Post on 08-Jan-2017
Universidade Federal de São Carlos
Programa de Pós-Graduação em Sociologia
Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos
Justiça Restaurativa e Mediação: experiências inovadoras de administração institucional de conflitos em São Paulo
Jacqueline Sinhoretto
Juliana Tonche
Áudria Ozores
RELATÓRIO DE PESQUISA
2012
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Universidade Federal de São Carlos
Programa de Pós-Graduação em Sociologia
Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos -
GEVAC
Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de
Conflitos
INCT-InEAC
Este RELATÓRIO DE PESQUISA é parte de pesquisa do INCT-InEAC financiada
pela Secretaria da Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça.
Justiça Restaurativa e Mediação: experiências inovadoras de
administração institucional de conflitos em São Paulo
Coordenadora: Jacqueline Sinhoretto
Pesquisadoras: Áudria Ozores e Juliana Tonche
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Sumário Objetivo .......................................................................................................................................................................... 4
Apresentação .................................................................................................................................................................. 4
1. A MEDIAÇÃO JUDICIAL PRÉ-PROCESSUAL NA COMARCA DE SÃO JOÃO DA BOA VISTA .......................................................................................................................................................................................... 5
Histórico institucional e contextualização ............................................................................................................ 5
Representações dos atores institucionais .............................................................................................................. 7
Fluxo dos casos selecionados para as Audiências de Mediação ........................................................................ 8
Perfil dos Mediadores.............................................................................................................................................10
Análise do ritual das audiências de mediação .....................................................................................................11
A perspectiva dos usuários ....................................................................................................................................15
2. JUSTIÇA RESTAURATIVA ...............................................................................................................................19
Institucionalização do programa ..........................................................................................................................19
Representações dos atores institucionais ............................................................................................................22
Fluxo dos casos enviados aos círculos restaurativos .........................................................................................24
O perfil do mediador ou “facilitador de justiça” ...............................................................................................27
Análise dos círculos restaurativos ........................................................................................................................29
A percepção dos usuários ......................................................................................................................................32
-O caso de São Carlos- ...........................................................................................................................................34
3. CÂMARA DE MEDIAÇÃO NOS CENTROS DE INTEGRAÇÃO DA CIDADANIA .....................38
Histórico institucional e contextualização ..........................................................................................................38
Representações dos atores institucionais ............................................................................................................40
O fluxo dos casos atendidos pelos programas de mediação ............................................................................42
Formação, capacitação e remuneração dos mediadores ...................................................................................42
Análise do ritual de administração de conflitos nas sessões da Câmara de Mediação Comunitária..........47
A perspectiva dos usuários ....................................................................................................................................53
Ambiguidade e subalternidade de um meio alternativo de justiça ..................................................................55
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................................................................57
Referências Bibliográficas ..........................................................................................................................................62
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Objetivo Analisar a institucionalização e o funcionamento dos programas de justiça restaurativa e de
mediação judicial na justiça paulista a partir das experiências implantadas em comarcas do
interior do estado, comparando-as entre si e ao programa estadual de Câmaras de Mediação
extrajudicial dos Centros de Integração da Cidadania. Compreender os sentidos atribuídos aos
programas pelos diversos atores envolvidos em sua implementação e pelos usuários que
procuram administrar seus conflitos pelos métodos inovadores. Conhecer a estrutura de
funcionamento dos programas e os métodos de seleção dos casos a serem encaminhados pelo
judiciário aos programas de administração alternativa de conflitos, judiciais e extrajudicial.
Apresentação Este relatório está divido em três partes, que descrevem a pesquisa de campo realizada
nos três programas alternativos de administração de conflitos. Procurou-se organizar os tópicos
para buscar responder às questões iniciais propostas no projeto de pesquisa, principalmente
relativos ao grau de institucionalização dos programas, às representações dos atores
institucionais que os implementam, à percepção dos usuários, à seleção e o fluxo dos casos
atendidos pelos programas, e à formação, capacitação e o perfil dos mediadores.
Ao final, as considerações finais procuram identificar semelhanças e diferenças
importantes entre os três programas e responder às perguntas iniciais para buscar um retrato do
que tem sido a mediação alternativa em programas estatais e judiciais no estado de São Paulo.
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1. A MEDIAÇÃO JUDICIAL PRÉ-PROCESSUAL NA COMARCA DE SÃO JOÃO DA BOA VISTA
O estado de São Paulo possui 644 comarcas e apenas 17,5% aderiram e implantaram a
mediação ou conciliação, posto que a institucionalização de um programa dessa natureza é uma
faculdade do juiz. As audiências de mediação judicial são realizadas no prédio do fórum de São
João da Boa Vista, possuindo sala própria, denominada de setor de mediação. A Mediação
Judicial é desenvolvida por grupos distintos de mediadores, qualificados ou não no saber
jurídico, os quais rivalizam diretamente no campo profissional especializado. Foram realizadas
10 entrevistas com mediadores, com o juiz coordenador do projeto e com 2 funcionários, o
assistente de gabinete do juiz e com a funcionária que administra o setor de mediação, além da
observação de vinte audiências de mediação. A inserção da pesquisadora no campo foi possível
em virtude de fazer parte do campo jurídico atuando como advogada e mediadora há 13 e 5
anos respectivamente.
Histórico institucional e contextualização
O Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo editou o
Provimento n.º 893/04, alterado parcialmente pelo Provimento n.º 953/05, cuja orientação é a
utilização de meios alternativos de administração de conflitos, autorizando a criação e
instalação do Setor de Mediação ou Conciliação, em todas as comarcas do Estado para questões
cíveis que versarem sobre direitos patrimoniais disponíveis, questões de família e da infância e
juventude.
A criação e implantação do setor de mediação nas comarcas do interior é uma iniciativa
dos juízes das comarcas, cabendo assim ao juiz decidir pela sua implantação, e à Presidência
do Tribunal cabe indicar entre os magistrados integrantes do setor, em suas respectivas
Comarcas ou Fóruns, um juiz coordenador e outro adjunto que será responsável pela
administração e o funcionamento do setor. Na comarca de São João da Boa Vista, a iniciativa
de introduzir o setor de mediação foi do juiz da 2ª Vara Cível, juntamente com o juiz do Foro
Distrital de Aguaí.
Assim, mesmo sem lei ordinária que a defina e regulamente em âmbito nacional, o Setor
de Mediação Judicial está sendo implantado nas comarcas do Estado de São Paulo, com a
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finalidade declarada de dinamizar a prestação jurisdicional, no sentindo de diminuir a
morosidade dos processos, a burocratização na gestão destes processos e dar a celeridade
processual.
O Provimento 953/05 estabelece que podem atuar como mediadores – voluntários e não
remunerados – magistrados, membros do Ministério Público e procuradores do Estado,
advogados, estagiários, psicólogos, assistentes sociais, outros profissionais, todos com
experiência, reputação ilibada e vocação para a conciliação, desde que se submetam às
atividades, cursos preparatórios e de reciclagem.
Para viabilizar a implementação, no segundo semestre de 2005, o juiz administrador do
Foro distrital de Aguaí, juntamente com os juízes da comarca de São João da Boa Vista e
Vargem Grande do Sul, trouxeram em parceria com Tribunal de Justiça de São Paulo,
APAMAGIS (Associação Paulista de Magistrados) e o CEBEPEJ (Centro Brasileiro de Estudos
e Pesquisas Judiciais) o curso para a capacitação de mediadores.
O curso de capacitação de mediadores foi realizado e oferecido para qualquer
profissional, com pagamento de uma mensalidade. A divulgação se deu nas faculdades de
direito, casa dos advogados e jornal da região; a duração do curso foi de 36 horas, na sede da
Faculdade de Direito de São João da Boa Vista, com 45 inscritos. Contou com a participação
de juízes e promotores da região, advogados, alunos de direito, policiais, assistente social,
psicólogos e comerciante, os quais, ao final do curso, foram convidados a participar das
audiências de mediação judicial, sendo que 25 deles iniciaram as atividades na comarca de São
João da Boa Vista.
O início foi tímido, com audiências realizadas uma vez por semana, no gabinete do Juiz,
que o adequou para a implantação do setor de mediação, somente com os processos da 2ª Vara
Cível.
Atualmente, o Setor de Mediação São João possui sala própria, uma funcionária publica
foi destinada para administrar as pautas e coordenar as sessões de mediação; a sala do Setor de
Mediação se difere das salas de conciliação do juizado e dos gabinetes dos juízes, as cores das
paredes foram estudadas e repensadas para trazer ao ambiente a sensação de conforto, a mesa
de reunião ao centro e todas as cadeiras, tanto do mediador como das partes, estão no mesmo
nível, o uso do computador para feitura dos termos de audiência é destinado a funcionária
responsável, não existem processos espalhados pela sala, somente os que serão utilizados na
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sessão do dia, a destinação da sala é exclusiva para realização das audiências de mediação das
três varas cíveis da comarca.
As audiências ocorrem somente no período da tarde, de segunda a quinta-feiras, entre
13:30 e 17:00 horas, geralmente entre 4 e 6 audiências por dia, marcadas com intervalo de trinta
minutos, sem a presença do juiz, somente advogados, partes, funcionária e mediadores. Por se
tratar de uma iniciativa não prevista em lei (e que, portanto, não prevê sanção), a participação
dos advogados, bem como das partes citadas não é obrigatória nos procedimentos de mediação
processual. As audiências são designadas pela funcionária que coordena e administra o setor.
A convocação dos mediadores se dá pela disponibilidade do profissional, não havendo um
rodízio entre estes.
Representações dos atores institucionais
A mediação judicial está sendo instituída como uma forma inovadora e alternativa para
a administração dos conflitos judiciais, no entanto, está vinculada ainda à burocracia processual,
enraizada no tradicionalismo do judiciário, conforme será mencionado na análise do fluxo dos
processos judiciais selecionados para a administração alternativa.
Os atores envolvidos no processo de institucionalização da mediação judicial,
advogados, juízes, mediadores e partes, compartilham o diagnóstico da existência de uma crise
da justiça, se dizem cansados das condições desfavoráveis da estrutura litigante do judiciário, e
se revelam portadores de forte espírito corporativo e cooperativo. Sentem-se desbravadores e
inovadores, enfrentando inúmeras dificuldades no campo, como assinalado pelo juiz
coordenador e organizador do setor de mediação judicial:
(...) temos problema inclusive com colegas juízes, promotores, desembargadores,
pessoas mais antigas, ou até novas, que entendem de uma forma que esse tipo de justiça
alternativa que a gente tem fomentado quebra o poder inclusive do juiz. A gente tem na
medida do possível prestado esclarecimentos, parece que os obstáculos se dão mais por
falta de informação do que pelo efeito da causa, primeiramente quando participam
conhecem a causa, a gente mostra dados estatísticos, o sucesso da mediação e as
execuções que sobressaem em termo de acordo é ínfimo, muito melhor que uma
sentença, a partir do momento que eles aceitam participar de alguma coisa, a partir do
segundo momento eles vão minimizando esta resistência e acabam aceitando a gente,
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mas idéia é mais falta de informação do que é na verdade uma sessão de conciliação,
do que é uma mediação. (Juiz)
Os mediadores envolvidos com o projeto de mediação – que são na sua grande maioria
advogados – apesar do voluntarismo, se mostram insatisfeitos com a ausência de colaboração
dos outros advogados e do Poder Judiciário. Apesar de resultados frutíferos, não se sentem
valorizados e tão pouco respeitados na execução da mediação. A percepção de desrespeito
perpassa principalmente a falta de poder simbólico investido na função (autoridade),
diferentemente do que ocorre com os juízes, revelada no não comparecimento dos advogados
às audiências ou a uma atitude de desprestígio da mediação.
Fluxo dos casos selecionados para as Audiências de Mediação
No ano de 2009, as varas cumulativas cíveis de São João da Boa Vista, remeteram ao
setor de mediação 409 processos. Na 2ª vara cível, o juiz responsável pela coordenação
estabeleceu que os processos de natureza familiar deveriam todos ser remetidos para o setor de
mediação. Os de natureza cível e comercial são analisados a partir de critérios estipulados pelo
assistente de gabinete do juiz. Foi observado que os critérios utilizados por este para a realização
da triagem perpassam a análise de quem são os advogados envolvidos no processo, a matéria
envolvida e o que as partes buscam, de modo a selecionar aqueles casos em que a obtenção de
um acordo parece mais favorável, em razão da necessidade de manter as estatísticas do setor de
mediação elevadas. Os resultados são apresentados aos advogados, usuários e ao Tribunal como
forma de convencê-los a aderirem a esta forma de administração de conflitos. A meta estipulada
na comarca é 100% de acordos realizados, e atualmente 60% dos casos atendidos resulta em
acordos.
O trecho de entrevista a seguir ilustra os procedimentos de seleção dos casos enviados
ao setor de mediação:
“Os processos da área de família todos vão para mediação, os da área cível e comercial
não, são peneirados, geralmente as partes envolvidas, porque você pega uma certa
maneira do advogado pensar, não da parte, a maneira do advogado pensar. Você sabe
que aquele advogado é reticente, ele não gosta da mediação,ele briga com a mediadora,
então isso você dá uma segurada, dá uma peneirada antes, deixa o processo dá corrida
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antes, ou a contestação, ai você manda para mediação, ou quando chegou na réplica”.
(Assistente de gabinete).
Os processos de natureza familiar que envolvem menores devem ter a intervenção do
representante do Ministério Público, nos termos da lei processual, contudo, pela observação
notou-se que, ao lançar a cota ministerial, o promotor de justiça sugere, nos casos que entende
adequado, a remessa do processo ao setor de mediação judicial. Nesses casos, se uma das partes
não estiver de acordo, o advogado precisa peticionar ao juiz alegando não ter interesse em
participar da audiência de mediação, requisitando a realização da audiência de conciliação do
rito comum.
Em qualquer fase do processo judicial, por despacho, de ofício ou mediante provocação
das partes, o juiz pode o encaminhar os autos ao Setor de Mediação, onde haverá intimação das
partes via oficial de justiça e os advogados serão intimados através do Diário Oficial para
comparecerem à audiência, mas o comparecimento não é obrigatório.
Todo o tempo passado em campo ouviu-se falar, nas entrevistas e conversas informais,
que a participação na “audiência de mediação” é espontânea. Entende-se por isso que não haja
uma obrigação legal de aceitar o convite à mediação. Porém, toda a terminologia empregada e
a mobilização do aparato judicial indicam outros sinais: a sessão de mediação é chamada de
audiência, as partes são intimidas por um oficial de justiça, com todo o peso simbólico que isso
representa para a parte, os advogados são igualmente intimados. Isso faz com que alguns
advogados tenham dificuldade de explicar a alguns de seus clientes que não é necessário
comparecer e que isto não prejudica o andamento do feito na via judicial.
A recusa em participar da mediação não indica, de modo algum, que a alternativa seja a
adjudicação do processo pelo juiz. Nesse caso, segue-se a audiência de conciliação, para a qual
as partes e os advogados também são intimados e há uma expectativa de que se chegue a um
acordo. Significa que a recusa da mediação implica na proposição da conciliação. E o mesmo
ocorre nos casos em que o acordo não é obtido na audiência de mediação
Porém, o acordo obtido na audiência de mediação tem suas vantagens em termos de
celeridade e simplificação de procedimentos com relação à conciliação. O acordo é levado a
termo e homologado pelo juiz, com anuência do Ministério Público, em se tratando de questões
de família. O trânsito em julgado da sentença é certificado de imediato nos autos, sem a
necessidade de esperar o prazo estipulado em lei. As partes acordam ainda a renúncia do prazo
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para efetuar qualquer recurso, assim como os demais procedimentos judiciais. Todos os
documentos, como expedição de mandado de averbação de separação, certidão de honorários,
ofícios, são efetuados e entregues no mesmo dia, o que não acontece nas audiências de
conciliação pelo rito comum. O trecho de entrevista com um dos mediadores ilustra a
compreensão dessas vantagens:
“Eu sempre digo, tentando convencer os advogados, que é bom a mediação, o resultado
é imediato, o pagamento dele é imediato, a emissão da certidão para ele reaver os
honorários dele, é imediato, caso contrário demora até 7 meses . [...] todos os processos
são arquivados com acordo realizado na mediação. [...] na conciliação não são
arquivados, podem ser sobrestados até cumprimento do acordo” (Mediador)
O acordo realizado na mediação equivale a um título executivo judicial. Se for
descumprido, a parte lesada poderá ajuizar ação de execução de título judicial, pois os processos
são arquivados.
Dos 408 processos encaminhados ao setor de mediação no ano de 2009, 83% foram
processos de natureza familiar, 37% cível e 45% comerciais. Foram obtidos 61% de acordos,
22% destes processos foram enviados para realização da audiência do rito comum, 16%
sobrestados e 1% foram redesignados. O tempo do trâmite processual entre a distribuição do
processo até a data audiência é de 45 a 60 dias aproximadamente.
