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POÉTICAS LITERÁRIAS – MODOS E GÉNEROS DO DISCURSO
O MODO LÍRICO
Reteso as cordas desta velha lira,
Tonta viola que de mão em mão
Se afina e desafina, e donde ninguém tira Senão acordes de inquietação.
Chegou a minha vez, e não hesito: Quero ao menos falhar em tom agudo.
Cada som como um grito
Que no seu desespero diga tudo.
E arrepelo a cítara divina.
Agora ou nunca – meu refrão antigo. O destino destina,
Mas o resto é comigo.
MIGUEL TORGA, “Prelúdio”
1. A ORIGEM DA IDEIA DE LÍRICA
No seu “Prólogo” a La Casa de la Presencia, Octavio Paz (1914-1998), o poeta
e ensaísta mexicano, declara que não menos assombrosa que a universalidade da poesia
é a sua antiguidade:
Todas las sociedades han cultivado esta o aquella forma de poesia, de los encantamientos
mágicos a las canciones eróticas, de las plegarias a los himnos funerários, de los cantos que
ritman los trabajos de los labradores a las baladas y poemas narrativos. Cantos en la plaza y en el
templo, en el surco y el taller, en la batalla y en el festín, en el harem y la celda del monje. No
todos los pueblos tienen novelas, tratados de filosofia, dramas o comedias; todos tienen poemas.1
Segundo Paz, a poesia teria começado quando começou a própria fala humana. “En sí
mismo el lenguage es ya metáfora, poesia […]. También desde su nascimiento el
lenguage es rima, aliteración, onomatopeya y, en fin, ritmo.” Neste sentido, a fala tende
naturalmente a transformar-se em poema. A poesia nasce com a linguagem e cada
língua segrega, fatal e espontaneamente, poemas.2
Também na sua obra Roots of Lyric (1978), Andrew Welsh tinha já alertado para
algumas constantes na linguagem da poesia lírica, “some fundamental forms underlying
the figures of imagery and the movements of sound and rhythm […]”. Segundo Welsh,
1 Octavio Paz, Obras Completas I. La Casa de la Presencia. Poesia e Historia, segunda edición, Galaxia Gutenberg,
Círculo de Lectores, 1999, p.13. Esta obra de O. Paz constitui um prodigioso equilíbrio de rigor crítico e de intuição
poética, de reflexão e de paixão. Além de abarcar as diversas culturas e literaturas do mundo, reflecte mais
profundamente sobre os problemas e as interrogações do seu tempo. A obra poética e ensaística de Octavio Paz
pertence ao conjunto dos livros necessários, como diria o próprio. 2 O. Paz, Op. Cit., pp. 13-14.
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Paula Alexandra Guimarães 2
as ‘raízes da lírica’ encontram-se primeiramente corporizadas nos enigmas, sortilégios
ou encantamentos e nos cantos da poesia primitiva e popular.3 Mais tarde, o poeta e
escritor norte-americano Gregory Orr afirmaria também que “[…] lyric poetry appears
to have been written and composed in every ancient or historical culture […]. For all we
can tell, poetry may be almost as ancient as the use of language itself.[…]”4 Referindo-
se aos “Poderes da Poesia”, Orr defende que o ‘encantamento’ (incantation) – uma
fórmula linguística falada ou cantada com o propósito de criar efeitos emocionais
intensos ou produzir resultados mágicos – é a mais primitiva e poderosa forma
linguística. Podemos encontrá-la constantemente nas poesias tribais, embora também
apareça espontaneamente nas expressões sonoras de lamentos e êxtases. Os
‘encantamentos’ associam poder emocional, magia e a repetição encantatória de sons e
frases, indicando que a poesia consiste numa série de efeitos calculados para manipular
uma audiência.5
Na sua brilhante obra sobre a história e a crítica da poesia lírica clássica, W.R.
Johnson interpreta o lírico não tanto como género ou modo mas sobretudo como ideia
quase intemporal.6 Embora as formas da poesia lírica tenham sofrido mudanças nos
tempos modernos, ele acredita que a essência ou substância daquela se manteve
inalterada. E em lugar de se perguntar, à semelhança de T. S. Eliot em “The Three
Voices of Poetry”, se alguma vez houve um género lírico e em que poderia o mesmo
consistir, Johnson prefere saber em que consiste pois vê o lírico como algo de imutável
e de universal.7
Na verdade, este autor parece considerar a reflexão abstracta sobre o problema
do lírico, ou do próprio género, quase uma impossibilidade ou um ideal invisível,
3 Andrew Welsh, Roots of Lyric. Primitive Poetry and Modern Poetics, Princeton, New Jersey, Princeton University
Press, 1978, “Preface”, vii. Nesta obra, o autor analisa as origens da imagem e do pensamento, do som e do ritmo, na
linguagem poética. Os exemplos por ele recolhidos da cultura poética europeia, africana e oriental são abordados de
forma original e reveladora, tentando mostrar que a poética primitiva ou popular conduziu directamente à teoria
contemporânea da poesia. 4 Gregory Orr, Poetry as Survival, Athens and London, The University of Georgia Press, 2002, “Introduction”
(Everywhere and Always), p. 2. Orr acrescenta: “[…] in China, the collection known in the West as The Book of
Songs or The Book of Odes was also transmitted orally for several centuries before being written down almost 2,500
years ago. […] Archaeologists in Egypt have discovered four collections of love poetry compiled during the New
Kingdom period 3,300 years ago.” 5 Orr, Op. Cit., pp. 106-107. A tese de Orr baseia-se no poder transcendental da lírica de índole pessoal, na sua
capacidade de fortalecer e restaurar os sujeitos traumatizados pelas circunstâncias da vida; é, em suma, uma defesa da
grande utilidade da poesia no mundo actual. 6 Walter Ralph Johnson, The Idea of Lyric. Lyric Modes in Ancient and Modern Poetry, Berkeley, Los Angeles,
London, University of California Press, 1982. 7 Johnson, Ibidem, p. 2. Citação do autor no original: “Have these transformations of lyric form advanced to such a
point that the substance of lyric itself has been transformed utterly, even annihilated? […] I regard this genre as
immutable and universal. […] its substance abides.” Segundo Eliot, a antiga lírica pronominal teria sido ultrapassada
pelo que ele designa como “meditative verse”, produzido pelo poeta da primeira voz (“first-voice poet”) – aquele que
exprime os seus próprios pensamentos e sentimentos a si mesmo, ou a ninguém em particular.
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preferindo recorrer a dados mais concretos, isto é, ao observável e enumerável. O
método de Johnson consiste em procurar as formas pronominais mais usadas pelos
poetas representantes de um certo período ou de uma mudança crucial no tratamento do
lírico.8 São três as categorias de que se serve para examinar os pronomes líricos: a
primeira corresponde ao ‘poema Eu-Tu’ (“the I-You poem”), no qual o poeta dirige ou
finge dirigir os seus pensamentos e os seus sentimentos a outra pessoa, uma metáfora ou
um mediador simbólico entre o poeta e cada um dos seus leitores – correspondendo à
forma clássica do ‘solo lírico’ ou lírica monódica; a segunda categoria é o chamado
poema meditativo, no qual o poeta se dirige a si mesmo ou a ninguém em particular e,
por vezes, a entidades inanimadas ou abstractas (meros mediadores); a terceira e última
categoria é o poema em forma de diálogo, monólogo dramático, ou poema narrativo, no
qual o poeta desaparece por completo e se limita a apresentar uma voz ou vozes ou,
ainda, uma história sem nelas intervir directamente.9
Johnson afirma que o modo provavelmente mais usual na lírica grega, e
certamente mais usual na lírica latina, era dirigir o poema (na grega, a canção) a outra
pessoa ou a outras pessoas. Esta forma implica a presença do ‘cantor’ diante da sua
audiência, a sua ‘re-criação’ de emoções universais num contexto específico, uma
história comprimida e estilizada e, finalmente, a partilha destas emoções. Segundo ele,
em Roma (e quando a lírica já não era cantada mas apenas escrita), esta intimidade
musical, este padrão pronominal retórico, esta dialéctica de Eu e Tu, este discurso lírico,
permaneceram como formas mais típicas de uma poesia que ‘re-criava’ emoções
comuns – mas complexas – em ficções particulares, “tornando visíveis os ritmos
invisíveis da personalidade”.10
Para Johnson, foi em parte graças a Catulo, e sobretudo a Horácio, que esta
típica e antiga forma lírica chegou até nós na sua perfeição literária.11 Quando Pierre de
Ronsard e Ben Jonson iniciaram as suas ‘re-criações’ da lírica, foi a esta ‘re-criação’
latina que eles inevitavelmente recorreram, na precisa e espectacular ocasião de
florescimento lírico em que a canção medieval europeia se une à lírica literária clássica.
8 Johnson, Op. Cit., p. 2. 9 Id. Ibid., pp. 2-3. Referindo-se a esta última categoria, Johnson afirma que “such a poem is sometimes lyric,
sometimes not, depending on what the poet is trying to do.” (p. 3) 10 Id. Ibid., pp. 4-5. Johnson descreve este fenómeno da seguinte forma: […] suddenly, in the lyric story, at its
essential, dramatic moment, emotions and thoughts are organized in lyrical discourse and find in metaphors – […]
intelligible re-creations, visible patterns for the inner tempests and stillnesses […]” (p.5). 11 Na sua abordagem da lírica Latina, Johnson realça a figura de Catulo como inovadora e representativa de um
momento de viragem: não apenas porque a poesia de Catulo fez das frivolidades do dia-a-dia tema digno de
tratamento lírico, mas sobretudo pela centralidade conferida à figura do poeta (incluindo sentimentos de alienação e
vulnerabilidade).
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A canção medieval teria surgido provavelmente da mesma forma (ou melhor, no mesmo
lugar: a taberna) que a própria lírica grega ou que qualquer outro tipo de lírica mais
popular ou primitiva.12 De qualquer forma, o padrão pronominal prevalecente ter-se-ia
mantido aproximadamente até ao século XVII, embora a lírica literária mostrasse já
alguns sinais de uma lenta alteração (visível, por exemplo, em Henry Vaughan) que
continuou de forma imperceptível até ao século XX (culminando, nomeadamente, em T.
S. Eliot). 13
Segundo Johnson, esta alteração corporizou-se num tipo de verso
assumidamente meditativo, quer no sentido de Eliot quer no da chamada “greater
romantic lyric”, tal como Meyer Howard Abrams a definiu.14 O poeta como que se
desloca (ou é deslocado) do mundo natural circundante, onde algo prendeu a sua
atenção e que ele descreve a si próprio, para uma visão profundamente privada da
natureza onde ele se vê reflectido, avaliado e, por vezes, transformado. Neste tipo de
poesia, o papel da audiência é pouco relevante ou mesmo nulo. O poeta agora fala
consigo mesmo ou com ninguém e dispensa não só a história mas também os pronomes
de segunda pessoa. Quer as causas deste surgimento residam numa nova sensibilidade
puritana, quer na fragmentação da sociedade e consequente alienação do poeta, quer na
afirmação do individualismo secular, quer na própria revolução de Gutenberg, a verdade
é que a lírica meditativa depressa se afirma como a forma dominante. Depois de um
período de quase dormência durante o século XVIII, seria Jean-Jacques Rousseau a
testemunhar filosoficamente a sua supremacia e poetas românticos como Wordsworth,
Coleridge, Goethe, Lamartine e Leopardi a conferir-lhe brilhantes triunfos.15
Desde então, a forma meditativa tem-se também modificado de diversas
maneiras, cujos aspectos comuns incluem o isolamento, a auto-suficiência do eu lírico e
o desaparecimento virtual do Tu lírico ou da segunda pessoa. No entender de Johnson,
este último fenómeno teve efeitos negativos na lírica europeia, embora alguns autores
(como Keats, Mallarmé ou Baudelaire) tivessem sentido a velha urgência retórica ou
12 “And where did medieval song come from? No one seems to know; […] If one can hazard a guess […] medieval
song will have begun in the same place that Greek lyric began, in what Sir Thomas Browne calls ‘that vulgar and
Taverne Musick …’”. Id. Ibid., pp. 5-6. 13 Id.Ibid. 14 M. H. Abrams, “Structure and Style in the Greater Romantic Lyric”, From Sensibility to Romanticism, ed.
