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Fernando Limongi
Governo representativo e democratizao: revendo o debate1
Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 67-91 | jan.-abr. 2015
Contribuies da experincia internacional ao gerenciamento das rendas do petrleo do pr-sal brasileiro
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Fernando LimongiFernando Limongi professor titular da Universidade de So Paulo (USP) e pesquisador do Cebrap/CEM/Neci e bolsista do CNPq. coautor, com Argelina Figueiredo, de Poltica oramentria no presidencialismo de coalizo (Rio de Janeiro, Editora FGV/Konrad Adenauer, 2008); Executivo e legislativo na nova ordem constitucional (Rio de Janeiro, Editora FGV/Fapesp 1999); e, com Adam Przeworski, Michael Alvarez e Jos Antonio Cheibub, de Democracy and Development: Political Institutions and Well-Being in the World, 1950-1990 (New York: Cambridge University Press, 2000).
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Beni Trojbicz
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Resumo Este artigo prope uma releitura do debate sobre a evoluo
poltica do pas. Partindo das teses que sustentam a inviabilidade
ou incompletude da democracia no Brasil, o artigo sugere uma
reviso da forma de entender o processo de democratizao.
Trata-se de revisitar um velho debate cujas origens so traadas
a interpretaes clssicas como o de Victor Nunes Leal e Srgio
Buarque de Holanda.
Palavras-chave: Democracia. Governo representativo. Direitos
civis. Direitos polticos.
AbstractThis paper proposes a new reading of the debate on the countrys
political evolution. Starting from the theses that support the infeasibility
or incompleteness of democracy in Brazil, this paper proposes a review
to understand the democratization process, addressing an old debate
originated with the classical interpretations of Nunes Leal and Sergio
Buarque de Holanda.
Keywords: Democracy. Representative government. Civil rights. Political
rights.
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Governo representativo e democratizao: revendo o debate
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A histria poltica do Brasil pede uma reviso. A forma usual de recons-
titu-la assume que a histria poltica do pas difere radicalmente da tra-
jetria seguida em pases como a Inglaterra, Frana e Estados Unidos. A
herana colonial, a ausncia de uma ruptura efetiva com o passado,
uma varivel chave nas interpretaes cannicas sobre a evoluo do go-
verno representativo e da democracia no pas. Contudo, estudos recentes
sobre a evoluo poltica europeia e norte-americana recomendam uma
reviso da forma usual de entendermos a evoluo poltica do pas. Este
o objetivo deste trabalho.
O governo representativo falseado
Em seu clssico Coronelismo, enxada e voto, Victor Nunes Leal define seu
objeto de estudo da seguinte forma: Concebemos o coronelismo como o
resultado da superposio de formas desenvolvidas de governo represen-
tativo a uma estrutura econmica e social inadequada (LEAL, 1975, p. 20).
Mais que inadequao, teramos uma inviabilidade. O governo represen-
tativo no encontraria no Brasil a realidade social sobre a qual se assen-
tava em outros lugares.
A descrio realista das prticas eleitorais do pas um dos sustentcu-
los da anlise do autor. No essencial, estas prticas teriam experimen-
tado pouca variao ao longo do primeiro sculo de vida independente
do pas. As inmeras reformas da legislao eleitoral feitas no Imprio e
na Primeira Repblica no teriam tido chances de sucesso. O problema
fundamental residiria na ausncia de um eleitorado que apresentasse
as condies exigidas para o funcionamento de um governo represen-
tativo. No teramos, de fato, eleitores, pelo menos no os exigidos para
um funcionamento efetivo do governo representativo. Srgio Buarque de
Holanda argumenta que
Proclamadas com eloquncia, e abraadas aparentemente com sinceri-
dade, as doutrinas revolucionrias foram, assim, condicionadas no Brasil
a fatores que no existiam, ou existiram de maneira diferente, em seus
lugares de origem. [...] Mas se a derrocada do absolutismo e a afirmao
da independncia ajudavam a remoo do obstculo, o certo que no
Introduo1
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poderiam, somente, suprir algumas lacunas srias da organizao pre-
existente. [...] A mais notvel, entre estas lacunas, era a inexistncia de
uma numerosa camada social intermediria entre os grandes senhores
e a parte nfima da populao livre, que pudesse fazer as vezes de classe
mdia. [...] Como entender, com efeito, um sistema representativo digno
desse nome onde faltava o elemento que em toda a parte vinha consti-
tuindo o nervo das democracias? (HOLANDA, 1972, p. 80).
O contraste claramente enunciado nestas duas formulaes. Em certas
sociedades, observa-se a adequao entre a forma e a realidade, entre o
governo representativo e as prticas eleitorais. O Brasil caracterizado ne-
gativamente, pelo que est faltando. A ausncia do elemento fundamen-
tal sobre o qual se assentaria o governo representativo condiciona a sua
adaptao aos trpicos. Adequado na origem, inadequado em sua cpia.
A ausncia, o que faltaria sociedade brasileira, a tal camada intermedi-
ria numerosa, o elemento central da caracterizao. O latifndio, her-
dado do perodo colonial, o obstculo que a independncia no remove,
gera a atrofia. O eleitor nacional tpico, porque dependente do proprie-
trio de terra, no teria vontade autnoma a expressar. Votaria a mando,
expressando a vontade de seus superiores.
Destitudo de eleitores capacitados, o pas no poderia seno experimen-
tar uma verso falseada do governo representativo. Em suas verses mais
extremadas, estes argumentos sublinham o irrealismo de nossas elites
polticas, a falta de percepo destas sobre as condies sociais vigentes
no pas. A insistncia com que as elites nacionais teriam importado
os modelos polticos da Inglaterra, Estados Unidos e Frana seria a prova
de seu irrealismo.
A suposio fundamental deste tipo de viso a de que em certos pases
seriam observadas as condies sociais necessrias para o sucesso do go-
verno representativo. Por l, haveria povo ou classe mdia, a matria ne-
cessria para o funcionamento adequado do governo representativo. Au-
sentes estas condies, a cpia redundaria em farsa. As formas desenvol-
vidas do governo representativo no funcionariam porque fora de lugar.
Se assim for, isto , se aceitarmos as premissas desta crtica, a histria
institucional do Brasil no mereceria estudo. Para entender a evoluo ins-
titucional do governo representativo, o correto seria estudar o que se
passou com o original. Nada de relevante teria tido lugar nestas plagas.
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A experincia do governo representativo no Brasil seria sempre e irre-
mediavelmente marcada pelo atraso, expresso de forma mais clara nas
prticas eleitorais viciadas, em que violncia e fraude campeariam.
Nunes Leal, por exemplo, aps revisar a evoluo da legislao eleitoral
brasileira, conclui:
Atravs de todas essas tentativas, recebidas confiantemente por uns e,
com descrena ou pessimismo por outros, o mecanismo representativo
continuou a revelar deficincias, por vezes graves. [...] Sempre impressio-
nou aos espritos mais lcidos o artificialismo da representao, que era
de modo quase invarivel maciamente governista. Entretanto, a subsis-
tncia de certos vcios exteriores ou formais, notadamente a insincerida-
de da verificao de poderes [...] muito concorria para que se atribussem
os defeitos do nosso regime representativo a fatores de ordem puramen-
te ou predominantemente poltica. Por esse mesmo motivo, a ateno
dos observadores quase sempre se desviava dos fatores econmicos e
sociais, mais profundos, que eram e ainda so [1947], os maiores respon-
sveis pelo governismo e, portanto, pelo falseamento intrnseco da nossa
representao (LEAL, 1973, p. 241).
A transformao da legislao eleitoral brasileira, portanto, teria pouco
interesse: pura reafirmao do artificialismo. As reformas feitas e no
foram poucas seriam apenas a prova do irrealismo de nossas elites,
reafirmando, a cada nova tentativa, a impossibilidade de implantao
de mecanismos representativos no pas. Consequentemente, o debate
institucional nacional seria vazio porque descolado da realidade, por
no atacar o problema de fundo, a realidade social por detrs do voto de
cabresto.
