).
No Brasil, a Constituio de 1988 reconheceu expressamente a dignidade
da pessoa humana como preceito axiolgico, despontando entre os fundamentos do
Estado, pelo que se extrai da leitura do inciso III do art. 1. Outros artigos da carta
constitucional tambm se referem dignidade da pessoa humana, podendo ser
citados o artigo 170, artigo 226, 7, artigo 227 e artigo 230.
Nessa linha de pensamento, o constituinte da Constituio de 1988 elegeu o
valor da dignidade um dos fundamentos do Estado democrtico de direito, servindo
como parmetro que deve nortear a interpretao das normas constitucionais e as
aes do Estado em prol de uma sociedade solidria e igualitria.
O direito fundamental da dignidade da pessoa humana e o mnimo
existencial possuem dimenso ampliada nos pases pobres ou com imensa
desigualdade social, como o Brasil, pela prpria necessidade da proteo estatal ser
mais efetiva na garantia aos bens essenciais sobrevivncia das populaes.
O princpio da dignidade da pessoa humana exerce mltiplas funes no
ordenamento jurdico ptrio, em face de sua importncia dentro do sistema
constitucional vigente, bem como pela sua fluidez estrutural, sendo a primeira delas
a legitimao tica da Constituio (SARMENTO, 2002). Diz ainda que sob outro
aspecto, o princpio da dignidade possui uma dimenso negativa, uma vez que
concebido como limite inafastvel para a atuao estatal. Assevera ainda que
lcito afirmar que todo e qualquer ato normativo, administrativo ou jurisdicional
atentatrio dignidade da pessoa humana ser invlido e desprovido de eficcia
jurdica, ainda que no colida frontalmente com qualquer dispositivo constitucional
(SARMENTO, 2002, p. 71).
Seguindo o mesmo raciocnio, Sarlet (2012) defende que o Estado deve se
abster de praticar atos atentatrios ao princpio da dignidade da pessoa humana,
23
bem como dever promov-la por meio de condutas ativas, garantindo o mnimo
existencial para cada ser humano em seu territrio.
Diante dos argumentos acima esposados fica clara a posio do constituinte
de 1988, que elegeu o princpio da dignidade da pessoa humana como fundamento
do Estado brasileiro, sendo pressuposto filosfico de nosso regime jurdico, o que
pressupe a existncia de eficcia positiva de seu enunciado normativo, no
podendo ser ignoradas pelo administrador pblico, sob pena de afronta
Constituio.
Contudo, o princpio da dignidade da pessoa humana deve ser
compatibilizado com os demais princpios constitucionais, uma vez que no existem
princpios absolutos.
Alexy (2015) ressalva que o princpio da dignidade da pessoa comporta
graus de realizao, embora em determinadas situaes preceda a todos os outros
princpios. Isso no lhe confere carter absoluto, significando apenas que quase no
existem razes jurdico-constitucionais que no se deixem de comover para uma
relao de preferncia em favor da dignidade da pessoa4.
Barcelos resume que a dignidade da pessoa humana princpio
fundamental da ordem jurdica, vetor de interpretao constitucional, mas deve ser
harmonizado com os demais princpios e regras constitucionais5. Isso se deve em
parte pelo princpio da unidade da Constituio, mas tambm porque os demais
princpios constitucionais so partes de uma estrutura cujo objetivo final a
realizao da dignidade da pessoa humana (BARCELLOS, 2008).
4 Alexy diz que a razo da impresso que a dignidade tem carter absoluto reside no fato de que a norma ser tratada em parte como regra e em parte como princpio, e tambm no fato de existir, para o caso da dignidade, um amplo grupo de condies de precedncia que conferem altssimo grau de certeza de que, sob essas condies o princpio da dignidade humana prevalecer contra os princpios colidentes (2015, p. 112) O autor prossegue seu pensamento: [...] necessrio que se pressuponha a existncia de duas normas da dignidade humana: uma regra da dignidade humana e um princpio da dignidade humana. No o princpio que absoluto, mas a regra, a qual, em razo de sua abertura semntica, no necessita de limitao em face de alguma relao de preferncia. O princpio da dignidade pode ser realizado em diferentes medidas. 5 Torres argumenta que Com a mudana do paradigma jurdico e tico trazido pelo Estado Democrtico de Direito, houve profunda modificao na problemtica da dignidade humana: a) j no princpio hierarquicamente superior, pois se abre a ponderao; b) dela se irradiam no s os direitos fundamentais, mas os sociais. De feito. Coube a Alexy chamar a ateno para a necessidade de se colocar a dignidade humana no mesmo conjunto de outros princpios fundamentais e sujeit-la ao jogo da ponderao diante de interesses emergentes, em virtude de sua caracterstica de princpio e regra (TORRES, 2003, p. 14).
24
2.4 Direitos Humanos e a Constituio de 1988
No Brasil o reconhecimento dos direitos humanos, pela adeso e ratificao
aos instrumentos internacionais se deu de forma gradativa, refletindo a situao
poltica do pas em dado momento histrico.
A redemocratizao do Pas na dcada de 1980, bem como com a
Assembleia Constituinte de 1988 marcaram a mudana da trajetria do
reconhecimento dos direitos humanos no ordenamento jurdico brasileiro.
