Post on 26-Mar-2021
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Luis Eduardo Morimatsu Lourenço
A teoria da experiência de Wilhelm Dilthey enquanto crítica da
tradição epistemológica (1883-1894)
MESTRADO EM FILOSOFIA
São Paulo
2016
Luis Eduardo Morimatsu Lourenço
A teoria da experiência de Wilhelm Dilthey enquanto crítica da
tradição epistemológica (1883-1894)
MESTRADO EM FILOSOFIA
Dissertação apresentada como parte das
atividades para a obtenção do grau de
Mestre em Filosofia, na faculdade de
Filosofia da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, sob a orientação
da Prof.ª Mario Ariel González Porta
São Paulo
2016
“Disillusioned words like bullets bark
As human gods aim for their mark
Made everything from toy guns that spark
To flesh-colored Christs that glow in the
dark
It is easy to see without looking too far
That not much
Is really sacred”
Robert Allen Zimmerman
AGRADECIMENTOS
Gostaria de agradecer à minha família: somente com seu apoio incondicional
foi possível dedicarmo-nos à Filosofia, de fato. Eleonora, pelo companheirismo,
amor e principalmente paciência. Ao nosso orientador, Mario Ariel González Porta,
agradecemos principalmente por nos mostrar em sua atividade como docente que
rigor e obscuridade não são sinônimos. Aos amigos que fiz durante a graduação e o
mestrado, e estes são muitos: Luís Guilherme – o obscuro -, André de Leones,
Josias Neto, Gabriel Zulli, Lucas Amaral, Lucas Baccarat, Diogo Bispo Dias, entre
muitos outros que mereceriam ser citados.
Gostaríamos, finalmente, de agradecer à Pós-graduação da PUC-SP e à
CAPES pela bolsa de pesquisa concedida, sem a qual dificilmente este trabalho
poderia vir à luz.
RESUMO
O presente trabalho tem como principal objetivo reconstruir alguns aspectos
do projeto epistemológico de Wilhelm Dilthey no período entre os anos de 1883 -
1894, período este ainda relativamente pouco estudado, especialmente no contexto
brasileiro. O período mencionado tem como marca distintiva a pretensão do autor
em constituir uma psicologia descritiva e analítica como fundamento de sua
epistemologia. Neste sentido, procuraremos sempre destacar o diálogo crítico
empreendido pelo autor com a tradição filosófica. De fato, se formos bem sucedidos
em nossa proposta, restará claro que texto e contexto acabam por se iluminar
reciprocamente.
Palavras-chaves: Epistemologia; Psicologia; historicidade; experiência;
subjetividade; crítica.
ABSTRACT
This currently work aims to reconstruct some aspects of the epistemological
project of Wilhelm Dilthey in the period between the years 1883 -1894, a period
which is still not broadly studied, especially within the Brazilian context. The
mentioned period has as characteristic the following Dilthey's claim: a descriptive and
analytical psychology would be the more adequate foundation of the epistemology. In
this sense, we will seek always to highlight the critical dialogue undertaken by the
author with the philosophical tradition. In fact, if we are successful in our proposal, it
will remains clear that text and context illuminates each other reciprocally.
Key-words: Epistemology; Psychology; historicity; experience; subjectivity; critic.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 11
1. 1. PRESSUPOSTOS FUNDAMENTAIS DA CRÍTICA DA RAZÃO HISTÓRICA
DILTHEYANA 15
1.1. Da necessidade de uma fundamentação epistemológica para as ciências do
espírito 15
1.2. A crise da Filosofia no século XIX e a reorientação da atividade filosófica como
investigação de segunda ordem sobre a possibilidade do conhecimento 22
1.3. Da complexa relação entre Dilthey e a tradição kantiana 30
1.4. Os projetos de Mill e Comte não fazem jus à realidade efetiva 35
2. AS CRÍTICAS DE DILTHEY ÀS PSICOLOGIAS EXPLICATIVAS 42
2.1. Características gerais de uma psicologia explicativa 42
2.2. Das ciências naturais 45
2.3. Dos resultados da crítica epistemológica quando dos limites e possibilidades
das ciências naturais 49
2.4. É justificada a transferência dos métodos das ciências naturais para a
Psicologia? 51
2.5. Dilthey contra os fisiólogos materialistas, o associacionismo inglês e a escola
herbartiana. 53
2.6. A fundamentação do estudo da psique sobre base estritamente hipotética é
inevitável? Da necessidade uma psicologia descritiva e analítica 57
3. A TEORIA DA EXPERIENCIA DE WILHELM DILTHEY ENQUANTO CRITICA
DA TRADIÇÃO EPISTEMOLÓGICA 59
3.1. Objetivos do presente capítulo 59
3.2. A escola de fisiologia de Johannes Peter Müller e os argumentos de Helmholz
quando da origem de nossa crença no mundo exterior 60
3.3. Crítica do dualismo epistemológico a partir do conceito de “Innewerden” 60
3.4. A refutação do fenomenalismo e a crítica do conceito de subjetividade 69
3.5. Aspectos gerais da doutrina das categorias de Dilthey 71
3.6. Substância e causalidade como categorias da vida 74
4. DA RELAÇÃO ENTRE A EPISTEMOLOGIA DILTHEYANA E AS CIÊNCIAS DO
ESPÍRITO PARTICULARES 79
4.1. A investigação epistemológica pressupõe a autonomia das ciências do
espírito 79
4.2. Dos sistemas culturais 89
4.3. Da organização externa da sociedade 94
4.4. Da relação entre fatos psíquicos de primeira e segunda ordem 101
CONCLUSÃO 109
BIBLIOGRAFIA 111
11
INTRODUÇÃO
Como resultado de uma série de recentes pesquisas, conduzidas por alguns
dos mais competentes pesquisadores contemporâneos, uma nova tradição
interpretativa vem se consolidando quando do estudo do pensamento de Wilhelm
Dilthey (1833-1911).
Em oposição à imagem, ainda bastante comum, que delineia um pensador de
tendências românticas e irracionalistas, ligeiramente hostil em relação ao
desenvolvimento das ciências naturais, as referidas pesquisas apontam, antes, um
filósofo profundamente preocupado com questões epistemológicas, lógicas e
metodológicas, deveras atento a alguns dos desenvolvimentos internos da tradição
cientifica.
De fato, o presente esforço parte da seguinte convicção: para uma
compreensão mais profunda da obra diltheyana, é preciso refletir com seriedade
sobre suas constantes referências a alguns dos maiores pesquisadores nas áreas
da Psicologia, Biologia, Psicofísica e Fisiologia de seu tempo. Pois em sua obra,
Dilthey explicitamente dialoga com figuras do porte de Fechner, Johannes Peter
Müller, Helmholtz, Herbart, Wundt, entre outros.
Também sumamente importantes são as críticas de Dilthey à tradição
epistemológica moderna, que só podem ser devidamente compreendidas quando se
tem em mente a pretensão diltheyana de justificar seu projeto epistemológico a partir
de uma perspectiva que faça jus à realidade efetiva, ainda não mutilada por uma
série de pré-juízos. Pois para Dilthey, empirismo, positivismo e a tradição criticista
permaneceriam ainda empreendimentos profundamente especulativos.
Neste sentido, a obra de Dilthey é marcada por um constante e fecundo
diálogo crítico com a tradição, como já dito. Em verdade, uma das crenças
subjacentes ao presente trabalho é a seguinte: texto e contexto, procedimento
histórico e sistemático, acabam por se iluminar reciprocamente. Se formos bem
sucedidos em nossas intenções, procuraremos demonstrar que o texto de Dilthey,
frequentemente classificado como denso e obscuro, acaba por se tornar muito mais
transparente a partir do esclarecimento e exposição de alguns – e tão somente
alguns – aspectos do horizonte significativo em que Dilthey estava imerso. O oposto
12
é, por óbvio, também verdadeiro: a partir dos textos de Dilthey, tal horizonte acaba
por se tornar mais significativo e meridiano.
Deve-se destacar que procuraremos reconstruir alguns aspectos do projeto
epistemológico de Dilthey a partir dos textos concebidos no período entre 1883 e
1894, incluindo os drafts para o segundo volume nunca publicado da Einleitung . De
fato, tal delimitação tem o condão de restringir nossas investigações àquele período
marcado principalmente pela pretensão de Dilthey em constituir uma epistemologia
fundada sobre uma psicologia empírica, analítica e descritiva, período este,
ademais, frequentemente negligenciado em favor de abordagens que acentuam
suas obras tardias. Dilthey pleiteará sua psicologia como alternativa mais segura em
relação às diversas psicologias nascentes da época, especialmente em relação
àquelas diversas psicologias que procuravam se espelhar nas metodologias e
procedimentos das ciências naturais autônomas. A exposição detalhada dos
argumentos do autor ora em estudo, que objetivavam demonstrar a inadequação em
se fundamentar uma epistemologia sobre uma psicologia marcada pela pretensão
em emular os métodos das ciências naturais, constituirá parte importante do
presente trabalho.
É claro que o esforço restará longe de ser conclusivo e limitado por nossas
reduzidas possibilidades. No entanto, trata-se de um período e de textos
relativamente pouco estudados - principalmente no âmbito brasileiro - e que
demonstram, assim cremos, um filósofo de toda forma preocupado com questões
epistemológicas, metodológicas e até mesmo puramente lógicas.
Pretenderemos ainda apresentar sua concepção anti-realista das ciências
naturais: pois o alemão expressamente afirma que leis e entidades não observáveis
são conceitos auxiliares destinados a estabelecer regularidades entre os fenômenos
físicos, fenômenos estes que se dão eles mesmos como fatos da consciência.
Diante do já exposto, poder-se-ia argumentar, com alguma propriedade, que o
projeto aqui apresentado não faz jus ao complexo desenvolvimento do pensar
diltheyano, principalmente quando de uma suposta ruptura entre o período marcado
por temáticas eminentemente psicológicas e o período tardio de Dilthey
(principalmente a partir de 1900), supostamente marcado por uma verdadeira “virada
hermenêutica”.
Primeiramente, convêm esclarecer que parte respeitável da doutrina
especializada – Lessing, Makkreel, Ermarth, Rickman, Rodi, Owensby, Bullhof, por
13
exemplo – procura antes acentuar o caráter de continuidade subjacente ao esforço
diltheyano. Ademais, é um fato que o projeto de uma “Crítica da Razão histórica”
nunca fora abandonado por Dilthey: antes, manteve-se como uma preocupação e
objetivo central durante toda sua vida.
Ademais, qualquer esforço no sentido de defender a tese que propaga uma
eventual ruptura – ou a tese contrária, diga-se de passagem – pressupõe uma
familiaridade não desprezível com a doutrina de alguns dos maiores críticos de
Dilthey: pois seu projeto fundado em uma psicologia analítica e descritiva, como bem
sabido, foi criticado por representantes de diferentes – e influentes – tradições.
Neste sentido, basta citar Windelband, Ebbinghaus e Husserl. De fato, tal objetivo
ultrapassaria os limites inerentes ao presente esforço.
Feitas tais considerações preliminares, é possível prosseguir. O primeiro
capítulo do presente trabalho “Pressupostos fundamentais da crítica da razão
histórica diltheyana” tem como escopo justamente esclarecer alguns dos
pressupostos históricos essenciais sem os quais o texto de Dilthey permanece de
difícil compreensão. Naturalmente, tal objetivo restará longe de ser exaustivo, pois
uma reconstrução completa do contexto em que Dilthey estava imerso demandaria
um trabalho dedicado exclusivamente a tal tarefa.
O segundo capítulo “As críticas de Dilthey às psicologia explicativas” tem
como objetivo esclarecer as características gerais que definiam uma psicologia
explicativa sob a perspectiva de Dilthey. Neste mesmo capítulo, procuraremos expor
as reflexões epistemológicas de Dilthey em relação às ciências naturais e, ainda,
suas críticas a alguns dos mais influentes projetos psicológicos de seu tempo.
O terceiro capítulo, qual seja, “A teoria da experiência de Wilhelm Dilthey
enquanto crítica da tradição epistemológica” destinar-se-á a reconstruir de forma
sistemática alguns aspectos do projeto epistemológico de Dilthey, o que inclui sua
teoria das categorias da vida. Neste sentido, tomaremos como interlocutor
privilegiado de Dilthey justamente Hermann von Helmholtz, um dos maiores
expoentes da cultura alemã em sua época. Tal escolha não pretende ser arbitrária, e
pretende ser justificada no desenvolvimento do capítulo ele mesmo.
Finalmente, o último capítulo, denominado “Da relação entre a epistemologia
diltheyana e as ciências do espírito particulares” procurará demonstrar um dos
aspectos mais fecundos da obra de Dilthey, qual seja: o fato de que a epistemologia
não pode abdicar das conquistas das ciências do espírito particulares –
14
especialmente a história – quando de sua atividade. Ainda neste capítulo, procurar-
se-á expor alguns aspectos da complexa relação entre individuo e mundo histórico
no interior do projeto de Dilthey.
15
1. PRESSUPOSTOS FUNDAMENTAIS DA CRÍTICA DA RAZÃO HISTÓRICA
DILTHEYANA
1.1. Da necessidade de uma fundamentação epistemológica para as ciências
do espírito
Já se tornou um lugar comum: Dilthey seria o principal responsável por propor
uma clássica distinção metodológica entre as ciências do espírito e as ciências
naturais. De forma um tanto quanto sumária, poder-se-ia assim resumir a proposta
diltheyana: o primeiro grupo de ciências pretenderia tão somente compreender os
fatos; o segundo grupo, por sua vez, buscaria subsumir fenômenos particulares a
leis gerais e explicativas, o que garantiria – entre outros objetivos – uma profunda
capacidade preditiva.
A metodologia mais adequada às ciências do espírito, neste sentido, seria o
método compreensivo, método este que Dilthey teria exposto de forma mais bem
acabada e rigorosa em seus últimos trabalhos, principalmente na Aufbau
(Construção do mundo histórico nas ciências do espírito). Tal afirmação é, não se
pode negar, bastante corriqueira e conhecida, mesmo entre aqueles que possuem
um contato apenas superficial com o pensamento diltheyano. Neste sentido, Dilthey
seria um dos principais expoentes quando da negação da pertinência em importar os
métodos das ciências naturais – especialmente aqueles concernentes à física –
quando se pretende, antes, compreender a realidade histórico-efetiva.
Há, ainda, outro aspecto bastante enfatizado em relação ao pensamento do
autor ora em estudo: trata-se da ênfase quando da profunda influência que Dilthey
teria exercido sobre uma série de filósofos que – de fato – acabariam por se tornar
inegáveis expoentes, verdadeiros fundadores de caminhos no interior da tradição.
De fato, estudantes e discípulos diretos do próprio Dilthey enfatizaram e
dedicaram maiores estudos justamente às últimas obras do mestre, principalmente
àquelas que vieram à luz a partir de 1990. Muito desta ênfase e escolha deliberada
se deve a uma percepção de que estas últimas obras antecipavam muitos aspectos
de movimentos filosóficos que, progressivamente, acabariam por dominar o
panorama europeu. Como afirma Makkreel1, muito destas interpretações não
1 MAKKREEL, 1992, p.11-12.
16
enfatizavam o projeto de Dilthey em seus próprios termos. Antes, destacavam
principalmente aqueles aspectos que eram compreendidos como verdadeiras
antecipações de doutrinas da Fenomenologia husserliana e do projeto
heideggariano, especialmente2.
Não se pretende negar que Dilthey – de fato - fora uma importante figura na
consolidação e popularização da já referida distinção metodológica. Tampouco se
pretende duvidar de sua decisiva contribuição quando das altamente influentes
investigações concernentes ao método da Verstehen, principalmente no que se
refere àquelas investigações plasmadas em suas obras publicadas a partir de 1900.
Em verdade, suas reflexões sobre as peculiaridades do método
compreensivo, estavam destinadas a se consolidar como objeto de interesse para
além das fronteiras da Filosofia: tal afirmação é pertinente e significativa
principalmente quando se tem em mente alguns dos desenvolvimentos imanentes
da tradição sociológica alemã3.
Da mesma forma, não se pretende negar aqui que Dilthey, de fato, fora uma
influência decisiva sobre alguns dos mais destacados pensadores da filosofia
contemporânea: tudo isso é bem conhecido, bastante documentado, e sempre
destacado. No entanto algumas palavras devem ser ditas em relação ao até aqui
afirmado, e elas são particularmente importantes, pois constituem verdadeiro fio
condutor do trabalho ora em curso.
Primeiramente, convêm destacar que a conhecida afirmação no sentido de
que Dilthey fora o verdadeiro pioneiro e principal responsável em consolidar a
distinção metodológica entre os dois grupos de ciências não se sustenta sob uma
perspectiva histórica. Não se sustenta na medida em que não cabe à Dilthey o
pioneirismo quando da referida distinção.
2 “An obvious case in point is Otto Friedrich Bollnow´s enthusiastic book, Dilthey: Eine Einführung in
seine Philosophie. Ostensibly an introduction to Dilthey´s philosophy, it reads rather like a
prolegomenon to modern existentialism. Another such treatment is Kurt Müller-Vollmer´s work on
Dilthey´s aestethics, Towards a Phenomenological Theory of Literature. Viewing Dilthey as proto-
phenomenological, Müller-Vollmer seeks to demonstrate that Dilthey´s Poetik also can stand the test
of a Heideggerian analysis. Both interpretations of Dilthey deny the intrinsic significance of the
psychological phase of his development”. Idem, Ibidem.
3 Basta, neste sentido, citar Max Weber.
17
Em verdade, tal mérito cabe à Johann Gustav Droysen, figura chave da
tradição historicista alemã.
A afirmação de Beiser, neste sentido, é bastante incisiva:
Há outro aspecto a partir do qual Droysen moldou e determinou a direção e
desenvolvimento da tradição historicista. Em sua resistência ao positivismo,
Droysen se opôs ao paradigma da explicação mediante leis gerais, e empreendeu
grande esforço para desenvolver modelos e métodos alternativos de explicação. O
resultado foi seu famoso método compreensivo, o qual é frequentemente tido
como o principal paradigma alternativo ao método nomotético característico das
ciências naturais. Dilthey é frequentemente tido como o pai do método
compreensivo, ou, no mínimo, o método é geralmente associado ao seu nome.
Décadas antes dele, porém, Droysen já havia estabelecido o método
compreensivo como o método historiográfico mais pertinente (...)4
Prossegue Beiser:
Embora Dilthey talvez seja mais conhecido por sua hermenêutica e seu método
compreensivo, o crédito quando do desenvolvimento destes pertencem mais
propriamente à Droysen, como já vimos. A crítica da razão histórica tem,
entretanto, uma pretensão e créditos de maior originalidade e importância
histórica5.
Sob uma perspectiva sistemática, a grande contribuição de Dilthey não se dá
no plano puramente metodológico. Muito mais importante e original é a sua
pretensão em prover uma fundamentação epistemológica segura às ciências do
espírito. A expressão “crítica da razão histórica”, que Dilthey adota a partir de uma
sugestão de seu grande amigo e interlocutor Conde Paul Yorck von Watenburg,
denota com clareza esta intenção diltheyana.
No sentido de se prover uma fundamentação epistemológica segura às
diversas ciências do espírito, seria necessário, antes, demonstrar as condições de
possibilidade de conhecimento histórico objetivo:
Durante toda sua vida Wilhelm Dilthey identificou seu projeto filosófico com a
escrita de uma crítica da razão histórica. Enquanto historiador praticante da cultura
e da filosofia, Dilthey também estava preocupado com a possibilidade teorética de
se justificar o conhecimento histórico6.
Nesse sentido, são ainda mais claras e pertinentes as palavras de Owensby:
4 BEISER, 2011, pp. 242.343. Tradução nossa. 5 BEISER, Op. Cit, p. 379 6 MAKKREEL, 1992, p.3. Tradução nossa.
18
Dilthey talvez seja mais conhecido por distinguir entre as ciências do espírito e as
ciências naturais metodologicamente, isto é, por defender que as ciências naturais
pretendem explicar e as ciências do espírito compreender. Todavia, tal afirmação
é tão somente parcialmente verdadeira, e pode obscurer o real valor da obra de
Dilthey. Delineação e delimitação das ciências naturais e do espírito eram de fato
cruciais ao seu projeto, mas seu principal interesse era prover uma
fundamentação crítica para as ciências do espírito. Considerações metodológicas
eram, para ele, sempre uma consequência natural de questões epistemológicas
mais fundamentais7.
A intenção de Dilthey em constituir verdadeiramente uma “Crítica da razão
histórica” é categoricamente afirmada pelo próprio alemão já em sua primeira grande
obra, destinada à justificação da possibilidade de conhecimento histórico e à
fundamentação epistemológica das ciências do espírito: sua famosa “Introdução às
ciências do espírito”. É neste sentido que Dilthey de fato absorve o legado kantiano,
legado estre que transparece já no acolhimento daquela expressão sugerida pelo
Conde Von Watenburg: é bem sabido que Kant, em sua primeira grande Crítica,
buscou constituir uma epistemologia segura às ciências físico-matemáticas. Dilthey,
por sua vez, procurará fundar as ciências do espírito sobre solo epistemológico
seguro. De fato, este é o projeto fundamental que Dilthey conservará por toda sua
vida8. Preciosas são, ainda, as considerações de Schänedelbach:
O giro epistemológico no interior da filosofia da história era, entretanto, também
motivado pelo desenvolvimento das ciências históricas elas mesmas. A “Escola
Histórica” concebeu sua identidade científica a partir do método, e era ao método
7 OWENSBY, 1994, p.21. Tradução nossa. 8 Im Zentrum von Diltheys Werk steht das Projekt einer umfassenden philosophischen, d. h.
erkenntnistheoretischen, logischen und methodologischen Grundlegung der Geisteswissenschaften.
Dilthey hat dieses Unternehmen, das die Begründung der Autonomie der Geisteswissenschaften zum
Ziel hatte, gelegentlich auch – in (kritischer) Anspielung auf Kants Transzendentalphilosophie – als
eine „Kritik der historischen Vernunft“ bezeichnet. (Vgl. I, 116; vgl. auch I, IX und V, 9, VII, 115, 117,
191, 263, 278, 290, VIII, 264). Seine philosophische Grundfrage lautet: Wie lässt sich die Objektivität
geisteswissenschaftlicher Erkenntnisse sichern, und wie lassen sich die Geisteswissenschaften, also
die Wissenschaften des Menschen, der Geschichte und der Gesellschaft (vgl. I, 5), als eine – und
zwar nicht nur in methodischer Hinsicht – von den Naturwissenschaften unabhängige
Wissenschaftsgruppe begründen? Dieses philosophische Projekt kann man ohne Einschränkung als
das Lebensprojekt Diltheys bezeichnen, es ist die einheitstiftende Mitte seines Werks und seines
Denkens. LESSING, 2011, Cap.2, p.1. Grifo nosso.
19
que ela apelava quando começou a se diferenciar em face da filosofia da história.
Tentativas de sistematizar os métodos da ciência histórica em uma metodologia
sólida (...) levaram necessariamente a questões epistemológicas mais gerais,
quando da necessidade de fundamentar a metodologia das ciências históricas e
também quando da defesa frente ao hegelianismo.
Prossegue Schnädelbach:
A necessidade de se manter esta dupla barricada, contra a filosofia da história e
as ciências naturais, fato que era característico da mentalidade histórica
germânica, levaram a um considerável ímpeto em direção à reflexão
epistemológica entre os historiadores, e também explica a forte, ainda que
indireta, influência de escritores como Droysen, Dilthey ou Rickert na maneira que
as ciências humanas compreendiam a si mesmas9.
Ora, é o próprio Dilthey que já no início da Einleitung – no prefácio, para
sermos mais exatos - reafirma a importância de seu projeto epistemológico:
Toda ciência é ciência experimental, mas toda experiência possuí a sua conexão
originária nas condições de nossa consciência, uma consciência no interior da
qual essa conexão vem à tona, no todo de nossa natureza. Nós designamos esse
ponto de vista, que percebe de maneira consequente a impossibilidade de
remontar a um ponto por detrás dessas condições, de ver por assim dizer sem
olhos ou de dirigir o olhar do conhecimento para um ponto de trás dos olhos, um
ponto de vista epistemológico; a ciência moderna não pode reconhecer nenhum
outro ponto de vista.
E prossegue:
Em seguida, porém, mostrou sê-me, além, disso que a autonomia das ciências
humanas só encontra justamente a partir desse ponto de vista uma
fundamentação tal como a de que a escola histórica necessita. Pois sobre esse
ponto de vista a nossa imagem de toda a natureza se mostra como mera sombra
projetada por uma realidade efetiva que nos permanece velada. Em contrapartida,
só possuímos a realidade efetiva tal como ela é junto aos fatos da consciência
dados na experiência interna. A análise desses fatos é o centro das ciências do
espírito e, assim, permanece, de acordo com o espírito da escola histórica, o
conhecimento dos princípios do mundo espiritual no âmbito desse mundo mesmo,
e as ciências humanas formam um sistema autônomo em si mesmo10.
No mesmo sentido:
Mas a escola histórica não rompeu até hoje as barreiras internas que acabaram
inevitavelmente por obstruir a sua formação teórica tanto quanto a sua influência
9 SCHNÄDELBACH, 2009, pp. 50-51. Tradução de nossa autoria. 10 DILTHEY, 2010, p.6
20
sobre a vida. Faltou ao seu estudo e ao seu aproveitamento dos fenômenos
históricos a conexão com a análise dos fatos da consciência, por conseguinte uma
fundamentação com vistas ao único saber que é em última instância seguro, em
suma, uma fundamentação filosófica. Faltou uma relação com a teoria do
conhecimento e com a psicologia11.
Um aspecto que merece ser destacado da Einleitung, verdadeiramente
fundamental para o projeto epistemológico diltheyano, é aquilo expresso já nas
primeiras linhas do prefácio. Trata-se da necessidade de se articular procedimento
crítico-histórico com procedimento positivo-sistemático, algo que – conforme
pretenderemos demonstrar por todo o trabalho – é uma das características mais
destacadas do esforço diltheyano:
O livro, cuja primeira parte publico aqui, articula um procedimento histórico com
um procedimento sistemático, a fim de resolver a questão acerca das bases
filosóficas das ciências humanas com o grau de certeza mais elevado que me é
alcançável. O procedimento histórico segue o curso do desenvolvimento, no qual a
filosofia até aqui lutou por uma tal fundamentação; ele busca determinar o lugar
histórico das teorias particulares no interior desse desenvolvimento e orientar
quanto ao valor, condicionado pela conexão histórica, de tal desenvolvimento; sim,
a partir da imersão nessa conexão do desenvolvimento até aqui, ele quer
conquistar um juízo sobre o impulso mais intrínseco ao movimento científco atual.
Assim, a apresentação histórica prepara a base epistemológica, que será objeto
da outra metade deste ensaio. (DILTHEY, Op. Cit., p.3)
A importância do procedimento crítico-histórico não pode ser subestimada: é
no interior de seu desenvolvimento que Dilthey pretenderá demonstrar a
insuficiência e inadequação de outros projetos, alguns deles de fato bastante
influentes, que também pretendiam oferecer uma base segura quando do estudo do
homem e de suas objetivações.
É ainda no âmago do procedimento histórico-crítico que o alemão intentará
descrever a impossibilidade de qualquer abordagem que pretenda justificar e
fundamentar as ciências do espírito a partir de uma perspectiva privilegiada de
cunho metafísico. Neste sentido, Dilthey expressamente afirma:
Nos portais das ciências humanas, nos deparamos, por isso, com a metafísica,
acompanhada pelo ceticismo, que é dela inseparável, que se mostra por assim
dizer como a sua sombra. A demonstração de sua insustentabilidade constitui a
parte negativa da fundamentação das ciências humanas particulares, que
reconhecemos no primeiro livro como necessária. E, em verdade, procuramos
11 DILTHEY, Op. Cit, p.4.
21
completar a realização abstrata da demonstração própria ao século XVIII por meio
do conhecimento histórico desse grande fenômeno. Com certeza, o século XVIII
refutou a metafísica12.
Mas qual é o sentido do termo “Metafísica”? Se é verdade, como de fato aqui
afirmamos, que um dos temas fundamentais do pensamento de Dilthey é justamente
sua desconfiança acerca de qualquer empreendimento filosófico fundamentado e
justificado – em ultima instância – na Metafísica, é preciso questionar: o que o
próprio Dilthey entende por Metafísica?