Quando analisada, invariavelmente, a evoluo da legislao eleitoral
brasileira tende a ser vista como a comprovao do elitismo arraigado
das nossas elites, de sua rejeio profunda a qualquer valor democrtico,
expresso em uma constante negao de medidas que ampliassem a par-
ticipao popular. A aprovao da Lei Saraiva em 1881 seria a expresso
mais acabada deste reacionarismo.2 Como se sabe, esta lei levou a uma
drstica reduo do direito ao voto, reduzindo-o a praticamente a 1% da
populao do pas.3
Frise-se a data: 1881. As elites brasileiras optaram por uma reduo do
eleitorado no final do sculo XIX, no momento em que os pases euro-
peus estariam caminhando na direo contrria. Por isto mesmo, quando
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analisa a legislao eleitoral do imprio, Jos Murilo de Carvalho (1988,
p. 140) afirma que no que se refere definio da cidadania, a evoluo
da legislao foi uma involuo.4
O reacionarismo das elites polticas brasileiras no poderia ser maior e
mais completo, como mostrariam os debates parlamentares que acom-
panharam a discusso e a aprovao da Lei Saraiva. Os eleitores pobres
acabaram responsabilizados pelo desvirtuamento das prticas represen-
tativas. Para moralizar as eleies, esta a concluso a que teria chegado
a elite governante brasileira, seria necessrio afastar os pobres das elei-
es, negar-lhes o direito a voto.
Seguindo esta linha de argumentao, a literatura recente tende a afir-
mar o carter anmalo do desenvolvimento poltico brasileiro, sua diver-
gncia em relao ao modelo ocidental clssico representado, por exem-
plo, no conhecido esquema proposto por T. H. Marshall para dar conta da
expanso da cidadania na Inglaterra. Neste tipo de anlise, a nfase recai
sobre a diferena, sobre a especificidade da experincia nacional cujo
resultado ltimo seria uma democracia atrofiada e frgil.
Estas anlises, em geral, carecem ou no so fundamentadas por um
modelo explicativo claro para a emergncia do regime democrtico. A
histria poltica do Brasil continua caracterizada pela negativa, pela au-
sncia, a partir de um contraste a um modelo de desenvolvimento po-
ltico modelar. A referncia a histria poltica da Inglaterra, Frana e
Estados Unidos sem que estas sejam examinadas a fundo. Nas anlises
recentes (CARVALHO, 2005; ODONNEL, 2011; HOLSTON, 2013), o modelo
elaborado por T. H. Marshall para dar conta do caso ingls tomado como
o padro, enquanto o Brasil (ou de forma mais geral, a Amrica Latina)
assume o papel do caso desviante.
Como afirma Jos Murilo de Carvalho (2003, p. 11), a sequncia identifica-
da por Marshall tanto histrica quanto lgica. O ponto de partida define
os degraus seguintes. Os direitos civis, cujo reconhecimento teria se dado
na Inglaterra no sculo XIX, anunciam os direitos polticos e os sociais.
Se todos os membros de uma comunidade poltica so iguais perante a
lei, isto significa que se assume que todos so dotados da capacidade de
tomar as decises, de celebrar contratos, enfim de ser responsveis pe-
los seus prprios atos. Reconhecida esta igualdade fundamental, ento
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apenas um passo aceitar que estes mesmo indivduos tm capacida-
de para participar das decises polticas. A extenso dos direitos pol-
ticos, que viria no sculo XIX, no seria seno o reconhecimento das
consequn cias do primeiro avano. Tratar-se-ia de uma decorrncia his-
trica e lgica. O encadeamento entre um e outro seria necessrio.
A relao entre os direitos polticos e sociais seria da mesma ordem. A
relao seria direta. Se o voto estendido aos mais pobres, ento um
governo que siga a vontade da maioria deve adotar polticas que visem
promoo da igualdade. No mnimo, os mais pobres devem ser prote-
gidos dos azares do mercado. Se o governo com voto da maioria no o
fizer, ento esta no uma democracia efetiva, real. No mximo, pode ser
vista como uma democracia incompleta, atrofiada pela herana histria:
a falta de uma ruptura com o passado no momento de implantao do
direito civil.
Dada a natureza da relao interna entre as fases da expanso da cidada-
nia, isto , dado o carter ao mesmo tempo histrico e lgico da evoluo,
segue que o ponto de partida o passo verdadeiramente fundamental,
do qual os demais so derivados. O ponto de partida define a trajetria
posterior. Como afirma David Held:
A cidadania civil constitui um passo significativo no desenvolvimento
dos direitos polticos; na medida em que o agente individual foi reconhe-
cido como uma pessoa autnoma isto , uma pessoa capaz de refletir e
de tomar decises sobre as condies bsicas da vida foi mais fcil pen-
sar nessa pessoa como, em princpio, sendo capaz de responsabilidade
poltica (HELD, 1995, p. 67 apud ODONNEL, 2011, p. 55).
Se, de fato, o direito civil anuncia sua transformao no sculo seguinte,
se esta pode ser deduzida daquela, ento a democratizao do sistema
poltico ingls no precisa ser investigada. Tratar-se-ia de uma mera con-
sequncia. Nesta explicao, a verdadeira ruptura a anterior, a afirma-
o da cidadania civil, o reconhecimento da autonomia individual, da
capacidade de cada um de tomar decises. Dada esta premissa, o reconhe-
cimento de que todos teriam o direito de participar do processo poltico
uma consequncia direta. O desdobramento ou passagem do civil ao
poltico seria natural e necessrio. Houve resistncias, certo, mas estas
estavam necessariamente fadadas ao fracasso. Seriam menos relevantes
que a marcha inexorvel anunciada pela ruptura anterior.
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Assim, neste tipo de anlise, por paradoxal que possa parecer, a demo-
cratizao no problematizada ou estudada. Democracias emergem
naturalmente das revolues burguesas, da quebra da velha ordem. Se-
pultado o Antigo Regime, o novo florescer. Pode demandar tempo, mas
a evoluo pode ser tomada como certa.
Esta, digamos, seria a rota clssica, aquela que na formulao clssica
de Barrington Moore Jr. (1966) permite combinar modernizao socioe-
conmica e poltica, isto , na qual a modernizao culmina na demo-
cracia representativa. Nos demais casos histricos analisados por Moore,
a ausncia de uma ruptura violenta com o passado feudal condiciona
o desenvolvimento histrico futuro, impossibilitando o nascimento de
governos democrticos.
A equao se revoluo burguesa ento democracia representativa per-
mite que Moore desconsidere a democratizao das sociedades que exa-
mina. Por exemplo, a reconstituio da histria poltica inglesa aban-
donada em 1688. Isto , no interior do modelo explicativo oferecido por
Moore, a Revoluo Gloriosa seria suficiente para estabelecer toda a tra-
jetria subsequente do pas. A primeira reforma estendendo o sufrgio,
contudo, s viria a acontecer um sculo e meio mais tarde, em 1832, aps
longas e acirradas discusses, quando o direito de voto foi estendido a
no mais que 20% da populao adulta masculina. Duas outras reformas
(1867 e 1884) promoveram novas extenses de tal sorte que o direito do
voto havia sido estendido a no mais que 60% da populao adulta mas-
culina no final do sculo XIX. Mulheres e apenas algo como 40% delas
obtm o direito de votar ao final da Primeira Guerra Mundial. O sufrgio
universal s foi adotado na segunda dcada do sculo XX.5
Assim, o perodo histrico olimpicamente omitido por Moore no pe-
queno. Na literatura recente referncias a Barrington Moore e a revolu-
es burguesas so escassas. Abordagens mais recentes tomam a ex-
tenso da cidadania como eixo central para a construo das trajetrias
divergentes. Marshall passou a ocupar o lugar que pertenceu a Moore.