A Constituio de 1988 inaugura uma nova fase de um regime democrtico
de direito no Pas, garantindo os direitos fundamentais e a proteo aos grupos de
vulnerveis, situando-se a Carta de 1988 como o documento mais abrangente e
pormenorizado sobre os direitos humanos jamais adotado no Brasil (PIOVESAN,
2009, p. 24).
O Estado Democrtico de Direito brasileiro adotou como seus fundamentos
a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do
trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo poltico (art. 1, incisos I a V, CF/88), bem
como estabeleceu seus objetivos fundamentais: construir uma sociedade livre, justa
e solidria; garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a
marginalizao e reduzir as desigualdades sociais e regionais, promover o bem de
todos, sem preconceitos de origem, raa, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas
de discriminao (art. 3, incisos I a IV, CF/88), o que demonstra a predisposio do
constituinte em transformar o Pas em uma sociedade plural, onde o respeito e a
promoo dos direitos humanos tm um papel fundamental.
Vale ressaltar que a Constituio fixou entre os princpios que regem o pas
em suas relaes internacionais: prevalncia dos direitos humanos, a
autodeterminao dos povos, a no-interveno e a defesa da paz (artigo 4, incisos
II, III, IV e VI).
Resta evidenciado o carter democrtico da nova carta constitucional do
pas, que preza reconhecimento dos direitos humanos. Pode-se afirmar que a Carta
de 1988, elege o valor da dignidade humana como valor essencial, que lhe d
25
unidade de sentido. Isto , o valor da dignidade informa a ordem constitucional de
1988, imprimindo-lhe uma feio particular6. (PIOVESAN, 2009, p. 28).
A nova ordem poltica iniciada aps a redemocratizao pode ser notada na
adoo e ratificao dos instrumentos internacionais dos direitos humanos, a
exemplo do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Polticos e do Pacto
Internacional dos Direitos Econmicos, Sociais e Culturais, adotados pela ONU em
06.12.1966 e 16.12.1966, respectivamente, que somente foram ratificados pelo
Brasil em 24.01.1992.
Outro ponto relevante a ser mencionado a importncia destinada aos
instrumentos internacionais que reconhecem os direitos humanos, assegurando a
Constituio de 1988 que os direitos e garantias expressos nesta Constituio no
excluem outros decorrentes do regime e dos princpios por ela adotados, ou dos
tratados internacionais em que a Repblica Federativa do Brasil seja parte ( 2, art.
5 da CF/88), havendo posterior incluso pela Emenda Constitucional n. 45 do
seguinte texto: Os tratados e convenes internacionais sobre direitos humanos
que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por
trs quintos dos votos dos respectivos membros, sero equivalentes s emendas
constitucionais ( 3, art. 5 da CF/88)7.
Dessa forma, o que se observa que houve um alargamento dos direitos
humanos reconhecidos pelos Estado brasileiro com reconhecimento dos direitos
previstos nos tratados internacionais ratificados pelo Pas, o que sem dvida um
avano para a promoo dos direitos humanos.
No caso dos direitos humanos que no esto includos no rol dos direitos
fundamentais elencados pelo texto constitucional, merece ser mencionada a posio
do Supremo Tribunal Federal, que fixou entendimento que, tratados e convenes
internacionais esto numa denominada supralegalidade na hierarquia das normas,
estando acima das normas infraconstitucionais, mas abaixo das normas
6 Ainda para Flvia Piovesan: [...] o valor da dignidade da pessoa humana, bem como o valor dos direitos e garantias fundamentais, vm a constituir os princpios constitucionais que incorporam as exigncias de justia e de outros valores ticos, conferindo suporte axiolgico a todo o sistema jurdico brasileiro.Com efeito, a busca do Texto em resguardar o valor da dignidade humana redimensionada, na medida em que, enfaticamente, privilegia a temtica dos direitos fundamentais. (PIOVESAN, 2009, p. 32). 7 Embora exista uma discusso doutrinria acerca da natureza jurdica dos tratados de direitos internacionais no Direito ptrio, esse ponto no ser objeto de estudo do presente trabalho. Sobre o tema Piovesan, Flvia. Direitos Humanos e Direito Constitucional Internacional. 10 edio. So Paulo: Saraiva, 2009.
26
constitucionais, quando no obedecido o que dispe o 3, artigo 5 da Constituio
de 1988. Assim, os tratados internacionais somente tero status de norma
constitucional quando aprovados por cada casa do Congresso Nacional em qurum
qualificado.
Neste sentido firme a posio do STF quando trata da proibio de priso
civil por dvida (exceto em caso de alimentos), nos termos da ratificao do Pacto de
San Jose da Costa Rica8.
Embora existam autores9 que discordem da posio adotada pelo Supremo
Tribunal Federal neste tema, a maior parte dos autores segue o entendimento
esposado.
