Post on 09-Jan-2017
1
O DIREITO À MORADIA (ensaio)
1 Premissas socioeconômicas cingidas à origem dos sérios desarranjos sociais
no país e que apontam para a solução orçamentária, e política, do problema
habitacional; 2 Análise da base teórica e normativa fomentadora da plena
viabilidade do direito à moradia como um dos mais relevantes direitos sociais;
3 A existência de uma estrutura jurídica apta a possibilitar a efetivação plena
dos direitos sociais, em especial, o direito à moradia no ambiente judiciário; 4
Exemplificação prática de soluções jurídicas passíveis de implementação:
conclusões.
Palavras chave: direitos humanos, direito à moradia, direitos sociais.
Wagner Giron de la Torre
Defensor Público no Estado de São Paulo
2
“ (...) Posto diante de todos estes homens reunidos, de todas
estas mulheres, de todas estas crianças (sede fecundos,
multiplicai-vos e enchei a terra, assim lhes fora mandado),
cujo suor não nascia do trabalho que não tinham, mas da
agonia insuportável de não o ter, Deus arrependeu-se dos
males que havia feito e permitido, a um ponto tal que, num
arrebato de contrição, quis mudar o seu nome para um outro
mais humano. Falando à multidão, anunciou: "A partir de
hoje chamar-me-eis Justiça". E a multidão respondeu-lhe:
"Justiça, já nós a temos, e não nos atende". Disse Deus:
"Sendo assim, tomarei o nome de Direito". E a multidão
tornou a responder-lhe: "Direito, já nós o temos, e não nos
conhece". E Deus: "Nesse caso, ficarei com o nome de
Caridade, que é um nome bonito". Disse a multidão: "Não
necessitamos caridade, o que queremos é uma Justiça que se
cumpra e um Direito que respeite".
(José Saramago, in "Terra")
Os Desconcertos:
1 Para que não se diga que deixou-se aqui de falar das flores,
fica consignado que pela lógica do mercado - esse ente intangível, elevado, nestes
tempos neoliberais, a parâmetro primevo na valoração de todas as coisas - que
estamos a viver, segundo dados fornecidos pela conceituada e internacional agência
de aconselhamentos financeiros "AC Nilsen", em um país que na última década
elevou seu consumo em fraldas descartáveis ao patamar de 859%; cresceu também em
369% no consumo de "mistura para bolos"; 310% em alimentos para gatos; 273% na
3
alimentação para cães; 201% o nicho mercantil para massas instantâneas; 176% em
cereais matinais e 81% o consumo de água mineral.
Insuflados por esses prodígios mercadológicos, os investidores
internacionais, ainda segundo aquela referida agência, vêem o Brasil como o 4º maior
mercado do mundo no segmento de "máquinas de lavar roupas", pois, por influxo
direto do liberalismo econômico que nos foi impingido nas últimas décadas,
atingimos a venerável soma de 1,3 milhão de lavadoras de roupa (82% mais do que o
desenvolvido Canadá); no mesmo período consumimos 8,02 trilhões de litros de
refrigerantes (343% mais do que o sobredito Canadá), feito que nos guindou ao 3º
maior "mercado" do mundo nesse meandro consumerista. Também geramos o
significativo montante de US$1,3 bilhão em alimentos diet ou light e US$ 1,2 bilhão
em Cds., constituindo o 5º maior mercado fonográfico do orbe terrestre e desde 2001
contávamos com 11 milhões de usuários da internet, equivalentes a 40% do total na
América Latina nessa área do mundo virtual1.
Em contraposição a todos esses feitos mercantis, que só
orgulho geram ao ingente capitalismo engendrado por nossas elites, malgrado, ainda,
as enormes benesses neoliberais acima expendidas, abarcamos, infelizmente, uma
vasta e esquecida nação de miseráveis, na qual as crianças são as que mais sofrem.
Como estamos já a perceber e ora por constatar, um rincão tão
próspero para dar de comer a cães e gatos, não é capaz de alimentar todos os seus
habitantes. Segundo a pesquisa intitulada "Mapa da Fome II", levada a efeito pela
Fundação Getúlio Vargas e divulgada em setembro de 2003, neste país vicejam
mais de 50 milhões de pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza, ou seja, que
insistem em sobreviver com renda inferior a R$ 78,83 mensais, dos quais 6 milhões
são crianças, consoante informa a Unicef 2.
1 Marins, Luiz, "A Parte Cheia do Cálice Chamado Brasil", colhido da web em setembro de 2001. 2 "Folha Online", 23.10.2003.
4
Esse número representa 10% da população infantil brasileira.
A pesquisa mostra, ainda, que mais de 15% das crianças brasileiras vivem sem
condições sanitárias básicas, e 2.908.341 crianças são objeto de trabalho ilegal 3.
Ainda a destoar do promissor cenário mercantil exposto linhas
atrás, O Brasil detém a 4ª maior concentração de renda do mundo 4, só perdendo para
Serra Leoa, República Centro-Africana e Suazilândia. Tal estudo mostra que os 10%
dos brasileiros mais pobres "vivem" com 0,9% da renda do país, enquanto que os 10%
mais ricos abocanham 47,2% dessa renda.
No índice de Desenvolvimento Humano - IDH, confeccionado
pela ONU, figuramos no 73º lugar5, pois contamos com 22.831.344 pessoas
absolutamente analfabetas segundo o PNAD - Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios, realizada em 1999 pelo IBGE, afora os outros 33 milhões de analfabetos
funcionais.
Do contingente de pessoas com capacidade produtiva no país,
mais de 54%, ou 40,9 milhões de seres, não contribuem para o sistema de previdência
social, porque não contam com carteira profissional regularizada, e metade do corpo
assalariado pátrio angaria menos do que ínfimos 02 salários mínimos por mês 6.
Por essa senda de crônicos desarranjos sociais é que medram
as favelas, os desabrigos, a não-existência.
Como se antevê, o primeiro patamar rumo à miséria é o
desemprego. Dele brota a ausência de meios para o amparo de vivência digna, a
medrar os inexoráveis inadimplementos dos meios básicos de sobrevivência como 3 "Segundo Relatório de Direitos Humanos no Brasil", Min. da Justiça, 2002, p. 26. Ainda sobre o tema: Sydow, Enavize, “Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo”, contido no relatório “Direitos Humanos no Brasil- 2005), ed. Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, SP, 2005, p. 89. 4 índice GINI, elaborado pela Pnud - Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, publicado pela "Folha de São Paulo", em 24.07.2002, p. A-10. Já no quesito da desigualdade entre homens e mulheres, o Brasil ficou em 51º dentre 58 países pesquisados, atrás de países como Bangladesh (39) e Zimbábue (42º) – Folha online, 16.05.2005. 5 Relação do Pnud - Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, in Folha de São Paulo, 24.07.2002, p. A-11. 6 IBGE - Folha online, novembro de 2003. Paulo César Pedrini nos conta que em 2005, só na grande S. Paulo, a taxa de desemprego atingiu 58,5% dos mais pobres. Na faixa etária de 16 a 24 anos o desemprego
5
contas de encargos afetos à água potável, (água potável!!!), energia elétrica,
alimentação, aluguel...até desembocar no desterro das vias públicas.
Da ausência de laboração digna, à assinalada miséria, o
caminho possui a dimensão de um átimo.
A existência sem abrigo materializa os efeitos extremos desse
processo de despersonificação em que vivem milhões de seres a palmilhar pelos
arrebaldes do país, num estado de mórbida invisibilidade social 7.
E aqui convergimos ao núcleo do tema proposto, atreito à
ausência de abrigo, já sendo oportuno demarcar que neste país há um déficit
habitacional - segundo indicadores oficiais - de 6.666.268 moradias 8.
Todavia, não podemos vislumbrar nesse índice um
incontestável marco revelador da verdade, não só pelas conhecidas distorções
subjacentes à toda informação oficial como, em especial, porque já foi anotado que
contamos com mais de 50 milhões de pessoas distantes em demasia da linha básica da
dignidade de vida, as quais, com certeza, se ressentem da ausência não só do que
comer como - ao que aqui interessa - de um comezinho teto para se abrigar.
Conforme relato do Movimento Nacional de Luta por
Moradia, 79,16% desse vasto agrupamento de sem-tetos estão concentrados nas
regiões metropolitanas, sendo que só em São Paulo - capital, existem mais de 2
é quase o dobro da população em geral. Cf. Pedrini, Paulo César, “O Trabalho no Brasil em 2005”, contido no relatório “Direitos Humanos no Brasil – 2005”, SP, 2005, p. 132. 7 Amaral, Sofia; em reportagem publicada na revista "Caros Amigos", nº 80, nov/2003, p.p. 26/27, nos conta sobre interessante dissertação de mestrado do estudante de psicologia da USP, Fernando Braga da Costa, que viveu como gari pelas ruas da cidade universitária a fim de desenvolver sua tese sobre a "invisibilidade pública" das pessoas que desempenham funções tidas como "subalternas" na sociedade. Sobre ela, relata Fernando que "É como se a pessoa passasse por um poste, por uma árvore. A invisibilidade pública é uma "cegueira psicossocial" sustentada pelos antagonismos de classe: enxerga-se apenas a função, e não a pessoa. E isso acontece tanto mais quanto menor for o sentimento de identificação, de comunidade que o "cego" tenha com o "invisível". Note-se que a pesquisa foi elaborada junto à pessoas que ostentavam, bem ou mal, uma função específica, por singela que fosse. O que falar então quando nos confrontamos com pessoas destituídas de tudo, inclusive de emprego, moradia, como se retrata no texto? 8 Cf. PNAD - Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar, IBGE, 1999. Vide, ainda, Osório, Letícia, in " Direito à moradia no Brasil", trabalho disponível no site www.direitoacidade.org.br, déficit até hoje não minorado, conforme constatado em junho de 2004 pelo Relator Especial da ONU para a questão da moradia, Sr. Miloon Khotari, observações contidas no mesmo sítio, consultado em set/2007.
6
milhões de favelados convivendo diariamente com os perigos e pestilências afetos a
enchentes, esgoto a céu aberto, ameaças de desmoronamento, fome, etc...9
Já a esta altura podemos também assestar que não existe nada
pior do que a miséria.
Mas, em país tão pródigo - como visto - em ostentar
potencialidades mercantis nos mais variados segmentos do capitalismo, faltam - de
acordo com a retórica governamental - recursos para pelo menos amenizar esse
perverso caos social?
Cremos que não! Só nos primeiros cinco meses de 2003 o
governo federal, Estados e Municípios pagaram R$ 63,3 bilhões tão-só de juros de
uma mal arrevesada dívida externa que hoje se encontra no insolvível patamar de R$
1.191 trilhão, segundo fontes governamentais 10.
O montante acima repassado, sem repulsa alguma, aos
credores internacionais, expressam 10,12% do PIB e representam o dobro do que, no
mesmo período, foi destinado à todas as áreas tidas como sociais pelo governo
federal.
Só em 2004 foram gastos no adimplemento dessa mal
explicada dívida pública a soma de R$ 139 bilhões, conforme planilha orçamentária
da União, e nada, absolutamente nada, foi destinado para pelo menos se tentar aplacar
o estrondoso déficit habitacional do país 11.
O estrito cumprimento desses infindáveis encargos debitórios
a nós tributados pelos fundos monetários internacionais da vida, e tão bem cumpridos
por nossa submissa elite dirigente, não foi suficiente para sequer diminuir o ciclópico
9 Bertulezza, Alexandre e Renato, Marcelo, "Ocupar, resistir e morar", texto colhido do sítio do "Movimento Nacional de Luta por Moradia", em 10.10.2003. 10 dados disponíveis em: www.stn.fazenda.gov.br e www.jubileubrasil.org.br. 11 conferir gráfico com valores destinados à dívida externa no sítio www.jubileubrasil.org.br
7
valor desse efuso e desmedido entorno de divisas públicas, representado que é por
essa malsinada dívida externa.
O economista Jorge Pereira Filho bem retrata esse descaminho
orçamentário ao relatar que " entre 1995 a 2002 o país pagou como serviço da dívida
externa 330 bilhões de dólares. Recebeu, emprestados, 273 bilhões de dólares, que
foram usados em sua maioria no pagamento dos juros desse endividamento. No final
das contas, o Brasil pagou 57 bilhões de dólares a mais do que recebeu emprestado. E,
mesmo assim, a dívida externa não diminuiu. Pelo contrário, aumentou 70 bilhões de
dólares" 12.
Mas a principal perversão desse turvo modelo econômico
eleito por nossas elites reside no incontestado fato de que, para arregimentar divisas
no objetivo de atender a voracidade dos "credores" internos e estrangeiros, o governo
restringe cumulativamente investimentos nas áreas sociais no desesperado afã de
colher os recursos necessários à solvência de uma dívida mal explicada em sua origem
e totalmente inexistente em sua atual dimensão 13.
E, para tentar revestir de aparente legalidade essa irrefreável
sangria de recursos públicos forja, à mercê de uma maioria docilmente cooptada no
congresso nacional, artifícios normativos como a DRU (Desregulamentação de
12 "Movimentos Sociais exigem cancelamento da dívida externa", site www.jubileubrasil.org.br . Apesar dos ingentes esforços de nossos governantes, a dívida externa brasileira só fez por aumentar ao longo dos anos. Quando de seu recôndito início, que coincidiu com a implantação da ditadura militar neste empobrecido rincão, seu valor era de US$ 2,5 bilhões. Para tornar possível o famigerado "milagre econômico" urdido pelos generais em seus labirintos, ela salta para US$ 13,8 bilhões só no governo Médici (1969-1973), aumentando para US$ 52,8 bilhões já na fase terminal do regime miliciano no escopo de insuflar o II Plano Nacional de Desenvolvimento, concebido na gestão Geisel (1974-79). Com as sucessivas crises internacionais do petróleo agregadas aos juros flutuantes constantes nas abusivas cláusulas pactuadas por nossos expertos generais, a dívida chega já na década de 90 ao impagável montante de US$ 241,2 bilhões ( em 99), e hoje, apesar dos incessantes adimplementos de seus mal explicados juros, serviços, amortizações e o sucateamento do patrimônio público via privatizações, avulta na absurda quantia de US$ 465 bilhões de dólares, incluindo as dívidas interna e externa. Em 1995 os gastos com juros da dívida eram de R$ 26 bilhões, valor que saltou para R$ 257 bilhões (42% do orçamento da união) só em 2005. Sobre esse histórico de aberrações econômicas vide artigo intitulado "Origem de nossa dívida externa", no boletim "auditoria da dívida", encontrado no sítio: www.jubileubrasil.org.br 13 Filho, Jorge Pereira, "Investimentos Sociais", onde enfatiza: "Nossa dívida é ilegítima. A maior parte dela foi contratada em regimes militares. É o que chamamos de Dívida Odiosa, no Direito Internacional, que pode ser contestada judicialmente. Não foram representantes do povo que contraíram essa dívida, mas sim ditadores. Por isso, não é justo que toda a população pague por isso". Artigo colhido do já referido site jubileubrasil.
8
Receitas da União) ou a Lei de "Responsabilidade Fiscal" 14, cujo objetivo maior é
permitir tudo para satisfazer os interesses econômicos embutidos nessa etérea ciranda
financeira, limitando ao máximo os investimentos sociais para tornar possível a
realização daqueles já acentuados interesses 15.
É por conta desse estado de coisas que observa Eduardo
Galeano que "a economia mundial é a mais eficiente expressão do crime organizado.