Em lugar da modernizao, o processo de longo prazo subjacente e que
confere sentido s anlises passou a ser a expanso da cidadania. A afir-
mao do princpio da igualdade, no importa se formal, continua a ser
o marco inicial.
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As referncias e variveis mudaram, a estrutura do modelo explicativo
no. O esquema o mesmo. A histria da ampliao da cidadania com-
portaria diferentes rotas, determinadas em ltima anlise pelo momento
fundador ou original da instaurao da igualdade civil. O fundamental
o grau de ruptura com o Antigo Regime e a afirmao da igualdade for-
mal perante a lei. Onde esta ruptura foi para valer, direitos civis e polti-
cos podem ser encadeados. Nas palavras de ODonnel (2011, p. 54):
Quando em algum momento do sculo XIX, a maioria dos pases do No-
roeste adotou democracias no inclusivas, j havia sido atribudo a uma
grande parte da populao masculina uma srie de direitos subjetivos que
regulavam boa parte de suas vidas. Mas estes no eram ainda os di-
reitos polticos da aposta democrtica. Eram direitos civis e subjetivos [...]
quando a plena incluso poltica comeou a ser debatida, nos pases do
Noroeste, j existia um rico repertrio de critrios legalmente elaborados
e sancionados para atribuio de agncia na esfera privada a um grande
nmero de indivduos (em sua maioria homens). Certamente, segundo
os padres contemporneos o alcance destes direitos era muito limitado.
Mas tambm certo que, devido ao processo de atribuio de direitos sub-
jetivos, preparou-se para tornar extensivos cidadania poltica e social.
O modelo explicativo supe o contraste. Os direitos civis, se acompanha-
dos do reconhecimento da autonomia do agente, incluem a aposta de-
mocrtica. Mas os direitos civis podem ser apenas epidrmicos, casos
em que no incluem o reconhecimento pleno dos agentes e, portanto,
no carregam consigo os germes de sua transformao, para usar uma
linguagem datada. As trajetrias histricas dos pases do Noroeste6 e da
Amrica Latina so distintas. O que se pretende explicar a divergncia
presente, a fragilidade ou falta de efetividade dos regimes democrti-
cos na Amrica Ibrica. Como em Nunes Leal e em Srgio Buarque de
Holanda, a ausncia da ruptura histrica atrofia a experincia futura. No
caso da verso contempornea centrada na expanso da desigualdade, a
democracia poltica no gera igualdade social.
As nfases mudam, mas a essncia do modelo no. O que preciso ter
claro que os processos de democratizao dos casos bem-sucedidos
no so objeto de tratamento sistemtico. A evoluo poltica destes
pases deduzida do modelo adotado. Marshall, que no dedica mais
dos que uns poucos pargrafos extenso dos direito do voto, seria sufi-
ciente para caracterizar a democratizao do sistema poltico ingls. Em
103Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 93-123 | jan.-abr. 2015
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outras palavras, a construo do contraste das diferentes rotas trilhadas
altamente dependente da idealizao do que teria sido o processo de
democratizao da Inglaterra, Frana e Estados Unidos.
A contraposio marca estes modelos explicativos. A afirmao de que o
governo representativo no funcionaria adequadamente no Brasil supe a
existncia de seu contrrio, isto , do funcionamento adequado desta for-
ma de governo em determinados pases. Para retornar a Nunes Leal, o au-
tor nos oferece uma viso realista de como de fato funcionam as eleies
no Brasil, como por aqui os princpios do governo representativo so false-
ados. Como afirma: A corrupo eleitoral tem sido um dos mais notrios e
enraizados flagelos do regime representativo no Brasil (LEAL, 1975, p. 240).
O complemento deste realismo a idealizao da operao do governo
representativo alhures. Assume-se, implicitamente, que o que por aqui
se busca, eleies limpas e verazes, teria sido alcanado onde a gran-
de propriedade foi destruda e uma classe mdia numerosa se formou.
E se as eleies so efetivas, para retornar verso contempornea do
argumento, a igualdade social deveria ser uma consequncia da poltica.
Contudo, cabe perguntar: sabemos se funcionou o governo representati-
vo em que haveria uma adequao entre forma poltica e realidade so-
cial? Podemos afirmar que, na origem, as sociedades inglesas, francesas
e norte-americanas eram mais igualitrias que a brasileira (latino-ameri-
canas)? Existem de fato duas experincias histricas com as instituies
representativas, uma falseada e outra verdadeira?
Nunes Leal uma vez mais a referncia inicial. Os termos que emprega
em sua formulao clssica merecem ateno. A referncia ao gover-
no representativo e no democracia. O centro de sua anlise so as
eleies, seu funcionamento, ou melhor, seu desvirtuamento no Brasil
em relao ao modelo. A referncia duplamente importante. Primeiro
porque define de forma clara o ponto de partida ou origem a partir da
qual a reconstituio histrica deve ser empreendida. O ponto de partida
a adoo do governo representativo e no o liberalismo e muito menos
a liberal-democracia. Segundo porque coloca as expectativas acerca das
prticas eleitorais no centro do debate. A anlise das prticas eleitorais
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viciadas experimentadas pelo pas se ampara em uma contraposio, na
expectativa de como elas deveriam funcionar. Mas como afinal deveriam
funcionar eleies? Alm disto, estas expectativas se referem realidade
ou ao modelo? Cabe considerar a hiptese: no estaramos construindo
uma contraposio entre o real e o idealizado? Afinal, sabemos como
evoluiu de fato o governo representativo na Inglaterra, Frana e Esta-
dos Unidos? A omisso de uma anlise detida da histria destes pases,
quando no da pura idealizao de como esta teria transcorrido, est na
base do argumento empregado por Nunes Leal e tantos outros.
Como frisou com propriedade Bernard Manin (1997), o sucedneo dos go-
vernos hereditrios o governo representativo. A caracterstica essencial
do governo representativo o fato de que neste a seleo de lderes se
d por meio de eleies.7 Governantes so eleitos. Ainda que hoje asso-
ciemos eleio democracia, na filosofia poltica clssica, o mtodo de
seleo de governantes identificado com a democracia o sorteio e no
a eleio. Este mtodo especfico, a eleio, como sublinha Manin, sem-
pre foi associado ao governo aristocrtico e sua adoo no momento de
criao do governo representativo se deu com plena conscincia desta
associao.
As consequncias desta associao no devem ser lidas como curiosi-
dades ou provas de ilustrao. O carter aristocrtico das eleies era
conhecido pelos que propuseram sua adoo. Para dizer de outro modo:
seus efeitos no igualitrios pesaram na escolha. Quando eleies passa-
ram a ser usadas para selecionar governantes no se esperava que repre-
sentantes fossem iguais aos representados. Antes o contrrio. A expecta-
tiva dos criadores desta forma de governo era de que eleies levassem
seleo dos melhores, dos mais capacitados, da elite social e cultural.
Caberia a estes governar. Eleies no so igualitrias porque nem to-
dos tm as mesmas chances de serem eleitos e desempenhar funes de
governo. Na origem, portanto, temos uma afirmao clara e explcita da
desigualdade poltica.
Eleies no foram pensadas com um expediente para contornar a im-
possibilidade da deliberao direta, para contornar a impossibilidade
prtica da democracia direta. Os tericos do governo representativo mo-
vem-se, de forma consciente e explcita, na direo contrria demo-
cracia. O governo representativo seria superior democracia justamente
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por recorrer s eleies e, desta forma, garantir que representantes se-
riam selecionados no interior da elite. O governo representativo era para
ser o governo dos melhores. Melhor recorrer a Bernard Manin:
O governo representativo foi institudo com amplo conhecimento de que
os representantes eleitos seriam e deveriam ser cidados distinguidos,
socialmente diferentes do que aqueles que os elegiam. Chamarei este de
o princpio da distino (MANIN, 1997, p. 94, traduo nossa).