8 DIREITO PROCESSUAL. HABEAS CORPUS. PRISO CIVIL DO DEPOSITRIO INFIEL. PACTO DE SO JOS DA COSTA RICA. ALTERAO DE ORIENTAO DA JURISPRUDNCIA DO STF. CONCESSO DA ORDEM. 1. A matria em julgamento neste habeas corpus envolve a temtica da (in)admissibilidade da priso civil do depositrio infiel no ordenamento jurdico brasileiro no perodo posterior ao ingresso do Pacto de So Jos da Costa Rica no direito nacional. 2. H o carter especial do Pacto Internacional dos Direitos Civis Polticos (art. 11) e da Conveno Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de San Jos da Costa Rica (art. 7, 7), ratificados, sem reserva, pelo Brasil, no ano de 1992. A esses diplomas internacionais sobre direitos humanos reservado o lugar especfico no ordenamento jurdico, estando abaixo da Constituio, porm acima da legislao interna. O status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil, torna inaplicvel a legislao infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de ratificao. 3. Na atualidade a nica hiptese de priso civil, no Direito brasileiro, a do devedor de alimentos. O art. 5, 2, da Carta Magna, expressamente estabeleceu que os direitos e garantias expressos no caput do mesmo dispositivo no excluem outros decorrentes do regime dos princpios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a Repblica Federativa do Brasil seja parte. O Pacto de So Jos da Costa Rica, entendido como um tratado internacional em matria de direitos humanos, expressamente, s admite, no seu bojo, a possibilidade de priso civil do devedor de alimentos e, consequentemente, no admite mais a possibilidade de priso civil do depositrio infiel. 4. Habeas corpus concedido. (HC 95967, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma, julgado em 11/11/2008, DJe-227 DIVULG 27-11-2008 PUBLIC 28-11-2008 EMENT VOL-02343-02 PP-00407 RTJ VOL-00208-03 PP-01202) 9 Novamente convm citar Flvia Piovesan que entende que corrobora-se o entendimento de que os tratados internacionais ratificados anteriormente ao mencionado pargrafo (3 do art. 5 da CF/88), ou seja, anteriormente Emenda Constitucional n 45/2004, tem hierarquia constitucional, situando-se como normas material e formalmente constitucionais (PIOVESAN, 2009, p. 73). Enquanto os tratados internacionais de proteo dos direitos humanos apresentam status constitucional e aplicao imediata (por foa do art. 5, 1 e 2, da Carta de 1988), os tratados tradicionais apresentam status infraconstitucional e aplicao no imediata (por fora do art. 102, III, b, da Carta de 1988 e da existncia de dispositivo constitucional que lhes assegure aplicao imediata (PIOVESAN, 2009, p. 92).
27
2.5 Os direitos fundamentais
2.5.1 Caractersticas dos Direitos Fundamentais
Para a identificao adequada dos direitos que esto inseridos no conceito
de direitos fundamentais a doutrina elenca algumas caractersticas essenciais para
tais direitos, sendo que as caractersticas relacionadas tambm so aplicveis ao
sistema internacional dos direitos humanos.
A universalidade atribuda aos direitos humanos no uma unanimidade
entre aqueles que se dedicam ao estudo do tema pois, para alguns autores, eles
somente trariam sentido para as sociedades ocidentais. O reconhecimento dos
direitos humanos como universais foi fruto de intenso debate entre as naes que
compunham a Organizao das Naes Unidas poca da assinatura da
Declarao Universal dos Direitos Humanos e continua a ter importncia nos dias
atuais, razo pela qual a tese da universalidade no pode ser afastada.
O entendimento da universalidade desses direitos a posio adotada neste
trabalho, uma vez que se pauta na observncia da dignidade da pessoa humana,
independentemente da concepo particular de dada sociedade,
independentemente de suas particularidades sociais e culturais.
A universalidade dos direitos humanos pautada no art. XXVIII da
Declarao Universal dos Direitos Humanos ao afirmar que todos os homens tm
direito a uma ordem social e internacional, em que todos os direitos e liberdades
estabelecidos na presente Declarao possam ser plenamente realizados. Como
defende Paulo Bonavides:
A vinculao essencial dos direitos fundamentais liberdade e dignidade humana, enquanto valores histricos e filosficos, nos conduzir sem bice ao significado de universalidade inerente a esses direitos como ideal da pessoa humana. A universalidade se manifestou pela vez primeira, qual descoberta do racionalismo francs da Revoluo, por ensejo da celebre declarao dos direitos do homem de 1789. (BONAVIDES, 2007, p. 562).
O pensamento kantiano e o imperativo categrico10, que coloca o indivduo
como um fim em si mesmo, no podendo nenhum ser humano ser usado como
10 O imperativo categrico kantiano possui um carter procedimental. uma frmula para verificao da moralidade de uma ao, que depende da viabilidade de sua universalidade. Segundo Kant, algumas leis moralmente possveis so tambm moralmente necessrias, dando a elas o status de
28
instrumento de outrem para o alcance de uma finalidade, fundamenta a ideia da
dignidade da pessoa humana e a universalidade dos direitos humanos.
A defesa da universalidade dos direitos humanos na teoria kantiana parte da ideia de que as pessoas so iguais em sua dignidade e, como tal, justo que todas as pessoas possam reclamar os mesmos direitos. (HERNANDEZ, 2013, p. 191).11
A universalidade, portanto, reflete a defesa da prpria condio humana de
existncia, que conduz ao reconhecimento da dignidade da pessoa humana como
fundamento dos direitos humanos.
Contudo, Hesse (2009) ressalva que a diversidade das concepes politicas
de cada Estado depende, por exemplo, de fatores extrajurdicos como os
comportamentos sociais, a cultura e histria do povo, o que reflete nas diferentes
formas de garantir os direitos fundamentais, embora exista conformidade em seu
contedo e interpretao, como ocorre no mbito das democracias ocidentais. Para
Hesse toda essa diversidade evidencia que a validade universal dos direitos
fundamentais no supe a uniformidade.