Dessa forma, constata-se pelos números que os processos são administrados muito
rapidamente quando encaminhados para a mediação judicial pré-processual, e que a maioria
deles resulta num acordo entre as partes. Porém, a pesquisa de campo constatou que esse é um
efeito direto da perspicácia na seleção dos casos, pois os casos enviados à mediação são
cuidadosamente analisados em suas possibilidades de obtenção de acordos rápidos, o que
certamente introduz um viés na análise do ‘sucesso’ da mediação em face de outros métodos
judiciais de administração.
Perfil dos Mediadores
Em grande maioria, os mediadores são advogados. Dos 25 inscritos no setor de
mediação, apenas dois não são advogados, um é comerciante e outro é bacharel em direito. A
média de idade dos mediadores entrevistados está em torno de 40 anos, sendo que o mediador
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mais jovem tem 30 anos, e o mais velho 60. Aproximadamente 36% dos mediadores são do
sexo masculino (nove), e 64% são do sexo feminino (dezesseis). Todos são nomeados pelo Juiz
Coordenador do Setor de Mediação e Conciliação, há obrigatoriedade de comprovação e
realização do curso de capacitação. Os mediadores no setor de mediação judicial atuam em
diferentes áreas de conhecimento. Sua função é voluntária e gratuita, não há qualquer
remuneração ou ajuda de custo paga pelo Poder Público.
Contudo, é nítido o interesse dos advogados no exercício dessa função gratuita. Numa
cidade relativamente pequena (com menos de 200 mil habitantes), é preciso levar em conta que
as relações sociais entre advogados e clientes, entre advogados entre si e entre eles e os juízes
não acontecem num vácuo e não são puramente impessoais. Os advogados mais atuantes no
setor ocupam posições intermediárias em suas carreiras – não são nem iniciantes nem donos de
grandes escritórios. Sua atuação como voluntários na mediação certamente os coloca em
contato com possíveis clientes. E os expõe também à interação com outros colegas de profissão
que ali se apresentam acompanhando os seus clientes.
Mas é na proximidade com os juízes que parece residir o grande interesse desses
advogados em ascensão. Por estarem dentro do fórum, prestando um serviço voluntário,
cumprindo uma responsabilidade da maior importância para a prestação jurisdicional local, os
mediadores gozam de algum prestígio com os juízes e promotores. Não que eles conversem
explicitamente sobre os casos que defendem com os juízes pelos corredores do fórum, nos
intervalos das sessões – isso seria visto como um procedimento anti-ético. Mas eles se tornam
efetivamente mais conhecidos e mais conhecedores das visões e opiniões dos juízes, tornam-se
mais respeitados e acabam por se destacar num mercado em franca expansão e concorrência.
Isso certamente aumenta as suas chances de sucesso nas situações em que estão no fórum
defendendo os interesses de litigação dos seus clientes.
Análise do ritual das audiências de mediação
A participação das partes na audiência de mediação não se trata de uma escolha destas
para a utilização da mediação como forma alternativa de administração de conflitos. Quando
há um conflito a ser resolvido na competência da vara cível, a pessoa interessada tem que
constituir advogado, o qual terá que utilizar todo o aparato judicial, ou seja, deverá ingressar
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com a petição inicial, e esta seguirá para o cartório sorteado para ser autuada, formando um
processo.
A audiência de mediação é realizada no fórum, onde acontecem as demais audiências.
As partes são citadas através de oficial de justiça, estão acompanhadas de seus respectivos
advogados. São recebidas por funcionários do fórum, aguardam a audiência com os demais
usuários.
O mediador reproduz geralmente a forma de vestir do juiz, ou seja, terno e gravata para
os homens, terninho ou figurino social para as mulheres. No início da sessão, os mediadores
explicam às partes conflitantes que não são juízes e estão ali em nome do Tribunal de Justiça.
Através da observação, foi possível perceber que alguns usuários não percebem ou não
entendem que o procedimento realizado não está sendo resolvido pelo juiz, até porque os
usuários escolheram a justiça para solucionar seu conflito, buscaram a nomeação de um
advogado dativo ou constituído e, com isso, esperavam a intervenção estatal através da figura
do juiz.
Se a mediação é uma forma alternativa de se fazer justiça, instituída sob o ideário de
proporcionar às partes conflitantes o diálogo e a possibilidade de resolver seus conflitos por si
mesmas, buscando se diferenciar dos métodos e procedimentos formais da justiça, percebe-se
que na mediação judicial não há um rompimento ou diferenciação com a forma ritualizada,
marcada pelo formalismo e pelo vocabulário próprio utilizado nas audiências realizadas pelo
juiz no rito processual comum.
De acordo com o ideário alternativo proposto pela mediação de conflitos, o mediador
deve atuar como um terceiro imparcial que auxilia o diálogo entre as partes com intuito de
transformar o impasse apresentado, diminuindo a hostilidade, possibilitando o encontro de uma
solução considerada satisfatória pelas próprias partes protagonistas do conflito. O mediador
deve auxiliar na comunicação, na identificação de interesses comuns, deixando livres as partes
para explicarem seus anseios, descontentamentos e angústias, convidando-as para a reflexão
sobre os problemas, as razões por ambas apresentadas, sobre as conseqüências de seus atos e
os possíveis caminhos de resolução das controvérsias (Sales, 2004). Prega-se um diálogo
transformador, um diálogo construtor que venha transformar a relação entre as partes,
rejeitando a lógica de ganhar e perder, evitando o discurso binário (certo ou errado), buscando
a solução construída pelas próprias partes.
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Nas audiências de mediação observadas, no entanto, a atuação dos advogados,
e não dos sujeitos que protagonizam o conflito, é foi determinante para que houvesse a
realização dos acordos. As partes conflitantes nada decidiram e, em geral, pouco ou nada
disseram para construção da resolução de seus conflitos, limitadas a apenas expressaram seu
consentimento.
Na literatura especializada e nos cursos de formação de mediadores, costuma-se
enfatizar a mediação como uma oportunidade de os indivíduos em conflitos poderem falar sobre
seus sentimentos em um ambiente neutro, exercitando a compreensão do ponto de vista da outra
parte por meio da exposição de sua versão dos fatos, com a facilitação do mediador ou
conciliador. Observou-se que, na prática da mediação judicial, esse ideário não se concretiza,
dada a forma altamente padronizada que as sessões assumem e à imitação do ritual de uma
audiência do rito judicial cível. Todo o debate é conduzido pelos advogados, que falam em
nome das partes, orientando-as previamente a não se manifestarem.
“A advogada da mãe perguntou ao pai se ele podia melhorar este valor, ele respondeu
que não dava. O advogado do pai imediatamente diz que a Dra. P. já tinha conversado
com o pai e ele havia dito que este valor já estava difícil para pagar. Pediu licença à
advogada para explicar, argumentou que o filho já tinha uma permanência diária na
residência da avó paterna e que a maior parte dos gastos do filho era suportada pelo pai,
lanchinho da escola etc., assim a proposta era de R$ 170,00.” ( Trecho do diário de
campo)
Vê-se por essa transcrição – representativa do conjunto das observações realizadas –
que a fala é mobilizada exclusivamente pelos advogados e a focalização de todo o debate é em
torno das questões financeiras. O ex-casal não encontra espaço para discutir mais intimamente
questões afetivas, nem para manifestar opiniões sobre o que está sendo argumentado. Muitos
usuários da mediação até não querem mesmo continuar discutindo aspectos pessoais de uma
relação que consideram já esgotada e, por isso, tomam iniciativa de recorrer ao Judiciário como
tática de tornar a negociação mais impessoal e menos desgastante emocionalmente, sobretudo
nos casos decorrentes de divórcio.
Embora o debate ocorra por meio dos advogados e a condução do ritual seja feita por
um mediador que se veste e se expressa com linguagem que o aproximam simbolicamente da
figura do juiz, as audiências de mediação não são tão padronizadas quanto às audiências
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comuns das varas cíveis, pois há a possibilidade do mediador imprimir um “estilo” pessoal e
profissional à circunstância.
Contudo, após observar uma quantidade significativa dessas audiências de mediação,
torna-se clara a existência de uma burocratização, com tempo pré-definido de duração das
sessões (que são agendadas com intervalo de 30 minutos para cada mediador), com pressão da
expectativa dos atores institucionais (o juiz, os funcionários do fórum, os outros mediadores e
até mesmo os advogados) para firmar acordos, inclusive com a veiculação da meta de obter
100% de acordos. A formulação em si dessa meta já indica que a lógica a orientar a condução
da mediação judicial é a do interesse institucional em “desafogar” as varas cíveis, estando fora
de pauta a construção de métodos alternativos de administração de conflitos baseados no
protagonismo dos sujeitos; isto porque define-se de antemão o desfecho desejado, que é o
acordo em todos os casos.
Foi tornando-se cada vez mais nítida, mediante a análise do material recolhido em
campo, que as audiências de mediação, mesmo contemplando adaptações trazidas pelos
mediadores, assemelham-se muito ao ritual das audiências judiciais das varas. Considere-se o
seguinte relato de entrevista com um mediador, advogado de profissão:
“Uma postura que eu adotei na mediação, já que o advogado fala para as partes
que audiência não vale nada, eu procuro vir de gravata, me levanto para receber
e dar boas vindas, buscando uma intimidação, um pouco de respeito, uma
seriedade logo na apresentação, não é desde do início que estou fazendo assim,
é de ver as baixarias que os advogados fazem, dizendo que não serve para nada
e que depois vai ser com juiz, então a gente já toma essa postura.”(Mediador)
A maioria dos mediadores, já socializados na profissão de advogados, não procura
imprimir um sentido alternativo às situações da mediação; justamente ao contrário, utilizam-se
largamente dos minúsculos símbolos da hierarquia e da distinção para se aproximarem o mais
que podem do formato judicial.
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A perspectiva dos usuários
Os usuários entrevistados participaram da audiência de mediação em busca de
resolverem conflitos de natureza familiar, no contexto de processos judiciais nas varas cíveis
como execução de alimentos, regulamentação de guarda, separação judicial.
Foi possível observar que, durante a audiência, não houve um diálogo entre partes
conflitantes, apenas a atuação dos advogados e mediador, sem nenhum protagonismo para a
atuação ou performance dos indivíduos implicados na relação conflitiva. As partes são
previamente orientadas por seus defensores a não se manifestar espontaneamente na audiência
de mediação, a não ser que algo lhes seja perguntado. As possibilidades de acordo, os limites e
tolerâncias são discutidos entre os clientes e os advogados previamente. Na audiência, o
advogado põe em prática aquilo que foi acordado na fase prepatória, mas age de acordo com
sua expertise, traduzindo as demandas em linguagem jurídica e em comportamento condizente
com a situação de uma audiência. Os usuários, ao confiarem nessa expertise, deixam seus
defensores conduzirem a cena e falarem em seu nome.
A maioria dos entrevistados já participou de outras audiências, tanto com o juiz como
com os mediadores, tendo algum conhecimento prévio dos procedimentos da justiça formal.
Por meio das entrevistas foi possível perceber três características que, em geral, são atribuídas
pelos usuários às situações da mediação pré-processual. A primeira é a similitude com a
audiência judicial comum, como foi relatado:
“a audiência com o mediador é igual com a do juiz, no tempo, na forma de tentativa e
segue um protocolo, que tudo é muito parecido. Na outra audiência que teve de
mediação fui pressionada pelo mediador a realizar um acordo e inclusive me senti
humilhada pela forma da insistência do mediador e acabei assinando o acordo pela
pressão” (usuária 1)
Essa similitude é marcada pela sensação de distanciamento entre o usuário e os
operadores jurídicos profissionais. Está bem distante do ideário de autonomia, protagonismo e
autocomposição dos conflitos que costuma justificar a mediação como uma alternativa ao
tratamento judicial do conflito. Para um conjunto de usuários, nenhuma diferença é notada em
relação ao rito clássico. Dentro desse conjunto, porém, destacam-se as percepções muito
negativas da mediação, por contraste a experiências anteriores (ou até experiências
imaginadas): ela aparece como uma forma piorada de imposição da vontade de um terceiro,
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expressa em sentimento de humilhação e pressão; o mediador é caracterizado como insistente
e desrespeitoso em relação à opinião da parte que move o processo em busca de um direito que
acredita deter. A percepção não é de alargamento e facilitação do acesso, mas de restrição e
constrangimento.
A segunda característica é o desconhecimento ou engano, trata-se da circunstância em
que o usuário não percebe que a audiência não está sendo conduzida pelo juiz, ou quando é
confrontado com essa informação durante a situação da entrevista, responde acreditar que se
trata então de uma etapa preliminar que culminará necessariamente com a análise do seu caso
pelo juiz.
“Não sabia que a audiência não era com o juiz, achei que fosse o juiz, porque tudo é
igual” (usuário 2)
“Acreditava que a pessoa que estava ajudando era uma promotora, que estava
organizando tudo, observando, para depois falar ao juiz o que foi feito na audiência.”
(usuária 3)
Nesse segundo grupo também não cabe falar em protagonismo ou em autocomposição
das partes na gestão de seus interesses em conflito, pois sequer o participante tem à sua
disposição as informações mais elementares para uma atuação consciente e refletida. Eles
também não são capazes de perceber a mediação como um procedimento alternativo à justiça
comum. Ela, no máximo, lhes parece uma etapa preparatória de um processo que culmina com
a decisão do juiz.
O terceiro grupo é marcado pela percepção da parcialidade do procedimento, relatado
da seguinte forma:
“A mediação é como a justiça do trabalho com empregador, porque a mediadora estava
do lado da mulher, a mãe tem sempre uma vantagem, por ser a mediadora uma mulher,
por ela (mediadora) ser mãe, envolve um pouco de sentimento, não é só o profissional,
não fica só na barreira do profissional, envolve sentimento” (usuário 4)
“Os mediadores não estão preparados, que se fosse um homem entenderia a minha
situação, por 2 anos paguei a pensão sem regularizar no judiciário, deixei o trabalho
para deixar tudo certinho e não consegui! Porque mesmo a mediadora percebendo a
vaidade dela (mãe da criança que move o processo de alimentos), ela não insistiu para
17
fazer acordo e agora vou ter que voltar aqui tudo de novo, um ambiente que não gosto
de estar.” (usuário 5)
Para este último grupo de opiniões e atitudes, a mediação é percebida como uma forma
diferenciada da justiça formal, porém também em sentido negativo, pois a mediação é percebida
como menos profissionalizada, parcial, em que questões de gênero e identificação social entre
a mediadora e as mulheres que movem as ações de alimentos contaminam a justiça do
procedimento. Não é a mesma coisa que estar diante do juiz, pois na mediação é percebida uma
predisposição a favorecer um lado, uma posição no conflito, que é a posição feminina e materna.
A tendência da percepção dos usuários, portanto, é de não perceber a mediação pré-
processual como um método alternativo de administração de conflitos. E existe a percepção de
diferença, a tendência é de avaliação negativa, decorrente da percepção de parcialidade e falta
de isenção do mediador diante das partes em conflito.
Dessa forma, a obtenção de acordos – indicador utilizado na auto-avaliação do programa
– nem sempre indica a satisfação dos usuários que assinam o acordo. Em uma parcela dos casos,
o assinatura do acordo significa uma desistência da parte em prosseguir no litígio devido à
percepção de que não está sendo tratado com igualdade e imparcialidade e, que não tem chances
equitativas de sucesso, se prosseguir.
Quando a assinatura do acordo equivale à desistência, a avaliação da mediação – e por
decorrência de todo o sistema judicial, da qual ela é uma etapa de seleção – revela-se negativa.
As entrevistas com os usuários mostraram que muito antes de ser um procedimento
voltado aos interesses dos usuários, a mediação é um interesse da administração judicial,
preocupada em reduzir o número de processos tramitando nas varas cíveis, mediante a
“conquista” de acordos que encerram os processos, mesmo que os usuários fiquem insatisfeitos.
***
Da avaliação geral dos dados coletados por entrevistas e observações em campo, pode-
se perceber que a mediação judicial pré-processual nada tem de alternativa à administração dos
conflitos pela via judicial. Ela é antes uma forma subalterna, um procedimento que se constitui
numa etapa praticamente obrigatória para os casos selecionados pela administração das varas.
É uma forma subalterna porque presidida pela lógica da administração judicial, que busca
primordialmente reduzir o número de processos tramitando nas varas e acelerar o tempo dessa
18
tramitação. Subalterna também em vista do rito da audiência, que mimetiza o da audiência
judicial clássica, sem espaço para o protagonismo dos indivíduos e para a expressão de outras
lógicas e elementos que não sejam a resolução jurídica do processo mediante um acordo
expedito, presidido pelos profissionais do direito.
19
2. JUSTIÇA RESTAURATIVA
Compõem esta parte do relatório final uma descrição e esforço de compreensão dos
contextos das cidades de São Caetano do Sul (SP) e São Carlos (SP) em relação aos seus
programas de atendimento aos adolescentes em conflito com a lei. Para tanto, foram realizados
trabalhos de campo nas duas cidades, entrevistas com envolvidos na aplicação dos programas,
presença em círculos restaurativos (em São Caetano do Sul) e discusssão com a bibliografia do
tema.