Frederick Hilles e Harold Bloom, Oxford, Oxford University Press,1965, pp. 527-60. 15 Johnson, Op. Cit., pp. 6-7. Nas suas próprias palavras: “[…] the ‘greater romantic lyric’ becomes the dominant
form in modern lyric.” E mais adiante: “[…] an emblem of what this shift from the I-You pronominal form to the
meditative form means and does to lyric poetry is the fate of The Prelude as Wordsworth continued to work at it
throughout his life.” (p. 7)
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necessidade discursiva de forma relativamente poderosa.16 Os seus poemas fazem já
prever ou antecipar a crescente impessoalidade que caracterizaria o modo típico da lírica
moderna e que afectaria a poesia de todas as nações ocidentais e a poesia de todas as
escolas poéticas. De facto, este crítico detecta já em Stéphane Mallarmé a inutilidade, a
irrealidade da própria identidade (do homem, do poeta, de todos).17 O mito do artista
romântico como um ser banido ou exilado dá origem nos finais do século XIX a esta
nova postura. Também nos poemas de outros poetas contemporâneos, nomeadamente
em Emily Dickinson e Gerard Manley Hopkins, é possível detectar esta identidade
problemática, fragmentada e assustadora.18
Mais tarde, torna-se cada vez mais improvável encontrar um verdadeiro e
autêntico eu lírico, falando-se mesmo de um Verlorenes Ich ou de um “Lost I”
(Gottfried Benn). A poesia torna-se essencialmente pura, absoluta e não-pronominal.
Para Johnson, esta desintegração da forma pronominal acarreta consigo a desintegração
do conteúdo emocional, já que forma e conteúdo são interdependentes na lírica.19 A
essência da poesia passa a residir unicamente na imagem (uma derivação da doutrina da
ut pictura poesis), dando origem ao imagismo, ao objectivismo e ao neo-surrealismo e,
consequentemente, a uma poesia totalmente não-retórica mas também desapaixonada.20
Embora alguns poetas (entre eles, William Butler Yeats) tenham conseguido escapar a
esta impessoalidade, nomeadamente através da criação de uma audiência fictícia para os
seus poemas, a lírica moderna tende a estar desprovida não só dos seus cantores mas
também dos seus ouvintes. Sylvia Plath enfrentou esta questão ao ‘organizar’ a
desintegração da sua personalidade como poeta, imaginando quer a forma quer o
sentido da dissolução do eu lírico.21 Mas, para Johnson, a retórica, e particularmente a
forma pronominal, continuaria a ser essencial à sobrevivência da lírica.22
16 “But the loss of the lyric You had consequences that Eliot and his allies have not reckoned with. When the lyric
You vanished from the centrality it had shared with the lyric I, something peculiar began to happen both to the lyric I
and to the content of its private meditations.” Mas Johnson acrescenta que em Keats e Baudelaire “we sense the old
rhetorical urgency; in these two poets the sense of the I is extremely strong, and the sense of the need for discourse is
extremely powerful.”(p. 8) 17 Johnson explica: “This is a kind of tortured gnosticism, a litany of impotence, futility, isolation, despair” (p.9). 18 Id. Ibid., pp. 9-12. Johnson elucida, “[…] the fact of identity becomes problematic, frightening, and there is nothing
to connect with, to relate to, no escape.” (p. 11). 19 “[…] the lyric I grew first ashamed and bewildered, then terrified, by the idea of saying I, forgot how to say You,
systematically unlearned emotions and their correlatives and their stories.” (p. 15). 20 Segundo Johnson, “[…] the image, most particularly in lyric, has enjoyed a secure and necessary centrality, for
lyric poetry is about the world as we see it.” (p.13). 21 “Plath, better than any poet, understood the death of lyric. The isolations, the futilities, the suffocations […] she
was able to represent it flawlessly, unforgettably” (p. 21). 22 Id. Ibid., pp. 12-23. “[…] the purely literary lyric […] remains an essentially unsatisfactory genre. The absence of a
real audience and the failure of performance engender an anxiety, […] a sense of the poet’s irrelevance, impotence,
and unreality […]” (p. 16).
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Na sua abordagem à lírica grega, onde pretende encontrar a originária noção de
‘lírica’, Johnson refere o carácter profundamente lacunar e fragmentário da mesma e,
consequentemente, a sua grande inacessibilidade. Esta dificuldade de análise é
exacerbada pelas diferenças técnicas existentes entre a poesia grega e a poesia moderna.
Enquanto que o nosso sentido poético se limita fundamentalmente à página impressa, a
ideia da poesia aliada à música e desempenhada perante uma audiência era natural para
os gregos.23 Mas, na lírica grega, a música existia unicamente para realçar as palavras;
melodia, ritmo, voz, dança, lira ou oboé, conjugavam-se para reforçar e enfatizar sílabas
e clarificar termos, resultando num desempenho inteligível. A palavra era aumentada,
iluminada e destacada pela música e, por vezes, pela própria dança coreografada (por
exemplo, na lírica coral), em que o poeta tinha de adaptar os seus ritmos aos
movimentos do coro.24 Outro aspecto que poderá surpreender o leitor moderno é que a
lírica grega não parece dar tanto relevo ao elemento expressivo como ao elemento
discursivo. Johnson argumenta, a propósito, que os fragmentos gregos mostram muito
mais uma “situação discursiva” (falante, discurso, ouvinte) semelhante à obtida na
oratória (nomeadamente na que foi definida por Aristóteles) do que uma efusão
sentimental do poeta-falante. O papel do poeta é indicar à sua audiência que paixões
devem ser acolhidas e que paixões devem ser rejeitadas, através de um propósito
educativo. A ênfase recai, deste modo, sobre o discurso e o ouvinte e não tanto sobre o
falante.25
Por detrás de cada poema lírico, existe (para Johnson) uma história, por vezes
apenas esboçada, que explica o momento presente do discurso e que explica os estados
de espírito presentes do ‘cantor’ e a sua necessidade ou opção de os cantar. A poesia
grega não é, por isso, uma mera Gefühlpoesie (“poesia de sentimento”) ou Erlebnislyric
(“poesia de experiência”) porque insiste sobretudo nas universalidades e naquele
indispensável triângulo discursivo. Por outro lado, também não é uma poesia absoluta:
porque é supremamente retórica, não pode nunca omitir o Eu lírico ou mesmo as
paixões que este partilha, ou comunica, com o Tu lírico. Segundo Johnson, esta ideia
23 Johnson cita A. M. Dale: “What music does to words, in any language, is to define the length of each syllable, to
impose a precise quantitative scheme.” (p. 26) Ele acrescenta que a lírica grega partilha este uso da música com
outras líricas, “many other bodies of high lyric poetry (Hebrew, Chinese, Provençal) even into the Renaissance, […]”
(p. 28). 24 Johnson afirma que mesmo neste género lírico ‘híbrido’ que o drama reclamou para si, todos os outros elementos
da actuação existiam em função de, e para, a palavra cantada. “[…] it was the sung word for which all other parts of
the performance existed and which they served.” (p. 28) 25 Id. Ibid., pp. 24-31. “By focusing on what he has to say, on why he is saying it, and on the person for whom […] he
is saying it […] by discoursing, describing, deliberating, he [the poet] becomes himself.” (p. 31)
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grega unifica aquilo que foi dividido na moderna consciência lírica: isto é, associa
Erlebnis (“vivência”) no seu grau mais intenso a arte no seu mais puro. Imaginar a
personalidade – e não exprimi-la – para poder imaginar as emoções humanas como elas
são ou podem ser, real e idealmente, é a função da poesia lírica. Para este crítico, é no
cerne da lírica grega, e nos seus inícios com Arquíloco (VII a.C.), que está a imaginação
da personalidade (ethopoeia).26 A poesia fragmentária daquele poeta reflecte um
carácter poético vigoroso e intenso nas suas afirmações pessoais e públicas através das
situações discursivas que apresenta.
Ao analisar os fragmentos poéticos de Safo (de Lesbos), Johnson encontra uma
ênfase e uma mestria semelhantes na ethopoeia, isto é, nos modos de construção e
apresentação da personalidade poética. No entanto, Safo traz à poesia uma nova
subtileza de observação que não voltaria a ser facilmente encontrada. Uma delicadeza
de contemplação, aliada a uma forma musical e à natural auto-afirmação da lírica grega,
resulta na perfeição lírica. Na análise do fragmento poético mais famoso de Safo,
Johnson detecta uma combinação de profundidade de sentimento e de poder intelectual
(só comparável aos sonetos de Shakespeare); trata-se de um poema dentro de outro
poema, uma canção de amor privada apresentada através de uma argumentação pública;
a forte paixão e o individualismo radical são controlados através da compressão lírica e
da precisão retórica. Neste sentido, e para este crítico, o padrão e o modelo ou protótipo
da lírica monódica foram estabelecidos por Safo.27
Na sua obra, Johnson oferece ainda uma definição aproximativa daquilo que,
segundo ele, caracteriza a poesia lírica de qualidade:
What distinguishes the lyric poet from people who are not lyric poets is perhaps, in part,
his extreme sensitivity to emotions; but more important here is his ability to arrange his
perceptions of emotion into clear patterns by means of precise language. […] the lyric
poet performs two very different functions simultaneously: he particularizes a universal
emotion such as all men share […] and at the same time, he universalizes an experience
that is or was peculiarly his […]. It is this delicate yet powerful fusion of the individual
and the universal that characterizes good lyric poetry.28
26 Johnson acrescenta aqui mais um termo à terminologia usada por Ezra Pound na sua famosa tríade de “tipos de
poesia”, e que ele considera incompleta: phanopoeia (image making”), melopoiia (“music making”) e logopoeia
(“word making”; “style making”). O que parece faltar à teoria da poesia de Pound é o carácter (ethos) do falante. 27 Johnson, Op.Cit., pp. 38-49. Segundo os eruditos alexandrinos, havia um cânone de nove poetas líricos, que
viveram entre a primeira metade do século VII e a primeira metade do Século V a.C.: Álcman, Alceu, Safo,
Estesícoro, Íbico, Anacreonte, Simônides, Baquíledes e Píndaro. 28 Johnson, Op. Cit., pp. 32-33.
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2. O MODO LÍRICO – SUA EVOLUÇÃO E CARACTERIZAÇÃO
Octavio Paz afirma que ‘criação poética’ e ‘reflexão poética’ são vasos
comunicantes e muitas vezes necessários ao poeta. 29 Para ele, cada poema implica, de
modo implícito ou explícito, uma poética, que por sua vez se resolve numa visão
filosófica ou religiosa. Não considera, assim, aventurado inferir que a retórica e a
poética nasceram quase ao mesmo tempo que os cantos e os poemas.30
No hay civilización que no posea un cuerpo poético formado por poemas y por un
conjunto de reglas para componer esos poemas. Esas reglas no son simples recetas sino
que exponen también una filosofia o una teologia. La Antigüedad grecoromana es muy
rica en ejemplos, de Pláton y Aristóteles a Cicerón y al autor del Tratado de lo Sublime.
La retórica incluye siempre una poética y esta una filosofía.31
É no livro III da A República que Platão (o filósofo ateniense nascido circa 428
a.C.) se refere a três distintas modalidades discursivas usadas pelo poeta: a simples
narrativa, a imitação ou mimese e a modalidade mista (a associação das duas
anteriores). A primeira acontece quando “é o próprio poeta que fala e não tenta voltar o
nosso pensamento para outro lado […]”; a segunda verifica-se quando o poeta fala
“como se fosse outra pessoa”; e a terceira ocorre quando o poeta mistura a simples
narrativa com a imitação. Subsequentemente, Platão faz corresponder estas três
modalidades do discurso poético a três distintas espécies literárias (contendo vários
géneros): a “narração pelo próprio poeta – é nos ditirambos que pode encontrar-se de
preferência”; na “espécie que é toda de imitação” encontra-se a “tragédia e a comédia”;
e a que é “constituída por ambas” usa-se “na composição da epopeia e de muitos outros
géneros […]”.32 Nesta tripartição, como afirma Aguiar e Silva, não fica muito claro o
estatuto da poesia lírica, quer do ponto de vista conceptual quer do ponto de vista
terminológico.33 No entanto, esta falta de clareza não significa que, como alguns críticos
têm vindo a afirmar, Platão tenha deliberadamente excluído a lírica do seu sistema.34
29 La Casa de la Presencia, Op. Cit., p. 13. Paz acredita que “En Occidente el ejemplo mayor – al menos hasta la
época moderna – de esta fusión entre el génio poético y la potencia reflexiva es Dante.” (p. 16) 30 Id. Ibid., p. 18. 31 Id. Ibid., p. 15. Octávio Paz afirma também que a tradição oriental não é menos abundante em obras de poética,
nomeadamente entre os árabes e os persas e ainda na Índia, na China e no Japão. 32 Cf. Platão, A República, 392d, 394c. Introdução, tradução e notas de Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa,
Fundação Calouste Gulbenkian, 1976. 33 Cf. Aguiar e Silva, Teoria da Literatura, 6ª edição, volume I, Coimbra, Livraria Almedina, 1984, p. 341. 34 É o caso, nomeadamente, de Gérard Genette na sua obra Introduction à l’Architexte (Paris, Éditions du Seuil, 1979,
p.15). No livro X de A República, Platão passaria a considerar toda a poesia, e ainda toda a arte, como imitação.