Outra caracterstica comum aos direitos fundamentais a sua historicidade,
isto , so direitos fruto da evoluo das sociedades e de seus anseios polticos e
sociais. No surgiram todos no mesmo momento histrico, evoluindo de acordo com
as mudanas da sociedade, somente fazendo sentido o reconhecimento de
determinados direitos fundamentais num determinado contexto histrico.
A indivisibilidade dos direitos humanos introduzida pela Declarao
Universal dos Direitos Humanos ao conjugar os direitos civis e polticos com os
direitos econmicos, sociais e culturais, inovando ao afirmar a sua igualdade em
importncia e interdependncia (PIOVESAN, 2009).
A inalienabilidade dos direitos fundamentais significa dizer que no podero
ser disponibilizados ou preteridos pelo mero fato do titular do direito consentir, uma
dever. Assim, pode-se afirmar que o imperativo uma regra prtica em virtude da qual uma ao se converte em necessria. (HERNANDEZ, 2013, p. 189). 11 O primeiro ponto indispensvel ao entendimento desta questo a distino entre Direito e Moral em Kant, uma vez que ao distinguir e, simultaneamente, submeter o Direito Moral, Kant faz com que se chegue a um complexo arranjo terico que caracteriza os direitos humanos como direitos morais. Outro ponto importante a questo do imperativo categrico. Ao elaborar uma maneira de verificar a moralidade e a universalidade de uma ao, Kant fornece aos direitos humanos um fundamento, tendo em vista que ao submeter uma ao a tal frmula garante-se a condio de autonomia, a qual conduz ao princpio da dignidade humana, sustentculo da ideia de direitos humanos. (HERNANDEZ, 2013, p. 186).
29
vez que essa caracterstica se fundamenta na dignidade da pessoa humana. Os
direitos fundamentais tambm no so passveis de renncia por parte do indivduo,
em qualquer situao. So, portanto, irrenunciveis.
2.6 Classificao dos Direitos Fundamentais
Diante da multiplicidade de funes de desempenhadas pelos direitos
fundamentais, as classificaes apontadas pela doutrina so importantes para
facilitar a sistematizao do assunto servindo como forma de aclarar a sua
compreenso. Embora existam vrias classificaes dos direitos fundamentais na
doutrina especializada12, neste trabalho apenas ser dada nfase distino entre
os direitos de defesa, normalmente vinculados aos direitos de liberdade, e os direitos
de prestao13, vinculados aos direitos sociais, uma vez que esta abordagem ser
importante para limitar o objeto de estudo.
2.6.1 Direitos fundamentais de defesa
Os direitos fundamentais de defesa se traduzem na obrigatoriedade de
absteno do Estado (leia-se rgos estatais) em prticas que inibem o exerccio de
um conjunto de aes, protegendo o indivduo de qualquer ato abusivo por parte do
Estado. Tais direitos podem ser imediatamente usufrudos pelos titulares,
independentemente de qualquer interveno do poder judicirio, tendo, portanto,
plena eficcia, a exemplo da maioria dos direitos civis e polticos.
A doutrina contempornea sustenta que os direitos de defesa so
verdadeiros direitos assegurados com aplicabilidade imediata e eficcia plena.
A primeira funo dos direitos fundamentais a defesa da pessoa humana e
da sua dignidade perante os poderes do Estado e de outros esquemas polticos
coercitivos, cumprindo a funo de direitos de defesa dos cidados sob uma dupla 12 Podem ser citadas as seguintes classificaes: direitos fundamentais formalmente constitucionais, direitos fundamentais materialmente constitucionais, direitos fundamentais positivos e direitos fundamentais negativos. Deve-se mencionar ainda a teoria geracional desenvolvida por Karel Vasak que divide os direitos fundamentais em direitos de primeira, segunda e terceira gerao. 13 Importante registrar a ressalva feita por Sarlet ao afirmar que h de se levar em conta a circunstncia de que vrias normas definidoras de direitos fundamentais exercem simultaneamente duas ou mais funes, sendo, neste sentido, inevitvel alguma superposio [...]. , de destacar-se, ainda, que a incluso dos direitos fundamentais em um ou outro grupo se baseia no critrio de predominncia do elemento defensivo ou prestacional, j que os direitos de defesa podem, por vezes, assumir uma dimenso prestacional e vice-versa. (SARLET, 2012, p. 166).
30
perspectiva. A primeira se constitui das normas de competncia negativa para
poderes pblicos, proibindo de forma fundamental sua ingerncia na esfera jurdica
individual. A segunda implica o poder de exercer positivamente direitos
fundamentais e de exigir omisses dos poderes pblicos a fim de evitar agresses
lesivas aos jurisdicionados (CANOTILHO, 2003)14.
Alexy (2015) denomina os direitos de defesa como direitos a ao negativa,
sendo composto por trs grupos: direitos a que o Estado no impea ou dificulte
determinadas aes do titular do direito, direitos a que o Estado no afete
determinadas caractersticas ou situaes do titular do direito e ainda direitos a que
o Estado no elimine determinadas posies jurdicas do titular do direito.