Em São Caetano do Sul existe um programa de justiça restaurativa que vem funcionando
desde 2005, este programa que inicialmente visava atender casos escolares, conflitos entre
alunos e casos de bullying1, passou a atender também a comunidade. Já em São Carlos houve a
proposta de se agregar a justiça restaurativa ao trabalho que o NAI (Núcleo de Atendimento
Integrado) vinha realizando na cidade. A proposta, entretanto, não obteve adesão e este relatório
indica os motivos disto. Além dessa situação, a inauguração de uma unidade da Fundação Casa
veio a abalar as estruturas deste campo que se criou em torno da questão do adolescente autor
de ato infracional no município, o presente relatório aponta algumas indisposições que se
seguiram e que inviabilizam ainda mais o ressurgimento da questão da justiça restaurativa no
local.
Institucionalização do programa
A justiça restaurativa é um método alternativo de resolução de conflitos que vem sendo
utilizada por diversos países desde a década de 80. África do Sul, Canadá, Austrália, Reino
Unido, Argentina e Nova Zelândia são alguns dos países que já utilizam este modelo. Ela vem
recebendo incentivos de diversas organizações mundiais como a ONU – o Conselho Econômico
e Social das Nações Unidas recomendou em 2002 aos seus países membros a utilização desse
1 O bullying é um termo de origem inglesa -ainda não há tradução para o português- utilizado para descrever violências físicas ou morais que geralmente ocorrem em ambientes escolares. Pode ser definido, em linhas gerais, como uma atitude agressiva e intencional dirigida repetitivamente a um indivíduo ou grupo a partir de ma relação desigual de poder. Para mais informações: http://www.bullying.org/.
20
tipo de mediação (Resolução 12/2002) – e a própria Escola Paulista da Magistratura criou um
curso sobre o tema.
Sucintamente é possível dizer que ela é composta de um procedimento, geralmente
denominado círculo restaurativo, em que o infrator se responsabiliza pelo ato cometido,
reparando-o. O foco neste caso, ao contrário do modelo de justiça comum que se centra no ato
da quebra da lei por parte do ofensor (Melo, 2005) é a restauração dos danos e laços sociais que
foram rompidos, dando especial atenção às necessidades da vítima, que não são só materiais, e
os resultados que atingiram indiretamente a comunidade. Então, segundo este modelo, o
infrator, mais um mediador, que pode ser um membro treinado da comunidade, a vítima e às
vezes mais pessoas da família ou comunidade participam ativa e coletivamente na construção
de soluções para o problema (Gomes Pinto, 2005). É um procedimento que tenta romper com
as hierarquias ao mesmo tempo em que dá a oportunidade de a vítima ter uma participação mais
ativa no processo.
Em 2005 foram inaugurados no Brasil três programas piloto de justiça restaurativa.
Estes programas se desenvolveram em: São Caetano do Sul (São Paulo) com foco na área da
infância e juventude e integração com o sistema público educacional; Núcleo Bandeirante
(Distrito Federal) atuando no Juizado Especial Criminal e Rio Grande do Sul (Porto Alegre)
onde vem sendo aplicado na Vara de Execuções de Medidas Sócio-Educativas na área de
infância e juventude. Eles tiveram o apoio do PNUD, Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento e Secretaria da Reforma do Judiciário. Além disso, existe um projeto
aprovado de expansão do modelo para mais dez cidades do interior paulista como Presidente
Prudente, São José dos Campos, Atibaia, Bragança Paulista e Campinas, (nas duas últimas
cidades já se iniciaram atividades de articulação entre o modelo de justiça e educação, numa
parceria com as escolas, tal como acontece em São Caetano do Sul, como veremos mais
adiante), além das duas iniciativas na capital, em Guarulhos e Heliópolis. Essas extensões
contaram com o apoio financeiro do Ministério da Educação que repassou verbas do Fundo
Nacional de Desenvolvimento de Educação (FNDE) à Secretaria de Estado da Educação de São
Paulo, via Fundação para o Desenvolvimento da Educação (FDE).
O programa em São Caetano do Sul conta com o apoio institucional do Tribunal de
Justiça do Estado. Ele tem se desenvolvido a partir de uma parceria do Judiciário com as escolas
e conta com a participação da Vara da Infância e da Juventude do município. Nos países em
que os projetos de justiça restaurativa estão em fase mais avançada, chegam a ser atendidos
21
casos de maior potencial ofensivo. Aqui no Brasil, entretanto, a atenção maior é dada aos casos
de menor potencial ofensivo2, que envolvem, geralmente, jovens em situações de conflito nas
escolas e problemas na comunidade, entre vizinhos e na família.
Especificamente sobre São Caetano do Sul, fazendo um retrospecto do desenvolvimento
do programa nessa cidade3, temos que, numa primeira etapa, o foco do projeto estava nas
escolas e nos adolescentes em conflito com a lei sob o título: “Justiça e Educação: parceria
para a cidadania”. As mediações ocorriam, além das escolas, no Fórum e no Conselho Tutelar.
Dessa forma, em meados de 2005, o juiz da área na cidade mobilizou parceiros no Judiciário
para a concretização do projeto: a Secretaria de Estado da Educação, que por sua vez autorizou
a diretoria de Ensino de São Bernardo do Campo (responsável pelas escolas de São Caetano do
Sul), o Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente, o Conselho Tutelar, o
Conselho Municipal de Segurança, o Cartório da Infância e da Juventude, dentre outros órgãos.
Outros importantes parceiros nesse processo são o constantemente citado CECIP - Centro de
Criação de Imagem Popular e a APS Internacional da Holanda, ambas ONGs, elas colaboram
com o projeto na fase de treinamento dos futuros mediadores.
Nesse primeiro movimento do programa na cidade foram três os principais pontos, ou
objetivos: primeiramente evitar o encaminhamento de casos escolares para os trâmites judiciais
criminais, em segundo lugar atuar no âmbito do Fórum realizando círculos neste espaço e em
terceiro e último lugar fortalecer a rede de atendimento que atua sobre o adolescente autor de
ato infracional.
O segundo movimento do projeto em São Caetano do Sul foi a ampliação do escopo da
administração dos conflitos sob o paradigma restaurativo para a comunidade em geral.
Instaurou-se então o 2º Piloto na Comarca: “Restaurando Justiça na Família e na Vizinhança:
Justiça Restaurativa e Comunitária no bairro Nova Gerty”. Nova Gerty é considerado um dos
bairros com maior concentração de episódios de violência na cidade. Ali os círculos são
2 As infrações de menor potencial ofensivo correspondem às condutas prescritas no Código Penal para as quais a condenação prevista é inferior a dois anos de privação de liberdade ou pagamento de multas. Autores como Azevedo (2001) apontam para os significados embutidos em termos como “delito de menor potencial ofensivo” tentando indicar na verdade o descaso do sistema judicial para com certas demandas. (Azevedo, Rodrigo G. de. A informalização da Justiça Penal no Brasil. Civitas- Revista de Ciências Sociais. Ano 1, n°2, dez. de 2001) 3 Os dados para essa explanação foram recolhidos do livro Justiça Restaurativa e Comunitária em São Caetano do Sul: Aprendendo com os conflitos a respeitar direitos e promover cidadania. Melo, Eduardo R; Ednir, Madza; Yazbek, Vania C. Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República. Rio de Janeiro: CECIP. 2008. 192p.
22
realizados no espaço da Escola Estadual Padre Alexandre Grigoli e visavam, inicialmente,
atender conflitos domésticos e de vizinhança numa parceria com a Guarda Municipal, Polícia
Militar e Programa de Saúde da Família. A iniciativa de justiça comunitária contou também
com o apoio da Prefeitura do município.
A partir então do chamado terceiro movimento do projeto em São Caetano do Sul a
preocupação volta-se com o aperfeiçoamento do programa e melhor articulação ou adequação
entre seus principais órgãos ou atores, ou mesmo melhoras nos atendimentos prestados e nas
capacitações para aqueles engajados no projeto.
Um dado importante, sempre ressaltado pelos incentivadores do paradigma restaurativo,
alude para o fato de que o projeto ganha consistência na medida em que dois dos coordenadores
de projetos de justiça restaurativas no país, em São Caetano do Sul e Porto Alegre são membros
da ABMP - Associação Brasileira de Magistrados e Promotores de Justiça e Defensoria Pública
da Infância e Juventude, além disso, os dois foram presidentes da associação.
Representações dos atores institucionais
Não obstante a justiça restaurativa estar fundamentada no resgate de antigas práticas de
mediação de conflitos, na Nova Zelândia, por exemplo, ela foi pensada a partir dos círculos
realizados pelos maoris, povo originário, na resolução de conflitos que atingiam a comunidade,
e hoje a prática é contemplada em sua Carta Constitucional, a justiça restaurativa chega ao
Brasil como inovação. E não só como inovação, mas talvez como uma das melhores inovações,
tanto do ponto de vista qualitativo, por atentar para aspectos que o modelo retributivo teria
deixado de lado, como quantitativo, pois poderia ajudar a desentravar os canais oficiais de
acesso à justiça pela população.
Segundo aqueles engajados na aplicação da justiça restaurativa no país, ter entrado em
contato com a pauta e seus valores é uma situação que reverberou para outras dimensões de
suas vidas, o lado mais pessoal, de relacionamentos e a profissão que exercem além do tempo
dedicado ao funcionamento dos programas. Mais do que isso, algumas declarações obtidas em
entrevistas pela pesquisadora, sugerem que a própria disponibilização para atuar num programa
desse cunho já seria indicativa de que se trata de um profissional com uma visão diferente, mais
humana do que aqueles mais vinculados à ortodoxia da profissão:
23
“Também eu entendo que não tem como você entrar num caminho desse, numa proposta
dessa se você também não rever seus valores não estar se questionando, se
problematizando e mudando também. (...) o fato de você estar defendendo uma bandeira
dessas de cultura de paz, já te faz diferente”. (juiz entrevistado envolvido com a
aplicação da justiça restaurativa em Heliópolis)
Os entusiastas do novo modelo em geral apontaram como o conhecimento que tiveram
do método mudou sua atuação profissional por possibilitar ampliar a visão que se tinha do
conflito. Como apontado em entrevista por um promotor envolvido à época na implantação do
programa em São Caetano do Sul, passa-se de um solucionador do problema para um
encaminhador de soluções, já que as propostas devem vir das próprias partes, intentando-se,
desse modo, uma responsabilização por parte do ofensor ao mesmo tempo em que se traz para
toda a comunidade em geral essa sensação de envolvimento.
“(...) sai daquela coisa de gabinete, inclusive muito legal porque muda o olhar da gente,
profissionalmente a gente mudou muito a forma de ver as coisas com o trabalho
restaurativo...mudou muito mesmo, forma de abordar a pessoa, de abordar nosso
trabalho, de encaminhar os casos, não se ver mais como o resolvedor do problema e sim
encaminhador de soluções que são das partes e não nossa”. (Promotor de justiça)
Mais especificamente entre os operadores do Direito, a idéia é de que poderia haver uma
relação de complementaridade entre os modelos retributivo e alternativo de maneira que o
primeiro passe a se beneficiar dos aspectos positivos que a justiça restaurativa traz, como por
exemplo, esse olhar mais humano. Uma preocupação que fica bastante clara entre os redatores
do relatório do ILANUD, consultado pela pesquisa, sobre os três programas piloto é que a
justiça restaurativa poderia colaborar para uma mudança na percepção das pessoas sobre aquilo
que entendem como justiça em geral, ou mais especificamente o Judiciário e suas de vias de
acesso pela população, em especial a de baixa renda. Nesse sentido, a justiça restaurativa
poderia proporcionar uma mudança positiva tendo em vista o alto grau de insatisfação dessa
população com o modelo atual, ela poderia agregar ganhos na percepção destas pessoas por
atentar para aspectos que ficaram “de lado” segundo o modelo oficial.
“Essa atenção que se dá pra vítima ela é muito importante e isso traz de volta aquela
sensação, pra vítima, de que a justiça foi feita e a justiça tradicional nem sempre cumpre
24
essas necessidades mesmo que a pena seja cumprida seja executada, certamente como
está previsto”. (Promotora entrevistada de São Caetano do Sul)
O principal ponto, neste caso, se refere à participação da vítima que se viu excluída do
processo desde que o Estado assumiu a função de repressão ao ato contrário à lei.
Fluxo dos casos enviados aos círculos restaurativos
É possível dizer que o programa em São Caetano se divide em duas frentes: a primeira
delas, que está atualmente bastante fragilizada, diz respeito à realização de círculos
restaurativos no próprio ambiente escolar, conduzidos por professores(as) ou diretores (as) que
foram capacitados para tratar de problemas entre alunos e funcionários da escola; já a segunda
frente se refere à realização de círculos no próprio ambiente do fórum, o que parece ser uma
situação que se procura evitar, por este não ser o lugar mais adequado para a realização do
procedimento. Apesar de todas as escolas da rede pública de São Caetano do Sul terem sido
capacitadas para lidarem com seus problemas segundo o paradigma restaurativo, hoje todos os
casos envolvendo alunos e conflitos da comunidade são tratados numa sala dentro da Escola
Estadual Padre Alexandre Grigoli. Alguns círculos acontecem também no espaço do Fórum,
como citado anteriormente, e começam a ser atendidos casos no bairro Prosperidade, de
localização mais distante em relação aos demais bairros. Independente do local de realização,
todos os casos passam pelo crivo do juiz da área na cidade – são resolvidos na E. E. Padre
Alexandre Grigoli casos que já vem com sua indicação e, mesmo aqueles que se originaram na
escola sem necessariamente se constituírem enquanto matéria para processo criminal, vão para
o judiciário: depois da realização do acordo pós-círculo, o juiz ou promotor neste caso não
aplica pena e dá seu fechamento.
Acontece eventualmente de alguma das partes não comparecer ao círculo marcado ou
de não desejar participar, nestes casos, segundo os mediadores, o círculo não acontece, já que
as pessoas devem participar voluntariamente. Mesmo para os casos que recebem a indicação
do juiz, ressaltam, é dada a oportunidade de optarem pela justiça restaurativa ou prosseguirem
nos trâmites oficiais. Todos os integrantes do projeto entrevistados nesta localidade afirmam
que potenciais participantes dificilmente se recusam a integrar o círculo depois que conhecem
mais sobre a justiça restaurativa. Mas, se num caso enviado pelo Fórum, uma das partes não
comparecer, como relatado em entrevista, a ausência é comunicada ao juiz e aí ele pode não
25
mais “convidar” e sim “convocar” a pessoa a comparecer e participar do círculo novamente ou
não, de modo que a decisão passa a ser, portanto, do magistrado.
Esquema interpretativo do fluxo do programa:
JUSTIÇA RESTAURATIVA
A - Conflito na escola � círculos restaurativos no ambiente escolar � homologação judicial do acordo
B – Conflito � Vara IJ � círculos restaurativos � homologação judicial do acordo
C - Círculo restaurativo infrutífero ou ausência de uma ou de ambas as partes � o juiz pode determinar
a realização de novo círculo e intimar as partes para comparecimento OU adjudicar o processo
Tipos de casos mais freqüentes: conflitos na escola, problemas envolvendo adolescentes
Cabe aqui uma observação em relação à proclamada voluntariedade dos participantes.
É possível, na verdade, questionar esta voluntariedade já que, pela observação presencial de
círculos em São Caetano do Sul, pôde-se notar sempre um discurso das facilitadoras4, logo
antes de começar o procedimento, dirigido aos participantes, e sobretudo ao ofensor, que diz
que a participação no círculo é uma chance que lhe foi dada (pelo juiz), a ser aproveitada. Ou
seja: é voluntário realmente se a justiça restaurativa sempre se apresenta como a opção mais
vantajosa? Nos casos envolvendo adolescentes, é sempre pontuado como positivo o uso do
procedimento restaurativo, em razão de não resultar em registro na ficha criminal. Para melhor
ilustrar o argumento, serão utilizadas as anotações do diário de campo relativo a um círculo
restaurativo (16/10/10) envolvendo três adolescentes estudantes de um colégio público do
município; o conflito entre elas se deveu a uma briga em que a vítima saiu ferida; ele expressa
de forma geral a dinâmica dos demais círculos presenciados:
“Como das outras vezes, antes de começar a mediação, a facilitadora reafirma o peso do
círculo. Como ela de antemão já espera um maior descaso da população por ser uma maneira
informal de resolução de conflitos, sem a presença do juiz e numa escola em vez do fórum5,
ela usa a associação da justiça restaurativa com o modelo formal para que as pessoas se
comprometam mais. Então ela diz que o círculo tem o mesmo peso, que não é porque é
informal que não é preciso levar a sério, que tudo ia ser repassado pro juiz: a presença delas,
4 Essa é a forma como os mediadores se autodenominam: facilitadores de justiça. 5 Uma facilitadora admite que às vezes se depara com alguma manifestação de desconfiança da população: “Aí quando vê que a coisa tem o respaldo do juiz muda a figura, mas no começo às vezes por ser numa escola: ‘Ah, mas é aqui?”