Para nossa sorte, o próprio Dilthey fornece - já na Einleitung - uma resposta
mais do que cristalina a esta questão. Ouçamos o próprio Filósofo ora em estudo,
pois:
A expressão metafísica é usada em um sentido tão diverso, que a quinta-essência
dos fatos que é designada aqui por meio desse nome precisa ser delimitada (...)
aquilo que Aristóteles compreendia por filosofia primeira é, por isso, o que há de
mais conveniente para ser colocado na base da determinação deste conceito,
porque essa ciência alcançou por meio de Aristóteles a sua figura autônoma,
claramente diversa das ciências particulares, e porque o conceito de metafísica,
tal como foi cunhado por Aristóteles, foi adotado no transcurso subsequente do
processo de conhecimento
E prossegue:
E enquanto cada ciência particular, correspondendo à sua tarefa de conhecer uma
determinada região do ente, só retorna a um certo ponto na constatação dos
fundamentos, um ponto que é ele mesmo condicionado retroativamente no nexo
do conhecimento, a filosofia primeira tem por seu objeto os fundamentos de todo
ente, fundamentos que não são ulteriormente condicionados no processo de
conhecimento (...) essa determinação conceitual da filosofia primeira ou metafísica
esboçada por Aristóteles é mantida pela maioria dos excelentes metafísicos da
idade Média. Na filosofia moderna, prepondera cada vez mais a mais abstrata
dentre as formulas aristotélicas, aquela que determina a metafísica como ciência
dos fundamentos que não são ulteriormente condicionados no processo do
conhecimento (DILTHEY, Op. Cit, pp.153-154)
Um dos temas fundamentais do pensamento diltheyano é ausência de
qualquer confiança na historicamente corriqueira pretensão em constituir a filosofia
como uma espécie de suprema meta-ciência, responsável por estabelecer :
a-) Os princípios gerais pressupostos por toda e qualquer forma de
investigação racional;
12 DILTHEY, Op. Cit., p. 149
22
b-) Os princípios do próprio ser;
c-) Ou ainda os princípios do ser e do conhecer, mediante uma síntese
unificadora ou sistema constitutivo que parta de princípios univocamente
determinados e pretensamente necessários e universais.
Em palavras sucintas: o antigo de ideal de uma prima philosophia é
peremptoriamente descartado pelo alemão. Em verdade, Dilthey concebia a Filosofia
como ciência da ciência, investigação epistemológica de segunda ordem sobre a
possibilidade do conhecimento13. As influências de Kant – e, como ainda veremos,
de Trendelenburg – são meridianas.
Para compreendermos com a devida clareza os motivos e peculiaridades que
levaram Dilthey a adotar a orientação do fazer filosófico em sentido reflexivo, é
preciso tecer algumas considerações sobre o contexto histórico-cultural em que o
alemão estava imerso. Se bem sucedidos, demonstraremos que a própria
concepção de Filosofia defendida por Dilthey não é uma excentricidade. Antes, é um
movimento bastante comum à sua época no interior do contexto cultural germânico.
Em verdade, o período em que Dilthey viveu fora marcado por uma profunda
sensação de crise da atividade filosófica: a exposição - ainda que breve - desse
panorama é o próximo passo a ser dado em nosso trabalho.
1.2. A crise da Filosofia no século XIX e a reorientação da atividade filosófica
como investigação de segunda ordem sobre a possibilidade do conhecimento
Boa parte da produção filosófica do século XIX - especialmente aquela
originada no interior do vasto ambiente cultural germânico - fora marcada pela
sensação de onipresente e profunda crise. Não se tratava mais de uma mera
contenda entre concepções ou sistemas filosóficos divergentes, que pretendiam
conquistar, cada um a seu modo, fileiras de adeptos e admiradores.
Os questionamentos - em verdade - se deram em nível ainda mais essencial:
o que se discutiu abertamente fora, antes de tudo, a possibilidade da própria
Filosofia enquanto campo autônomo do conhecimento14 15.
13 BEISER, 2011, pp. 322-323. 14 Nesse sentido: SCHNÄDELBACH, Herbert. Philosophy in Germany 1831-1933. Cambridge: Cambridge University Press, 1984; KÖHNKE, Klaus Christian. The rise of neo-kantianism: German academy between idealism and positivism. Cambridge: Cambridge University press, 1991; BAMBACH, Charles R. Heidegger, Dilthey, and the crisis of historicism. Ithaca: Cornell University
23
O início deste período marcado pela perplexidade é comumente associado ao
declínio oriundo da recusa generalizada em relação aos sistemas especulativos que
caracterizaram o Idealismo Alemão, sistemas estes que pretendiam ser verdadeiras
ciências fundantes, capazes de orientar – de maneira unificada e a partir de um
mesmo conjunto de premissas determinado, algo que deve ser destacado – o
homem em suas pretensões práticas e teóricas16 17 .
Press, 1995; CASSIRER, Ernst. The problem of knowledge: Philosophy, Science, and History since Hegel. New Haven: Yale University Press, 1950; BEISER, Frederick. After Hegel. Princeton: Princeton University Press, 2014; SLUGA, Hans. Gottlob Frege. London: Routledge, 1980. 15 Neste sentido, são bastante sintomáticas as palavras de Windelband, ele mesmo um dos mais
destacados filósofos das últimas décadas do século XIX: “The history of philosophical principles is
closed with the development of the German systems at the boundary between the eighteenth and
nineteenth centuries. A survey of the succeeding development in which we are still standing to-day
has far more of literary-historical than of properly philosophical interest. For nothing essentially and
valuably new has since appeared. The nineteenth century is far from being a philosophical one; it is, in
this respect perhaps, to be compared with the third and second centuries B.C. or the fourteenth and
fifteenth A.D. To speak in Hegel´s language, one might say that the Weltgeist of our time, so busy with
the concrete reality and drawn toward the outer, is kept from turning inward and to itself, and from
enjoying itself in its peculiar home”. WINDELBAND, 1901, pp. 642-643.
16 The common opinion about German philosophy in the second half of the nineteenth century, even
among German contemporaries, was that it was a period of decline and stagnation. The great creative
“age of idealism” had passed away with Hegel´s death, it seemed, only to be succeeded by “an age of
realism”, which was more concerned with empirical science and the technical progress than
philosophy. The little philosophy done in this period – so it was said – had been conducted either by
idealist epigones, who were not original, or by materialists, who were not really philosophers at all.
BEISER, 2014, p.15
17 Schnädelbach é particularmente feliz em descrever a pretensão sistemática hegeliana: “A
philosophy which has placed itself at the point of absolute unification of thought and being, subject and
object, truth and goodness, can present its knowledge only in an absolute whole, that is, one which
encompasses everything in in itself, and which, for the sake of maintaining the scientific character of
the knowledge, must be not a mere summary, but a system (…) thus the Hegelian philosophy also
imposes the obligation to present all available knowledge, which it is bound to classify in the first
instance as “finite” and prephilosophical, as comprised in the absolute system and for that very reason
rationally intelligible. Hence, the two parts of the system, the “philosophy of nature” and the
“philosophy of spirit”, need to present all knowledge belonging to the specials sciences scientifically,
for philosophy is nothing but “the scientific knowledge of reality”. ( SCHNÄDELBACH, Op. Cit, p.8)
24
O pensamento de Hegel, cuja influência fora de tal forma dominante que
restou por eclipsar muitos de seus contemporâneos, é provavelmente o mais
influente e conhecido exemplo do projeto idealista, em sua amplitude de fins. Não
por acaso, a morte do suábio é considerada por muitos como o “canto do cisne” da
crença na capacidade absoluta da Filosofia em ser o médium mais elevado e de
pleno direito no desvelar da natureza íntima de tudo aquilo que é.
Tomaremos - como recurso primordialmente metodológico18 - a morte de
Hegel (1831) como marco simbólico de um verdadeiro momento de viragem. Em
realidade, o prestigio e influência destes sistemas especulativos – principalmente o
de Hegel, reitere-se – fora de tal forma marcante no âmbito germânico, que a
Filosofia em sua totalidade acabara por ser identificada com tais sistemas.
Paulatinamente, na medida em que uma cada vez maior desconfiança em relação
aos altos voos especulativos idealistas tornava-se cada vez mais frequente e
comum, a consequência não poderia ser outra: um descrédito da Filosofia em sua
totalidade19.
Neste sentido, Beiser:
Independente do método, o filósofo o usaria para construir um sistema completo
das ciências, uma enciclopédia, a qual determinaria o papel e espaço de cada
ciência autônoma no interior do corpo geral do conhecimento. A Filosofia era,
18 Em verdade, o pensamento hegeliano nunca deixou de exercer duradoura influência sobre uma
gama bastante heterogênea de pensadores, mesmo quando a intenção primeira fosse a de negá-lo.
A filosofia americana (Royce, Peirce), o Idealismo Britânico (Mctaggart, Bradley), os críticos diretos do
hegelianismo (Marx, Kierkgaard), o pensamento francês do pós-segunda grande guerra (Sartre,
Lacan) e o marxismo ocidental (Lukács, Adorno), são algumas provas do que fora anteriormente
afirmado. Na atualidade, os estudos de Hegel se intensificam em um contexto inesperado; basta,
neste sentido, uma breve menção à Macdowell, Brandom, Pippin, Pinkard, Westphal, Reeding, entre
outros.
19 The result was threefold: first, a turning away from idealist philosophy and from Hegelianism in
particular; second, the rejection of the speculative, deductive, a priori method the idealists had used;
and third, in so far as philosophy as a whole was identified with idealism and with deductive a priori
reasoning, a turning away from philosophy as a whole. In the thinking of the times, idealism was
replaced by materialism, a priori reasoning by empiricism, and philosophy as a separate intellectual
activity by an ideology in which philosophy had merged with and disappeared in the empirical
sciences. The ideology that replaced idealism could be called scientific naturalism. (SLUGA, 1980,
p.14)
25
portanto, a “guardiã das ciências”, responsável pela fundamentação e
sistematização destas. Tal era a concepção de Filosofia primeiramente proposta
por Reinhold em sua “Elementarphilosophie”, seguida por Fichte em sua “Doutrina
das Ciências”, aplicada por Schelling em seu “System der gesamten Philosophie”
e realizada por Hegel em sua vasta Enciclopédia das ciências filosóficas em três
volumes.
E prossegue:
Já por volta de 1840, entretanto, esta concepção de Filosofia tornara-se
completamente desacreditada. A maioria dos intelectuais já não acreditava na
possibilidade da filosofia em prover uma fundação para as ciências mediante
métodos a priori ou mediante a pura razão. Já não havia confiança em primeiros
princípios auto evidentes, intuições intelectuais, construções a priori, ou mesmo
em uma dialética20.
Imperioso destacar outro fator que contribuiu decisivamente para esta
desconfiança generalizada em relação à própria possibilidade da Filosofia enquanto
campo autônomo do conhecimento: trata-se justamente da autonomização do
diversos campos de estudos e pesquisa especializados. Estas tradições de pesquisa
– História, Física, Biologia, psicologia experimental, entre outras -, pleiteando
independência em relação à Filosofia - que já não podia mais, com toda a confiança,
considerar-se a guardiã de todo o conhecimento - acabavam por contribuir com a
crença de que não haveria nenhuma justificava plausível para a existência da
Filosofia enquanto campo autônomo do conhecimento21:
Não por acaso, o contexto cultural germânico se vê como o palco de uma
série de discussões no sentido de definir qual seria a concepção de Filosofia mais
adequada a esta nova realidade. O que esta em jogo, reitere-se, é a própria
sobrevivência da filosofia, seu próprio direito em existir enquanto atividade legítima e
justificada.
20 BEISER, 2014, pp. 28-29
21 Hegel´s death did not only mark the end of the age in which philosophy could make credible it´s
leading role in the world of sciences (…) After Hegel, even scientific reactions to philosophical
impulses became more and more rare and usually came about only in an indirect fashion. Above all,
however, philosophical foundations in science, or for science in general, suddenly became to seen
dispensable; even in the normative sphere, it now seemed, the sciences could look after themselves.
Philosophy was thus in the unfortunate position of having constantly to demonstrate its
indispensability, or even its right to exist. SCHNÄDELBACH, Op. Cit., p.67
26
Dado o caráter do esforço em curso, nos ateremos a apenas uma das
soluções propostas para este verdadeiro momento de crise: justamente aquela
proposta que procurava definir a Filosofia como Epistemologia ou Teoria do
Conhecimento (Erkenntnistheorie), reflexão de segunda ordem sobre os conceitos
mais básicos, métodos e pressuposições das diversas ciências empíricas
autonomizadas22. De acordo com tal concepção, a função da Filosofia seria refletir
sobre as condições de possibilidade do conhecimento. Esta reflexão – deve-se
destacar - pressupõe como objeto os resultados das diversas ciências empíricas
enquanto campos autônomos do conhecimento.
Desta forma, garantir-se-ia uma função específica para Filosofia – de caráter
reflexivo – sem sacrificar a independência das ciências particulares autônomas.
Pretendia-se, portanto, a restauração e restabelecimento de uma relação saudável
entre a Filosofia e os outros campos autônomos do conhecimento, relação esta que
havia sido – assim se cria à época – dilapidada e abalada pelas altas pretensões
características dos sistemas Idealistas.
De fato, esta concepção acabaria por se consolidar - principalmente no
interior do ambiente universitário alemão - como fundamento de um movimento
verdadeiramente dominante, principalmente nas últimas quatro décadas do século
XIX. Trata-se justamente daquele movimento que restou conhecido por
Neokantismo. Os pormenores da gênese e desenvolvimento desta tendência no
interior da história da Filosofia não pretende ser exposta no presente trabalho;
devemos admitir que o assunto é de tal forma complexo que demandaria um
trabalho inteiramente dedicado ao assunto. Ademais, tal pretensão ultrapassaria em
muito nossas possibilidades.
Entretanto, não podemos evitar algumas considerações neste sentido, pois
essenciais para uma compreensão minimamente clara do projeto diltheyano. Em
realidade, há uma série de obras que – entre outros objetivos - pretendem
justamente traçar justamente este desenvolvimento no interior do panorama cultural
germânico. É a partir delas que destacaremos alguns temas essenciais ao
desenvolvimento do presente esforço.
Primeiramente, ouçamos à Beiser:
Já no início da década de 1860 (...) um novo movimento filosófico apareceu no
horizonte que pleiteava outra concepção de filosofia, concepção esta que
22 BEISER, 2014, p.37.
27
exerceria um grande impacto sobre a filosofia alemã nas décadas restantes do
século XIX. Este movimento era o Neokantismo. Podemos traçar suas origens nas
últimas décadas do século XVIII, no criticismo do idealismo expeculativo levado a
cabo por Jakob Friedrich Fries (1773-1843), Johann Friedrich Herbart (1776-1841)
e Friedrich Beneke (1798-1841) (...) Havia de fato porta vozes do Neokantismo
através de toda década de 40 do século XIX – Ernst Mirbt (1799-1847), Christian
Weisse (1801-1866) and Carl Fortage (1806-1881) – e já na década de 50 a
filosofia de Kant encontrou um grande defensor na figura do físico e fisiólogo
Hermann von Helmholtz.
Prossegue Beiser:
Mas o movimento somente tornou-se autoconsciente e totalmente difundido já na
década de 60, nos escritos de Kuno Fischer (1824-1906), Eduard Zeller (1814 –
1908), Otto Liebmann (1840-1912), Friedrich Lange (1828-1875) e Jürgen Bona
Meyer (1829-1897). O que deu a este movimento seu foco racional e sua energia
fora sua concepção de filosofia, a qual foi explicitamente concebida como uma
resposta para crise de identidade da Filosofia23
Em sentido convergente, Porta:
Com a exortação “Zurück zu Kant!” (Voltemos a Kant!) finaliza o livro de Otto
Liebmann intitulado Kand und die Epigonen (1865), no qual o mencionado autor
defende a tese de que o idealismo alemão não foi o consequente desenvolvimento
da filosofia transcendental mas, pelo contrário, um retrocesso, uma perda de
rumo. Daí o famoso apelo, tradicionalmente considerado início simbólico do
neokantismo. Não obstante, se não cabe dúvida de que Liebmann constitui o
começo do movimento referido, não é certo que ele também constitua o começo
da “volta a Kant”. Na realidade, esta se inicia muito antes, a saber, imediatamente
depois da morte de Hegel (1831), não sendo o neokantismo “institucional” nada
mais que a culminação do dito processo. Neste “retorno à Kant” finca suas raízes
a “filosofia contemporânea” (PORTA, 2011, pp.15-16)
Algo que nem sempre é devidamente destacado no que tange à gênese,
desenvolvimento e consolidação da tendência em conceber a Epistemologia como
disciplina fundamental, porém, é o papel realmente decisivo – e pioneiro - exercido
por Friedrich Adolf Trendelenburg, já na década de 40 do século XIX, quando da
reorientação da atividade filosófica em relação (de oposição) ao Idealismo.
De fato, a importância da publicação em 1840 de sua obra mais conhecida,
qual seja, suas “Investigações Lógicas” (Logische Untersuchungen), inaugurou na
Alemanha o movimento moderno na epistemologia e na teoria científica que viria a
23 BEISER, 2014, p.36. Tradução de nossa autoria.
28
culminar no Neokantismo24. Segundo Trendelenburg, a Filosofia deveria tornar-se
uma verdadeira “teoria da ciência”, capaz de investigar reflexivamente os
pressupostos lógicos e metafísicos subjacentes às diversas ciências – naturais,
formais e do “espírito” - de um ponto de vista privilegiado, algo que naturalmente
garantiria uma função específica à Filosofia e ainda restauraria sua relação saudável
com as ciências25.
O fato é que, em um trabalho cuja pretensão é refletir sobre alguns aspectos
da obra diltheyana, tal omissão é ainda mais injustificada: pois fora justamente
Trendelenburg umas das influências mais marcantes sobre o pensamento de
Dilthey:
Na data de 19 de Novembro de 1903, em um discurso proferido em razão de seu
septuagésimo aniversário, Wilhelm Dilthey rememorou e relembrou alguns de
seus professores durante seus anos como estudante na Universidade de Berlim.
Eles formavam, de fato, um conjunto bastante imponente: Leopold von Ranke,
Alexander von Humboldt, Friedrich von Savigny, Franz Bopp, Jacob e Wilhelm
Grimm. Mas entre esta verdadeira constelação de luminares, havia um pensador
que especialmente lhe vinha à mente e que exercera a maior influência sobre seu
próprio pensamento. Este homem era justamente Friedrich Adolf Trendelenburg
(1802-1872)26
Alguns fatos que merecem ser destacados quando da relação entre os dois
filósofos, além do já afirmado:
a-) Fora justamente Trendelenburg o orientador de Dilthey em âmbito de
doutorado.
b-) Alguns dos problemas mais caros à Trendelenburg – destaque-se, por
exemplo, o problema da realidade do mundo externo – permanecerão como
algumas das questões mais caras para o próprio Dilthey.
24 KÖHNKE, 1991, p.16. 25 “The autonomization of logic in relation to the sciences, and even also in relation to knowledge as
such, with which Trendelenburg reproaches the Hegelians, is to be counteracted with a restoration of the ties between logical theory and scientific practice. That all the sciences – including those called the “humanities”, as opposed to the previous orientation of logic towards mathematics and the natural sciences – are to become the object of interest of logical reflection already specifically anticipates Dilthey´s “logic of the Geisteswissenchaften”, which was decisively influenced both by Trendelenburg and by Schleiermacher´s concept of a “central science” that philosophy is to become, and yet is at the same time presented as only a partial aspect of a more comprehensive program for a new scientific discipline: “theory of science” as that tribunal whose object of interest is to be logical and metaphysical bases of the sciences”. KÖHNKE, Op. Cit, pp.26-27. Grifo nosso. 26 BEISER, 2013, p.24. tradução nossa.
29
c-) Na famosa querela Fischer-Trendelenburg, Dilthey expressamente toma
partido em favor de Trendelenburg. Há algo de bastante simbólico neste movimento
diltheyano: pois as lições sobre a história da Filosofia de Kuno Fischer foram
diretamente responsáveis pela decisão diltheyana que resultou em seu afastamento
da teologia em direção à Filosofia (MAKKREEL, 1992, pp. 45-48)
Não se pode ignorar que, a despeito da influência exercida por seu mestre
sobre seu próprio desenvolvimento, restará Dilthey por negar e se opor a
importantes aspectos da Filosofia Trendelenburguiana27. Sem dúvidas, a
explicitação da relação entre Dilthey e Trendelenburg demandaria um trabalho
autônomo, bastante complexo, aliás. O que nos interessa no momento, no entanto, é
apenas e tão somente justificar uma de nossas afirmações anteriores, qual seja:
“que a própria concepção de Filosofia defendida e adotada por Dilthey não é uma
excentricidade; antes, é um movimento bastante comum à sua época no interior do
contexto cultural germânico” 28.
Para cristalizar tal entendimento, nada melhor do que recorrer ao próprio
Dilthey. Na seção da “Einleitung” sugestivamente nomeada, não por acaso, “A
necessidade de uma fundamentação epistemológica para as ciências humanas”, o
alemão assim afirma:
Todos os fios de nossas ponderações até aqui confluem para a seguinte
intelecção: o conhecimento da realidade efetiva histórico-social realiza-se nas
ciências do espírito particulares. Essas ciências, porém, carecem de uma
consciência sobre a relação de suas verdades com a realidade efetiva, uma
realidade da qual elas são conteúdos parciais, assim como com as outras
verdades, que também são abstraídas como elas dessa realidade. Além disso, só
uma tal consciência pode conferir a seus conceitos a plena clareza, a suas
proposições a plena evidência29.
E prossegue:
A partir dessas premissas surge a tarefa de desenvolver uma fundamentação
epistemológica das ciências humanas, usando em seguida o recurso criado em
uma tal fundamentação, para determinar o nexo interno das ciências humanas
particulares, os limites no interior dos quais um conhecimento é possível nelas,
27 Por exemplo, a possibilidade de uma metafísica enquanto campo constitutivo de conhecimento e a concepção finalista-organicista do cosmo. 28 Em verdade, Trendelenburg não foi a única influência que mereceria ser destacada quando da crença de Dilthey em relação ao papel da Filosofia. Schleiermacher, Lotze, entre outros, mereceriam ser destacados. Infelizmente, o mapeamento mais completo possível dessas relações demandaria um trabalho próprio. De qualquer maneira, sugere-se, neste sentido: ERMARTH, 1978, pp. 15-92; 29 DILTHEY, 2010, pp.138-139
30
assim como a relação de suas verdades entre si. A resolução dessa tarefa poderia
ser designada como crítica da razão histórica, isto é, como a faculdade do homem
de conhecer a si mesmo tanto quanto a sociedade e a história criadas por ele30.
1.3. Da complexa relação entre Dilthey e a tradição kantiana
Demonstrado – assim cremos - aquilo que pretendíamos. É importante
destacar que Dilthey, no entanto, não pode ser prontamente identificado como um
típico representante da tradição kantiana sem que isso enseje maiores dificuldades,
pois sua relação e posicionamento em relação à tradição criticista é justamente um
dos aspectos mais complexos de sua obra. É certo que sua concepção de atividade
filosófica compartilha muitos aspectos em comum com a tradição que restou
conhecida por neokantismo, algo que acaba por refletir na própria escolha da
expressão “crítica da razão histórica”.
Também é certo que a crença diltheyana em considerar o método psicológico
como o mais apropriado à sua epistemologia não é um dado que por si só seja
suficiente no sentido de afasta-lo decisivamente da tradição neokantiana: em
verdade, alguns dos principais responsáveis no desenvolvimento e consolidação do
neokantismo – Meyer, Leibamnn e Lange, por exemplo – também compartilhavam
desta crença31.
De fato, a definitiva cristalização do método transcendental como o mais
adequado à reflexão filosófica no interior da tradição neokantiana só viria a se
consolidar com as obras do Cohen maduro, principalmente a partir de “Kant´s
Theorie der Erfahrung”.
Aliás, um breve excurso, que consideramos pertinente: não deixa de ser
significativo que o próprio Cohen em sua juventude, particularmente influenciado
pela Völkerpsychologie, concebera uma psicologia - de inspiração herbartiana -
como o método mais adequado à investigação epistemológica.
Destaque-se que o próprio Dilthey também fora particularmente influenciado
pela Völkerpsychologie em seus anos de estudos em Berlim32. Outro dado
30 Idem., Ibidem. 31 Não se pode ignorar o fundamental papel da figura de Helmholtz neste sentido. Sua interpretação fisiológica do kantismo foi particularmente influente à época. De fato, Helmholtz será uma figura bastante presente no decorrer do presente trabalho, especialmente nos capítulos 2 e 3. 32 Para um estudo pormenorizado da Völkerpsychologie: KLAUTKE, 2013.
31
significativo: ambos - Cohen e Dilthey - posteriormente viriam a criticar e se afastar
da influente corrente de pensamento da “Psicologia dos Povos”. E, para finalizar
exte breve desvio, válido ressaltar que ambos pensadores contribuíram com a
publicação oficial do movimento: o “Zeitschrift für Völkerpsychologie und
Sprachwissenschaft”. De fato, a relação entre psicologia e epistemologia é um dos
temas fundamentais do século XIX alemão33.
Retornemos, pois, à complexa relação entre Dilthey e a tradição kantiana.
Dilthey não pode ser considerado como um típico neokantiano na medida em que
acaba – de fato - por criticar alguns dos pilares da tradição criticista34. Em verdade,
Dilthey considera a própria concepção de subjetividade pressuposta por Kant – e por
outradas mais influentes correntes filosóficas: o empirismo britânico – como
inadequada, pois marcada por um vício de origem: o intelectualismo. É neste
sentido que na talvez mais conhecida passagem de sua obra, Dilthey acaba por
criticar estas duas tradições: pois ambas pressupunham uma concepção de
subjetividade totalmente abstrata, passiva e contemplativa, concebida em puro
pensamento, muito distante daquele sujeito real da experiência efetiva:
Se em muitos aspectos me encontrava nesses pontos em concordância com a
escola epistemológica de Locke, Hume e Kant, precisei conceber de maneira
diversa à dessa escola justamente a conexão dos fatos da consciência, uma
conexão na qual reconhecemos conjuntamente todo o fundamento da filosofia. Se
nos abstrairmos de uma poucas abordagens que não chegaram a alcançar uma
conformação científica, por exemplo, se nos abstraírmos das abordagens de
33 Não será diferente quando da obra de Dilthey. Ainda no presente trabalho, mais dados neste sentido serão fornecidos.
34 “ The revival of interest in Kant, and the sustained attempt to carry philosophy on further from the
point where Kant had left it, are one of the leading factors in the history of German philosophy during
Dilthey´s lifetime. In his inaugural lecture at Basel in 1867, Dilthey himself professed adherence to the
Kantbewegung, at least to the extent of believing that philosophy must turn away from metaphysical
speculation and take up against the task of a critique of knowledge. From the very beginning,
however, he set himself against the Kantians of his own time, and against Kant himself, on
fundamental points of doctrine and method (…) He wrote of the Marburg neokantianism as “an
artificial tissue of logic (…) floating unsupported in empty air” (G.S., V, 150-151). Dilthey´s philosophy
retains throughout its development the character of a polemic against kantianism in the interests of
true empiricism, an appeal from thought to life, of which thought is only one aspect”. HODGES, 1952,
p.48. Em sentido convergente, ver também: ERMARTH, Op. Cit., pp.38-39.
32
herder e Wilhelm von Humboldt, a teoria do conhecimento até aqui, tanto a
empírica quanto a de kant, explica a experiência e o conhecimento a partir de um
estado de fato que pertence à mera representação. Nas veias do sujeito
cognoscente, que foi construído por Locke, Hume e Kant, não corre sangue real,
mas o suco diluído da razão como uma mera atividade do pensamento. A lida
tanto histórica quanto psicológica com o homem em seu todo conduziu-me a, na
multiplicidade de suas forças, colocar na base mesmo da explicação do
conhecimento e de seus conceitos (conceitos tais como mundo exterior, tempo,
substância, causa) esse ser que, querendo e sentido, representa; e isso por mais
que, como esses seus conceitos, o conhecimento só parece tecer a partir da
matéria da percepção, da representação e do pensamento35.
Outro aspecto verdadeiramente central do pensamento kantiano que Dilthey
rejeitará de forma veemente: o próprio conceito de a priori kantiano, justificado em
última instância, assim acreditava Dilthey, pela postulação de um sujeito
transcendental. Ouçamos novamente à Dilthey:
A ideia fundamental de minha filosofia é a de que até aqui nunca se colocou toda
a experiência plena, completa e não mutilada à base do filosofar, assim como
nunca se colocou em sua base toda a realidade efetiva plena. Com certeza, a
especulação é abstrata; eu concebo, em oposição ao culto a Kant hoje dominante,
esse grande pensador como também tomando parte nessa realidade; ele chegou
a partir da metafísica escolástica ate Hume e seu objeto não é formado pelos fatos
psíquicos em sua pureza, mas pelos fatos vazios das formas de espaço, tempo
etc. esvaziadas pela abstração escolar; e a autoconsciência forma apenas a
conclusão – não o ponto de partida de sua análise.
Prossegue o alemão:
Sim, em Kant, dissolveu-se a própria filosofia abstrata do entendimento; ele não a
arruinou de fora, mas foi seu destino ter essa dissolução realizada em si. Na
medida, porém, em que o ponto mais profundo, ao qual Kant chegou, foi uma
faculdade abstrata da produção, uma forma desprovida de conteúdo ( de acordo
com seu ponto de partida): forma podia gerar novamente forma; e na medida em
que, nas três críticas, as funções psíquicas foram desenvolvidas isoladamente
segundo a forma, o intelectualismo pode se levantar novamente, forma do mero
pensar como lugar de origem do absoluto em nós. Que espetáculo não foi
encenado nas críticas kantianas!36
Conceitos como causa, substância e tempo – não por caso, verdadeiramente
centrais na estética e lógica transcendental kantiana – e mesmo nossa crença
efetiva da realidade do mundo exterior, deveriam ser investigados a partir de seu
35 DILTHEY, 2010, pp.6-7 36 DILTHEY, 2014, pp.157-158.
33
desenvolvimento, mediante uma investigação que levasse em consideração a
relação imediata e eminentemente ativa dos sujeitos empíricos para com o mundo:
No entanto, o problema da relação das ciências humanas com o conhecimento da
natureza só pode ser considerado resolvido se aquela oposição da qual partimos,
a oposição entre o ponto de vista transcendental, para o qual a natureza se
encontra sob as condições da consciência, e o ponto de vista objetivamente
empírico, para o qual o desenvolvimento do espírito se encontra sob as condições
do todo natural, foi dissolvida. Essa tarefa constitui uma parte do problema do
conhecimento 37
Assim expressa Dilthey: “Não é a hipótese de um a priori rígido de nossa
faculdade cognitiva, mas apenas a história do desenvolvimento da totalidade de
nosso ser, que todos nós temos de dirigir para a filosofia” (DILTHEY, 2010, p.7).
