Post on 07-Mar-2016
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massapê
2013
Priscilla Menezes
Para Francisca Jarina Antunes de Menezes
1: rio de janeiro – ouro preto – catas altas – belo horizonte – salvador – recife – olinda – fortaleza – massapê
2: valença – massapê
1
Lembro da minha avó dizendo que, quando criança, gostava de ficar deitada na terra olhando para o céu de
Massapê.
O sertão é dentro. É um mover das águas do corpo, o globo ocular versus o chão duro versus o couro frágil do
topo da cabeça versus o fôlego cravado nas pernas. Teus pés já andaram sobre o seco, na lama rara, no mangue
sobre as raízes altas e enfim no sal do mar. Refaço teu caminho pelo avesso, do fim para o princípio. Nascida
nesse solo de calores, muito mais tarde tu andarias pelo meu quintal à procura de pequenos caracóis, com
vontade de sentir o calor de uma vida sob o pés. Teu cabelo, uma natureza onde transbordavam nuvens,
catedrais, agouros, manchas de cor, um imenso bestiário. No teu cabelo navegavam teus filhos, os de carne
embalados pela tua voz e os de tinta retorcidos em teus dedos aparentados com tudo que caminha para o interior
da terra.
Eu me gasto contra os dias, a barriga dividida em dois: parte incontido apetite, parte esmerado jejum. Eu queria
recobrir a estrada da minha voz e ao mesmo tempo me calar sem fim, em plena e silenciosa devoção. E nada
mais que um descaso à lógica, aos cuidados e ao tempo conhecido. Contra o tempo, eu me desmonto. Deixo os
braços pelo chão e dou às pernas um galope desordenado, um passo delirante. Vou atrás de um gesto sóbrio que
perfure minha vida. Exato como o golpe final de uma tourada: os chifres do bicho perfurando a carne de um
homem vivo, esse tipo de elegância.
O ar denso da manhã recente revela a vocação sombria de toda terra. Tudo é desterro, todo chão leva ao exilo.
Depois os dias passam banais, entre feiras, engarrafamentos, almoços a quilo, bolhas no pé. Sento-me em uma
igreja e temo pela minha vida, o canto gregoriano arranhado no cd me enjoa, meus ossos se desmontam, e eu
invento uma oração que é assim: bendita face deformada de Deus, besta de mil cabeças, sei que não é teu
onisciente olho que me acompanha, mas tua enorme boca voraz. Sei que deveria fazer minhas preces diante da
janela. O mundo infindável lá fora, esse altar maior. Agradeço pelas boas coincidências, pelas noites mal
dormidas, pela sujeira, e pela enorme compaixão. Te peço apenas que me deixe estar à altura do meu caminhar,
solene e agreste, como esse chão.
Estranhos sonhos me devoram, durmo sozinha com uma fera dentro. Equilibro os pesadelos nos ombros a cada
dia. Me lavo com o sabão e me purifico no sol bruto da manhã. Mas não escapo do apetite que me revira as
escamas, a penugem, as tripas mais profundas. Arde a inquietude nos meus olhos. Me multiplico em vinte, sou
o menino que vende bala no trem, sou a senhora que faz o sinal da cruz quando passa pelo cemitério e tosse na
hora do amém, sou o vendedor de caranguejos, sou a mulher misteriosa que se embriaga sozinha pelos bares.
Receio as viagens noturnas, temo um assalto, um deslize qualquer. Mas me embriago de coragem travando uma
batalha silenciosa entre os ossos das minhas costelas.
Em Massapê, tudo é calor e mansidão. O céu quase tomba, pesa. Nuvens maravilhosas dançam um balé
lentíssimo. Quando visito a casa da moradora mais antiga da cidade, sinto que estou num lugar muito especial. O
acaso foi minha fortuna, o que me trouxe a esse instante precioso. Dona Maria de Lourdes nunca conheceu
minha avó, não há lembrança qualquer da minha família , mas ganho de presente a vida de Maria: nunca estudou
porque preferia brincar, não casou porque não era seu destino, passou o resto de seus dias cuidado de sua irmã
que não tem a luz dos olhos, é devota de todos os santos e nunca mexe em nada da casa, quer deixá-la do jeito
que seus pais a fizeram. Quando peço para fotografá-la, diz que não se acha bonita e não gosta de fotos, mas que
aceita posar pra mim com uma condição: virar-se de costas.