Mendes; Coelho e Branco (2009) ressaltam que os direitos de defesa
impedem as interferncias do Estado no mbito de liberdade dos indivduos,
constituindo-se, sob esse prisma, normas de competncia negativa para os poderes
pblicos. Explicam que os direitos de defesa tambm podem proteger os bens
jurdicos, a exemplo do direito vida, contra as aes do Estado que os afetem.
Apresentam ainda como efeito do direito fundamental de defesa a proibio de que o
Estado elimine posies jurdicas concretas, a exemplo da proibio de extino de
direito de propriedade de quem adquiriu de acordo com as normas em vigor.
No direito ptrio, os direitos de defesa esto contidos no art. 5 da
Constituio de 1988, a exemplo do direito de liberdade de expresso artstica,
cientfica e intelectual (inciso IX); o sigilo de comunicaes (inciso XII); a liberdade
de locomoo (inciso XV), bem como a liberdade de associao para fins lcitos
(inciso XVII). Os direitos de defesa so, via de regra, de eficcia plena, isto , podem
ser aplicadas imediatamente, independentemente de norma regulamentadora.
2.6.2 Direitos fundamentais de prestao
Os direitos fundamentais de prestao so aqueles que exigem do Estado
uma prestao positiva que permita o efetivo exerccio dessa parcela dos direitos
fundamentais pelos indivduos, seja jurdica ou material, a fim de permitir o pleno
14 Canotilho defende a existncia de quatro funes dos direitos fundamentais: funo de defesa ou de liberdade, funo de prestao social, funo de proteo perante terceiros e funo de no discriminao.
31
gozo dos direitos. Aqui, enquadra-se uma gama expressiva de direitos sociais que
necessitam da atuao estatal para que alcancem a sua plenitude de exerccio, a
exemplo do direito sade e moradia.
Alexy divide o direito a prestaes em dois grupos: direitos prestacionais em
sentido amplo, que englobam os direitos proteo e direitos organizao e
procedimento, e direitos prestao em sentido estrito.
Tratando acerca dos direitos a prestao em sentido estrito, Alexy sustenta
que esses direitos se referem normalmente a aes positivas fticas, que poderiam
ser realizados por particulares. Entretanto, h direitos prestao que requerem
aes positivas normativas por meio da atuao do Estado para sua normatizao.
Para Alexy (2015, p. 499) os direitos de prestao em sentido estrito so
direitos do indivduo, em face do Estado, a algo que o indivduo, se dispusesse de
meios financeiros suficientes e se houvesse uma oferta suficiente no mercado,
poderia obter de particulares, exemplificando que quando se fala em direitos
fundamentais sociais, como, por exemplo, direito assistncia sade, ao trabalho,
moradia e educao, quer-se primariamente fazer meno a direitos de
prestao em sentido estrito.
Mendes; Coelho e Branco (2009) dividem o direito de prestao15 em direito
prestao jurdica e direitos a prestao material em face da ao do Estado.
Sero direitos prestao jurdica quando os direitos fundamentais esgotem seu
objeto na satisfao de uma prestao pela normao pelo Estado do bem jurdico
protegido como direito fundamental. Essa prestao jurdica pode consistir na
emisso de normas jurdicas penais ou de normas de organizao e procedimento.
(MENDES; COELHO; BRANCO, p. 292).
Os direitos a prestaes materiais so os direitos prestao em sentido
estrito, resultando da concepo social do Estado, concebidos com o propsito de
atenuar as desigualdades de fato da sociedade, visando ensejar que a libertao
das necessidades aproveite ao gozo da liberdade efetiva por um maior nmero de
indivduos (MENDES; COELHO; BRANCO, p. 293).
15 Os autores partem dessa distino de direito a prestao jurdica e a prestao material porque a circunstncia de os direitos a prestao traduzirem-se numa ao positiva do Estado conferem-lhes peculiaridades estruturais, em termos de nveis de densidade normativa, que os distinguem dos direitos de defesa, no somente quanto a finalidade, mas, igualmente, quanto ao seu modo de exerccio e a eficcia. (MENDES; COELHO; BRANCO, 2009, p. 292).
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Os direitos a prestao em sentido estrito16 normalmente carecem de
interveno do legislador para produzir seus efeitos plenos, embora existam
algumas normas constitucionais que contenham direitos a prestao material com
alta densidade normativa, permitindo a imediata exigncia do indivduo a sua
satisfao, independentemente de atuao do legislativo.
Parte dos direitos fundamentais sociais enquadrada no grupo de direitos
de defesa por sua estrutura normativa e funo, no havendo maiores dificuldades
na sua aplicabilidade imediata. Mas, a maior parcela de direitos fundamentais
sociais est includa entre os direitos fundamentais sociais que demandam uma
prestao positiva do Estado, o que inclui a necessidade de sua concretizao
legislativa atravs de normas regulamentadoras para garantia do exerccio pleno
desses direitos.
Diferentemente dos direitos de defesa, os direitos prestao normalmente
carecem de eficcia em caso de ausncia de concretizao legislativa, uma vez que
eles dependem da existncia de recursos pblicos e de condies materiais para a
satisfao objetiva de todas as prestaes relacionadas ao equilbrio material na
distribuio e redistribuio dos recursos pblicos (CALIENDO, 2013).