Dilthey, no entanto, ao se opor à “hipótese de um a priori rígido”, não
necessariamente descarta o “ponto de vista transcendental”.
Em verdade, o que Dilthey propõe é que toda aquela esfera de investigação
estabelecida por Kant - que tem como objeto “as condições de possibilidade da
experiência” - poderia e deveria ser investigada de forma empírica, mediante uma
psicologia descritiva. Somente esta investigação poderia descrever as experiências
fundamentais que possibilitam e a partir das quais se originam toda uma série de
“condições da consciência”, condições estas cujas origens – reitere-se – devem ser
buscadas na relação pré-teórica, eminentemente prática e imediata para com o
mundo.
A citação de Dilthey a seguir é longa, mas particularmente esclarecedora:
A ideia básica da minha filosofia é seguinte: da percepção para formas
superiores de conhecimento, a inteligência humana está sob condições de
consciência, condições que introduz sucessivamente como pressupostos na
construção do mundo real; deste modo, a realidade dos conteúdos da sensação
constituem o primeiro pressuposto aos quais logo se adaptam outros de tal forma
que o sistema de nossas sensações é o meio para a construção desta realidade,
mediante uma vinculação e transposição recíproca do dado na percepção interna
e externa. Desta forma, a análise científica de nosso conhecimento tem como
objeto a relação destes pressupostos entre si e seu valor cognitivo, ainda que seja
certo que este último somente se pode verificar de forma indireta. Ademais, a
história da ciência, o progresso do conhecimento, encontra na introdução,
modificação e eliminação destes pressupostos seu principal elemento dedutivo,
somente a partir das quais se torna compreensível.
37 DILTHEY, 2010, p. 33.
34
Ainda neste sentido:
Com isto introduzo na teoria da concretização do conhecimento e da história do
conhecimento a doutrina, estabelecida por Kant, das condições da consciência,
submetendo-a, sem embargo, a uma transformação crítica. Somente por meio
desta doutrina se faz inteligível a história da ciência e a concepção da natureza
soberana da inteligência humana, cuja virtude esta em se apropriar dos objetos,
ao construí-los mediante as condições da consciência nela mesma situadas (...)
pero ao mesmo tempo – e nisto me distancio principalmente de Kant – a
inteligência humana transforma seus próprios pressupostos com o objetivo de uma
penetração mais profunda nas coisas (...) Sem embargo, estas condições da
consciência devem ser apreendidas em toda sua amplitude. Apresentam-se e se
fundam tanto no querer e sentir como no pensar. Por isto no ponto de partida da
teoria do conhecimento deve-se situar uma psicologia verdadeiramente descritiva,
que inclua também os conteúdos dos fatos psíquicos38.
O que Dilthey propõe, portanto, é uma revisão e reorientação da doutrina
kantiana das condições de possibilidade do conhecimento, que somente seria
possível a partir de uma reconceitualização e ampliação do próprio conceito de
experiência. É certo que todos esses fatos da consciência – logicamente -
condicionam a experiência. Temporalmente, porém, tais condições se originam de
uma experiência originária, eminentemente prática e ativa, que não se reduz ao
conceito de experiência pressuposto pela filosofia moderna, conceito este
eminentemente intelectualista, contemplativo e passivo.
Em verdade, este projeto diltheyano se torna mais claro quando se tem em
mente a sua pretensão declarada em dissolver um dos dualismos fundamentais que
– em diversas variantes – constituíram verdadeiros pressupostos da filosofia
moderna: justamente a distinção substancial entre mente e matéria, corpo e espírito,
sujeito e objeto, psíquico e físico. Mesmo a distinção sujeito-objeto, tomada como
fundamental e verdadeiro ponto de partida da tradição epistemológica moderna não
seria de forma alguma originária, argumentará Dilthey. Ela mesma seria produto de
uma relação imediata entre sujeito e mundo, em que ambos os polos estão
intimamente relacionados e que só podem ser dissolvidos e separados por um
processo que já envolve uma alta e ulterior capacidade conceitual e de abstração.
Não por acaso, em sua obra, Dilthey prefere o termo “unidade psico-física”
(Psychophysische Einheit) em detrimento do termo “Sujeito”, impregnado
historicamente.
38 DILTHEY, 1986, pp.90-91
35
Categorias fundamentais como substância e causalidade, por exemplo, não
são meramente “dadas” ao sujeito pela constrição ativa de um mundo alheio, nem
justificadas a partir de um sujeito puro. As categoriais fundamentais do pensamento
possuem elas mesmas uma história, origem e desenvolvimento: sua gênese deve
ser buscada na relação volitiva, prática e pre-teórica daquele ente que já desde
sempre esta imerso em um horizonte estruturado significativamente:
O a priori kantiano é rígido e morto: mas as condições reais e os pressupostos da
consciência, tal como os concebo, são processo histórico vivo, são
desenvolvimento, tem a sua história, e o curso da mesma constitui sua adaptação
à diversidade dos conteúdos sensíveis, conhecidos indutivamente (...) a vida
histórica abarca também as condições através das quais pensamos,
aparentemente rígidas e mortas. Jamais se pode destruí-las, posto que pensamos
mediante elas, mas se vem submetidas a um desenvolvimento. Com isto,
estabeleço uma vinculação natural entre a investigação da inteligência humana e
nosso conhecimento dos estágios mais remotos do gênero humano que podemos
alcançar, o desenvolvimento semântico na linguagem e a evolução das
representações míticas39 40.
1.4. Os projetos de Mill e Comte não fazem jus à realidade efetiva
A crítica diltheyana à tradição epistemológica é, sem dúvidas, um dos
aspectos mais complexos – e também mais fecundos - de sua obra. Pois seu intento
em conceber uma Epistemologia que faça jus à experiência concreta e real, ainda
não mutilada por uma série de pré-juízos e hábitos intelectuais pressupostos por
alguns dos maiores luminares da tradição filosófica, demandar-lhe-á uma
investigação que consiga prover meios de conciliar – de maneira integrada – uma
crítica da concepção de subjetividade moderna e uma reorientação do próprio
conceito de experiência pressuposto pela tradição. São dois aspectos da sua
produção que, de fato, não podem ser analisados isoladamente.
Na famosa passagem já citada – aquela que afirma que nas veias do sujeito
concebido por Kant e pela tradição empirista britânica não corre sangue real – há um
aspecto sumamente importante que nem sempre é destacado: justamente a crítica
dirigida não só à Kant, mas também à tradição do empirismo britânico.
39 Idem., Ibidem. 40 Não deixa de ser curioso notar que estas considerações de Dilthey – escritas por volta de 1880 –
compartilham muitos temas em comum com algumas das doutrinas que seriam desenvolvidas pelo neokantianismo de Marbugo.
36
Esta tradição, com seus tradicionais apelos à necessidade de uma filosofia
fundada e justificada tão somente pela experiência, ao pressupor uma concepção de
subjetividade abstrata - construída “em pensamento”- resta por se afastar
decisivamente justamente da experiência viva, real e concreta. É o próprio Dilthey
que assim considera a incapacidade da tradição empirista em fazer jus à
complexidade da realidade efetiva:
Pois a alma poderosa da ciência atual é uma exigência por realidade que quer,
depois de reconfigurar as ciências naturais, se apoderar agora do mundo histórico-
social, a fim de, se possível, abarcar o todo do mundo e conquistar os meios para
interferir no curso da sociedade humana. Essa experiência total e plena, contudo,
nunca foi colocada até aqui na base do filosofar. Ao contrário, o empirismo não
é menos abstrato do que a especulação41. O homem, composto por escolas
empiristas influentes a partir de sensações e representações como a partir de
átomos, se encontra em contradição com a experiência interna, cujos elementos
tornam possível a representação do homem: essa máquina não teria a capacidade
de se manter um dia no mundo. O nexo social, que é deduzido dessa concepção
empirista, não é menos uma construção esboçada por elementos abstratos do que
aquela que as escolas especulativas apresentaram42.
Entre os representantes da tradição empirista é preciso destacar – em razão
de caraterísticas intrínsecas ao presente trabalho – a figura de David Hume. Já em
1739, o escocês publica uma de suas mais importantes obras, discutivelmente a
mais importante dentre elas: o famoso Tratado da Natureza Humana. O subtítulo da
referida obra é particularmente revelador: “uma tentativa de introdução do método
experimental de raciocínio sobre assuntos morais” (an attempt to introduce the
experimental method of reasoning into moral subjetcs).
Cabe destacar que o projeto de Hume - uma nova ciência do homem - fora
profundamente influente sobre o ambiente filosófico germânico já nas últimas
décadas do século XVIII. Que Kant tenha sido influenciado por Hume é algo já
exaustivamente destacado. O que nem sempre é destacado, porém, é a influência
massiva de Hume – e da escola escocesa do senso comum - sobre o contexto
cultural germânico como um todo: em verdade, muito de suas ideias foram de
41 Grifo de nossa autoria. 42 DILTHEY, 2010, pp.147-148
37
fundamental importância para o movimento alemão que resultou conhecido como
popularphilosophie43.
Particularmente influenciado por Newton, Hume pretendera fundar uma
ciência da natureza humana fundada sobre uma psicologia do tipo associacionista.
O resultado é a dissolução da mente em um complexo de idéias e representações
regidas por leis de associação univocamente determinadas. Para Dilthey, a
psicologia associacionista típica da tradição britânica – atomismo psíquico regido por
leis gerais – seria um produto típico de uma concepção de sujeito intelectualista que
não existe na realidade: em verdade, seria um constructo teoricamente moldado -
em última instância - para responder às questões impostas pelas ciências físico-
matemáticas. A experiência e a atividade do homem, porém, não se resume às
construções teóricas pressupostas pelas ciências da natureza, embora elas sejam
de fato muito significativas.
Ouçamos o próprio Dilthey, em sua incisiva crítica do projeto humeniano:
David Hume, que duas gerações depois deu prosseguimento à obra de Espinoza,
se comporta em relação a Newton da mesma forma que Espinoza em relação a
Galileu e descartes. Sua teoria da associação é uma tentativa de projetar segundo
o modelo da teoria da gravitação leis relativas à adesão de representações (...)
Assim a psicologia explicativa deu início à submissão dos fatos espirituais à
43 The Wolfians were engaging in ever more subtle demonstrations, ever more esoteric disputations
much like the schoolmen of the Middle Ages, so that their philosophy had no meaning for the general
public. In short, the Wolffians were making philosophy a scholastic exercise, an intellectual pastime
removed from everyday life. And so in the 1760´s voices of protest could be heard. Among the
vanguard of this were thinkers like Feder in Göttingen, Garve in Breslau, or Nicolai in Berlin, who
demanded that philosophy descend from its ivory tower and enter into the life of human beings (…)
Thus, from the reaction against Wolffian scholasticism, Popularphilosophie was born (…) For Herder,
and indeed all the Popularphilosophen, there was the closets connection between aiding humanity
and studying it: the more we know about human nature, its needs and aspirations, the better we could
aid it (…) the Germans had a special word for this new philosophy about humanity: “Anthropologie”.
(….) Anthropologie” as by no means a German fad. If the word was German, the concept was British,
indeed Scottish (…) The chief inspiration for German anthropology was the Scottish ideal of “a science
of nature”, a project first formulated in the works of Hume, Smith, Kames and Ferguson (…) It was
modelled on the methods of the natural sciences. What newton had done for the physical cosmos, the
Scottish philosophers now proposed to do for “the moral realm”. Following the example of the physics,
the science of human nature would attempt to formulate precise laws about human nature based on
the method of observations and experiment. BEISER, 2011, pp. 103-104.
38
conexão mecânica da natureza, e essa submissão produziu um efeito que
perdurou até o presente. Dois teoremas constituíram a base da tentativa de
projetar um mecanismo da vida espiritual. As representações que restam das
impressões são tratadas como grandezas físicas, que se inserem em ligações
sempre novas, mas que permanecem sempre as mesmas nessas ligações. Do
mesmo modo, são apresentadas leis de seu comportamento mútuo, leis a partir
das quais se precisa deduzir os fatos psíquicos da percepção, da fantasia, etc. Por
meio daí possibilita-se uma espécie de atomística psíquica (...) A mecânica
psíquica sacrifica aquilo que percebemos em uma percepção interior a um
raciocínio que joga com as analogias da natureza 44 .
Já no século XIX é preciso destacar - como herdeiro e principal representante
da tradição do empirismo britânico - John Stuart Mill. O inglês explicitamente
defende expressamente a necessidade de se prover uma fundamentação
epistemológica sólida às “Ciências Morais” no livro VI (“On the Logic of the Moral
Sciences”) do seu altamente influente System of Logic. Seu projeto epistemológico –
na esteira da tradição empirista, aliás – concebe o método psicológico como o mais
adequado à investigação epistemológica.
Em relação a estas pretensões de Stuart Mill, ouçamos à Hodges:
O estudo científico da história e da sociedade pressupõe conhecimento das leis do
fenômeno mental em geral, e este conhecimento certamente não seria parte da
sociologia, mas sim destinada a uma ciência mais fundamental, isto é, a
Psicologia. Mill, o herdeiro da tradição britânica, de acordo com esta, recolocou a
psicologia no lugar destinado a ela por Hume45.
Assim como Hume, Stuart Mill acreditava firmemente que uma
fundamentação epistemológica das “ciências morais” deveria se basear em uma
psicologia que emulasse os métodos das ciências naturais, especialmente da Física.
Não por acaso, o próprio Stuart Mill abre seu livro VI com a seguinte – e bastante
explícita – afirmação: “The backward state of the Moral Sciences can only be
remedied by applying to them the methods of Physical Science, duly extended and
generalized ”. Mill as denominou, portanto, de “ciências morais”, e concordava com
Comte que elas se encontravam em um estado atrasado, do qual elas poderiam ser
regatadas somente pela transferência dos métodos já em funcionamento nas
ciências naturais46. A psicologia de Mill – que também pressupõe um sujeito
44 DILTHEY, 2010, p.431 45 HODGES, Op. Cit., p.166. Tradução nossa. 46 Ibidem, p.167
39
concebido à luz das ciências físico-matemáticas - será um dos exemplos mais
patentes do que Dilthey classificará como “psicologia explicativa”47.
Outro influente projeto que propunha uma fundamentação mais adequada às
“ciências sociais”, e que também declarava basear-se tão somente na experiência e
desprovido de qualquer ímpeto especulativo, era o projeto defendido por Auguste
Comte. Sua Sociologia propunha ser uma verdadeira “física social”. Ora, o projeto de
Comte é ainda mais radical: em última instância, a conclusão lógica de seu projeto
implica em que qualquer investigação de cunho epistemológico, baseado em um
método exclusivamente filosófico, seria de fato um empreendimento supérfluo.
Toda questão verdadeiramente significativa – argumenta Comte - poderia ser
respondida devidamente por alguma das ciências naturais autônomas (o que inclui,
por óbvio, sua Sociologia). Mesmo a possibilidade e fecundidade da noção de
introspecção (ou percepção interna) é descartada peremptoriamente por Comte,
pois não garantiria o plano de objetividade necessário à atividade científica. Todas
as questões comumente direcionadas à psicologia poderiam ser resolvidas nos
âmbitos da Biologia e Sociologia, argumenta o francês.
O próprio Dilthey assim descreve o projeto Comteano:
A concepção comtiana considera o estudo do espírito humano dependente da
ciência biológica, das uniformidades passíveis de serem percebidas na sequência
dos estados espirituais como o efeito das uniformidades nos estados do corpo.
Sim, ela nega que se possa estudar por si a estrutura normativa dos estados
psíquicos. A essa relação lógica de dependência em relação às ciências
corresponde, então, segundo ele, a sequência histórica por meio da qual as
ciências da sociedade veem determinando o seu lugar histórico. Como a
sociologia tem por seu pressuposto as verdades de todas as ciências naturais, ela
só chega depois de todas elas ao estágio de sua maturidade, isto é, à constatação
das proposições que articulam as verdades particulares encontradas para formar
um todo científico. A Química entrou em um tal estágio na segunda metade do
século XVIII com Lavoisier; a fisiologia, só no começo do século XIX, com a teoria
dos tecidos de Bichat: assim parecia a Comte que a constituição das ciências
como a classe suprema dos trabalhos científicos cabia a ele mesmo48.
Ora, ao negar possibilidade da percepção interna, Comte acaba por mutilar a
realidade efetiva, assim crera Dilthey. Pois para o alemão, a percepção imediata dos
47 Como veremos já no próximo capítulo, eram muitas as psicologias que Dilthey classificava de forma
crítica como explicativas. 48 DILTHEY, 2010, pp.126-127
40
fatos da consciência dados na experiência interna é aquilo que há de mais certo,
seguro e imediato:
A resposta de Comte e dos positivistas, assim como de Stuart Mill e dos empiristas
a essas questões, pareciam-me mutilar a realidade histórica efetiva, a fim de
adaptar os conceitos e métodos às ciências naturais (...) foi exclusivamente na
experiência interior, nos fatos da consciência, que encontrei um solo firme de
ancoragem para o meu pensamento, e estou confiante de que nenhum leitor
subtrairá nesse ponto à condução da demonstração (...) em contrapartida, só
possuímos a realidade efetiva tal como ela é junto aos fatos da consciência dados
na experiência interna. A análise desses fatos é o centro das ciências humanas e,
assim, permanece, de acordo com o espírito da escola histórica, o conhecimento
dos princípios do mundo espiritual no âmbito desse mundo mesmo, e as ciências
humanas formam um sistema autônomo 49.
Prossegue Dilthey:
Na base dessa inserção dos fenômenos espirituais sob o nexo do conhecimento
natural encontram-se duas hipóteses, da qual a primeira e indemonstrável e a
outra, evidentemente falsa. A hipótese da condicionalidade exclusiva dos estados
psíquicos por meio dos estados fisiológicos é uma conclusão apressada
estabelecida a partir de fatos, que não permitem, segundo o julgamento dos
próprios pesquisadores fisiológicos imparciais, nenhuma decisão. A afirmação de
que a percepção interna seria em sí impossível e infrutífera, “um empreendimento,
que nossos descendentes verão um dia entrar em cena para a sua diversão”, é
deduzida de maneira equivocada de uma deturpação do processo perceptivo 50.
Há outro aspecto do pensamento de Comte que Wilhem Dilthey considera
ainda mais inadequado. Para o alemão, o projeto do insigne positivista francês está
justificado e fundado, em última instância, em uma crença especulativa que se
estende e se distancia de toda e qualquer experiência possível: justamente a famosa
lei dos três estágios comtiana, que Dilthey interpreta como uma verdadeira filosofia
da história:
Uma grosseira metafísica naturalista – essa é a base real de sua sociologia. Por
outro lado, o “sentido geral do desenvolvimento humano”, tal como esse sentido é
deduzido da visão do transcurso histórico do mundo, não é uma vez mais outra
coisa senão uma notio universalis, uma representação geral, confusa e
indeterminada, que é abstraída da mera visualização do nexo histórico. Uma
abstração não científica, sob cuja capa se encontra reunido o domínio crescente
do homem sobre a natureza, a influência crescente das capacidades mais
49 Ibidem, pp.4-6 50 Ibidem, pp.126-127
41
elevadas sobre as inferiores, da inteligência sobre os afetos, de nossas
inclinações sociais sobre as nossas inclinações egoístas. Essas imagens
abstratas dos filósofos da história apresentam o transcurso histórico do mundo
apenas por meio de reduções sempre diversas51.
Mas as críticas de Dilthey à tradição não se esgotam com o que já fora dito.
Na medida em que pretende fundamentar sua epistemologia sobre uma psicologia
descritiva, Dilthey acabará por empreender um verdadeiro tour de force no sentido
de demonstrar a inadequação de uma série de projetos psicológicos dos mais
influentes em sua época. Estes projetos possuíam em comum – sob a perspectiva
de Dilthey, naturalmente – o fato de pretenderem emular os métodos das ciências
naturais quando do estudo da psique e, consequentemente, não fazerem jus à
realidade efetiva. Dilthey classifica todos estes projetos como exemplos de
psicologias explicativas.
O próximo passo do presente trabalho é, portanto, expor a critica diltheyana
às psicologias explicativas.
51 Ibidem, p.129
42
2. A CRÍTICA DE DILTHEY ÀS PSICOLOGIAS EXPLICATIVAS
2.1. Características gerais de uma psicologia explicativa
Segundo a definição de Dilthey, toda psicologia explicativa pretende
esclarecer o funcionamento da vida psíquica em sua totalidade a partir de uma
estratégia bem definida: procura-se, primeiro, determinar um número univocamente
determinado de elementos absolutamente simples, que funcionariam como os
constituintes fundamentais da vida anímica. Posteriormente, determinam-se as leis e
forças que regem as relações entre estes elementos, em verdadeiro nexo causal. A
partir do estabelecimento destas duas propriedades – elementos simples e leis
causais, reitere-se – deve-se proceder de forma sintético-construtiva, isto é, procura-
se construir a vida anímica em sua totalidade.
O alemão expressamente afirma que este procedimento é, de fato, uma
emulação dos métodos explicativos peculiares à física e química: pois estas ciências
teriam como expediente básico justamente procurar reconstruir os corpos materiais
em sua totalidade a partir da determinação de elementos simples (átomos) e de leis
causais. As psicologias explicativas seriam, em última instância, uma espécie de
atomística psíquica.
De fato:
(...) importa entender por ciência explicativa toda a subordinação de um campo de
fenômenos a um nexo causal por meio de um número limitado de elementos (...)
este conceito indica o ideal de semelhante ciência, tal como ele se formou,
sobretudo, graças ao desenvolvimento da física atómica 52.
Sob a perspectiva diltheyana, as diversas psicologias explicativas não partem
da vivência em sua plenitude, da experiência da realidade efetiva enquanto
imediatamente dada. Antes, partem desde sempre de uma caricatura formal e
abstrata de subjetividade, concebida a partir da mecânica. Tais psicologias procuram
submeter toda a realidade psíquica a um método que tem como pressuposto
fundamental e é determinado por uma concepção de experiência abstratamente
concebida que, conforme veremos, é necessária e útil ao estudo da natureza, mas
não ao estudo da psique.
52 DILTHEY, 2002, p.17
43
Ouçamos, neste sentido, à Ermarth:
A psicologia existente estava infectada por três erros conexos: associacionismo,
atomismo e construtivismo. O empirismo na psicologia era compreendido como a
aderência ao associacionismo determinista – justamente o oposto do que Dilthey
compreendia por Empirie. O associacionismo partia de uma concepção da vida
mental enquanto um processo mecânico de acumulo e junção de bolas de bilhar.
Representações e sensações analiticamente isoladas eram conectadas
externamente, e não mediante qualquer coerência estrutural dos seus conteúdos e
significados. Dilthey cria que as “sensações” da psicologia convencional, as quais
eram tidas como o fundamento último e real da experiência, eram, em verdade,
concebidas abstratamente e hipoteticamente como unidades mínimas para dar
conta da experiência (...)
E prossegue:
A relação postulada entre unidades perceptuais não tinha nada em comum com a
o conteúdo de fato do que era percebido (e com a relação da mente com este
conteúdo), mas era meramente um arranjo formal e externo no tempo e espaço. O
processo de associação era mecânico e não sintético, pois se movia de datum
discreto para datum discreto, sem dai emergir nenhuma estrutura formativa
coerente. A mente era concebida como uma mera soma de percepções separadas
e desprovida de qualquer capacidade organizacional independente53
Dilthey não hesita em reconhecer que constitui uma ideia de extraordinária
ousadia a pretensão em importar os métodos das ciências naturais para o estudo da
vida psíquica. De fato, entre os representantes da psicologia explicativa, Dilthey
enumera alguns dos maiores expoentes de sua época: a escola herbartiana, os
representantes do associacionismo inglês, os fisiólogos materialistas. Entretanto, o
projeto de uma psicologia explicativa (ou construtiva, como às vezes prefere o
alemão) supostamente já nasceria com um vício de origem: ao emular os métodos
explicativos característicos da física atómica, a psicologia explicativa também dever-
se-ia atentar para as limitações que Dilthey afirma resultar necessariamente de uma
análise epistemológica mais profunda das possibilidades – e impossibilidades,
especialmente – impostas ao projeto pretendido.
É a partir de uma análise epistemológica, portanto, que Dilthey defenderá o
método explicativo como aquele mais pertinente quando do estudo das ciências da
natureza, em virtude de limitações fenomenológicas expressas. Estas limitações,
53 ERMARTH, 1978, P.170. Tradução nossa.
44
porém, não necessariamente se impõem às Ciências do Espírito e – não por acaso –
Dilthey classifica sua psicologia descritiva como uma ciência do espírito.
Mas quais seriam estas limitações? Para compreender o argumento
diltheyano no tocante à inadequação de uma psicologia explicativa, é preciso
primeiro delimitar sua concepção anti-realista e eminentemente pragmática dos
conceitos e hipóteses fundamentais das Ciências da Natureza enquanto campo de
investigação restrito àquilo que é dado mediante os sentidos (percepção exterior)
Veremos, neste sentido, que a posição de Dilthey se insere em uma tradição
– bastante comum no século XIX, de fato – que, ao procurar se afastar de qualquer
compromisso de índole especulativa quando da concepção dos métodos e
possibilidades das Naturwissenschaften, acabará por rejeitar as diversas doutrinas
que pleiteiam a realidade dos entes e conceitos auxiliares pressupostos pela
atividade científica para além de qualquer limitação fenomenológica expressa.
Ainda neste sentido, pretenderemos demonstrar que Dilthey justifica sua
crença na natureza necessariamente hipotética dos conceitos mais básicos
pressupostos pelas ciências da natureza a partir de suas crenças e investigações
epistemológicas. Determinado os pontos anteriores, procuraremos ainda expor o
argumento de Dilthey no sentido de defender a superioridade do seu modelo de
psicologia descritivo-analítico em detrimento das demais psicologias construtivo-
explicativas.
Dilthey se valerá de dois argumentos principais neste sentido: primeiramente,
alegará o autor ora em estudo que as ciências da natureza necessariamente partem
de conceitos, leis e elementos simples puramente hipotéticos. Tal expediente não
seria necessário quando de uma psicologia descritiva e analítica, porém: pois esta
parte do dado imediato à consciência via percepção interna e via análise procura
determinar as características determinantes do psíquico.
O segundo expediente argumentativo é baseado em um movimento bastante
coerente com o restante de seu edifício teórico: o alemão criticará justamente o
sacrifício da realidade efetiva em detrimento de uma construção puramente formal e
abstratamente concebida. Em outras palavras: no afã de conferir um aspecto de
cientificidade aos seus projetos, as diversas psicologias explicativas acriticamente
importam os métodos das ciências naturais, a despeito deste expediente não fazer
jus á realidade efetiva e complexa – imediatamente dada, ademais – que constitui o
objeto de estudo da psicologia.
45
2.2. Das ciências naturais
Para compreendermos com a devida clareza a crítica de Dilthey direcionada
às diversas escolas e tradições que o alemão classifica como exemplos concretos
de psicologias explicativas, é imperioso delinear - ainda que de forma não exaustiva
- a posição de Dilthey no que concerne às possibilidades e limites inerentes à
atividade, método e objeto das ciências da natureza. Sua visão se insere em um
movimento (bastante comum no século XIX) que procura se distanciar de qualquer
compromisso metafísico/especulativo quando da reflexão acerca das características
gerais do expediente naturalista.
Neste sentido, duas estratégias são corriqueiras e logicamente conexas:
a-) As ciências das naturezas tem como objeto tão somente aquilo é dado
pela percepção exterior. Sua atividade consiste, basicamente, em submeter o dado
a leis causais explicativas e quantitativamente determináveis, mediante uma série de
construções auxiliares hipotéticas.
b-) Não se pode pretender que tais construções auxiliares hipotéticas – força
e átomo, por exemplo – espelhem uma realidade para além dos limites de toda
experiência possível. Em outras palavras: deve-se evitar uma interpretação realista
dos conceitos e hipóteses pressupostos pela atividade científica, visto que uma das
características básicas da metafísica seria justamente a pretensão em desvelar a
conexão lógica íntima do real, para além de qualquer limitação epistemológica.
Outra característica da reflexão diltheyana que merece ser destacada: suas
finas análises históricas quando do fenômeno científico, principalmente quando das
causas e origens da ciência moderna. De fato, mediante verdadeiro procedimento
histórico crítico, Dilthey procurará se afastar de todos aqueles que concebiam a
ciência moderna como concretização do tradicional conceito de teoria aristotélica,
isto é, como fruto de uma busca desinteressada e eminentemente contemplativa
pela verdade.
De fato, um dos persistentes leitmotivs subjacentes ao projeto diltheyano
consiste em destacar a origem eminentemente prática da ciência moderna, isto é,
como resposta a anseios que se originam no seio da vida ela mesma. Naturalmente,
tal perspectiva envolve tematizar todo um horizonte histórico significativo, algo que,
não se pode olvidar, é um procedimento que Dilthey herdará da tradição histórica
alemã.
