Post on 22-Apr-2017
Ismail Xavier
o olhar e a cena Melodrama Holywood Cinema Novo Nelson Rodrigues
bull Cosac amp Na ify cinomaleca brasileira bull
I Cinema revelaccedilatildeo e engano
ATESTEMUNHA DE MCCARTHY
Haacute quem tome o cinema como lugar de de acesso a uma vershy
dade por outros meios inatingiacutevel Haacute quem assuma tal poder revclatoacuterio
como uma simulaccedilatildeo de acesso agrave verdade engano que natildeo resulta de acishy
dente mas de estrateacutegia Eacute preciso discutir essa questatildeo ao especificar
determinadas condiccedilotildees de leitura de imagens para tanto faccedilo uma recashy
pitulaccedilatildeo histoacuterica pois o binocircmio revelaccedilatildeo-engano projeta-se no temshy
po referido a dois momentos da reflexatildeo sobre cinema o da promessa
maior na aurora do seacuteculo xx e o do desencanto nos anos
Comento de iniacutecio uma situaccedilatildeo extraiacuteda do documentaacuterio Poiacutent of
Order [I963] de Emilio de Antonio filme que focaliza os processos e as
seccedilotildees de tribunal no periacuteodo do macarthismo nos Estados Unidos Tratashy
se de uma remontagem da documentaccedilatildeo colhida ao vivo nos
rios Em determinado momento uma testemunha de eacute
pelo advogado de defesa de um militar aCllsado de atividades anriamerishy
canas Esse advogado mostra uma foto agrave testemunha Nessa foto se
numa tomada relativamente proacutexima duas figuras o reacuteu e ao seu
promotoria como peccedila
testemunha se considera a foto verdadei~a Aacute resposta eacute sim O
do mostra uma foto maior em que aacuteparece numa reuniatildeo
um grupo de pessoas - dentre elas algumas insuspeitas e que traz num
algueacutem jaacute comprometido jaacute indexado na eacuteaccedila agraves bruxas A imagem
mostrar os dois conversando em tom de certa intimidade
da acusaccedilao pergunta agrave
dos cantos a anteriormente vista na foto menor Entendemos sem
demora que a eacute um recorte da segunda ou eacute parte
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de um contexto maior com muita gente envolvida uma situaccedilatildeo puacuteblica
que natildeo denota nenhuma cumplicidade entre o reacuteu e seu interlocu
O curioso no fato eacute que ao ser reiterada a pergunta vocecirc continua
achando esta foto [menor] verdadeira - a resposta eacute de novo sim
Chegamos aqui ao dado significativo A -resposta surpreende-nos mas
ilustra muito bem uma certa noccedilatildeo de verdade noccedilatildeo muito mais presenshy
te no senso comum de uma sociedade como a nossa do que tagravelvez gostariacuteashy
mos A testemunha trazia a convicccedilatildeo de que a verdade estava em cada
pedacinho da foto como tambeacutem da realidade Aquele canto da imagem
aquele fragmentoacute extraiacutedo da maior foi obtido sem que se adulshy
terasse cada ponto da foto sem maquiagem sem alteraccedilatildeo das
que lhe satildeo internas Logo conteacutem a verdad~ Eacute uma imagem
as duas figuras estiveram efetivamente juntas diante da cacircmera
importa aiacute o contexto) O recorte definidor da moldura natildeo incomodou
a testemunha para quem a verdade eacute soma estaacute em cada parte
Em nossa cultura o processo fotograacutefico tem grande poder sobre as
convicccedilotildees desse tipo de observador assim embalado pela evidecircncia
empiacuterica trazida pela imagem Mais ateacute do que a acuidade da reproduccedilatildeo
(eixo da semelhanccedila) a imagem fotograacutefica (e cinematograacutefica) ganha
autenticidade porque corresponde a u~ registro automaacutetico ela se imprishy
me na emulsatildeo sensiacutevel por um processo objetivo sustentado na causalishy
dade fotoquiacutemica Como resultado do encontro entre o olhar do sistema
de lentes (a objetiva da e o acontecimento fica depositada uma
desse que funciona como um documento Quando se esquece a
funccedilatildeo do recorte prevalecendo a feacute na evidecircncia da imagem isolada
temos um sujeito totalmente cativo do processo de simulaccedilatildeo por mais