Em sua origem, portanto, o apelo a eleies no aspirava criar um corpo
representativo que espelhasse o corpo social. Eleies deveriam levar aos
postos de mandos os mais capacitados, a elite. Basta esta referncia para
questionar uma parte considervel dos estudos sobre o pensamento po-
ltico brasileiro no sculo XIX. O elitismo no especfico ou suficiente
para discriminar o pensamento poltico brasileiro. Os ingleses, franceses
e americanos do perodo eram igualmente elitistas. Neste aspecto, o Bra-
sil no singular.
A superioridade dos eleitos no decorre do voto censitrio. A superiori-
dade esperada tem por referncia um corpo eleitoral restrito. Represen-
tantes devem pertencer a um grupo social superior ao dos seus eleitores.
Medidas especficas foram tomadas com este fim. Isto , no apenas o
voto era censitrio, como tambm o acesso aos cargos eletivos era prote-
gido por exigncias de propriedade, renda e idade.
Dito de outra forma: as exigncias legais para ser candidato eram maio-
res do que as que limitavam o direito ao voto. Assim, necessariamente,
por fora da lei, os ocupantes de cargos pblicos teriam status superior
ao de seus eleitores. Afirma-se desta forma de maneira explcita e clara o
carter no igualitrio do princpio representativo. Em geral, precaues
foram tomadas para garantir que representantes fossem recrutados no
interior de um grupo seleto. O ponto merece ser frisado: a distino fun-
damental embutida no governo representativo diz respeito menos a quem
pode votar do que quem pode exercer o poder. Dito de forma mais direta:
possvel compatibilizar o sufrgio universal ao Governo Representativo.
Tanto a legislao inglesa quanto a francesa regulavam de forma expl-
cita o acesso aos cargos de governo, enquanto os Estados Unidos, por
razes discutidas a seguir, deixou de regular a matria. Vale, uma vez
mais, recorrer a Manin:
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Os limites ao direito de voto nos primrdios do governo representativo
so bem conhecidos []. O que menos notado e estudado, contudo,
que, independente destas restries, existiam ainda um nmero de pro-
vises, arranjos e circunstncias que asseguravam que os eleitos seriam
de um estrato social mais elevado do que o eleitorado. Isto foi obtido de
formas diversas na Inglaterra, Frana e Estados Unidos. De forma geral,
se pode dizer que a superioridade social era garantida na Inglaterra por
uma mistura entre estatutos legais, normas culturais e fatores prticos
enquanto na Frana puramente com base na lei. O caso dos Estados Uni-
dos mais complicado, mas tambm, por isto mesmo, como ser visto,
mais revelador (MANIN, 1997, p. 95).
O reconhecimento desta desigualdade fundamental crucial para uma
reavaliao das origens e desenvolvimento do governo representativo e,
consequentemente, para o surgimento das democracias representativas
contemporneas. O elitismo, ou mais claramente, a negao explcita e
direta da ideia da igualdade poltica est na origem da adoo do governo
representativo. O mtodo de seleo de lderes adotado no igualitrio.
No se esperava, portanto, que governantes fossem iguais aos governados.
Se o governo representativo funcionar de acordo com suas expectativas,
ento, os melhores, os mais aptos governam. Se no for assim, se os mais
capazes no forem selecionados, ento h algo de errado com o processo
eleitoral. A corrupo eleitoral, o desvirtuamento do governo representa-
tivo, se d quando outros critrios que no a capacidade para o exerccio
do poder prevalecem.
Mas de onde vm estas expectativas? Por que se espera que o princpio
da distino opere? Por que o funcionamento regular das eleies leva a
seleo dos superiores socialmente? Uma resposta se encontra na pas-
sagem transcrita anteriormente: por uma combinao entre leis, normas
culturais e fatores prticos. A interao entre estes fatores deve garantir
que o governo representativo leve ao governo das elites.
Tanto na Inglaterra quanto na Frana, precaues legais critrios ex-
plcitos de renda e idade foram tomados para assegurar que apenas os
detentores de propriedade poderiam ser os eleitos.8 Na passagem citada,
contudo, Manin afirma que o caso norte-americano mais revelador jus-
tamente por dispensar precaues desta natureza. Mais especificamen-
te, os Estados Unidos prescindem da interveno das leis para assegurar
que representantes fossem socialmente superiores aos representados.
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A alternativa seguida, contudo, no se deve a uma maior adeso ao credo
democrtico ou aceitao do princpio da igualdade poltica.
Segundo Manin (1997), ao longo dos debates constitucionais na Filadl-
fia, os constituintes foram incapazes de encontrar um critrio legal que
pudesse ser aplicado uniformemente nas 13 ex-colnias. O que seria
um critrio de excluso adequado no Sul seria insuficiente no Nordeste.
Como diz Manin (1997), a heterogeneidade social, geograficamente deli-
mitada, impediu que os constituintes americanos chegassem a um acor-
do neste ponto. Ideologicamente, a maioria era favorvel a uma restrio
censitria tanto do direito ao voto quanto do acesso a cargos pblicos.
Havia desejo de faz-lo, mas foi impossvel encontrar uma condio que
servisse aos propsitos pretendidos. Assim, a regulao da matria foi
deixada aos estados membros.
O caso mais revelador justamente por esta omisso e a confiana obti-
da de que no seria desnecessrio restringir o conjunto de cidados que
poderiam se candidatar a exercer cargos pblicos. Reside a a importn-
cia dos debates entre os federalistas e os antifederalistas.
Os antifederalistas acusam os defensores da nova Constituio de favo-
recer um governo aristocrtico. Afirmam que o modelo proposto faria
com que a distncia social entre representantes e representados seria
enorme. Somente os mais ricos seriam os eleitos. Os crticos da Consti-
tuio falham, contudo, na identificao do mecanismo que produziria
este resultado.
De sua parte, os federalistas, defensores da Constituio, apontam para a
inexistncia de barreiras legais para que representantes e representados
sejam iguais. A Constituio no restringia a cidadania poltica e tam-
pouco regulava quem poderia se candidatar. No havendo restrio, se
os resultados das eleies confirmassem os temores dos antifederalistas,
isto se daria pela livre escolha do povo.
Como mostra Manin, a posio dos federalistas neste debate decorre da
sua confiana no carter aristocrtico das eleies. Restries legais que
discriminassem quem poderia ser eleito no seriam necessrias. Pela sua
prpria natureza, eleies levariam diferenciao entre representantes
e representados. O mecanismo, pela sua natureza, geraria a distino.
Os federalistas confiavam que os mais ricos e destacados socialmente
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Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 93-123 | jan.-abr. 2015
levariam vantagem sobre os demais, sobretudo em distritos amplos. Isto
quanto maior o distrito, quanto mais eleitores fossem necessrios para
eleger um representante, mais relevante a salincia social dos candida-
tos para sua eleio.
A linha de interpretao aberta por Manin, sem exagero algum, revolu-
ciona o entendimento das origens das modernas democracias represen-
tativas. Eleio dos lderes polticos parte de qualquer definio corren-
te de democracia. Contudo, como argumenta Manin, as marcas da ori-
gem no so inteiramente apagadas pelas transformaes que levaram
democratizao do governo representativo. O componente aristocrtico
e no igualitrio inerente eleio, no desaparecendo com a democra-
tizao dos sistemas polticos:
No interior de governos baseados exclusivamente em eleies nem to-
dos os cidados tem as mesmas chance de serem governantes. Os cargos
representativos so reservados para pessoas vistas como superiores ou
para membros das classes mais altas. Governo representativo pode em
certos aspectos se tornar mais popular e democrtico. Ainda assim, ele
reter dimenses aristocrticas no sentido de que aqueles que so eleitos
no seriam similares a aqueles que os elegem, mesmo quando ningum
impedido de competir por cargos eletivos (MANIN, 1997, p. 134).