Os organismos internacionais que controlam a moeda, o comércio e o crédito,
praticam o terrorismo contra os países pobres e contra os pobres de todos os países,
com uma frieza profissional e uma impunidade que humilham o melhor dos lança-
bombas".16
E assim se afeiçoa estabelecido esse desacertado e infindo
ciclo, no qual o país, para conseguir atingir "as metas fiscais" delineadas por aqueles
indicados organismos monetários, passa a tomar emprestado do sistema financeiro
quantias imensas tão somente para pagar dívidas, emitindo, a tanto, títulos públicos à
custa de juros extorsivos no intento de atrair um número expressivo de "investidores",
acabando por destroçar a malha pública de serviços essenciais a fim de poder honrar
com o adimplemento das expressões econômicas contidas naqueles desarrazoados
títulos de crédito.
14 Lei Complementar nº 101/2000. 15 Benjamim, Cesar, "O Poder das Palavras", Rev. "Caros Amigos", ed. Casa Amarela, ano V, nº 58, jan. 2002, p. 13, enfatiza: "Outra recente mistificação desse tipo é a chamada Lei de Responsabilidade Fiscal. É fácil ver que, também aqui, o nome foi imaginado sob medida para impedir o debate: quem pode ser contra uma "lei de responsabilidade"? Ademais, o que ela diz parece ser coerente com a experiência de cada um: os governos (como chefes de família...) não podem gastar mais do que arrecadam. Não é simples? Não. Em primeiro lugar. há muitos anos o governo brasileiro arrecada em impostos muito mais do que gasta com salários, custeio e investimentos. Tem superávit primário. O déficit só aparece quando agregamos as despesas ao pagamento de juros ao capital financeiro. Como a lei não prevê - nem admite - a compressão destas despesas, mas sim das demais, ela poderia chamar-se "Lei da Prioridade do Uso de Recursos Públicos para Pagamento aos Bancos", ou "Lei que Declara que Educação e Saúde São Menos Importantes que Bancos", ou "Lei que Torna Intocáveis os Lucros do Sistema Financeiro, Nacional e Estrangeiro, mesmo às Custas de Cortes em Atividades Essenciais", ou simplesmente "Lei do Mais Forte" - nomes que, pelo menos, teriam o mérito de permitir um debate". 16 "De Pernas Pro Ar, A Escola do Mundo ao Avesso", 6ª edição, L&PM, Porto Alegre-RS, 2002, p. 6. Ainda com enorme pertinência ao que se tenta sustentar ao longo do texto, o escritor uruguaio sublinha que "Nos subúrbios do mundo, chefes de estado vendem saldos e retalhos de seus países, a preço de liquidação de fim de temporada, como nos subúrbios das cidades os delinqüentes vendem, a preço vil, o butim de seus assaltos", p.p.6/7.
9
Com isso se fecha esse vicioso círculo, e, dele, exsurge a
miséria e suas variantes com incontida intensidade, se materializando através dos
guetos, das favelas, do analfabetismo, da fome, das prisões da vida e do mundo, tudo
a forjar os espaços de eliminação da dignidade e personificação humanas, mercê da
degradação total dos direitos teoricamente detidos por aquela vastidão de pessoas que,
do sistema, apenas sobram.
Para Hannah Arendt, a despersonificação (entendida como a
extinção civil da qual padece uma nação inteira de miseráveis neste vilipendiado país)
é o mal maior que se pode imputar ao gênero humano.
Pontifica ela que " a calamidade dos que não têm direitos
não decorre do fato de terem sido privados da vida, da liberdade ou da procura
da felicidade, nem da igualdade perante a lei ou da liberdade de opinião -
fórmulas que se destinavam a resolver problemas dentro de certas comunidades
- mas do fato de já não pertencerem a qualquer comunidade. Sua situação
angustiante não resulta do fato de não serem iguais perante a lei, mas sim de não
existirem leis para eles; não de serem oprimidos, mas de não haver ninguém mais
que se interesse por eles, nem que seja para oprimi-los".17
Forcejados num injusto sistema econômico que deles não quer
contato algum, esse vasto contingente de desterrados vaga por ai, perdido nessas
errâncias, à procura de uma trégua, ainda que breve, efêmera, nessa severa não-
existência que lhes foi legada.
São tão pacíficos e amplamente inofensivos, que vivem em
quase que completa invisibilidade social, como aqui já demarcado.
Milhões de pessoas - dentre as quais crianças - que culpa
alguma ostentam para justificar esse ininterrupto penar, essa vida sem qualquer laivo
17 "As Origens do Totalitarismo", Cia. das Letras, São Paulo, 1998, p. 329. Ainda sobre a opressão mediante a consolidação de um "Estado Policial" nestas terras do terceiro mundo, conferir Galeano, Eduardo, in "As Veias Abertas da América Latina", 36ª ed., Paz e Terra, São Paulo, 1994, pp. 303 e 304.
10
de perspectiva, calcorreando por estradas ermas, sempre do lado de fora das imensas
cercas que divisam os latifúndios. Para elas, só olham, nada mais.
Mas ressuma inacreditável o temor vivenciado por nossas
elites quando esses excluídos resolvem, norteados por insólitas lideranças, se unirem
em movimentos reivindicativos de uma divisão menos pérfida das benesses sociais,
dado que, em meio a tanto sofrimento, às vezes percebem que não têm nada a perder,
a não ser as peias que os prendem à miséria.
Quando isso acontece, a plutocracia corre a invocar o aparato
da mídia e seus vassalos interlocutores, denunciando esse "hediondo crime lesa-
pátria", consistente na absurda vindicação bradada por esse descontrolado exército de
miseráveis por um mínimo de justiça.
Não tarda, e a persecução estatal às lideranças desses abruptos
movimentos é logo acionada. No correr de sua pesada engrenagem, a história nos
revela que, para o pobre, o patíbulo é sempre certo.18
18 1 A práxis do Estado para com o latifúndio: como clássico exemplo desse praxismo, fazemos uso da notícia veiculada pelo jornal a Folha de São Paulo, em 20.03.2002 dando conta de que o ex-líder do PFL(agora DEM) na Câmara, Dep. Federal Inocêncio de Oliveira - que foi já elevado ao cargo de Presidente da Câmara dos Deputados e liderou a bancada governista ao longo do império FHC - mantinha em sua Fazenda "Caraíbas", localizada na divisa dos municípios de Gonçalves Dias e Senador Alexandre Costa, no interior do Maranhão, cerca de 50 trabalhadores rurais em regime de escravidão, que ali laboravam há meses, em condições degradantes de sobrevivência. Noticiou-se agora, em novembro de 2003, que o referido parlamentar teria sido condenado pelo delito de exploração de mão-de-obra escrava em 1ª instância. Mas em função desses fatos lamentáveis e gravíssimos, nunca se soube se a Câmara dos Deputados, através de sua Corregedoria, teria pelo menos conjeturado em instaurar processo disciplinar contra o dito deputado pela patente concretização de ato violador do decoro parlamentar, ou mesmo se seu partido teria cogitado em, pelo menos apurar, a prática de tão hediondo crime. Segundo estimativa do Prof. norte-americano e consultor da ONU sobre formas de escravidão no mundo, Kevin Bales, há no Brasil cerca de 200mil pessoas submetidas à situação análoga a de escravo (Folha de S. Paulo, p. A14, 02.02.2004). Ainda sobre esse tenebroso tema, no início de 2004 três auditores fiscais do Min. do Trabalho mais o motorista que os conduzia em investigação sobre trabalho escravo, foram mortos por latifundiários em Unaí, município situado na região noroeste de Minas Gerais (Folha de S. Paulo,p. A4, 30.01.2004). 2 A práxis do Estado para com os movimentos sociais: Um dos líderes do Movimento Social dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, José Rainha Júnior, ficou preso, sob a custódia do estado de São Paulo, entre julho a meados de novembro de 2003, sob a acusação de "chefiar quadrilha" quando liderava movimento reivindicativo na área do Pontal do Paranapanema-SP. O Ministério Público do Estado, cumprindo rigorosamente os ditames que lhes foram impostos, acusou-o, ainda, do delito de furto de "moirões de cerca" quando da imputada "invasão", além de ter protagonizado o irremissível delito de portar uma "garrucha velha" no exercício ilegal daqueles "nefandos" fatos. Segundo a Folha Online" de outubro de 2003, sua Esposa Diolinda Alves de Souza também fora presa pelo braço armado do Estado no dia 10 daquele mês, sob a acusação da prática dos mesmos crimes tributados ao marido. 3 A práxis do Estado para com a vergonha: segundo o site do MST (www.mst.org.br) entre 1989 a 2001 foram presos pelas milícias estatais cerca de 2.170 trabalhadores rurais que lutavam pela reforma agrária no país. E a Comissão
11
Sob o prisma da lógica que permeia o sistema concebido por
nossa classe dirigente, bradar por justiça social através de grupos de pessoas
destituídas de tudo, se afigura como intolerável crime de formação de "quadrilha ou
bando", eis que tais atividades, por demais "subversivas", afrontam a dogmática
tangente a guarnecer a sacrossanta propriedade privada e a suster uma mal forjada
retórica de "segurança jurídica". 19
Por esse roteiro de exclusões e insuportáveis injustiças, a
tensão social assoma como inevitável, e sob a histórica impunidade aqui tantas vezes
pontilhada, a oligarquia rural exprime uma pequena mostra do breviário de sua
indigência cultural ao distribuir panfleto na cidade de São Gabriel-RS, durante marcha
de trabalhadores sem-terra que ali se promovia, aconselhando os ruralistas,
"proprietários de aviões agrícolas, a pulverizar o acampamento do MST com cem
litros de gasolina", não sem observar que "sempre haverá uma vela acesa para
terminar o serviço".20
Como se é de notar, a lida pela igualdade substancial entre os
homens - por mais paradoxal que isso possa parecer - é ingrata, angustiante e severa. Pastoral da Terra - CPT, informa que só entre janeiro e agosto de 2005 foram assassinados no campo 28 trabalhadores rurais ligados aos movimentos sociais pela reforma agrária, sem nenhuma condenação dos autores ou mandantes desses homicídios, sem mencionar a triste morte da missionária Dorothy Stang, ocorrida em fevereiro de 2005, com enorme repercussão internacional. 19 Em artigo intitulado "Estado de Direito e reforma agrária", publicado no jornal "O Estado de São Paulo" de 11.03.2003, p. A-2, o então Secretário da Justiça de São Paulo, Alexandre de Moraes, teceu um rosário de objeções aos sucessivos atos de "invasão" promovidos pelo MST no país, porque tais atitudes ferem, segundo o autor do comentado texto, os "direitos fundamentais - entre eles o direito à propriedade privada e à segurança jurídica". 20 "Folha de São Paulo", "painel", p. A 4, de 20.06.2003. Esse breviário da perversidade de nossas elites foi publicado, na integra, na edição especial da revista "Caros Amigos", nº 18, setembro de 2003, sobre "Reforma Agrária", à p. 13, e, para nossa vergonha, ele diz: " Povo de São Gabriel, não permita que sua cidade tão bem conservada nestes anos seja agora maculada pelos pés deformados e sujos da escória humana. São Gabriel, que nunca conviveu com a miséria, terá agora de abrigar o que de pior existe no seio da sociedade. Nós não merecemos que essa massa podre, manipulada por meia dúzia de covardes que se escondem atrás de estrelinhas no peito, venha trazer o roubo, a violência, o estupro, a morte. Esses ratos precisam ser exterminados. Vai doer, mas, para as grandes doenças, fortes são os remédios. É preciso correr sangue para mostrarmos nossa bravura. Se queres a paz, prepara a guerra, só assim daremos exemplo ao mundo que em São Gabriel não há lugar para desocupados. Aqui é lugar de povo ordeiro, trabalhador e produtivo.Nossa cidade é de oportunidade para quem quer produzir e não há oportunidade para bêbados, ralé, vagabundos e mendigos de aluguel. Se tu, gabrielense amigo, possuis um avião agrícola, pulveriza à noite 100 litros de gasolina em vôo rasante sobre o acampamento de lona dos ratos. Sempre haverá uma vela acesa para terminar o serviço e liquidar com todos eles. Se tu, gabrielense amigo, és proprietário de terras ao lado do acampamento, usa qualquer remédio de banhar gado na água que eles usam para beber, rato envenenado bebe mais água ainda. Se tu, gabrielense amigo, possuis uma arma de caça calibre 22, atira
12
Mas, por que tanto temor da igualdade?
A resposta a tão pertinente indagação é por demais complexa
para os estreitos objetivos demarcados neste modesto arrazoado.
O que se sabe, e aqui se pode antecipar, é que a igualdade
incomoda, porque já foi dito que toda pessoa é única, incomensuravelmente única.
Nas sempre precisas palavras de José Saramago "diz-se
que só odeia o outro quem a si mesmo se odiar, mas o pior de todos os ódios deve
ser aquele que leva a não suportar a igualdade do outro, e provavelmente será
ainda pior se essa igualdade vier a ser alguma vez absoluta".21
O Abrigo
2 É conhecido o conto de Nietzsche sobre um velho louco,
que, munido de uma candeia, saiu pelo mundo à procura de Deus. Após se defrontar
com enormes adversidades, ser exposto à injusta irrisão dos homens, a sofrer na carne
a ingrata sensação de ser considerado um estorvo, o atormentado candeeiro anunciou
então ao mundo que Deus estava Morto, e que as igrejas e ermidas não eram outra
coisa, senão criptas e mausoléus de Deus.22
de dentro do carro contra o acampamento, o mais longe possível. A bala atinge o alvo mesmo a 1.200 metros de distância". 21 in "O Homem Duplicado", cia. das letras, São Paulo, 2002, p. 297. 22 "A gaia ciência", aforismo o "Homem louco", citado por Junior, Oswaldo Giacoia, "Nietzsche", edição Publifolha, 2000, S.P., pp. 18/19.
13
Não havendo espaço aqui para incursionar nos
desdobramentos políticos do aparente niilismo inserido no sobredito texto 23, para o
que no momento nos interessa em face dos demarcados limites deste escrito, é que de
tal crônica derivaram implicações morais que foram utilizadas como premissas
fundantes para que os homens que detêm o poder e a ciência prenunciassem a
supremacia da razão humana sobre a moral.