que ele pareccedila Caso tiacutepico eacute o dessa testemunha de McCarthv a consagrar o engodo de uma promotoria
Diantc de tal feacute na imagem nossa primeira operaccedilatildeo eacute reverter o
processo e chamar a atenccedilatildeo para a moldura para a entre a foto e
seu entorno para o fato de que o sentido se tece a partir das relaccedilotildees entre
o visiacutevel e o invisiacutevcl de cada situaccedilatildeo Vou aqui um pouco adiante para
ressaltar o quanto aleacutem da foto e de seu contexto haacute que se inserir no
tambeacutem o universo do observador e o tipo de pergunta que ele endereccedila agrave
imagem Ou seja dentro de que se daacute a leitura e ao longo de que
eixo opotildeem-se verdade e revelaccedilatildeo e engano Voltando agrave foto
menor apresentada pelo advogado constatamos num niacutevel mais elemenshy
tar de interrogaccedilatildeo que ela produz um resiacuteduo de documento na imagem
dos interlocutores (sua postura e suas roupas indicam certo estilo etc) No
entanto a ilegitimidade da foto eacute flagrante quando fabrico o fato convershy
sa isolada c o evidecircncia da culpabilidade interessado na dimensatildeo
poliacutetica da imagem Quando pergunto pela autenticidade de uma imagem
natildeo estou portanto discutindo sua verdade em sentido absoluto incondishy
cionado Natildeo discuto a existecircncia das dadas ao olhar Pergunto
pela significaccedilatildeo do que eacute dado a ver numa interrogaccedilatildeo cuja resposta
mobiliza dois referenciais o da foto (enquadre e moldura) que definc um
campo visiacutevel e seus limites e o do observador que define um campo de
Questotildees e seu estatuto seu lugar na ellperiecircncia individual e coletiva
No cinema as entre visiacutevel e invisiacutevel a interaccedilatildeo entre o
dado imediato e sua significaccedilatildeo tornam-se mais intrincadas A sucessatildeo
de imagens criada montagem relaccedilotildees novas a todo instante e
somos sempre levados a estabelecer ligaccedilotildees propriamente natildeo existentes
na tela A montagem sugere noacutes deduzimos As significaccedilotildees engendramshy
se menos por forccedila de isolamentos (como na foto comentada) e mais por
forccedila de contextualizaccedilotildees para as quais o cinema possui uma liberdade inshy
vejaacutevel Eacute sabido que a combinaccedilatildeo de imagens cria significados natildeo preshy
sentes em cada uma isoladamertte Eacute ceacutelebre o experimento do cineasta
russo Kulechov primeiro grande teoacuterico da montagem Selecionando uma
uacuteniea tomada do rosto de um ator e inserindo-a em contextos
chegou a conclusotildees radicais a cada combinaccedilatildeo o rosto parecia expressar
algo bem diferente num espectro que incluiacutea ternura fome alegria
A elasticidade admitida por Kulechov num primeiro momento (anos
foi depois atenuada por ele proacuteprio e seria hoje ingecircnuo supor um
poder absoluto da montagem nesses casos Dentro de determinados limishy
tes jaacute no periacuteodo do cinema mudo era comum a utilizaccedilatildeo da diferenccedila enshy
tre as circunstacircncias da filmagem e as da imagem na tela para sugerir um
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acontecimento ou dar significado particular a um rosto em close-up
Pudovkin ao realizar A matildee [I926] queria uma expressatildeo particular de
no rosto do heroacutei numa cena em que na prisatildeo ele recebe uma
mensagem de sua matildee trazendo esperanccedilas de liberdade O jovem ator
natildeo conseguiu a expressatildeo pedida o cineasta buscou outra soluccedilatildeo Surshy
o ator num momento desavisado numa circunstacircncia de riso e
filmou seu rosto que reagia a um estiacutemulo completamente estrashy
nho agrave cena do heroacutei Combinou a imagcm registrada com as cenas
vizinhas no filme e julgou saacircsfatoacuterio o efeito obtido Se imagem do
ator eacute um material no qual a montagem inocular um se~tido esse foi
e ainda hoje eacute um dado de desconforto para muita gente Os atores tecircm