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Pelo contrário, ele vê o ditirambo – uma das variedades da lírica coral grega – como a
concretização preferencial da narrativa simples ou pura.35
A concepção estética aristotélica subsequente iria alargar o conceito de mimese
(ou imitação), de forma a incluir todas as espécies literárias e artísticas. A mimese
enquanto imitação dos caracteres (ethe), das paixões (pathe) e das acções (praxeis) dos
homens, passa assim a constituir o princípio unificador subjacente a todos os textos
poéticos. Os únicos princípios diferenciadores diriam respeito aos meios utilizados
(ritmo, canto, verso), aos objectos de que se ocupa (superiores, inferiores ou
semelhantes à média humana) e aos modos segundo se realiza ou se processa a
imitação.36 Este último seria o princípio diferenciador mais importante de todos.
Quando, na sua Poética, Aristóteles (384-322 a.C.) se refere aos modos
distintos de mimese (ou de imitação) poética, ele contrapõe unicamente o modo
narrativo ou imitação narrativa ao modo dramático ou imitação dramática (“todos os
imitados como operantes e actuantes”).37 No entanto, no modo narrativo ele distinguiria
dois submodos: no primeiro, o poeta pode narrar através de uma personagem,
convertendo-se “até certo ponto em outro” (o caso de Homero); no segundo modo, o
poeta pode narrar por si mesmo e sem mudar (a sua voz). Aristóteles considera o
primeiro caso válido e louvável, mas censura o segundo como sendo próprio de maus
poetas (“Pessoalmente, com efeito, o poeta deve dizer muito poucas coisas; pois, ao
fazer isto, não é imitador”).38 Deste modo, e segundo a lógica aristotélica, quando o
enunciador do texto se identifica continuamente com a pessoa do autor não existe
imitação e, sem esta, não há poesia. Como afirma Aguiar e Silva, a Poética de
Aristóteles “é refractária ao reconhecimento da lírica como uma modalidade da poesia
equiparável à poesia narrativa e à poesia dramática.”39
A tradição da poética aristotélica daria origem de forma mais destacada à arte
poética do poeta latino Quintus Horatius Flaccus (65 -8 a. C.). A Epistola ad Pisones ou
Ars poetica de Horácio, além de conter importantes reflexões e preceitos teóricos, iria
desempenhar ao longo da Idade Média, e principalmente do Renascimento ao
35 O ditirambo é um poema destinado a celebrar o vinho, os prazeres da mesa, o prazer em geral, a alegria. Era
originalmente dedicado a Dionísio ou Baco e supunha acompanhamento instrumental e um coro (ditirambo
dionisíaco ou canto báquico). 36 Cf. Aguiar e Silva, Op. Cit., p. 343. 37 Cf. Aristóteles, Poética 1459b. Tradução e Comentários de Eudoro de Sousa, Clássicos de Filosofia, 4ª edição,
Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1994. 38 Cf. Ibid. 1459b. 39 Cf. Aguiar e Silva, Op.Cit., p. 345. A. e Silva sublinha ainda que o sistema e a lógica profunda da poética
aristotélica não prevê aquela divisão triádica.
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neoclassicismo, uma função determinante na fixação de regras formais (sobretudo a de
unidade de tom). Embora sendo ele um poeta lírico, e fazendo referência a diversos
tipos de composições líricas (hinos, encómios e epinícios, poemas eróticos e escólios),
não se predispõe na sua obra a caracterizar e delimitar de forma adequada a lírica como
categoria genérica.40 Como bem salientou Aguiar e Silva, “O princípio de que toda a
poesia se fundava na mimese, ou na representação imitativa, da natureza bloqueava a
possibilidade de uma adequada compreensão, no plano da teoria literária, da poesia
lírica.”41
A inclusão da lírica no sistema dos géneros literários (ao lado do drama e da
narrativa), fruto de uma modificação progressiva e algo imperceptível, dar-se-ia no
Renascimento e, em particular, com a poesia lírica de Petrarca e dos poetas
petrarquistas. Ocupando esta “um lugar cimeiro na escala de valores estéticos do
público leitor”, como explica Aguiar e Silva, “tornava-se imperioso aos críticos e
teorizadores literários, superando os limites e as ambiguidades das poéticas greco-
latinas, fundamentar e caracterizar adequadamente a existência do género lírico.”42 Mas,
tal como em outras épocas anteriores, existia ainda um grande desequilíbrio entre a
maturidade e a complexidade da prática poética e as imprecisões e ambiguidades da
teoria da lírica. Neste sentido, a poética implícita que defluía dos modelos líricos
(nomeadamente, Petrarca) servia de compensação às insuficiências da metalinguagem
literária. Durante o início do século XVII, o espanhol Francisco Cascales, alegadamente
um dos primeiros teorizadores a incluir o lírico como género, define-o do ponto de vista
técnico-formal (“El lýrico casi siempre habla en modo exegemático, pues haze su
imitación hablando él próprio, […]”), mas também do ponto de vista semântico
(“Imitación de qualquier cosa que se proponga, […]”).43 Casales admite já a
possibilidade de certa classe de textos literários imitar um conceito e não apenas uma
acção.
As profundas modificações ocorridas no domínio das ideias estéticas durante o
século XVIII iriam afectar profunda e irreversivelmente a coerência da teoria clássica
40 Sobre este problema, ver António Garcia Berrio, Formación de la teoria literária moderna. La tópica horaciana en
España, Madrid, Cupsa Editorial, 1977, p. 94. Citado em A. e Silva, p. 348, n. 23. 41 Cf. Aguiar e Silva, Id. Ibid. 42 Id. Ibid., p. 351. Foi o caso de S. Minturno, na sua arte Poética de 1564, um dos primeiros a sugerir uma definição
da lírica como modo singular de imitação poética. 43 Cf. Francisco Cascales, Tablas poéticas. Édicion Benito Brancaforte. Madrid, Espasa-Calpe, 1975, p.40. Citado em
A. e Silva, p. 352.
O MODO LÍRICO
Paula Alexandra Guimarães 11
dos géneros.44 O movimento pré-romântico alemão (conhecido como Sturm und Drang)
foi dos primeiros a pôr em evidência a individualidade absoluta e a autonomia radical
de cada obra literária. Em particular, a estética do génio (primeiramente formulada e
difundida por Diderot) concebeu a criação poética como “irrupção irreprimível da
interioridade profunda do poeta”, por isso mesmo uma “actividade alheia e refractária a
modelos e a regras”.45 Apesar de tudo, a tripartição dos géneros literários estabelecida
por Platão seria retomada pelos teóricos românticos. Por exemplo, Friedrich Schlegel,
em fragmentos datados de 1797 e 1799, é mais consistente na caracterização ontológica
da lírica como uma forma subjectiva do que na diferenciação entre o drama e a épica
(alternando as designações ‘objectiva’ e ‘subjecto-objectiva’). 46 Por seu lado, August
Wilhelm Schlegel, que também identifica a lírica com a subjectividade extrema,
caracteriza as manifestações poéticas do espírito humano de forma essencialmente
dialéctica: a épica como a tese, a lírica como a antítese e o drama como a síntese.47
Friedrich Schelling, pelo contrário, vê a lírica como “género primitivo e fundamentante
de todos os outros.” – o género primigénio. A lírica, como género mais particular e
finito, seria “dominada pela subjectividade do poeta”.48 Uma outra abordagem bastante
influente foi a de Jean Paul que, em Vorschule der Ästhetic (1813), estabeleceu uma
correlação dos géneros com o factor tempo: a Epopeia representaria o passado, o Drama
o futuro e a Lírica o presente.49 Desde Hegel a Jakobson, passando por Emil Staiger,
que o género lírico é associado essencialmente ao tempo presente. Apesar destas
distinções, os autores românticos fizeram a apologia da miscigenação, isto é,
“defenderam e justificaram doutrinariamente e praticaram amiúde a mescla dos géneros
literários.”50 Foi o caso de Alexandre Herculano (1810-1877), que classificou o seu
Eurico, o presbítero como “crónica-poema, lenda ou o que quer que seja” (Prefácio).
Segundo Hegel, na sua Estética, “o que forma o conteúdo da poesia lírica […] é
o sujeito individual e […] as situações e os objectos particulares, assim como a maneira
44 Poetas e teóricos começaram, de facto, a negar o carácter imutável dos géneros e a advogar a sua historicidade e
variabilidade no tempo e no espaço. Esta atitude materializou-se na criação de novas formas literárias ao longo do
século XVIII. 45 Cf. Aguiar e Silva, Op. Cit., pp. 359-360. 46 Sobre Friedrich Schlegel e a problemática dos géneros, ver Peter Szondi, Poética dell’idealismo tedesco, Torino,
Einaudi, 1974. Ver sobretudo o estudo intitulado “La teoria dei generi poetici in Friedrich Schlegel”. Citado em A. e
Silva, p. 360. 47 Cf. René Wellek, “Genre theory, the lyric, and Erlebnis”, Discriminations: Further Concepts Of Criticism, New
Haven – London, Yale University Press, 1970, pp. 241-243. 48 Cf. Aguiar e Silva, Op. Cit., p. 362 e n. 52. 49 Id. Ibid., p. 363. 50 Id. Ibid., p. 363-364.
O MODO LÍRICO
Paula Alexandra Guimarães 12
segundo a qual a alma […] toma consciência de si própria […]”.51 Na tradição do
idealismo e do historicismo germânicos, encontramos depois a obra de Emil Staiger,
Grundbegriffe der Poetik (1946), onde este autor caracteriza o lírico como recordação,
o épico como observação e o dramático como expectativa. Staiger situa ainda a lírica na
esfera do emocional e na idade da infância, asseverando que a “brevidade é a
característica essencial do lírico”.52 Mais tarde, Northrop Frye em Anatomy of Criticism
(1957), caracterizaria o género lírico através do ocultamento e da separação do poeta em
relação aos seus leitores, já que o poeta lírico pretende em geral falar consigo mesmo ou
com um interlocutor específico (a musa, um deus, um amigo, um amante, um objecto da
natureza, etc.).53A caracterização dos géneros literários proposta por Jakobson, herdeiro
do formalismo russo, baseia-se na função da linguagem dominante ou subdominante:
assim, o género lírico faz actuar não só a função poética dominante mas sobretudo a
função expressiva ou emotiva pois está orientado para a primeira pessoa.54 Mas Paul
Hernadi e Gérard Genette seriam os primeiros a distinguir os modos literários
originados pela utilização das diversas perspectivas do discurso.55 O modo lírico, tal
como o modo narrativo e o modo dramático, representaria ao nível da forma da
expressão uma possibilidade ou virtualidade transtemporal da enunciação e do
discurso.56
Apesar de tudo, e como salienta Aguiar e Silva, o texto lírico partilha com os
outros textos (narrativo e dramático) o mesmo policódigo literário, nomeadamente: um
código fónico-rítmico (a substância sonora e a forma rítmica da expressão possibilita,
por exemplo, a musicalidade subtil e difusa do verso simbolista ou o ritmo da prosa
oratória barroca), um código métrico (que regula a organização peculiar aos textos
poéticos no que concerne a constituição, a combinação e o agrupamento dos versos em
estrofes), um código estilístico (que “regula a organização das microestruturas formais
51 Cf. G. W. F. Hegel, Esthétique, Paris, Éditions Montaigne, 1944, t. III, 2. Partie, p. 167. Citado em A. e Silva, pp.
362-363. 52 Cf. Emil Staiger, Conceptos Fundamentales de Poética, Madrid, Ediciones Rialp, 1966, p. 213. 53 Cf. Northrop Frye, Anatomy of Criticism, New York, Atheneum, 1966, pp. 249-250. “The radical of presentation in
the lyric is the hypothetical form of what in religion is called the ‘I-Thou’ relationship. The poet, so to speak, turns
his back on his listeners, though he may speak for them, and though they may repeat some of his words after him”. 54 A função emotiva visa “uma expressão directa da atitude do sujeito em relação àquilo de que fala. Tende a dar a
impressão de uma certa emoção, verdadeira ou fingida.” Cf. Roman Jakobson, Essais de linguistique générale, Paris,
Éditions de Minuit, 1963, pp. 214 e 219. 55 Ver Paul Hernadi, Beyond Genre. New Directions in Literary Classification, Ithaca – London, Cornell University
Press, 1972 e Gérard Genette, Introduction à l’Architexte, Paris, Éditions du Seuil, 1979. Hernardi distingue não só
os modos lírico, narrativo e dramático, mas também o modo ‘temático’ (manifestado nos adágios e nos dramas
alegóricos, entre outros). Genette combina a análise histórica e teorética no seu estudo intitulado “Genres, ‘types’,
modes” (1977). 56 Cf. Aguiar e Silva, Op. Cit., p. 389.