Afinal, como sugerido na alegoria dardejada por Dostoiévski,
se Deus está morto, tudo é permitido!24
Estabelecidos então os pressupostos teóricos para o
desenvolvimento do grande salto rumo ao cientificismo, o homem rompeu com
limites éticos e morais na busca do enriquecimento econômico que desde o seu
nascedouro sempre se ancorou na exploração das grandes multidões de desvalidos,
sobras de mão-de-obra barata para conveniente utilização em prol da incessante busca
de concentração de renda, trespassando para a construção de impérios que
consolidariam a primazia do sistema capitalista, fundado, como visto, no iluminado
esteio predisposto pelas infinitas possibilidades imanentes à razão humana, até
desembocar no avanço tecnológico que nos últimos séculos mais matou do que
dignificou vidas.25
Na esteira desse desenvolvimento tecnológico e econômico,
não foram poucos os extermínios em massa consumados nos campos de concentração, 23 Sobre a discutida tendência política irradiada da filosofia nietzschiana, afirma Norberto Bobbio em sua obra "Direita Esquerda", Unesp, São Paulo, 1994, p. 49, ser ele um dos principais inspiradores do nazismo, aduzindo que " esta inspiração derivasse de uma má interpretação ou, como creio, de uma das interpretações possíveis, é um problema que não nos diz respeito aqui". Em sentido contrário, absolvendo o filósofo de qualquer inspiração ideológica no referido movimento político, conferir Junior, Oswaldo Giacoia, op. cit., pp. 72/74 e Japiassú, Hilton e Marcondes, Danilo, "Dicionário Básico de Filosofia", Zahar Editor, RJ, 2001, p. 195. 24 Cf."Irmãos Karamázovi", Nova Cultural, SP, 1995, em especial o antológico diálogo estabelecido entre os irmãos Ivã e Alieksei, à pp. 189/203. 25 Hobsbawm, Eric, "A era dos Extremos", 2ª ed., Cia. das Letras, S.P., 1995, à p. 22, após fazer um escorço histórico dos benefícios oriundos do avanço tecnológico do homem, que abreviou distâncias e praticamente anulou o tempo em termos, principalmente, do desenvolvimento dos meios de comunicações, ao analisar o trágico século XX não consegue reprimir a seguinte indagação: "Por que, então, o século terminara não com uma comemoração desse progresso inigualado e maravilhoso, mas num estado de inquietação?" Em seguida responde: "Não apenas porque sem dúvida ele foi o século mais assassino de que temos registro, tanto na escala, frequência e extensão da guerra que o preencheu, mal cessando por um
14
as sucessivas guerras imperialistas submetendo, pela força bélica, a dignidade dos
povos do terceiro mundo, o aniquilamento da soberania dos países pobres e o
desrespeito à opinião pública mundial quando das atuais atividades genocídicas
perpetradas pelos impérios neoliberais sobre rincões que se situam na periferia do
mundo, forcejando desse insano exercício de poder um imensurável contingente de
mutilados, desempregados e analfabetos, a ponto de, não sem razão, afirmar Ernesto
Sabato, ao realizar uma reflexão sobre a atual conjuntura mundial, que, "chegamos à
ignorância por meio da razão".26
E como o senso moral do homem progride - se é que progride
- em ritmo infinitamente mais tardo do que a avidez econômica, política e bélica dos
que detêm o poder, é temeroso constatarmos que precocemente chegamos ao controle
dos conhecimentos básicos para o mais amplo aniquilamento através dos portentosos
artefatos nucleares, malgrado dois terços da população humana ainda não ter atingido
os rudimentos da cidadania27.
Diante desses desacertos, lamenta Norberto Bobbio que "a
arma total chegou cedo demais para a rusticidade dos nossos costumes, para a
superficialidade dos nossos juízos morais, para a imoderação das nossas ambições,
momento na década de 20, como também pelo volume único das catástrofes humanas que produziu, desde as maiores fomes da história até o genocídio sistemático". 26 "Antes do fim", Cia. das Letras, SP, 1999, p. 119. 27 Segundo a Unicef, mais de 01 bilhão de crianças estão sofrendo com a pobreza, o que significa mais da metade da população infantil do mundo. O estudo revelou que uma em cada três crianças no mundo vive em casas com chão de terra batida, com mais de 5 pessoas ocupando cada cômodo. Uma em cada cinco crianças no orbe, não tem acesso ao consumo de água potável. Meio bilhão de crianças não tem acesso a fontes precárias de informação como rádio, televisão, telefones, ou jornais. 134 milhões de crianças no mundo, entre 7 e 18 anos, nunca frequentaram uma escola. "Folha Online", 23.10.03. Ainda sobre o tema, noticia Trindade, José Damião de Lima , em seu antológico "História Social dos Direitos Humanos", ed. Peirópolis, S.P., 2002, p. 206, que "a riqueza mundial cresceu sete vezes entre 1948 e 1996, mas o número de pobres no mundo triplicou nesse período. Os 20% mais pobres do planeta detinham, ao término do século XX, apenas 1,1% das riquezas geradas, ao passo que os 20% mais ricos monopolizavam 82% dos ingressos mundiais. A quantidade de pobres cresce continuamente cerca de 25 milhões de pessoas por ano. Na Europa Oriental e na ex-União Soviética, as pessoas que vivem na pobreza passaram de 4 milhões em 1987 para 120 milhões em 1997. Por outro lado, os 447 indivíduos bilionários do planeta concentram em suas mãos renda equivalente à da metade dos habitantes da Terra (3 bilhões de pessoas) e as 200 maiores empresas multinacionais dominam 28% do valor produzido no mundo, enquanto empregam apenas 1% da força de trabalho". Diante desse quadro, indaga Eduardo Galeano: "como afogar explosões de rebelião das grandes maiorias condenadas? (...)Excluindo-se a caridade, sobra a polícia". in "As Veias Abertas da América Latina", Paz e Terra, 36ª, S.P., p. 304.
15
para a enormidade das injustiças a que a maior parte da humanidade está submetida,
não tendo outra escolha além da violência ou a opressão".28
Mas além dessas já sublinhadas, outras hecatombes nos são
inoculadas pelo avanço neoliberal. Talvez uma mais perversa porque, como já
antecipado na parte primeira deste relato, tende a extinguir o que há de mais caro à
personalidade humana: o sentido da vida, a possibilidade de buscar a felicidade
através de um trabalho livremente escolhido.
Em plena era da propalada "modernidade", da "globalização"
e do "fim da história", sob a ótica economicista que nos domina, o labor humano se
tornou um produto totalmente descartável. O caminho para a nadificação plena foi
franqueado.
Como observa Viviane Forrester "houve, sem dúvida, tempos
de angústia mais amarga, de miséria mais acerba, de atrocidades sem medidas, de
crueldades infinitamente mais ostensivas; mas jamais houve outro tempo tão frio,
geral e radicalmente perigoso.
"Se a ferocidade social sempre existiu, ela tinha limites
imperiosos, porque o trabalho oriundo das vidas humanas era indispensável para
aqueles que detinham o poder. Ele não o é mais; pelo contrário, tornou-se
incômodo".29
Aqui chegando, e volvendo ao tema alhures anunciado, temos
que esse ajuntamento desmedido de seres despersonificados e em andrajos de que
estamos a falar, não tendo um lugar seguro que sirva de abrigo, vagam por aí em meio
à "paisagens abertas, desertos medonhos, léguas cansativas, caminhos tristonhos, que
fazem o homem se desenganar"...
28 "Diário de um Século", ed. Campus, RJ, 1998, p. 216. 29 "O Horror Econômico", Unesp., S.P., 1997, p. 136.
16
E por serem muitos, incomodam aos inclusos desse sinuoso
sistema, para o qual - pelo que até aqui ressumou evidenciado - não representam mais
do que um indesejado estorvo.
Mas, como a moral, o direito, para eles, também está morto?
Os desígnios da razão também solaparam o direito?
O que é o direito?
Será que o direito se restringe a guarnecer com incontida
liberdade os caminhos por onde flui o capital, sedimentado no inflexível apego à
imaculada propriedade privada?
Será que o direito se traduz, tão somente, nas excelsas
decisões que, à mercê dos já nominados imperativos econômicos e consagradas em
vinculantes súmulas, cotidianamente afrontam comandos constitucionais que
claramente tentam impor limites aos exorbitantes ganhos monetários, inibindo, ao
sistema financeiro, a extorsiva cobrança de seus lucros?
O direito se compraz, somente, no endurecimento das coimas
para com os pobres, ao tempo em que perpetua a impunidade dos bárbaros delitos
cometidos pela fidalguia?
O direito - tal qual os valores morais - é assim tão estranho à
dignidade humana, para tão-só ser reconhecido e encontrado no ordenamento jurídico
ordinário, concebido pelo ideário liberal-burguês tantas vezes já referido?
Não. Cremos que não.
Pretende-se aqui demonstrar que o direito, em que pese a
mutilação diária à qual é submetido por interpretações que não extrapolam o campo
17
infecundo do reducionismo positivista e das fórmulas jurídicas prontas30, ainda insiste
em pulsar, e a irradiar os meios adequados - embora várias vezes esquecidos - de se
tentar pelo menos amenizar as agressões defluentes dessas misérias todas.
Com efeito, em mais uma tentativa de minorar os tormentos
provindos dos enormes malefícios humanos, pincelados, aqui, em trôpegas linhas,
em dezembro de 1948, através da resolução nº 217 - A (III), da qual o Brasil foi
signatário, as Nações Livres do Mundo, reunidas em Assembléia, Proclamaram os
Direitos Universais do Homem, assim dispondo:
Art. I: Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade
e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir
em relação umas com as outras com espírito de fraternidade.
Art. II.1: Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e
as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção
de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, opinião
política ou de outra natureza, origem nacional ou social,
riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.
...........................................................................
Art. III: Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à
segurança pessoal.
30 Streck, Lenio Luis, "Hermenêutica Jurídica e(m) crise", 2ª ed., Livraria do Advogado, Porto Alegre-RS, 2000, sobre as anotadas receitas de "aplicação do direito", aduz: "Com um pouco de atenção e acuidade, pode-se perceber que grande parte das sentenças, pareceres, petições e acórdãos são resolvidos através de citações do tipo "Nessa linha, a jurisprudência é pacífica (e seguem-se várias citações padronizadas de números de RTs, RJTs), ou "Já decidiu o Tribunal tal que legítima defesa não se mede milimetricamente (RT 604/327), (...) São citados, no mais das vezes, tão-somente os ementários, produtos, em expressivo número, de outros ementários. Este problema tende a se agravar, na hipótese da aprovação do efeito vinculante para as súmulas. Com esse tipo de procedimento, são ignorados o contexto histórico e social no qual estão inseridos os atores jurídicos, bem como não se indaga a circunstância da qual emergiu a ementa jurisprudencial utilizada. Afinal de contas, se "a jurisprudência torrencial vem decidindo que..." ou a "doutrina pacificamente entende que...", o que resta a fazer? Consequência disso é que o processo de interpretação da lei passa a ser um jogo de cartas (re)marcadas", p. 73. Ainda sobre o mote, cf. Dallari, Dalmo de Abreu, "O Poder dos Juízes", S.P., Saraiva, 1996, p. 95, ressalta que "ao utilizar tantos modelos de interpretação da lei, (o magistrado) considera-se exonerado de responsabilidade, atribuindo ao legislador as injustiças que decorrem de suas sentenças".
18
...........................................................................
Art.V: Ninguém será submetido a tortura, nem a tratamento
ou castigo cruel, desumano ou degradante.
Art. VI: Toda pessoa tem o direito de ser, em todos os
lugares, reconhecida como pessoa perante a lei.
...........................................................................
Art.VIII: Toda pessoa tem o direito de receber dos Tribunais
nacionais competentes recurso efetivo para os atos que
violem os direitos fundamentais que lhe sejam
reconhecidos pela Constituição ou pela lei.
...........................................................................
Art. XV: Toda pessoa tem direito a uma nacionalidade.
...........................................................................
Art.XVI.3: A família é o núcleo natural e fundamental da
sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do
Estado.
...........................................................................
Art.XXII: Toda pessoa, como membro da sociedade, tem
direito à segurança social e à realização, pelo esforço
nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a
organização e recursos de cada Estado, dos direitos
econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua
dignidade e ao livre desenvolvimento de sua personalidade.
19
Art. XXII: Toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre
escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de
trabalho e à proteção contra o desemprego.
...........................................................................
Art.XXV.1: Toda pessoa tem direito a um padrão de vida
capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar,
inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados
médicos e os serviços sociais indispensáveis, o direito à
segurança, em caso de desemprego, doença, invalidez,
viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de
subsistência em circunstâncias fora de seu controle
2: A maternidade e a infância têm direito a cuidados e
assistência especiais. Toda criança, nascida dentro ou fora
do matrimônio, gozarão da mesma proteção...
Em outra oportunidade, desta feita em 1986, a Assembléia
Geral das Nações Unidas novamente se reuniu e, através da resolução n. 41/128,
proclamou a “Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento” preconizando que:
“O direito ao desenvolvimento é um direito humano inalienável, em virtude do
qual toda pessoa e todos os povos estão habilitados a participar do
desenvolvimento econômico, social, cultural e político, a ele contribuir e dele
desfrutar, no qual todos os direitos humanos e liberdades fundamentais possam
ser plenamente realizados”( art.1º), enfatizando, ainda, que “A pessoa humana é
o sujeito central do desenvolvimento e deveria ser participante ativo e
beneficiário do direito ao desenvolvimento”( art.2º.1).
Outorgaram, aos Estados, “o dever de formular políticas
nacionais adequadas para o desenvolvimento, que visem ao constante
aprimoramento do bem-estar de toda a população e de todos os indivíduos, com
base em sua participação ativa, livre e significativa no desenvolvimento e na
distribuição equitativa dos benefícios daí resultantes” ( art. 2º.3).
20
Conclamou-se os Estados a “tomarem medidas firmes para
eliminar as violações maciças e flagrantes dos direitos humanos dos povos e dos
seres afetados por situações tais como as resultantes de apartheid a fim de ser
realizado o direito ao pleno desenvolvimento, assegurando, inter alia, igualdade
de oportunidades para todos no acesso aos recursos básicos de educação,
serviços de saúde, alimentação, habitação, emprego e distribuição equitativa de
renda...” (Arts. 5º e 8º do mesmo diploma normativo).
Em linhas gerais, todos esses princípios já haviam sido
consolidados em Assembléia precedente, ocorrida em 1966, cuja ata foi aprovada
pela Resolução n. 2.200-A(XXI), e ratificada pelo Brasil em 24 de janeiro de 1992,
onde se estabeleceu o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais.
Nessa oportunidade os Estados - participantes, inclusive o
Brasil, reconheceram “o direito de toda pessoa de ter a possibilidade de ganhar a
vida mediante um trabalho livremente escolhido ou aceito sendo obrigação dos
Estados a adoção de medidas apropriadas à salvaguarda desses direitos” (Art.
6º).
Os Estados - partes nesse Pacto também reconheceram “o
direito de toda pessoa de gozar de condições de trabalho justas e favoráveis, que
lhe assegurem, dentre outros fatores, uma existência decente” (Art. 7º, alíneas a,
inciso II).
Além de toda essa gama de direitos existe um outro, talvez
menos dispendioso para o Estado, embora da mesma forma negligenciado.
Um direito comezinho, vulgar, desses que de tão singelos
quase que passam desapercebidos ante nossos olhos. É o direito que toda criança
deveria ter de ser vista como objeto primordial, prioritário, fundamentador de
todos os atos e decisões tomados pelo Poder Público, tribunais, autoridades
21
administrativas ou órgãos legislativos dos Estados, para pô-las à salvo de todas
as formas de opressão. ( arts. 2º e 3º da convenção sobre os direitos da criança
de 1989, subscrita pelo Brasil em 1990).
Além desses conclamas, podemos assegurar que o direito à
habitação, tema principal deste ensaio, é garantido por uma malha infinda de
dispositivos encontrados em vários tratados, como, por exemplo, no artigo 5º, "e",
da Convenção Internacional para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
Racial de 1965; no artigo 9, 2, da Declaração sobre Raça e Preconceito Racial de
1978; Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a
Mulher, em seu artigo 14, 2, "h", também no artigo 27,3, da Convenção sobre
Direitos da Criança de 1989, na Declaração sobre Assentamentos Humanos de
Vancouver, 1976, seçãoIII, 8 e capítulo II (A.-3); na Agenda 21 sobre Meio
Ambiente e Desenvolvimento elaborada em 1992, capítulo 7 (6) e na Agenda
Habitat, de 1996, além, é claro, dos instrumentos internacionais antes expendidos.
Mas será que toda essa messe de princípios se mostra
suficiente para suplantar os “absolutos” preceitos legais que guarnecem o sacrossanto
direito à propriedade privada?
Os instrumentos internacionais de proteção aos Direitos
Humanos não podem ser vistos como mero acervo de boas intenções, daquelas que
não extrapolam o letargo característico do arcabouço das inutilidades jurídicas.