46
Iniciemos, pois, por expor algumas das considerações diltheyanas
propriamente históricas no que tange às origens, causas e características mais
gerais da ciência moderna. De fato, Dilthey afirma que a ciência moderna “se viu
fomentada (...) por fortes impulsos que encontrou previamente dados na
sociedade”54. Duas características das ciências modernas são inicialmente
destacadas: a abdicação em procurar pelos fundamentos últimos – isto é, um
progressivo distanciamento em relação à metafísica – e a pretensão em resolver
problemas eminentemente práticos, oriundos do desenvolvimento progressivo da
indústria, comércio e medicina.
A consolidação da burguesia trabalhadora, inventiva e sempre a procura de
procedimentos cada vez mais refinados para a resolução de seus problemas de
ordem prática, proporcionou a uma ciência que se restringia cada vez mais ao
âmbito estritamente quantitativo “recursos de significado imensurável”. A tradição
judaico-cristã, por sua vez, conferindo ao homem a posição privilegiada de senhor
do mundo e destinando-o ao domínio de todas as coisas, é outro dado histórico que
não pode ser ignorado, principalmente quando se tem em mente que a ciência
moderna encontra suas raízes justamente entre os povos latinos e germânicos, isto
é, entre os europeus.
Progressivamente, conceitos como causa e substância foram cada vez mais
interpretados como conceitos auxiliares destinados a estabelecer regularidades
quando da organização dados da percepção exterior. Os conceitos de causa final e
causa formal, de origem aristotélica, essenciais quando da concepção teleológica do
cosmos, mostram-se dispensáveis quando de uma visão mecânica da natureza. A
antiga metafísica das formas substanciais é progressivamente abandonada em prol
de uma abordagem puramente quantitativa do dado: neste sentido, de acordo com
Dilthey, basta citar os trabalhos de Galileu e Descartes55.
Mas o núcleo verdadeiramente radical do procedimento histórico crítico de
Dilthey se dá quando de sua afirmação da historicidade constitutiva dos conceitos
mais básicos pressupostos pela ciência moderna. Os conceitos de força, átomo e o
principio da causalidade, verdadeiramente centrais quando da ciência moderna, tem
suas origens remotas em vivências elementares e são frutos de um desenvolvimento
histórico bastante complexo. De fato, como argumentará Dilthey, tais conceitos
54 DILTHEY, 2010, p.420. 55 Idem, p.411.
47
compartilham suas origens – origens que, como ainda veremos56, se dão na vivencia
ela mesma - com alguns dos conceitos básicos da tradição metafísica.
Já os pré-socráticos, por exemplo, pressupõem os conceitos de causa
eficiente e material em suas investigações. De fato, Dilthey assim afirma:
A conexão necessária em termos de pensamento, que é buscada pela moderna
ciência da natureza como fundamento explicativo da realidade efetiva dada, de
acordo com aquilo que foi desenvolvido na metafísica e com o mesmo ideal de
conhecimento delineado por ela, tem por seu material os mesmos conceitos de
substância e de causalidade (causa eficiente) que foram desenvolvidos
cientificamente e abstraídos do mesmo modo na metafísica da vivência de toda a
natureza humana (...) Quando surgiram os conceitos de fundamento do
conhecimento ou de necessidade racional no desenvolvimento d metafísica, eles
encontraram previamente dadas essas duas representações fundamentais que
guiaram o pensamento humano retroativamente do dado para os fundamentos 57
A ciência moderna da natureza também procura compreender as
transformações do sensível e o movimento a partir da noção de causa, e, na mesma
medida, também procura determinar os elementos últimos da matéria, que não
seriam eles mesmos passíveis de corrupção e que constituiram todas as coisas.
Questionará então Dilthey: “no que consiste, então, aquilo que mais diferencia a
pesquisa da natureza junto aos povos modernos? No que consiste o artifício por
intermédio do qual eles destruíram o antigo edifício doutrinário do cosmos?”58
A reposta de Dilthey está intimamente relacionada com sua concepção anti-
realista dos conceitos pressupostos pela investigação científica. A crítica da
metafísica empreendida levou à dissolução da crença na possibilidade de perscrutar
o “fundo das coisas” pelo puro pensamento. Dilthey, neste sentido, aceita a crítica
kantiana: a metafísica tem como procedimento básico justamente em empregar
conceitos como causa e substância para além de toda experiência possível.
Pressupor que estas “condições da consciência” espelhem uma realidade para além
daquilo que é dado, e que de alguma forma constituam o verdadeiro nexo lógico
subjacente à mera aparência sensível, já não seria mais uma posição passível de
defesa.
56 Justamente no próximo capítulo do presente trabalho 57 DILTHEY, 2010, p.411. 58 Idem, Ibidem.
48
Superada a metafísica das formas substanciais, Dilthey adverte que uma
nova metafísica deve ser evitada quando da interpretação das ciências da natureza:
o materialismo, i.e, a presunção de que os conceitos pressupostos pela ciência
moderna constituam a verdadeira natureza última das coisas.
Senão vejamos: o conceito de átomo é, por exemplo, um conceito logico
historicamente refinado59. Em outras palavras: tal conceito possui ele mesmo uma
história, não é um mero dado, mas verdadeiro processo construtivo, que procura
submeter o dado à condições explicativas de maneira cada vez mais sofisticada.
Em última instância, porém, ele tem origem em vivências elementares a serem
desveladas pela análise epistemológica, reitere-se.
De fato, Dilthey expressamente afirma que o conceito de átomo pressuposto
pela ciência moderna é um conceito construtivamente refinado que descende do
conceito de substância:
Só retiraremos uma vez mais uma conclusão de nossa visão panorâmica histórica
se continuarmos de inicio afirmando: o conceito de substância e o conceito
construtivo que parte dele do átomo surgiram a partir das exigências do
conhecimento em face daquilo que precisa ser estabelecido na mutabilidade da
coisa como algo firme que que se encontra na sua base; eles são resultados
históricos do espírito lógico que luta com os objetos; portanto, eles não são
essencialidades dotadas de uma dignidade mais elevada do que a coisa particular,
mas criações da lógica que buscam tornar pensável a coisa e cujo valor cognitivo
se acha sob a condição do vivenciar e do intuir, nos quais a coisa é dada60.
Todos aqueles que supõem que a atividade das ciências naturais tem como
objetivo último desvelar a estrutura íntima do real acabam por ignorar as conquistas
da crítica epistemológica, isto é, acabam por incorrer no mesmo erro da metafísica
tradicional.
E ainda acabam por renegar uma das grandes conquistas das ciências
naturais, isto é, sua delimitação em relação á toda metafísica:
Ao menos o seguinte está claro: não se pode compreender pior a explicação
mecânica da natureza tal como ela se mostra como o resultado do trabalho
admirável do espírito de investigação da natureza na Europa do que concebendo-
a como uma nova espécie de metafísica, por exemplo, como uma metafísica de
base indutiva. Naturalmente, foi só muito paulatina e lentamente que se destacou
da metafísica o ideal de um conhecimento explicativo do nexo natural, e só a
59 “(...) Dilthey regarded logic not as the final inventory of the a priori forms of though, but as a set of integrated and refined reflections upon the body of accumulated human experience”. ERMARTH, Op. Cit. 60 DILTHEY, 2010, p.418.
49
pesquisa epistemológica esclarece toda a oposição que há entre o espírito
metafísico e o trabalho da ciência natural moderna61.
2.3. Dos resultados da crítica epistemológica quando dos limites e
possibilidades das ciências naturais
O objeto das ciências da natureza – segundo o próprio Dilthey – deve se
restringir àquilo que é dado mediante a percepção exterior62. Na medida, porém, que
pelos “sentidos somente é dada a coexistência e a sucessão, sem o nexo causal
daquilo que se apresenta simultaneamente ou sucessivamente”, é preciso se valer
de uma série de conceitos auxiliares no sentido de subsumir o dado pela percepção
externa a um sistema estruturado de leis e vínculos causais:
As condições que a explicação mecânica da natureza busca, esclarecem apenas
um conteúdo parcial da realidade efetiva exterior. Esse mundo inteligível do
átomo, do éter, das vibrações é apenas uma abstração intencional e
extremamente artificial daquilo que é dado na vivência e na experiência. A tarefa
era construir condições que permitissem deduzir as impressões sensíveis na
exatidão precisa de determinações quantitativas e, com isso, predizer impressões
futuras63.
Estes diversos conceitos auxiliares não são meramente dados pela percepção
externa: coisa e causa, para citar um exemplo diltheyano, não podem ser indicadas
como componentes das percepções nos sentidos. Consequentemente, a natureza
destes conceitos auxiliares permanece sempre hipotética, na medida em que não é
possível pleitear sua efetiva “realidade” para além daquilo que nos é ofertado pelos
sentidos.
Como já dito, ainda que de passagem, não há dúvida que Dilthey se insere
em uma tradição que procura conscientemente se afastar de uma interpretação
realista dos conceitos pressupostos pelas ciências naturais.
Esta recusa está claramente inserida em uma forte tendência “anti
especulativa” que perpassa todo seu projeto, algo já demasiadamente destacado.
61 Idem, p.420 62 Idem, p.411. 63 Idem, p. 421.
50
Ouçamos ao próprio Dilthey, que já na “Einleitung”, assim afirma:
E de fato: até onde alcança um ponto de vista, tal como o descrito recentemente
por Fechner como a ‘visão noturna”, um ponto de vista para o qual o átomo e a
gravitação são entidades metafísicas, assim como eles eram anteriormente formas
substanciais, apenas se trocou naturalmente uma metafísica pela outra; e não se
pode nem mesmo dizer: uma pior ou melhor. O materialismo era uma tal
metafísica nova, e justamente por isso o monismo científico-natural atual é o seu
filho e herança, porque também para ele o átomo, a molécula e a gravitação são
entidades, realidades efetivas, tanto quanto qualquer objeto, que pode ser visto e
tocado64
E prossegue o alemão, de forma plástica:
mas a relação dos pesquisadores verdadeiramente positivos com os conceitos por
meio dos quais eles conhecem a natureza é uma relação diversa das dos
monistas metafísicos. Newton mesmo viu na força de atração apenas um conceito
auxiliar para as formas das leis, não o conhecimento de uma causa física. Tais
conceitos como força, átomo e molécula são para a maior parte dos
pesquisadores excepcionais da natureza um sistema de construções auxiliares,
por intermédio do qual as condições para o dado são desenvolvidas e se
transformam em um contexto claro para as representações e utilizável para a
vida65
De fato, Dilthey expressamente afirma em suas “Ideias para uma psicologia
descritiva e analítica” que a hipótese “é um recurso necessário do conhecimento
progressivo da natureza” 66. Estes diversos conceitos e construções auxiliares são
produtos de uma ação e capacidade eminentemente ativa do espírito: são eles
mesmos condições da consciência, portanto. Mas o alemão não para por aí quando
de sua análise dos procedimentos das ciências naturais. Afirma ainda que, em geral,
quando da pretensão de explicação de determinado fenômeno, são “várias as
hipóteses que se apresentam como igualmente possíveis”67.
O que garante as ciências naturais enquanto campo de pesquisa legítimo e
justificado é a possibilidade oferecida pela matemática e a experimentação em
estabelecer critérios práticos de decisão quando da necessidade de se decidir entre
as hipóteses possíveis, com bom grau de exatidão e segurança, ainda que sempre
de maneira provisória. Atente-se: sempre de maneira provisória.
64 DILTHEY, 210, p.416. 65 Idem, Ibidem. 66 DILTHEY, 2002, p.18. 67 Idem, Ibidem.
51
Dilthey, neste sentido, afirma que “persiste sempre um hiato intransponível
entre o grau máximo de probabilidade alcançado por uma teoria indutivamente
fundada e a apodicticidade que corresponde às relações matemáticas
fundamentais”68.
Em outras palavras: não há nenhum ponto arquimédico, nenhum princípio ou
experiência privilegiada que consiga justificar de forma absoluta qualquer das
hipóteses científicas. Elas permanecem sempre em aberto, revisáveis em princípio:
Neste sentido, as hipóteses não tem só uma significação decisiva como etapas
determinadas na origem das teorias científico-naturais; não pode também deixar-
se de observar que, inclusive com o incremento máximo da probabilidade da
nossa explicação da natureza, jamais desaparecerá o seu caráter hipotético69.
2.4. É justificada a transferência dos métodos das ciências da natureza para a
Psicologia?
Dado que, segundo Dilthey, os diversos modelos de psicologia explicativa
são, em última instância, frutos de uma transferência dos métodos das ciências
naturais para o estudo da psique, não tardará em questionar o alemão: é justificada
tal transferência?
Como já vimos, Dilthey parte de certa concepção integrada da atividade,
possibilidades e limites inerentes às Naturwissenschaften. Suas considerações
partem de uma expressa limitação fenomenológica, isto é, o fato de que as ciências
da natureza operam no interior e limites intrínsecos daquilo que é dado pela
percepção exterior. Na medida em que aquilo que é dado pelos sentidos são tão
somente a coexistência e sucessão, nunca o nexo causal explicativo – que é produto
da espontaneidade do espírito, verdadeira condição da consciência -, os conceitos
auxiliares pressupostos pela tradição científica permanecerão sempre hipotéticos,
visto que não é possível pleitear a validade das construções teóricas para além do
imediatamente dado. Não há, da mesma maneira, qualquer princípio ou âmbito de
experiência que possa servir como esfera de justificação absoluta deste conjunto de
construções.
68 DILTHEY, 2002, p.19. 69 Idem, p.20.
52
As ciências da natureza ainda abstraem de todo o conteúdo qualitativo da
experiência – ou seja, não partem da realidade imediatamente dada em sua
integridade - e restringem suas questões ao âmbito quantitativo, o que naturalmente
garante a efetividade da matemática e das experimentações enquanto expedientes
que possibilitam decidir entre duas ou mais hipóteses possíveis que pleiteiam
explicar um mesmo fenômeno.
O primeiro fato que Dilthey destaca, no sentido de demonstrar que a
transferência destes métodos para o estudo da psique é inadequado, se fundamenta
justamente sobre a impossibilidade de decidir qual das hipóteses pressupostas pelas
diversas psicologias explicativas existentes em sua época é a mais adequada
quando da explicação do objeto pretendido.
Em sua crítica à psicologia explicativa, Dilthey valer-se-á de um clássico
argumento, frequentemente utilizado por aqueles céticos em relação à possibilidade
e pretensão de validade universal de qualquer dos historicamente constituídos
sistemas metafísicos: o argumento que afirma não haver um âmbito de justificação
capaz de oferecer critérios suficientes quando da necessidade de se julgar a
pretensão de verdade dos diversos sistemas pleiteados, muitas vezes contraditórios
entre si.
Ao defenderem acriticamente os métodos das ciências da natureza como os
mais adequados à psicologia, os cultores do monismo metodológico acabam por
recair no mesmo erro daqueles metafísicos, pois entende o autor ora em estudo que
não há critério de justificação suficiente para decidir quais das hipóteses pleiteadas
pelas diversas tradições e escolas da psicologia explicativa são de fato as mais
adequadas. “Hipóteses, tão somente hipóteses!” exclama Dilthey:
Constatamos, em primeiro lugar, o facto de que a toda psicologia explicativa esta
subjacente uma combinação de hipóteses, que se revelam como tais em virtude das
características mencionadas, pois não podem excluir outras possibilidades. A cada
complexo de hipóteses contrapõem-se nela muitas outras. Ruge no seu âmbito uma luta de
todos contra todos, não menos violenta do que a que impera no campo da metafísica. Nem
na lonjura do horizonte se vislumbra algo que consiga arbitrar esta peleja70
Segundo a visão de Dilthey, no campo da ciência da natureza haveria um
procedimento típico que consistiria na abstração da experiência efetiva daqueles
componentes e aspectos puramente quantitativos, o que permitira a matematização
do objeto pretendido, algo que, consequentemente, possibilitaria um rígido controle
70 DILTHEY, 2002, pp.20-21.
53
experimental. Dilthey descarta peremptoriamente esta possibilidade quando do
estudo da psíque:
Consola-se, sem dúvida, a psicologia pensando nos tempos em que também não
era melhor a situação da física e da química; mas que imensas vantagens tem
estas na firmeza dos seus objetos, no uso livre do experimento, na
mensurabilidade do mundo espacial! (...) Ninguém, pois, pode dizer se algum dia
acabará esta luta de hipóteses no seio da psicologia explicativa, nem quando tal
acontecerá71.
Como exemplos de psicologias tipicamente explicativas, que partem de
conjuntos de hipóteses diversos como pressupostos de suas atividades, sem que
seja possível – sob a perspectiva de Dilthey, naturalmente - decidir qual destes
conjuntos é mais pertinente quando do estudo da psique, oferecerá o alemão
explicitamente uma verdadeira tipologia de alguns dos projetos psicológicos mais
influentes de sua época. Embora não nomeie expressamente os representantes e as
escolas aos quais cada conjunto de hipóteses descritas se refere, é possível com
bastante segurança determinar os alvos da crítica Diltheyana, a partir do estudo
genético-histórico já empreendido. Os alvos são, de fato, alguns dos projetos mais
influentes do século XIX.
2.5. Dilthey contra os fisiólogos materialistas, o associacionismo inglês e a
escola herbartiana
O primeiro conjunto de hipóteses é assim descrito por Dilthey:
Uma hipótese deste tipo é a teoria do paralelismo entre os processos nervosos e
os processos anímicos, segundo a qual os fatos espirituais mais poderosos
também nada mais são do que fenômenos concomitantes da nossa vida corporal72
Trata-se evidentemente da hipótese fundamental subjacente aos diversos
projetos dos fisiólogos materialistas que, especialmente no interior do contexto
alemão, eram especialmente influentes73. Tais materialistas partiam das notáveis
conquistas das pesquisas na área da fisiologia – especialmente os resultados
obtidos pela escola de fisiologia de Leipzig de Fechner e pela escola de fisiologia
berlinense de Müller – e pela crença na completa redutibilidade do fenômeno mental
a processos fisiológicos cerebrais (a mente seria, portanto, mero epifenômeno de
71 Idem, Ibidem. 72 DILTHEY, 2002, p.21. 73 Ver, neste sentido: GREGORY, 1977, pp. 51-122.
54
processos materiais). Tais teóricos concebiam o estudo da mente como uma tarefa
destinada exclusivamente às ciências naturais, isto é, biologia, física e química.
Semelhante hipótese é também defendida por Augusto Comte, como já vimos.
Deve-se destacar, neste momento, à referência que Dilthey faz a
impossibilidade de se delinear com absoluta certeza e de forma absolutamente
determinada o nexo nomológico entre estados corporais e “processos espirituais
superiores”. Como ainda veremos em maiores detalhes, Dilthey aceitava algumas
das conquistas da fisiologia – ele mesmo dedicou-se com afinco ao estudo da
fisiologia durante seu período na Basileia - especialmente quando dos resultados
concernentes à subjetividade das qualidades secundárias, conforme os resultados
da escola de fisiologia berlinense, especial aqueles resultados obtidos por Müller e
Helmholtz quando do estudo da fisiologia dos órgãos sensoriais:
Estes trabalho, ao apresentarem-se ao mesmo tempo como experimentos
psicológicos e psicofísicos, apontaram na direção de uma psicologia experimental,
juntamente com as grandes análises das nossas percepções ópticas e sonoras,
graças às quais sobretudo Helmholtz abriu outro caminho à experimentação na
vida psíquica (...) foi este um procedimento que proporcionou à Alemanha, a partir
da década de setenta, a primazia indiscutível na ciência psicológica (...) no âmbito
psicofísico, o experimento levou a uma análise muito valiosa da percepção
sensível (...) mas de nenhum modo levou ao conhecimento de leis no campo
psíquico interno. 74
O que Dilthey não aceitava de maneira alguma era a hipótese que defendia a
possibilidade de explicar mesmo os processos mentais superiores – inferência e
julgamento, por exemplo – a partir da redução destes processos á fenômenos físico-
biológicos. Em verdade, a impossibilidade de se explicar os processos mentais
superiores a partir de uma abordagem puramente fisiológica era de fato defendida
por alguns dos maiores fisiólogos e psicólogos experimentais do século XIX: Lotze,
du-Bois Reymond, Helmholtz75 e Wundt são exemplos privilegiados do que fora
afirmado76.
Atos psíquicos de inferência e julgamento são necessários na conversão do
material bruto da sensação em atos perceptivos: tal procedimento envolve sempre
uma capacidade sintética e ativa da mente, que não é passível de ser explicada a
74 DILTHEY, 2002, pp.48-49. 75 KOHNKE, Op. Cit., p.99. 76 Ver também: BEISER, 2014, pp. 53-89.
55
partir de uma abordagem puramente materialista dos fenômenos psíquicos. Neste
sentido, o próprio Dilthey:
Mas a marcha da investigação experimental desencadeou, ao mesmo tempo,
outra viragem muito notável. Wilhelm Wundt, que foi o primeiro entre os psicólogos
a delimitar todo o campo da psicologia experimental como um ramo especial do
saber, que criou um instituto de grande estilo de que partiu o impulso mais forte
para a elaboração sistemática da psicologia experimental, e que no seu manual
resumiu, pela primeira vez, os resultados dessa psicologia, viu-se obrigado, pelo
andamento dos seus amplos ensaios experimentais, a entrar numa concepção do
psiquismo que abandona o ponto de vista, até então predominante77.
E prossegue Dilthey, citando literalmente o próprio Wundt:
Quando eu abordei pela primeira vez os problemas psicológicos, partilhava o
preconceito comum aos fisiólogos de que a formação das percepções sensíveis
era apenas obra das propriedades fisiológicas dos nossos órgãos dos sentidos.
Mas, ao estudar as atividades do sentido da vista, dei-me conta daquele ato de
síntese criadora que, pouco a pouco, foi meu guia na conquista de uma
compreensão psicológica do desenvolvimento das funções superiores da fantasia
e da inteligência, para o qual a velha psicologia não me oferecia meio algum78 79.
O segundo conjunto de hipóteses, que caracteriza outra das tradições
criticadas, é assim descrito por Dilthey: “Semelhante hipótese é a redução de todos
os fenómenos de consciência a elementos de tipo atómico, que atuam entre si
segundo relações nomológicas”80. A referência de tal descrição é ainda mais
evidente: trata-se da escola associacionista britânica, em uma linha genealógica que
remete a Hobbes e Locke, passa por Hume e permanece influente no século XIX
principalmente através do projeto de Stuart Mill:
Como se sabe, a psicologia inglesa encontrou a sua exposição mais ampla,
depois do antecedente de Hume (1739-1740) e de Hartley (1746), na grande obra
de James Mill, Análise dos fenómenos do espírito humano. Esta obra estabelece
como base a hipótese de que toda a vida anímica, nas suas manifestações mais
altas, se desdobra com necessidade causal, a partir de elementos simples,
sensíveis, numa vida interna m que operam as leis de associação (...) o filho de
James e herdeiro do seu pensamento, John Stuart, descreve na sua Lógica o
77 DILTHEY, 2002, p.50. 78 Idem, p.51. 79 Também neste sentido: “Com mais força ainda do que Wundt acentuam James, na sua Psicologia, e Sigwart, no novo capítulo de sua Lógica sobre os métodos da psicologia, em que recomenda também que se cultive na psicologia descritiva, o elemento livre e criador dentro da vida psíquica. Na medida em que se difundir este movimento, terá de perder influência a psicologia explicativa e construtiva”. Idem, Ibidem. 80 Idem, p.21.
56
método da psicologia como uma cooperação da descoberta indutiva dos
elementos e a comprovação sintética dos mesmos, em total acordo com o
procedimento do seu pai81
O terceiro conjunto de hipóteses, que caracterizava outra tradição
representante da psicologia explicativa, é assim descrito por Dilthey:
Outra hipótese análoga é a construção, com o intento de explicação causal, de
todos os fenômenos psíquicos por meio de duas classes de “sensações” e
“sentimentos”; a vontade, que na nossa consciência e na nossa conduta vital se
apresenta tão impetuosa, não passaria então de uma aparência secundaria.
Mediante puras hipóteses deriva-se a autoconsciência a partir dos elementos
psíquicos e dos processos entre eles82
Esta descrição, por sua vez, remete claramente ao projeto herbartiano. Uma
das características fundamentais da psicologia herbartiana é o fato de não conceber
o Eu como uma realidade fundamental e originária. Para Herbart e sua escola –
bastante influente não só na Alemanha, mas também na Áustria83– o Eu seria um
efeito, não uma causa. O Eu seria, portanto, um puro resultado, não um ponto de
partida84.
Ademais, as duas realidades fundamentais que Herbart pleiteia com o intento
de explicar a vida anímica são justamente a sensação (representação, Vorstellung
no original) e o sentimento (que são relações simples entre representações). Por fim,
a Vontade é apenas uma aparência secundária, mero elemento de um conjunto mais
amplo que Herbart classifica como Desejo (Begehren). O conceito de Desejo, por
sua vez, seria ele mesmo passível de ser reduzido via análise a representações em
relação recíproca (sentimento).
Estes três projetos coexistem, são imensamente influentes e, todavia, não se
conseguiu de maneira conclusiva concluir qual destes projetos é o mais adequado.
Na opinião de Dilthey, todas as hipóteses descritas são elas mesmas já criadas com
a pretensão de serem reduzidas, em princípio, a determinações meramente
quantitativas, expediente que – supostamente - garantiria um possível tratamento
experimental85.
81 Idem, p.43. 82 Idem, p. 83 Dilthey 47 id. 84 RIBOT, 1886, p.42. 85 DILTHEY, 2002, p.22.
57
O argumento de Dilthey é claro: identifica-se e pressupõe-se, neste sentido,
que o modelo das ciências da natureza é o único possível quando da investigação
racional86. O que deveria ser provado é pressuposto, portanto.
O caso de Herbart é novamente um exemplo privilegiado sob a perspectiva
diltheyana. Identificando as representações com forças quantitativamente
determináveis, em relação de atração e repulsão também quantitativamente
determinadas (tais relações são classificadas por Herbart de sentimentos), o projeto
de Herbart de fato marcou época por propor a possibilidade da matematização
quando do estudo da vida anímica. O problema, segundo Dilthey, é que as hipóteses
que são condições de possibilidade do projeto – e que antecedem logicamente o
tratamento matemático - não são passíveis de verificação. Em outras palavras: a
validade dos pressupostos não é demonstrada de maneira determinada.
Neste sentido, o próprio Dilthey:
Na fronteira da natureza e da vida anímica, o experimento e a
determinação quantitativa revelaram-se igualmente prestáveis à
formação de hipóteses, como acontece no conhecimento natural. Mas
nada disso se adverte nos campos centrais da psicologia. Sobretudo,
a questão, tão decisiva para a psicologia construtiva, quanto às
relações causais que condicionam a influencia dos processos
conscientes pela conexão psíquica adquirida ou a “reprodução”, não
avançou sequer um passo, apesar de todos os esforços ate agora
empreendidos87
2.6. A fundamentação do estudo da psique sobre base estritamente hipotética
é inevitável? Da necessidade uma psicologia descritiva e analítica
Dada à impossibilidade de se estabelecer critérios suficientes, quando da
pretensão em decidir qual conjunto de hipóteses subjacentes aos projetos das
diversas escolas de psicologia explicativa seria mais adequado, Dilthey questionará:
seria possível constituir uma Psicologia que não parta de uma base estritamente
hipotética, procedimento este que tem origem – em última instância – na
86 Idem, p.21. 87 Idem, p.22.
58
identificação dos métodos das ciências da natureza como os únicos capazes de
fundamentar de forma segura o conhecimento?
Seria possível fundar uma psicologia que não sacrificasse a realidade efetiva
e complexa da vida anímica em prol de um Método? Pois para Dilthey a
complexidade estrutural da mente é algo inquestionável e evidente, que em nada
lembra os modelos abstratamente concebidos pleiteados pelas diversas psicologias
explicativas, verdadeiras caricaturas da vivência imediatamente dada. “Empirie nicht
Empirismus!” exclamará Dilthey. É preciso, pois, voltar à realidade efetiva e não
mutilada, é preciso, pois, defender uma descrição verdadeira da experiência.
Uma psicologia que faça jus à experiência efetiva, ainda não distorcida e
mutilada por uma série de pré-conceitos, uma psicologia que se abstenha de partir
de uma série de hipóteses abstratamente concebidas em relação à natureza da
mente deveria ser, portanto, uma psicologia descritiva e analítica. Somente uma
psicologia que parta daquilo que é imediatamente dado, isto é, a vida anímica como
um todo estruturado, todo este que não pode ser resumido em uma linear
combinação causal de elementos simples, somente um psicologia totalmente livre de
fáceis analogias espaciais seria de fato empírica.
Como bem sabido, o segundo volume da “Introdução às ciências do espírito”,
que seria destinado justamente à exposição sistemática da psicologia diltheyana
nunca fora publicada. No próximo capítulo, procuraremos reconstruir alguns dos
aspectos e desenvolvimentos da epistemologia diltheyana. É claro que o esforço
restará longe de ser conclusivo e limitado por nossas reduzidas possibilidades. No
entanto, trata-se de um período e de textos relativamente pouco estudados,
principalmente no âmbito brasileiro, e que demonstram um filósofo que procura
expor suas próprias ideias sempre em diálogo crítico com a tradição.