razatildeo em desconfiar dessa distacircncia entre seu trabalho e a percepccedilatildeo de
sua imagem na tela Operaccedilotildees como essa de Pudovkin desde cedo entrashy
ram na rotina do trabalho Muitos teoacutericos tecircm se interessado pela discusshy
satildeo de diferentes aspectos dessa manipulaccedilatildeo que ilustra com bastante
evidecircncia a relatividade das expressotildees e das performances no cinema
Comparando a questatildeo dos atores a serviccedilo da ficccedilatildeo com a da foto
observada no tribunal ganha toda ecircnfase a importacircncia da pergunta que
o observador dirige agrave imagem em funccedilatildeo de sua proacutepria circunstacircncia e
interesse Afinal na condiccedilatildeo de espectador de um filme de ficccedilatildeo estou
no de quem aceita o do faz-de-contaacute de quem sabe estar dianshy
te de representaccedilotildees e portanto natildeo vecirc cabimento em discutir questotildees
de legitimidade ou autenticidade no niacutevel da testemunha de tribunal
Aceito e ateacute acho bem-vindi~ o artifiacutecio do diretor que muda o signif shy
do de um gesto - o essencial eacute a imagem ser convincente dentro dos proshy
poacutesitos do filme que procuraacute instaiirar um mundo imaginaacute
A partir de imagens deesquiilas fachadas e avenidas o cinema cria
uma nova geografia com friigmenros de diferentes corpos um novo corshy
po com segmentos de ereaccedilOtildees um fato que soacute existe na tela Natildeo
questiono a cidade imaginaacuteiacutea - o vejo na tela natildeo corresponde por
exemplo ao Rio ou agrave Satildeo PaJlo que conheccedilo Natildeo cabe perguntar de quem
eacute o corpo imaginaacuterio ou qual aestnIacutetura real de um espaccedilo visto na tela em
fragmentos Se assim o o espectador rompe o pacto que assina ao
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entrar na sala escura para assistir a um filme que tem
res Diante da imagem apresentada como prova em a Clrcunsshy
tacircncia e o compromisso satildeo outros o eixo da verdade e da mentira requer
criteacuterios proacuteprios Para iludir convencer eacute necessaacuterio competecircncia e frtz
parte dessa saber antecipar com precisatildeo a moldura do observador as cirshy
cunstacircncias da recepccedilatildeo da os em jogo Embora pareccedila
a leitura da imagem natildeo eacute imediata Ela resulta de um processo em que
intervecircm natildeo soacute as mediaccedilotildees que estatildeo na esfera do olhar que produz a
imagem mas tambeacutem aquelas presentes na esfera do olhar que as recebe
Este natildeo eacute inerte pois armado participa do
o OLHAH DO CINEMA COMO MEDIACcedilAtildeO
Haacute entre o aparato cinematograacutefico e o olho natural uma seacuterie de elemenshy
tos e operaccedilotildees comuns que favorecem uma identificaccedilatildeo do meu olhar
com o da cacircmera resultando daiacute um forte sentimento da presenccedila do
mundo emoldurado na tela simultacircneo ao meu saber de sua ausecircncia
(trata-se de e natildeo das proacuteprias coisas) Discutir essa identificaccedilatildeo
e essa presenccedila do mundo em minha consciecircncia eacute em primeiro lugar
acentuar as accedilotildees do aparato que constroacutei o olhar do cinema A imagem
que recebo compotildee um mundo filtrado por um olhar exterior a mim que
me organiza uma aparecircncia das coisas estabelecendo uma ponte mas tamshy
beacutem se interpondo entre mim e o mundo Trata-se de um olhar anterior ao
meu cuja circunstacircncia natildeo se confunde com a minha na sala de projeccedilatildeo
O encontro cacircmeraobjeto (a produccedilatildeo do acontecimento que me eacute dado
ver) e o encontro espectadoraparato de projeccedilatildeo constituem dois moshy
mentos distintos separados por todo um processo Na estatildeo
implicados uma co-presenccedila um compromisso um riSCO um prazer e um
poder de quem tem a possibilidade e escolhe filmar Como espectador
tenho acesso agrave aparecircnci
ou seja sem a circunstacircncia Conteiacutenplo uma imagem sem ter parshy