2.7 Direitos fundamentais sociais
Os direitos fundamentais sociais tiveram reconhecimento mais tardio do que
os direitos de igualdade e de liberdade, que foram o embrio para o reconhecimento
dos direitos fundamentais.
Embora a pauta da constitucionalizao do social remonte o sculo XVIII, a
questo ressurge de maneira vigorosa com as revolues ocorridas no perodo entre
as duas grandes guerras. Esse movimento se estende at a Revoluo Espanhola
de 1931, florescendo a denominao de constitucionalismo social que se refere ao
movimento de incorporao das clusulas programticas de contedo econmico e
social nos textos constitucionais (HERRERA, 2008).
16 Para Mendes, Coelho e Branco os direitos a prestao notabilizam-se por uma decisiva dimenso econmica. So satisfeitos segundo conjunturas econmicas, de acordo com a disponibilidade do momento, na forma prevista pelo legislador infraconstitucional. Diz-se que esses direitos esto submetidos reserva do possvel. So traduzidos em medidas prticas tanto quanto permitam as disponibilidades materiais do Estado (MENDES; COELHO; BRANCO, p. 294.)
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O reconhecimento dos direitos sociais como parcela integrante dos direitos
humanos foi decorrente das lutas encampadas pela classe trabalhadora, que
buscava o amparo estatal para combater a explorao desenfreada do trabalho ps
revoluo industrial, visando melhores condies de vida, de moradia, de trabalho e
outros direitos.
O reconhecimento dos direitos humanos de carter econmico e social foi o principal benefcio que a humanidade recolheu do movimento socialista, iniciado na primeira metade do sculo XIX. O titular desses direitos, com efeito, no o ser humano abstrato, com o qual o capitalismo sempre conviveu maravilhosamente. o conjunto de grupos sociais esmagados pela misria, a doena, a fome e a marginalizao. (COMPARATO, 2013, p. 66).
Os direitos sociais que albergam os direitos econmicos, sociais e culturais,
so, portanto, de formao mais recente remontando Constituio Mexicana de
1917 e Constituio de Weimar de 1919. Sua consagrao marca a superao de
uma perspectiva estritamente liberal, em que passa a considerar o homem para
alm de sua condio individual, impondo aos Estados deveres de prestaes
positivas, visando melhoria da qualidade de vida e promoo da igualdade
material.
No conceito de Jos Afonso da Silva, os direitos sociais
so prestaes positivas estatais, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condies de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualizao de situaes desiguais. Vale como pressuposto de gozo dos direitos individuais na medida em que criam condies materiais mais propicias ao auferimento da igualdade real, o que, por sua vez, proporciona condio mais compatvel com o exerccio efetivo da liberdade (SILVA, 2003, p, 199).
A dignidade da pessoa humana o fundamento primordial para o
reconhecimento dos direitos sociais como direitos humanos (e fundamentais), a
legitimao dos direitos sociais se funda, como j explicitado por Jos Afonso da
Silva, pela busca de uma igualdade material que possa proporcionar melhoria nas
condies de vida do indivduo, permitindo ainda a participao plena na vida
poltica e social do Estado17.
17 Para Alexy: a questo acerca de quais os direitos fundamentais sociais os indivduos tm uma questo de sopesamento entre princpios. De um lado est, sobretudo, o princpio da liberdade ftica. Do outro lado esto os princpios formais da competncia decisria do legislador democraticamente legitimado e o princpio da separao de poderes, alm dos princpios materiais, que dizem respeito sobretudo liberdade jurdica de terceiros, mas tambm a outros direitos fundamentais sociais e a
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Desse modo, os direitos sociais, econmicos e culturais, sejam na sua
condio positiva (direitos de prestao) ou negativa (direitos de defesa), constituem
exigncia e concretizao da dignidade da pessoa humana e da igualdade.
No h dvida que os direitos sociais, econmicos e culturais, na ordem
internacional e nacional, compem a cartela de direitos humanos e so
considerados direitos fundamentais da pessoa humana.
2.8 Os direitos sociais e a Constituio de 1988
O processo de redemocratizao do Pas e a Constituio de 1988 marcam
uma mudana no tratamento dado aos direitos humanos em nvel internacional, uma
vez que a partir deles o Pas ratificou os mais importantes tratados internacionais de
proteo dos direitos humanos, notadamente no mbito dos direitos sociais e
econmicos o Pacto Internacional dos Direitos Econmicos, Sociais e Culturais de
1966, bem como o Protocolo Adicional de San Salvador em 1996 (PIOVESAN,
2010).
Ao lado do reconhecimento dos direitos sociais como direitos fundamentais
no mbito internacional, a Constituio de 1988 estabeleceu um grande avano no
reconhecimento de direitos e garantias fundamentais, albergando os direitos sociais
dentro da cartela dos direitos fundamentais, encontrando-se a maioria dos
dispositivos que tratam da matria dispostos entre os direitos e garantias
fundamentais elencadas no art. 5, bem como materialmente, uma vez que
congregam valores da dignidade da pessoa humana.
Outra caracterstica que assevera o prisma comunitrio do texto
constitucional condiz com o fato de possuir clusulas gerais e conceitos
indeterminados, que implicam o referencial de Constituio aberta, como j dito,
evitando o engessamento de seus preceitos, enfatizando valores sociais, culturais e
ticos da sociedade num determinado contexto histrico (SARMENTO, 2008, p.