Assim, a contribuio de Manin vai muito alm do estudo das origens
do governo representativo. A inspirao aristocrtica tem consequncias
para o entendimento das modernas democracias. Muitas das caracters-
ticas constitutivas do governo representativo foram mantidas. Algumas
destas decorrem da natureza do processo eleitoral, outras das definies
do papel dos prprios representantes e seus vnculos com os eleitores,
como ausncia de mandato imperativo ou recall.
Contudo, para os fins deste artigo, estas consequncias so menos im-
portantes que a caracterizao oferecida para entender a primeira apari-
o do governo representativo. O fundamental a reter a consequncia
do trabalho de Bernard Manin para entender tanto o momento original,
para a caracterizao da ruptura poltica operada com o antigo regime,
como tambm para o entendimento do processo de democratizao.
Mais especificamente, cabe retomar a histria poltica da Inglaterra,
Frana e Estados Unidos com novas lentes. O fim do governo hereditrio
no seguido pela afirmao da igualdade poltica. Antes o contrrio.
109Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 93-123 | jan.-abr. 2015
Fernando Limongi
O foco da anlise do processo de democratizao deve ser revisado. Im-
porta menos quem pode votar do que quem pode ser votado.
O governo representativo no pode ser interpretado como uma forma
de governo protodemocrtica,9 da qual teria brotado, por desdobramento
interno, como uma evoluo, a democracia moderna.10 Na origem, no
h uma aposta democrtica ou inclusiva. Os Pais Fundadores do governo
representativo se movem na direo contrria, reafirmando e sustentan-
do teoricamente a distribuio desigual das possibilidades de exercer o
poder. A desigualdade poltica entre os membros da comunidade no se
afirma apenas na restrio ao direito de voto. Ela mais profunda. Na re-
alidade, a extenso do direito de voto menos relevante que a distino
quanto a quem pode exercer o poder.
No se trata, por certo, de equiparar todas as experincias histricas. O
estudo de Bernard Manin chama ateno para a variao da combinao
entre legal provisions, cultural norms, and practical factors para explicar os
processos polticos especficos experimentados pela Inglaterra, Frana e
Estados Unidos. O estudo de nossa histria institucional sob esta pers-
pectiva revelar, por certo, especificidades. Seja como for, porm, o fato
que a perspectiva interpretativa aberta pelo trabalho de Manin fora
uma reviso das noes estabelecidas sobre o ponto de partida trilha-
do pelos pases ocidentais. Na origem, em qualquer lado do Atlntico e
em qualquer hemisfrio, temos uma afirmao explcita da desigualdade
poltica.
Tomar os regimes instaurados no sculo XIX pelo que vieram a se tor-
nar no sculo XX incorrer na falcia do determinismo retrospectivo
(BENDIX, 1964, p.16). O desenvolvimento que estes regimes vieram a ter
no era o esperado. Em muitos aspectos, as modernas democracias se
baseiam em princpios e prticas no previstos pelos criadores do go-
verno representativo. Entender o nascimento das modernas democra-
cias, como estas se desenvolveram a partir do governo representativo,
ocupa novamente posio de destaque na literatura comparada. Assim,
a perspectiva inaugurada por Bernard Manin justifica uma releitura da
experin cia brasileira com o governo representativo. No princpio, todos
eram elitistas. O ponto de partida no a afirmao da igualdade.
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Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 93-123 | jan.-abr. 2015
O ponto de partida, portanto, o governo representativo e no as re-
volues burguesas e/ou afirmao da cidadania civil. Em lugar de to-
mar como dada a existncia de experincias histricas divergentes, cuja
constituio remontaria o momento da queda do Antigo Regime, passa-
mos a ter uma origem comum. Mais que isto, um ponto de partida que
no supe ou contm em embrio a ideia da igualdade entre represen-
tantes e representados.
A literatura latino-americana sequer cogita colocar a experincia poltica
da regio em p de igualdade com a dos pases da regio temperada. A
agenda de pesquisa sobre a histria poltica da regio voltada para ex-
plicar seu desenvolvimento anmalo ou incompleto. No passado recente,
a diferena dos resultados histricos era clara e evidente. A regio era
marcada pela instabilidade poltica e pelo autoritarismo. No presente,
contudo, a divergncia de resultados no mais to evidente. A cena po-
ltica da regio mudou radicalmente nos ltimos tempos. A maioria dos
pases tem regimes democrticos que j deram provas de sua estabilida-
de. Ainda assim, persiste a ideia da inferioridade dos regimes polticos da
regio, cujas democracias seriam marcadas por um dficit de cidadania,
cujo passivo teria comeado a se acumular logo aps a independncia.
A reviso de perspectiva proposta significa rejeitar a tese de que hist-
ria poltica da Inglaterra e do Brasil, ou de forma mais geral, dos pases
avanados e dos atrasados, devam ser tratadas como duas realidades
distintas.11 Posto de forma positiva: os problemas polticos enfrentados
por Inglaterra e Brasil so da mesma ordem. Trata-se de implantar o go-
verno representativo. As trajetrias, ao menos no momento de sua im-
plantao, esto sobrepostas.
Os problemas institucionais brasileiros no devem ser analisados como
problemas enfrentados pela adaptao do governo representativo aos
trpicos, a uma realidade social inspita. A ideia de adaptao ou im-
portao de ideias e instituies precisa ser questionada. H problemas
que so inerentes ao governo representativo e que se manifestam onde
quer que ele tenha sido instaurado. Cabe entender a lgica do governo
representativo e no a de governos liberais. A diferena sutil, mas no
sem consequncias.
Governo representativo e democratizao
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Fernando Limongi
A viso segundo a qual governos liberais precedem governos democr-
ticos e que a diferena essencial entre um e outro a restrio ao su-
frgio que vigoraria no primeiro e no no segundo acaba por minimizar
a ruptura entre governo representativo e a democracia contempornea.
Implicitamente, ao faz-lo, os que adotam esta perspectiva acabam por
negligenciar as caractersticas prprias do governo representativo iden-
tificadas por Manin.
Regimes liberais so geralmente caracterizados como democracias em
gestao, como se o problema por excelncia com que se defrontariam
fosse a regulao do direito do sufrgio. Nesta linha de argumentao,
em ltima anlise, a divergncia entre a experincia poltica inglesa e a
brasileira acaba por se resumir s atitudes das elites diante desse proble-
ma, s respostas divergentes que estas teriam dado presso pela ex-
tenso da igualdade poltica.12 Enquanto a Inglaterra estendeu o sufrgio,
no Brasil o caminho tomado teria sido inverso. Tudo se passa como se
somente nos trpicos as elites polticas tivessem explicitamente negado
a igualdade poltica.
A referncia ao governo representativo altera o foco. Como discutido na
seo precedente, as premissas sobre as quais se assenta esta forma de
governo so manifestamente antidemocrticas. Os pais fundadores des-
ta forma de governo no eram democratas. No eram sequer protodemo-
cratas. Eram declaradamente contrrios igualdade poltica. Vale voltar
uma vez mais a Manin: eleio um mtodo de seleo de lderes no
igualitrio e sua adoo se deu com plena conscincia desta caractersti-
ca. Sabia-se e valorizava-se o fato que nem todos teriam a mesma chance
de exercer o poder. O exerccio do poder ficaria reservado aos membros
da elite.
A restrio ao direito do voto, a defesa do voto censitrio, no , portanto,
produto de uma inconsistncia com o princpio fundamental da igualda-
de que, assim, seria eliminada naturalmente. Por revolucionria e radical
que seja a afirmao da igualdade civil, esta no se estende naturalmen-
te e necessariamente ao campo poltico. Benjamin Constant, ao fazer a
clebre distino entre a liberdade dos antigos e a dos modernos, estava
justamente, como argumenta Rosanvallon (1999, p. 225), estabelecendo
uma separao profunda entre a igualdade civil e poltica. Para os moder-
nos, a segunda no decorreria da primeira.