O MODO LÍRICO
Paula Alexandra Guimarães 13
do conteúdo e da expressão […] mediante normas opcionais”), um código técnico-
compositivo (que orienta e ordena as macroestruturas formais constitutivas do poema
épico ou da tragédia, formas da narrativa, etc.) e um código semântico-pragmático (que
“entra em correlação com os códigos religiosos, míticos, éticos e ideológicos actuantes
num determinado espaço geográfico e social e num determinado tempo histórico”).57
Segundo Aguiar e Silva, na abordagem que faz do texto lírico, a poesia lírica
“enraíza-se […] na revelação e no aprofundamento do eu lírico – […], tendendo sempre
esta revelação a identificar-se com a revelação do homem e do ser […]”.58 O eu do
autor textual de um poema lírico tem, deste modo, uma relação de implicação com o eu
do autor empírico mais acentuada; esta não equivale necessariamente a uma relação de
total identificação entre ambos, como defende Käte Hamburger.59 Por outro lado, o
mundo exterior “constitui um elemento semântico-pragmático do texto lírico somente
enquanto se projecta na interioridade do poeta, enquanto se transmuda, […] em
revelação íntima e ao mesmo tempo cósmica.”60 Para Aguiar e Silva, os elementos
narrativos por vezes presentes funcionam como meros pretextos para que o poeta revele
a paisagem íntima do eu lírico. Do mesmo modo, os elementos descritivos só são
liricamente válidos se forem usados como “suporte do universo simbólico do poema”; a
descrição de um lugar, de uma paisagem física, geralmente evoca o estado de alma do
poeta.61
Aguiar e Silva salienta ainda o carácter estático do modo lírico, em oposição ao
carácter dinâmico do modo narrativo e do modo dramático. Para ele, “o fluir da
temporalidade […] é alheio ao universo lírico: o poeta como que se imobiliza, enquanto
instância do discurso, sobre uma ideia, uma emoção, uma sensação, etc. […]”62 Por esta
razão, no texto lírico não existe em regra uma história para contar. Esta característica
não narrativa e não discursivista acentuou-se durante o Movimento Simbolista, que
defendeu sobretudo “uma estética da sugestão”, em que a sintaxe se dissolve e a poesia
57 Cf. Aguiar e Silva, Op. Cit., pp. 101-107. Embora afirme que “a estrutura profunda do texto é de natureza
semântica”, Aguiar e Silva reconhece que “não é possível estabelecer uma rígida linha divisória entre os factores
semânticos e os factores pragmáticos, tanto no plano paradigmático como no plano sintagmático.” 58 Id. Ibid., p. 583. 59 De facto, para Hamburger, o poema lírico é uma afirmação real decorrente de uma experiência vivida (Erlebnis) e
também ligada de forma existencial a um falante empírico, não a um sujeito imaginário ou ficcional. Cf. Käte
Hamburger, The Logic of Literature, Bloomington, London, Indiana University Press, 1973, pp. 276-278. René
Wellek faz uma análise extremamente crítica da concepção do modo lírico exposta por Hamburger, no seu ensaio
“Genre theory, the lyric, and Erlebnis” (Discriminations, pp. 225-252). 60 Cf. Aguiar e Silva, Op. Cit., p. 584. 61 Id. Ibid., pp. 584-586. 62 Aguiar e Silva ressalva, no entanto, que o tempo “como problema metafísico e existencial, como factor de
mudança, erosão e aniquilamento dos seres e das coisas” constitui um tema obsessivamente constante na lírica
ocidental. Id. Ibid., p. 586.
O MODO LÍRICO
Paula Alexandra Guimarães 14
lírica tende para a alusão e para a música. Com o advento do surrealismo, o poeta
esforçou-se por abolir os elos de ligação entre as palavras, recorrendo com frequência à
imagem, nomeadamente à imagem “profundamente redutora do discurso”. Por fim, o
concretismo levou este reducionismo até à exaustão, centrando-se na “reificação da
palavra” e no aproveitamento do espaço da página como estrutura e finalidade do
poema.63
No respeitante à forma da expressão, o modo lírico manifesta-se
predominantemente nos textos em poesia (stricto sensu), muito embora alguns textos em
prosa também possam ser considerados líricos, como bem adverte Aguiar e Silva.64
Para ele, o texto poético particulariza-se pelo facto de nele “se actualizarem normas e
convenções reguladas pelo código métrico e pela interdependência […] com o código
fónico-rítmico.” O elemento distintivo do texto poético seria, assim, o verso; mas este é
também o elemento necessário da forma de expressão do texto lírico. Aguiar e Silva
discrimina e descreve alguns dos múltiplos “processos de semiotização” que o verso
desencadeia no texto lírico:
a) o ritmo, isto é, a repetição regular de certos fenómenos fonéticos (numa
sucessão e numa combinação de semelhanças e de contrastes), resultando
essencialmente do esquema de acentos (ictos), do número de sílabas ou da combinação
de pés longos e breves;
b) o verso lírico está tão estreitamente associado aos caracteres fonológicos e
morfo-sintácticos de uma determinada língua natural que se torna quase impossível
fazer uma transcodificação linguística do poema;
c) os tipografismos ou a disposição gráfica (nomeadamente, tipográfica)
desempenha uma função semiótica fulcral no texto lírico, funcionando como marcas
externas da “poeticidade” e suscitando uma determinada expectativa de leitura;
d) a simbiose quase exclusiva da língua escrita e da língua falada no texto lírico
aproxima-o quer da música quer da pintura, pelos seus signos materiais;
e) embora pela complexidade das suas relações intertextuais o texto lírico possa
ser considerado eminentemente dialógico, pela sua unicidade de linguagem e de
63 Id. Ibid., pp. 588-589. 64 É o caso de alguns subgéneros híbridos como o poema em prosa (prevalecente na literatura romântica e pós-
romântica), o romance lírico, a narrativa poética (frequente no modernismo, sobretudo em André Gide e em Virgínia
Woolf) e o drama lírico (mais comum no Fin de siècle). Id. Ibid., p. 590, n. 64.
O MODO LÍRICO
Paula Alexandra Guimarães 15
perspectiva, e ainda estranheza face ao discurso dos “outros”, ele é intrinsecamente
monológico.65
Ao contrário desta ênfase formal, e na sua qualidade de poeta, Octavio Paz
parece encarar o poema como uma estrutura ao mesmo tempo mais contraditória e mais
abrangente:
El poema […] es un mundo completo em sí mismo, arquetípico, que ya no es pasado ni
futuro sino presente. Y esta virtud de ser ya para siempre presente, por obra de la cual el
poema se escapa de la sucesión y de la historia, lo ata más inexorablemente a la
historia.66
3. A LÍRICA E SUAS FORMAS OU SUB-GÉNEROS67
True ease in writing comes from art, not chance,
As those move easiest who have learned to dance.
‘Tis not enough no harshness gives offense,
The sound must seem an echo to the sense.
ALEXANDER POPE, An Essay on Criticism, ll. 362-365
Poema: ideograma de um mundo que busca su sentido, su orientación, no en un punto
fijo sino en la rotación de los puntos y en la movilidad de los signos.
OCTAVIO PAZ, “El Arco y la Lira”
A palavra lírica deriva de ‘lira’ (do Grego lyra), instrumento que servia para
criar uma atmosfera apropriada à transmissão da poesia: os poetas e os coros gregos
recitavam e cantavam as suas composições ao som desse instrumento. A poesia lírica
era, assim, entendida como um ‘esquema estrófico’ sujeito ao ritmo imposto pela
música e pela dança. Durante a época alexandrina, e em Roma, deixou de ser cantada e
dançada para ser lida (foi o caso de poetas latinos como Horácio, Catulo ou Tíbulo). A
poesia voltaria a ser cantada durante a Idade Média trovadoresca (séculos XI a XIV),
acompanhada por vários instrumentos, tal como o alaúde, a guitarra, a flauta, o saltério
ou a viola. No decorrer do século XV, a poesia passou a ser recitada, abandonando a
instrumentação e o canto. Seria somente no século XIX que românticos e simbolistas
65 Esta é, pelo menos, a opinião de Mikhaïl Bakhtine (Esthétique et Théorie du Roman, Paris, Gallimard, 1978, p.
118). Cf. Aguiar e Silva, Op. Cit., pp. 591-596. 66 O. Paz, Op. Cit., “El Arco y la Lira”, pp. 233-234. 67 As diferenças entre as diversas formas poéticas só se justificam dentro da retórica tradicional, pois modernamente
estas formas (sobretudo as fixas) reduziram-se a objectos de museu. Algumas delas desapareceram por completo: foi
o caso da epopeia, que cedeu o lugar ao romance.
O MODO LÍRICO
Paula Alexandra Guimarães 16
desenvolveriam uma preocupação pela melopéia – a conciliação entre a poesia e a
música lírica.68
Apesar destas e de outras mutações, a poesia lírica permaneceu essencialmente a
mesma (ao contrário da poesia épica). Segundo Massaud Moisés, “a lírica constitui uma
primeira e primária categoria estética”, isto porque “a introjeção do poeta só lhe permite
conhecer e esquadrinhar as primeiras camadas interiores” e porque o poeta lírico
“trabalha com sentimentos e emoções quase à flor da pele, em razão de seu peculiar
narcisismo.”69 Na perspectiva de Moisés, todo o poeta começa por ser lírico e quando
persevera em ver liricamente o mundo é porque não ultrapassou as dúvidas ou o
‘espanto’ do começo.70 A primeira característica do lírico seria a ambiguidade: “a
metáfora representa, distorce o conteúdo”, tornando-o ou revelando-o ambíguo. Além
do mais, o recurso à metáfora – que ostenta vários sentidos ao mesmo tempo – “dilui as
cargas significantes ao limite do esvaziamento total”, que por sua vez “conduz a uma
rarefacção semelhante à da nota musical.”71
As formas líricas (ou subgéneros líricos) são extremamente numerosas,
adaptadas a cada fim e conteúdo e “observando certo esquematismo de cadência, rima,
cesura, estrofação, etc., de modo que a cada tipo de comportamento lírico corresponde
determinada forma expressiva.”72 Por outro lado, como afirma M. Moisés, a anarquia
operada nos géneros, espécies e formas literárias acabou naturalmente por atingir em
cheio a poesia lírica. Ao formalismo clássico, dominante grosso modo até fins do século
XVIII, sucedeu o conhecido à-vontade do liberalismo romântico. De tal modo que, hoje,
“é crença generalizada que qualquer forma serve, contanto que por meio dela o artista
alcance transmitir-se e dialogar com o leitor.”73
Se um grande número de formas líricas foram sendo esquecidas pelo desuso e
pela sua inadequação aos tempos modernos, outras houve que resistiram, persistiram ou
até floresceram. Por outro lado, fórmulas arcaicas voltaram à luz do dia, como
68 Cf. Massaud Moisés, A Criação Literária. Poesia [1967], 10ª edição revista , São Paulo, Editora Cultrix, 1987, p.
230. 69 M. Moisés Op. Cit., pp.233-234. “Dessas circunstâncias resulta uma manifestação artística […] de curto alcance e
fugaz duração […] as obras que escreve somente o representam como indivíduo; quando não, tenderia a tornar-se
poeta épico.” 70 Id. Ibid., p. 235. “O poeta lírico mantém-se ‘fixado’ nesse estágio e encara o mundo emocional e sentimentalmente,
isto é, como adolescente. De onde, o impulso lírico estaria na raiz de qualquer ato estético, em especial do ato
poético.” 71 Id. Ibid., p. 236. 72 Id. Ibid., p. 258. 73 Cf. M. Moisés, Op. Cit., pp. 258-259. “Herdeiros do Romantismo, aceitamos que não há pressupostos de espécie
alguma e que toda solução se torna válida pelo resultado que determina: cada poema é uma experiência nova e única,
e como tal deve ser analisado.”