59
3. A TEORIA DA EXPERIENCIA DE WILHELM DILTHEY ENQUANTO CRITICA
DA TRADIÇÃO EPISTEMOLÓGICA
3.1. Objetivos do presente capítulo
O presente capítulo tem três objetivos primordiais, quais sejam:
a-) Contra uma imagem, ainda muito comum, que retrata Dilthey como um
pensador de tonalidades irracionalistas, um tanto quanto hostil aos
desenvolvimentos das ciências naturais de seu próprio tempo, o presente esforço
pretende levar à serio as constantes referências que Dilthey de fato faz a alguns
dos maiores expoentes da pesquisa científica de seu tempo, especialmente quando
de alguns resultados dos campos da biologia, fisiologia e psicologia. Em verdade,
Fechner, Johannes Peter Müller, Wundt, Haeckel, Herbart, e, especialmente,
Hermann Von Helmholtz, são todos exemplos privilegiados de interlocutores com os
quais Dilthey pretende dialogar.
b-) A despeito da real importância e total pertinência de todos aqueles que
destacam Dilthey enquanto um dos precursores da tradição contemporânea da
“Hermenêutica Filosófica”, o presente capítulo terá como objeto, antes, seus escritos
epistemológicos do período entre 1880 e 1894, o que inclui os esboços nunca
publicados por Dilthey em vida destinados a constituir o segundo volume da
“Introdução das Ciências do espírito”.
c-) Finalmente, procuraremos demonstrar que Dilthey de fato pretende
oferecer respostas plausíveis à algumas das mais importantes e clássicas questões
epistemológicas da tradição, com um ímpeto verdadeiro sistemático.
Partindo de uma perspectiva que pretende reavaliar o conceito de experiência
pressuposto pela tradição epistemológica, Dilthey pretende oferecer, por exemplo,
argumentos convincentes para as seguintes afirmações de sua autoria:
d-) A total inadequação em considerar o clássico dualismo epistemológico
entre sujeito/objeto, físico/psíquico, como uma realidade fundamental, algo
puramente “dado”. Neste sentido, procuraremos analisar o conceito diltheyano de
“Innewerden”, âmbito de experiência que precede o dualismo epistemológico.
60
e-) A subjetividade dos aspectos qualitativos de nossas sensações – algo que
Dilthey expressamente aceita – não implica necessariamente em fenomenalismo e
solipsismo.
f-) A impossibilidade de justificar nossa crença na realidade em um mundo
exterior a partir de um procedimento puramente inferencial, que leva das conclusões
para as causas.
g-) E, ainda, causalidade e substância como categorias da vida.
Para sermos minimamente bem sucedidos no que pretendemos, tomaremos a
crítica de Dilthey à justificação da crença na realidade do mundo exterior oferecida
por Helmholtz como ponto de partida. Tal procedimento não pretende ser arbitrário:
de fato, a legitimidade de tal movimento pretende ser justificada no desenvolvimento
imanente do capítulo ele mesmo.
3.2. A escola de fisiologia de Johannes Peter Müller e os argumentos de
Helmholz quando da origem de nossa crença no mundo exterior
Dilthey parte dos exitosos resultados obtidos pela escola de fisiologia
berlinense, capitaneada por Johannes Peter Müller, um dos maiores expoentes da
pesquisa científica na segunda metade do século. Suas contribuições às áreas da
embriologia, do estudo da anatomia humana e animal, da morfologia e da fisiologia
dos órgãos sensoriais marcaram época88. Especialmente importante, quando do
esforço diltheyano, são as conclusões de Müller acerca da subjetividade do aspecto
qualitativo de nossas sensações, conclusões estas resultantes do estudo da
fisiologia dos órgãos sensoriais. De acordo com Müller, o conteúdo qualitativo de
nossas sensações é determinado pela estrutura física dos órgãos sensoriais e das
terminações nervosas.89 O próprio Dilthey assim resume as conclusões de Müller: “o
órgão sensorial se sente, em princípio, somente a si mesmo, sua energia imanente e
seus estados”90.
Ainda neste sentido, Kohnke :
De acordo com a teoria de Müller, “a qualidade de nossas sensações, sejam estas
luz, calor, som ou sabor, etc., não depende do objeto externo percebido, mas sim
dos órgãos sensórias que transmitem a sensação. Se preferem uma expressão
88 DILTHEY, 1986, p.148. 89 Para um excelente histórico das pesquisas de Müller, ver: OTIS, 2007, pp. 3-41. 90 DILTHEY, 1986, p.148..
61
paradoxical”, afirma Helmholtz, se valendo ainda de um dito de Goethe, “você
poderia dizer: a Luz torna-se luz apenas quando de encontro à um olho; sem isto,
é apenas vibração no éter”. 91
De fato, Dilthey não hesita em reconhecer e em aderir a estes resultados da
fisiologia:
A subjetividade das sensações é um resultado seguro da ciência: física, fisiologia
e a análise filosófica concordam neste sentido. Não conhecemos nada da
realidade objetiva das sensações, percepções e processos intelectuais que se
apresentam em nossa consciência como algo exterior a nós mesmos92.
A importância de Johaness Müller não se restringe aos estupendos resultados
obtidos em suas pesquisas científicas. Deve-se ainda destacar a atuação de Müller
enquanto professor e orientador de algumas das personalidades mais destacadas
da cultura alemã. Quando nos referimos à escola de fisiologia berlinense, temos em
mente justamente este fato: pois entre os alunos de Müller, todos eles decisivamente
influenciados pelo professor, se encontravam figuras do porte de Du-Bois Reymond,
Haeckel, Henle, Virchow e, especialmente, Hermann Von Helmholtz..
É difícil exagerar a importância e o gênio de Helmholtz. Para muitos - e isto
inclui o próprio Dilthey – Helmoltz era, em sua época, a verdadeira encarnação da
consciência científica moderna. Não por acaso, Dilthey inicia sua “Introdução às
ciências do espírito” justamente com uma epígrafe do celebrado cientista.
Havia algo de verdadeiramente fascinante na figura de Helmholtz, algo que o
tornava especialmente atraente para a cultura alemã de sua época: seu
universalismo e sua capacidade de contribuir - em altíssimo nível e por vezes de
maneira verdadeiramente decisiva – para diversas áreas do conhecimento. Neste
sentido, só para citarmos talvez o mais notório exemplo, Helmholtz é figura
verdadeiramente central no desenvolvimento da Física:
Em um ensaio seminal de 1847, Hermann von Helmholtz definiu a relação entre a
mecânica, calor, luz, eletricidade e magnetismo ao tratar todos estes fenômenos
como diferentes manifestações da mesma energia. Helmholtz formulou a lei de
conservação de energia como um teorema mecânico e matemático, enfatizando o
papel unificador do conceito de energia enquanto expressão de uma visão
puramente mecânica da natureza.93
91 KOHNKE, 1991, p.98. Tradução de nossa autoria. 92 DILTHEY, 1986, p.148. 93 HARMAN, 1992, p.3. Tradução nossa.
62
Seguindo os passos de seu mestre Johannes Müller, Helmholtz fora ainda um
dos principais responsáveis pelo desenvolvimento da fisiologia e psicologia
experimentais, estudando a partir do ponto de vista da fisiologia dos órgãos
sensoriais os fenômenos da ótica e acústica, por exemplo. Para além da sua
atividade como cientista natural, Helmholtz ainda nutria um forte interesse por
questões filosóficas, especialmente questões de cunho epistemológico. Em verdade,
desde tenra idade, Helmholtz dedicou-se ao estudo da tradição filosófica,
especialmente da alemã. Entre todos os autores estudados, um particularmente
causou-lhe forte impressão: justamente Kant.
De fato, o movimento de “retorno à Kant” que caracterizou boa parte da
intelligentsia filosófica alemã à época, tem em Helmholtz uma figura
verdadeiramente central e decisiva. Pois Helmholtz procurou interpretar e
harmonizar a Filosofia de Kant com os resultados mais recentes da pesquisa
fisiológica.
Dada à enorme reputação de Helmholtz enquanto cientista natural e a
necessidade - defendida por muitos - em se estabelecer vínculos estreitos entre a
pesquisa da natureza e a filosofia, o projeto de Helmholtz pareceu para muitos como
um caminho particularmente promissor. Lange, Liebmann, Meyer, Zeller, só para
citar alguns conhecidos exemplos - todos eles figuras centrais quando do
desenvolvimento do neo-kantianismo - foram profundamente influenciados por esta
interpretação fisiológica de Kant proposta por Helmholtz.94
A intepretação fisiológica de Kant proposta por Helmholtz pode, em linhas
muito gerais, ser resumida da seguinte maneira:
a-) Partindo dos resultados da fisiologia, especial aqueles concernentes ao
estudo fisiológico dos órgãos sensoriais, Helmholtz identifica o aspecto qualitativo de
nossas experiências com o conceito de “fenômeno” kantiano.
b-) As sensações brutas são organizadas em percepções por leis inatas da
mente. Estas leis psíquicas – processos mentais superiores – que são condição de
possibilidade de toda inferência e julgamento, são interpretadas por Helmholtz em
analogia com a “Lógica Transcendental” de Kant.
c-) Na medida em que estes processos mentais superiores são condição de
possibilidade de qualquer experiência possível, não é possível que tais atos
94 Não temos intenção de julgar a interpretação de Helmholtz. Nosso esforço é puramente descritivo.
63
psíquicos tenham origem na experiência ela mesma, visto que toda experiência
possível pressupõe suas condições de possibilidade.
d-) Desde sempre pressupomos a validade irrestrita da lei causal enquanto
afirmamos que objetos externos são as causas da excitação de nossos órgãos
sensoriais e terminações nervosas, na medida em que não há efeitos sem causas, e
dado que a lei causal é um principio inato da mente, esta não pode ser tomada como
uma lei objetiva para além do âmbito de nossas próprias representações.
O a priori95 kantiano é, portanto, identificado por Helmholtz à lei inatas da
mente96, verdadeiros processos inconscientes de inferência97, que não podem ser
consideradas como lei objetivas para além de toda experiência possível. Ouçamos
ao próprio Helmholtz que, quando do princípio de causalidade, assim afirma:
Em verdade, a lei causal é dada de forma a priori, verdadeira lei transcendental.
Uma prova que parta da experiência não é possível, dado que os primeiros passos
de qualquer experiência, como já vimos, não são possíveis sem já empregar
inferência indutivas, isto é, sem pressupor a lei causal. Mas suponhamos que a
experiência completa pudesse nos dizer – embora estejamos ainda distantes de
isto poder afirmar – que tudo até agora observado ocorreu de acordo com a lei.
Tal constatação seguir-se-ia da experiência somente mediante inferência indutiva,
isto é, pressupondo a lei de causal e sua permanência constante no futuro.98
Ora, dado o até aqui afirmado, como poderia Helmholtz justificar nossa crença
na realidade exterior? Dilthey afirma que Hemholtz acreditava que a crença na
realidade do mundo exterior nasce sempre de um processo intelectual de inferência
que leva das sensações subjetivas para suas causas em objetos externos, visto que
as sensações em si mesmas não podem operar como âmbito de justificação para
esta crença.
De fato, Helmholtz afirma que pressupomos sempre um âmbito de objetos
externos que causam a excitação de nossos órgãos sensoriais e nervos, dado que
não há efeitos sem causa, como já vimos. Mas esta lei causal não é de origem
empírica, visto que desde sempre já partimos da lei causal como condição mesmo
da crença em qualquer objeto exterior como causa estas sensações, como já dito.99
95 Novamente, reiteramos que não temos intenção de julgar a interpretação de Helmholtz. 96 KOHNKE, Op. Cit., p.98 97 Dilthey, 1986, p. 148 98 HELMHOLTZ, 1997, p.142. Tradução de nossa autoria. 99 KOHNKE, Op. Cit., p.99.
64
Desta forma, a crença em uma realidade exterior pressupõe sempre a
condição a priori da lei causal, isto é, uma lei que precede toda experiência.
Neste sentido, Dilthey assim afirma:
Para Helmholtz a crença em um mundo externo se dá pela demonstração
suficiente de uma lei de causalidade que atua em nós de maneira a priori. Esta
demonstração, como a demonstração kantiana da origem a priori do espaço,
constitui-se nos termos da regra segundo a qual aquilo que é condição da
experiência não pode, por sua vez, derivar-se da experiência100.
É certo que Helmholtz tinha a consciência que sua justificação da crença na
realidade do mundo exterior não implicava em argumentos conclusivos quando da
real existência dos objetos externos para além de nossas sensações. A justificação
da crença não é necessariamente idêntica à justificação da real existência do mundo
externo, por óbvio. Dado que a lei casual é inata à mente, e que só temos acessos
seguro às nossas próprias representações, que são elas mesmas produtos do
estimulo dos órgãos sensoriais e da constituição nevrálgica do sujeito, a realidade
efetiva do mundo exterior permaneceria sempre hipotética101.
Neste sentido, o próprio Dilthey se refere à conclusão de Helmholtz quando
da natureza hipotética da realidade efetiva do mundo exterior:
Segundo Helmholtz, é a hipótese mais simples que podemos elaborar: se vê
provada e confirmada em âmbitos de aplicação extraordinariamente amplos,
sendo por isso altamente fecunda para a ação. Junto a ela, não obstante, são
possíveis outras hipóteses idealistas irrefutáveis. 102
Dilthey não estava satisfeito com as conclusões de Helmholtz, a despeito de
toda a admiração por seu trabalho e esforços. Contra a concepção de um sujeito
abstrato e uma noção de experiência marcada pela passividade e pelo
intelectualismo - que conclui que a realidade na crença no mundo externo é oriunda
de uma inferência puramente intelectual que vai dos efeitos para a causa -
pretenderá o alemão, antes, colocar como base de suas investigações “o homem em
sua plenitude empírica (...) e mostrar uma influência mais ampla do sistema de
impulsos, dos fatos da vontade e dos sentimentos”103
De fato, buscará Dilthey oferecer uma alternativa para a justificação de nossa
crença na realidade exterior mediante uma reorientação e extensão do conceito de
100 DILTHEY, 1986, p.148. 101 Ver, neste sentido, as notas 48 e 49 de autoria de Moritz Schlick em: HELMHOLTZ, Op. Cit., p. 178. 102 DILTHEY, 1986, p.150 103 Idem., Ibidem.
65
experiência pressuposto pela tradição. Como resultado desta nova teoria da
experiência, Dilthey restará por criticar a concepção de subjetividade pressuposta
pela tradição empirista e pela transcendental, e ainda procurará demonstrar que a
subjetividade do aspecto qualitativo de nossas sensações não implica
necessariamente em fenomenalismo e solipsismo.
Não deixa de ser válido notar que Moritz Schlick, em seus comentários aos
escritos epistemológicos de Helmholtz, expressamente se referirá à alternativa
Diltheyana, e tão somente a ela.
3.3. Crítica do dualismo epistemológico a partir do conceito de “innewerden”
Devemos iniciar com o esclarecimento e clarificação do conceito de
“Innewerden”, realmente fundamental para o projeto epistemológico de Dilthey. No
“Draft de Breslau”, o alemão define esta relação como o modo pré-reflexivo e pré-
teórico em que o mundo objetivo nos é dado não como mera representação, mas
sim como realidade autônoma fundamental, que se contrapõe a todas nossas ações
intencionais em nível verdadeiramente conflituoso. Essa relação é, portanto, vivida,
e não meramente representada. O aspecto fundamental desta experiência é a
resistência aos nossos impulsos e atos volitivos104.
Makkreel define de forma sintética e com especial clareza o conceito de
Innewerden:
Innewerden envolve um modo de vivência daquilo que é para nós no qual há um
sentimento de nós mesmo (Selbstgefühl) sem todavia uma clara percepção do Eu.
Innewerden não deve ser, de fato, confundido com uma autoconsciência
objetificada, pois neste nível ainda não há nenhuma distinção entre sujeito-objeto,
ato-conteúdo. O sentimento de si mesmo que precede toda auto-consciência é
“sempre já conexa com uma consciência do mundo externo – não importando
quão pouco clara esta consciência ainda possa ser”105
104 Para aqueles que possuem algum contato com a tradição pragmatista americana, o conceito de “Innewerden” diltheyano de fato guarda muitas similaridades com, por exemplo, o conceito de Secundidade de Charles Sanders Pierce. Não deixa de ser sintomático neste sentido, aliás, que entre os americanos era um expediente comum referir-se à Dilthey como o “William James alemão”. Outro fato que podemos destacar neste sentido: G.H. Mead frequentou um curso de Dilthey quando em Berlim. De fato, não são poucos aqueles que já destacaram possíveis influências de Dilthey sobre o pensamento do americano, entre eles Makkreel e Rodi. Em alguns aspectos, também lembra o conceito de “experiência originária” de Avenarius. 105 SW 1, p. 257
66
E prossegue:
Innewerden pode ser definida como proto-intensional na medida em que ela já é
dirigida ao mundo ainda que o mundo não esteja ainda tematizado como objetivo
(…) é mais primordial e inclusiva que a noção epistêmica de autoconsciência do
ser”106
“Innewerden” é, portanto, a vivência daquilo que é para nós
concomitantemente com um mero sentimento de nós mesmos (Seblsgefühl), sem,
todavia, uma distinção de uma pura autoconsciência: neste nível experiencial ainda
não há distinção entre sujeito e objeto, ato e conteúdo, psíquico e físico. Neste modo
pré-reflexivo de experiência, incialmente o que temos é apenas uma não reflexiva e
não conceitualizada vivência de algo que obstaculiza nossa satisfação, intentos,
impulsos e objetivos. De fato, esta vivência originária de uma força oposta é
acompanhada sempre por dor, felicidade, satisfação, isto é, toda uma gama de
sentimentos de satisfação e de não satisfação.
Inicialmente tem-se apenas uma reação não reflexiva e ainda não
conceitualizada de que algo me impede, me obstaculiza. Em verdade, esta realidade
fundamental de impulso e resistência é acompanhada, não raramente, de dor,
felicidade, satisfação, isto é, de toda uma gama de sentimentos que acompanha a
satisfação ou a não satisfação dos atos de vontade. Esta realidade pode ser
verificada claramente já em meio ao reino animal, o que é particularmente
significativo, dado que os animais não possuem auto-consciência.107
Em Vida e Conhecimento, Dilthey nos oferece um exemplo particularmente
esclarecedor desta realidade:
E, em verdade, no próprio nexo vital, a reação, na qual uma impressão evoca uma
resposta, é o cerne propriamente dito da coisa. Um protozoário mostra já essa
relação originária. Consideremos uma medusa, que se move no mar agitado e
assim por diante etc. Uma vez que, então, essa reação se dirige como movimento
de defesa ou ataque para aquilo que produziu um ferimento ou para aquilo que
atrai por meio de sua impressão, surge, então, a partir daí a relação, segundo a
qual aquilo que exerceu um efeito experimenta uma reação segundo o efeito
recíproco. A categoria da reação ou do efeito recíproco não vem à tona, portanto,
de maneira108
106 MAKKREEL, Op.Cit., p.430. Tradução de nossa autoria. 107 Owensby, Op.Cit., p.67. 108 DILTHEY, 2014, p.180.
67
Se nos é permitido um anacronismo: Dilthey parece considerar que todos
estes âmbitos de experiências fundamentais de impulso e resistência se dão no
nível da senciência em contraposição à realidade muito mais sofisticada da
autoconsciência:
Temos de reconhecer, pois, que na sensação de resistência não se dá algo
independente de mim mesmo em uma experiência volitiva imediata. A doutrina da
realidade do mundo externo como um dado imediato se mostra neste ponto
insustentável. Todavia, por outro lado – e isto queremos deixar assentado – a
realidade do mundo externo tampouco se infere a partir dos atos da consciência,
isto é, não se deriva de processo meramente intelectuais. O que sucede, em
verdade, é que os processos de consciência indicados nos proporcionam uma
experiência volitiva, a obstrução da intenção, contida na consciência da resistência
e nos revela em primeira mão como a realidade nuclear e viva daquilo que é
independente de nós mesmos109.
E prossegue:
Assim, pois, a primeira experiência de distinção entre o eu mesmo e o outro se
leva a cabo no impulso e na resistência, os dois processos que cooperam em todo
processo tátil. Aqui está presente o primeiro germe do Eu e do Mundo, assim
como de sua diferença. Isto se da, sem embargo, na experiência viva da
vontade110
Dilthey expressamente afirma que toda a distinção entre “eu e mundo” tem
sua origem remota na frustração de uma intenção a partir de uma relação volitiva,
que é caracteriza pela tensão resultante entre impulso e resistência, como já vimos.
Inicialmente, nos períodos de desenvolvimento da criança, por exemplo, esta
sensação de resistência é tomada como verdadeira vontade que se contrapõe.
Ainda em Vida e Conhecimento, Dilthey assim afirma:
Mesmo esse lado da vitalidade originária da coisa, segundo a qual provém dela
uma efetivação consonante com a vontade, pode ser apresentada junto à
experiência. Para a criança, os objetos do mundo exterior não são causas mortas,
mas forças vivas consonantes com a vontade. O sentimento sensível, com o qual
ela se adapta à sua caminha, tragando por assim dizer a suavidade, o calor e o
frescor da cama, está voltado para algo vivamente atuante que o ama.111
Ainda neste sentido, Dilthey procura mostrar, partindo de uma série de
resultados de pesquisas na área da biologia, que o nexo entre unidade vital e mundo
exterior, assim como sua característica mais fundamental, qual seja, a relação
109 DILTHEY, 1986, p.157. 110 Idem., Ibidem. 111 DILTHEY, 2014, pp.181-182.
68
recíproca de impulsos e resistência, se mostra como uma realidade já no embrião.
Neste sentido, além das pesquisas do já citado Johaness Peter Müller, Dilthey faz
referência aos resultados conquistados por outros dois líderes da pesquisa biológica
alemã: Alfred Wilhelm Volkmann e Adolf Kußmaul:
A importância fundamental destas experiências de impulso e resistência vem já
condicionada pelo fato de que a primeira de todas elas é vivida pelo embrião antes
do nascimento e tem já como consequência uma consciência imperfeita da vida
própria e de algo exterior. “O homem – nos ensina Kußmaul – vem ao mundo com
uma representação, de fato ainda obscura, de algo exterior, com certa intuição do
espaço, com a faculdade de localizar certas sensações táteis e com certo domínio
sobre seus movimentos a respeito do mundo” (Kußmaul: Unters. Über d.
Seelenleben des. Neugeb. Menschen., p.36). Kußmaul coincide nisto com
Volkmann (Neue Beiträge zur Physiologie des Gefühlssinnes, 1836, cap. 3, p.17 y
ss.) y Johannes Müller (Physiologie, vol.2, 1837, p.269). Verificou-se estas
afirmações com interessantes experimentos com recém-nascidos.112
Deve-se destacar que a argumentação de Dilthey não permanece no âmbito
estritamente filosófico. Valer-se-á o alemão de uma série de pesquisas científicas,
especialmente no âmbito da biologia. Tal procedimento é típico do período histórico
no qual Dilthey viveu. A reflexão epistemológica pressupõe a atividade científica
como um fato que o filósofo deve aceitar: é somente a partir destes resultados que o
filósofo está autorizado a desenvolver suas próprias considerações.
A reflexão filosófica de Dilthey pretende, portanto, estar de acordo com alguns
dos desenvolvimentos mais recentes das ciências naturais. Mas, como já dito, no
que concerne ao esclarecimento dos processos psíquicos superiores e a uma série
de questões propriamente epistemológicas, as pesquisas biológicas não fornecem,
por si só, respostas conclusivas. A epistemologia diltheyana, neste sentido, pretende
atuar em cooperação com as diversas ciências autônomas.
De fato, Dilthey expandirá essa análise para além dos resultados da
psicologia individual: todas as antigas culturas animistas, mitologias e obras de arte
seriam exemplos evidentes de como esta sensação de frustração e resistência é de
fato uma realidade para além de qualquer dúvida. Neste sentido, pode notar-se um
importante aspecto do projeto de Dilthey: as ciências do espírito autônomas também
são essenciais para a crítica epistemológica.
112 Dilthey, 1986, p.152.
69
Deve-se destacar novamente que, inicialmente, esta relação entre impulso e
resistência não é dada em nível reflexivo, isto, com a consciência clara de que os
atos espontâneos de vontade e sentimento são todos eles atos meus, distintos dos
conteúdos destes atos. Esta distinção implica um alto grau de reflexividade. A
consciência reflexiva, O “Eu penso” da tradição, a autoconsciência ela mesma, é um
produto que evolve um processo de alta sofisticação intelectual.
Vimos, portanto, que no nível de vivência que Dilthey denomina “Innewerden”
ainda não há uma clara distinção entre sujeito e objeto, ato e conteúdo de atos,
distinções estas que, para Dilthey, já pressupõem a autoconsciência reflexiva. Um
dos erros da tradição epistemológica – e de Helmholtz, como ainda veremos – é,
portanto, a crença no dualismo epistemológico como uma espécie de realidade
originária, ponto de partida fundamental para a reflexão filosófica. Em verdade, a
autoconsciência e a clara distinção entre atos psíquicos e conteúdos físicos dos atos
já são o final de um complexo e gradual processo de diferenciação caracterizado por
uma cada vez mais clara distinção entre eu e o mundo enquanto outro, através da
experiência.
3.4. A refutação do fenomenalismo e a crítica do conceito de subjetividade
Em atos volitivos e emocionais, o mundo exterior é caracterizado como uma
realidade que se opõe e resiste às nossas pretensões cognitivas e práticas,
portanto. O conteúdo dos atos emocionais e volitivos são dados como resistência
autônoma, obstrução às nossas intenções, e não como mera representação. Dilthey,
de fato, não aceita a conclusão de Helmholtz, quando este assume que a única
alternativa possível à justificação de nossa crença no mundo exterior seria pleitear
uma inferência causal na qual, a partir das representações, chegaríamos às causas
exteriores.
Mas isto não quer dizer que Dilthey recusa o argumento de Helmholtz em sua
totalidade. Ao menos em um ponto, Dilthey concorda com Helmholtz: como já vimos,
justamente no tocante à subjetividade do aspecto qualitativo das nossas sensações.
Em verdade, Dilthey expressamente afirma que qualquer coerente esforço em
Filosofia deve ter como início o fato de que atos e conteúdos dos atos são sempre
fatos de uma consciência (Tatsachen des Bewusstsein). Em verdade, Dilthey erige
70
esta crença a princípio básico da Filosofia e assim o nomeia: Princípio da
Fenomenalidade113.
Argumenta Dilthey, no entanto, que o Princípio da Fenomenalidade não
implica em Fenomenalismo, isto é, a clássica posição cética que nega qualquer
possibilidade de justificar mesmo nossa crença no mundo exterior, dado que temos
acesso imediato apenas aos conteúdos imanentes da mente.
Segundo o alemão, o princípio da fenomenalidade não deve ser identificado
ao fenomenalismo114. Argumenta Dilthey que o fenomenalismo é tão somente uma
consequência direta de certo intelectualismo epistemológico, que resulta em uma
análise bastante ingênua – e mesmo, por vezes, de uma falta de análise – dos atos
volitivos e emocionais. Mister reiterar que, para Dilthey, os conteúdos dos atos de
vontade e emocionais são vivenciados não como meras representações, mas sim
como uma realidade autônoma que se opões às nossas intenções.
Quando Helmoltz, portanto, justifica a crença no mundo exterior a partir de um
procedimento puramente inferencial, este se insere em uma tradição que pressupõe
uma concepção de sujeito abstrata, absolutamente passiva, que em nada lembra o
sujeito empírico em sua totalidade e complexidade. Outro dos erros de Helmholtz,
segundo a ótica de Dilthey é, portanto, seu intelectualismo epistemológico.
Mas Dilthey estende ainda mais suas análises: argumenta que mesmo os
conteúdos de atos representativos são vivenciados não como meras sensações
passivas, como espécies de figuras e quadros estáticos, mas também como
realidade autônoma que se opõem à nossas intenções. Mesmo quando de atos
representacionais, os conteúdos destes atos são vivenciados não como puras
‘figurações”, mas também como resistência à nossa apreensão. Dilthey de fato
afirma: quando me movo ou movo os olhos e os objetos resistem a estes
movimentos, progressivamente e reflexivamente se adquiri a partir desta vivência a
consciência da independência destas representações em relação à minha vontade.
Neste sentido, Dilthey também faz referência à alguns dos resultados
conquistados por Volkmann quando de suas pesquisas fisiológicas. Volkmann nota
que “pessoas recentemente operadas tinham que aprender que o que elas viam
eram os objetos bem conhecidos mediante o tato, mas elas não precisavam
aprender a separar artificialmente a retina afetada da causa afetante. Nenhuma
113 Ver, neste sentido: SW I, pp. 245-262. 114 Idem, Ibidem.
71
delas concebiam a sensação luminosa como um estado interno, similar aos
sentimentos de dor e fome, por exemplo”115.
Ainda no interior deste quadro conceitual, em um argumento logicamente
conexo com sua crítica ao intelectualismo epistemológico, Dilthey restará por criticar
o conceito de subjetividade pressuposto por duas maiores tradições epistemológicas
de seu tempo: o empirismo e a tradição transcendental.
Ambas as tradições – argumenta Dilthey – pressupõem uma concepção
abstrata de subjetividade, formalmente constituída, absolutamente contemplativa e
passiva, intencionalmente concebida para funcionar como uma espécie de ‘ponto
arquimedico’ quando da reflexão epistemológica acerca da moderna física
matemática.