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Governo representativo e democratizao: revendo o debate
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Como afirma Rivera (2000, p. 31), o liberalismo das elites latino-america-
nas no era mais contrrio democracia e participao popular que o
liberalismo dos pais da moderna repblica liberal. Os regimes criados na
Inglaterra, Estados Unidos e Frana no apenas se assentavam sobre so-
ciedades altamente desiguais do ponto de vista social, como tambm su-
punham que esta mesma desigualdade guiasse a distribuio dos cargos
de poder. Os regimes criados naqueles trs pases eram to oligrquicos
quanto seus pares latino-americanos. As divergncias entre estes dois
mundos, nos campos social e poltico, so menores que as convergncias.
Rivera (2000, p. 37) observa que no se deve assumir que o modelo do
governo representativo tenha vindo ao mundo pronto e acabado, com
respostas para todos os problemas com que viria a se defrontar. Mais do
que isto: no se deve assumir que as falhas e inconsistncias do modelo
teriam se manifestado exclusivamente na Amrica Latina.13 A implan-
tao do modelo conviveu com os mesmos problemas nos dois lados do
Atlntico e nos dois hemisfrios. Desde o ponto de vista institucional,
no cabe falar em divergncia ou rotas. H uma histria comum, a da
evoluo e transformao do governo representativo. Uma histria que
necessariamente turbulenta e errtica em funo das inconsistncias
do modelo original.
O ponto de partida necessrio, portanto, uma caracterizao mais acu-
rada do governo representativo, de seus princpios e forma de funciona-
mento. Tomar a extenso do direito de voto aos mais pobres como o prin-
cipal indicador, quando no o nico, de democratizao acaba por deixar
em segundo plano as transformaes radicais, verdadeiras rupturas, que
marcaram o nascimento da moderna democracia. Dito de forma diversa:
no se deve assumir que o nico e o mais importante desafio institucio-
nal enfrentado pelo governo representativo em sua evoluo tenha sido
a extenso do sufrgio aos mais pobres.
No se pode assumir que os pais fundadores do governo representativo
tenham sido capazes de antecipar todas as vicissitudes prticas com que
o modelo que criaram viria a se defrontar. Na realidade, a incompletu-
de do modelo no tardou a se manifestar. Como argumentou Hofstadter
(1969), o modelo criado no tinha lugar para a constituio de uma opo-
sio legtima ao governo. No tinha lugar no sentido em que no era
possvel acomodar uma oposio legtima aos princpios do governo
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Fernando Limongi
representativo identificados por Bernard Manin. Como afirma Hofstadter
(1969, p. 8, traduo nossa):
A ideia de uma legtima-oposio reconhecida, organizada e livre o sufi-
ciente em suas atividades para ser capaz de retirar do poder o governo
em exerccio, por meios pacficos, uma ideia imensamente sofisticada, e
esta no era uma ideia que os Pais Fundadadores encontraram totalmen-
te desenvolvida e pronta para ser aplicada quando eles comearam sua
experincia com o constitucionalismo republicano em 1788.14
O reconhecimento de uma oposio legtima no se resume e, portanto,
no deve ser confundido como o reconhecimento da liberdade da opi-
nio pblica identificada no modelo de Manin. Como observa Hofstadter
(1969), a liberdade para a crtica poltica se encontrava firmemente esta-
belecida na experincia poltica inglesa e norte-americana, mas o que
era chamado pelos ingleses de
uma oposio formada isto , um grupo de oposio organizado e per-
manente, distinto de um indivduo expressando a sua opinio dentro ou
fora do parlamento ainda ficava aqum da respeitabilidade, e na opi-
nio de muitos recebia a mcula da deslealdade, subverso ou traio
(HOFSTADTER, 1969, p. ix, traduo nossa).
No a liberdade individual que est em jogo. algo mais complexo,
como nota Hofstadter, mais sofisticado, que est em jogo. Vale observar
que o autor est se referindo a uma oposio legtima, constitucional e
responsvel que pretende chegar ao poder por meios eleitorais. Por isto
mesmo, a soluo para esta dificuldade no se d no campo dos valores
ou ideais. No se trata simplesmente de a oposio aderir Constituio,
aceitar as regras do jogo e visar chegar ao poder por meios eleitorais. No
fcil assimilar uma oposio deste tipo.
A histria norte-americana, analisada por Hofstadter, prova-se crucial
para o argumento, uma vez que a dificuldade desta aceitao se ma-
nifesta no interior da elite responsvel pela elaborao e aprovao da
Constituio. Ao longo do governo de John Adams (1796-1800), James
Madison e Alexander Hamilton, que anos antes haviam colaborado na
elaborao dos Federalists Papers, acabam em partidos opostos, o Repu-
blicano e o Federalista respectivamente. Enquanto Madison est entre
os que acusam os federalistas de traidores da causa republicana, de de-
fensores de um governo aristocrtico alinhado com os interesses monar-
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Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 93-123 | jan.-abr. 2015
quistas da Inglaterra, Hamilton est entre os que acreditam que os repu-
blicanos no passariam de democratas extremados, verdadeiros jacobi-
nos que, por isto mesmo, defendiam a Frana e a Revoluo Francesa. Ou
seja, cada um dos partidos nega legitimidade a outro, caracterizando-os
como inimigos da ordem poltica vigente, verdadeiros traidores da ptria,
representantes dos interesses estrangeiros.
Tanto Madison quanto Hamilton, como deixaram claro nas pginas em
que defenderam conjuntamente a ratificao da Constituio que ha-
viam ajudado a elaborar, execravam os partidos polticos, mas isto no os
impediu de participarem ativamente na criao de partidos polticos. O
mais interessante no caso dos dois que tenham liderado partidos dife-
rentes. Jefferson, mesmo tendo afirmado em carta a Thomas Hopinkson
que no iria aos cus se o preo a pagar fosse entrar em um partido,15
no hesitou em fundar um partido para entrar na Casa Branca. Como
mostra Hofstadter (1969), a adaptao das ideias realidade no foi fcil
e tomou tempo. Como indica o mesmo autor, na realidade, esta aceitao
nunca foi completa, justamente porque ela envolve um conflito com o
princpio segundo o qual o critrio para o exerccio do poder a quali-
ficao do candidato e no sua fidelidade e pertencimento a um grupo
poltico qualquer. H, portanto, um conflito entre o princpio da distino
e o partidrio.
A aceitao da oposio responsvel passa por uma questo prtica e
imediata, a saber, o tratamento dispensado pelo governo oposio. Se
os detentores do governo foram legitimamente eleitos, ento como jus-
tificar a contestao de seus atos? Uma vez mais, cabe citar Hofstadter
(1969, p. 87, traduo nossa):
Aqueles que esto no poder tendem a pensar em si prprios no como
membros de um partido que tomou o controle do governo, mas sim como
o governo em si mesmo. Assim, a oposio identificada como uma fac-
o inteiramente destrutiva, como o antigoverno. Suas crticas das poli-
ticas adotadas so tomadas como crticas ao governo. Sua crtica a um
governo particular tomada como a crtica a todo e qualquer governo.
assim identificada a anarquia, subverso e deslealdade.
A oposio ao governo em exerccio naturalmente confundida com
a oposio ao governo em si mesmo. A tendncia a negar legitimidade
aos partidos tem duas mos. O governo tende a ver a oposio como
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subversiva tanto quanto a oposio questiona a integridade dos gover-
nantes. Os governantes, contudo, contam com uma vantagem evidente,
uma vez que justamente por ser governo, controlam o aparato de re-
presso e podem definir os limites da ao da oposio. Os federalistas,
por exemplo, aprovam em 1798, o Alien and Sediction Act, com base
no qual restringem a ao legal da oposio. O seu objetivo era claro:
perseguir e eliminar a oposio. Falharam, mas os seus sucessores, os
republicanos, no. A ascenso de Jefferson ao poder em 1800 leva ao
desaparecimento dos federalistas da cena poltica e a um longo perodo
de governo unipartidrio.