Pelo contrário, são eles princípios informadores do próprio
Direito Constitucional dos Povos, funcionam como contrapeso assegurador de
direitos e garantias mínimas a serem observados na consolidação do estatuto social.
Não vigem, portanto, só no plano formal, pois ganharam
concretitude e status de preceitos constitucionais ao serem incorporados
expressamente no texto da atual constituição, tanto assim, que o art. 4º da Lei
Maior impõe ao país a regência de suas relações internacionais pautada, dentre
outros princípios, pela prevalência dos direitos humanos (v. inc. II), já que
22
vivemos em um Estado Democrático de Direito que tem por um de seus
fundamentos a dignidade da pessoa humana (cfr. art. 1º, III da C.F.), e que
ostenta, dentre seus objetivos fundamentais a construção de uma sociedade
livre, justa e solidária; garantidora do desenvolvimento nacional através da
erradicação da pobreza e da marginalização, mediante a redução das
desigualdades sociais, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º e incisos).
Neste nosso país todos são iguais perante a Lei, garantindo-se
a efetividade do direito à Honra em meio a outros interesses primordiais à pessoa
humana, pois, aqui, ninguém será submetido a tratamento desumano ou
degradante (art.5, “caput” e III).
Neste nosso país, a propriedade atenderá sua função
social, e em caso de iminente perigo público a autoridade competente poderá
usar da propriedade particular, assegurando ao proprietário indenização
posterior (mesmo art., incs. XXII e XXV).
Aqui, no nosso país, a todos são assegurados direitos
sociais básicos como educação, saúde, trabalho, lazer, segurança e previdência
social, garantindo-se a todos, sem distinção alguma, um salário mínimo capaz de
atender às necessidades vitais básicas e às de sua família como moradia,
alimentação, vestuário, educação, saúde, etc...(arts. 6º e 7º, IV), e todos esses
princípios e direitos têm, segundo explicita a Constituição, aplicação imediata,
independentemente de qualquer regulamentação (§ 1º do Art. 5º).
Entornadas por nosso legislador todas essas justas promessas,
haveria de se fechar o ciclo com a garantia máxima de que “os direitos e garantias
expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos
princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República
Federativa do Brasil seja parte”.(Art. 5º, §2º).
23
Esta incorporação dos direitos humanos ao texto
constitucional não faz do Brasil um caso isolado.
Como noticia ANTONIO AUGUSTO CANÇADO
TRINDADE, ex-juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos, “nos
últimos anos o impacto de instrumentos internacionais de proteção dos direitos
humanos tem-se feito sentir em algumas Constituições. Ilustração pertinente é
fornecida pela Constituição Portuguesa de 1976, que estabelece que os direitos
fundamentais nela consagrados “não excluem quaisquer outros constantes das
leis e das regras aplicáveis de direito internacional”, e acrescenta: “Os preceitos
constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser
interpretados e integrados em harmonia com a Declaração Universal dos
Direitos do Homem” (Artigo 16,1 e 2). A disposição da Constituição da
Alemanha - com emendas até dezembro de 1983 - segundo a qual “as normas
gerais do Direito Internacional Público constituem parte integrante do direito
federal e sobrepõem-se às leis e constituem fonte de direitos e obrigações para os
habitantes do território federal ( Artigo 25), pode ser entendida como
englobando os direitos e obrigações consagrados nos instrumentos de proteção
internacional dos direitos humanos”. 31
Em continuação, salienta referido jurista que “o disposto no
art. 5º, § 2º da Constituição Brasileira de 1988 se insere na nova tendência de
Constituições latino-americanas recentes de conceder um tratamento especial ou
diferenciado também no plano do direito interno aos direitos e garantias individuais
internacionalmente consagrados.
"(...)A tendência constitucional contemporânea de dispensar
um tratamento especial aos tratados de direitos humanos é, pois, sintomática de uma
escala de valores na qual o ser humano passa a ocupar posição central. Um papel
importante está aqui reservado aos advogados de supostas vítimas de violações
de direitos humanos, particularmente nos países em que aquela tendência ainda
não se tenha acentuado com vigor: no intuito de buscar a redução de
24
considerável distância entre o reconhecimento formal, e a vigência real, dos
direitos humanos, consagrados não só na Constituição e na lei interna como
também nos tratados de proteção, cabe aos advogados invocar estes últimos,
referindo-se às obrigações internacionais que vinculam o Estado no presente
domínio de proteção, de modo a exigir dos juízes e tribunais, no exercício
permanente de suas funções, que considerem, estudem e apliquem as normas
dos tratados de direitos humanos, e fundamentem devidamente suas decisões”.32
Nessa linha de raciocínio pontifica LUIZ VICENTE
CERNICCHIARO, ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça, que “ (...) O
Direito não se confunde com a lei. A lei deve ser expressão do Direito.
Historicamente, nem sempre o é. A lei, muitas vezes, resulta de prevalência de
interesses de grupos, na tramitação legislativa. Apesar disso, a Constituição
determina: “Ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão
em virtude de lei.
“Aparentemente, a lei (sentido material) seria o ápice da
pirâmide jurídica. Nada acima dela! Nada contra ela! A Constituição,
entretanto, registra também voltar-se para “assegurar o exercício dos direitos
sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem estar, o desenvolvimento, a
igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna,
pluralista e sem preconceito, fundada na harmonia social...” (Preâmbulo).
Ainda que não o proclamasse, assim cumpria ser. Não se pode desprezar o
patrimônio político da humanidade! A lei precisa ajustar-se ao princípio. Em
havendo divergência, urge prevalecer a orientação axiológica. O Direito volta-se
para realizar valores. O Direito é o trânsito para concretizar o justo.
"O Judiciário, visto como Poder, não se subordina ao
Executivo ou ao Legislativo. Não é servil, no sentido de aplicar a Lei, como
alguém que cumpre uma ordem (nesse caso, não seria Poder). Impõe-se-lhe
31 "Instrumentos Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos", revista editada pelo Centro de Estudos da PGE/SP, 1996, p.18. 32 op. cit., pp. 21/23.
25
interpretar a Lei conforme o Direito. Adotar posição crítica, tomando como
parâmetro os princípios e a realidade social.
"(...)O Juiz é o grande crítico da lei: seu compromisso é
com o Direito! Não pode ater-se ao positivismo ortodoxo. O Direito não é
simples forma! O magistrado tem compromisso com a Justiça, no sentido de
analisar a lei e constatar se, em lugar de tratar igualmente os homens, mantém a
desigualdade de classes. (...) Em havendo discordância entre o Direito e a lei,
esta precisa ceder espaço àquele”. 33
E, indiscutivelmente, ao par de uma leitura mais atenta da
carta de princípios inserta no texto constitucional, aflora cristalina a constatação de
que o real senso do justo perseguido pelo estatuto social por ela proclamado -
embora, como visto, nem sempre obedecido - coincide com a primazia da dignidade
humana, que deveria ser a justa medida valorativa na concretização de todos os atos
estatais.
Sobre o tema afeto à eficácia das garantias
fundamentais gravadas na Constituição, pontifica FLÁVIA PIOVESAN,
ao adotar a concepção de Ronald Dworkin: (. . .) que o ordenamento
jurídico é um sistema no qual, ao lado das normas legais, existem
princípios que incorporam as exigências de justiça e dos valores éticos.
Estes princípios constituem o suporte axiológico que confere coerência
e estrutura harmônica a todo o sistema jurídico. O sistema jurídico
define-se, pois, como uma ordem axiológica ou teleológica de
princípios jurídicos que apresentam verdadeira função ordenadora, na
medida que salvaguardam valores fundamentais. A interpretação das
normas constitucionais advém, desse modo, de critério valorativo
extraído do próprio sistema constitucional”. 34
E acrescenta “ quão acentuada é a preocupação da
Constituição em assegurar os valores da dignidade e do bem-estar da pessoa humana, 33 "Direito Alternativo", artigo publicado na Revista "Consulex", nº 7, pp. 36/37.
26
como imperativo de justiça social. Na lição de Antonio Enrique Pérez Lunõ: 'Os
valores constitucionais possuem uma tripla dimensão: a) fundamentadora – núcleo
básico e informador de todo o sistema jurídico-político; b) orientadora – metas ou fins
pré-determinados, que fazem ilegítima qualquer disposição normativa que persiga fins
distintos, ou que obstaculize a consecução daqueles fins enunciados pelo sistema
axiológico constitucional; e c) crítica – para servir de critério ou parâmetro de
valoração para a interpretação de atos ou condutas. (...) Os valores constitucionais
compõem, portanto, o contexto axiológico fundamentador ou básico para a
interpretação de todo o ordenamento jurídico; o postulado-guia para orientar a
hermenêutica teleológica e evolutiva da Constituição; e o critério para medir a
legitimidade das diversas manifestações do sistema de legalidade'. Neste sentido, o
valor da dignidade da pessoa humana impõem-se como núcleo básico e informador de
todo o ordenamento jurídico, como critério e parâmetro de valoração a orientar a
interpretação e compreensão do sistema constitucional”. 35
Arrematando: “atente-se ainda que, no intuito de reforçar a
imperatividade das normas que traduzem direitos e garantias fundamentais, a
Constituição de 1988 institui o princípio da aplicabilidade imediata dessas normas, nos
termos do art. 5º, parágrafo 1º. Este princípio realça a força normativa de todos os
preceitos constitucionais referentes a direitos, liberdades e garantias fundamentais,
prevendo um regime jurídico específico endereçado a estes direitos. Vale dizer, cabe
aos Poderes Públicos conferir eficácia máxima e imediata a todo e qualquer preceito
definidor de direito e garantia fundamental. Este princípio tenta assegurar a força
dirigente e vinculante dos direitos e garantias de cunho fundamental, ou seja, objetiva
tornar tais direitos prerrogativas diretamente aplicáveis pelos Poderes Legislativo,
Executivo e Judiciário. No entender de Canotilho, o sentido fundamental desta
aplicabilidade direta está em reafirmar que 'os direitos, liberdades e garantias são
regras e princípios jurídicos, imediatamente eficazes e actuais, por via direta da
Constituição e não através da auctoritas interpositio do legislador. Não são simples
norma normarum mas norma normata, isto é, não são meras normas para a produção
34 “Direitos Humanos e o Direito Constitucional”, ed. Max Limonad, S.P., 1996, p. 60. 35 op.cit., p.59.
27
de outras normas, mas sim normas diretamente reguladoras de relações jurídico-
materiais' ”. 36
Para não dizerem que estamos sós, o nobre Juiz Federal
ANTONIO FRANCISCO PEREIRA, titular da 8ª Vara Federal de Belo
Horizonte, com a consciência voltada para essas aspirações, em pioneira e
antológica sentença, cunhada ante caso transido do mesmo drama humano aqui
tantas vezes sublinhado, assim proveu:
“Várias famílias (aproximadamente 300 - fl. 10)
invadiram uma faixa de domínio ao lado da Rodovia BR
116, na altura do KM 405.8, lá construindo barracos de
plástico preto, alguns de adubo, e agora o DNER quer
expulsá-los do local. “Os réus são indigentes”, reconhece a
autarquia, que pede reintegração liminar de posse do
imóvel. E aqui estou eu, com o destino de centenas de
miseráveis nas mãos. São os excluídos, de que nos fala a
Campanha da Fraternidade deste ano.
"Repito, isto não é ficção. É um processo. Não estou lendo
Graciliano Ramos, José Lins do Rego ou José do
Patrocínio. Os personagens existem de fato. E incomodam
muita gente, embora deles nem se saiba direito o nome. É
Valdico, José, Maria, Gilmar, João Leite (João Leite???).
Só isso para identificá-los. Mais nada. Profissão, estado
civil ( CPC art 282, II) para que, se indigentes já é
qualificativo bastante? Ora é muita inocência do DNER
se pensa que vou desalojar este pessoal, com a ajuda da
polícia, de seus moquiços, em nome de uma mal
arrevesada segurança nas vias públicas. O autor esclarece
que quer proteger a vida dos próprios invasores, sujeitos
36 idem, p.63/4.
28
a atropelamento. Grande opção! Livra-os da morte sob as
rodas de uma carreta e arrojá-os para a morte sob o
relento e as forças da natureza. Não seria pelo menos mais
digno - e menos falaz - deixar que eles mesmos
escolhessem a maneira de morrer, já que não lhes foi
dado optar pela forma de vida?
"O Município foge a responsabilidade 'por falta de
recursos e meios de acomodações' (fl. 17-v). Daí esta
brilhante solução: aplicar a Lei. Só que, quando a lei
regula as ações possessórias, mandando defenestrar os
invasores (art. 920 e segts. do CPC) ela - COMO TODA
LEI - tem em mira o homem comum, o cidadão médio,
que, no caso, tendo outras opções de vida e de moradia
diante de si, prefere assenhorar-se do que não é dele, por
esperteza, conveniência, ou qualquer outro motivo que
mereça a censura da lei e, sobretudo, repugne a
consciência e o sentido do justo que os seres da mesma
espécie possuem. Mas este não é o caso no presente
processo. Não estamos diante de pessoas comuns, que
tivessem recebido do Poder Público razoáveis
oportunidades de trabalho e de sobrevivência digna. Não.
Os 'invasores' ( propositadamente entre aspas)
definitivamente não são pessoas comuns, como não são
milhares de outras que 'habitam' as pontes, viadutos e até
redes de esgoto de nossas cidades. São párias da sociedade
(hoje chamados de excluídos, ontem de descamisados),
resultado do perverso modelo econômico adotado pelo
país. Contra este exército de excluídos, o Estado (aqui,
através do DNER) não pode exigir a rigorosa aplicação da
lei (no caso, reintegração de posse), enquanto ele próprio -
o Estado - não se desincumbir, pelo menos razoavelmente,
da tarefa que lhe reservou a Lei Maior. Ou seja, enquanto
29
não construir - ou pelo menos esboçar - 'uma sociedade
livre, justa e solidária' (CF, art. 3º, I), erradicando a
'pobreza e a marginalização'(n. III), 'promovendo a
dignidade da pessoa humana' (art. 1º, III), assegurando a
todos 'a existência digna', conforme os ditames da Justiça
Social (art. 170), emprestando à propriedade sua 'função
social' (art. 5º, XXIII, e 170, III), dando à família, base da
sociedade, 'especial proteção' (art. 226), e colocando a
'criança e o adolescente a salvo de toda a forma de
negligência, discriminação, exploração, violência,
maldade e opressão'( art.227)...”37
O Anseio
3 É curioso observar como não faltam argumentos para se
cumprir o óbvio, ou seja, que os dispositivos constitucionais, em especial aqueles
tangentes à emprestar esteio ao princípio básico da prevalência da dignidade humana,
existem justamente para serem cumpridos, efetivados, sacralizados.
Mas, conforme observação sempre atual, assestada por Karl
Marx "até agora, os filósofos só fizeram interpretar o mundo de maneiras diferentes:
cabe então transformá-lo".38
Porém, a transformação social no campo do direito, não
obstante a clareza dos preceitos constitucionais que ordenam a construção de uma
sociedade igualitária, justa, fraterna, erigida sobre a primazia da dignidade humana,
insiste em não ser aceita.
37 Sentença colhida do site www.dcc.unicamp.com.br
30
Por mais completos e vítreos que se apresentem os
dispositivos constitucionais que apontem para o combate à pobreza e a
marginalização, que direcionem o sentido do Estado para o aspecto fundamental do
fortalecimento daquela dignidade tantas vezes degradada pelos atos próprios de
governo, o raso normativismo incutido na dogmática jurídica reinante impede a
efetiva materialização das garantias elencadas naquelas primordiais normas, entre as
quais se encontra o direito à moradia, sob uma malsinada retórica de
"programaticidade" a caracterizar esses enunciados.