26
a ausência da outra parte (a vítima e sua mãe não compareceram) e o possível acordo. Mais
uma vez, como também já presenciei em outros círculos, a facilitadora alude às meninas de
ter sido dada uma chance pra elas pelo juiz, de resolverem o caso de uma forma mais branda
e que, caso se envolvessem em problemas de novo, iriam ‘puxar a ficha’ delas e ver que já
se envolveram em conflitos anteriormente. Aí provavelmente não poderiam mais resolver
os problemas de acordo com a justiça restaurativa, teria que ser segundo as formas
convencionais que, por sua vez, poderiam resultar em penas de medidas sócio educativas,
pagamento de cestas básicas e trabalho voluntário, como também poderiam em última
instância ir para a Fundação Casa. Nas palavras da facilitadora: ‘como a gente já sabe quem
entra lá dificilmente se recupera, se entra 10% sai de lá 100%”.
Desde o início do programa até dezembro de 2007 foram realizados 260 círculos
restaurativos e ela tornou-se parte da política de atendimento dos adolescentes em conflito com
a lei com resolução do Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente. Segundo
Melo (2008), em três anos de projeto, mais de mil pessoas foram atendidas com índices de
acordo de cerca de 88% e destes, 96% foram cumpridos. Esses dados puderam ser reunidos já
que são preenchidos formulários em todos os círculos. Como a pesquisadora pôde observar,
nestes papéis constam informações a respeito da natureza do conflito, dados mais específicos
sobre os envolvidos na questão e qual foi o desfecho do caso, se houve acordo ou não. Segundo
informações recolhidas junto ao coordenador do projeto, não houve uma sistematização dos
dados referentes aos últimos dezoito meses do projeto. Nesse sentido, também é importante
fazer a ressalva de que não são todos os finais de semana que são atendidos casos, o número
deles pode variar mês a mês, o que torna difícil fazer uma estimativa que se aproxime da
realidade do funcionamento do programa.
Quando indagadas a respeito dos resultados do programa na cidade, duas facilitadoras
argumentaram que ainda que não recebam em mãos dados mais quantitativos como índices,
porcentagens, estatísticas, elas percebem os efeitos positivos de seu trabalho na própria
interação com a população atendida. Elas frisam que sempre recebem comentários elogiando a
forma de resolução restaurativa. Em contrapartida, é preciso fazer a ressalva de que em diversos
momentos do trabalho de campo, a pesquisadora pôde notar algum grau de insatisfação da
população em participar do procedimento. Entre as razões, aponto o fato de a maioria dos casos
serem justamente conflitos escolares considerados pelos mesmos como casos de menor
importância. Além disso, existe também o desconforto de ter que deslocar até o local, que não
tem a legitimidade do Fórum, muitos precisam faltar ao trabalho para acompanhar seus filhos.
27
Este quadro acaba por gerar comentários como este, feito durante a realização de um círculo
presenciado: “ah, se tiver que vir de novo eu não venho mais não!” Em muitos casos, é preciso
realizar mais de um círculo, isto pode acontecer pelo tipo de conflito, sua gravidade ou pela
ausência de uma das partes, o que é bastante comum.
O perfil do mediador ou “facilitador de justiça”
Não é preciso ser um profissional da área do Direito para atuar nos círculos
restaurativos, qualquer pessoa da comunidade pode realizar a tarefa desde que tenha sido
treinada para isso. Foram capacitados para conduzir círculos em São Caetano do Sul agentes de
saúde, aposentados, jornalistas, psicólogos, advogados, professores, entre outros profissionais
de diversas áreas. O perfil do mediador no local diverge bastante, já que o curso para
capacitação foi divulgado em associações de terceira idade e igrejas. Entretanto, o número de
interessados em participar do programa como facilitadores tem diminuído, como os relatos dos
entrevistados mostram: se à época da instalação do projeto cerca de 30 pessoas participaram da
primeira capacitação, ocorrida em julho de 2006 e ainda em março de 2008 mais doze ou quinze
pessoas foram capacitadas (entre os entrevistados não há certeza quanto ao número exato),
atualmente o projeto conta com apenas seis facilitadores, destes apenas três são facilitadores
fixos, isto é, vão todas as quartas e sábados, e os demais vão esporadicamente para ajudar. O
limitado número de facilitadores de justiça atuantes na cidade hoje se reveza para dar
continuidade aos plantões que acontecem na escola, as quartas à noite e aos sábado o dia todo.
Nesses plantões são realizados agendamentos de círculo, os círculos propriamente ditos e o
“pós-círculo” (as três partes componentes do método). Porém, foi observado pela pesquisa que
não há atividade em todos os dias programados.
As técnicas empregadas nas mediações diferem entre si, ou seja, os círculos realizados
nas escolas contam com um respaldo teórico e técnico diferente daquele utilizado para
resolução de conflitos na comunidade. Nas escolas, a técnica empregada é a da Comunicação
Não Violenta, ela seria mais adequada neste ambiente por estimular o diálogo entre as partes.
Já para o atendimento da comunidade, a técnica escolhida é aquela oriunda dos exemplos sul-
africanos de mediação chamada Zwelethemba; isso se deu já que, neste último tipo, o enfoque
reside menos nas necessidades e responsabilidades individuais privilegiando, portanto, a
mudança comunitária (Melo; Ednir; Yazbek. 2008). De acordo com facilitadoras de justiça da
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cidade, a primeira capacitação, realizada em julho de 2006 contou com maior número de
participantes, foi mais extensa e privilegiou o modelo Zwelethemba; a segunda capacitação,
feita em março de 2008, contou com menor número de participantes, foi mais rápida e compacta
e focalizou a Comunicação Não Violenta.
Um facilitador entrevistado (jornalista) afirma que o principal motivo para a desistência
da maior parte dos facilitadores é a falta de remuneração. Ele acredita que estas pessoas estavam
interessadas somente no dinheiro que um projeto de tal envergadura poderia trazer, elas
estariam interessadas num emprego público e numa remuneração que, segundo ele, já tinha
percebido que não viria, o que também não seria adequado, em sua opinião, por tratar-se de um
trabalho de caráter essencialmente voluntário. Houve uma cisão entre os facilitadores e grande
parte deixou o trabalho. Outras facilitadoras entrevistadas endossam o ponto de vista deste
facilitador, mas especificaram em entrevista e conversas informais as divergências ocorridas.
Afirmaram que realmente havia interesse por parte de algumas pessoas em receber remuneração
pelo trabalho, mas como os benefícios não vinham, não se sentiam obrigados a honrar o
compromisso: “eu vou quando quero”. Já em relação à segunda capacitação, as pessoas teriam
abandonado o projeto porque não se sentiram motivadas. Diante da situação instaurada pelos
participantes da primeira capacitação, afirmaram que para a segunda o juiz “prometeu”
certificados, melhorias, o que de fato não houve.
Segundo os elaboradores do projeto6 e, como confirmam as entrevistas realizadas com
quatro facilitadores em São Caetano do Sul, os objetivos principais do programa hoje dizem
respeito à maior institucionalização, com a proposta de reconhecimento formal das atividades
dos facilitadores de justiça em ambiente escolar, e elaboração de um plano de carreira para eles
dentro do projeto restaurativo no âmbito da Secretaria de Justiça e da Educação. Acredita-se
que essa proposta é uma tentativa de angariar mais facilitadores para o projeto, pois, como foi
possível verificar, os depoimentos dos facilitadores remanescentes indicam que grande parte
daqueles capacitados no projeto abandonaram o programa por não receberem remuneração ou
outros benefícios.
Mesmo com as dificuldades, cabe ressaltar que nenhuma das três facilitadoras que
restaram no projeto tem planos de abandonar o trabalho, pelo contrário, os relatos mostram que,
6 Esses dados constam no livro Justiça Restaurativa e Comunitária em São Caetano do Sul: Aprendendo com os conflitos a respeitar direitos e promover cidadania. Melo, Eduardo R; Ednir, Madza; Yazbek, Vania C. Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República. Rio de Janeiro: CECIP. 2008. 192p.
29
apesar dos custos, elas se sentem realizadas exercendo o trabalho de mediadoras e mostram
também grande admiração pelo juiz responsável pela implantação do projeto, não tendo,
portanto, nenhuma intenção de abandoná-lo. Uma das três facilitadoras a que me refiro é
aposentada, as outras duas são mãe (agente de saúde) e filha (estudante de pedagogia), mas a
filha normalmente só assiste a condução dos círculos feita pela mãe, sem interferir.
Outra questão que surgiu em entrevista diz respeito ao fato de a justiça restaurativa no
país estar muito centrada na figura de seus idealizadores. No caso de São Caetano do Sul, se o
juiz da área na cidade já era apontado como pessoa fundamental no programa, agora a atuação
das facilitadoras que restaram se torna essencial. Os facilitadores assumem: se uma delas parar
com seu trabalho voluntário, o programa pode acabar.
Além das entrevistas, a observação dos círculos restaurativos em São Caetano do Sul
foi fundamental para captar como se dá a operacionalização do programa, isto é, como ele
funciona na prática, que é uma realidade que se mostra diversa em muitos pontos do quadro
pintado pelos seus elaboradores em bibliografias oficiais e materiais de divulgação. O programa
na cidade funciona com muitas dificuldades, além da falta de recursos, essa situação se reporta
novamente à questão delicada de se trabalhar com mediadores que exercem essa função em
caráter voluntário.
Análise dos círculos restaurativos
A pesquisa realizou anotações detalhadas sobre cinco casos que foram atendidos pelo
programa em São Caetano do Sul. Optou-se por relatar de forma sucinta um caso em particular,
bastante representativo da utilização do paradigma restaurativo que vem sendo feita pelo
programa na cidade. A situação conflituosa a ser contada partiu de um boletim de ocorrência
registrado por um professor de uma escola pública do município contra um aluno que lhe teria
feito ameaças.
O juiz delegou o caso para que fosse resolvido segundo o programa de justiça
restaurativa da cidade. O círculo foi feito numa sala da E. E. Padre Alexandre Grigoli. Primeiro
ouviu-se o professor, ou seja, a parte que se sentiu nesse caso prejudicada e procurou recursos,
ele foi acompanhado de outra professora, uma colega que leciona na mesma escola e que,
portanto, vivencia com ele muitos problemas em comum. Percebeu-se, nesse caso, como a
30
questão individual do professor em sua discórdia com o aluno misturava-se o tempo todo com
outros problemas recorrentes na escola. Foram relatados casos de desrespeito com professores
e demais funcionários, depredação do patrimônio público, entre outros. O professor possuía em
mãos o boletim com as notas do aluno, em sua grande maioria vermelhas. Nesse boletim
constavam também as faltas do aluno, as quais o professor fez questão de contar; além disso,
ele estava munido de uma lista feita pela diretora da escola nomeando os alunos que estavam
sempre envolvidos em problemas e o relatório de um professor de educação física que indicava
possível mau comportamento do garoto. Depois do professor, foi a vez de o aluno entrar e falar
sobre o ocorrido. O jovem tinha 15 anos, estava cursando a oitava série pela segunda vez e foi
acompanhado da avó. Ele falou pouco sobre a acusação do professor e demais situações que
foram relatadas sobre a escola em geral, confusões e sua situação escolar mais específica. Deu
respostas um pouco vagas e disse também que tinha sido mal interpretado, que não tinha
ameaçado o professor. Inúmeras vezes a avó o impelia a falar e disse que não tinha
conhecimento sobre o mau comportamento do menino na escola. Após o depoimento do aluno
se reuniram todos à mesa para a conversa final, estavam sentados à mesa uma estudante de
psicologia, o aluno, a avó, a facilitadora, os dois professores e a pesquisadora.
Não houve total concordância sobre o ocorrido porque o aluno insistia numa versão dos
fatos e o professor em outra, houve momentos de confrontamentos de versões e o aluno assumiu
parcialmente a culpa pelos fatos apontados. Mesmo sendo este um momento em que todos têm
a oportunidade de falar, ficou evidente nesse exemplo como certas hierarquias e relações
desiguais de poder se mantém e são difíceis de serem superadas. O professor falou mais, e falou
com mais autoridade que o aluno devido a sua posição superior e também por sua maior
capacidade de articulação na fala. Houve um momento em que claramente o que se estava
tentando fazer ali era disciplinar o jovem. Foram dados diversos conselhos para ele
principalmente pelo professor, para que ele melhorasse seu comportamento, respeitasse mais
os funcionários e professores, que parasse de depredar a escola, chegando-se mesmo a
questioná-lo: “Por que você faz isso com a sua família?” A facilitadora também aconselhou o
garoto a evitar situações de tumulto na escola para que não se envolva novamente em situações
desse tipo. Durante o círculo restaurativo presenciado, a facilitadora também aludiu o jovem
para o fato de ter sido dado a ele uma chance para resolver seus problemas de uma maneira
mais informal, sem penalidades e que, caso ele se envolvesse em outros problemas, as coisas
poderiam ser diferentes, o juiz poderia não levar mais a situação para o projeto de justiça
restaurativa e conduzir os trâmites tradicionais. Finalizada a sessão, todos assinaram o acordo
31
e nas duas próximas semanas a facilitadora acompanharia o comportamento do aluno na escola,
para verificar se ele melhorou.
Verifiquei também em outros círculos alguns julgamentos valorativos proferidos pela
facilitadora: “Olha eu não te conheço, estou te conhecendo agora, mas você me parece ser mais
agitadinha...”. Em vista desse julgamento, a mãe da adolescente que era acusada de agressão
se sentiu obrigada, em outro momento, a se justificar: “olha ela pode não parecer, mas ela é
uma menina tranqüila”. O fato de a facilitadora ser mãe e atuar na companhia de sua filha, ali
lidando também com mães, traz implicações para o procedimento, já que se embasa em um tipo
de autoridade diferente daquela exercida pelas figuras dos profissionais do Direito.
Algumas características do círculo restaurativo na cidade tais como essa preocupação
com a conduta do adolescente, seu rendimento escolar, o envolvimento anterior em conflitos,
enxergar o momento como uma oportunidade de educar o jovem, são alguns dos aspectos que
diversos estudos como o de Miraglia (2005) encontraram quando atentaram para as varas da
infância e juventude. Cabe questionar, portanto, em relação a quê o modelo restaurativo é
alternativo? Isto porque em muitos momentos o que parece haver é uma mimetização do modelo
informal em relação ao seu par institucional, ao tipo de justiça a que está ligada. Parece, neste
caso, que a justiça restaurativa reproduz num ambiente de informalidade as práticas que estão
arraigadas na condução dos procedimentos na justiça comum. É um modelo alternativo, pois
não ocorre no fórum e não conta com a presença do juiz, mas é informado por práticas e
discursos que não estão previstos pelo respaldo teórico que inicialmente o fundamentaram.
Quando a facilitadora frisa ao adolescente que o círculo restaurativo é um chance que
lhe foi dada de resolver as coisas - numa primeira vez - de forma mais branda e que, num
próximo conflito, o procedimento será diferente, ela não marca uma ruptura com os meios
oficiais de resolução, pelo contrário, o discurso ressalta a sua continuidade. O paradigma
restaurativo traz consigo um embasamento teórico-filosófico já extenso e consolidado, que por
si só seria capaz de angariar maior adesão, mas essa expertise não é mobilizada durante os
círculos; de maneira diversa, os facilitadores procuram sempre ressaltar que a justiça
restaurativa é acompanhada de perto pela autoridade oficial, acompanhamento que é traduzido
na sua institucionalização, vinculação ao sistema judiciário e condução feita por magistrados.
32
Antes de ser uma forma alternativa de administração de conflitos, a justiça restaurativa
está sendo praticada como um procedimento, uma etapa, no interior da forma judicial clássica
de administração de conflitos, voltada para a punição do indivíduo infrator.
A percepção dos usuários
Já foi mencionada anteriormente a percepção de desdém e perda de tempo que é comum
entre os usuários. Alguns acham muito estranho que a administração do conflito judicial seja
feita no ambiente da escola, por pessoas alheias ao mundo jurídico. Há muitas ausências
registradas, pessoas não comparecem ao círculo quando chamadas, não vendo, portanto, a
possibilidade de administrar o conflito a contento por essa via. Outros comparecem externando
sua estranheza e sua pouca disposição de se deslocar para ter que administrar problemas tão
simples. Como já foi anotado, os pais dos adolescentes chamados tendem a considerar um
exagero que os conflitos escolares entre os adolescentes, ou entre eles e os professores
transbordem os muros da escola, acabem no fórum e dali para uma terceira instância ainda, que
é o círculo restaurativo.
Portanto, alguns dos pais com os quais a pesquisa teve contato entendiam que o
procedimento restaurativo, ao invés de ser uma simplificação e facilitação para a resolução do
problema, é na verdade uma complicação desnecessária, pois tudo poderia ter sido resolvido
dentro da escola mesmo, talvez com a participação deles. Para eles, é difícil enxergar que a
justiça restaurativa seja mesmo um benefício para o adolescente acusado, termos nos quais os
facilitadores procuram conseguir a adesão dos pais ao método.