Os princpios do governo representativo no preveem a emergncia de
eleies competitivas. No deveriam ser e, em geral, no eram. Eleitores
deveriam reconhecer os seus superiores. Campanhas e, mesmo, candi-
daturas prvias eram vistas como ilegtimas, quando no proibidas por
medidas legais. Pedir votos seria dar prova de que o pretendente ao car-
go no teria suas qualidades naturalmente reconhecidas pelos eleitores.
Alm disto, se candidatar, aspirar a um cargo pblico era dar mostras de
ambio, de desejo de governar. Exercer um cargo pblico era visto como
um encargo, um nus que comportava colocar o interesse pblico acima
do privado. Virtude era a caracterstica exigida para o exerccio do poder.
Como afirma Hofstadter (1969, p. 47), referindo-se especificamente a
Virgnia no perodo anterior independncia, a sociedade colonial era
uma sociedade estruturada com base na deferncia (a deferential society)
e assim tambm era com sua vida poltica. A implicao para as elei-
es que no sculo XVIII, virginianos no eram eleitos em razo do
grupo ao qual eram associados ou pelo que se propunham a fazer a res-
peito desta ou daquela questo, mas sim porque eles eram quem eram
(HOFSTADTER, 1969, p. 64).
A deferncia dos subordinados para com os socialmente superiores era
a relao crucial sobre a qual se assentavam as expectativas sobre como
as eleies deveriam funcionar. Nestes termos, impossvel dissociar o
voto da submisso socialmente construda. Era justamente isto que se
esperava do eleitor, que consentisse ser governado pelos seus superiores,
que reconhecesse que o papel de governar cabia aos que se destacavam
socialmente. O critrio que eleitores deveriam usar ao votar no deveria
ser poltico, mas sim social.
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Competio eleitoral e partidos polticos no eram partes do modelo ori-
ginal. Mas, como todo cientista politico sabe, tenha ou no lido Schatts-
chneider, a democracia foi criada pelos partidos e impensvel sem eles.
A referncia aos dois eixos da democratizao identificados por Dahl
imediata. A presena de partidos que competem pelo poder, que bus-
cam votos para chegar ao poder, est diretamente associada ao eixo da
contestao. O fato que a movimentao neste eixo tende a ser menos
estudada e analisada do que a ampliao da participao. O processo de
democratizao acaba por ser identificado ampliao da participao.
Ainda assim, competio eleitoral o elemento crucial em qualquer de-
finio de democracia contempornea.
Democratizao, portanto, no se resume a extenso do sufrgio. A difi-
culdade maior decorre da necessidade de encontrar uma frmula insti-
tucional que regule a competio entre os partidos por votos. Trata-se de
um desdobramento no previsto pela teoria. Uma dificuldade que se ma-
nifestou com a mesma fora e intensidade nos Estados Unidos, Inglaterra,
Frana, Brasil, Mxico e assim por diante.
O fato que os pais fundadores do governo tinham expectativas irrea-
listas sobre o funcionamento das eleies. Mas este irrealismo no diz
respeito s expectativas quanto s relaes entre superiores e subordina-
dos. Como o caso norte-americano deixa claro, o problema se manifesta
nas relaes internas elite. O conflito entre republicanos e federalistas
se d no interior da elite e no tem implicaes diretas para a definio
da cidadania poltica. Os lderes de ambos os grupos eram igualmente
membros das elites. O que no estava previsto no era que os membros
das elites no pudessem ter divergncias entre si. O que no estava no
mapa era que levassem suas divergncias aos eleitores, que se organi-
zassem para vencer eleies. Partidos eleitoralmente constitudos no
poderiam existir.
A informalidade que cercava o processo eleitoral garantia que a influn-
cia e o controle social exercidos pelos mais favorecidos se fizessem pre-
sentes na assembleia eleitoral. O processo eleitoral deveria funcionar
como um momento em que os eleitores expressavam sua aquiescncia
para com os representantes, momentos de reafirmao da hierarquia so-
cial, momentos para expresso pblica do consentimento da diferena.
Por isto mesmo, como argumenta John Stuart Mill em Consideraes sobre
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o governo representativo, cuja primeira edio de 1861, no poderia ser
secreto.
Quando eleies funcionam de forma adequada, os mais capazes so elei-
tos. Contudo, a quem cabe o papel de julgar se as escolhas feitas foram
corretas, se de fato os mais qualificados para o exerccio do poder foram os
escolhidos? Como vimos anteriormente, os republicanos, liderados por
Tomas Jefferson e James Madison, acreditavam piamente que os federa-
listas no deveriam merecer a confiana do povo. Foram eleitos, foram
distinguidos com a aprovao popular, mas no deveriam ter sido. Mas
como explicar que as eleies tenham levado a escolhas equivocadas?
Se o poder conferido a homens destitudos da qualificao necessria,
ento o processo eleitoral necessariamente deve ter sido corrompido em
algum ponto. Ou bem houve fraude (alterao dos resultados) ou bem
o povo que participou do processo eleitoral no tinha as qualificaes
necessrias e, desta forma, pode ser corrompido por polticos inescru-
pulosos. Assim, o conflito entre as elites acaba por desaguar no debate
acerca dos critrios para atribuir o direito do voto. Eleitores passveis de
ser objeto de corrupo devem ter seu direito de voto negado.
As elites polticas, quando divididas, s tm uma forma de explicar o
apoio eleitoral obtido por seus adversrios: a corrupo, a influncia ile-
gtima exercida por seus oponentes para granjear a simpatia e confiana
popular. O conflito intraelite, portanto, remete necessariamente ao deba-
te sobre os critrios empregados para definir o direito ao sufrgio.
O eleitorado verdadeiramente qualificado seria aquele dotado da capaci-
dade de distinguir entre os membros da elite econmica aqueles que so
os verdadeiramente virtuosos. O eleitor que falha ao fazer esta distino,
que pauta suas escolhas por critrio diverso, deve ter negado o direito ao
sufrgio. O equvoco da sua escolha prova da sua incapacidade.
Neste modelo, vale insistir no ponto explorando suas consequncias so-
bre outro ngulo, no h lugar para partidos que visem influir nas deci-
ses dos eleitores. Fazer campanhas e procurar arregimentar eleitores
contraria as normas que estruturam as relaes representados-repre-
sentantes. A superioridade que destaca o governante potencial tem que
ser percebida naturalmente pelo eleitor. A relao esperada e legtima
a da deferncia. Aquele que pede votos, que organiza eleitores para
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apoi-lo, implicitamente, reconhece a insuficincia das suas qualifica-
es, recorrendo construo de um elo artificial entre representantes
e representados. Fazer campanha, organizar um partido, dar prova da
motivao facciosa da empreitada, com toda a carga pejorativa que o
termo carrega consigo.
Obviamente, republicanos e federalistas acreditavam que contavam com
os votos do eleitor capacitado e seus adversrios, com o dos desprepa-
rados. A corrupo dos eleitores sempre a arma a que recorrem os
adversrios, os ambiciosos, os que se movem pelos interesses parciais.
Cada uma das partes acredita estar do lado certo, que seu grupo rene os
homens virtuosos, cujo apoio deriva da confiana e deferncia entre as
camadas inferiores.