Neste sentido, quando Dilthey afirma que precisamos conceber um sujeito a
partir da totalidade da estrutura da vida psíquica, o que o alemão tenta defender não
é somente uma mera variação do imperativo romântico concernente à valorização
do sentimento e da vontade, ainda que Dilthey tenha sido de fato influenciado pelos
românticos, especialmente por Novalis.
Em verdade, Dilthey é ainda mais radical. Pretende ele demonstrar que atos
volitivos e emocionais estão na origem de alguns de nossos mais elaborados e
sofisticados conceitos, não apenas a partir de uma perspectiva puramente filosófica,
mas mesmo quando considerados os resultados das ciências naturais,
especialmente os da biologia: entre estes conceitos, o de substância e o de
causalidade – verdadeiramente centrais quando da investigação epistemológica –
são exemplos privilegiados do que aqui fora afirmado.
3.5. Aspectos gerais da doutrina das categorias de Dilthey
Quando do diálogo estabelecido por Dilthey com a tradição filosófica, não se
pode ignorar a pretensão do autor em propor uma verdadeira doutrina das
categorias. É mesmo desnecessário destacar a verdadeira centralidade do problema
das categorias no interior do desenvolvimento da filosofia. O que deve ser
destacado, antes, é a pretensão de Dilthey em fundamentar suas categorias a partir
da sua proposta de uma reorientação e ampliação do conceito de experiência.
115 DILTHEY, 1986, p.161. Tradução nossa.
72
Como já destacado anteriormente, Dilthey aceita a crítica de Kant à tradição,
quando este procura destaca o caráter eminentemente ativo do sujeito na
constituição do conhecimento. Que seja de extrema importância a pretensão
diltheyana em investigar toda aquela esfera que Kant denominava de condições
transcendentais116 a partir de uma perspectiva empírica, isto já fora de fato
devidamente destacado por uma série de comentadores. Neste sentido, basta citar
os esclarecedores trabalhos de, por exemplo, OWENSBY (1994) e DAMBÖCK
(2016).
O que procuraremos destacar quando da reflexão de Dilthey acerca das
categorias é, antes, a sua pretensão em buscar a origem destas condições da
consciência no plano da vivência imediata, no nexo vital ele mesmo. Dilthey,
portanto, concorda com a crítica kantiana quando da necessidade de se
compreender as categorias como condições de possibilidade da experiência
oriundas de uma atividade eminentemente ativa. Negará, porém, a doutrina kantiana
quando esta afirma a prioridade destas categorias.
Para Dilthey, as condições de possibilidade da experiência tem origem na
experiência ela mesma, isto é, nas relações práticas, volitivas e imediatas da
unidade vital para com o mundo. Quando Helmholtz defende a necessidade da
aprioridade da categoria de causalidade, o que determina sua posição é, por um
lado, a incapacidade de conceber um âmbito de experiência que já não parta desde
sempre de nossas capacidades intelectuais plenamente desenvolvidas e, por outro,
uma concepção de experiência eminentemente intelectualista.
Ora, notar-se-á com maior clareza, se formos bem sucedidos, a pretensão
sistemática de Dilthey: pois, como já vimos, partindo da sua teoria da vivencia
originária e imediata, procurou o alemão oferecer argumentos consistentes quando
da justificação do mundo externo, da inadequação do dualismo epistemológico como
realidade originária e da crítica do subjetivismo intelectualista. É, da mesma forma, a
partir do conceito de “Innewerden” que Dilthey procurará fundamentar sua teoria das
categorias.
Também merece destaque:
a-) O procedimento bastante típico de Dilthey, que procura estabelecer suas
próprias posições sempre a partir de uma diálogo crítico com a tradição. Não será
116 Dilthey nomeia tais condições de “condições da consciência”, reitere-se
73
diferente quando de suas reflexões acerca das categorias: procedimento crítico-
histórico e positivo-sistemático são ambos fundamentais.
b-) A historicização das categorias.
As condições da consciência, em sua realidade, constituem verdadeiro
processo histórico vivo, são frutos de um desenvolvimento e atividade constante
direcionada e dedicada à apreender, classificar e conhecer aquilo que nos é dado.
Nas palavras do próprio Wilhelm Dilthey, estas condições da consciência possuem
uma história, e o curso desta história envolvem suas adaptações àquilo que é dado
indutivamente pelos sentidos117.
Ou seja, os pressupostos necessários ao conhecimento, fundamentais
principalmente quando do estabelecimento de relações necessárias, possuem uma
história e desenvolvimento que parte, inclusive, do conhecimento cada vez mais
cristalino dos limites e possibilidades da consciência. Ora, neste sentido, basta
recordar que certas condições – por exemplo, substância – acabam por ser
compreendidas de maneiras diversas durante a história: não mais como, por
exemplo, formas substanciais para além de qualquer restrição epistemológica, mas
como nexo ativo intelectual destinado a estabelecer relações a partir daquilo que é
dado pelos sentidos. De fato, argumentará Dilthey, o conceito ele mesmo de
substância, tem uma origem em comum com conceitos que os antecedem ou são
sincrônicos historicamente118: todo e unidade, por exemplo. Não por acaso, Dilthey
reúne as categorias de todo, unidade e substância sob a categoria, que as engloba,
da mesmidade.
O mesmo ocorre com o conceito de causalidade: ele é uma instância do
conceito mais abrangente da categoria de ação (Wirken) e sofrimento (Leiden). De
fato, como o filósofo mesmo irá indicar, a categoria de causa eficiente aristotélica
não pode ser identificada à noção de causalidade moderna, por exemplo, embora,
segundo a doutrina diltheyana, possuam uma origem em comum.
Dilthey ainda afirma que devemos diferenciar dois tipos de categorias: a-) as
categorias puramente formais da lógica (identidade, terceiro excluído, por exemplo),
fundamentadas na razão enquanto tal; b-) As categorias da vida, que tem origem na
vivencia elementar caracterizada pelo nexo indissolúvel entre impulso e resistência.
117 SW I, pp. 500-501. 118 Ora, a própria história da Filosofia indica este fato.
74
De fato, Dilthey assim afirma:
Nós também não negamos que há categorias que estão fundamentadas na razão
enquanto tal. Os conceitos de identidade, de igualdade, de diferença sào tais
categorias. Eles designam relações que atravessam toda a realidade efetiva. Mas
essas categorias são, segundo a natureza de sua origem, sempre e eternamente
formais.
E prossegue:
Dessas categorias formais, porém, as categorias reais são totalmente diversas.
Essas categorias não estão de maneira alguma fundadas na razão, mas no
próprio nexo vital119
3.6. Substância e causalidade como categorias da vida
A categoria de mesmidade - da qual o conceito de substância é uma
instância, reitere-se – é definida pela crença em uma unidade vivenciável,
impossível de ser expressa por algum conceito, que mantem “coeso tudo o que é
diverso e todas as transformações”120.
Quando Dilthey afirma que a categoria de mesmidade engloba não só o
conceito de substância, mas também os conceitos de unidade e todo, o que
pretende o alemão sugerir é que há uma vivencia em comum na origem de todos
estes conceitos. Ora, já nos pré-socráticos, as discussões que orbitavam em torno
da questão do ˜um e do múltiplo” são, por exemplo, verdadeiramente centrais. No
desenvolvimento da Filosofia, por sua vez, a questão da relação entre substância e
acidentes/atributos é, sob a ótica de Dilthey, também aparentada, na medida em que
tais conceitos partilham de uma origem em comum, como já dito.
De fato, se nos restringirmos à filosofia moderna, é possível verificar a
existência de diversas opiniões que oscilam entre a defesa da realidade de uma
unidade substancial quando do ente individualizado e a defesa da redução deste
mesmo ente a uma mera multiplicidade de propriedades:
De maneira bastante estranha, porém, nós penetramos a partir do conceito mais
abstrato de substância da maneira mais simples possível, então na categoria da
mesmidade. O entendimento se digladiou através de milênios com esse conceito.
Ele nunca pôde encontrar, contudo, como é que a unidade da substância começa
a manter coeso o múltiplo das propriedades e as transformações dos estados.
119 DILTHEY, 2014, 168. 120 Ibidem, p.169.
75
Naturalmente, mesmo essa cisão em propriedades, transformações e a unidade
que mantém tudo coeso se mostra como uma suspensão da experiência interna
verdadeira de mesmidade por meio do entendimento decompositor e unificador121
O primeiro passo de Dilthey, quando de sua própria teoria, é delimitar a
categoria de substância em face do conceito de identidade lógica. Quando julgo que
a rosa é vermelha, mas também é cheirosa e é bela, este é da predicação não
denota identidade lógica. Este conectivo responsável por atribuir predicados ao
termo sujeito em um juízo não expressa ˜identidade qualquer total ou parcial˜122.
Mas então qual seria a origem do conceito de substância? Já vimos que a
distinção entre eu e mundo, psíquico e físico, é um processo gradual que tem como
origem a vivencia imediata – Innewerden – caracterizada pelo nexo recíproco de
impulso e resistência. Dilthey expressamente afirma que o conceito de substância,
de todo e uno, “não pode ser vivenciada sem por nós sem uma consciência do Eu.
Como dada na vivência, ela está ligada à vivência do Eu”123.
A categoria de substância e sua origem são explicadas, então, partindo da
realidade da experiência interna da unidade do Eu enquanto autoconsciência.
Dilthey, porém, expressamente afirma que esta experiência não pode ser
compreendida de uma maneira eminentemente intelectualista como, por exemplo,
partindo da ideia de um Eu que acompanha todas as representações.
Em verdade, esta mesmidade do Eu tem origem, antes, em relações práticas
para com o mundo como, por exemplo, na nossa percepção de que ao agir serei
ainda o mesmo que futuramente deverá arcar com as reponsabilidades dos atos,
algo que, naturalmente, depende do julgamento, já no futuro, das ações pretéritas.
Dado o espírito dos esforços diltheyanos, tal percepção temporalmente bastante
sofisticada tem origem na experiência ela mesma:
Em nosso agir e em nosso caráter, o fundamento da mesmidade não é igualmente
uma igualdade rígida consigo mesmo. Ela se enuncia muito mais na consciência
de uma responsabilidade pelo que se passou. Nessa consciência, precisamente
aquele que agora julga sobre si é diferente daquele que agiu e sabe a si mesmo
de qualquer modo como o mesmo. Aqui também a mesmidade é apenas a
expressão do fato de que a vida incessantemente se sente de uma determinada
121 Idem, p.170. 122 Idem, p.171. 123 Idem, p.171.
76
maneira na multiplicidade de suas manifestações e na sequência de suas
transformações (...) 124
Se a categoria de substancia – enquanto instância da mesmidade - fosse uma
categoria a priori do entendimento, uma contribuição do intelecto, uma função
puramente intelectual, ela seria plenamente transparente ao entendimento e ao
intelecto, algo que, como a própria história nos mostra, restaria longe de ser o caso.
Dilthey afirma: “em tudo isso se ratifica para nós novamente a origem dessas
categorias a partir da própria vida. Se ela fosse um mero produto do entendimento,
então ela seria totalmente transparente para o entendimento. Assim, porém, ela é
insondável” 125.
No mesmo sentido:
Se a categoria de substância fosse uma simples função intelectual (...) o conceito
de substância seria transparente para o intelecto como os conceitos de identidade
e diferença. Em verdade, o conceito de substância possui um núcleo obscuro, e
permanece incompreensível para nós como todas estas propriedades e atributos
se relacionam e inerem a uma unidade126
Se a categoria de mesmidade pressupõe a diferenciação entre Eu e mundo
que tem origem na vivência imediata como condição de sua possibilidade, a
categoria de ação e sofrimento (Wirken und Leiden), por sua vez, tem uma origem
ainda mais ligada à noção de “Innewerden”. Senão vejamos.
A segunda categoria da vida tem origem no próprio nexo vital: “a reação, na
qual uma impressão evoca uma resposta, é o cerne propriamente dito da coisa”127.
Deve-se destacar que sua origem não se dá quando de uma ação consciente que
responde a certa impressão, pois a própria percepção de que certo ato é um ato
meu, já envolve um nível de reflexividade bastante desenvolvido: “a categoria da
reação ou efeito recíproco não vem á tona, portanto, de maneira alguma a partir de
um nexo de fazer e sofrer, mas é inversamente mais originário do que os dois no
próprio nexo vital”128.
Segundo Dilthey, no plano da pura senciência, mesmo o sentimento de que
minha vontade é obstaculizada por algo que resiste a ela já envolve certo
desenvolvimento das funções psíquicas, germes daquela capacidade reflexiva e da
124 Idem, Ibidem. 125 Idem, 172. 126 SW I, p.415. 127 DILTHEY, 2014, pp180.181 128 Idem, Ibidem.
77
distinção entre eu-mundo já plenamente desenvolvidas. Inicialmente o que se tem é
o sentimento de ação contra ação, vontades contrapostas, isto é, ainda não se
distingue a ação daquele sentimento de resistência como consequência da ação:
Aqui também, não se pode de maneira algum duvidar de que a vitalidade do
efetuar e do sofrer, que vem ao nosso encontro na unidade vital, seja igualmente
atribuída por nós de maneira primária ao que resiste. A própria unidade vital vive
na consciência de sua vitalidade livre; mas mesmo aquilo que resiste a essa
unidade e que reside, de acordo com isso, fora de sua realidade efetiva, é
concebido por ela mesma como vitalidade dotada de uma forma volitiva, na
medida em que determina o poder da vontade129
Como já exposto anteriormente, Dilthey evoca uma série de exemplos em que
este jogo de impulsos e repostas, reações a impressões, já são passíveis de serem
verificadas no âmbito do reino animal, no reino da pura senciência. A origem da
categoria, portanto, não se dá no plano meramente intelectual; quando concebemos
a causalidade como um nexo puramente formal entre dois fenômenos, passível,
inclusive, de quantificação, tal concepção já envolve um processo histórico de
refinamento e desenvolvimento, que pressupões uma capacidade de reflexão e
formalização que de forma alguma é originária:
Que caminho nós não atravessamos por intermédio dessa categoria una em meio
à história espiritual da humanidade! Mas, então, todos os momentos estão
reunidos para conceber o conceito hoje vigente de causa e feito, a causalidade e a
lei causal como um produto necessário do desenvolvimento científico130
Makkreel assim afirma, quando deste desenvolvimento progressivo :
Dilthey nota que a relação causal (Kausalverhältnis) não pode ser explicada
mediante a percepção externa, que nos oferece apenas estados de coisas
seguindo uns aos outros temporalmente. É através da experiência de nossa
vontade e das relações recíprocas de ação e sofrimento (Wirken und Leiden) que
podemos representar uma sequência causal (...) a categoria de causalidade é
compreendida quando transferimos a vitalidade do Self, i.e, a efetividade da
vontade para a experiência externa131
Em argumentação semelhante àquela já empreendida quando do conceito de
substância, Dilthey afirma que o conceito de causalidade não deve ser concebido
como um conceito totalmente a priori, uma contribuição do intelecto, uma função
puramente intelectual. A categoria de causalidade tem origem na Vida ela mesma,
129 DILTHYE, 2014, p.181. 130 DILTHEY, 2014, p.185 131 MAKKREEL, 1992, P. 438. Tradução nossa.
78
na relação desde sempre presente entre o Eu e o Mundo. Se fosse uma contribuição
puramente formal do intelecto, do entendimento, tal categoria seria plenamente
transparente ao próprio entendimento, algo que não seria o caso:
(...) a relação causal e a lei causal contida nela não são, como kant,
Schopenhauer e Helmholtz supunham, uma função inata do intelecto. Pois essa
suposição introduz um fundamento desconhecido da explicação, enquanto os
fundamentos conhecidos da explicação são suficientes. De acordo com isso, ela
precisa ser metodologicamente rejeitada. Em particular, porém, a relação causal,
se ela fosse uma função do entendimento, seria transparente para o
entendimento. Temos exemplos de tal transparência junto às categorias formais.
Identidade, diferença, são tais categorias completamente transparentes e
inequívocas132
Assim concluímos as metas traçadas para o presente capítulo. Algumas
considerações finais são necessárias, todavia.
Há outro aspecto do projeto epistemológico de Dilthey que não pode ser
ignorado. A análise psicológica, nas palavras do próprio Dilthey, tem como objeto
apenas o individuo isolado e não esgota a tarefa epistemológica. Em verdade, o
individuo já esta desde sempre imerso em um contexto sócio histórico que determina
possibilidades, limites e funções possíveis. Um projeto epistemológico que faça jus à
realidade efetiva não pode ignorar as conquistas das ciências do espírito
autônomas, portanto. Pois o homem é ser histórico: o sentido e o significado de suas
ações, ações estas já desde sempre orientada por valores, somente são passíveis
de compreensão quando tematizado todo este mundo histórico que é ele mesmo
objetividade e condição de possibilidade da intersubjetividade. Individuo e todo,
particular e universal, iluminam-se de maneira recíproca.
O estudo de toda a gama de estruturas sócio históricas acaba por iluminar
indiretamente as conquistas empreendidas pela a análise psicologia: pois ao querer,
sentir e representar, o homem acaba por edificar o mundo histórico. Da mesma
maneira, o estudo da psicologia caba por iluminar origens, funções e características
do mundo histórico. Trata-se de processo verdadeiramente circular e, destaque-se,
sem fim.
O próximo capítulo tem como escopo justamente fundamentar estas breves
considerações finais.
132 DILTHEY, 2014, p.188.
79
4. DA RELAÇÃO ENTRE A EPISTEMOLOGIA DILTHEYANA E AS DEMAIS
CIÊNCIAS PARTICULARES DO ESPÍRITO
4.1. A investigação epistemológica pressupõe as demais ciências do espírito
O estudo da efetiva realidade histórico-social pressupõe uma série de
conceitos de tendências generalizantes que pretendem esclarecer o objeto de
estudo próprio das Ciências do Espírito. Dilthey - de fato - reconhece que conceitos
abrangentes do gênero da “Arte, Ciência, Estado, Sociedade e Religião” não podem
ser ignorados pelo pesquisador interessado quando do esclarecimento da realidade
histórico efetiva.
Não se deve ignorar, porém, que o alemão empreende um verdadeiro tour de
force contra uma tendência que é não somente desnecessária - mas
verdadeiramente mistificadora –, operando no sentido de hipostasiar tais conceitos.
Esta tendência acaba por obscurecer a origem dos conceitos pressupostos pelas
ciências do espírito: relações entre indivíduos, que se dão sempre em determinado
contexto sócio histórico e sob determinadas condições naturais, i.e, a própria vida:
“Quem estuda os fenômenos da história e da sociedade depara por toda parte
com essencialidades abstratas, coisas do gênero da arte, da ciência, do estado,
da sociedade e da religião. Essas essencialidades assemelham-se a névoas
concentradas que impedem a visão de penetrar o real e que não podem ser
agarradas. Assim como outrora as formas substanciais, os espíritos astrais e as
essências se encontravam entre os olhos do pesquisador e as leis que vigem sob
o átomo e as moléculas, essas essencialidades velam a realidade efetiva da vida
histórico-social, a ação recíproca das unidades psicofísicas da vida sob as
condições do toda da natureza e sob a divisão genealógica naturalmente inata.
Gostaria de ensinar a ver essa realidade efetiva (...) e a afugentar essas névoas e
esses fantasmas” (DILTHEY, 2010, pp.57-58)
Não causa surpresa tais pretensões diltheyanas: elas já são bastante
evidentes nas críticas de Dilthey ao hábito de muitos historiadores alemães à época,
hábito este que consistia em conceber a efetiva realidade histórica e social sempre a
partir das lentes de uma abstrata e indefinida concepção - de inspiração organicista -
de Volksgeist.
Á alma do povo falta a unidade da autoconsciência e da atuação que
expressamos no conceito de alma. O conceito de organismo substitui um
problema dado por outro, e, em verdade, como já observara John Stuart Mill, a
80
solução do problema da sociedade talvez aconteça antes e de maneira mais plena
do que a solução do organismo animal (Ibidem, p.45)
No mesmo sentido:
Essa unidade individual da vida, que se anuncia no parentesco de todas as
exteriorizações vitais, exteriorizações tais como as de seu direito, de sua língua,
de sua interioridade religiosa, é expressa misticamente por meio de conceitos
como alma do povo, nação, espírito do povo e organismo. Esses conceitos são tão
inúteis para a história quanto o conceito de força vital para a fisiologia (Idem, p.56)
É certo que há no período aqui estudado (1880-1894) certa ênfase sobre a
necessidade de uma investigação pormenorizada das condições estruturantes e
eminentemente ativas e reativas de formação e significação compartilhada pelas
unidades psicofísicas, fatos da consciência estes que – reitere-se - somente
poderiam ser conhecidos pela análise psicológica.
O estudo da realidade efetiva, que é o objeto cientista do espírito, de maneira
alguma se esgota com a análise psicológica, porém. Neste sentido, ouça-se o
próprio Dilthey:
Como a psicologia, porém, não encerra em si de maneira alguma todos os fatos
que se mostram como objetos das ciências do espírito (...) resulta daí que a
psicologia só tem por objeto um conteúdo parcial daquilo que ocorre em cada
individual particular. Por isso, ela só pode isolada da ciência conjunta da realidade
efetiva histórico-social por meio de uma abstração e só pode ser desenvolvida em
uma relação constante com essa realidade efetiva133 134
Quando Dilthey propõe a necessidade de uma fundamentação e
esclarecimento epistemológico das “Ciências do Espírito”, um dos temas
133 DILTHEY, 2010, pp.33-34. 134 No mesmo sentido: “Psychology – or anthropology, as Dilthey often called it – is the study of
individuals. But although the only psychic facts of experience are those of the individual, it is not the
case that the facts of the human science are all found in psychology. Dilthey insists that “psychology
by no means contains all those facts that comprise the subject matter of the human sciences” (SW,
1:81; GS, 19). Psychologists study the psychic structure of the individual without reference to a
particular sociohistorical situation. The individual, however, is always given as enmeshed in a social
context. The ahistorical, pre-social, atomistic individuals posited by social contract theorist such as
Hobbes and Locke are “a fiction of genetic explanation” (SW, 1:83; GS, 1:31) (…) Psychology, then,
does not exhaust the study of the individual, for the fully study of individual places them within their
concrete sociohistorical context. The subject matter of the human sciences “is the individual as a
component of society” (SW, 1:83; GS, 1:31). OWENSBY, 1994, p.107.
81
fundamentais subjacentes ao seu esforço é justamente a tentativa de superar
concepções parciais, que mutilam a realidade efetiva, partindo de hipóteses parciais
e abstratamente concebidas. Dilthey rejeita como parciais, na mesma medida:
a-) A intenção de se conceber a realidade histórica e social a partir de
indivíduos atomisticamente considerados, dotados de uma hipotética “natureza
humana” em “estado natural”, fatos estes que supostamente seriam capazes de
servir como fundamento sólido para a inferência de leis normativas que, por sua vez,
seriam capazes de orientar, com grande grau de precisão, valores e instituições.
b-) A pretensão oposta, qual seja: a de conceber a realidade histórica efetiva
a partir de grandes estruturas significativas organicamente concebidas e
indevidamente hipostasiadas, que acabam por obnubilar o essencial papel dos
indivíduos em interação já sempre em determinados contextos naturais e culturais.
Em verdade, Dilthey traça historicamente as origens desse dualismo a ser
superado – pois verdadeira relação de ênfase unilateral ora sobre a parte, ora sobre
o todo – na intenção de uma fundamentação sólida às ciências da realidade histórica
efetiva que irrompe já no período ateniense. Ouçamos novamente à Dilthey, pois
suas palavras são particularmente esclarecedoras:
Pode-se recusar aqui, então, imediatamente um procedimento que torna insegura
a construção das ciências humanas, na medida em que introduz hipóteses em
seus alicerces. A relação das unidades individuais com a sociedade foi tratada
construtivamente a partir de duas hipóteses opostas. Desde que o direito natural
dos sofistas se contrapôs à concepção platônica do estado como o homem
ampliado, essas duas teorias passaram a se combater, de maneira similar ao que
aconteceu com a teoria atomística e a dinâmica, em vista da construção da
sociedade
E prossegue Dilthey:
No interior desse curso analítico da investigação, a psicologia não pode, tal como
acontece por meio da primeira dessas hipóteses, ser desenvolvida como a
apresentação de uma dotação inicial de um indivíduo desprendido da linhagem
histórica da sociedade. Ora, mas as relações fundamentais da vontade, por
exemplo, tem realmente o palco de sua atuação nos indivíduos, mas não no
fundamento da explicação. Um tal isolamento, e, então, uma composição
mecânica de indivíduos, foi o principal erro da antiga escola de direito natural. A
unilateralidade desse direcionamento foi sempre combatida uma vez mais por uma
unilateralidade oposta. Ante uma composição mecânica da sociedade, essa
unilateralidade oposta projetou formulas que expressam a unidade do corpo social
e que deveriam satisfazer, com isso, a outra parte do estado de fato. Temos uma
82
tal fórmula na subordinação da relação do indivíduo com o Estado à relação da
parte com o todo que é anterior à parte, uma formula presente na teoria política de
Aristóteles; temos uma outra na realização da ideia do Estado como um
organismo animal bem organizado, próprio aos publicistas da Idade Média, uma
ideia que foi defendida por escritores atuais significativos e desenvolvida mais
detalhadamente; e uma outra no conceito de uma alma e de um espírito do povo
135
Deve-se sempre ter em mente que uma das características mais marcantes
do projeto de fundamentação e esclarecimento epistemológico das Ciências do
Espírito proposto por Dilthey é justamente sua afirmação no sentido de que, para
uma devida compreensão da realidade efetiva histórica e social, o estudioso deve
articular a todo tempo, em um esforço contínuo e sem repouso, os resultados
adquiridos pela psicologia – que tem como objeto, reitere-se, a análise dos fatos da
consciência em sua totalidade, o que inclui os âmbitos verdadeiramente constituintes
da vontade e do sentimento – e os resultados obtidos pelas ciências do espírito
particulares: História, Direito, Economia, Linguística, entre outras:
Naturalmente, a unidade psicofísica é fechada em si pelo fato de só poder ser
considerado meta para ela aquilo que está estabelecido em sua própria vontade,
de só poder ser valioso para ela aquilo que é dado em seu sentimento e de só
poder ser real e verdadeiro para ela aquilo que se comprova como certo, como
evidente ante a sua consciência. Mas esse todo fechado e certo na
autoconsciência de sua unidade só veio a tona, por outro lado, no contexto da
realidade efetiva social; sua organização o mostra como sofrendo a ação de fora e
reagindo para fora; todo o seu caráter de conteúdo é apenas uma forma particular
que entra em cena de modo passageiro em meio ao caráter de conteúdo
abrangente do espírito na história e na sociedade; sim, é por força do traço mais
elevado de sua essência que ele vive em algo que não é ele mesmo 136
E prossegue Dilthey:
Portanto, o objeto da psicologia é sempre apenas o indivíduo, que é isolado do
contexto vital da realidade efetiva histórico-social, e a psicologia depende da
fixação, por meio de um processo de abstração, das propriedades genéricas que
seres psíquicos particulares desenvolvem neste contexto. Ela nem encontra o
homem, tal como ele por assim dizer se apresenta diante dela, abstraindo-se da
ação recíproca na sociedade e na experiência, nem é capaz de descobri-lo. 137
135 DILTHEY, 2010, pp.45-46. 136 Ibidem, p.44. 137 Idem., Ibidem.
83
Não se trata, obviamente, de uma tarefa das mais simples: o que Dilthey
procura destacar, porém, é a insuficiência de qualquer abordagem epistemológica às
ciências do espírito que inicie com uma concepção de sujeito abstrata, espectador
desinteressado de uma realidade efetiva absolutamente neutra, passível – inclusive -
de suspensão em pensamento. Os indivíduos já estão sempre imersos em um
determinado contexto sócio histórico, contexto este que não é meramente objeto de
contemplação, mas que provoca, estimula, constitui possibilidades, que influi sobre
os indivíduos e que impele estes a agirem:
A corrente do acontecimento na sociedade flui incessantemente para frente,
enquanto os indivíduos particulares, a partir das quais essa corrente subsiste,
aparecem no palco da vida e desaparecem uma vez mais de tal palco. Assim, o
indivíduo se encontra nesse palco como um elemento em uma relação de
interação com outros elementos. Ele não construiu esse todo no qual nasceu 138
(...) O homem como um fato que antecede a história e a sociedade é uma ficção
da explicação genética; aquele homem, que a saudável ciência analítica tem como
objeto, é o indivíduo como um componente da sociedade 139
O contexto sócio histórico a partir do qual e no qual os indivíduos se
constituem - em verdadeiro laço de interação recíproca - são pressupostos de
máxima importância quando da constituição do próprio individuo enquanto tal. São
de fundamental importância, neste sentido, as relações e estruturas que tornam
possível a interação – linguagem, por exemplo - entre as diversas unidades
psicofísicas. Esta dimensão verdadeiramente transcendental do mundo histórico é
um dos temas recorrentes da tradição histórica alemã. Dilthey concede
principalmente à Wilhelm Von Humboldt o mérito de conduzir a Filosofia
transcendental à compreensão do mundo histórico.