Ao contrário de outras iniciativas em que a população procura de forma voluntária ter
acesso aos canais extra-oficiais de justiça para resolver seus conflitos (como acontece no CIC),
no programa de justiça restaurativa em São Caetano do Sul os envolvidos no problema são
intimados a participar. Todo embasamento teórico que fundamenta a justiça restaurativa não é
mobilizado para conquistar novos participantes, de maneira diversa, os casos são selecionados
de acordo com a avaliação que os profissionais do direito, juiz(a) promotor(a), fazem.
Segue um excerto do depoimento de uma adolescente, vítima de agressão na escola,
durante a realização do círculo restaurativo, no momento em que relata como foi feita a proposta
para participar do programa:
33
Adolescente: “Aí a promotora perguntou: o senhor (rapaz) quer dar como
encerrado o caso e levar pro conselho restaurativo ou prolongar aqui. Aí ele
falou assim: Não, não quero nenhum dos dois. Aí ela falou: você não tem que
querer alguma coisa aqui, você tem que escolher: conselho restaurativo ou
levar adiante? Ele: conselho restaurativo (com ar de deboche)”.
Segundo os organizadores do projeto, se os profissionais não atuam diretamente na
realização de mediações e capacitações de mediadores ou na sua divulgação, eles podem
participar como “encaminhadores”. Dessa forma, é sempre destacada a importância de se
conscientizar o maior número de profissionais sobre os procedimentos da justiça restaurativa,
pois isso permite que o primeiro contato das pessoas com a justiça restaurativa seja de qualidade
e que os profissionais possam, portanto verificar que casos dão margem para a realização de
um círculo. Facilitadoras de justiça da cidade afirmam que o envolvimento dos profissionais no
início do projeto era tão grande que a própria polícia mandava diretamente os casos para o
projeto. Ainda que as pessoas possam procurar espontaneamente o programa, a grande maioria
dos casos atendidos hoje já vem do modelo de justiça comum, resultantes de boletins de
ocorrências que são incentivados pelas diretorias de escola, médicos, policiais, delegados, como
foi possível observar no trabalho de campo7.
Cabe apontar ainda que os usuários do programa percebem, portanto, que ingressaram
num modelo subalterno em relação ao modelo oficial, ainda que compareçam e participem. São
comuns os comentários de desdém em relação ao tipo de procedimento, por ser na escola, por
não contar com a participação do juiz, por ser longe, por terem que faltar de compromissos para
participar, etc. Ao mesmo tempo, é preciso ter em conta que os envolvidos na aplicação do
modelo ressaltam sempre os aspectos positivos proporcionados pelo programa, como se
constantemente impelidos a responder às críticas e ao desdém com que os usuários tratam
inicialmente a situação do círculo restaurativo.
7 É importante nos lembrarmos que um dos principais objetivos do programa era justamente evitar o encaminhamento de casos considerados de menor potencial ofensivo para os trâmites oficiais. Nas palavras de uma facilitadora: “hoje é muito fácil fazer BO (Boletim de Ocorrência), é por isso que fez o projeto piloto, porque tem muito BO nesse bairro”
34
-O caso de São Carlos-
No mesmo ano de inauguração dos três projetos piloto supracitados, 2005, também foi
levada a proposta de se agregar um programa de justiça restaurativa ao trabalho que vinha sendo
realizado no município de São Carlos (SP) envolvendo jovens em conflito com a lei. O
programa que atende estes adolescentes chama-se NAI (Núcleo de Atendimento Integrado), ele
foi inaugurado em março de 2001 e tinha angariado até então ampla e positiva visibilidade8.
O NAI constitui-se num programa que visa atuar em “rede” congregando vários serviços
públicos prestados por diversos órgãos municipais e estaduais no atendimento rápido e eficaz
do adolescente em conflito com a lei. A centralização destes órgãos proporcionada pelo NAI
possibilita, portanto, que se realize na cidade um atendimento rápido do jovem desde o
momento de sua apreensão até o cumprimento da pena. Para a aplicação das Medidas
Socioeducativas foi criado, através do NAI, um trabalho em rede a partir da municipalização
de serviços.
O programa atua na Prestação de Serviço à Comunidade (PSC), Liberdade Assistida
(LA) e Semiliberdade, contando para isso com a ajuda dos Salesianos de São Carlos, uma
organização religiosa que mantém convênio com o Executivo de São Carlos para a manutenção
de obras sociais. Segundo o relatório do ILANUD9, a PSC em 2008 foi inteiramente subsidiada
pelo Poder Municipal em convênio com os Salesianos; já a LA é co-financiada entre Fundação
Casa, Poder Municipal e Salesianos e a Semiliberdade é executada com convênio entre
Fundação Casa e Salesianos com o apoio do Poder Municipal. Na PSC e LA são atendidos em
média 170 adolescentes por mês e na Semiliberdade 18 adolescentes por mês.
8 São Carlos ganhou projeção na mídia sendo citada como um exemplo no tratamento do menor em situação irregular, o programa desenvolvido na cidade vinha mostrando resultados satisfatórios que podem ser comprovados pelos números divulgados: se em 1998 foram registrados 15 homicídios praticados por adolescentes, entre 2001 e 2005 o número caiu para 2 por ano e nenhum caso foi registrado em 2006; o índice de reincidência na cidade, a partir de cerca de 4.000 casos é de 4% contra um registro de 30% em média, na capital, quando são aplicados apenas os procedimentos convencionais (internação). A partir da implantação do NAI em São Carlos, houve portanto, uma redução de 90% no número de internos enviados à Fundação Casa (antiga FEBEM) e cerca de 96% dos jovens que cometeram algum ato infracional são atendidos no próprio município (Esses dados estão disponíveis no site <http://www.saocarlos.sp.gov.br/index.php/utilidade-publica/nucleo-de-atendimento-integrado-nai.html>. Acessado em 24/01/2010)
9 O relatório completo do ILANUD se encontra disponível no site <http://www.promenino.org.br>. Acessado em 22/01/2010.
35
Ainda segundo o relatório, é possível afirmar que o programa tem apresentado
resultados concretos. A agilização dos procedimentos pretendida por seus idealizadores teria
sido conquistada e revela-se pelos dados disponíveis: enquanto em alguns municípios do país
tem-se um lapso temporal de até dois anos entre a apreensão pela polícia e a aplicação da
medida, em São Carlos, desde a implantação do NAI, esse percurso não leva mais do que três
dias, às vezes demorando somente um dia.
A estrutura do NAI acolhe os adolescentes encaminhados pela polícia evitando sua
permanência em delegacias ou unidades longe de suas famílias e realiza os encaminhamentos
necessários à rede municipal de serviços. O NAI possui também uma unidade de Atendimento
Inicial (UAI) para os adolescentes em regime de internação e uma Unidade de Internação
Provisória (UIP) onde o adolescente pode ficar até 45 dias. Também é interessante destacar que
os promotores de justiça e juízes realizam audiências no próprio local, agilizando a expedição
de sentença que acontece em até 10 dias.
Para ilustrar a visibilidade adquirida pela cidade, através do NAI, em reportagem na
revista Época Negócios (3 de julho de 2007), selecionamos o seguinte trecho:
Por excepcional em seus resultados, o projeto de São Carlos foi premiado na última
edição do Programa Gestão Pública e Cidadania, organizado pela Fundação Getulio
Vargas em conjunto com a Fundação Ford. Esse prêmio tem o objetivo de destacar
práticas inovadoras na área pública. ‘Eles conseguiram integrar forças que
normalmente não se comunicam, fizeram um projeto superarrojado e hoje recebem
gente do Brasil inteiro interessada em descobrir a fórmula’, diz o pesquisador Rafael
Martins, autor de um estudo sobre São Carlos para o Programa Gestão Pública e
Cidadania.
Foi possível perceber como São Carlos seguiu por um caminho diferente daquele
tomado em São Caetano do Sul, no sentido de buscar alternativas que proporcionem um melhor
atendimento de casos que envolvam adolescentes em conflito com a lei. Em São Carlos, a
solução encontrada não foi o de buscar alternativas fora do âmbito estatal e judicial para
melhoria das condições que envolvem esses adolescentes; de maneira diferente, novas
possibilidades foram buscadas dentro do que o próprio sistema oferece. A integração dos
36
órgãos, proporcionada pelo NAI, viabilizaria, segundo seus idealizadores, o cumprimento do
Artigo 88, V do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que prevê a integração operacional
de órgãos do Judiciário, Ministério Público, Defensoria, Segurança Pública e Assistência
Social, preferencialmente em um mesmo local, para a agilização do atendimento da criança ou
adolescente.
Como foi possível perceber, o NAI não trabalha com o paradigma da justiça restaurativa.
Ele não realiza mediações informais para a resolução dos casos, ao contrário, aqui o adolescente
em conflito com a lei segue os procedimentos estabelecidos pelo modelo oficial. A pauta da
justiça restaurativa foi incentivada na localidade por um ex-procurador geral da prefeitura na
época do início das operações do programa, mas a idéia não teve prosseguimento depois que
ele se deslocou na carreira profissional, deixando a questão sem mais incentivadores.
Esse agente, que trouxe a pauta da justiça restaurativa para São Carlos, partilha de um
ethos profissional heterodoxo em consonância, tanto com a vertente do Direito que abarca esse
tipo de justiça alternativa, quanto ao discurso do governo petista de maior acesso da população
à justiça. Efetivamente infere-se, a partir dos dados colhidos nos estudos de caso, que além de
estar em harmonia com o segmento profissional de visão mais pluralista, o incentivador da
pauta no local tem ligações com a rede em São Paulo propulsora da justiça restaurativa. Sua
motivação pelo modelo, que espelha seus laços político-profissionais, resultou em seu
deslocamento, deixando a questão desarticulada na região.
Foi possível verificar, desde o início, que a justiça restaurativa tinha que lidar nesse
campo com a forte imagem do NAI. Levando-se em alta conta os bons resultados demonstrados
pelo programa, parecia haver entre seus idealizadores um receio em relação a uma associação
do programa com o modelo restaurativo, já que seria arriscado trazer algo novo, retomando a
idéia de que talvez não fosse bom “mexer em time que está ganhando”, ou mesmo de que a
justiça restaurativa seria desnecessária tendo em vista a força do NAI.
Nesta cidade, foi verificada uma resistência velada em relação à justiça restaurativa que
se traduzia na realidade da falta de tempo, falta de pernas e de pessoas comprometidas com a
proposta.
Outro tipo de resistência encontrada no local diz respeito também à negociação de
significados, para um promotor na cidade entrevistado, se nós mudássemos o nome e, em vez
37
de falarmos justiça restaurativa, trocássemos por apoio familiar, então poderíamos dizer que é
feita a justiça restaurativa em São Carlos também.
Além da baixa adesão ao paradigma restaurativo no município, entre aqueles que se
ligam ao NAI, outra questão inviabiliza ainda mais qualquer possibilidade de prosseguimento
da pauta no local: é a discussão que tomou conta do cenário atual na região e que diz respeito à
inauguração de uma unidade da Fundação Casa (antiga FEBEM) em São Carlos, como decidiu
o governo estadual em contraposição ao governo municipal que rejeitava, no início de forma
veemente, a decisão. O ex- prefeito Newton Lima e os profissionais envolvidos com a proposta
do NAI se posicionaram contrariamente ao plano do governo estadual e, segundo afirmaram, a
própria população da cidade não desejava essa instalação. Mesmo com a positiva e ampla
visibilidade do NAI, tendo o ex- prefeito, entre outros, recebido diversos prêmios, como o da
Fundação Abrinq de “Prefeito Amigo da Criança”, isso não foi o suficiente para o governo
estadual mudar de idéia. É difícil prever em que condições passará a funcionar o NAI, é possível
dizer, entretanto, que ele já se encontra atualmente fragilizado, pois o novo juiz não dá a mesma
centralidade ao programa.
***
Os trabalhos de campo realizados nas duas cidades propostas, São Carlos e São Caetano
do Sul, mostram duas situações bastante diferentes no que diz respeito à busca por alternativas
em relação ao atendimento dos adolescentes em conflito com a lei. As entrevistas realizadas
com profissionais do direito, da administração pública e população envolvida com a questão do
atendimento desses jovens nas duas cidades indicam como elas trilharam caminhos diversos
nesse campo da administração institucional de conflitos.
Ambos os programas, tanto o de justiça restaurativa em São Caetano do Sul, quanto o
NAI em São Carlos, enfrentam problemas para continuar suas atividades. Por motivos
diferentes, em São Carlos a inauguração de uma unidade da Fundação Casa abalou os princípios
orientadores do NAI, e em São Caetano onde sobressaem as dificuldades na manutenção de um
programa que se apóia no trabalho voluntário de mediadores, a falta de recursos, entre outros
são desafios a serem enfrentados.
38
3. CÂMARA DE MEDIAÇÃO NOS CENTROS DE INTEGRAÇÃO DA CIDADANIA
Histórico institucional e contextualização
O Centro de Integração da Cidadania (CIC) é um programa estadual da Secretaria da
Justiça e da Defesa da Cidadania do estado de São Paulo que visa proporcionar o acesso à
justiça, por meio de uma série de serviços públicos e do incentivo à participação comunitária.
Tem dez postos fixos localizados em regiões periféricas da cidade de São Paulo – Norte
(Jaçanã), Sul (Jardim São Luis, Capão Redondo e Jabaquara), Leste (Itaim Paulista) e Oeste
(Jaraguá) – e dos municípios do entorno – Guarulhos, Ferraz de Vasconcelos, Francisco Morato
e Campinas. O programa tem um forte apelo à participação cidadã e à imagem da “aproximação
do poder público”.
Como mostrado pelas pesquisas relatadas em Sinhoretto (2007) e Haddad et al (2003 e
2006), o desenho inicial do programa apontava para uma reforma dos serviços oficiais de justiça
e segurança e, como o passar do tempo e as dificuldades e entraves para a reforma dos serviços
clássicos de justiça, o programa passou a focar mais intensamente nos serviços de
documentação e no acesso aos meios alternativos de administração de conflitos.
Nessa segunda fase do programa é que a Câmara de Mediação foi criada, inicialmente
como um programa da Secretaria de Justiça e, em seguida, como um dos serviços mais
relevantes do CIC (embora não esteja funcionando em todos os postos).
No sítio de internet da Secretaria de Justiça, a câmara de mediação é uma das iniciativas
de acesso à justiça e está assim apresentada:
O cidadão que tiver desentendimentos com vizinho, familiar, sócio, prestador de serviço ou
até mesmo pensou em separação e divórcio devido às freqüentes brigas no casamento, poderá
procurar a Câmara de Mediação para resolver seu conflito. Uma terceira pessoa, devidamente
treinada para a função, colabora com as partes envolvidas, para que possam resolver o
conflito de forma cooperativa. (http://www.justica.sp.gov.br, acessado em 23/08/2010).
As pesquisas já citadas sobre a história de criação e as transformações pelas quais passou
o programa dos Centros de Integração da Cidadania, abordaram as tensões dos seus criadores e
gestores, desde o final dos anos 80, até a criação e institucionalização do programa (em 1996
39
com a abertura do primeiro posto, em 2001 com a criação do decreto estadual). Neste relatório
não abordaremos essa discussão, nem as nuances de discurso dos gestores sucessivos. É
relevante apenas destacar que a intenção de descentralizar os serviços da justiça, instalando-os
nos postos do CIC, construídos em bairros e municípios bem distantes do centro da cidade e
dos equipamentos da justiça, teve um impulso inicial importante, com a instalação dos Juizados
Especiais Cíveis nos 3 primeiros postos inaugurados (até 2001).
Esses Juizados asseguraram a presença física dos juízes diariamente nesses postos e
serviços rotineiros em todos os dias da semana, realmente mudando a geografia do Poder
Judiciário na cidade de São Paulo. Entretanto, desde 2001 nenhum outro posto do CIC
inaugurado conseguiu viabilizar a expansão dos juizados, e tal expansão não figura nos
planejamentos do Tribunal de Justiça. Essa impossibilidade de expansão foi decisiva para
deslocar definitivamente o sentido da experiência do CIC em direção aos serviços alternativos
de administração de conflitos. A vontade de administrar conflitos de maneiras alternativas e
com a “participação da comunidade” estava no projeto de criação desde antes de sua
implementação, mas tinha ainda àquela época os atores clássicos da justiça como seus atores
privilegiados. Então, inicialmente se tratou de capacitar os juízes, promotores, delegados,
investigadores, funcionários do cartório judiciário nas técnicas alternativas de administração de
conflitos, lado a lado, com outros servidores da área social e lideranças comunitárias. Tratava-
se de tentar introduzir a inovação no modo pelo qual o Estado administrava conflitos por meio
dos seus serviços os mais clássicos.
A perda da adesão do Tribunal de Justiça a uma expansão do CIC provocou a
necessidade de buscar prosseguir nos objetivos apesar disso. As câmaras de mediação passaram
a funcionar, no começo de maneira tímida, com mediadores “comunitários” capacitados pela
Secretaria de Justiça, com cursos realizados na sua sede. Ao invés de reformar o Judiciário, a
idéia primordial passou a ser, durante os anos 2000, criar alternativas a um Judiciário que resiste
a reformas.