Ainda que a comparao no seja usual, o fato que a natureza do con-
flito entre federalistas e republicanos a mesma que se verifica entre
conservadores e liberais nos primeiros anos do reinado de dom Pedro II
aps a derrubada do Gabinete da Maioridade pela interveno do Poder
Moderador. Os conservadores justificam a dissoluo da Cmara eleita
em 1840 como uma medida necessria para deter o embate das fac-
es, antes que estas tenham produzido irreparveis estragos ao sis-
tema monrquico constitucional representativo, do qual seriam os de-
fensores legtimos. A dissoluo se impe como uma defesa da ordem
constitucional, porque
A atual Cmara dos Deputados, Senhor, no tem a fora moral indispen-
svel para acreditar e fortalecer entre ns, o sistema representativo. No
pode representar a opinio do Pas porque a expresso da vontade nacio-
nal e das necessidades pblicas somente a pode produzir a liberdade dos
votos (JAVARI, 1989, p. 84).
Os liberais, de sua parte, em Representao enviada ao imperador pela
Cmara Provincial de So Paulo, acusam o Gabinete no poder de trai-
dor, que seus atos estariam pondo em risco a paz do Imprio, a ordem
e a tranquilidade da Provncia e at a segurana do Trono. Os liberais
sustentam que a Lei da Reforma do Cdigo e a criao do Conselho de
Estado seriam obras de uma Legislatura irregular, composta por uma
maioria vendida e, por isto mesmo, em desacordo com a verdadeira
vontade nacional (MARINHO, 1843, p. 307).
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Como se v, cada um dos partidos acusava o outro de deslealdade e des-
respeito Constituio. Conservadores e liberais acreditam que repre-
sentam a vontade nacional, que seriam os vencedores em uma eleio
livre. Segue desta premissa que se derrotados, tal fato s pode ser ex-
plicado pelos expedientes escusos a que recorreram os vencedores. Os
adversrios so facciosos e, por isto, prontos a recorrer corrupo para
chegar ao poder.
Ironicamente, no interior dos princpios do governo representativo, as
influncias que emergem de relaes polticas, ditada pela disputa do
poder, so vistas como ilegtimas. Os homens de partido se movem pela
ambio, pelo desejo de exercer o poder e dele tirar vantagens para si e
para seus seguidores. A influncia legtima aquela que construda no
campo social, anterior portanto poltica. Como sustenta Bernard Manin
(1997, p. 203):
Eleies aparecem como reflexos e expresso de interaes no-polticas.
[...] Estes [os vnculos e interaes] no so gerados pela competio pol-
tica. Antes o contrrio, estes laos constituem recursos preexistentes que
polticos mobilizam em sua luta pelo poder. Representantes, obtiveram
proeminncia em suas comunidades em virtude de seu carter, riqueza,
ou ocupao. Eleies selecionam um tipo particular de elite: os notveis.
Governo representativo comeou como o governo dos notveis.
A anlise da histria poltica brasileira tende a ser reconstituda a partir
do contraste com a histria da Inglaterra, Frana e Estados Unidos. Em
geral, o foco explicativo recai sobre as travas que impediram que o de-
senvolvimento das instituies democrticas seguisse o rumo tomado
naqueles pases. Trata-se de uma explicao calcada sobre o signo da
ausncia, incompletude, divergncia ou anomalia. Em Nunes Leal, o con-
traste toma a forma da contraposio entre a forma corrompida e a n-
tegra do governo representativo. Nas explicaes calcadas no modelo da
expanso da cidadania, a nfase recai sobre a resistncia das elites bra-
sileiras em aceitar iderio da igualdade fundamental entre os homens.
Em ambos os casos, o modelo explicativo se baseia no contraste entre o
real e o idealizado. As referncias histricas aos casos de implantao
Consideraes finais
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plena da democracia so escassas e esquemticas. Na realidade, o mo-
delo das trajetrias divergentes se equivoca quanto ao ponto de partida
da experincia poltica moderna. O ponto de partida o governo repre-
sentativo e a desigualdade politica que eleies supem. Sua evoluo,
portanto, no pode ser traada e apreendida pela extenso do sufrgio. A
emergncia dos partidos e das eleies competitivas marca o advento da
democracia. O caminho no estava traado de antemo e no foi simples
e automtico em nenhum lugar.
Notas
1 Este trabalho foi parcialmente financiado com recursos da Fapesp e do CNPq.
2 Para uma anlise dos debates com nfase no elitismo do liberalismo brasileiro, ver Kinzo (1980).
3 Para uma reviso completa da evoluo da legislao eleitoral brasileira, consultar Nicolau (2012). Para um questionamento da interpretao tradicional sobre a Lei Saraiva, ver Buescu (1981).
4 Ver Carvalho (2003), para uma generalizao do argumento.
5 A falta de linearidade da expanso do direito ao voto nos Estados Unidos, marcada por movimentos cclicos de expanso e retrao, enfatizada por Keyssar (2000). O caso francs e suas inmeras idas e vindas o objeto de estudo de Rosanvallon (1999). Para uma reviso das interpretaes sobre a expanso do sufrgio na Inglaterra, consultar Conacher (1971).
6 Os pases citados como pertencendo ao Noroeste so os mesmos que trilharam a rota clssica de Barrington Moore Jr.
7 Manin apresenta uma caracterizao mais complexa. So quatro os traos distintivos do governo representativo: seleo dos governantes por eleies dentro de intervalos regulares; independncia relativa dos governantes diante dos eleitores; liberdade da opinio pblica e o carter pblico das decises.
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8 Na Inglaterra, as normas e efeitos prticos contribuam decisivamente para assegurar a distino. Do ponto de vista prtico pesavam os custos eleitorais que ficavam a cargo dos candidatos.
9 Wanderley Guilherme dos Santos (2013, p. 13) chama ateno para a ambiguidade que marca a anlise dos governos oligrquicos, vistos ora como antidemocrticos ora como protodemocrticos.
10 Cabe observar: o termo democratizao implica a suposio de um processo evolutivo em que os sistemas polticos se tornam mais democrticos com o tempo.
11 A distino pases desenvolvidos/subdesenvolvidos caiu em desuso em funo de suas conotaes evolucionistas. O tratamento em separado como duas realidades diversas persiste, dando lugar a verdadeiros malabarismos tipolgicos para distinguir as trajetrias dspares. A Amrica Latina pode ser mais facilmente delimitada, por critrios histricos e geogrficos, que o grupo contrastante. Para no incorrer neste tipo de erro, optei por elencar os casos. No fcil encontrar um critrio que coloque Inglaterra, Frana e Estados Unidos em um mesmo grupo.
12 Ter o direito ao voto no implica ter as mesmas chances de exercer o poder. Esta a desigualdade fundamental implicada pela adoo do mtodo eleitoral. A indistino que caracterizaria a democracia, a igualdade entre sditos e soberanos no obtida. Por isto mesmo, o sorteio o mtodo de seleo de lderes associada democracia.
13 Rivera (2000) nota que a reconstituio da histria poltico-institucional da regio, invariavelmente, atribui realidade social inspita todas as dificuldades e tropeos do governo representativo. O modelo institucional, assim, absolvido, como se seus criadores tivessem formulado as respostas para todas as vicissitudes que enfrentaria. O modelo estaria pronto para ser aplicado. Se falha, a culpa do usurio. O corolrio desta viso a ideia da transplantao. O modelo teria sido concebido tendo em vista uma realidade social diversa, mais igualitria, na qual, quando implantado, teria funcionado sem maiores problemas.
14 A traduo de todas as citaes do trabalho de Hofstadter so minhas.
15 A passagem a seguinte: I never submitted the whole system of my opinions to the creed of any party of men whatever, in religion, in philosophy, in politics, or in anything else, where I was capable of thinking for myself. Such an addiction is the last degradation of a free and moral agent. If I could not go to heaven but with a party, I would not go there at all. Thomas Jefferson to Francis Hopkinson, in Writings of Thomas Jefferson, Memorial Editon, Lipscomb and Bergh Editors, Washington DC, Vol. 7 pag 300.
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