Este mundo histórico nunca pode, porém, ser abarcado em sua totalidade por
apenas uma disciplina e nem pode ser compreendido a partir de um princípio
significativo de ordem superior, algo que era pretendido pelas diversas filosofias da
história. Dilthey reconhece expressamente – quando do desenvolvimento da escola
histórica - o mérito em romper com os métodos especulativos das diversas Filosofias
da História e o reconhecimento da dimensão verdadeiramente transcendental do
mundo histórico. Dilthey, no entanto, acaba por censurar àquelas teorias muito
comuns entre estes historiadores alemães, que se amparavam sobre o conceito de
138 Ibidem, p.51 139 Ibidem, p.56
84
unidades organicamente significativas – espírito do um povo, forma de vida, etc... –
principalmente quando da hipostasiação destas noções conceituais, algo que já foi
destacado. Tais estruturas funcionais tem em sua base e em sua origem a interação
entre indivíduos e somente subsistem a partir destas interações. Não devem ser
concebidas, portanto, como espécies de entidades autônomas supra pessoais. É
necessário, pois, buscar a origem e desenvolvimento destes conceitos na vida ela
mesma.
Ouçamos ao próprio Dilthey:
O erro fundamental da escola abstrata foi deixar de considerar a relação
do conteúdo parcial abstraído com o todo vivo e tratar, por fim, essas
abstrações como realidades efetivas. O erro complementar – mas não
menos fatídico – da escola histórica foi fugir do mundo da abstração a
partir do sentimento profundo da realidade efetiva viva, irracionalmente
violenta, que ultrapassa todo o conhecimento regido pelo princípio da não
contradição140
Dilthey não deixa margem a nenhuma dúvida: as diversas Ciências do
Espírito particulares, que visam à compreensão da efetiva realidade histórica,
nascem e se originam das necessidades práticas da vida ela mesma:
Essas ciências nasceram na própria práxis da vida, elas foram desenvolvidas
pelas exigências da formação profissional e, por isso, a sistemática das
faculdades que servem a essa formação é a forma natural da própria conexão. De
qualquer modo, seus primeiros conceitos e regras foram encontrados na maioria
das vezes no exercício das próprias funções sociais (...) o progresso até teorias
científicas abrangentes apoiou-se, então, preponderantemente na necessidade de
uma formação profissional das camadas dirigentes 141
Toda e qualquer realidade propriamente humana nasce das ações recíprocas
dos indivíduos submetidos às condições de conexão da natureza. Originam-se das
necessidades da própria vida, portanto. Falta à escola histórica, por conseguinte, um
maior esclarecimento da relação entre estas estruturas abrangentes estudadas
pelas ciências particulares do espírito – e que compõem os elementos do mundo
histórico – e suas relações com aquilo que é da ordem dos fatos da consciência:
Mas a escola histórica não rompeu até hoje as barreiras internas que acabaram
inevitavelmente por obstruir a sua formação teórica tanto quanto a sua influência
sobre a vida. Faltou ao seu estudo e ao seu aproveitamento dos fenômenos
140 Ibidem, p.56 141 Ibidem, p.34
85
históricos a conexão com a análise dos fatos da consciência, por conseguinte uma
fundamentação com vistas ao único saber que é em última instância seguro, em
suma, uma fundamentação filosófica. Falou uma relação saudável com a teoria do
conhecimento e com a psicologia 142
Em sentido convergente, Dilthey afirma:
É somente a partir do estudo das unidades vitais, das unidades psicofísicas, que a
análise encontra os elementos a partir dos quais a sociedade e a história se
constroem, e o estudo dessas unidades vitais constitui o grupo na maioria das
vezes fundamental de ciências do espírito 143
Uma das tarefas mais urgentes do projeto proposto por Dilthey é justamente a
necessidade de se esclarecer, a partir de uma perspectiva epistemológica, a relação
entre a psicologia – isto é, a ciência que analisa e explicita os fatos da consciência,
as propriedades genéricas dos indivíduos isolados dos contextos sócio históricos – e
as outras diversas ciências particulares do espírito. Somente a partir da justificação
de tal nexo entre todo e parte, poder-se-ia evitar os unilateralismos que acabam por
mutilar a realidade efetiva:
O resultado para o contexto da presente exposição é o seguinte: a mais simples
descoberta que a análise da realidade efetiva histórico-social consegue alcançar
se encontra na psicologia. Por conseguinte, a psicologia é a primeira e a mais
elementar dentre todas as ciências particulares do espírito; de acordo com isso,
suas verdades formam a base de construção ulterior. Suas verdades, porém,
contêm apenas um conteúdo parcial destacado dessa realidade e, por isso, tem
por pressuposto a ligação com uma tal realidade efetiva. Consequentemente, é só
por meio de uma fundamentação epistemológica que a ligação da ciência
psicológica com as outras ciências do espírito e com a própria realidade efetiva da
qual elas são conteúdos parciais pode ser esclarecida144
No mesmo sentido:
Os fatos que formam os sistemas culturais só podem ser estudados por intermédio
dos fatos que são conhecidos pela análise psicológica. Os conceitos e
proposições que constituem a base do conhecimento desses sistemas encontram-
se em uma relação de dependência com os conceitos e proposições que são
desenvolvidos pela psicologia. Mas essa relação é tão confusa que só uma
fundamentação lógica e epistemológica coerente, que parta da posição particular
do conhecer para a realidade efetiva histórica, social, poderá preencher a lacuna
142 Ibidem, p.4 143 Ibidem, p.42 144 ibidem, p.47
86
que existe entre as ciências particulares das unidades psicofísicas e aquelas da
economia política, do direito, da religião entre outras 145
O individuo é, destaque-se novamente, um elemento que age e reage no
interior de uma série de relações recíprocas entre indivíduos, sob as condições de
determinado ambiente natural. Estas relações recíprocas entre indivíduos, por sua
vez, se dão sempre elas mesmas no interior de vários sistemas de interação social,
estruturas funcionais abrangentes que acabam por constituir verdadeiro horizonte
significativo. Todo individuo é, segundo o próprio Dilthey, “um ponto de cruzamento
dos diversos sistemas dessas ações recíprocas” 146 147
Estes sistemas verdadeiramente funcionais - pois cumprem determinados
desígnios e finalidades dentro da realidade efetiva de interação social - a serem
estudados pelo cientista do espírito são os objetos de investigação das diversas
ciências particulares. É certo que, como já dito acima, sob a perspectiva da
realidade efetiva não mutilada, os indivíduos – e isto se estende, por óbvio, ao
pesquisador – interagem sempre no interior de uma realidade complexa, em que os
diversos sistemas de ação recíproca são elementos de uma realidade que não pode
ser capturada em sua totalidade por nenhuma disciplina em específico:
Daí resulta o princípio importante de que toda ciência do espírito particular só
reconhece a realidade efetiva histórico-social relativamente, conscientemente
apreendida em sua relação com as outras ciências do espírito. A articulação
dessas ciências, seu crescimento saudável em sua particularização está, por
conseguinte, vinculada à intelecção da ligação de cada uma de suas verdades
com o todo da realidade efetiva, na qual elas estão contidas, tanto quanto à
consciência incessante da abstração, em função da qual essas verdades existem,
e do valor de conhecimento limitado que lhes cabe de acordo com seu caráter
abstrato 148
145 Ibidem, pp. 61-62 146 Ibidem, p.52
147 Ouçamos, neste sentido, às palavras bastante esclarecedoras de Makkreel: “The individual, along
with being the bearer (Träger) of historical development, must also be viewed as the crossing point
(Kreuzungspunkt) of various systems of social inter-action (GS,I,37,87). It is to the latter socio-cultural
contexts of human activity that the other Geisteswissenchaften are more specifically devoted. As
noted previously, Dilthey does not separate the humanities from the social sciences, so that, for
example, aesthetics as well as economics, are included”. MAKKREEL, 1992, p.63.
148 DILTHEY, 2010, p.42)
87
Uma das principais capacidades exigidas daquele investigador dedicado ao
estudo de alguma das ciências particulares do espírito - quando da pretensão em
compreender determinado aspecto da efetiva realidade histórico-social - é
justamente a perícia em conseguir circunscrever de maneira meridiana o seu objeto.
É demandando do estudioso, por conseguinte, uma bem estabelecida capacidade
analítica. Partindo deste todo efetivamente complexo que constitui o mundo
histórico, mundo este marcado pela interação entre indivíduos que, por sua vez,
interagem no interior de um verdadeiro nexo significativo de sistemas de interação
social, deve-se poder conduzir com segurança uma série de processos de
abstração, circunscrição e delimitação operados pela inteligência do pesquisador:
As metas das ciências do espírito de apreender o singular, o individual da
realidade efetiva histórico-social, de reconhecer as uniformidades efetivas em sua
configuração, de fixar finalidades e regras de sua formação constante, só podem
ser alcançadas por meio dos artifícios do pensamento, por meio da análise e da
abstração. A expressão abstrata, na qual se deixa de considerar lados
determinados do conjunto de fatos enquanto outros são desenvolvidos, não é a
finalidade derradeira e exclusiva dessas ciências, mas o seu recurso
indispensável. Assim como o conhecimento abstracional não pode dissolver em si
a autonomia das outras metas dessas ciências, nem o conhecimento histórico,
nem o teórico, nem o desenvolvimento das regras que efetivamente guiam a
sociedade podem prescindir desse conhecimento abstracional 149
E prossegue:
Toda ciência particular só vem à tona por meio do artifício da extração de um
conteúdo parcial da realidade efetiva histórico-social. Mesmo a história abstrai-se
dos traços na vida do homem particular e da sociedade que, na época a ser por
ela apresentada, equivalem àqueles que são iguais a todas as outras épocas; sua
visão está voltada para o elemento diferenciador e singular 150
Há um fato que merece ser verdadeiramente destacado: quando da discussão
e estabelecimento das características, origens e funções destas estruturas de
interação e ação recíprocas, que são o objeto de estudo das ciências humanas
particulares, reitere-se, Dilthey estabelece uma importante distinção que permite
subsumir tais estruturas a uma ordem superior de classificação dual.
149 Ibidem, p.41 150 Idem, Ibidem
88
Segundo o alemão, cada uma destas estruturas verdadeiramente
abrangentes, em virtude de certas características próprias, pode ser classificada ou
como um sistema cultural ou como uma organização externa da sociedade151152
O próprio Dilthey expressa uma das vantagens da classificação proposta: o
conceito de “povo”, por exemplo, verdadeiramente central nas investigações
novecentistas, deixa de ser compreendido como uma espécie de entidade
misteriosamente concebida e substancializada. As características de um
determinado povo particular são esclarecidas pela análise das relações internas
entre os diversos sistemas culturais e a organização externa da sociedade, em
determinado contexto particular, independentemente de qualquer grande narrativa
teleologicamente direcionada
Entre o indivíduo e o transcurso confuso da história, a ciência encontra em si três
grandes classes de objetos que são estudados: a organização externa da
sociedade, os sistemas da cultura na sociedade e os povos particulares – estados
de fato duradouros entre os quais está aquele que, considerando povos como um
todo, é o mais complexo e difícil (...) Não obstante, de uma maneira que
corresponde ao grau de confusão, o fato do povo particular só pode ser trabalhado
com o auxílio da análise dos dois outros fatos. O que é designado por meio da
expressão alma do povo, espírito do povo, nação e cultura nacional só pode ser
representado e analisado plasticamente por meio do fato de se eonceberem, de
início, os diversos lados da vida popular, por exemplo, a língua, a religião e a arte,
em sua ação recíproca 153
O próximo passo a ser dado no esforço ora em curso é, pois, justamente
definir e delimitar as características que - segundo o autor em estudo – definem,
caracterizam e que tornam possível distinguir entre sistemas culturais e a
organização externa da sociedade.
151 “However, in discussing the structure of human interaction, Dilthey makes a significant distinction
between (i) cultural systems (Kultursysteme) and (2) the external organization of society (die aüssere
Organization der Gesellschaft) (GS, 1, 43). The cultural systems are generally spoken of as “purposive
systems” (Zweckzusammenhänge), in which individual freely participate, while the external
organization of society refers to the institutional arrangements and sanctions that actually bind
individuals into specific groups” MAKKREEL, OP. Cit., p.64.
152 “The concrete functional tension that Dilthey discerns between systems of culture and external
organizations of society prevents either form being hypostatized. They are to be seen as functional
structures activated by individuals rather than autonomous superpersonal entities”. Ibidem, p.67
153 DILTHEY, 2010, p.57
89
Além disso, a partir desta delimitação, será possível indicar à quais estruturas
e disciplinas - sob a perspectiva diltheyana – estes conceitos se referem.
4.2. Dos sistemas culturais
A definição diltheyana de Sistemas Culturais está intimamente relacionada
com a adoção do conceito de finalidade como importante instrumento heurístico: de
fato, Dilthey define os sistemas culturais como estruturas finalisticamente orientadas
(Zweckzusammenhang), verdadeiras objetivações de finalidades compartilhadas por
grupos de indivíduos em interação recíproca (MAKKREEL, 1992, p.64; OWENSBY,
1994, p.110).
Sistemas culturais – como a arte, linguagem, ciência, religião e economia –
são essencialmente relações livres de cooperação intersubjetiva destinadas a certas
necessidades e finalidades que indivíduos não podem efetivar de forma isolada154155.
Sistemas culturais originam-se, portanto, da relação entre indivíduos que
compartilham de finalidades em comum. Tais sistemas, porém, não subsistem como
entidades absolutamente rígidas: suas estruturas internas evoluem, definham,
nascem e se modificam em seu conteúdo imanente, em relação sincrônica (i.e, os
sistemas mesmos possuem uma “história” capaz de ser investigada, e que se
desenvolve ao longo do tempo) e em relação diacrônica (pois estes sistemas inter-
relacionam-se e acabam por influir e se limitar reciprocamente)156
154 MAKKREEL, Op. Cit, p.64.
155 “Thus, at all places and times, men will freely combine for the production, distribution, and
accumulation of economic goods; but also for the furtherance of higher ends such as the increase of
knowledge, the maintenance of religious cult and teaching, the creation and preservation of works of
art, and the like. In each of these spheres a system of human relations is set up, into which the
individual must enter if he is either to receive the tradition of the past, or to work fruitfully for himself
and other in the present; a system of relations determined by the nature of the end pursued and the
means available for its attainment (…)Such a web of human relation Dilthey calls a cultural system,
and he sees, in the general failure to make an adequate study of such cultural systems, one powerful
factor militating against progress in the human studies”. HODGES, Op. Cit, p.176;
156 OWENSBY, Op. Cit. P.11.
90
As necessidades e finalidades compartilhadas - que constituem a base e a
partir das quais são constituídos estes sistemas - não podem ser cumpridas e
realizadas por um só indivíduo, porém. Os sistemas culturais pressupõem - como
condição genética e de estabilidade relativa - as relações de cooperação orientadas
a partir de fins em comuns, relações e fins estes que podem ser analisados e
descritos pelo investigador interessado:
Os particulares tomam parte na ação recíproca da vida histórico-social, uma vez
que buscam realizar no jogo vivo de suas energias uma multiplicidade de fins. Em
função do caráter restrito da existência humana, as necessidades que estão
estabelecidas na natureza não são satisfeitas pela atividade isolada do particular,
mas pela divisão do trabalho humano e pelo decurso da herança das gerações
(dessas propriedades emerge a adequação do agir ao produto do trabalho da vida
prévia, à colaboração da atividade dos contemporâneos). Assim, as finalidades
essenciais da vida do homem atravessam a história e a sociedade157.
Não raramente, determinados sistemas culturais perduram por sucessivas
gerações, transcendendo em muito à existência dos indivíduos particulares. É certo
que, em virtude da limitada duração da vida de cada um destes indivíduos,
frequentemente tais estruturas parecem gozar de uma existência autônoma em
relação a estes.
Os indivíduos, como pontos de cruzamento de diversos sistemas culturais,
são sempre finitos e transitórios: inevitavelmente atuam no interior de um todo
estruturado que não foi inicialmente constituído por eles mesmos. Desta forma,
mesmo quando reagem, inovam e procuram modificar determinados aspectos de
seu contexto sócio-histórico, partem desde sempre já de uma série de objetivações
legadas pela tradição:
Esses sistemas persistem, enquanto os indivíduos particulares mesmos aparecem
no palco da vida e desaparecem dele uma vez mais. Pois cada indivíduo está
fundado em um elemento determinado da pessoa, um elemento que retorna em
meio a modificações. A religião, a arte, o direito são imperecíveis, enquanto os
indivíduos, nos quais eles vivem, mudam. Assim, em cada geração, fluem
novamente para o interior desse sistema fundado a densa interioridade e a riqueza
da natureza humana, na medida em que essa interioridade e essa riqueza estão
presentes em um elemento da natureza ou se acham em relação com ela. Se
mesmo a arte, por exemplo, está fundado na capacidade humana da fantasia,
157 DILTHEY, 2010, p.59.
91
como um elemento particular da natureza humana, então toda a riqueza da
natureza humana está presente em suas criações
Prossegue Dilthey:
O sistema, porém, só alcança sua plena realidade efetiva, sua objetividade, por
meio do fato de o mundo exterior ter a capacidade de conservar e mediar de uma
maneira mais duradoura ou recriadora os efeitos de indivíduos que passam
rapidamente. Essa ligação de elementos do mundo exterior configurados
valiosamente segundo a finalidade de um tal sistema com as atividades de
pessoas vivas, mas passageiras, gera uma duração externa ela mesma
independente dos indivíduos, assim como o caráter de objetividade maciça
desses sistemas158 159
Outro aspecto que merece ser destacado: o perdurar e a presença constante
de certos sistemas culturais através da história, em diversos contextos – por
exemplo, a arte – indicam certos aspectos intelectuais, emocionais e volitivos
constantes da estrutura psíquica que só podem ser esclarecidos pela análise
psicológica. Por óbvio, as diversas formas de manifestação artística – por exemplo -
que variam em sua forma e conteúdo no decorrer da história, indicam que a análise
psicológica - como já dito en passant - por si só é insuficiente: uma objetivação do
espírito – uma obra de arte, por exemplo – só pode ser compreendida a partir de
uma investigação que articule os conteúdos esclarecidos pela psicologia com as
objetivações que constituem o horizonte significativo no qual os indivíduos já estão
desde sempre imersos.
E dessa forma configura-se cada um desses sistemas como um modo de
atividade que se baseia em um elemento da natureza das pessoas, que é
multiplamente desenvolvido a partir desse elemento e que satisfaz no todo da
sociedade a uma de suas finalidades. Além disso, esse modo de atividade é
dotado com aqueles meios produzidos no mundo exterior que duram e se
158 Ibidem, pp.66-67. Os grifos no corpo da citação são de nossa autoria.
159 “Dilthey thus begin to undercut the distinction between the inner and the outer, the private and the
public in human action. Purposive human action arises from needs, and these needs do not separate
but join us. The commonality of our needs and the limitations of our capacities bring us together with
our ancestors and our contemporaries in ongoing projects. Many actions that “I” undertake are actions
that “we” undertake in important ways”. OWENSBY, Op. Cit. P.112
92
renovam em conjunto com a atividade, meios que servem à finalidade dessa
atividade160 161
Mais uma vez palpável a pretensão diltheyana de constituir uma via média,
uma alternativa que supere os unilateralismos das concepções que privilegiam ora a
parte, ora o todo, um dos temas recorrentes de seu projeto. Imperioso ainda
destacar outro aspecto essencial na delimitação do conceito de sistema cultural: a
decisão do indivíduo em participar, assim como sua atuação concreta dentro de
determinado sistema de cultura – e ainda veremos que é justamente esta
consideração diltheyana uma das mais problemáticas quando da distinção entre
sistema cultural e organização externa da sociedade – goza de certa liberdade, i.e,
um mesmo indivíduo pode participar ao mesmo tempo de vários sistemas culturais,
enquanto se abstêm de participar de outros, sempre de acordo com os fins visados
(MAKKREEL, 1992, p. 64; OWENSBY, 1994, pp.112-113). Não é possível definir um
núcleo mínimo de sistemas culturais aos quais, obrigatoriamente, todo indivíduo esta
submetido.
Um exemplo concreto de como um mesmo indivíduo pode atuar,
concomitantemente, no interior de diversos sistemas de cultura, é oferecido pelo
próprio Dilthey:
O individuo singular é um ponto de cruzamento de uma pluralidade de sistemas
que se especializam cada vez mais refinadamente no curso do progresso da
cultura. Sim, o mesmo ato vital de um indivíduo pode mostrar esse caráter
multifacetado. Na medida em que um erudito redige uma obra, o processo da
redação pode se mostrar como um elo na ligação de verdades que constituem a
ciência. Ao mesmo tempo, esse elo é o elo mais importante do processo
160 DILTHEY, 2010, p.67
161 “But cultural systems have another principle of unity – that is, not all the acts of the individual are
merely transitory. Human praxis affects the material world, and matter preserves these expressions of
human life (…) cultural systems consist, then, not only of ongoing human activity and an enduring
structure of human nature but also of objectified human activity preserved in matter. Objects of the
external world, that is, artifacts, are invested with the values of a purposive system and act as
objective standards of these values (…) the particular content, the flesh and blood, as it were, of these
systems is provided by the activities of the individuals. These activities are preserved in matter and
provide and enduring yet evolving context within the individuals lives. The material preservation of
praxis insures a kind of cultural inheritance, a basis from which later generations and ages can and
must work”. OWENSBY, Op. Cit., pp. 110-11.
93
econômico que se realiza na compra e venda de exemplares; para além do
cumprimento de um contrato, esse elo tem um lado jurídico e pode ser um
componente das funções profissionais do erudito no contexto administrativo.
Assim a fixação por escrito de cada letra dessa obra é um componente de todos
esses sistemas (...) a ciência abstrata coloca a partir daí um ao lado do outro
esses sistemas entretecidos na realidade efetiva histórico-social. Se o singular,
porém, nasceu em meio a esses sistemas e os encontra por isso contrapostos
como uma objetividade que era anterior a ele, que permanece depois dele e
que atua sobre ele com seus modos de estabelecimento, então eles se
apresentam à imaginação científica como objetividades que se baseiam em si
mesmas. Não apenas a ordenação econômica ou a religião, mesmo a ciência se
encontra como tal imageticamente diante de nós162.
Arte, Religião, Direito, Linguagem, Ciência, Economia, são todos exemplos
concretos de sistemas culturais propostos pelo próprio Dilthey. Como já dito, o que
possibilita a classificação de um determinado sistema como sistema cultural é o fato
de que os indivíduos gozam de relativa liberdade em sua determinação de se
engajar e no modo de atuação dentro destes sistemas. Tais sistemas tem sua
origem mais remota, portanto, em decisões orientadas por fins, fins estes que são
livremente perseguidos pelos indivíduos em cooperação e que não impostos
coercitivamente por instâncias exteriores. Em palavras mais simples: os fins
realmente significativos seriam livremente escolhidos pelos indivíduos.
Mas ora, poder-se-ia questionar com propriedade: certos sistemas de cultura
– por exemplo: Direito e Economia – não se imporiam em relação ao indivíduo de
maneira absolutamente coercitiva? Sua participação no interior destes sistemas
seriam realmente frutos de escolhas livremente determinadas? A pertinência de tal
problemática fora reconhecida pelo próprio Dilthey. Em verdade, não nos furtaremos
de explicitar a resposta oferecida pelo alemão. Entretanto, para uma exposição clara
da posição diltheyana em relação a este importante questionamento, é preciso antes
determinar as características que definem e determinam a organização externa da
sociedade.
O próximo passo do presente esforço tem como escopo justamente a
explicitação e elucidação das características que determinam a organização externa
da sociedade, portanto.
162 DILTHEY, 2010, p.67. Grifo no corpo da citação de nossa autoria.
94
4.3. Da organização externa da sociedade
Diversamente dos sistemas culturais (em que o engajamento inicial, sempre
orientado por valores, é em última instância livremente determinado pelo individuo),
o que caracteriza as estruturas sócio históricas que compõem a organização externa
é justamente o fato de estas estruturas submeterem o indivíduo -
independentemente de sua efetiva vontade - a certas relações de autoridade,
submissão e poder:
Um processo de abstração realizado por toda parte de maneira homogênea cinde
as outras ciências, cujo objeto é a organização externa da sociedade, dessas
ciências que tem por objeto os sistemas da cultura assim como o conteúdo
formado nesses sistemas e que os investigam em uma apreensão histórica, em
teoria e em regulação. Nas ciências dos sistemas da cultura, os elementos
psíquicos são inicialmente apreendidos apenas como ordenados em uma conexão
de fins. Há um modo de consideração diverso deste: um modo que considera a
organização externa da sociedade e, assim, as relações de comunidade, de
vinculação externa, de domínio, de subordinação das vontades na sociedade163.
No mesmo sentido:
Visto objetivamente, nós encontramos os indivíduos ligados uns aos outros na
sociedade não apenas por meio de uma correspondência de suas atividades, não
como seres individuais que repousam em si ou mesmo como seres individuais
entregues uns aos outros a partir da profundidade ética e livre de sua essência. Ao
contrário, essa sociedade forma um contexto de relações de comunidade e
vinculação, nas quais estão inseridas ou por assim dizer coligadas as vontades
dos indivíduos. E, em verdade, uma visualização da sociedade nos mostra de
início uma quantidade imensurável de relações infimamente pequenas,
rapidamente passageiras, nas quais as vontades aparecem como reunidas e em
relações de vinculação164
As possibilidades de atuação no interior destes sistemas são limitadas e pré-
estabelecidas, sendo possível determinar com bastante segurança as condutas e
ações legitimadas pela estrutura mesma da organização. São exemplos históricos
deste tipo de organização - segundo Dilthey - a família, a tribo e o Estado165166.
163 DILTHEY, 2010, pp. 81-82 164 Idem, Ibidem 165 “ But we can see from history that the earliest of all associations, and the richest in content, is the
Family, in which the diverse functions of economic organizations, law, government, and religion
subsist without separation, side by side. By the union of families, wider and wider racial and territorial
95
Todo individuo já se encontra desde sempre no interior da organização
externa da sociedade; sua participação no interior desta - reitere-se - não é fruto de
uma decisão livremente determinada: todo e qualquer indivíduo já nasce em meio a
estas estruturas marcadas pela capacidade em impor limites ao agir, limites estes
que se sustentam mediante sanções de diversas ordens, inclusive167. No interior
destas organizações, o espectro de condutas e de interações possíveis entre os
indivíduos é estabelecido de antemão por leis, regras, relações de poder e
autoridade:
A atividade autônoma consequente dos particulares logo configura associações
para o fomento de suas metas, logo procura e encontra pontos de apoio na
organização presente da sociedade ou é submetida a essa organização mesmo
contra a sua vontade. Por toda parte, no entanto, ela esta efetivamente sob a
condição geral da organização externa da sociedade, que assegura e delimita
groups arise, and the smaller units are taken up into larger ones; while the widest group of all comes
to be invested with what’s is the distinguishing attribute of the State, viz. sovereign power. Family,
tribe and State alike have their roots deep in human nature, and persist through the whole course of
history” HODGES, Op. Cit, p.180.
166 In addition to our voluntary participation in cultural systems, Dilthey points to the Family, tribe, and
state as examples of structures into which we are born and in whose varying rules, customs, and
traditions we have, at least at first, little or no choice about participating (...) Whereas the unity of a
cultural system is based on a goal arising from a common human need, the external organization of
society is a network of volitional or power relations. OWENSBY, op. Cit., p.113.
167 “Dilthey goes on to assert that man is not just a free, calculating being in abstract harmony with
others. He also feels himself subjected to coercive social bonds, which either institutionalize the
spiritual functions of cultural systems or satisfy the deep-rooted instinctual needs of human nature (…)
In the latter context, individuals are bound by a collective will or the hierarchichal relations of power
exhibited in the family, the tribe, and the state. The political bond like the family bond is seen as a
given necessity and not as a contract between autonomous individuals. One finds oneself part of a
family, a tribe, or a state without any rational calculation or justification of its purposes. In addition to
our voluntary participation in cultural systems, Dilthey points to the Family, tribe, and state as
examples of structures into which we are born and in whose varying rules, customs, and traditions we
have, at least at first, little or no choice about participating (...) Whereas the unity of a cultural system
is based on a goal arising from a common human need, the external organization of society is a
network of volitional or power relations” MAKKREEL, Op. Cit., pp.64-65
96
uma margem de manobra para a ação autônoma e consequente dos indivíduos
particulares 168
‘ Todo individuo é investido de uma série de direitos e deveres em função de
sua função na organização. Em outras palavras: indivíduos diferentes podem gozar
de uma série de atribuições em comum que são determinadas pela própria estrutura
funcional da organização (um exemplo possível: dois pais, com biografias,
características físicas, psicológicas e posições sociais distintas, não obstante
conservam um núcleo em comum de atribuições, na medida em que ocupam
determinada posição no interior da organização familiar).
A autoridade da qual o individuo goza sobre outro, por exemplo, é fundada e
justificada pela própria estrutura significativa da organização em si, e não sobre uma
relação particular entre estes indivíduos em específico169. Dilthey, de fato, não
descarta a possibilidade reservada ao individuo de romper com estes laços efetivos
de poder e dominação no decorrer de sua vida. A questão é que não se trata de uma
decisão absolutamente originária: qualquer tomada de posição no sentido de romper
com tais ordenamentos sempre se dá de forma mais ou menos dramática, mediante
grande esforço:
Mesmo a maior elevação da intensidade de uma relação de poder externa é
limitada e pode ser ultrapassada em certas circunstâncias por uma ação contrária.