A criação da Defensoria Pública e o início do seu atendimento ao público nos postos do
CIC, a partir de 2006, ofereceu um novo impulso à vocação do CIC para sediar serviços formais
de acesso à justiça. E os serviços da Defensoria têm assegurado uma renovação dessa identidade
para o CIC. No contato com o CIC e seus gestores em 2010, fica muito clara a importância que
hoje tem a Defensoria Pública como uma das principais parcerias do CIC, contribuindo de
maneira decisiva para reorientar a vocação do programa para a temática do acesso à justiça.
40
Mas a própria composição da Secretaria de Justiça e Defesa da Cidadania, cujos cargos
intermediários têm sido ocupados por ativistas e simpatizantes das causas de Direitos Humanos,
tem igualmente assegurado uma afinidade eletiva entre o CIC e a mediação alternativa de
conflitos. Será impossível por ora explorar as causas e as manifestações dessa afinidade eletiva,
mas se afirma que ela existe.
À frente gestão do programa CIC em 2010 esteve um assessor do gabinete do Secretário,
um professor e pesquisador da área de Filosofia do Direito, cuja temática de reflexão é a
mediação alternativa de conflitos. Ao longo do primeiro semestre, a Coordenação Geral do CIC
promoveu uma sequência de encontros com pesquisadores e profissionais ligados às temáticas
de violência, mediação alternativa de conflitos e temáticas específicas de Direito Humanos,
como preparação a uma reestruturação do programa das câmaras de mediação no CIC. A
intenção é fortalecê-las institucionalmente e capacitar os mediadores com cursos e técnicas.
Também foi construído, com o esforço que esse tipo de iniciativa exige para dentro da
burocracia do Estado, um edital para credenciamento de mediadores. A inexistência de um
instrumento de gerência como um edital dessa natureza tinha inviabilizado o dispêndio de
custos com os mediadores e a institucionalização de qualquer tipo de vínculo entre o programa
e as pessoas físicas que atuavam como mediadores até então.
Com o credenciamento dos mediadores será possível até mesmo regularizar o
pagamento de ajudas de custo para o transporte e, quem sabe, no futuro, a remuneração dos
profissionais da mediação. Isto tem sido visto pelos gestores e parceiros do CIC como um
grande passo em direção ao fortalecimento da mediação e na defesa de uma visão sobre o que
é e como deve ser realizada a mediação, menos dependente do voluntarismo local, mais
profissionalizada e ancorada numa expertise complexa.
Representações dos atores institucionais
Como já foi apontado, as representações dos gestores estaduais do programa sempre
têm relacionado a administração alternativa de conflitos às pautas da reforma da justiça, como
uma iniciativa de ampliação do acesso, de aumento de oportunidades de resolver conflitos.
Contudo, as nuances de diferenciação entre os projetos das diversas gestões que já
passaram pela Secretaria da Justiça estão estabelecidas em torno de três tópicos, cada um deles
mais enfatizado em momentos diferentes ou em discursos de diferentes atores: ora o foco é na
41
celeridade e simplificação dos processos de administração da justiça, ora na participação
comunitária na administração dos problemas da população local, ora no reforço de direitos
humanos e na transformação das relações de poder.
Cada um desses tópicos enfatiza um perfil mais adequado para o mediador e aponta
especificidades do ritual de administração de conflitos. No primeiro, o que importa é a agilidade
e a quantidade de casos atendidos; no segundo, há uma preocupação com a proximidade social
do mediador em relação às partes, com a sua autoridade local e seu conhecimento das regras
informais de ajustamento de condutas, há uma valorização da concepção de comunidade e da
necessidade de os indivíduos se adequarem à moralidade coletiva; no terceiro, há uma
preocupação com a expertise técnica do mediador e a sua formação em temas como gênero,
desigualdades, sexualidades, relações raciais, geracionais.
No atual momento do programa, esse terceiro discurso tem estado mais presente entre
os gestores. Por isso, está em curso uma reestruturação, com a realização de seminários com
especialistas para fortalecer e redirecionar as diretrizes do programa e foi investido na
elaboração de um edital para credenciar os mediadores por sua expertise. Estuda-se atualmente
inclusive uma maneira de poder remunerar o deslocamento dos profissionais até os centros de
atendimento nos bairros de periferia e, até mesmo, a sua remuneração.
Há ainda uma preocupação com a avaliação dos resultados. A coordenação do CIC
coletou e tratou os dados dos atendimentos e concluiu que 70% dos conflitos tratados são
relativos a vizinhança, moradia, inquilinato, documentação de terrenos e construções. Segundo
os gestores, isso demonstra que o programa tem uma especificidade, que o diferencia tanto da
justiça comum como de outras iniciativas de administração alternativa. Eles acreditam que
lidam com problemas importantes dos moradores dos bairros de periferia e enxergam nisso a
dimensão política e possivelmente transformadora de suas intervenções. Isso os leva a procurar
politizar ainda mais, junto aos parceiros do CIC e aos mediadores, o sentido e a importância da
câmara de mediação, não como instrumento auxiliar ou de barateamento dos custos da justiça,
mas como instrumento de administração de conflitos em que direitos fundamentais (nesse caso,
a moradia) estejam sendo minimamente assegurados.
42
O fluxo dos casos atendidos pelos programas de mediação
CÂMARA DE MEDIAÇÃO NO CIC
Conflito � atendimento no CIC � atendimento de mediação � homologação judicial do acordo no CIC
- Ausência de uma ou ambas as partes � encaminhamento para JEC ou outro serviço do CIC
Tipos de casos mais freqüentes: 70% envolvem conflitos de moradia e vizinhança, o restante se refere a conflitos
familiares e em relações comerciais
Formação, capacitação e remuneração dos mediadores
O início da coleta de dados junto aos Centros de Integração da Cidadania permitiu
conhecer o esforço da coordenação deste programa estadual e dos seus parceiros mais atuantes
no sentido de remodelar e reforçar o programa das Câmaras de Mediação alocadas nos postos
do CIC.
A coordenação dos CIC foi muito receptiva à iniciativa desta pesquisa e, por isso
mesmo, sempre deixou claro que a mediação está passando por uma reestruturação e que não
tem funcionado sempre a contento dos objetivos que os gestores lhe atribuem. Aconselharam a
equipe de pesquisa a acompanhar os trabalhos realizados em dois postos, o do CIC Leste (no
bairro do Itaim Paulista, extremo da Zona Leste da capital) e do CIC Sul (no bairro de Jardim
São Luís, na zona sul da capital).
Em cada posto há dois mediadores, mas há claramente uma preferência do público e dos
próprios gestores, expressa em número de atendimentos e em sutis mensagens de discretos
elogios dirigidos a uma mulher que atende às segundas-feiras pela manhã no CIC Sul e a um
homem que atende às terças e quintas à tarde no CIC Leste. Nos demais postos há presença
intermitente dos mediadores, um espaçamento muito grande entre os dias de atendimento,
problemas com afastamentos prolongados dos mediadores. Houve até um caso de desligamento
de um mediador por ter sido constatado que ele estava captando clientela das sessões de
mediação para o seu escritório privado de advocacia. Esse episódio, relatado pelos gestores em
tom de grande preocupação, revela um dos principais dilemas envolvidos num programa
público que funciona exclusivamente baseado em mão de obra voluntária.
43
Pelo que tem sido acompanhado pelas pesquisas anteriores já realizadas sobre os CIC,
foram feitos três cursos de capacitação para mediadores nesses 14 anos de funcionamento. A
primeira foi realizada logo no início do programa, como parte da capacitação para os servidores
públicos que seriam lotados no CIC e foi realizada por uma ONG conveniada com a secretaria
de assistência social que prestava serviços no CIC Leste (Haddad e outros, 2003). Outros dois
cursos ocorreram na sede da Secretaria de Justiça e Defesa da Cidadania, em parceria com
organizações da sociedade civil que atuam na área da administração alternativa de conflitos,
sendo que o último foi realizado em conjunto com o Conima – Conselho Nacional das
Instituições de Mediação e Arbitragem, entidade que reúne e representa escritórios privados e
organizações sociais que atuam em mediação e arbitragem, sendo considerada, dentro do
campo, uma entidade que reúne os mais renomados especialistas.
Esses cursos foram destinados principalmente a conselheiros dos Conselhos Locais de
Integração da Cidadania - CLIC, que são fóruns reunidos em cada posto do CIC onde têm
assento representantes dos servidores públicos e de entidades sociais atuantes na localidade em
que o posto está instalado. Esses conselheiros eram inicialmente chamados de “líderes
comunitários”, “lideranças comunitárias” e, pouco a pouco passaram a se reconhecer como
“cliqueiros”. Os “cliqueiros” exercem uma função de mediação política de demandas coletivas
direcionadas aos serviços do CIC, mas não costumam restringir essas demandas aos servidores
e órgãos que atendem no posto. Muitas vezes, o CLIC oficia órgãos públicos municipais e
estaduais com reivindicações de melhoria da prestação de serviços públicos na região atendida
pelo posto do CIC. Em geral, os “cliqueiros” são membros de organizações sociais que
administram os programas sociais dos governos. Essa característica – que é a que lhes dá a
qualificação para serem eleitos para o CLIC – embute uma ambivalência na sua atuação: de um
lado, costumam ser pessoas de referência da localidade, com vocação e disponibilidade para
ouvir e traduzir as demandas das pessoas que idealmente representam, excelentes conhecedores
das realidades, dos conflitos, das necessidades e das possibilidades de solução dos problemas;
por outro lado, a natureza do seu trabalho requer o envolvimento desses atores com as redes
políticas atuantes no local, que possibilitam a captação de convênios e financiamentos de suas
organizações pelos órgãos estatais. Tudo o que não se pode pedir aos “cliqueiros” é neutralidade
política; engajamento, a maioria deles têm de sobra.
Além dos “cliqueiros”, os cursos de capacitação em mediação foram realizados também
por servidores públicos lotados nos postos do CIC (policiais civis e militares, funcionários do
44
Judiciário, do CDHU, assistentes sociais e funcionários da própria Secretaria de Justiça). As
pesquisas realizadas anteriormente nos serviços dos postos do CIC já demonstraram que muitos
atendimentos ali realizados são pautados pela mediação alternativa de conflitos, incluindo os
da Polícia Civil, da promotoria e até do Juizado Especial (Haddad et al, 2006; Sinhoretto, 2007).
Foram também freqüentados por cidadãos dispostos a atuarem como mediadores e que não
tinham nenhuma ligação com o CLIC nem eram funcionários públicos; mas a experiência
demonstrou que esses se desligaram do programa com o passar do tempo e outros sequer
chegaram a atuar. A fórmula que deu certo para as câmaras de mediação dos CIC foi a formação
de mediadores entre os conselheiros do CLIC e os funcionários públicos.
A constatação desse dado sobre o recrutamento dos mediadores leva a um
questionamento sobre o que é realmente o trabalho voluntário. Diante das particularidades da
gestão comunitária dos postos do CIC, o voluntarismo dos mediadores, na prática, significa
uma diversificação da dedicação dos membros de entidades sociais locais à execução de
programas sociais governamentais; vários dos mediadores voluntários são remunerados para a
execução de outras políticas públicas estaduais ou municipais. E alguns são servidores públicos
que realizam a mediação como uma estratégia de executar seu próprio trabalho.
Um dos mediadores entrevistados, além de “cliqueiro”, é um policial militar aposentado.
Esse talvez seja o perfil que se mais se assemelhe a uma idealização do trabalho voluntário que
se encontra entre os mediadores da classe média, sobretudo nas instituições associadas ao
Conima. Nessa idealização, o mediador voluntário é alguém que doa uma parte de seu tempo
em troca de satisfação subjetiva e que não usa o trabalho voluntário como estratégia de obtenção
de recursos financeiros. Segundo esse mediador, o trabalho voluntário é um meio de se manter
ativo e ocupado numa atividade que pode auxiliar a outras pessoas na resolução de seus
problemas, o que lhe é possibilitado pelo conforto da renda garantida pela aposentadoria. No
caso dele, há ainda mais um motivador, que é a possibilidade de exercer um tipo de atividade
que guarda semelhanças com o que fazia antes de se aposentar e lhe garante acesso a relações
de respeito e prestígio nas quais foi socializado por 30 anos. Em tom reflexivo, se exprime:
“não é fácil o militar se acostumar à vida civil”. Para este mediador, o sentido do dever público
e das responsabilidades diante do Estado, mesmo como aposentado, continuam a ser uma
referência fundamental da sua personalidade e do seu cotidiano.
A dificuldade em sustentar um programa público de mediação apenas com o trabalho
voluntário é um diagnóstico dos próprios gestores do CIC, que trabalharam durante mais de
45
dois anos no desenho e na aprovação de um edital de credenciamento de pessoas físicas para
prestarem serviços – e serem remunerados – como docentes no curso de capacitação de
mediadores planejado para acontecer no início de 2011.
A própria necessidade de realizar um novo curso é decorrente da dificuldade de manter
os mediadores formados no vínculo do trabalho voluntário. O projeto é oferecer um curso com
mais de 100 horas teóricas e práticas, com estágio supervisionado, remunerando os professores.
A diferença dessa proposta é poder custear o deslocamento dos docentes até os postos do CIC,
onde será realizado o estágio supervisionado e algumas aulas; alguns postos estão localizados
a mais de 40 quilômetros do centro da cidade.
Outra forma de fidelização do vínculo planejada para a próxima turma de formandos é
a celebração com o aluno de um termo de compromisso de prestação de serviços voluntários de
mediação nos postos do CIC, pelo prazo mínimo de um ano. Isso é visto como uma
contrapartida muito razoável, já que o curso será de alto nível, contando com professores
credenciados por sua experiência profissional, expedindo um diploma de formação. Estima-se
que um curso de formação de mediador chegue a custar R$ 3 mil em uma organização privada.
Outra tendência comentada nos corredores do CIC é a capacitação dos próprios
funcionários públicos lotados nos postos, que passariam a desenvolver a mediação de conflitos
durante o seu horário de trabalho, mas na sala destinada à mediação.
Nas incursões ao campo, a pesquisa interessou-se por saber como tem funcionado
atualmente o trabalho voluntário de conciliadores nos juizados especiais que funcionam nos
postos do CIC. Diferentemente do que ocorria até há poucos anos, atualmente o Tribunal de
Justiça auxilia os juízes dos juizados especiais no recrutamento de voluntários para atuarem
como conciliadores. Em geral, os voluntários são estudantes de graduação em Direito ou recém-
formados que procuram a atividade voluntária como estratégia de cumprimento de créditos de
estágio ou como forma de comprovar uma experiência profissional necessária à seleção para
concursos públicos. Os juízes do CIC, contudo, enfatizam as dificuldades em fixar os
conciliadores, é preciso supervisioná-los permanentemente, oferecer-lhes o transporte nas
viaturas oficiais (porque os postos do CIC são muito longe dos seus locais de moradia e estudo).
A atuação na conciliação é vista pelos próprios juízes como uma forma de aprendizado
importante aos conciliadores, como um estágio de aprendizado sobre o juizado, o processo, a
judicialização dos conflitos. Acreditam que os conhecimentos adquiridos pelos conciliadores
46
serão úteis na sua atividade profissional de advogados que irão litigar nos juizados. É bem difícil
para eles imaginar que a conciliação possa ser uma atividade ou um conhecimento autônomo e
que alguém possa se profissionalizar como conciliador junto aos juizados. Até porque, em São
Paulo, essa atividade é exclusivamente não-remunerada. Segundo uma juíza,
“é bom para os dois lados, a gente ensina eles e eles ajudam a gente com os processos,
que são muitos, então eu posso tirar alguns momentos para despachar os processos,
mas sem nunca perder o pé do que está acontecendo na sala de conciliação. Eu fico
daqui ouvindo e costumo intervir quando eu percebo que está havendo alguma
dificuldade.”
A expansão do acesso à justiça produzida pela criação dos juizados, principalmente por
estes localizados em bairros muito distantes, aumentou muito o número de processos
tramitando, sem que tivesse havido uma correspondente expansão da estrutura do tribunal. De
um lado, o juizado carece de mão-de-obra para auxiliar os juízes com as audiências de
conciliação; de outro, a expansão dos cursos de Direito, principalmente nas escolas privadas,
cria uma oferta de mão-de-obra que concorre por oportunidades de estágio e pelo ingresso nas
redes profissionais e institucionais que possam melhorar as chances de obtenção de uma
colocação profissional no futuro. Desse encontro emerge um fluxo de jovens interessados no
trabalho voluntário da conciliação, mas que o vêem como uma mera passagem por uma
atividade menos relevante que o irá preparar para a “verdadeira” atividade profissional.
Desse ponto de vista, a mediação comunitária não é tão almejada pelos jovens
voluntários, por não os colocar diretamente em contato com um profissional jurídico mais
experiente e com uma rede profissional do mundo jurídico strictu sensu. Isso talvez explique
porque o juizado consegue um número maior de voluntários do que a mediação comunitária.