566).
Gotti (2012) sustenta que a Constituio de 1988 delineou um regime
jurdico prprio dos direitos fundamentais, norteado por uma principiologia e lgica
interesses coletivos (ALEXY, 2015, p. 512). Pelo modelo de ponderao proposto por Alexy, "o indivduo tem um direito definitivo a prestao quando o princpio da liberdade ftica tem um peso maior que os princpios formais e materiais colidentes, considerados em conjunto. Esse o caso dos direitos mnimos (ALEXY, 2015, p. 517).
35
prprias, diante da clara preocupao em conferir especial proteo s normas
definidoras dos direitos fundamentais.
A observncia, a prtica e a defesa dos direitos sociais, a sua inviolvel contextura formal, premissa indeclinvel de uma construo material slida desses direitos, formam hoje o pressuposto mais importante com o que fazer eficaz a dignidade da pessoa humana nos quadros de uma organizao democrtica da sociedade e do poder (BONAVIDES, 2007, p. 642).
Diz Sarlet (2012) que trs caractersticas atribudas de forma consensual
Constituio de 1988 podem ser estendidas ao ttulo dos direitos fundamentais,
nomeadamente seu carter analtico, seu pluralismo e forte cunho programtico e
dirigente. Diz que seu carter plural advm do seu carter compromissrio, uma vez
que o constituinte optou por acolher e conciliar posies e reivindicaes
discordantes, como resultado das fortes presses polticas.
Para Bonavides (2007), sem a concretizao dos direitos sociais no ser
possvel alcanar uma sociedade livre, justa e solidria, elencada no artigo 3 como
um dos objetivos da Constituio de 1988.
Faz parte da discusso acerca dos direitos fundamentais sociais a questo
da eficcia das normas jurdicas que preveem a sua realizao.
Hesse (2009) coloca que a problemtica que envolve os direitos
fundamentais sociais explicada pela estrutura distinta dos direitos de liberdade e
igualdade, uma vez que tais direitos no se tornam efetivos pelo respeito ou amparo
legal, mas requerem aes do Estado tendentes a realizar o programa neles contido.
Canotilho (2008, p. 100) exemplifica a problemtica relativa aos direitos
sociais, afirmando que paira sobre a dogmtica e sobre a teoria jurdica dos direitos
econmicos, sociais e culturais a carga metodolgica da vagueza, indeterminao e
impressionismo que a teoria da cincia vem apelidando, em termos caricaturais, sob
a designao de fuzzysmo ou metodologia fuzzy. Continua o autor afirmando que
em toda a sua radicalidade, a censura do fuzzysmo, lanada aos juristas significa
basicamente que eles no sabem do que esto a falar quando abordam os
complexos problemas dos direitos econmicos, sociais e culturais (CANOTILHO,
(2008, p. 100).
Parte da doutrina entende que apenas os direitos civis e polticos so
autoaplicveis, enquanto os direitos sociais, econmicos e culturais so
programticos, dependendo de implementao progressiva por parte do Estado,
36
uma vez que somente podero ser postos disposio dos indivduos mediante a
prvia existncia de recursos econmicos.
No caso brasileiro, a Constituio de 1988 atribuiu eficcia imediata s
normas definidoras de direitos fundamentais, conforme dispe o artigo 5, 1
abrangendo todos os direitos fundamentais, dentre os quais direitos sociais,
econmicos e culturais.
Repise-se que no que concerne a nossa carta constitucional, os direitos
sociais so considerados direitos fundamentais, uma vez que formalmente se
encontram dispostos, em sua maioria, entre os direitos e garantias fundamentais
elencadas no art. 5, bem como materialmente, uma vez que congregam valores da
dignidade da pessoa humana.
Embora a disposio constitucional clara no sentido de garantir ampla
efetividade aos direitos sociais, a doutrina divergente acerca do tema, diante da
necessidade de recursos econmicos para efetivao desses direitos, sendo que
parcela da doutrina entende que os direitos socais assumem a feio de normas
programticas, dependentes de polticas pblicas para sua efetivao, rechaando
ainda a possibilidade de interveno do poder judicirio frente violao desses
direitos pelo ente pblico.
Neste ponto Grau (2010), ao defender a aplicabilidade imediata de todas as
normas definidoras dos direitos fundamentais vai mais alm ao afirmar que o Poder
Judicirio o ltimo aplicador do direito e na ausncia de correta aplicao do direito
pela administrao pblica ou pelo poder legislativo, o judicirio poder ser acionado
com a finalidade de aplic-lo. Assim, o preceito imediatamente aplicvel vincula
tambm o judicirio que dever decidir pela imposio de sua pronta efetivao
quando negado o direito pela administrao pblica, pelo legislativo ou pelos
particulares.
O poder judicirio, ento, estar, de uma banda, vinculado pelo dever de conferir efetividade imediata ao preceito. De outra, estar autorizado a inovar no ordenamento jurdico suprindo, em cada cidado que tomar, eventuais lacunas que, no estivesse o preceito dotado de aplicabilidade imediata, atuariam como obstculo a sua exequibilidade. (GRAU, 2010, p. 319).