Como asseverou Dalmo de Abreu Dallari, ao comentar a
ossificação do direito pelo pragmatismo positivista dominante, que na aplicação do
ordenamento jurídico refuta qualquer interpretação axiológica dos enunciados
normativos, "desse modo a procura do justo foi eliminada e o que sobrou foi um
apanhado de normas técnico-formais, que sob a aparência de rigor científico,
reduzem o direito a uma superficialidade mesquinha. Essa concepção do direito é
conveniente para quem prefere ter a consciência anestesiada e não se angustiar com a
questão da justiça".39
Contudo, quando se refere a imperativos econômicos,
financeiros, patrimoniais, essa "programaticidade" nunca é lembrada para refrear a
eficácia dos dizeres constitucionais, e, mais das vezes, tais interesses são atendidos
pelos tribunais mesmo sob patente violação a comandos cravados na constituição.
Incrível, mas ela - as "normas constitucionais programáticas"
- só vêm à baila quando estamos por discutir a efetividade de preceitos que procuram
dignificar a existência humana.
Já disse Fernandez-Largo que el comprender es un ver
entorno.40
38 apud Wilson, Edmund, "Rumo à Estação Finlândia", Cia. das Letras, S.P., 1989, p. 125. 39 "O legalismo expulsou a justiça", jornal da Associação Juízes para a Democracia, nº 16, jan.fev. 99, p.3. 40 Apud Streck, Lenio Luiz, "Hermenêutica Jurídica e(m) Crise", livraria do advogado, Porto Alegre, 2ª ed., 2000, 209.
31
E do simples ver em torno, confrontando-nos com o
desagregado cenário social aqui tantas vezes delineado, é impossível deixar de
perceber a significância que nesses tempos de caos humano ganham os tratados
internacionais e os preceitos constitucionais que lhes são sucedâneos, regentes dos
direitos sociais, culturais e econômicos, sem os quais as garantias atreitas aos direitos
civis e políticos meramente formais, que visam, apenas, impor ao Poder Público
simples abstenções, não passam de um inane roteiro de palavras vãs.41
Ademais, avulta mais do que evidenciada a total superação
do discurso urdido em meio a dogmática jurídica tradicional em se tentar infirmar a
efetividade dos dispositivos constitucionais despontantes dos direitos sociais, à
mercê da ultrapassada retórica de serem tais normas "meramente programáticas",
mesmo porque, como ressaltado, o próprio texto constitucional, no § 1º de seu artigo
5º expressamente municia os preceitos geradores dos direitos fundamentais com a
amplitude inerente aos enunciados revestidos de eficácia plena.42
Corrobora Carlos Weis que "também por força do que dispõe
o § 1º do artigo 5º, as normas que definem os direitos econômicos, sociais e culturais
devem ser interpretadas no sentido de garantir-lhes aplicação imediata, gerando
direitos para seus titulares. Interpretando esta disposição, José Afonso da Silva o
entende como uma 'norma-síntese' da concepção constitucional de que os direitos
humanos (compreendidos os 'direitos fundamentais: individuais, coletivos, sociais, de
nacionalidade e políticos') só cumprem sua finalidade se as normas que os expressem
tiverem efetividade".43
41 Weis, Carlos, "O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais", artigo inserido na coletânea "Direitos Humanos: construção da liberdade e da Igualdade", editada pelo Centro de Estudos da PGE/SP, em 1998. "Seja como for, a tentativa de se partir os direitos humanos em duas categorias com importância desigual, foi posta por terra menos de dois anos após a adoção dos pactos Internacionais, na Conferência Mundial realizada em Teerã em 1968, na qual se afirmou peremptoriamente a indivisibilidade e a interdependência dos direitos humanos: "Como os direitos humanos e as liberdades fundamentais são indivisíveis, a realização dos direitos civis e políticos sem o gozo dos direitos econômicos, sociais e culturais torna-se impossível".p.296. 42 Streck, Lenio Luiz, op. cit., p. 219, aduz: "Para a elaboração de um discurso crítico, torna-se indispensável negar a inegabilidade dos pontos de partida (Ferraz Jr) no qual se assenta o discurso dogmátio. Cometendo infidelidades dogmáticas, há que se Ter claro, por exemplo, que, no campo da aplicabilidade das normas constitucionais, não há um dispositivo que seja, em si mesmo, programático ou de eficácia contida ou limitada, como o quer o discurso jurídico dominante. Ora, um dispositivo terá ou não determinada eficácia a partir do processo de produção de sentido que exsurgirá do processo hermenêutico e que dependerá do jogo de forças que se travará no respectivo campo jurídico". 43 op. cit., p. 309.
32
Ainda na vereda de sustentar o óbvio, e com Lenio Streck
podemos asserir que não há texto constitucional abstrato, universalizante, pois, 'a
Constituição constitui, a Constituição vincula, a Constituição estabelece as condições
do agir político-estatal'.44
Luís Roberto Barroso nos empresta um bem acabado perfil
do significado do que se está por tentar expor, ao pontificar que " a constituição,
como é corrente, é a lei suprema do Estado. Na formulação teórica de Kelsen, até
aqui amplamente aceita, a Constituição é o fundamento de validade de toda a ordem
jurídica. É ela que confere unidade ao sistema, é o ponto comum ao qual se
reconduzem todas as normas vigentes no âmbito do Estado. De tal supremacia
decorre o fato de que nenhuma norma pode subsistir validamente no âmbito de um
Estado se não for compatível com a Constituição".45
E no centro de tantos axiomas, não é demais concluir que
qualquer ato estatal, seja ele normativo, administrativo, judicante que afronte
os dogmas constitucionais e impeçam a concretização do princípio republicano
atreito ao fortalecimento da dignidade da pessoa humana, como, às escâncaras,
o são, por exemplo, os sucessivos contratos de aditamento da inexplicada e
eterna dívida pública do país, as leis que, como a de "responsabilidade fiscal",
inibem a estruturação do cambaleante aparato de serviços essenciais afetos ao
Estado, sobrepujando, em benefício direto daqueles que vivem a parasitar o
erário público, a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais
prometidos em inúmeros tratados que, como se disse, foram solenemente
subscritos por este país, todos esses atos, como afirmado, se afiguram
inegavelmente inconstitucionais, porque francamente contrários aos preceitos
garantistas embutidos no ordenamento constitucional.
Como observa Alexandre Morais da Rosa: "é que a
Constituição, como norma-mãe (fundamento de validade material e formal do
sistema), deve ser suprema. Todos os dispositivos e interpretações possíveis devem
perpassar pelo seu controle formal e material, não podendo ser infringida ou 44 "Hermenêutica...", p. 288.
33
modificada ao talante dos governos públicos. (...) J.J. Gomes Canotilho ensina que 'a
parametricidade material das normas constitucionais conduz à exigência da
conformidade substancial de todos os atos do Estado e dos poderes públicos com as
normas e princípios hierarquicamente superiores da Constituição' ".
Continua referido constitucionalista a dizer que: "é dever
primevo dos atores jurídicos a compreensão adequada da Constituição Federal,
concretizando-a na sua maior extensão possível, primordialmente no tocante aos
Direitos Fundamentais. Existe a necessidade orgânica de convergência das práticas
jurídicas e sociais aos regramentos Constitucionais relativos aos Direitos
Fundamentais, estabelecendo-se, portanto, um sistema de garantias simultâneo de
preservação e realização. Essa é uma das tarefas do ator jurídico garantista no Estado
Democrático de Direito: tutelar materialmente os direitos e garantias individuais e
sociais".46
Para Luigi Ferrajoli "a sujeição do juiz à lei não é de fato,
como no velho paradigma juspositivista, sujeição à letra da lei, qualquer que seja o
seu significado, ma sim sujeição à lei somente enquanto válida, ou seja coerente com
a Constituição. (...) Daí deriva que a interpretação judicial da lei é também sempre
um juízo sobre a própria lei, relativamente à qual o juiz tem o dever e a
responsabilidade de escolher somente os significados válidos, ou seja, compatíveis
com as normas constitucionais substanciais e com os direitos fundamentais por elas
estabelecidos".47
Reforçando o sentido das premissas precedentemente
sublinhadas, enfatiza Lenio Luiz Streck que "a modernidade propôs uma dupla
possibilidade para a humanidade. Por uma delas, a realização da razão seria o
desenvolvimento universal para um sistema social que concretizasse o princípio da
"igualdade formal", através da crescente redução das desigualdades reais no mundo
moderno. Tal não aconteceu. Ao contrário, o que ocorreu foi a pós-modernidade
aprofundar a irracionalidade, aumentar as diferenças sociais e consolidar relações 45 "Interpretação e Aplicação da Constituição", S.P., Saraiva, 1998, p. 54. 46 "O que é Garantismo Jurídico", ed. Habitus, Florianópolis-SC, 2003, p.p.37/38.
34
cada vez mais alienadas. Foi isso o que os homens modernos fizeram da sua história.
A razão foi assaltada no sentido de ser despida de sua vocação humanizadora (Tarso
Genro). Os legados da modernidade longe estão de serem realizados no Brasil.
"O Direito - conclui o mencionado jurista - como um desses
principais legados - visto como instrumento de transformação social e não como
obstáculo às mudanças sociais - formalmente encontrou guarida na Constituição de
1988. A forma desse veículo de acesso à igualdade prometida pela modernidade foi a
instituição do estado Democrático de Direito, que, porém, longe está de ser
efetivado. É despiciendo dizer que o Estado Social-Providência (ainda) não ocorreu
no Brasil. O propalado welfare state, no Brasil, foi (e é) um simulacro. O Estado
interveio na economia para concretizar riquezas. O Direito, por sua vez, foi (e
continua sendo) utilizado para sustentar essa 'missão' (secreta) do Estado, na medida
em que este é entendido em sua função (meramente) ordenadora/absenteísta.
"O que existe, pois, é uma imensa dívida social a ser
resgatada. Considerando-se que a fórmula do estado Democrático de Direito destina-
se, justamente, para instrumentalizar o Direito como um campo privilegiado na
concretização dos direitos sociais mediante o deslocamento do foco de decisão do
Poder Executivo e do Legislativo para o Judiciário - e levando-se em conta que a
maioria dos direitos previstos na Constituição ainda não se realizou, é possível
afirmar que a dogmática jurídica tem obstaculizado a realização/efetivação desses
direitos".48
Sedimentadas assim todas essas premissas que convergem
na inexorável constatação de que todos os atos de império do Estado (sejam eles
de cunho governamental, contratual, legiferante ou mesmo judicial) que
impliquem em empeços à materialização de toda essa vasta gama de direitos
sociais tendentes a construção de uma sociedade justa e solidária, erradicadora
da miséria e da marginalização e edificante da supremacia da dignidade
humana sobre todas as coisas, todos eles ressumam francamente
inconstitucionais, devendo, ao que interessa ao tema aqui expendido, serem
47 "O Direito como sistema de garantias", inserido "Novo em Direito", obra coordenada por Oliveira Júnior, José Alcebíades, livraria do advogado, Porto Alegre-RS, 1997, p.90/91. 48 op. cit., pp. 215/216.
35
assim reconhecidos, mediante a tutela jurisdicional a ser emitida por influxo do
controle difuso em qualquer processo judicial cuja questão seja desta forma
suscitada.
Aqui, a primeira consequência prática visando a
concretização dos direitos sociais cronicamente sonegados ao povo, que se procura
abordar neste arrazoado.
Ancorando estas induções, argumenta Alexandre Morais da
Rosa que " diante dessa nova conformação, pode o ator jurídico analisar a norma
isoladamente e deixar de aplicá-la por não ser válida em face do caso específico,
apesar de válida em outra situação jurídica. Significa a possibilidade da resistência
constitucional , autorizada pela legítima possibilidade de opinião
material/constitucional sobre a norma jurídica".49
Ou, de acordo com o que se tem insistentemente sustentado,
pondera o mesmo jurista que "nesse pensar, compete especificamente ao magistrado,
no modelo garantista, renunciar à função de boca repetidora da lei ou mesmo
decorativa desta. O magistrado, no modelo positivista tradicional, possui relação
formal com a Constituição, demitindo-se - até inconscientemente, às vezes - do
dever ético-político de absoluta intimidade com o texto constitucional. Esse
magistrado é um burocrata informado pelo arsenal técnico disponibilizado pela
dogmática jurídica, valorizador da forma, em desfavor da substância. Acredita, ainda,
que a forma é a garantia da eficácia do direito, sem qualquer valoração, cumprindo as
normas simplesmente porque existem e têm vigência (aspecto meramente formal).
Continua interpretando a Constituição à luz do Código Civil. Renuncia ao
irrenunciável: o seu poder-dever de controlar difusamente a constitucionalidade
49 " O que é o Garantismo Jurídico",...,p. 50. Ainda sobre a possibilidade do controle administrativo da constitucionalidade de lei pelo próprio Executivo, enuncia Binenbojm, Gustavo, "A Nova Jurisdição Constitucional Brasileira", Renovar, RJ, 2001, p. 211, que "no desempenho de sua função administrativa, entretanto, também o Poder Executivo interpreta e aplica a Constituição. Assim, ao verificar uma incompatibilidade entre normas de diferente hierarquia que se apliquem à mesma situação fática, deve o Poder Executivo optar por cumprir a norma hierarquicamente superior", donde se segue que o discurso oficial para justificar a ausência de investimentos sociais neste país por conta dos mal urdidos "limites prudenciais" encontrados na "lei de responsabilidade fiscal" não passa de infundada falácia.
36
material do ordenamento infraconstitucional, tranquilizando-se com a mera
concordância formal com a Lei Maior".50
Por outro ângulo - e agora adentrando à segunda proposição
aqui sustentada - todos os direitos sociais, econômicos e culturais encravados na
Constituição e também constantes dos incontáveis instrumentos internacionais de
direitos humanos firmados pelo país - dentre os quais o específico direito à
moradia - geram uma obrigação positiva ao Estado (entendido aqui em sentido
amplo), de cuja inobservância deriva o irreprimível direito subjetivo de qualquer ser
habitante destas paragens em postular, via tutela jurisdicional , a mais ampla e justa
indenização em face do Estado, diante do insistente e histórico descumprimento
daquela messe de direitos fundamentais universalmente entoados.
Não se ignora aqui o aspecto progressivo da eficácia
normativa embutida nos vários tratados internacionais regentes dos direitos sociais,
econômicos e culturais, ordenando aos Estados pactuantes a corporificação desses
direitos à população vitimizada em escala condizente com seus recursos materiais.51
Mas - como repisado na primeira parte deste escrito -também
não podemos olvidar que contamos com a disponibilidade necessária de recursos
materiais aptos a resgatar a grande maioria da população do sempiterno estado de
indigência ao qual foi relegada em função única das sucessivas implementações de
políticas econômicas incontestavelmente equivocadas e perversas, impostas ao país
por nossos gestores, caminhos esses que só não são alterados em razão da ausência
de vontade política do estamento social que sempre deteve o poder.
A manutenção desse modelo político-econômico excludente
ofende de forma direta os ditames constitucionais que visam a consolidar uma
sociedade justa e solidária, dignificando a pessoa humana como escopo essencial
desta enfermiça república, valores esses que foram guindados, pela norma
50 op. cit., pp. 81/82. 51 Sobre esse específico enfoque, cf. Weis, Carlos, op. cit, onde pondera que "(...) a eficácia das normas de direitos sociais, de outra forma, depende da ação estatal, geralmente complexa e que requer ações coordenadas, dando-se de forma progressiva e limitada pelas possibilidades materiais", p. 312.