O MODO LÍRICO
Paula Alexandra Guimarães 17
aconteceu com o Parnasianismo que, com o seu culto da forma, recuperou momentânea
e artificiosamente formas já enterradas (o rondel, o triolet, o pantum, a terza-rima, a
sextina, a oitava, a décima, a vilanela, a quadrinha, o vilancete, a balada, a lira, a
écloga, o romance, a elegia, o ditirambo, o salmo, etc.). Algumas destas retornam
ocasionalmente nos séculos XIX e XX; é o caso da quadrinha (quatro versos concisos e
ligeiros, traduzindo a condensação do pensamento poético), que foi usada por Fernando
Pessoa nas suas Quadras ao Gosto Popular (1965); mas também da balada (três oitavas
e um quarteto, com um estribilho no final de cada estrofe) e do romance (uma narração
singela, de cariz popular, sobre um assunto “terno e tocante”), que foi usado por
Almeida Garrett no seu Romanceiro (1843 e 1850).74 No século XX, como afirma M.
Moisés, “a arritmia domina em toda a sua extensão; o poema livre (sem rima, estrofação
irregular, assimétrico), ganha a praça e as consciências”. De facto, e segundo este autor,
o poema como que se liberta, procurando a reportagem, a linguagem coloquial, anti-
retórica e o despojamento; chega a assemelhar-se à prosa versificada pelo seu
andamento caótico, frenético e desestruturado.75
Na sua influente obra sobre a lírica simbolista e modernista, Die Struktur der
Modernen Lyrik (1956), Hugo Friedrich afirma que a lírica contemporânea está feita de
dissonâncias e de anormalidade, e que esse facto se reflectiu na estrutura do poema:
El poema aspira a ser una entidad que se baste a sí misma, cuyo significado irradie en
varias direcciones y cuya constitución sea un tejido de tensiones, de fuerzas absolutas,
que actuén por sugestión sobre capas prerracionales, pero que pongan también en
vibración las más secretas regiones de lo conceptual.76
A tensão dissonante do poema moderno seria manifestada também em outros sentidos:
por exemplo, o misticismo e o ocultismo surgiriam em contraste com um agudo
intelectualismo, a aparente simplicidade da linguagem com a obscuridade do conteúdo,
a precisão com o absurdo, etc.77 Todavia, esse niilismo ou anarquia não chegou a
destruir algumas formas poéticas de existência mais remota, como é o caso da ode, do
soneto, da canção e da balada. As razões da resistência ou do sucesso destas quatro
formas não são verdadeiramente conhecidas; mas poderão tratar-se de “achados
estéticos realizados com tal felicidade que acabam sendo verdadeiros protótipos.”78
74 Cf. Moisés, Op. Cit., pp. 260-263. 75 Id. Ibid., pp. 263-264. 76 H. Friedrich, La Estructura de la Lírica Moderna (De Baudelaire hasta nuestros dias), trad. de Joan Petit,
Barcelona, Seix Barral, 1974, p. 22. 77 Id. Ibid. 78 M. Moisés, Op. Cit., p. 264.
O MODO LÍRICO
Paula Alexandra Guimarães 18
No início (século VI a. C.), a ode consistia num canto monódico, executado pelo
próprio poeta, acompanhado de um instrumento de cordas, a lira (ou análogos). O verso
utilizado chamava-se sáfico (assim como a estrofe, sáfica) porque quem primeiro fez
uso dele foi Safo (a poetisa grega) e depois Alceu e Anacreonte; a ode girava em torno
do amor e dos prazeres da mesa, principalmente o vinho. Com o aparecimento do
lirismo coral entre os gregos, desenvolveu-se uma série de poemas do tipo laudatório,
filiados à vida heróica e, em lugar da lira põe-se a flauta. Instauram-se ideias épicas,
oratórias ou dramáticas e a ode passa a ter uma estrutura definida (estrofe, antístrofe e
épode), enfatizando a subida e a descida do poder emocional e pressupondo movimento
dançado por parte do coro. Píndaro (séculos VI-V a.C.) seria o representante máximo da
ode triunfal (pindárica). Na época romana, seria Horácio (século I a.C.) a fazer mais uso
da ode nas suas Carmina, mas este poeta prefere a monocórdica. Ao despoja-la do
aparato musical e dramático, torna-a objecto não de recitação mas de leitura individual,
instilando-lhe assuntos pessoais, biográficos ou intimistas, expressos em estâncias
regulares de quatro versos.79
A ode só retornaria à circulação com o classicismo renascentista (século VI),
sendo difundida em Itália e depois por toda a Europa e permanecendo como imitação de
Píndaro, Safo e Horácio até ao final do século XVIII.80 Quanto ao assunto, as odes
podiam subdividir-se em heróicas ou pindáricas, filosóficas ou sáficas e amorosas ou
báquicas. Mas desde o século XVI que, em Portugal, poetas como Camões, Sá de
Miranda, Bocage e a Marquesa de Alorna cultivaram a ode, que evoluiu de modo
semelhante ao resto da Europa – isto é, na direcção de uma estrutura mais livre e
irregular.81 Segundo M. Moisés, a ode continua presente nos nossos dias, mas nem
sempre os poetas a consideram como tal, “dando-lhe por vezes títulos que escamoteiam
a verdadeira filiação” (detectável na estrutura, no tom e no conteúdo poético), como é o
caso de “The Waste Land” de T. S. Eliot.82 Vários poetas modernos portugueses têm
feito uso da ode, tal como Fernando Pessoa, José Régio e Miguel Torga. Nos dias que
79 Os versos podem ser “rimados ou não, com o esquema aa bb no primeiro caso. Os dois primeiros versos de cada
estância são um ou dois pés mais longos do que os dois últimos, e o pé dominante é o jâmbico.” Cf. Lawrence John
Zillman, The Art and Craft of Poetry. An Introduction, New York, Collier Books, 1967, p. 83. 80 Na França, destacam-se Ronsard (cinco livros de Odes) e Malherbe; na Inglaterra, Ben Johnson, John Milton, entre
outros; na Itália, Trissino e Minturno; e na Alemanha, Weckherlin e Opitz. 81 Por exemplo, na Inglaterra, o poeta Abraham Cowley tinha adaptado o esquema pindárico de forma livre
(Pindarique Odes, 1656), abolindo a tripartição primitiva e introduzindo modificações na rima e no metro. E, em
França, Boileau comenta sobre aquela irregularidade em L’Art Poétique (1674): “Son style impétueux souvent
marche au hasard: / Chez elle un beau désordre est un effet de l’art.” (canto II, vv. 71-72). 82 M. Moisés, Op. Cit., p. 268.
O MODO LÍRICO
Paula Alexandra Guimarães 19
correm, “a ode propicia ao poeta o meio de fundir num só corpo, numa estrutura
isométrica e libertária, a visão épica da existência e os impulsos profundos da
individualidade.”83
O soneto foi inventado durante a Idade Média, no século XIII, provavelmente
pelo poeta siciliano Giacomo da Lentino, na corte de Frederico II em Palermo, inspirado
pelo trovadorismo provençal.84 Etimologicamente, a palavra “soneto” deriva do
provençal sonet, diminutivo de son, significando “a letra de uma pequena melodia”. A
origem seria uma canção popular, o estrambotto (do provençal estribot), composta de
duas quadras, às quais o seu criador teria acrescentado um duplo refrão de três versos.
Desse modo, conseguiram-se duas quadras e dois tercetos, num total de catorze versos,
geralmente decassílabos, com uma disposição de rimas variável. Foi Dante Alighieri o
primeiro grande poeta a compor nesta forma, seguido de perto por Petrarca, que aliás
conferiu ao soneto uma estrutura definida e lhe insuflou um conteúdo lírico. Desde o
século XVI, quando começa a sua grande divulgação fora da Itália, que o soneto tem
estado sempre em posição de relevo. A sua longevidade poderá dever-se às suas
características peculiares, nomeadamente a sua extensão breve, exigindo “a
concentração e a economia de meios típica das obras completas e perfeitas”.85
Em Portugal, o soneto entrou pela mão de Sá de Miranda, após o regresso da sua
viagem à Itália em 1527. O soneto português quinhentista segue as regras dos seus
modelos italianos: a composição acaba em beleza por um verso que encerra um
pensamento elevado numa cadência sem defeito. Camões foi sem dúvida o maior
sonetista em vernáculo de todos os tempos, pela sua irresistível vocação lírica aliada a
uma facilidade incontestável de feitura. Mas muitos outros poetas cultivaram o soneto:
Diogo Bernardes, António Ferreira, Pêro Andrade de Caminha, etc. Nos séculos
seguintes, a sua presença mantém-se; típicos do século XVIII são os sonetos filosóficos
e os libertinos, cultivados tanto por árcades como por dissidentes, e sobretudo por
Bocage (estes destinados sobretudo a deslumbrar o ouvido através de uma dicção
83 Id. Ibid., pp. 269-270. 84 Cf. Ernest Hatch Wilkins, The Invention of the Sonnet and Other Studies in Italian Literature, Roma, Edizioni di
Storia e Letteratura, 1959. 85 Já Boileau, na sua L’Art Poétique de 1674, afirma que “Un sonnet sans défaut vaut seul un long poème” (canto II,
v.94). M. Moisés, Op. Cit., p. 274.
O MODO LÍRICO
Paula Alexandra Guimarães 20
sumptuosa). António Nobre, Camilo Pessanha, Eugénio de Castro, Antero de Quental,
Florbela Espanca, seriam outros famosos adeptos.86
No século XX, “não obstante a actividade literária se processar sobre o signo da
revolta e da indignação social ou mítica”, o soneto persiste.87 Talvez se possa afirmar
que o ressurgimento do soneto na modernidade venha duma resposta ao caos e ao
extremado liberalismo vigentes, em busca de um necessário retorno ao equilíbrio
perdido. Uma série de poetas modernos escreveu em vernáculo alguns dos melhores
sonetos de toda a língua portuguesa: Fernando Pessoa, José Régio, Miguel Torga,
Carlos Drummond de Andrade e tantos outros. A forma tem sofrido numerosas
adaptações e transformações, incluindo mudança na ordem das estrofes, variações no
esquema das rimas e no metro; por exemplo, no Modernismo é comum o soneto de
versos brancos.88 Vale a pena referir a transformação sofrida pelo soneto na Inglaterra
nos séculos XVI e XVII, sobretudo nas mãos de William Shakespeare e de John Milton.
O chamado ‘soneto shakespeariano’ mudou o esquema original da forma petrarquista a
tal ponto que esta ficou irreconhecível: passaria a ser composto de três quadras (cada
uma com duas rimas em disposição alternada) e uma parelha (com rimas próprias).89
Evoluindo no decurso dos séculos, o soneto foi ganhando outros conteúdos que não
propriamente líricos ou confessionais; uma vez por outra, encontram-se sonetos
descritivos, satíricos, épicos ou humorísticos.90
A canção é um poema de fundo lírico e geralmente de forma culta, cuja palavra
deriva do latim cantione. Há, na verdade, “dois tipos de poema abrangidos por este
rótulo: a canção popular, vizinha do folclore e da música, […] e a canção erudita,
dotada de autor próprio e obediente a moldes cultos e relativamente definidos.”91 Esta
última abrange, por sua vez, três géneros literários diferentes: a canção provençal, a
canção italiana ou clássica, e a canção romântica. A primeira está representada entre nós
86 “Desde o Renascimento até à afirmação do Romantismo, o soneto dobrara-se em Portugal a todas as estéticas, e
fora sempre cultivado com assiduidade, se não com fúria. […] Entretanto o velho ídolo posto de parte pela primeira
geração romântica vai reaparecer mais tarde quase intacto, mas sério e pessimista, na obra de Antero. […]”. Cf.
Dicionário de Literatura, direcção de Jacinto do Prado Coelho, 3ª edição, 4º volume, S/L, “Soneto”, Porto,
Figueirinhas, 1985, p. 1042. 87 Moisés, Op. Cit., p. 276. 88 Também acontece os poetas colocarem os tercetos antes das quadras, acrescentarem mais uma estrofe (soneto de
cauda ou estrambote). 89 Por outro lado, o próprio Luís de Camões serviria de exemplar e modelo para sonetistas ingleses mais modernos,
como Elizabeth Barrett Browning (Sonnets from the Portuguese, 1850). 90 Moisés afirma, no entanto, que “[…] esses conteúdos não parecem afinar com a sua estrutura básica, ou a compacta
tradição do soneto lírico impede que o leitor a ele habituado aceite com naturalidade os conteúdos não-líricos.” Op.