O Administrador pblico est vinculado Constituio e s normas
constitucionais para implementao das polticas pblicas relativas ordem social
plasmada na Constituio, o que significa dizer que est vinculado a sua finalidade
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que a justia social. O administrador no tem discricionariedade18 para determinar
a convenincia e oportunidade na implementao das polticas pblicas
discriminadas pelo prprio texto constitucional, pois no lhe cabe essa deliberao,
uma vez que j determinada pelo constituinte (FRISCHEISEN, 2000).
Defendendo ponto de vista intermedirio, Sarlet (2012) entende que a
melhor interpretao do artigo 5, 1 da Constituio de 1988, parte da premissa
que se trata de norma de carter principiolgico, sendo uma espcie de mandado de
otimizao que estabelece aos rgos estatais o dever de reconhecerem maior
eficcia aos direitos fundamentais19. O postulado da aplicabilidade imediata no
pode ser resolvido na lgica do tudo ou nada, dependendo o seu alcance do exame
do caso concreto (SARLET, 2012).
Para Sarlet (2012, p. 281 os direitos prestacionais, por menor que seja a
sua densidade normativa ao nvel da Constituio, sempre estaro aptos a gerar um
mnimo de efeitos jurdicos, sendo, na medida dessa aptido, diretamente
aplicveis. Ressalta ainda que inexiste norma Constitucional destituda de eficcia
e aplicabilidade (SARLET, 2012, p. 281).
Canotilho (2008) entende que alguns direitos sociais, econmicos e culturais
no so verdadeiros direitos, mas, apenas, poltica ou economia, sustentando que a
consagrao acoplada de direitos sociais e polticas pblicas sociais pode originar
srias questes no plano de concretizao desses direitos, a exemplo do
reconhecimento do direito ao ensino, acoplado a uma poltica de democratizao do
ensino baseada na gratuidade progressiva do ensino em vrios graus. Dessa forma,
No h dvida que a consagrao concreta de polticas implica um mandato constitucional de otimizao dos direitos, atravs de uma poltica pr-determinada, com a consequente restrio de liberdade conformadora do legislador e a entrada do controle das polticas pblicas no circuito da constitucionalidade (ou inconstitucionalidade). (CANOTILHO, 2008, p. 130).
18 Bandeira de Mello (2000, p. 48), conceitua discricionariedade como: a margem de liberdade que remanesa ao administrador para eleger, segundo critrios consistentes de razoabilidade, um, dentre pelo menos, dois comportamentos cabveis, perante cada caso concreto, a fim de cumprir o dever de adotar a soluo mais adequada satisfao da finalidade legal, quando por forca da fluidez das expresses da lei ou da liberdade conferida no mandamento, dela no possa se extrair objetivamente, uma soluo unvoca para a situao vertente. 19 Jos Afonso da Silva entende que o valor do que dispe o 1 do artigo 5 da CF: Em primeiro lugar, significa que elas so aplicveis at onde possam, at onde as instituies ofeream condies para o seu atendimento. Em segundo lugar, significa que o poder judicirio, sendo invocado a propsito de uma situao concreta nelas garantida, no pode deixa-las de aplic-las, conferindo ao interessado o direito proclamado, segundo as instituies existentes. (SILVA, 2007, p. 165).
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Embora a questo seja controvertida na doutrina, inquestionvel a
importncia da disposio constitucional do art. 5, 1, que garante aos direitos
fundamentais posio de destaque no ordenamento jurdico ptrio, devendo ser
observado tanto pelo poder pblico quanto pelos particulares, com o fim ltimo de
garantia da dignidade da pessoa humana.
Assim, embora haja divergncia doutrinria a respeito da fundamentalidade
dos direitos sociais, faz-se necessria sua salvaguarda pelo Poder Judicirio em
ambas as dimenses (positiva e negativa) com respeito ao princpio da dignidade
humana e satisfao das prestaes vinculadas ao mnimo existencial.
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3 ELEMENTOS TERICOS E FTICOS CONDICIONADORES EFETIVAO DOS DIREITOS SOCIAIS
3.1 O mnimo existencial
Retomando a ideia de dignidade da pessoa humana, inserido no seu
conceito est o que a doutrina denomina de mnimo existencial. A ideia do mnimo
existencial20 tem sido proposta por parte da doutrina como forma de superao de
vrias dificuldades inerentes ao contedo do princpio da dignidade da pessoa
humana, na medida em que procura representar, dentro dos direitos sociais,
econmicos e culturais, um subconjunto menor minimizando o problema dos
custos, mais preciso e que seja efetivamente exigvel do Estado (BARCELLOS,
2007).
Dizendo de outro modo, o mnimo existencial serve de fundamento para a
garantia da dignidade da pessoa humana, com a finalidade de obrigar ao Estado a
prestar uma parcela mnima dos direitos fundamentais sociais em que pese a
alegao de ausncia de recursos pblicos.
A noo de mnimo existencial foi originada na Alemanha em decorrncia da
necessidade de proteo e promoo dos direitos sociais, uma vez que a
Constituio de 1949 limitava a proteger apenas os direitos civis e polticos. Alexy
destaca que a Constituio da Alemanha, embora no trate claramente a proteo
aos direitos sociais, permite identificar pontos de apoio que permitem uma
interpretao no sentido de proteo desses direitos21.
20 Na definio de Ingo Wolfgang Sarlet: todo o conjunto de prestaes materiais indispensveis para assegurar a cada pessoa uma