37
constitucional, ao aporte axiológico que deveria ser indissociável de qualquer ato
porventura concebido ou consumado pelo Poder Público.
Mas lastimavelmente não o é. Por isso vivemos a
testemunhar esse circundante estado de desagregação social, já tantas vezes
delimitado ao longo deste arrazoado.52
Portanto pode-se afirmar que o Estado, representante
máximo da sociedade, corporificado pela União, gestora suprema da política
social, econômica e habitacional neste país (artigo 21, IX e XX c.c. 170 da CF),
perpetra cotidianamente ato ilícito, tanto por ação como por omissão, ao
suprimir da infinda legião de miseráveis que vivem por estas terras as mínimas
e mais parcas perspectivas de vida, fazendo eclodir, em meio ao cenário que até
aqui se está a descrever, a possibilidade de ser dada concretude, mediante a
tutela jurisdicional, do direito assegurado pelo artigo 37, § 6º da Carta
Republicana, regulador da responsabilidade objetiva estatal quanto aos danos
decorrentes de sua inércia ou desastrosa atuação.53
Não é preciso muito esforço interpretativo para chegarmos à
conclusão de que o direito à moradia materializa um dos mais importantes direitos
sociais encontrados na enorme gama de instrumentos internacionais de direitos
humanos subscritos por esta pátria, eis que um abrigo minimamente adequado é o
ponto de partida para uma vivência digna, ao largo da marginalização e do
desamparo tão frequentes nos dias que correm.
52 Ainda Weis, em que pese as considerações acima, acentua que uma das funções dos instrumentos asseguradores dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais consiste, precisamente, em servir como "um empecilho ao retrocesso da política social do Estado que, tendo alcançado um certo nível de proteção dos respectivos direitos, não pode retroceder e com isso baixar o padrão de vida da comunidade"., op. cit, p. 312. 53 Pfeiffer, Roberto A Castellanos e Agazzi, Anna Carla, "Integração, Eficácia e Aplicabilidade do Direito Internacional dos Direitos Humanos no Direito Brasileiro", artigo inserido na coletânea de textos "Direitos Humanos: Construção da Liberdade e da Igualdade", editado pelo Centro de Estudos da PGE/SP, 1998, p. 223, sobre as principais consequências da aplicabilidade imediata dos direitos estatuídos nos referidos tratados, aduzem que: "1 todas as disposições que estabeleçam direitos, exceto se não fornecerem os parâmetros mínimos necessários ao seu exercício, são imediatamente exigíveis; 2 São inválidas todas as disposições legais cujo conteúdo contrarie normas estabelecidas nos tratados, pouco importando se as mesmas sejam ou não auto-executáveis; 3 Nas obrigações de prestar, de o Estado cumprir garantias, o desatendimento pode ser impugnado, por intermédio, por exemplo, de ação civil pública. Assim, também essa espécie de omissão pode render ensejo à impugnação judicial".
38
Por conta dessa relevância, José Afonso da Silva pontifica
que o conteúdo do direito à moradia "envolve não só a faculdade de ocupar uma
habitação. Exige-se que seja uma habitação de dimensões adequadas, com
condições de higiene e conforto que preserve a intimidade pessoal e a
privacidade familiar, como se vê na Constituição Portuguesa (art. 65). Em
suma, que seja uma habitação digna e adequada, como quer a Constituição
Espanhola (art. 47). (...) É que a compreensão do direito à moradia, como
direito social, agora inserido expressamente em nossa Constituição, encontra
normas e princípios que exigem que ele tenha aquelas dimensões. Se ela prevê,
como um princípio fundamental, a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III),
assim como o direito à intimidade e à privacidade (art. 5º, XI), então tudo isso
envolve, necessariamente, o direito à moradia. Não fosse assim seria um direito
empobrecido".54
E guardando indisfarçável conexão ao até agora asseverado,
arremata o apontado jurista: "tal direito consiste no direito de obter uma moradia
digna e adequada, revelando-se como um direito positivo de caráter prestacional,
porque legitima a pretensão do seu titular à realização do direito por via de ação
positiva do Estado."55
Em suma, frente à histórica inefetivação dos direitos sociais
por nosso corpo dirigente, o instrumento jurídico apto a materializar o acesso ao
direito à moradia a qualquer pessoa (ou coletividade de pessoas) que vivencie a
situação de exclusão a esse definido e tão significativo bem, reside na possibilidade
de, através de uma demanda indenizatória, postular, em face da União, a mais
completa e justa reparação desse sonegado direito, cujo quantum deverá ser definido
através de oportuna liquidação por arbitramento 56 ou mesmo delimitado, mediante
perícia no bojo mesmo do correspectivo processo judicial, e deverá traduzir um valor
que reflita o custo necessário para a edificação de moradia adequada, a ser erigida
em terreno dotado de todos os equipamentos urbanos indispensáveis à propiciar ao
54 "Curso de Direito Constitucional Positivo", Malheiros, SP, 19ª ed. 55 op. cit., mesma pág. 56 artigo 606, II, CPC.
39
postulante uma existência digna, conforme as promessas constitucionais tantas vezes
entoadas.
Os administrados - aviltados contribuintes - não irão, com
certeza, se queixar dessa penalização, pois, para eles, a civilidade do ente maior da
sociedade - que é o Estado - é muito mais importante do que qualquer obra pública
inútil, como tantas que existem por aí.
Nas expressivas palavras de Rodolfo Bulrich “...é
necessário que a coletividade suporte e indenize os danos cometidos por seus
governantes. Assim se assegurará também o progresso político do país, porque
sabendo o eleitor que os erros ou faltas dos que o governam se traduzirão em
encargos que ele próprio há de suportar, será mais cuidadoso na eleição dos
seus candidatos e tomará mais zelo do que toma na atualidade nas questões
políticas ou administrativas que interessam à marcha da nação”. 57
O provimento indenizatório assim proferido, servirá,
também, para afastar a eterna impressão de injustiça, que historicamente se
arraigou sobre o consciente coletivo – e com vasto anteparo de razões –
exsurgindo um outro relevantíssimo escopo jurisdicional, intitulado por
doutrinadores da envergadura de Cândido R. Dinamarco como escopo social da
jurisdição, que visa eliminar a litigiosidade contida decorrente daquela
sensação de descrédito do modelo estatal de distribuição de justiça, obrigando o
Estado a cumprir perante a sociedade seus direitos e principalmente suas
obrigações, pois, “na medida em que a população confie em seu Poder
Judiciário, cada um de seus membros tende a ser sempre mais zeloso dos
próprios direitos e se sente mais responsável pela observância dos alheios”. 58
57 Apud Dias, José de Aguiar. "Da Responsabilidade Civil", Forense, RJ, 1994, vol. II, p.557.
40
O Mirante
4 Ficou assentado linhas atrás que compreender é ver em
torno.
Estamos já inseridos - pelo menos sob o prisma cronológico -
no século XXI, e, transpostos mais de 18 anos da promulgação da extensa carta de
direitos sociais alinhavada na Constituição de 1988, não conseguimos, ainda, superar
a barbárie circundante, ou pelo menos amenizar seus efeitos, consolidando o
processo civilizador do país graças, em muito, à inobservância dos Direitos Sociais
titularizados pela ampla maioria vitimizada, cujo martírio aqui tanto foi pontuado.
O Poder Judiciário, salvo restrita exceção de seus
componentes, historicamente se mostrou refratário ao enfrentamento dessa enorme
gama de desarranjos sociais subjacentes à relação jurídica-processual, uma vez que
dogmatizado pelos estéreis cânones do positivismo ortodoxo-legalista, sempre viu
nessa atroz realidade um mero conjunto de fatores "destituídos de relevância
jurídica", consoante disforme ressonância solfejada do discurso jurídico dominante.
A temática foi bem examinada por Lédio Rosa de Andrade,
que ponderou: "Qualquer reflexão geral sobre o Direito que despreze a realidade
socioeconômica do país onde o mesmo é aplicado estará fadada a ser mero exercício
intelectual sobre a irrealidade, gratuita ficção, uma ilusão, uma quimera, sem a
mínima importância para as pessoas e para a história real".59
Para se ter uma idéia da práxis cotidiana do Judiciário,
referido jurista nos conta que: "na década de oitenta, os principais conflitos
resolvidos pelo Poder Judiciário foram referentes às seguintes categorias: questões
trabalhistas, problemas criminais, separação conjugal, desocupação de imóveis,
pensão alimentícia, conflito de vizinhança, conflito pela posse da terra, cobrança de
58 "A Instrumentalidade do Processo", RT, SP, 2ª ed., 1990, pp. 224/5. 59 "Introdução ao Direito Alternativo Brasileiro". Ed. Livraria do Advogado, Porto Alegre-RS, 1996, p. 19.
41
dívidas e herança, dizendo respeito a três áreas distintas do Direito, quais sejam:
Trabalhista, Criminal e Civil".60
A despolitização dos temas levados à discussão no âmbito do
sistema judiciário levou ao inelutável retrocesso na concretude dos Direitos Sociais,
Econômicos e Culturais, contribuindo, em grande escala, para dimensionar ainda
mais o enorme abismo de desigualdades sociais caracterizador da sociedade
brasileira.
Essa postura acrítica no exercício da jurisdição é totalmente
incompatível com a construção e luta pela consolidação do prometido Estado Social
de Direito, estampado na Constituição Federal, ambiente este em que, também
como afirmado alhures, o centro de discussões garantidor da primazia dos Direitos
Fundamentais deveria ser o próprio Judiciário.
No presente tema, a bem da verdade, as tentativas de
materializar os Direitos Sociais nos meandros da tutela jurisdicional do Estado são
inegavelmente tímidas, circunscritas à cominação dirigida ao Poder Público para
implementação de creches ou pré-escolas sonegadas à população carente 61,
distribuição gratuita de medicamentos aptos a combater graves enfermidades62,
muito embora embotadas pelo reacionarismo reinante dentro do sistema.63
60 Andrade, Lédio Rosa de. op. cit, p. 95. Nessa mesma obra, baseado em dados fornecidos por Gilberto Dimenstein, deixou consignado que: "intervenção da justiça, conforme apurou a Pesquisa Nacional de Amostragem Domiciliar (PNAD) em 1991, é preponderante nos conflitos por pensão alimentícia (73,2%), questões trabalhistas (66,6%) e nos conflitos pela posse da terra (51,3%). (...)No conjunto de todos esses conflitos, apenas 33% das pessoas envolvidas em algum tipo de conflito buscaram o Judiciário para a solução de seus problemas. Não espanta portanto que, conforme pesquisa de opinião do Datafolha, publicada em 12.3.94, 35% dos brasileiros tivessem considerado o Judiciário como 'regular', 25% como 'ruim e péssimo' e apenas 25% como 'ótimo ou bom'"., op. cit. p. 94. 61 Exemplo marcante desse tipo de tutela pode ser extraído da arrojada sentença proferida pelo magistrado catarinense Alexandre Morais da Rosa, nos autos da Ação Civil Pública nº 038.03.008229-0, desenvolvida perante a Vara da Infância e Juventude da comarca de Joinvile, datada de 12.05.2003, na qual o ínclito julgador impôs à municipalidade de Joinvile a obrigação de imediata instalação de 24 Ceis - Centro de Educação Infantil e 14 Jardins de Infância, visando atender 2.948 crianças excluídas de tão essencial prestação de serviço público. 62 Corporificando o Direito à Vida, encontramos inúmeras decisões obrigando o Estado a dispensar gratuitamente medicamentos de combate à AIDS: TJSP, apel. Cível nº 24.332-0; Agravo Instrumento nº 22.239-5; JTJ 188/227; Ação Civil Pública nº 053.00.002474-3, da 1ª Vara da fazenda Pública de São Paulo; para combate à Esclerose Lateral Amitrófica - ELA: STF, AG nº 238.328-RS, rel. Min. Marco Aurélio, DJU 11.5.99; STJ Resp. 249.026-PR, rel. Min. José Delgado, DJU 26.6.2000; STJ - MS nº 11.183-PR, j. em 22.8.2000, 1ª Turma, rel. Min. José Delgado; e, visando distribuir "Interferon Peguilado",
42
Tangenciando o assunto para uma abordagem mais próxima
ao tema dominaste neste estudo, podemos concluir que nos conflitos agrários o
Poder Judiciário sempre serviu como instrumento de controle do poderio daqueles
que dominam o latifúndio em desfavor dos miseráveis sem opção de vida ou de
abrigo, pois suas decisões sempre apegaram-se à superproteção do dogma maior
afeto à prevalência da propriedade privada (compreendida aqui em sentido lato)
sobre qualquer outro direito.
Habitamos em um dos últimos rincões que ainda não
estabeleceu ou mesmo iniciou o processo de reforma agrária, tendente a debelar a
aviltante concentração de terras sedimentada em sua infinda extensão continental,
aglutinadora dos latifúndios construídos, mais das vezes, através de atividades
ilegais na ocupação da terra e à mercê da histórica exploração das minorias de
miseráveis radicados em seus limites.
Conforme acentua César Benjamim "os números são
avassaladores. Numa ponta, quase 53% dos proprietários detêm menos de 3% da
área, enquanto menos de 1% detêm 44% da área (a concentração, na verdade, é
muito maior, pois esses números deixam de fora milhões de famílias de
trabalhadores rurais que não têm nenhuma terra). O mesmo IBGE informa que os
estabelecimentos com menos de 10 hectares usam 65% de sua área com lavouras,
enquanto os estabelecimentos com 10 a 100 hectares usam 28%. Grosso modo, eles
correspondem à agricultura familiar. Já os estabelecimentos com 1.000 a 10.000
hectares usam 6% de sua área, enquanto os com mais de 10.000 hectares mantêm
plantios em apenas 2% das terras que ocupam. Na média, o Brasil utiliza com
lavouras apenas 14% de sua área agricultável total, mantendo na ociosidade mais de
para combate à Hepatite C, cf. MS nº 1048/053.01.017161-7, da 2ª Vara da Fazenda Pública da comarca de São Paulo, j. em 7.3.01, dentre outros exemplos. 63 Representando a ingente resistência ao avanço na concretização dos Direitos Sociais, transcrevemos aqui triste decisão emitida pelo juiz de direito titular da 7ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de São Paulo que, na Ação Cominatória nº 968/01, aos 26.7.2001, indeferiu pedido de Antecipação da Tutela Jurisdicional postulada por portadores de HIV em estágio avançado da moléstia, visando a obtenção de coquetel de medicamento tendente a lhes emprestar sobrevivência, assim amparando sua decisão: "(...)Por outro lado não há fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação. Todos somos mortais. Mais dia, menos dia, não sabemos quando, estaremos partindo, alguns, por seu mérito, para ver a face de Deus. Isto não pode ser tido por dano. Daí o indeferimento da antecipação da tutela".
43
10 milhões de hectares bons. Tal uso pouco intensivo da terra, como se vê, tem
relação direta com a predominância da grande propriedade."64
Aprofundando esse enfoque, ressalta Lédio Rosa de Andrade
que" as brutais diferenças sociais não são frutos só da concentração de renda. Um
outro fator importante é a má distribuição da terra e a falta de uma reforma agrária.
O Brasil é um país de 8.511.996,3 Km2, e 80% desta imensidão de terras, ou seja,
6.809.597Km2, pertencem a 10% de fazendeiros. Existem fazendas, de propriedade
de uma só pessoa, maiores que países. Isto faz do Brasil uma das nações com maior
índice de concentração da propriedade da terra na atualidade.