Cit., p. 277. 91 Id. Ibid., p. 281.
O MODO LÍRICO
Paula Alexandra Guimarães 21
pelos poemas cultos dos trovadores galego-portugueses. A segunda é uma criação do
Renascimento, e foi cultivada em Portugal desde o século XVI até ao século XVIII. A
terceira consiste num poema lírico e simples, “expressivo quase sempre de um destino
(Canção do Órfão de Junqueiro) ou duma condição (Canção do Exílio de Gonçalves
Dias)”.92
A canção clássica, que inicialmente, tal como a provençal, se destinava
realmente ao canto, obedecia a certos preceitos formais constantes.93 Era composta de
texto e finda ou de introdução, texto e finda. A introdução era às vezes de carácter
geográfico, descrevendo ou indicando o local onde se encontrava o poeta ao escrevê-la;
na finda, mais curta que as estrofes do texto, o poeta personificava o seu poema e
invocava-o directamente; o texto era composto de estrofes regulares (com o mesmo
número de versos) e longas e a mesma simetria de rimas. O metro obrigatório era o
heróico clássico, alternando geralmente com o quebrado correspondente (seis sílabas).
Os primeiros poetas italianos que manipularam o novo molde foram Dante e Petrarca;
este último, com o seu Canzioniere, contribuiu para a sua disseminação durante o
Renascimento. A canção portuguesa quinhentista era sempre amorosa, mas a do século
XVII foi muitas vezes heróica e moral, ao contrário da do século XVIII que retomou os
temas de amor.94
Com o Romantismo, a canção perdeu a rigidez anterior, preservando a
musicalidade e a singeleza dorida, e ainda persiste nos nossos dias, se bem que mudada.
Alinham-se entre os seus cultores os seguintes poetas: Jacques Prévert, António
Machado, Frederico Garcia Lorca, Rafael Alberti, Pablo Neruda, Eugénio de Andrade,
José Régio, António Botto, Fernando Pessoa, Olavo Bilac, Cecília Meireles, entre
outros. Como afirma M. Moisés, embora o amor constitua “o assunto dileto da canção”,
ela pode “abrigar temas guerreiros, patrióticos e mesmo humorísticos ou satíricos, e
religiosos ou morais.”95 É na canção que a poesia lírica encontra o seu meio expressivo
ideal, a ponto de se tornar “a forma liricamente mais pura”.96
92 “[…] pela sua musicalidade e singeleza, […] esta canção romântica pode ser atribuída a entidades como o Vento, o
Mar, e traduzir então, graças à interpretação do poeta, o que diriam, exprimindo a sua natureza, esses seres
inanimados.” Cf. Dicionário de Literatura, Op. Cit., volume 1, A/E, “Canção”, p. 140. 93 Segundo M. Moisés, “[…] a cansó provençal, adaptando-se ao clima itálico e sofrendo naturais transformações, vai
gerar a canzone, matriz da canção erudita cultivada doravante.” Op. Cit., p. 282. 94 Dicionário de Literatura, Op. Cit., pp. 140-141. 95 Id. Ibid., p. 283. 96 Cf. Emil Staiger, Conceptos Fundamentales de Poética, trad. Espanhola, Madrid [1966], pp. 89 e 94.
O MODO LÍRICO
Paula Alexandra Guimarães 22
O vocábulo “balada” deriva do Francês arcaico ballade, remontando ao Baixo
Latim ballare, sinónimo de “dançar”. A significação literária do termo surgiu no século
XIII com o poeta Adam de la Halle. Sob aquela designação, incluem-se duas formas
líricas convergentes mas também diferentes. A primeira pode ser encontrada tanto nos
países do Leste como do Oeste da Europa, sendo de extracção folclórica, popular ou
tradicional. Além de ser uma das mais primitivas expressões poéticas da Humanidade,
trata-se de um cantar de feição narrativa, que gira em torno de um episódio apenas,
contendo um assunto melancólico, histórico, fantástico ou sobrenatural. Este tipo de
balada possui uma estrutura dramática e dialogada, em que “a fabulação é presentificada
ao leitor” e em que “o autor se omite para que na sua voz ecoem as expectativas e os
valores do seu povo.”97 Além de ser uma obra literária anónima, a sua transmissão oral
alterava continuamente o texto primitivo. Tendo surgido inicialmente entre os povos de
fala germânica, na Idade Média, somente no século XVIII, sob o impacto da poesia pré-
romântica, é que a ballad chamou a atenção dos letrados.98
Depois de descoberto o rico filão da poesia tradicional, a balada começou a
exercer uma influência considerável sobre o lirismo romântico. Muitos poetas do século
XIX, entre os quais Robert Burns, Southey, Walter Scott, Schiller, Goethe, Heine, Vítor
Hugo, procuraram reproduzir o ingénuo contorno pré-literário, a espontaneidade
intrínseca e a liberdade formal da balada. E Portugal não escapou à moda: entre 1843 e
1850, Almeida Garrett trouxe a lume o Romanceiro, com todo o manancial da poesia
popular portuguesa remontando à Idade Média. Por seu lado, entre 1828 e 1851, A.
Durán lançava em Espanha o Romancero General. Estes títulos advêm do termo
português “romance” e do espanhol “rimance”, que equivalia na Idade Média à balada
popular. Segundo L. Zillman, “a balada é na verdade uma forma literária mista, pois
reúne elementos de poesia dramática e lírica bem como da narrativa […] pode ser
descrita como uma breve canção-história […] e via de regra sugere mais que explora
largas porções de enredo.”99
O segundo tipo de balada, de origem francesa (ballade) e de circulação erudita,
parece apresentar uma forma fixa e tende a subdividir-se em dois subtipos: a balada
97 M. Moisés, Op. Cit., p. 286. 98 Em 1765, Bishop Percy publicou as Reliques of Ancient English Poetry, a primeira compilação do género. E um
século mais tarde, entre 1882 e 1898, Frances James Child dedicou-se à recolha completa da tradição lírica, que
resultou numa colectânea de 305 baladas intitulada The English and Scottish Popular Ballads. 99 “O processo dramático de pergunta-resposta, ou diálogo, é sempre utilizado para desenvolver a fabulação, e a
chave do seu desenlace frequentemente se adia até próximo do fim”. Cf. Lawrence John Zillman, The Art and Craft
of Poetry, Op. Cit., p. 129.
O MODO LÍRICO
Paula Alexandra Guimarães 23
primitiva, desenvolvida no século XIV graças a Philipe de Vitry, mas estabelecida por
Guillaume de Machaut e cultivada por Eustache Deschamps e Jean Froissart,
distribuindo-se em três estrofes de oito versos com rima ababbccb100; e a balada
propriamente dita, que alcançou o apogeu no século XV com François Villon, Christine
de Pisan e Charles d’Orléans e se compunha de três estrofes de oito ou dez versos,
seguidas de um envoi, com esquema rimático ababbcbc ou ababbccdcd.101 Ao longo
dos séculos XVI e XVII, a balada entrou em desuso, mas no final do século XIX, com o
Decadentismo, renasceu na poesia de Austin Dobson, Andrew Lang, W. E. Henley e
Théodore de Banville. Depois de Garrett, em Portugal observa-se a presença da balada
segundo o modelo saxónico, ou numa estrutura livre, na obra de Soares de Passos, Júlio
Brandão, Augusto Gil e José Gomes Ferreira.
4. ALGUMAS TEORIAS SOBRE A LÍRICA E O LÍRICO
[…] É um duro ofício, o de poeta. Começa por ser uma vocação irreprimível e acaba por ser uma
penitência assumida. A fatalidade e a voluntariedade inexoravelmente conjugadas no mesmo
destino carismático e aziago que só encontra sentido na fidelidade com que se cumpre. O risco
supremo de enfrentar eternamente os juízos do futuro aceite como graça suprema. As imagens de
um zagal bucolicamente deitado a uma sombra a soltar melodias da avena ou a de um menestrel vagabundo a levar de castelo em castelo os frutos espontâneos da sua inspiração coadunam-se mal
com a impiedosa lucidez dos nossos dias, em que o cantor – quando se sente obrigado a prolongar
a voz mediúmnica de que é herdeiro – morre crucificado no próprio canto, a afeiçoá-lo até à exaustão, consciente de que nele que se salva ou se perde e de que tem de o erguer imponderável
como uma miragem e sólido como uma fortaleza. Cada verso de tal forma acabado que esgote no
seu rigor todas as alternativas da expressão. A vivência a comunicar formulada de uma vez para sempre, numa linguagem ao mesmo tempo tributária e original, transparente e críptica, que diga
esperança quando nomeia o desespero e nimbe os esplendores do profano dum halo sagrado. […]
MIGUEL TORGA, Prefácio a Antologia Poética
A lírica é uma noção que dificilmente se pode considerar unívoca e que tem
sofrido ao longo do tempo modificações muito notáveis. Trata-se, em suma, de uma
prática histórica mas que não se pode circunscrever a um contexto nacional ou de época
e que não pode entender-se à margem da reflexão teórica e metapoética. Segundo
Aseguinolaza, a lírica entende-se melhor como tipo de discurso centrado essencialmente
em torno de uma determinação enunciativa do que como género num sentido
100 Conforme ensinam as Règles de la Seconde Rhétorique, de autor anónimo, publicadas entre 1411 e 1432. 101 De origem provençal, o envoi consiste de meia estrofe, de quatro a cinco versos, que finaliza a balada (a quem o
trovador envia ou dedica o poema). Também chamado “ofertório” em Português, corresponde à fiinda, que
funcionava como fecho às cantigas galaico-portuguesas.
O MODO LÍRICO
Paula Alexandra Guimarães 24
tradicional.102 Mesmo assim, existe a tentação de diferenciar à partida duas grandes
correntes explicativas do fenómeno lírico; por um lado, a que destaca a atitude básica do
enunciador no texto lírico (defendida, nomeadamente, por R. Ingarden, E. Staiger e K.
Hamburger); e, por outro, a que se centra na reflexão sobre a linguagem e a forma
(cujos representantes são R. Jakobson e J. Cohen, entre outros).103
Os ensaios canónicos no que se refere à chamada poética formal, incluindo o
célebre ensaio de Jakobson “Linguística e Poética” e os trabalhos sobre a poesia de Jean
Cohen, permitem-nos sintetizar uma certa maneira de entender a poesia muito em voga
na teoria e crítica literárias do século XX e, hoje, já em crise. Em primeiro lugar, a
poesia entende-se como uma mensagem situada em pé de igualdade com qualquer outro
tipo de mensagem. No caso de Jakobson, a diferença vincula-se à chamada ‘função
poética’; no caso de Cohen, a diferença prima-se pelo desvio ou a anomalia e a poesia é
concebida como ideolecto. Ambas as aproximações enfatizam a vertente linguística
(sintáctico-semântica) da lírica em detrimento da dimensão enunciativa (pragmática);
nada incluem aparentemente sobre o poeta, o sujeito lírico, etc.104 Esta ênfase
linguística, posteriormente designada como dicção, iria opor-se à chamada ficção, que
inclui aquelas aproximações que enfatizam a dimensão representativa e mimética do
fenómeno lírico. Aseguinolaza, no seu ensaio “La lírica: um lugar teórico”, prefere
referir-se por um lado à estreita interrelação entre a teoria e a escrita lírica e, por outro, à
tendência metapoética tão própria do discurso lírico, já que ambas são veículos para a
definição da sua própria legitimidade. Para ele, a lírica ocupa um lugar privilegiado na
encruzilhada de questões de grande alcance teórico.105
Aseguinolaza começa por se referir ao trabalho de René Wellek, que em 1967
prescrevia o abandono de todo o propósito de definir a natureza geral da lírica e do
lírico. Isto a favor de uma análise histórica de géneros dependentes de convenções e
tradições particulares e, por outro lado, de uma crítica severa de dois dos trabalhos mais
influentes do século XX: o de Emil Staiger e o de Käte Hamburger.106 No seu artigo
“Genre Theory, the Lyric, and Erlebnis”, Wellek afirma que Hamburger estabelece uma
distinção fundamental entre dois tipos de poesia: ficcional ou mimética e lírica ou
102 Fernando Cabo Aseguinolaza (ed.), “Introducción. La Lírica: Un Lugar Teórico”, Teorias sobre la Lírica, Madrid,
Arco/Libros, 1999, pp. 9-10. 103 Aseguinolaza, Op. Cit., p.10. 104 Id. Ibid. 105 Id. Ibid., pp. 14 e 16. 106 O de Emil Staiger intitulado Grundbegriffe der Poetik (Conceitos Fundamentais de Poética) foi publicado em