Pode-se mobilizar alguém que apresenta uma resistência de um lugar para o
outro; mas só poderemos obriga-lo a se dirigir para esse lugar para o outro; mas
só poderemos obrigá-lo a se dirigir para esse lugar se colocarmos em movi mento
um motivo nele, que atua de maneira mais forte do que os motivos que o
determinam a ficar. O elemento quantitativo nessa relação de intensidades, um
elemento cujo resultado é a vinculação externa de uma vontade em uma elevação
até o ponto em que nenhum motivo reativo tem alguma perspectiva de sucesso,
isto é, a compulsão exterior, e o nexo entre essas relações quantitativas com o
168 DILTHEY, 2010, p.70.
169 Individuals, insofar as they participate in the state, the Family, the Corporation, and so forth, have a
specific status in the organization. In this institution the individual is, according to the rules and
structure of the institution, subordinate to or in a position of authority over others to the extent that they
act within the confines of this institution and the status or office as assigned by that institution. But
such power relations are a function of the institution and exist between offices or stations of such
institutions. These relations apply to individuals only in their capacity as a participant in these
institutions, and no individual is completely immersed in any institution OWENSBY, Op. Cit. p.14
97
conceito de uma mecânica da sociedade tornam essa série conceitual uma das
séries mais frutíferas na classe das séries designadas por nós como conceitos de
segunda ordem. Na medida em que uma vontade não está atada externamente,
nós denominamos seu estado de Liberdade170.
Prossegue Dilthey:
A relação volitiva entre domínio e dependência encontra seus limites na esfera
da liberdade exterior; a relação volitiva da comunidade, no fato de um indivíduo
só estar aí por si. À guisa de clareza, pode-se destacar expressamente o
seguinte: totalmente diverso de todas essas relações volitivas extrínsecas é o
processo que emerge das profundezas da liberdade humana, u m processo no
qual uma vontade sacrifica a si mesma parcial ou totalmente, não se une com o
vontade como uma outra vontade, mas se entrega parcialmente como vontade.
Esse lado em uma ação ou em um relação as torna uma vontade ética171.
Esclarecidas estão, em linhas gerais, as características que definem e
distinguem os sistemas culturais da organização externa da sociedade. Fora dito
anteriormente neste mesmo trabalho que uma das principais dificuldades que a
classificação proposta por Dilthey enseja, se refere à possibilidade de classificação
de certas estruturas sob os conceitos propostos: algumas delas parecem conservar
características híbridas, que dificultam sua classificação de maneira univocamente
determinada. Tal dificuldade, de fato, não passou despercebida ao próprio Dilthey.
No intento de responder de forma satisfatória à questão levantada, o alemão
elege o Direito como exemplo de estrutura que parece - prima facie - conservar
características comuns aos sistemas culturais e à organização externa da
sociedade:
Assim, as relações nas quais se encontram os sistemas da cultura e a
organização externa da sociedade na conexão de fins viva do mundo histórico-
social remontam a um fato que constitui a condição de toda ação consequente dos
indivíduos e no qual os dois, sistemas de cultura e organização externa da
sociedade, ainda estão inseparavelmente juntos. Esse fato é o direito. Nele, aquilo
que se dissocia em sistemas da cultura e organização externa da sociedade
encontra-se em uma unidade não separada: assim, o fato do direito esclarece a
natureza da separação que ocorre aqui e das múltiplas relações entre os
elementos separados. No fato do direito, como junto à raiz da convivência social
170 DILTHEY, 2010, pp.86-86. 171 Ibidem, p.88
98
do homem, os sistemas da cultura ainda não estão separados da organização
externa da sociedade172
A estratégia de Dilthey consiste em argumentar que o Direito pressupõe,
como condição de sua possibilidade, duas realidades que atuam reciprocamente e
que só podem ser concebidas em relação mútua. Primeiramente, o Direito como
realidade histórica efetiva não seria possível se não houvesse indivíduos engajados
em ações recíprocas, orientados e livremente determinados a perseguir finalidades e
valores em comum; o fato primordial da consciência de que há o justo em
contraposição ao injusto – embora o conteúdo material daquilo que está em
conformidade com a justiça não possa ser determinado sub species aeternitatis -
não é algo que irrompe apenas em função de uma relação de dominação e
subordinação. A consciência do valor do direito é uma realidade constante que não
se origina de uma imposição externa:
O direito é uma conexão de fins fundada na consciência do direito como um fato
psicológico constantemente atuante. Quem contesta isso cai em contradição com
a descoberta real da história do direito, na qual a crença em uma ordem mais
elevada, a consciência do direito e o direito positivo se encontram em mútua
conexão interna. Ele cai em contradição com a descoberta real da potência viva
da consciência do direito, que se lança para além do direito positivo, sim, que se
contrapõe a ele. Ele mutila a realidade efetiva do direito (tal como ela aparece, por
exemplo, na posição histórica do direito consuetudinário), a fim de poder absorvê-
lo em sua esfera representacional. Assim, o espírito sistemático que tem tão
pouca consciência nas ciências humanas dos limites de sua realização sacrifica
aqui a realidade efetiva plena da exigência abstrata por simplicidade do
desenvolvimento de ideias173.
São estes particulares em relação recíproca que se mantêm como forças
vivas formadoras do direito. A atuação dos diversos indivíduos em conexão de fins
caracterizam os sistemas de cultura, como já dito. Estas relações estabelecidas em
relação a fins cristalizam-se e objetivam-se em instituições contextualmente e
historicamente consolidadas, que acabam por constituir imperativamente todo um
espectro de possibilidades: uma relação de autoridade acaba por se formar,
portanto. Os indivíduos - verdadeiros portadores de uma consciência do justo que se
origina independentemente de qualquer coação externa - desde sempre, porém, já
se encontram no interior de um ordenamento estabelecido, ordenamento este que
172 Ibidem, pp.70-71. 173 Idem, Ibidem.
99
goza de considerável poder e autoridade, e que resta por determinar coercitivamente
as vontades particulares:
Ação livre e regulamentação da atividade, ser-por-si e comunidade encontram-se aqui
mutuamente contrapostos. Esses dois grandes estados de fato, contudo, se encontram,
como tudo na história viva, em relação um com o outro. A atividade autônoma consequente
dos particulares logo configura associações para o fomento de sua metas, logo procura e
encontra pontos de apoio na organização presente a sociedade ou é submetida a essa
organização mesmo contra a sua vontade. Por toda parte, no entanto, ela esta efetivamente
sob a condição geral da organização externa da sociedade, que assegura e delimita uma
margem de manobra para a ação autônoma e consequente dos indivíduos particulares174.
Prossegue Dilthey:
Agora, na medida em que existe essa relação correlativa entre a conexão de fins do direito
e a organização externa da sociedade, o direito como conexão de fins na qual a
consciência do direito é efetiva tem por pressuposto a vontade conjunta, isso é, a vontade
una de todos e o seu domínio sobre uma parte limitada das coisas 175
Por óbvio, os fatos que em sua totalidade compõe a organização externa da
sociedade somente se sustentam na medida em que incorporam e instituem, na
forma de uma vontade superior, os anseios das diversas subjetividades livremente
determinadas:
Agora, na medida em que existe essa relação correlativa entre a conexão de fins
do direito e a organização externa da sociedade, o direito como conexão de fins
na qual a consciência do direito é efetiva tem por pressuposto a vontade conjunta,
isto é, a vontade una de todos e o seu domínio sobre uma parte limitada das
coisas. O princípio teórico de que a conexão de fins do direito, quando o
representamos de maneira hipotética juntamente com a ausência de todo tipo de
vontade conjunta, precisaria ter por consequência o surgimento de uma tal
vontade conjunta não possui nenhum conteúdo utilizável. Ele enuncia o fato de, na
natureza humana, serem efetivas forças e dessas forças estarem em ligação com
a conexão de fins que parte da consciência do direito, forças que essa conexão de
fins conseguiria concomitantemente capturar, a fim de criar os pressupostos para
a sua efetividade (...) O direito só vem à tona sob a forma de imperativos, por detrás dos
quais se encontra uma vontade, que tem por intuito de impô-los. Essa vontade é uma
vontade conjunta, isto é, a vontade uma de um conjunto; ela possui sua sede na
organização externa da sociedade: assim, na comunidade, no Estado, na Igreja176.
A estratégia de Dilthey é clara: o Direito somente pode ser devidamente
compreendido quando considerados estes dois aspectos que - sob a perspectiva da
abstração teórica - caracterizam-no ora como um sistema de cultura, ora como uma
174 Idem, Ibidem. 175 Ibidem, p.72. 176 Ibidem, pp. 72-73.
100
organização externa da sociedade. Como realidade histórico-efetiva, porém, o direito
sempre pressupõe estes dois momentos como condições de sua existência: em
outras palavras, o Direito efetivo sempre é um sistema de cultura (subjetividades em
interação) e uma organização externa da sociedade (objetividade que não se
resume na interação entre indivíduos) em relação íntima, mútua e recíproca.
Pesquisadores que privilegiem exclusivamente o estudo dos usos e costumes que
levam a uma compreensão daquilo que é da ordem do justo em determinado
contexto sócio histórico nunca conseguirão compreender o fenômeno do direito em
sua plenitude, embora tenham como objeto de investigação importante aspecto do
direito. Cometerão erro similar - na mesma medida - aqueles que privilegiarem
apenas o estudo do direito positivo enquanto sistema logicamente ordenado de
proposições normativas177.
Dilthey é bastante claro:
Mesmo visto extrinsecamente, a conexão de fins do direito possui um correlato
com o fato da organização externa da sociedade: os dois fatos nunca se dão
senão um ao lado do outro, um com o outro; e, em verdade, eles não estão
ligados um ao outro como causa e efeito, mas cada um tem o outro como
condição de sua existência. Essa relação é uma das formas mais difíceis e mais
importantes de ligação causal178 (...) Assim, na formação do direito, a vontade
conjunta portadora do direito e a consciência do direito dos particulares atuam
juntas. Esses particulares são e se mantêm como forças vivas formadoras do
direito; em sua consciência do direito baseia-se, por um lado, a configuração do
direito, do mesmo modo que essa configuração depende, por outro lado, da
unidade da vontade que se formou na organização externa da sociedade. Por
177 “The real problem for Dilthey is not so much that of ignoring one kind of structure, as allowing one
to become an accessory of the other. This danger is especially evident in the study of law, where the
subject matter is not easily classifiable. Law can be viewed either as the cultural system of legal theory
establishing such doctrines as natural rights, or as the external organization representing the
codification and enforcement of positive laws. However, Dilthey reminds us that for any individual
there always exists a tension between belief in a higher law and the practical exigency of submitting to
positive law, which requires him to constantly compare the two and correlate them as irreducible
structures. The theoretical attempts either to deduce positive law from natural law, or to inductively
arrive at a higher law by abstracting from different systems of positive law are all misguided. Dilthey
stresses that both the cultural system of law and its external organization “exist side by side, with each
other” MAKKREEL, Op. Cit., p.66
178 Ibidem, pp. 71-72
101
isso, o direito não possui nem completamente as propriedades de uma função da
vontade conjunta nem completamente a função de um sistema da cultura. Ele
unifica propriedades essenciais de duas classes de fatos sociais em si179.
Ainda neste sentido:
De acordo com o que foi desenvolvido, as ciências do direito só podem ser
cindidas das ciências da organização externa da sociedade de uma maneira
imperfeita; pois, no direito, o caráter de um sistema da cultura não pode ser
separado do sistema de um componente da organização externa, e esse sistema
unifica propriedades essenciais das duas classes de fatos sociais em si180
Dilthey estenderá suas análises no que se refere à necessária distinção e
eventual inter-relação dos conceitos propostos - quais sejam: sistema cultural e
organização externa da sociedade - a outras disciplinas. Dedicar-se-á, por exemplo,
a uma intensa análise da ética, particularmente esclarecedora no que se refere à
distinção proposta. Dilthey, de fato, concebe a origem da moral nas diversas
subjetividades que se auto determinam em conexão de fins (a moral, portanto, é um
sistema da cultura) já sempre em relação à objetividade maciça tão característica
dos sistemas éticos (a eticidade é uma organização externa da sociedade). Para
aqueles que têm um mínimo contato com alguns dos mais notórios
desenvolvimentos da Filosofia alemã, não soará estranha a distinção estabelecida
entre moral e eticidade, pois um dos temas recorrentes desta tradição,
principalmente a partir das críticas de Hegel à doutrina kantiana.
Não temos intenção de nos estendermos sobre o assunto, porém. Nossa
intenção foi tão somente traçarmos, da maneira mais meridiana possível, as
considerações diltheyanas quando da relação da psicologia individual com os
sistemas da cultura e a organização externa da sociedade.
4.4. Da relação entre fatos psíquicos de primeira e segunda ordem
Uma das principais tarefas da fundamentação filosófica proposta por Dilthey é
justamente o esclarecimento da íntima relação existente entre os conceitos oriundos
de uma rigorosa investigação psicológica – conceitos psicológicos de primeira ordem
- e aqueles conceitos que Dilthey acaba por denominar “conceitos psicológicos de
179 Ibidem, pp. 73-74
180 Ibidem, p.77
102
segunda ordem”, verdadeiramente fundamentais quando da análise dos diversos
sistemas de cultura:
Podemos inserir agora um outro elo no contexto da argumentação à qual se
dedica a presente análise das ciências particulares do espírito. Os fatos que
formam os sistemas culturais só podem ser estudados por intermédio dos fatos
que são conhecidos pela análise psicológica. Os conceitos e proposições que
constituem a base do conhecimento desses sistemas encontram-se em uma
relação de dependência com os conceitos e proposições que são desenvolvidos
pela psicologia. Mas essa relação é tão confusa que só uma fundamentação
lógica e epistemológica coerente, que parta da posição particular do conhecer
para a realidade efetiva histórica, social, poderá preencher a lacuna que até hoje
existe entre as ciências particulares das unidades psicofísicas e aquelas da
economia política, do direito, da religião entre outras181.
O objeto da psicologia analítica e descritiva é - como já dito - sempre apenas
o indivíduo, que é isolado do contexto vital da realidade efetiva histórico-social. No
que tange ao estudo das diversas ciências particulares, é de toda forma necessário
o emprego de uma série de conceitos que não podem ser construídos mediante um
procedimento dedutivo-inferencial, procedimento este que partiria de uma série de
conceitos de primeira ordem fixados e determinados pela psicologia individual,
procurando, a partir desta base univocamente determinada, derivar estes conceitos
complexos:
A relação das unidades psíquicas com a sociedade não pode ser submetida, por
conseguinte, a nenhuma construção. Categorias como unidade e multiplicidade,
todo e parte, não são utilizáveis em uma construção; mesmo onde a apresentação
não pode prescindir delas, não se pode esquecer que elas tiveram a sua origem
viva na experiência que o indivíduo faz de si mesmo, que elas não podem
encontrar, consequentemente, um esclarecimento em alguma reaplicação junto a
vivência que o indivíduo possui de si mesmo na sociedade que seja maior do que
aquilo que a experiência está em condições de dizer por si mesma182
181 DILTHEY, 2010, pp. 61-6. 182 Ibidem, pp.45-46.
103
Sim, as origens destes conceitos são da ordem do psíquico, e eles
pressupõem como condições verdadeiramente fundamentais aquilo que é desvelado
pela investigação psicológica. No entanto, seu significado e compreensão
pressupõem já sempre o indivíduo em interação com outros indivíduos, em
determinado contexto sócio-histórico183184.
Os conceitos de segunda ordem possuem uma história: a psicologia individual
acaba por ajudar a esclarecer seus significados. Mas estes conceitos possuem um
sentido dado em certo contexto que acaba por iluminar, na mesma medida, como
certos traços fundamentais da consciência humana presentes nos diversos
particulares acabam por se objetivar no decorrer da história. Análise psicológica das
unidades psicofísicas, assim como o estudo das diversas ciências particulares e de
seus conceitos fundamentais, são atividades complementares e que devem ser
articuladas pelo estudioso interessado.
Estes conceitos de segunda ordem são fatos complexos: os aspectos volitivos
– por exemplo - a serem desvelados pela psicologia analítica estão de fato na base
de certos conceitos de segunda ordem essenciais às ciências do espírito
tradicionais, mas o mero aspecto volitivo – por exemplo - alheio ao contexto no
interior do qual interage (determinada estrutura social, por exemplo), não é capaz de
explicar os conceitos e objetivações complexas essenciais aos estudos do cientista
do espírito. Os conceitos de segunda ordem, reitere-se, já sempre pressupõem e se
originam da interação entre indivíduos.
183 “Significantly enough, it is in the context of his discussion of descriptive psychology in Book 1 of the
Einleitung, that Dilthey gives some clues to the nature of his new epistemological perspective. They
appear in a methodological discussion of the relation of so called first-order psychological concepts
about individuals to second order psychological concepts necessary to illuminate the operations of
systems of culture”. MAKKREEL, 1992, p.69.
184 “Although the meaning of thrift, for example, can be fully experienced by an individual, it can be
characterized as a psychological concept only relative to specific economic ends. Any such second-
order psychological concept cannot simply be derived from studying the individual apart from a
consideration of concepst of the cultural systems in which he participates. Descriptive psychology
does not establish these second-orders concepsts and yet from the epistemological standpoint it can
be said to anticipate them”. Ibidem, p.70
104
As palavras de Dilthey são esclarecedoras:
E, em verdade, essas ciências dos sistemas culturais baseiam-se em conteúdos
psíquicos ou psicofísicos e a esses conteúdos correspondem conceitos que são
especificamente diversos daqueles que são empregados pela psicologia individual
e podem, comparados com eles, ser designados como conceitos de segunda
ordem na construção das ciências humanas. Pois a determinação de conteúdo, tal
como ela está estabelecida no elemento da natureza humana sobre o qual se
baseia a conexão final de um sistema, produz na ação recíproca dos indivíduos
sob as condições do todo da natureza, na intensificação histórica, fatos complexos
que se distinguem da própria determinação basilar de conteúdo desenvolvida na
psicologia e que formam o ponto de sustentação para a análise do sistema.
Prossegue o alemão
Assim, o conceito de certeza científica em suas diversas figuras, como convicção
da realidade efetiva na percepção, como evidência no pensamento e como
consciência de necessidade de acordo com o princípio da razão suficiente no
conhecimento, domina toda a teoria da ciência. Assim, os conceitos
psicofísicos de necessidade, caráter econômico, trabalho, valor, entre
outros, formam a base necessária para a análise a ser realizada pela
economia política. E como acontece entre os conceitos, também há do
mesmo modo (segundo a relação que liga conceitos a proposições) entre as
proposições fundamentais dessas ciências e os resultados da antropologia
uma relação, segundo a qual elas podem ser designadas como verdades de
segunda ordem no contexto ascensional das ciências humanas185
Não é diferente quando do estudo daquilo que é da ordem da organização
externa da sociedade; os conceitos complexos essenciais à reflexão sobre as
diversas manifestações caracterizadas pela relação de domínio e dependência
durante a história dependem em larga medida de um esclarecimento psicológico;
não obstante, os conceitos complexos psicológicos de segunda ordem não se
esgotam com a análise da psicologia individual:
Evidentemente, também há nesse âmbito das ciências da organização externa da
sociedade a mesma relação em virtude da qual conceitos e sentenças das
ciências da cultura se mostraram como dependentes dos conceitos e sentenças
da antropologia186.
185 DILTHEY, 2010, p.61. Grifo no corpo da citação de nossa autoria. 186 Ibidem, p.63.
105
Ainda neste sentido, o próprio Dilthey:
(...) na base das duas classes das ciências teóricas da sociedade residem fatos
que só podem ser analisados por intermédio dos conceitos e proposições
psicológicos. Com isso, o centro de todos os problemas de uma tal
fundamentação das ciências humanas é: a possibilidade de um conhecimento das
unidades vitais psíquicas e os limites de um tal conhecimento; trata-se, então, da
ligação do conhecimento psicológico com os fatos de segunda ordem, por meio
dos quais se decide quanto à natureza dessa ciência teórica da sociedade187
Em verdade, Dilthey - no volume publicado da “Introdução às Ciências do
Espírito” - dedica-se com maior afinco ao esclarecimento das bases psicológicas da
organização externa da sociedade quando em comparação às suas reflexões
concernentes às bases psicológicas dos diversos sistemas de cultura. De fato, a
partir do exposto na obra, é possível compreender, ainda que de forma não
conclusiva, como fatos psicológicos de primeira ordem e segunda ordem estão
reciprocamente relacionados. Uma breve exposição das bases psicológicas da
organização externa da sociedade – próximo passo de nosso trabalho, diga-se de
passagem - pretende justamente esclarecer em alguma medida este difícil ponto da
doutrina diltheyana.
É preciso esclarecer, segundo o próprio autor ora em estudo, “os fatos
psíquicos fundamentais, que se encontram na base de todo o tecido social da
organização externa da sociedade por toda parte de maneira uniforme”188:
Dois fatos psíquicos encontram-se por toda parte na base dessa organização
externa da sociedade. De acordo com o dito anteriormente, esses fatos pertencem
aos fatos psíquicos de segunda ordem, que são fundamentais para essas ciências
teóricas particulares da sociedade189.
O primeiro fato psíquico de segunda ordem subjacente à organização externa
da sociedade, segundo o autor, seria uma persistente “consciência de comunidade”,
capaz de ser verificada constantemente através da história, ainda que manifestada
mediante diversas configurações próprias:
O próprio fato, porém, é o seguinte: sempre está associado em algum grau com
relações psíquicas muito diversas entre indivíduos, com a consciência de uma
origem em comum, com o morar junto em um mesmo lugar, com a identidade dos
indivíduos, uma identidade que está fundada em tais relações (pois a diferença
não é um laço comunitário como tal, mas apenas na medida em que permite uma
187 Ibidem, p.83. 188 Ibidem, pp.94-95. 189 ibidem, p.84.
106
interpenetração dos diversos para uma realização, ainda que essa realização se
resuma a um diálogo espirituoso ou a uma impressão refrescante na uniformidade
da vida), com a coordenação múltipla por meio das tarefas e fins estabelecidos na
vida psíquica, com o fato da união, um sentimento de comunidade, uma vez que
esse sentimento não é passível de ser suspenso por meio de uma ação psíquica
oposta190 191
O segundo fato psíquico de segunda ordem subjacente à organização externa
da sociedade é aquele caracterizado pela relação de dominação e dependência
entre vontades:
O outro destes fatos psíquicos e psicofísicos fundamentais para a compreensão
da organização externa da sociedade é formado por meio da relação de
dominação e dependência entre vontades. Tal como a relação comunitária,
mesmo essa relação não é senão relativa; consequentemente, cada associação
também é apenas relativa (...) Na medida em que uma vontade não está atada
externamente, nos denominamos seu estado liberdade192 193
190 Idem, Ibidem
191 “The external organization of society rests on a twofold psychological foundation. First, it is based
on “enduring feelings of belonging together”, which Dilthey explicitly distinguished from a “kaltes
Vorstellen” (cold representation) of social relation (SW, 1:99; GS, 1:47). There is a feeling of
community or solidarity among the individuals involved in such institutions. These relations of authority
are not based on or derived from this feeling of community, which is instead a reflection of the
consciousness of a common heritage and geographical juxtaposition. Participation in these institutions
promotes similarities in individuals and their tasks and goals which are reflected in this feeling of
community or solidarity”. OWENSBY, Op.Cit., p.177.
192 DILTHEY, 2010, pp.85-86
193 “The volitional relation of authority and subjection, “power and dependence among wills”, is the
second concept on which the analysis of the external organization of society relies. These are not,
however, relations of absolute authority between individuals. Dilthey insits that “this relationship too,
like that of community, is only relative” (SW, 1:117; GS, 1:67). These concepts are used in discussion
of the authoritative structure of institutions. Individuals, insofar as they participate in the state, the
family, the corporation, and so forth, have a specific status in that organization. In this institution the
individual is, according to the rules and structure of the institution, subordinate to or in a position of
authority over others to the extent that they act within the confines of this institution and the status or
office as assigned by that institution” OWENSBY, Op. Cit. p.114
107
Estabelecidos estão, portanto, os dois fatos psíquicos de segunda ordem
subjacentes à organização externa da sociedade. Deve-se admitir, porém, que o
esclarecimento da relação entre fatos psíquicos de primeira e segunda ordem resta
ainda longe de ser claro. De fato, a fundamentação, esclarecimento e justificação da
íntima relação existente entre os conceitos psíquicos de primeira e segunda ordem
são tarefas que não poderiam ser ignoradas pela “crítica da razão histórica”, algo
que o próprio Dilthey não tarda a admitir:
Surge em seguida a pergunta sobre em que amplitude a análise desses fatos e
sua recondução a fatos psíquicos de primeira ordem seriam possíveis. Assim,
concluímos então: na base das duas classes das ciências teóricas da sociedade
residem fatos que só podem ser analisados por intermédio dos conceitos e
proposições psicológicos. Com isso, o centro de todos os problemas de uma tal
fundamentação das ciências humanas é: a possibilidade de um conhecimento das
unidades vitais psíquicas e os limites de um tal conhecimento; trata-se, então, da
ligação do conhecimento psicológico com os fatos de segunda ordem, por meio
dos quais se decide quanto à natureza dessa ciência teórica da sociedade.
Ainda neste sentido:
Os fatos psíquicos expostos que são relativos à comunidade, por um lado, e ao
domínio e à dependência, por outro (incluindo aí, naturalmente, a dependência
mútua), fluem como sangue coronariano no mais fino sistema de veias través da
organização externa da sociedade. Todas as relações de associação são,
considerando-se psicologicamente, compostas a partir desses fatos194.
Como bem sabido, Dilthey nunca publicou em vida o segundo volume da
Einleitung, porém. A fundamentação, estruturação e exposição de sua
epistemologia, cujo conteúdo - em tese - poderia ajudar a esclarecer muito dos
problemas até aqui apontados, fora considerado – por longo período – um projeto
que Dilthey teria conscientemente abandonado, muito em razão de uma série de
críticas oriundas de importantes interlocutores. Além disso, uma suposta “virada
hermenêutica” do pensamento diltheyano, fora tida por muitos como indício
inequívoco do abandono de qualquer pretensão do alemão em constituir uma
epistemologia fundamentada em uma psicologia descritiva e analítica.
Sem ser necessário julgar tal questão, o fato é que muitos dos problemas que
permanecerão centrais nas obras tardias de Dilthey já estão conscientemente
elaborados já no período ora em estudo. O presente – e último – capítulo de nosso
trabalho teve como objetivo justamente demonstrar que um dos temas mais
194 DILTHEY, 2010, p.86.
108
complexos do projeto diltheyano já estava delineado com absoluta clareza:
justamente a relação entre individuo e mundo histórico.
109
CONCLUSÃO
Existem aqueles filósofos que, a despeito de suas contribuições
fundamentais, permanecem relativamente desconhecidos do grande público. Não
raramente, mesmo entre os especialistas, seus nomes são apenas sussurrados.
Para piorar, suas ideias - quando apresentadas - por vezes são expostas de maneira
sumária e de forma absolutamente generalista.
Wilhelm Dilthey é um exemplo ideal do que fora afirmado: embora tenha sido
um dos mais representativos pensadores da última metade do século XIX,
verdadeira figura chave no desenvolvimento da filosofia contemporânea, um
interesse mais profundo por seu pensamento permaneceu, por considerável período
do século XX, quase que totalmente restrito a um grupo pequeno (porém fiel) de
discípulos, principalmente nos anos seguintes à sua morte. O caráter aparentemente
fragmentário de sua obra, a amplitude de seus interesses, assim como as
acusações no sentido de que toda sua produção fora marcada pelo relativismo e
pelo irracionalismo, certamente não ajudaram na recepção da obra diltheyana.
Como já dito, mesmo entre aqueles estudos mais detalhados da obra
diltheyana, era corriqueira a ênfase quase que exclusiva sobre suas obras tardias,
especialmente a “Construção do mundo histórico nas ciências humanas”. De fato,
não raramente, o principal objetivo era indicar possíveis antecipações de doutrinas e
de aspectos da fenomenologia e do pensamento de Heidegger. Ressalte-se: não se
pretende negar que Dilthey, especialmente em suas obras tardias, é de fato um elo
fundamental na passagem da filosofia moderna para a filosofia contemporânea. Sem
exagero, é difícil imaginar a corrente contemporânea conhecida como “hermenêutica
filosófica” sem os influxos e contribuições essenciais de Willhelm Dilthey.
A escolha feita por nós em privilegiar o dito período “psicológico” de Dilthey,
porém, tem justamente o objetivo de contribuir com a exposição de uma faceta muito
menos explorada de Dilthey. Ademais, a partir de sua própria doutrina - e este é
certamente um leitmotiv subjacente a todo o trabalho - procuramos iluminar alguns
aspectos do rico contexto cultural alemão nas últimas décadas do século XIX.
Não deixa de ser curioso que a auto percepção de muitos à época indicava
um momento de aridez e de crise da atividade filosófica. Uma visada retrospectiva, a
partir do momento privilegiado do presente, indica justamente o contrário. Tratou-se,
110
antes, de um período riquíssimo e extremamente fértil em ideias, como costumam
ser os momentos de crise, aliás.
Em verdade, Dilthey enfrentou com coragem algumas das mais complexas e
relevantes questões de seu tempo: a derrocada da pretensão da metafísica em
constituir conhecimento necessário, a superação do subjetivismo moderno, a
possibilidade das ciências naturais em responder á certas questões filosóficas, a
historicidade imanente de toda teoria e de toda prática. Todos estes são exemplos
de temas verdadeiramente presentes na obra do alemão.
Historicismo, naturalismo, relativismo. É quase desnecessário dizer que essas
questões, em menor ou maior medida, ainda são as nossas.
111
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