"Nesse tema - continua mencionado jurista - ocorre uma
grande contradição no discurso dos defensores da propriedade privada como um
Direito Natural. Natural significa um direito do ser humano pelo simples fato de ser
um ser humano. É prévio ao Estado e ao Direito. É algo assim como o respirar ( em
relação ao comer já se não pode mais falar), um direito essencial à própria vida. Ora,
se realmente a propriedade é um Direito Natural então, dentro de sua lógica, seria
um Direito de todos, pois já se acabou a época em que se afirmava, no discurso
católico, não terem os negros alma e, portanto, não possuírem direitos. Não mais se
pode aceitar serem algumas pessoas inferiores (como as mais variadas formas de
escravos), sem personalidade jurídica, negando-se-lhes a qualidade de sujeitos do
Direito Positivo e, também, de sujeitos do intitulado Direito Natural. Os dados
apresentados, entretanto, demonstram o contrário, ou seja, ser este "direito natural"
só para uns poucos, e isto significaria serem uns mais naturais em relação aos
outros."65
E mesmo ante esse conturbado panorama social, o Judiciário -
volta-se a repetir, salvo raras exceções - quando instado a decidir sobre conflitos de
terras, via de regra originados de ocupações promovidas por movimentos
reivindicatórios da justa distribuição de propriedades rurais improdutivas, sempre e
sempre decide liminarmente em prol dos latifundiários, sem ao menos avaliar se
64 "A questão Agrária no Brasil", artigo colhido do sítio do Fórum Social Mundial, www.portoalegre2002.org.br em setembro de 2001, p. 5. 65 Op. cit., p. 47.
44
presentes estão os requisitos autorizativos da emissão da tutela cautelar em favor
daqueles que titularizam os títulos de domínio sobre a área ocupada.66
Em matéria de liminar nas ações de reintegração de posse
preleciona Clito Fornaciari Júnior que " para a concessão de liminar de reintegração,
o juiz deve ser rigoroso ao máximo no exame dos seus requisitos, dado que criará
uma modificação no estado jurídico; diferentemente se dá quando a liminar versa
sobre manutenção. Em síntese, na dúvida, há que se manter a situação fática
reinante."67
Tradicionalmente, porém, não é isso o que testemunhamos no
histórico de atuação do sistema judiciário mercê dos conflitos pela posse das terras,
mais das vezes, ociosas.68
Não que se exija dos julgadores, quando instados a apreciar
pedidos reintegratórios em caráter liminar, formulados pelos titulares do domínio,
um maior apreço, nesse momento processual, aos dogmas constitucionais e supra-
estatais que procuram colmatar abrigo aos preceitos direcionados à primazia da
dignidade humana.
66 Sobre a natureza cautelar da decisão liminar em ações possessórias, conferir Júnior, Clito Fornaciari, in "O Procedimento das Chamadas Ações Possessórias", artigo contido na obra "Posse e Propriedade", coord. por Yussef Said Cahali,ed. Saraiva, São Paulo, 1987, p. 193. Ainda sobre o mote, é sempre oportuna a observação de LÉDIO ROSA DE ANDRADE no sentido de que "nessas lides o habitual é a prestação jurisdicional em favor dos proprietários, quase sempre reintegrados ou mantidos na posse, de forma liminar e em despachos lacônicos, quando a ação ajuizada é de cunho possessório, ou imitidos, no caso de ação dominical. O fato de os autores dessas demandas serem poucos, quando não uma pessoa ou um casal, e os réus serem muitos, chegando a se tratar de uma vila ou pequena comunidade, nunca importou aos juízes cumpridores da lei. Estes também nunca titubearam em requisitar a força pública ( Polícia Militar, Polícia Federal e Polícia Civil) para desalojar esses lavradores, mesmo tendo como resultado a morte ou lesões corporais, corolários tidos como sem importância, necessários, lógicos e normais." Op. cit., p. 208. 67 Op. cit., p. 193. 68 Em maio de 2007, na cidade de Pindamonhangaba-SP, uma empreendedora do ramo imobiliário ajuizou, de forma fragmentária, cerca de 60 ações de reintegração de posse visando a evacuação forçada de cerca de 90 famílias (aproximadas 400 pessoas) de incontáveis casas abandonadas, há anos, num conjunto habitacional esquecido nos arrebaldes daquela urbe. A autora dessas ações sequer se deu ao luxo de individualizar, qualificar, como ordena o art. 282,II, CPC, os réus dessas ações possessórias, endereçando sua pretensão em face do que chamou de “invasores desconhecidos”. Mesmo em vista de tão gritante afronta ao direito básico de informação e de ampla defesa, todos os órgãos jurisdicionais da citada comarca outorgaram liminares de reintegração de posse contra todas essas famílias, sem sequer designar audiências prévias de justificação, fato que motivou a Defensoria Pública na região a ajuizar a Ação Civil Pública nº 445.01.2007.007161-0, questionando não só esse vilipêndio aos direitos constitucionais mais básicos ao contraditório como, também, vindicando a condenação da municipalidade a efetivar o direito à moradia digna a todo esse contingente de pobres.
45
Não. Não se está a exigir tanto.
Está-se somente pondo em discussão o bom senso para se
espancar a estrondosa falta de critério que norteia o constante e irrefletido
deferimento de liminares em favor dos latifundiários, via de regra frente a mera
notícia de que algum grupo ou até famílias de desterrados estariam a ocupar
determinada área habitualmente esquecida na mais franca ociosidade e
imprestabilidade social.
Ainda que se seguisse o dogmatismo padrão ordenador da
prática judicante em lides como essas, haveríamos de concluir que tão constantes
tutelas, correntemente inconsistentes, em prol do simples pleito daqueles que
somente provam título de propriedade sem jamais comprovar, de antemão, algum
resquício de exercício possessório hígido e produtivo sobre a sorte de terras
ocupadas por quem nada têm, são - até mesmo frente ao arcabouço hermenêutico
legalista-positivista preponderante - amplamente injustas e violadoras desses
demarcados pressupostos orientadores da emissão dos provimentos jurisdicionais de
cunho assecuratório.
Pois, em sendo a liminar em ações possessórias uma espécie
do gênero cautelar, sua concessão deveria resguardar-se, no mínimo, da avaliação
primeva sobre a presença da real necessidade de o titular do domínio postulante da
proteção possessória ter acesso imediato, em detrimento de incontável número de
famílias e pessoas destituídas de um mínimo e mais parco rudimento de moradia, à
posse de terras que, como insistentemente ocorre em nosso cotidiano, estão há anos,
décadas, resplandecendo no mais absoluto abandono.
Em regra, inexistem os pressupostos autorizadores da emissão
das tutelas de urgências nesses considerados casos, porquê ausentes o periculum in
mora subliminar ao tema assecuratório.
46
Ou seja, se o latifundiário há anos não necessitou do contato
direto com aquela sorte de terras até então abandonada em inútil e improdutivo
ermo, porquê então, tão-só frente a notícia de eventual "invasão" da área por
ajuntamento humano desvinculado de qualquer meio de sobrevivência digna irá, tão
repentinamente, ser reconduzido, em caráter liminar, ao objeto de um domínio há
décadas abandonado?
Será que mesmo em razão das enormes necessidades sociais
ostentadas por essa legião de miseráveis que habitualmente implementam essas
consideradas ocupações, os proprietários - e tão somente por sê-los - não podem
aguardar o definitivo desfecho do processo possessório sem fruirem dessas medidas
assecuratórias liminares, costumeiramente emitidas de maneira patentemente
lacônica?
Em face do acentuado abandono e improdutividade dos
latifúndios, pergunta-se onde está o vínculo de necessidade na retomada liminar de
terras ociosas, num quadrante imemorial de tempo envoltas no mais completo
esquecimento?
Precisamente diante dessa dimensão macroeconômica e
jurídica dos conflitos sociais é que se está por exigir, na liça pela sacralização do
justo, um mínimo de anteparo crítico nas decisões judiciais.69
Pensamento significativo do que se está por sustentar ao longo
deste escrito pode ser encontrado na declaração de voto do magistrado gaúcho José
Maria Rosa Tesheiner, componente do Tribunal de Alçada do Estado do Rio Grande
69 Wolkmer, Antonio Carlos. "Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico". Ed. Saraiva, SP, 3ª ed., 2001, p. 174, pontifica que: "(...)As questões político-ideológicas compreendem a decodificação prática das formas repressivas do poder institucionalizado nas normas disciplinares, a exata percepção das "estruturas/funções" da legalidade no espaço de correlações de forças e de dominação do Estado burguês-capitalista, a recuperação da dimensão "política" do "jurídico" enquanto estratégia de dessacralização e efetiva experimentação social etc. Tal problematização insere-se na originalidade do projeto articulador de uma "crítica jurídica" adaptada à realidade do capitalismo periférico e aos sistemas jurídicos caracterizados por estruturas colonizadas, dependentes e subdesenvolvidas. A construção de uma formulação jurídica "teórico-prática", atinente às formações sociais periféricas do terceiro mundo, passa pelo rompimento com os critérios de cientificidade que mantêm a dogmática jurídica tradicional, pela redefinição das vertentes político-socieconômicas que sustentam os paradigmas racionais de "crítica jurídica", elaborados por matizes européias e norte-americanas, mas desvinculados das experiências sociais e históricas da periferia capitalista".
47
do Sul, no excerto abaixo transcrito, que exprime uma sensibilidade humana rara,
que lhe acentua a peculiaridade, a beleza e a justiça:
"Esta não é uma possessória igual a tantas outras em que são
indivíduos os que contendem. Aqui, é uma coletividade que se
apresenta como ré. Busca-se reintegrar na posse uns poucos e
demitir da posse uma comunidade, uma vila. Essa a
peculiaridade a destacar desde logo, porque não se encontra na
lei solução expressa para a hipótese como a presente.
O Direito, ensina Miguel Reale, não se restringe apenas às
normas, mas compreende também fatos e valores. Assim,
uma visão integral do Direito exige, não só no plano da
filosofia, mas também e muito mais no da prática judicial,
que os julgamentos levem em conta não só as normas legais,
estabelecidas para resolver casos que usualmente costumam
ocorrer, mas também os novos fatos sociais, não previstos nas
leis e que devem ser objeto de valoração contemporânea, não
necessariamente igual à que fariam os que legislam no
passado.
Lembra Helmut Coing (Fundamentos de Filosofia del
Derecho) que três são as funções do Juiz: a de aplicar as leis,
que é a mais frequente; a de integrar o direito, através da qual
se colmam lacunas e, finalmente, a mais importante, a de fazer
justiça. Para o juiz, o valor 'justiça' deve estar no ápice da
hierarquia dos valores. Constitui, talvez, deformação
imputável ao positivismo jurídico a circunstância de no forum
indagar-se tanto a respeito da solução legal, e tão menos da
solução justa.
Ora, colocado na balança da Justiça, de um lado os interesses
de três casais, para os quais a área em litígio representa muito,
mas não é fundamental, e, de outro, os de noventa ou mais
famílias, para as quais essa mesma área é condição de vida
digna, parece não ser difícil determinar para que lado pende a
48
balança. O Judiciário, por ser Poder, não pode ficar apenas na
posição subalterna de obediência a comandos emitidos pelos
demais Poderes. Deve colaborar com o Legislativo e o
Executivo na solução dos problemas sociais, especialmente
quando se apresentam hipóteses que não se prestam à edição
de normas abstratas, exigindo solução concreta, caso a caso.
Não pode o Judiciário ser injusto, aguardando que sobrevenha
lei justa, máxime quando o legislador se omite, temeroso das
consequências que possam advir da emissão de norma geral,
perigo que o Judiciário pode enfrentar, porque suas decisões
não são leis, valendo apenas para o caso. Opus justiae pax. É,
então, de se perguntar qual a solução mais consentânea com a
paz social. E a resposta, mais uma vez, pende para os
'vileiros', especialmente se levada em conta a crise econômica
que ora atravessamos, com levas de trabalhadores sem
emprego, sem casa e sem comida.
Afirmou-se, no início, não se encontrar na lei solução expressa
para o caso dos autos, o que não é verdade, porque a
Constituição, que é a Lei Maior e prepondera sobre qualquer
outra, consagra a função social da propriedade."70
Mas a decisão acima é, ainda, minoritária. Como noticiado, o
que prevalece no campo judicial é a proteção ao latifúndio. E tanto isso é verdade
que ordens judiciais de desterro forçado são uma constante, e talvez uma das
principais afrontas ao direito básico de moradia no país.71
Por conta das deletérias conseqüências das execuções dessas
ordens de desterro que Nelson Saule Júnior, Letícia Osório e Patrícia de Menezes
Cardoso nos relatam, em texto intitulado “Por um Plano Nacional de Combate aos
70 Apud Andrade, Ledio Rosa de. Op. cit., pp. 209/210. 71 O caso de evacuação judicial em massa mais conhecido por conta de suas graves conseqüências, se deu em Goiânia, no assentamento “Sonho Real”,em fevereiro de 2005 quando, no cumprimento de ordem judicial de retirada dos assentados, 24 pessoas foram feridas pelo aparato militar sempre presente na esteira medrada da execução desses atos, além de produzir 2 mortes, até hoje impunes. Sobre o tema, ver relato “Direitos Humanos no Brasil-2005”, ed. da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, SP, 2005, p. 137.
49
Despejos e Deslocamentos Forçados”, que “(...) Os Estados que ratificaram o Pacto
Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), como é o caso
do Brasil, estão obrigados a “utilizar todos os meios apropriados para promover e
defender o direito à moradia e o proteger contra despejos forçados. Isso pode ser
atingido por um conjunto de ações visando a revisão da legislação nacional de forma
a melhor compatibilizá-la com os princípios e normas internacionais de direitos
humanos, da Constituição Federal e do Estatuto da Cidade (Lei Federal nº
10.257/2001). A compatibilização da legislação nacional tem o objetivo de proibir a
prática de despejos forçados e violentos e propor proteções processuais para garantir
proteção e consulta à população afetada”.72
Ofertando propostas concretas para a plena efetivação desses
direitos, tais articulistas externam que: “Como premissa para a adoção dessas
medidas é de observar o Comentário Geral nº 7 sobre o Direito à Moradia
(E/C.12/1997/4) das Nações Unidas relativo ao Pacto Internacional dos DHESC.
Este comentário constitui-se na interpretação legal principal sobre o direito de ser
protegido contra despejos forçados adotado pelo Comitê DESC em 1997. Esse
comentário detalha o que os governos, proprietários e instituições devem fazer para
prevenir despejos forçados:
“Os despejos forçados são incompatíveis com os dispositivos
do PIDESC;
Um despejo forçado é “a remoção permanente ou temporária
de indivíduos, família e/ou comunidades, contra sua vontade,
das casas e/ou terras que ocupam. A proibição de despejos
forçados não se aplica, entretanto, aos despejos
implementados pela força de acordo com a lei e em
conformidade com as disposições dos Tratados e Pactos de
Direitos Humanos”;
Os despejos forçados, em geral, violam outros direitos
humanos, tais como direito à vida, o direito à segurança da
72 “Por um plano nacional de combate aos despejos e deslocamentos forçados”, artigo contido no Relatório de “ Direitos Humanos no Brasil -2005”, SP, 2005, p. 138.
50
pessoa, o direito à não-interferência na privacidade, família e
moradia, e o direito ao exercício pacífico de suas posses.
Antes de implementar qualquer tipo de despejos, os governos
devem assegurar que todas as alternativas viáveis foram
exploradas em processos de consulta às pessoas afetadas,
com objetivo de evitar, ou no mínimo minimizar, o emprego
da força.