1946. Por seu turno, Die Logik der Dichtung (A Lógica da Literatura) de Käte Hamburger seria publicado em 1957.
O MODO LÍRICO
Paula Alexandra Guimarães 25
existencial, em que o critério de demarcação é o falante: na lírica fala o próprio poeta,
na épica e no drama o poeta faz falar outros. Ela não só considera a “experiência
vivida”, a intensidade e a vivência (Erlebnis) como o critério da poesia lírica, mas
também que a lírica é um “enunciado real”. Neste sentido, Hamburger argumenta que
“devemos recorrer a investigações externas, incluindo biográficas” para explicar um
poema lírico. Por outro lado, insiste que uma narração na terceira pessoa, por muito
próxima que esteja da realidade empírica, será sempre ficção, ao passo que uma
narração na primeira pessoa, por muito fantástica e irreal que pareça, será sempre não-
ficção. Wellek considera que a teoria epistemológica de Hamburger conduz a um
resultado muito pobre: a uma “gramática da poesia”, baseada apenas na descrição dos
mecanismos estilísticos, e a uma reafirmação da antiga divisão da poesia de acordo com
a voz enunciadora.107
Por outro lado, ao referir-se à obra de cariz antropológico de E. Staiger, Wellek
salienta a correspondência do lírico com o tempo passado (contradizendo todas as
análises usuais da presença ou imediatez lírica), com o estado anímico, com a idade da
infância e com a faculdade emocional ou sensual, entre outros aspectos. Segundo ele, “o
problema fundamental deste esquema radica na sua falta de conexão com a poesia real”,
pois os exemplos dados por Steiger procedem na sua totalidade da poesia romântica
alemã, “meditações privadas e caprichosas”, em que o poema lírico se descreve em
termos de uma “fusão mística” entre sujeito e objecto.108 Para Wellek, os esquemas de
Staiger e de Hamburger estão enraizados numa longa tradição que remonta ao grande
período de especulação estética na Alemanha e que vê a lírica como subjectiva, como a
expressão do sentimento ou da experiência, Erlebnis. Wellek parece contestar a
pretensão de que a sinceridade, a emoção ou a vivência sejam garantia de uma boa arte,
acrescentando que esta teoria lírica dava sinais de ter chegado a um ponto morto.109
Nesse mesmo ano (1967), as reflexões especialmente lúcidas de José G.
Merquior reivindicavam a noção de mimese para a lírica, propondo ainda conjugá-la
com a noção de linguagem. A tese de Merquior é que a lírica é “a imitação de estados
anímicos”; mune-se, assim, de duas potentes armas analíticas, a teoria da mescla
107 R. Wellek, “La Teoria de los Géneros, la Lírica y el Erlebnis”, Teorias sobre la Lírica, ed. Fernando C.
Aseguinolaza, pp. 26-35. 108 Id. Ibid., pp. 37-41. 109 Id. Ibid., pp. 48 e 53. Em 1957, o crítico neo-marxista Theodor Adorno tinha publicado um ensaio exemplar
contrariando a resistência aparente da poesia ao social – “Poesia Lírica e Sociedade”. Adorno desloca a vinculação
material do poema, a sua participação na generalidade das coisas, para o plano da experiência individual. Na sua
leitura, a poesia pode assim configurar uma sintomatologia histórica.
O MODO LÍRICO
Paula Alexandra Guimarães 26
estilística de Erich Auerbach e a hermenêutica de Martin Heidegger, para propor uma
poética normativa. No seu ensaio sobre a “Natureza da Lírica”, ele começa por afirmar
que a lírica era inicialmente apenas um género da poesia, mas que com o “declínio do
grande poema narrativo e do verso dramático, lírica e poesia terminaram por confundir-
se.”; de tal forma que na literatura moderna um termo pode ser empregue pelo outro.110
Para ele, a obra lírica é uma mensagem linguística que tem como finalidade “a
representação fictícia de situações humanas, dotadas de interesse permanente” e a
“evidência da mímese interna nunca é maior do que na lírica.”111 Os três elementos da
imitação lírica são o ‘objecto’, o ‘medium’ e o ‘fim’, isto é, os estados de ânimo
exprimidos verbalmente com a finalidade de conhecer as verdades humanas. Neste
esquema, a originalidade ou inventividade do poeta residiria não tanto no que ele diz,
mas na forma como o diz.112
Na colectânea conjunta sobre a Teoría del Poema, Fernando Aseguinolaza e
Germán Gullón afirmam que, na actualidade, aquilo que ainda predomina é a ‘leitura
poética ou afectiva’, embora ressalvando que tanto os teóricos da lírica como os
próprios poetas têm vindo a apontar para um ‘entendimento ficcional’.113 Apesar da
tradição privilegiar uma orientação expressiva da poesia, servindo de fundamento à
consideração da lírica como ‘arquigénero’, estes autores consideram o aprofundamento
da dimensão enunciativa da lírica como merecedor de especial atenção.114 Entre os
trabalhos por eles compilados, podemos encontrar o estudo de José Maria Pozuelo
Ivancos, que caracteriza a enunciação lírica como “emergencia de la temporalidad”, ou
dito de outra forma, como criação de um âmbito enunciativo definido pela ‘presentez’,
isto é, pelo presente e pela presença absoluta, entre outras coisas, do próprio sujeito
lírico.115 Um outro estudo é o do próprio Fernando Aseguinolaza, que define duas
grandes linhas enunciativas na lírica moderna, identificadas por sua vez mediante as
referências míticas de Narciso e Filomela, e que indaga acerca da sua fundação comum
na peculiar consciência linguística, que se encontra na base regressiva e mitologizante
110 José Guilherme Merquior, A Astúcia da Mimese (ensaios sobre lírica), 2ª edição, Rio de Janeiro, Topbooks, 1997,
p.17. 111 Id. Ibid., pp. 17 e 22. 112 Id. Ibid., pp. 23-24, 28-29. 113 Cf. F. C. Aseguinolaza e G. Gullón (editores), Teoria del Poema: La Enunciación Lírica, Amsterdam e Atlanta,
Rodopi, 1998. 114 No “Prefacio” à obra acima referida, pp. 7-10. 115 O título do estudo é “Enunciación Lírica?”, pp. 41-75.
O MODO LÍRICO
Paula Alexandra Guimarães 27
da ideia de linguagem poética.116 O trabalho de Sultana Wahnón, por seu lado,
aventura-se pela relação entre a ‘ficção’ e a ‘dicção’ líricas através de uma perspectiva
histórica muito atenta às poéticas árabes e hebraicas, para pôr em relevo que o
caracterizar do texto lírico como fictício deve conceber-se antes como ponto de partida
do que como solução.117
No seu estudo, Aseguinolaza afirma que um dos paradoxos mais desconcertantes
da teoria literária tem a ver com o estatuto daquilo que designamos como lírica. Sendo
este um conceito genérico fundamentado numa concepção de raiz enunciativa, a
indagação teórica a propósito dessa determinação tem sido precária, para não dizer
insuficiente.118 A confiança implícita no seu carácter expressivo, pessoal, íntimo ou
subjectivo parece ter tornado desnecessário o deter-se no aspecto da sua delineação
enunciativa para favorecer, pelo contrário, outras aproximações alternativas, em
particular de índole linguística.119 Roman Jakobson, o representante quase por
excelência da poética linguística, estabeleceu como base inquestionável para a sua
abordagem da lírica a expressão primo pessoal. Isto é, fez suster a consideração forte da
lírica a partir da “categoria do sujeito-falante”. Assim, na conferência de Bloomington,
a lírica apareceria caracterizada pela presença da função expressiva, imediatamente
atrás da função poética.120 A força da ideia recebida a propósito do carácter efusivo,
pessoal, que caracterizaria esta forma literária levou repetidamente a dar-se como
assente a sua relação directa com o sujeito-falante, e posteriormente, a defender com
frequência a sua natureza não fictícia.121
Pelo contrário, o desenvolvimento da lírica moderna apresenta-se mais como um
processo de contínua e persistente descrença na subjectividade e na possibilidade da sua
expressão linguística. Para Aseguinolaza, “a enunciação, com as suas aporias, constitui
o cenário da problematização do sujeito e uma fonte inesgotável de significação.”122 A
questão da enunciação lírica deve ser entendida, em toda a sua complexidade, como o
resultado da interacção entre o discurso metaliterário – metapoético, neste caso – dos
próprios autores, a prática da escrita lírica e o discurso teórico-crítico. A constante
116 “Entre Narciso e Filomela: Enunciación y Lenguage Poético”, pp. 11-39. 117 “Ficción y Dicción en el Poema”, pp. 77-110. Dados os limites de extensão deste nosso trabalho, não poderemos
aqui desenvolver as interessantes perspectivas de Ivancos e de Wahnón. 118 Aseguinolaza, Op. Cit., pp. 11-12. 119 Id. Ibid., p.12. 120 Id. Ibid. Para Aseguinolaza, Jakobson não faria mais do que reformular a delineação hegeliana e romântica da
poesia lírica. 121 Na medida, claro está, em que a mencionada categoria do sujeito-falante se identifica abertamente com a figura do
autor. 122 Id. Ibid., p.13.
O MODO LÍRICO
Paula Alexandra Guimarães 28
problematização da palavra poética fez da questão enunciativa um dos eixos básicos da
lírica como discurso literário. Neste sentido, um dos traços distintivos da lírica moderna
consiste na ênfase sobre “a débil circunstanciação do discurso” e do seu enunciador.
Esta ausência é colmatada mediante uma “linguagem em plenitude” que se sobrepõe ao
eu individual e às constrições espaciais e temporais que o identificam, por meio de uma
confiança no acto de leitura e na sua capacidade de “actualização renovadora da palavra
poética”ou, até, através da ficcionalização radical (máscaras, apócrifos, heterónimos).123
Segundo uma tese de Iuri Lotman, a reconstrução de uma linguagem já perdida,
em cujo sistema um texto dado adquiriria a condição de estar dotado de sentido, resulta
praticamente sempre na criação de uma nova linguagem.124 Para Aseguinolaza,
reconstruir uma linguagem perdida é sem dúvida uma forma muito apropriada de
entender a leitura de um poema. A lírica potencia ao extremo essa capacidade de
recordação, a partir dos fragmentos ou palavras que configuram o texto poético. “A
percepção cada vez mais acutilante do poder da linguagem para antepor a sua própria
presença à figura ausente de quem a emprega, acompanha a lírica moderna na sua
trajectória.”125
Aseguinolaza detecta duas orientações decisivas na tradição poética moderna
que manifestam aquela tensão enunciativa. Uma delas situa-se sob a influência da figura
de Narciso, emblema ovidiano da “auto-complacência ensimesmada e destrutiva”.126
Esta concepção solipsística da expressão lírica manifesta-se no culto do eu como única
realidade criadora, em que o mundo seria um puro fenómeno de reflexão. Por
conseguinte, o drama de Narciso não é outro senão o da estranheza fatal diante da sua
própria imagem. Dá-se um “exacerbamento da enunciação interna por via da sua
encenação lírica”, que pode fazer uso do dialogismo, da heteronomia, do monólogo
dramático, da ficcionalização do eu lírico, etc.127 Técnicas que se vinculam a poetas
como Baudelaire, Browning, Unamuno, Eliot, Pound, Pessoa, entre muitos outros.
A outra orientação na lírica ocidental baseia-se, segundo aquele crítico, na figura
mitológica de Filomela. Transformada em rouxinol, cantando a perda e a dor na solidão
123 Id. Ibid., pp. 14-15. Segundo Aseguinolaza, estas três não são as únicas vias possíveis de o poeta se desligar do
circunstancial, mas apenas as mais frequentes. 124 I. Lotman, Acerca de la semiosfera, trad. D. Navarro, Valência, Eutopías, vol.106, 1995. Citado em Aseguinolaza
e Gullón, pp. 16-17. 125 Aseguinolaza, Op. Cit., pp. 16-17. A tradução é nossa. 126 Id. Ibid., pp. 19-20. 127 Id. Ibid., p. 21. No original: “[…] un exacerbamiento de la enunciación interna (o enunciada) por la via de su
escenificación lirica.” (p. 21). Aseguinolaza refere ainda os fenómenos da concepção heterológica da palavra poética,
o entendimento do texto a modo de palimpsesto, o desenvolvimento de poéticas da impessoalidade e a acentuação
irónica do double-bind enunciativo no interior do poema.