2
Um choro retido umedecendo o avesso da pálpebra. Farejava o passado como um incêndio ao longe. A saudade
lhe visitava as pernas, capturando seu equilíbrio, em ondas. Nas noites acendia velas para espantar os demônios
de dentro da sua cabeça. Às vezes se deitava no chão do casebre, as janelas fechadas, seu peito tremendo como
uma terra traiçoeira, a dor visitando os olhos, escorrendo pelos dedos que marcavam paredes com uma tinta
estranha. Fazia uns desenhos do fundo do mar, esse que nunca conheceu nem pela superfície. Nos primeiros
dias, achou que ia enlouquecer. E enlouqueceu. Bebeu cachaça do gargalo desafiando homens brutos no boteco,
deixou-se violar, foi espancada, regozijou na lama, acordou despida em estranhas camas. Andou nua pela cidade
de manhã, era Godiva sem segredo. Depois decidiu trancar-se durante dias em seu quarto, uma quarentena.
Tremeu de amor, chorou de ternura, soluçou diante de sua grossa solidão. Ninguém poderia a conhecer, nada
chegaria perto de seu coração emaranhado. Depois os dias se acalmaram, abandonou o quarto, lavou a louça suja,
deixou os lençóis ao sol. Já não precisava combater as feras com pontapés, acolheu cães em sua casa, dava-lhes
leite, água e dormia com eles nas noites de lua cheia. Sentiu seu ventre crescer, temeu ter engravidado de algum
desastre, mas depois notou que tinha engordado, que suas carnes recobriam seus ossos com mais firmeza, mais
vigor. Não achou ruim, quis ficar ainda maior, e ficou. Trocou suas roupas antigas por grandes panos de algodão
que amarrava ao modo das gregas. Para combinar, prendia os cabelos grossos no topo da cabeça, e fazia para si
joias de cascas de besouro, ossos, dentes de onça, cogumelos ressecados, espinhos reluzentes. E então deixou de
sentir vontade de se marcar por mãos estranhas, de fazer a língua arder com bebidas fortes, criou rituais diários,
pequenas liturgias que sustentavam seus dias. Tomava banho de lama escura, alimentava cobras na boca, cobria
seu rosto de mariposas - e a máscara durava apenas um instante - costurava mantos enormes com os quais
recobria o telhado onde se deitava para descansar e tentar acostumar os olhos com o sol. Então decidiu que era
hora de abrir o baú. Depois de dias, encarou de novo aquela imagem, a mulher que havia guiado sua direção até
ali. Viu que o pequeno espelho que tinha herdado agora havia se quebrado em muitos. Espalhou os cacos pelo
chão e se encarou. Era anêmona, moeda, um olho, um pedaço de nariz, um cabelo que cai no rosto, um colar de
contas, um mamilo escuro, pedaço de orelha nua, olhos aguados, boca dilatada, era saliva, era as dobras de um
braço, era um pé cansado, era carne recobrindo osso, era pele opaca e constante, era espasmo, era provisória e
fraca, era uma torre. Achou também um batom carmim com o qual decidiu enfeitar a cidade a redor, deixando-a
menos ocre, mais feroz. Um oratório que ocupou um canto de sua casa, diante do qual gostava de dançar. Então
se lembrou da estrada, os muitos dias sob a chuva e o caminho até ali. Entendeu que era preciso guardar parte de
seu tesouro apenas para si e que não haveria agouro para lhe dar direção, que nenhuma voz do passado a
definiria e o caminho seria sua escolha. O oráculo, seus próprios pés. Então foi possível rir. Lavou-se no rio. A
água passava e nada tinha solidez. Era meio-dia e subitamente o mistério era uma enorme alegria e então foi
alegre até o fim.
massapê
2013