Os despejos não podem resultar em indivíduos sem moradia
ou vulneráveis a violações de outros direitos humanos, e
quando aqueles afetados não puderem encontrar uma solução
por eles próprios, o Estado devem adotar as medidas
adequadas, utilizando o máximo dos recursos disponíveis
para assegurar alternativas adequadas de moradia,
reassentamento ou acesso à terra produtiva”.73
Como se percebe, propostas claras e factíveis para a
minoração desse infausto drama imanente aos desterros compulsórios,
cotidianamente impingidos à população pobre nesta pátria, existem aos borbotões. O
que falta é vontade política, seja do executivo, legislativo ou judiciário, para
implementá-las.
E assim expulsos do campo, não resta à multidão de
desvalidos alternativas de rumo que não coincidam com o caminho direcionado à
superpovoada periferia dos centros urbanos, onde acabam sendo absorvidos pelas
aglomerações humanas ali já cronicamente forcejadas das perversões da política
econômica engendrada pela classe dirigente, criando as condições onde se gesta todo
esse caos social circundante.
73 Op. Cit. Pp.138/139. Esse estudo visa propor ao Ministério das Cidades a criação de grupo de trabalho visando delinear um projeto de lei que regulamente o despejo forçado no país, e que passe, obrigatoriamente, pela capacitação dos membros do Judiciário a lidarem com esse tipo de demanda, pela construção de regras processuais civis e penais que venham a assegurar a proteção ao direito à moradia e da dignidade de vida da população de baixa renda afligida por essas decisões, de forma a garantir a defesa processual e orientação jurídica dessas populações, e a não concessão de liminares sem oitiva da comunidade envolvida.
51
É sempre bom relembrar que, conforme dados oficiais
ofertados pela Prefeitura de São Paulo, entre 1991 a 2000 a capital paulista ganhou
464 novas favelas. Como consignado alhures, hoje são mais de 2 milhões de
favelados. Em 1991 eram 891.673 pessoas sobrevivendo em tão rústicos e
degradados habitáculos.
Nosso enfermiço modelo econômico tem o ingrato dom de
gerar 74 novos favelados por dia. Enquanto que na última década a população
cresceu cerca de 8%, os favelados, só na exemplificada capital, cresceram no
patamar de 30%.74
Portando, impossível querer-se operar o direito ignorando esse
caótico desconcerto social.
Nessa ordem de idéias, resulta totalmente possível concretizar-
se o direito à moradia através da tutela jurisdicional do Estado, seja desconstituindo
atos e normas que se revelem atentatórios à materialização e avanço dos direitos
sociais, seja pela via da ação indenizatória em face do Estado (lato senso) ou mesmo
pelo manejo de tutelas específicas, como, enfim, sustentado neste relato.75 74 Anton Fon Filho bem observa que: “Torna-se repetitivo, a cada ano, referir o incremento da favelização em cidades como São Paulo (de 1.200 mil pessoas, em 1990, para 2 milhões, em 2000), do cortiçamento (1 milhão de moradores) e das moradias precárias (cerca de três milhões). Anatole France, numa observação sobre a suposta igualdade jurídica, advertia que esta era a garantia de que tanto um pobre como um rico poderiam morar em baixo de uma ponte, ou de que ambos seriam igualmente sancionados por subtraírem um pedaço de pão. A sociedade desigual já de há muito se permite, com a omissão, complacência ou conivência do aparelho policial, um esforço de demonstrar que o escritor francês não passou, com sua ironia, nem perto do que se reserva para quem é posto nos devãos do capitalismo. Se há alguns anos um punhado de bem-nascidos em Brasília ateou fogo a um índio que dormia num ponto de ônibus, e alegaram em sua defesa que acreditavam que fosse apenas um mendigo, em 2004 seis moradores de rua foram assassinados sem que até agora se tenha identificado os criminosos”.“Na Rua, sem direito a direitos”, artigo contido no relatório “Direitos Humanos no Brasil-2005”, editado pela Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, SP, 2005, p. 148. 75 Não se ignora também as recentes introduções na seara da regularização fundiária urbana implementadas pelo advento da Lei nº 10.257/01, conhecida como "Estatuto das Cidades", que em seu art. 10 criou a figura da usucapião coletiva, legitimando a tanto, como substituto processual, as associações de moradores (juntamente com os próprios possuidores legitimados, é óbvio) , bem como introduziu no ordenamento jurídico interno, apesar dos vetos apostos por FHC aos artigos 15 a 20 do referido diploma normativo, a relevantíssima figura da "concessão de Uso Especial para Fins de Moradia" sobre imóveis públicos, pois, apesar dos apontados vetos restou incólume o artigo 56 da citada lei, que introduziu item novo ao artigo 167, I (item 37) da Lei nº 6.015/73, possibilitando, com isso, o reconhecimento do direito de habitar determinado imóvel público, via concessão de uso, por ato administrativo ou por sentença que vierem a proteger tal direito, atos concessivos esses que, inclusive, poderão ser registrados à margem da correspectiva matrícula. Tal direito é também regulamentado pela medida provisória nº 2.220, de 4 de setembro de 2001. Na órbita da implementação do direito à moradia, a Defensoria Pública do Estado de
52
Pois, para os fins que inspiraram todo o aparato normativo que
estatui tal direito, como lembra Alexandre Morais da Rosa, já "não é suficiente,
portanto, a existência de belíssimas declarações de Direitos a-políticos, a-históricos
e imunizados ideologicamente. Necessita-se da crescente mobilização no processo
de atribuição de sentido, inserido no campo político - daí a jurisdicionalização das
esperanças/promessas constitucionais - tendentes a concretizá-los, para que não se
tornem vazias as promessas, dissolvidas nos percalços do mundo e da vida".76
E nesta sina de emprestar fiel correspondência às antológicas
palavras de José Saramago que serviram de epígrafe ao presente, é que se delineou
este escrito, em busca, quem sabe, de um direito que respeite, de uma justiça que
cumpra...
E pondo termo a este já extenso arrazoado - pelo que se
externa escusas - ficamos com as não menos sublimes reflexões tecidas pelo
saudoso Norberto Bobbio que, sobre as vicissitudes aqui tantas vezes exortadas,
enunciou: "Alguma vez aconteceu que um pequeno grão de areia levado pelo
vento detivesse a máquina. Mesmo que exista um milésimo de milésimo de
probabilidade de que o pequeno grão, levado pelo vento, vá parar na mais
delicada das engrenagens, detendo o movimento, a máquina que estamos
construindo é demasiado monstruosa para que não valha a pena desafiar o
destino".77
São Paulo, através de seu núcleo especial de habitação e urbanismo, já manejou uma série de ações coletivas como a mencionada Ação Civil Pública nº 583.53.2006.126528-0, visando a condenação da municipalidade de S. Paulo a constituir linhas de crédito habitacional a um enorme contingente de favelados vítimas de ordens de desocupação em massa, ou mesmo uma outra ACP, ajuizada em face do ato normativo municipal n. 01/07, que permite a demolição de casas, ou quaisquer espécies de habitações, localizadas em loteamento irregular sem o devido processo legal, demanda essa intentada em setembro/2007, noticiada no síte www.defensoria.sp.gov.br. ; ou ainda outra importante vitória da Defensoria Regional de Sorocaba, cuja intervenção logrou impedir o despejo de cerca de 1.200 pessoas moradoras do conjunto habitacional “Jd. Santo André II” naquela localidade. Atuação semelhante foi implementada também pela Defensoria Regional de Santo Amaro, através do Defensor Público Eduardo Luis Figueira, para impedir o desterro injusto de 50 famílias sujeitas à reintegração liminar de posse emitida pela 6ª Vara Cível do foro regional de Santo Amaro. 76 op. cit., p. 100. 77 "Diário de um século", p. 216.
53
BIBLIOGRAFIA:
AMARAL, SOFIA, "Os invisíveis", artigo da revista "Caros Amigos", Casa
Amarela, SP, nº 80, nov/03.
ARENDT, HANNAH. "As Origens do Totalitarismo", Cia. das Letras, S.P., 1998.
BARROSO, LUIS ROBERTO. "Interpretação e Aplicação da Constituição",
Saraiva, S.P., 1998.
BENJAMIM, CESAR. "O Poder das Palavras". Revista "Caros Amigos", editora
Casa Amarela", ano V, nº 58, jan. 2002.
BERTULEZZA, ALEXANDRE. "Ocupar, resistir e morar". Texto disponível no
site do Movimento Nacional de Luta por Moradia em 10.10.2003.
BINENBOJN, GUSTAVO. “A Nova Jurisdição Constitucional Brasileira”, ed.
Renovar, RJ, 2001.
BOBBIO, NORBERTO. "Direita Esquerda". Unesp, S.P., 1994.
_______________"Diário de um Século". Campus, RJ, 1998.
CERNICCHIARO, LUIZ VICENTE. "Direito Alternativo", revista Consulex, nº
07.
DALLARI, DALMO DE ABREU. "O Poder dos Juízes", Saraiva, S.P., 1996.
_______________"O Legalismo Expulsou a Justiça". Artigo publicado no Jornal da
Associação "Juízes para a Democracia", nº 16, Jan/fev 1999.
DIAS, JOSÉ DE AGUIAR. "Da Responsabilidade Civil". Forense, RJ, vol. II,
1994.
DOSTOIÉVSKI, FIÓDOR M. "Os Irmãos Karamázovi", Nova Cultural, S.P., 1995.
DINAMARCO, CÂNDIDO RANGEL. “A Instrumentalidade do Processo", RT,
S.P.,2ª ed., 1990.
ENGELS, FRIEDRICH. “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do
Estado” – Obras Escolhidas Marx e Engels, editora Progresso, RJ, 1989.
FERRAJOLI, LUIGI. "O Direito como sistema de garantias", in "O Novo em
Direito", coord. Oliveira Jr, José Alcebíades, Livraria do Advogado, P. Alegre-RS,
1997.
54
FILHO, JORGE PEREIRA. "Movimentos Sociais exigem cancelamento da dívida
externa", artigo colhido do site wwwjubuleubrasil.org.br
__________________"Investimentos Sociais", disponível no mesmo sítio supra.
FILHO, ANTON FON. “Na Rua, Sem Direito a Direitos”. “Relatório de Direitos
Humanos no Brasil-2005”, Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, SP, 2005.
FORRESTER, VIVIANE. "O Horror Econômico", Unesp, S.P., 1997.
GALEANO, EDUARDO. "De Pernas pro Ar, A Escola do Mundo ao Avesso".
L&PM, Porto Alegre-RS, 6ª ed., 2002.
_________________" As Veias Abertas da América Latina", 36ª, Paz e Terra, S.P.,
1994.
HOBSBAWM, ERIC. “A Era dos Extremos”, Cia. das Letras, 2ª ed., SP, 1995.
JÚNIOR, OSWALDO GIACOIA. "Nietzche", Publifolha, S.P., 2000.
JÚNIOR, NELSON SAULE et al. “Por um Plano Nacional de Combate aos
Despejos e Deslocamentos forçados”. “Relatório de Direitos Humanos no Brasil -
2005”, Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, SP, 2005.
JUPIASSÚ, HILTON. "Dicionário Básico de Filosofia", Zahar Editor, RJ, 2001.
MALHEIROS, ANTONIO CARLOS. “A Prisão Civil e os Tratados
Internacionais”, artigo contido na Revista Especial do TRF-3ª Região, sobre
Seminário de Incorporação dos Pactos Internacionais de Direitos Humanos, SP,
1996.
MARINS, LUIZ, "A parte cheia do cálice chamado Brasil", discurso colhido da
web em setembro de 2001.
MORAES, ALEXANDRE DE. "Estado de Direito e Reforma Agrária", o Estado de
São Paulo, 11.03.2003.
NEGRÃO, THEOTONIO. “Código de Processo Civil anotado e legislação
complementar”, Saraiva, 30ª ed., SP, 1999.
NERI, PAULO DE TARSO. “Prisão do Depositário Infiel – Constitucionalidade” –
artigo contido no boletim do Centro de Estudos da PGE-SP, vol.22, n. 2, mar/abr ,
SP,1998.
OSÓRIO, LETÍCIA. "Direito à Moradia no Brasil", artigo disponível no site
www.direitoacidade.org.br
PASUKANIS, E.B. “A Teoria Geral do Estado e o Marxismo”, Renovar, RJ, 1999.
55
PEREIRA, ANTONIO FRANCISCO. Sentença colhida do site
www.dcc.unicamp.com.br
PFEIFFER, ROBERTO A CASTELHANOS E AGAZZI, ANNA CARLA.
"Integração, Eficácia e Aplicabilidade do Direito Internacional dos Direitos
Humanos no Direito Brasileiro", artigo inserido na coletânea "Direitos Humanos:
construção da liberdade e da Igualdade", editado pelo Centro de Estudos da
PGE/SP, 1998.
PIOVESAN, FLÁVIA. “Direitos Humanos e Direito Constitucional”, ed. Max
Limonad, SP, 1996.
ROSA, ALEXANDRE MORAIS. "O que é Garantismo Jurídico", ed. Habitus,
Florianópolis-SC, 2003.
SABATO, ERNESTO. “Antes do Fim”, Cia, das Letras, SP, 1999.
SARAMAGO, JOSÉ. Texto de Introdução ao livro "Terra", de Sebastião Salgado,
Cia. das Letras, S.P., 1997.
_______________" O Homem Duplicado", Cia das Letras, S.P., 2002.
SILVA, JOSÉ AFONSO DA. "Curso de Direito Constitucional Positivo".
Malheiros, S.P., 19ª ed.
SYDOW, EVANIZE. “Trabalhadores ligados a Irmã Dorothy continuam com medo
da violência de fazendeiros em Anapu”. “Relatório dos Direitos Humanos no
Brasil-2005”, Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, SP, 2005.
STRECK, LENIO LUIZ. “Hermenêutica Jurídica em Crise”, ed. Livraria do
Advogado, RS, 2000.
__________________”Constituição ou Barbárie”, artigo contido no Anuário Ibero-
Americano de Direitos Humanos, 2001/2002, ed. Lumem Juris, RJ, 2002.
TRINDADE, JOSÉ DAMIÃO DE LIMA. “A História Social dos Direitos
Humanos", ed. Peirópolis, S.P., 2002.
TRINDADE, ANTONIO A CANÇADO. “Instrumentos Internacionais de Proteção
de Direitos Humanos”, Centro de Estudos da PGE-SP, 1997.
WEIS, CARLOS. "O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais", artigo contido na obra "Direitos Humanos: construção da liberdade e
igualdade", editada pelo Centro de Estudos da PGE/SP, 1998.
WILSON. EDMUND. "Ruma à Estação Finlândia". Cia. das Letras. S.P., 1989.
56
Periódicos e sítios eletrônicos consultados:
Jornal da Associação "Juízes para a Democracia", nº 16, jan/fev 1999.
Jornal “A Folha de São Paulo”, de março e julho/2002 e jun/2003.
Jornal o "Estado de São Paulo" de Mar/2003.
"Folha Online" de out/nov 2003.
2º Relatório Nacional de Direitos Humanos, editado pelo Ministério da Justiça,
2002.
PNAD - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, IBGE-1999.
Revista "Caros Amigos", casa Amarela, nº 58 e edição especial sobre "Reforma
Agrária" de setembro de 2003.
www.stn.fazenda.gov.br
www.jubileubrasil.org.br
site do "Movimento Nacional de Luta por Moradia"
www.mst.org.br
www.defensoria.sp.gov.br
Revista do Centro de Estudos da PGE/SP "Instrumentos Internacionais de
Proteção dos Direitos Humanos", SP, 1996.