O MODO LÍRICO
Paula Alexandra Guimarães 29
do bosque com o seu trinar melodioso, ela seria o símbolo de uma expressividade pura,
alheia ao conceptual, desprendida do enunciativo e do eu poético tradicional. Esta
imagem permite, em suma, a identificação da lírica com uma linguagem específica,
intransitiva, provocando o “desaparecimento elocutório do poeta” e a emergência de
uma pura voz anónima, “mero substrato acústico do verso”.128 Com esta linha poética
poderiam identificar-se autores como Poe, Mallarmé, Rimbaud, Verlaine ou Breton.
Apesar de reveladoras das tensões básicas da lírica moderna e contemporânea, estas
duas orientações parecem partilhar a mesma origem: a ideia de uma linguagem
concebida como dissipadora de significados, como distância frente ao mundo ou como
mediação necessária face a ele. Segundo Aseguinolaza, não existe verdadeira
contradição entre Narciso e Filomela, nem mesmo entre uma teoria de base linguística e
uma de tom expressivo. “A enunciação lírica impõe-se não já como origem, mas como
resultado, como projecto da palavra poética.”129
Num recente e interessante artigo, “La creación de mundos possibles en el modo
lírico”, Mariela Cereceda aborda o modo lírico segundo uma dupla perspectiva: como
uma das configurações genéricas da literatura e como um modo ontológico de
vinculação do sujeito ao mundo.130 Para esta autora, cujo objectivo é analisar como se
leva a cabo esta ‘cosmificação’ no modo lírico literário, a obra artística situa-nos diante
de um cenário em que a busca de unidade se faz contemplável através do plasmar de um
mundo possível alternativo.131 O homem relaciona-se “modalmente” com o mundo
através de actos culturais (“géneros naturais”) e o sujeito pode reagir no mundo de três
modos básicos: lírica, épica ou dramaticamente. Segundo Cereceda, o modo lírico tem
os seus alicerces no passado, na “anterioridade” que se “interioriza”, para logo se
partilhar com o outro: é a emocionalidade que transcende.132 Da mesma forma, o termo
modo pode utilizar-se no sentido de forma primária da realização artística; Kurt Spang
128 Id. Ibid., pp. 22-23. Sobre a tradição literária de Filomela, ver W. Pfeffer, The Change of Philomel. The
Nightingale in Medieval Literature, New York, Peter Lang, 1985. 129 Id. Ibid., pp. 25, 31-33. “La lirica – esto es, la poesia – se convierte así en eco o en proyecto de la palabra
original.” (p. 31). 130 Mariela Insúa Cereceda. 2005. “La creación de mundos posibles en el modo lírico”. Documentos Linguísticos y
Literarios 28: 40-44. www.humanidades.uach.cl/documentos_linguisticos/document.php?id=82 (Dirección
Electrónica). 131 Cereceda, Op. Cit., p. 1. 132 Id. Ibid.
O MODO LÍRICO
Paula Alexandra Guimarães 30
tem precisamente em consideração esta dimensão antropológica das distintas
modalidades artísticas.133
Ao abordar o “modo lírico e a ficcionalidade”, Cereceda refere os estudos de
Wolfang Iser sobre a capacidade que a ficção tem de organizar a realidade de forma a
poder ser comunicada.134 Assim sendo, a ficção surge como o mecanismo da criação
artística que permite ao homem aproximar-se da ideia de unidade. Como staged
discourse a obra literária vai mais longe que o real, embora o incorpore.135 A
ficcionalidade do discurso lírico é um tema particularmente complexo, cuja dificuldade
radica na base antropológica do modo lírico. Cereceda coloca duas questões, entre
outras: como é que uma criação que se sustenta de um “condensado canto interior” se
pode configurar tendo como base “modelos do mundo que transcendam”? Como é que a
lírica plasma mundos possíveis?136
O facto de que a lírica se incorporou tardiamente na organização tripartida dos
géneros poderia relacionar-se, segundo Garcia Berrio, com a consideração da sua
carência de representação mimética.137 Foi Sebastiano Minturno, em L’Arte Poética de
1564, quem expôs pela primeira vez uma definição da lírica (ou “mélica”) como
modalidade unitária e mimética. Esta ideia seria reiterada por Francisco de Cascales nas
Tablas poéticas de 1614. Assim, surge a noção da lírica como um modo de imitação
poética, caracterizado nas palavras de Minturno: porque o poeta, ao imitar, “mantém a
sua pessoa e não se transfigura em outros”.138 Se a lírica é ficção, um “falar imaginário”
que comunica modelos do mundo, Cereceda pergunta-se de que maneira especial é que
o modo lírico trabalha a forma para se referir ficcionalmente à realidade?139
Ao falar de “comunicação e enunciação no modo lírico”, Cereceda afirma que a
teoria pragmática defendeu a necessidade de mostrar a especificidade da acção
comunicativa que a lírica propõe dentro do contexto literário.140 Deste modo, Samuel
Levin dedicou-se a analisar que tipo de acto de fala é um poema; segundo ele, cada
poema possui uma “oração real dominante” exprimindo um determinado tipo de força
133 Kurt Spang, “Modos y géneros en literatura”. Actas del Coloquio Internacional “Los géneros en las artes”. K.
Spang (ed.) Pamplona, Universidad de Navarra, 2001, 165-176. 134 Cereceda, Op. Cit., p. 2. 135 Wolfang Iser, “Fictionalizing: The Anthropological dimension of literary fictions”. New Literary History 21,
1990, pp. 939-955. 136 Cereceda, Op. Cit., p. 2 137 António Garcia Berrio, Teoría de la literatura. La construcción del significado poético, Madrid, Cátedra, 1994. 138 Cit. em Garcia Berrio, p. 582. 139 Cereceda, Op. Cit., p. 2. 140 Id. Ibid., p. 3. Cereceda refere-se, em particular, aos delineamentos feitos por Austin e Searle sobre os actos
locutivos, ilocutivos e perlocutivos.
O MODO LÍRICO
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ilocutiva; apesar de elidida, esta oração estaria sempre latente em cada acto de fala
lírico; consistiria no seguinte: Eu imagino-me a mim mesmo em, e convido-te a ti a
conceber um mundo naquilo que eu te digo.141 Deste modo, o eu projecta um mundo
imaginário que acolhe um sujeito linguístico que convida a contemplar esse mundo do
qual ele forma parte. Compreender esta oração implícita que sustenta o acto
comunicativo lírico é a base do pacto poético, isto é, da convenção básica entre autor e
leitor.142 Esta dimensão comunicativa e enunciativa da lírica é fundamental pois é o que
distingue a lírica do drama e da narrativa. A “interiorização da anterioridade” necessita
ser comunicada ou recitada e o acto enunciativo do modo lírico sugere sempre uma
viagem ao interior de um sujeito, quer a voz se apresente ficticiamente na primeira, na
segunda ou na terceira pessoa.143 A enunciação lírica é eminentemente subjectiva e o
seu olhar tende ao “recolhimento” e ao aprofundamento, sendo a forma do seu
enunciado intensa, metafórica, muitas vezes indeterminada e ambígua, povoada de
vazios e de silêncios eloquentes, com um ritmo conducente à harmonia de um todo
sugerido.144
Quando aborda a questão dos “mundos possíveis no modo lírico”, Cereceda vai
buscar a ideia de Heidegger de que o sujeito existe na medida em que constrói
interpretações do mundo e estas possuem na sua base uma atitude projectiva, pois o
sujeito projecta o seu ser sobre possibilidades.145 Ela afirma que não é necessário que
haja ‘história’ para criar mundos a um nível fictivo. A questão é que “a construção do
complexo de mundos e submundos (desejados, temidos, intuídos, sonhados …) se
realiza de maneira diferente na lírica do que na narrativa ou no drama […]”.146 Ao
contrário destas, e segundo Spang, “a lírica ficcionaliza a partir de esboços, são mundos
sugeridos, que não se apresentam em detalhe, pois afirmam-se na expressão de um
141 Samuel Levin, “Consideraciones sobre qué tipo de acto de habla es un poema”. Pragmática de la comunicación
literaria, ed. J. A. Mayoral, Madrid, Arco, 1987, 59-82, pp. 67-70. 142 Cereceda, Op. Cit., p. 3. 143 Id. Ibid. 144 Id. Ibid. No original: “En el modo lirico, como diria Alvira, la mirada tiende al ‘recogimiento’ […] La forma […]
ha de ser intensa, metafórica por esencia, muchas vezes indeterminada y ambígua […] com un ritmo que […]
conduzca a la armonia de un todo sugerido.” (p. 3). 145 Foi o filósofo alemão Leibniz que, em 1710, usou pela primeira vez a denominação “mundo possível”. Segundo
ele, existe uma “infinidade de universos possíveis nas ideias de Deus” e este escolheu um mundo de entre a
multiplicidade que se lhe oferecia para ser imbuído com a categoria do real. Desta afirmação original derivou a ideia
de que os mundos são possíveis na medida em que a eles subjaz a qualidade da alternatividade. A fim de aplicar a
categoria de mundo possível à análise da ficcionalidade, teóricos da literatura como Dolezel (1979), Van Dijk (1980)
e Eco (1978), entre outros, relacionaram a ideia leibniziana de mundo possível com noções de lógica e de semântica
modal. 146 Cereceda, Op. Cit., p. 4. No original: “[…] la construcción del complejo de mundos y submundos (…) se realiza
de manera diferente en la lirica que en la narrativa o en el drama. […]”
O MODO LÍRICO
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estado profundo ou de uma vivência”.147 É possível “assomar-se” a um mundo e captar
a ideia da totalidade da sua presença através da visão parcial do mesmo; por isso, é ao
leitor que cumpre o papel fundamental de articular o mundo possível a partir do pouco
que se lhe oferece. Cereceda salienta, no entanto, que para possibilitar que o receptor
retire uma ideia de permanência da sua captação é muito importante que o poema seja o
resultado de um processo emocional de aprofundamento subjectivo.148 Neste sentido,
García Berrio sugere que o fundamento do valor poético consiste em “construir um
objecto de revelação essencial e de comoção profunda comum à maioria dos seres
humanos”.149
Quando se refere a uma das constantes do modo lírico como sendo a brevidade
(presente na sua configuração em verso), Cereceda explica que o sujeito capta sempre
porções de mundo, fragmentos “breves” e diversos, a partir dos quais tem de intuir a
unidade. Assim, “o modo lírico assenta numa plasmação ficcional que reflicta essa
realidade constitutiva da condição humana.”150 À pergunta se é possível construir um
mundo na brevidade de uns versos, de umas poucas imagens, Cereceda responde que a
existência do homem também está feita de traços, de captações difusas de partes do
mundo. O receptor de um texto lírico não se assoma a uma totalidade (como nos modos
épico-narrativo ou dramático), mas a um momento a partir do qual se pode evocar a
totalidade.151 Na afirmação de Alvira, a poesia “como representação mimética do geral
apoia a consideração do discurso lírico enquanto expressão de universais essenciais
numa configuração ficcional”.152
E também já nas palavras do próprio poeta-dramaturgo inglês:
The poet’s eye, in a fine frenzy rolling,
Doth glance from heaven to earth, from earth to heaven;
And, as imagination bodies forth
The forms of things unknown, the poet’s pen
Turns them to shapes, and gives to airy nothing
A local habitation and a name.
WILLIAM SHAKESPEARE; A Midsummer Night’s Dream
Paula Alexandra Guimarães
147 Kurt Spang, “La literatura y sus modos”. Las artes y sus modos. Actas del Coloquio Internacional “Las artes y sus
modos”. K. Spang (ed.) Pamplona: Universidad de Navarra. Anejos de Rilce, 2003: 121-142, p.131. 148 Cereceda, Op. Cit., p. 4. 149 Garcia Berrio, Op. Cit., p. 617. 150 Cereceda, Op. Cit., p. 4. “El modo lirico se asienta en la plasmación ficcional que refleja esa realidad constitutiva
de la condición humana.” 151 Id. Ibid., p. 5. 152 Rafael Alvira, “Los modos como dimensiones antropológicas”. Actas del Colóquio Internacional “Los géneros en
las artes”. K. Spang, Pamplona, Universidad de Navarra, 2001, 11-16, p. 13.
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