Explica também as diferenças de perfil entre o conciliador e o mediador atuantes no CIC. Os
primeiros são muito jovens, estudantes ou recém-formados em Direito, inexperientes na
atividade, interessados nos créditos do estágio e nos conhecimentos técnicos do processo
judicial, e não são moradores da região; os segundos são mais velhos, alguns idosos, moradores
da região, engajados nas redes políticas locais, experientes no trato com os serviços e as
questões do Estado, interessados na vida comunitária local. Esses dois perfis significam
carregam ambiguidades em relação ao trabalho voluntário.
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Análise do ritual de administração de conflitos nas sessões da Câmara de Mediação Comunitária
Para utilizar o serviço de mediação alternativa de conflitos, o usuário interessado se
dirige ao CIC e recebe informações sobre horários e pode até realizar um agendamento. No
posto do CIC Sul, todos os interessados devem chegar às 9 horas da manhã e são atendidos em
ordem de chegada. Em aproximadamente duas horas e meia de atendimentos são tratados 10
casos em média. Há atendimento duas vezes por semana. A procura pelo serviço tem sido
crescente porque uma das mediadoras tem aparecido na TV, no quadro O Conciliador do
Programa Fantástico, da Rede Globo. Isto tem dado muita visibilidade à mediação alternativa
e tem popularizado o método.
No CIC Leste, a fama do mediador é local, mas não é desprezível. Também há
atendimentos duas vezes por semana, porém são agendados horários certos para cada usuário,
com intervalos de trinta minutos entre as sessões. Também há em média 10 casos atendidos por
dia.
Foram acompanhados sistematicamente 30 atendimentos da mediação. Nem sempre são
sessões com a presença das duas partes engajadas no conflito. Alguns atendimentos eram
relativos ao primeiro comparecimento de um interessado na mediação, ocasião em que este
relata sua visão do conflito e esclarece o seu objetivo.
Nesse atendimento inicial é aberta uma ficha para cada caso, numerada, são anotados os
dados do reclamante e do reclamado e são expedidas cartas de convite aos indivíduos cujo
comparecimento é requisitado, com uma data indicada para a sessão de mediação. Nessa carta,
há um parágrafo identificando o indivíduo que solicitou a sessão de mediação e uma brevíssima
descrição do conflito. Outro parágrafo explica que a mediação é uma forma alternativa de
administração de conflito e que seu objetivo é a celebração de um acordo. As cartas não são
uniformizadas para todo o programa, apresentando diferenças de texto entre os mediadores.
Mas todas são impressas com o timbre do Governo do Estado de São Paulo, Centro de
Integração da Cidadania, com endereço e telefone para contato e a assinatura do mediador.
Na recepção aos usuários, os mediadores se apresentam, explicam que agem em nome
da câmara de mediação, que se trata de um procedimento alternativo à justiça para facilitar o
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acordo entre as partes. Algumas vezes, durante essa breve apresentação, os usuários manifestam
concordância com a idéia de “alternativo à justiça”.
O caráter alternativo da mediação pode então ser pensado em sua complexidade e suas
ambiguidades. De um lado, é um modo de canalizar para a gramática do direito um conjunto
de conflitos interpessoais gestados em situações que estão à margem da lei e que não poderiam
ser tratados adequadamente em varas judiciais comuns, como os conflitos de vizinhança em
ocupações urbanas irregulares. Por essa perspectiva, trata-se uma ampliação do acesso à justiça,
entendido num sentido largo, de administrar conflitos na esfera estatal, pela lógica do diálogo.
Contudo, de outro lado, a informalidade das soluções e a ausência de mecanismos de cobrança
coerciva dos acordos firmados apontam para uma precarização do acesso à justiça, muito
evidente nos casos mais complexos, em que os usuários retornam várias vezes ao serviço e
apresentam queixas sobre ameaças e atentados à sua segurança física.
Para esses casos, os mediadores costumam acionar o que eles chamam de “atendimento
conjunto” ou “parceria”. Na medida em que o CIC é um equipamento que agrega vários serviços
de justiça, os mediadores podem encaminhar os casos para a delegacia de polícia, a promotoria
e o juizado. Mas a maneira como esse encaminhamento é realizado indica certa subalternidade
da mediação em relação às formas oficiais de administrar conflitos.
A análise de duas situações deve esclarecer a argumentação. São situações registradas
no diário de campo.
1º caso. Quando voltei à sala da mediação, esse atendimento já tinha
começado. Eram duas mulheres negras, na faixa dos 30 anos, e um homem,
na mesma faixa etária, com a pele mais clara. Esse tinha a corporalidade (uso
de óculos de sol, tatuagens, tênis de marca, jeito de sentar, de usar as palavras,
de falar) atribuída ao “mano”. Enquanto elas estavam vestidas de maneira
mais formal. O conflito era sobre a partilha de uma casa, que ele alegava ter
sido da mãe deles (eram 3 irmãos) e, portanto, ele teria direito a uma parte.
Depois de ter ficado anos desaparecido, ele voltou, estava hospedado com
elas, criando confusões e reivindicando poderes. Ele tinha deixado a casa em
que estava, depois de ter espancado a mulher. Elas diziam que ele não tinha
direito à casa e pediam que ele fosse embora. O mediador apoiou o argumento
delas, ao ler a escritura. Era um documento de usucapião (“uso campeão”,
como ele disse), em que constavam os nomes delas e do ex-marido de uma
delas. O nome do irmão não constava. Então, o mediador disse “vamos ler
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aqui” e leu em voz alta. O homem, ao ouvir, ficou indignado: “então eu não
tenho direito, ne. Então, tá certo. É assim? Vocês usaram de má fé! Deus
abençoe as duas, que naquele espaço lá vocês põe o caixão de vocês!!!”.
Falava isso muito nervoso, ficou em pé, falava em tom de revolta e ameaça.
Uma das mulheres falou: “agora é o meu filho que fica lá sozinho, ne”. O
mediador disse ao homem: “Agora o senhor não vai mais lá! O senhor
esquece! Vocês são irmãos, gente...” Mas não adiantou o apelo, todo mundo
falava ao mesmo tempo, as mulheres falavam do medo que sentiam dele: “A
gente fica lá sozinha, com o monstro quando ele fica cheio de droga!”
Ele estava tão agitado e ameaçador que o mediador teve que se levantar e
segurá-lo com o seu corpo para ele não avançar sobre as mulheres. Ele
xingou-as de “gorda desgraçada” e “magrela”, mas também ofendeu com
pragas de morte e outros comentários de desdém.
Ele abandonou a sessão de mediação aos berros. O mediador saiu da sala com
ele, pedindo calma, mas em tom firme, dizendo para desistir de arrumar
confusão, porque no papel ele não tem direito e o assunto está encerrado.
Quando o mediador voltou à sala, todos muito agitados, inclusive eu mesma,
as mulheres começaram a falar de seus medos:
- É que meu filho de 10 anos fica em casa sozinho.
Mediador: Não, ele não vai voltar lá não. Agora ele já tomou ciência que ele
não tem direito, ele vai parar.
- Agora que ele não tem nada a perder! Agora que ele vai infernizar mesmo.
A gente tem medo. Porque somos só nós duas e o menino, que fica sozinho
em casa. - A moça ficou muito nervosa, falando o tempo todo do filho lá
sozinho, pediu até para telefonar para ele.
- Vocês pedem a proteção da polícia para eles protegerem vocês. Só que
quando a senhora fizer o BO, leva testemunha e pede para o delegado tocar
em frente o inquérito. Mencionou a existência da Lei Maria da Penha para
casos como esse de violência doméstica [Aqui se verifica uma interpretação
largíssima da Lei, pois se trata de uma situação de violência familiar, mas não
de violência conjugal, à qual a lei se restringe].
Elas contaram que ele faz ameaças, que fica na rua gritando, na porta da casa
delas, ou na ponta da rua fechando a passagem. Elas não podem sair para
nada. Ele é “valente pra cima de nós que somos duas mulheres. O meu filho
fica lá sozinho”.
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- A gente mora num lugar perigoso e sempre teve porta aberta, nunca teve
medo. Agora a gente tem que trancar a porta por causa de um irmão.
Ao final, o mediador repetiu a orientação de procurar a delegacia e afirmou:
“mas vocês não podem ter dó dele por ser irmão”, tem que insistir com o
delegado para tocar o inquérito e, se for preciso, por na cadeia.
Essa primeira situação deixa ver que um conflito de natureza cível parecia ser o móvel
que levou os três irmãos a procurarem a mediação. Mas subjacente a este havia uma situação
de iminência de violência e um medo muito grande por parte das mulheres quanto às
conseqüências de negarem as pretensões do irmão. O conflito cível já estava juridicamente
administrado, pois a posse do imóvel já havia sido estabelecida em sentença judicial anterior,
portanto a mediação pouco poderia acrescentar quanto a isso. Em relação ao conflito violento,
as condições para o atendimento não eram favoráveis; era certamente um caso de intervenção
da polícia, para o qual a sessão de mediação também pouco resolveu.
A orientação de procurar a delegacia e requerer a abertura de um inquérito policial
significa muito mais um reconhecimento das limitações da mediação do que a existência de um
trabalho em parceria realmente estruturado, em que a mediação pudesse ser uma porta de
entrada ao sistema judicial ou a um sistema de proteção a vítimas de violência. Nenhum
encaminhamento formal a serviços de atendimento a vítimas é realizado, nem o próprio contato
com a delegacia do bairro. É dada uma orientação oral de como se poderia proceder, mas nada
assegura que a orientação será efetiva, porque a busca pela mediação alternativa não garante o
atendimento em outros órgãos públicos. A própria orientação dada nesse caso foi baseada numa
interpretação heterodoxa da Lei Maria da Penha, cuja abrangência ainda é objeto de debate
jurisprudencial, contudo a interpretação majoritária tem sido no sentido de aplicá-la apenas a
casos de vínculo conjugal, que não era o caso do conflito entre irmãos.
A orientação de insistir com o delegado pela abertura de inquérito já antevê as grandes
dificuldades de um conflito como esse ser bem administrado pela delegacia de polícia local.
Não apenas a experiência concreta dos agentes, mas também os inúmeros estudos já realizados
sobre o atendimento às vítimas de conflitos interpessoais nas delegacias, indicam uma grande
possibilidade de um caso como esse ser tratado como um conflito menor, sem importância. Por
isso, então, a mediação alternativa aparece como uma via a ser procurada – exatamente lá onde
esses casos são ouvidos e considerados como relevantes. Mas a limitação estrutural de um
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serviço alternativo e voluntário faz com que muitos casos que chegam à mediação não
encontrem uma solução satisfatória.
2º caso. Entram na sala cinco mulheres: uma senhora, duas adultas e duas bem
jovens. Explicam à mediadora que já estiveram ali e realizaram um acordo
em que 5 irmãos se comprometeram a dividir as despesas de construção e
manutenção (como o pagamento dos impostos) de uma casa para a mãe.
Existe um acordo impresso, com um cronograma de datas. Entendo que estão
presentes a mãe, uma filha, uma nora e duas netas. A nora diz que foi
acordado que cada um pagaria 20% do IPTU, mas que agora estão cobrando
coisas a mais. A filha diz que há uma dívida de IPTU atrasado, que ela quitou
sozinha e um parcelamento de dívida que ela vem honrando, e que deseja
incluir isso no partilhamento. Há também os honorários do advogado que
orientou a partilha para serem divididos entre todos. “Somos em 5 irmãos,
cada um tem que pagar um pouquinho, concorda?”
Mediadora: Concordo. A mediadora explicou para mim o acordo realizado, o
que serviu para que as presentes recordassem do que estava escrito.
A filha retoma a palavra, mostrando recibos de pagamento do IPTU. “Eu não
quero nada de ninguém, eu faço tudo certinho, eu estou pagando porque tem
que ser pago, porque o combinado foi regularizar tudo, mas tem essa dívida.
Agora ninguém se entende e não quer assinar.”
A nora responde que não assinou nada porque só assinaria qualquer coisa na
frente da “doutora” [Ambas chamam a mediadora de doutora e ela rebate
dizendo o seu nome, mas elas não entendem do mesmo modo e a cena
prossegue]. Elas têm vindo mensalmente ao CIC para se encontrar e fazer os
pagamentos. Uma das jovens, filha da nora, denota extrema impaciência,
fazendo caretas, balançando a perna, e chega a bufar. Tenta intervir, mas a
mãe e a avó não permitem. Pela fala da nora e pela braveza da neta entendo
que há uma dificuldade séria de diálogo, que as relações não são cordiais e a
fixação do acordo não minimizou os ânimos nem abriu a possibilidade da
comunicação não-violenta.
A mediadora analisou os documentos de pagamento e pediu para a nora ler
tudo o que estava sendo apresentado. Argumentou que o imposto tem mesmo
que ser pago e dividido entre todos. Disse que à mulher que ela deve ter cópia
de tudo o que foi pago e, através das cópias, controlar o que está sendo pago,
inclusive com a autenticação bancária. E que essa conferência não precisa ser
na sua presença, que não precisa ter briga, porque são todas irmãs. Olha para
a mãe e diz: “o que ela quer é união”. A mãe reforça: “a gente quer união”.
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A irmã se antecipa: “vamos falar agora para não dar confusão depois: teve
um atraso da minha mãe e o IPTU veio a mais, teve multa, então a senhora
divide aí”.
Mediadora: “Eu divido não! Você faz as contas, mostra a eles, tirem cópia,
assim não fica com dúvida.”
A mulher retoma: o irmão lhe deve um dinheiro, ele atrasa os pagamentos, e
quer descontar isso do valor que tem a receber. Nenhuma das duas mulheres
pega de volta as contas, elas não se debruçam sobre os documentos.
Mediadora insiste para elas fazerem as contas, ninguém se mexe. Elas pedem
que a mediadora fixe o valor do pagamento. Hesitação de todos os lados,
ninguém quer ou ninguém sabe fazer as contas. Mediadora vira-se para mim:
“faz aí a conta de somar, você que é acostumada com número.” Eu assumo a
mesma atitude de todas. A neta continua muito impaciente, está descontente,
visivelmente com raiva. A mediadora se levanta e com ela todas saem da sala.
A conversa continua no salão do CIC, onde a mediadora foi pedir para tirar
as cópias dos recibos das parcelas já pagas. Todas se dirigem à sala da Polícia
Militar com a intenção de o soldado digitar novamente o acordo. A sala da
mediação no CIC Sul não tem computador nem impressora e o soldado PM
tem feito essa “parceria” com a mediadora, digitando e imprimindo todos os
documentos. Essa família tem vindo mensalmente ao CIC para realizar os
pagamentos e os recibos na frente do PM.
O caso 2 ilustra um movimento muito comum na mediação alternativa, que são os
múltiplos retornos das partes ao serviço, porque, ao contrário de todo o discurso de auto-
justificação da mediação alternativa, um acordo bem feito não põem forçosamente fim ao
conflito. Mesmo que o texto dos acordos seja específico, há dificuldade de concordar sobre os
procedimentos para cumpri-lo, sobre os prazos. Vários dos atendimentos presenciados pela
pesquisa referiam-se a duplas ou grupos conflitantes que já tinham realizado um acordo anterior
e se punham novamente em desacordo. Isso indica que a obtenção de acordos não pode ser um
bom indicador de avaliação da eficácia ou da eficiência do programa de mediação alternativa,
porque em muitos casos o trabalho não termina na confecção do acordo.
No caso analisado parece haver uma dificuldade em lidar com os documentos escritos,
em realizar contas, em compor digitar e imprimir o texto de um recibo e até de tirar cópias
xerox. O serviço da mediação é utilizado como escritório popular, mas como faltam os recursos
materiais à sala de mediação, essa demanda é estendida a outros serviços do CIC, que acolhem
a tarefa de escritório e cartório informal.
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Por causa dessas características há pessoas que voltarão inúmeras vezes ao serviço, para
o pagamento de parcelamentos de longo prazo ou de pensões mensais, que vão durar anos. Essa
informação é muito relevante para contextualizar o que na prática significa a auto-composição
dos conflitos por vias alternativas de administração de conflitos. Auto-composição nem sempre
significa que as partes adquirem autonomia para a condução de suas relações e independência
em relação aos serviços regulatórios do Estado. Muitas vezes os acordos se baseiam em
equilíbrios precários e vão necessitar de ajustes e renegociações periódicas.
A perspectiva dos usuários
As câmaras de mediação dos Centros de Integração da Cidadania constituem uma via
alternativa de administração de conflitos, disponível aos usuários nos postos localizados em
regiões distantes da grande cidade de São Paulo, onde os serviços formais da justiça são
escassos em razão da concentração geográfica do Poder Judiciário nos fóruns centrais e
regionais (Sinhoretto, 2007). Além disso, atendem casos que dificilmente seriam tratados pela
justiça comum ou mesmo pelos juizados especiais por serem relativos a conflitos em torno de
situações irregulares perante a lei (como ocupações urbanas irregulares ou relações informais
de trabalho e comércio). Por essa via, representam efetivamente uma ampliação e diversificação
dos canais de acesso à administração de conflitos para a população dos bairros de periferia.
Uma importante motivação dos usuários para a busca da mediação alternativa é sua
proximidade geográfica ao local de moradia. Os postos do CIC estão instalados em áreas
urbanas com pouco acesso a outros tipos de serviço e acabam atraindo a demanda da numerosa
população residente na região. Mesmo que seja necessário o uso de transporte para chegar ao
CIC, o tempo gasto é bem menor do se fosse necessário ir até o centro da cidade.
A oferta conjunta de vários serviços nos postos do CIC também colabora para atrair a
atenção do usuário para a existência do serviço. O usuário pode ir ao centro para resolver um
problema de documentação ou para uma consulta do programa de saúde da família e tomar
conhecimento da mediação alternativa. No CIC Sul, a fama televisa da mediadora que aparece
no quadro O Conciliador do Programa Fantástico contribuiu para divulgar a sua existência e
difundir uma boa imagem da mediação. Contudo, nem todos os usuários são atraídos por essa
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propaganda global, muitos tomam conhecimento da mediação por meio dos “cliqueiros”, de
associações de bairro e de informações de conhecidos.
Verificou-se também que, assim como os mediadores encaminham pessoas para a
polícia e para o juizado, o contrário também se verifica. Os policiais e juízes atuantes no CIC
ou nas delegacias, funcionários dos serviços públicos da região divulgam a existência do
programa e encaminham casos que consideram adequados para esse tipo de administração
alternativa de conflitos.
Para os usuários, além da acessibilidade física, existe uma empatia com os modos
informais do serviço de mediação alternativa. O jeito de falar, de receber, de vestir, o
comportamento em geral dos mediadores – bem como de outros funcionários servindo no CIC
– parece agradável e atraente para os usuários. Não se notou uma preocupação especial no modo
de vestir e falar dos usuários que se destinam à mediação, em contraste evidente com o que
acontece com quem se dirige a uma audiência no juizado (estes procuram se apresentar bem
arrumados, bem vestidos).
O atendimento na mediação é rápido e, em muitos casos, dois ou três comparecimentos
são suficientes para a obtenção do acordo. Contudo, como já foi analisado anteriormente, nem
sempre a informalidade da mediação significa um resultado efetivo e diversos casos se arrastam
por meses até que as condições do cumprimento do acordo sejam fixadas.
Outro fator relevante para a preferência da mediação alternativa sobre o recurso à polícia
e à justiça é a preocupação com o equilíbrio de poder nas relações de proximidade. Conflitos
com familiares ou vizinhos são os mais freqüentes na mediação e isso é deliberadamente uma
tentativa de evitar envolver os vizinhos e irmãos em situações que possam redundar numa
repressão estatal efetiva sobre o indivíduo. Ao acionar a polícia ou a justiça, os protagonistas
do conflito facilmente perdem a capacidade de decisão sobre o desfecho; tentam evitar uma
anotação na ficha criminal, o risco de uma prisão, da ocorrência de uma violência, a
preponderância de uma coercividade da qual não possam mais recuar. Mesmo em conflito e
com interesses opostos, uma parte considerável dos usuários da mediação precisa preservar a
continuidade das relações com seus oponentes e está muito ciosa disso.
O outro lado dessa moeda é revelado por casos semelhantes ao caso 1 relatado nos quais
uma intervenção coercitiva seria necessária para assegurar a segurança física das pessoas
envolvidas – e a mediação informal se revela ineficaz para isso.
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Ambiguidade e subalternidade de um meio alternativo de justiça
Nota-se que a mediação alternativa é vista como um recurso intermediário entre a
negociação privada dos conflitos e a intervenção estatal. Ela é bem avaliada e seu possível
fracasso é bem tolerado porque, afinal, existem a justiça e a polícia como último recurso.
Novamente se trata de uma relação ambígua entre o informal e o formal, em que o meio
informal se torna atraente diante da imagem poluída da justiça formal, contudo sua legitimidade
depende em última instância da possibilidade de seguir em frente (recorrer ao formal), se for
preciso. Essa ambiguidade caracteriza a subalternidade da mediação em face da justiça formal
no interior do campo estatal de administração de conflitos.
A subalternidade é ainda reforçada pelo fato de a mediação de conflitos no CIC estar
focalizada no tipo de conflito que o sistema formal considera menos relevante – os conflitos
interpessoais – comumente caracterizados no discurso dos agentes da justiça formal e de muitos
gestores públicos como conflitos menores, de menor potencial ofensivo, conflitos mais simples
ou de fácil resolução. De fato, a observação dos casos levados à mediação permite perceber que
isso é uma falsa representação da realidade e que frequentemente há casos envolvendo um
número muito grande de pessoas e até violência física.
Outro traço da subalternidade da mediação é o fato de ela ser destinada à população de
periferia, estereotipada no senso comum como menos civilizada, mais rústica, com uma vida
interior menos complexa. Em sendo assim, os conflitos vivenciados por essa população são
vistos como menos sofisticados e complexos. Daí ser tão naturalmente aceita a prática de
delegar a voluntários muito pouco treinados a gestão dos conflitos dessa parcela da população.
Em contraste, dos juízes e advogados se exige além da formação universitária, a aprovação em
exames e concursos muito concorridos e a contrapartida de altos salários e honorários.
A observação dos dados estatísticos e etnográficos leva necessariamente a problematizar
a suposição de simplicidade e pouca complexidade dos conflitos administrados pela mediação
alternativa. A grande maioria dos casos envolve a conflitualidade pelo acesso à terra urbana e
à propriedade e a administração de arranjos familiares complexos e, por vezes, inovadores –
exatamente tipos de conflito que num tribunal formal podem levar décadas para serem
resolvidos ou correr em segredo de justiça, com a invocação de laudos peritos e análises
circunstanciadas.
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Portanto, não é correto afirmar que à mediação são destinados casos mais socialmente
mais simples e juridicamente menos complexos. Aos serviços de mediação alternativa do CIC
são direcionados casos de pessoas com dificuldades tanto subjetivas quanto objetivas (estar
numa situação irregular, por exemplo) para ingressar com uma ação formal na justiça, casos de
conflitos de proximidade em que as partes querem evitar as consequências indesejadas do
recurso à justiça formal, casos em que as partes desejam manter o protagonismo da condução
da solução. Porém, elas claramente vislumbram a mediação como etapa intermediária ou
alternativa ao sistema formal – que lhes parece complicado, demorado e perigoso.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Do trabalho comparativo entre os três programas de administração alternativa de
conflitos estudados ressaltam alguns pontos especialmente importantes para a avaliação das
políticas judiciais.
É imprescindível compreender o contexto geral da ampliação do acesso à justiça no
estado de São Paulo no qual ganham sentido os programas locais aqui analisados. Desde o final
dos anos 1990, uma crescente oferta de canais de acesso à administração institucional de
conflitos vem correspondendo a uma crescente demanda social por acesso à justiça, que tanto
é difusa e individualizada, como também é organizada em torno de movimentos sociais que
cobram e exigem repostas governamentais para a área, como é o caso, por exemplo, do
Movimento pela Criação da Defensoria Pública em São Paulo.
Essa mudança social no perfil das demandas de acesso à justiça – que não ocorre só em
São Paulo – pode ser constatada nos dados recentemente divulgados pela pesquisa do IBGE,
em parceria com o Conselho Nacional de Justiça, a PNAD 2009 (IBGE, 2010). O último dado
comparável disponível, relativo a 1988, revelava que apenas 45% dos indivíduos que haviam
se envolvido num conflito tinham buscado a justiça para a sua resolução. Em 2009, esse número
cresceu para 58%, acrescido de 12% que buscaram os juizados especiais (70% ao todo
buscaram a justiça formal).
Para atender a essa demanda crescente, o Tribunal de Justiça teve muita dificuldade em
expandir sua oferta de serviços. Os juizados especiais foram criados, mas com estruturas
tímidas em face da grande demanda que lhes bate às portas. O crescimento do número de juízes
e funcionários judiciários não acompanhou a expansão da judicialização dos conflitos. Os
resultados disso são bem conhecidos pelas pesquisas que avaliam o funcionamento dos
juizados: há uma grande fila de espera para audiências e realização de atos, os procedimentos
tornam-se excessivamente burocratizados, privilegiando antes a agilidade para a administração
judicial do que a satisfação dos usuários com o resultado (Batitucci et al, 2010; Chasin, 2008).
Este contexto fornece densidade para a compreensão da aceitação e promoção de meios
alternativos de administração de conflitos no seio das instituições judiciais. Os próprios
tribunais e varas levam a cabo a implantação de programas alternativos ao tratamento judicial
clássico dos conflitos. As razões por que o fazem e as condições materiais em que o fazem são
fundamentais para que se entenda os traços marcantes dessas experiências, que são o custo zero,
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o voluntarismo dos mediadores, e a prevalência da agilidade da resolução sobre a
complexidade do conflito.
Diferentemente do que ocorre com as Câmaras de Mediação dos Centros de Integração
da Cidadania, tanto a mediação judicial pré-processual, como a justiça restaurativa não se
configuram em alternativas ao tratamento judicial do conflito, mas numa etapa praticamente
compulsória aos processos selecionados pela administração judicial.
A seleção dos casos é realizada pela administração judicial, levando em conta
características subjetivas das partes envolvidas e dos advogados (especialmente na mediação
judicial), elegendo aqueles que se acredita que chegarão mais facilmente a um acordo, criando
dessa forma uma estatística favorável de acordos realizados. Essa seleção pela administração
contraria o discurso de auto-justificação da mediação e da justiça restaurativa no que diz
respeito ao protagonismo das partes na administração de seus conflitos. Em ambos, as partes
não escolhem propriamente o procedimento alternativo, este lhes é indicado formalmente pelo
juiz, atendendo critérios da administração judicial para dar agilidade aos processos.
A ausência de protagonismo dos indivíduos é também constatada na observação dos
rituais das sessões de mediação e dos círculos da justiça restaurativa. Tanto num caso como no
outro, as sessões do procedimento alternativo mimetizam o ritual das audiências judiciais,
conforme o ramo da justiça a que estão ligados. A mediação judicial nos processos das varas
cíveis é muito semelhante à lógica de condução das audiências judiciais, em que os advogados
fazem uso da palavra em nome do interesse de seus clientes, ao passo que os clientes
permanecem praticamente silentes. A justiça restaurativa nas varas da infância e juventude
orienta-se pelo tom “pedagógico” e disciplinador que também estrutura o ritual das audiências
judiciais dos adolescentes em conflito com a lei.
Em decorrência disso, tem-se afirmado que a mediação e a justiça restaurativa, no
âmbito das experiências institucionais do judiciário paulista, não são meios alternativos, mas
subalternos de administração de conflitos. Isto é, são vistos e aplicados como procedimentos
complementares e menores da administração judicial.
Os usuários assimilam a posição subalterna das alternativas e as avaliam a partir dessa
perspectiva. A maior parte deles considera a mediação judicial uma boa iniciativa, uma vez que
seu sucesso na administração do conflito encerra o processo e o seu fracasso significa o acesso
à etapa judicial seguinte. Dessa forma, ela é avaliada apenas do ponto de vista da celeridade
que pode proporcionar.
No caso da justiça restaurativa, a percepção de subalternidade provoca nos usuários uma
indisposição inicial ao método e uma sensação de perda de tempo, em especial nos casos em
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que os adolescentes e seus pais não estão de acordo com a transposição da administração dos
conflitos escolares para a esfera judicial. É como se a administração por uma via alternativa
reforçasse a opinião de que se o caso fosse realmente importante, ele estaria sendo julgado pelo
juiz. Essa opinião não é combatida, mas compartilhada pelos facilitadores, que se valem todo o
tempo da autoridade do judiciário para legitimar seus atos.
Outra marca dessa subalternidade é sua implementação a custo zero. Isto está no
provimento do Tribunal de Justiça que instituiu e regulamentou a implantação da mediação e
da conciliação nas varas cíveis. E é também uma característica da justiça restaurativa. Nos dois
casos foi realizado um investimento inicial em capacitação dos mediadores/facilitadores, mas
não existe um programa permanente de capacitação e avaliação. Esses programas não dispõem
de um orçamento regular no interior da estrutura judiciária.
Os programas institucionais do judiciário e as câmaras de mediação do CIC estão
assentados no voluntarismo dos mediadores e esta é uma grande fraqueza dos programas. No
caso da justiça restaurativa, após uma capacitação até longa e relativamente sofisticada, os
facilitadores formados não permaneceram atuantes no programa e a maioria deles justifica
abertamente a ausência de remuneração ou qualquer outra forma de incentivo e apoio financeiro
como principal fator de sua desmotivação e desligamento. A justiça restaurativa e as câmaras
de mediação dos CIC operam em bairros distantes das regiões urbanas centrais, o que exige dos
voluntários gastos com transporte e um tempo extra com o deslocamento. Assim, os poucos
facilitadores e mediadores que permanecem no programa, o fazem em condições excepcionais
de facilidade e interesse – assim, os programas não se extinguem, todavia torna-se impossível
ampliá-los.
No caso da mediação judicial das comarcas do interior, sua viabilidade está assentada
na formação de advogados e bacharéis em Direito como mediadores, que lhe fornecem uma
mão-de-obra estável e comprometida. O outro lado da moeda é que esse interesse está
diretamente relacionado – mesmo que não seja abertamente verbalizado – à posição de prestígio
e proximidade com os juízes que a função de mediador oportuniza. Ou seja, a jornada voluntária
de trabalho sustenta-se e justifica-se pelo sucesso da jornada remunerada como advogado
militante no mesmo espaço forense em que presta serviço voluntário. Além disso, cada vez
mais, a mediação é uma expertise profissional a ser adquirida por advogados, e o voluntarismo
configura-se também como tática de exercício e aprendizado para uma função que pode vir a
ser remunerada.
Para além das questões éticas, no caso da mediação judicial exercida por advogados, há
um casamento entre a necessidade do judiciário em administrar um número maior de processos,
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a custo zero, com o interesse de um grupo profissional de advogados que busca ascensão na
carreira e novas oportunidades de mercado. Um judiciário mais ágil os favorece de qualquer
maneira.
No caso da justiça restaurativa, seu objetivo inicial transformador fica inteiramente
bloqueado pela incapacidade de expansão do judiciário. A falta de investimento em novas
capacitações arrisca fortemente a extinção do programa. A ausência de um acompanhamento
técnico, numa metodologia que afinal é bastante sofisticada e inovadora, proporciona o
afastamento dos referenciais teóricos e a colonização da experiência por uma cultura jurídica
tradicional e hierárquica, restringindo-a à condição de serviço auxiliar e menor da vara judicial.
Outra característica dos três programas estudados a ser reforçada é a ausência de um
acompanhamento sistemático dos resultados alcançados. A maior dificuldade para a realização
desta pesquisa foi a obtenção de dados, ou mesmo de registros de acompanhamento que
pudessem fornecem informações sobre quantos casos são atendidos, qual o perfil dos indivíduos
e das demandas. Em algumas situações, são realizadas coletas parciais de informações, mas a
verdade é que inexiste um acompanhamento sistemático. A contrapartida do voluntarismo
significa ampla liberdade de ação para os mediadores e facilitadores, mas também uma
desobrigação de prestar contas e tornar transparentes suas linhas de ação. A preocupação mais
importante da administração judicial é com o alto percentual de obtenção de acordos, mas
tampouco se trabalha com índices precisos e com análises substanciadas. Não há meios
institucionais de aferir a adesão dos mediadores ao enfoque e à metodologia transmitida no
curso de capacitação. Entre os mediadores, percebe-se que é muito mais valorizada sua
capacidade de improvisação e criatividade em situações adversas do que o seu conhecimento e
a sua expertise no campo das metodologias de administração de conflito.
Por fim, os meios alternativos, aprisionados na sua condição subalterna de fazer muito
sem nenhum custo, restritos pela racionalidade burocrática da administração judicial, acabam
por se encaixar como mais uma peça de uma engrenagem judicial seletiva, que se vê às voltas
com a necessidade de delegar aos voluntários a administração de uma parte dos conflitos, sem
com eles pretender repartir uma parte dos seus recursos. A justificativa interna para esta
delegação é a de que se tratam de conflitos simples, situações fáceis de administrar. A pesquisa
nesses programas mostra que a realidade é outra, são direcionados para as formas alternativas
conflitos familiares e urbanos de alta densidade, em que as partes retornam várias vezes ao
mesmo serviço antes de obterem uma solução razoável.
A fase atual da investigação culmina com indagações que poderão orientar pesquisas
futuras. Uma das indagações pede uma melhor compreensão dos consensos que legitimam a
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existência de um sistema judicial que administra de modo diferencial os conflitos, reservando
para uma parte deles um alto investimento em preparação, seleção e remuneração dos juízes e
funcionários judiciais, e para outra parte nenhum investimento – a não ser aquele conseguido
por investidores externos episódicos – abrindo perigosamente as portas da justiça pública para
mediadores ineptos.
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