ticipado de sua produccedilatildeo sem escolher acircngulo distacircncia sem definir uma
perspectiva proacutepria para a observaccedilatildeo Ao contraacuterio das situaccedilotildees de vida
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em que estou presente ao acontecimento na sala de espetaacuteculos jaacute sentashy
do natildeo tenho o trabalho de buscar diferentes posiccedilotildees para observar o
mundo pois tudo se faz em meu nome antes de meu olhar intervir num
processo que franqueia o que talvez de outro modo seria para mim de
impossiacutevel acesso Espectador de cinema tenho meus privileacutegios Mas
simultaneamente algo me eacute roubado o privileacutegio da escolha
Nesse compromisso de ganhos e perdas aceito e valorizo o olhar
mediador do cinema porque as imagens que ele me oferece tecircm algo de
prodigioso - hoje talvez banalizado advindo de sua liberdade ao invashy
dir a intimidade (uma liberdade da qual usufruo sem riscos) de sua preshy
cisatildeo e destreza nos maiores desafios No cinema posso ver tudo de
perto e bem visto ampliado na tela de modo a ~urpreender detalhes no
fluxo dos acontecimentos e dos gestos A imagem na tela tem sua durashy
ccedilatildeo ela persiste pulsa reserva surpresas Se eacute contiacutenua posso acompashy
nhar um movimento enquanto esse se faz diante da cacircmera se a montashy
gem interveacutem vejo uma sucessatildeo de imagens tomadas de diferentes
acircngulos acompanho a evoluccedilatildeo de um ac~gtntecimento a partir de uma
coleccedilatildeo de pontos de vista via privilegiados especialmente cuishy
dados para que o espetaacuteculo do mundo se faccedila para miiacuten com clareza
dramaticidade beleza As possibilidades abertas pela temporal idade proacuteshy
pria da imagem satildeo infinitas haacute o movimento do mundo observado e o
movimento do olhar do apa~ato que observa Quando a imagem eacute de rosshy
tos tenho a interaccedilatildeo dos olhares (lue se confrontam verdadeira orquesshy
traccedilatildeo o olho que vecirc e o que eacute vi~to tecircm ambos sua dinacircmica proacutepria e
cada um de noacutes jaacute teve ocasiOtildees de avaliar com maior ou menor consciecircnshy
cia a intensidade dos efeitos extraiacutedos dessa orquestraccedilatildeo
O usufruto desse olhar privilegiacuteado natildeo a sua anaacutelise eacute algo que o
cinema tem nos garantido propiciando essa condiccedilatildeo prazerosa de ver
o mundo e estar a salvo ocupar o centro sem assumir encargos Estou preshy
sente sem participar do mundo observado Puro olhar insinuo-me invishy
shrel nos espaccedilos a interceptr os ~ihares de dois interlocutores escrutishy
narreaccedilotildees e gestos explorar ambientes de longe de perto Salto com
velocidade infinita de um poacutento a outro de um tempo a outro Ocupo
posiccedilotildees do olhar sem comprometer o corpo sem os limites do meu corshy
po Na ficccedilatildeo cinematograacutefica junto com a cacircmera estou em toda parte c
em nenhum lugar em todos os cantos ao lado das personagens mas sem
preencher espaccedilo sem ter presenccedila reconhecida Em suma o olhar do
cinema eacute um olhar sem corpo Por isso mesmo ubiacutequo onividente Idenshy
tificado com esse olhar eu espectador tenho o prazer do olhar que natildeo
estaacute situado natildeo estaacute ancorado vejo muito mais e melhor
Observando a experiecircncia por esse acircngulo como entatildeo natildeo exaltar
o cinema Como natildeo pensar sua teacutecnica de base cm termos de
de progresso Retomemos um clima tiacutepico do iniacutecio do seacuteculo
o PRIMEIRO ELOGIO AgraveS DO OLHAR
O MOMENTO DA PROMESSA
Alguns cineastas e estetas dos anos 10-20 deixaram registradas as duas reashy
ccedilotildees a esse lado prodigioso da oferecida pela entatildeo nova teacutecnica de
reproduccedilatildeo Pensaram o cinema quando sua mediaccedilatildeo era um dado inaushy
gural que gerava certas descobertas uma eacuteonstelaccedilatildeo de sentimentos e pershy
cepccedilotildees novos ainda natildeo bem equacionados que exigiacuteam novos conceitos
um trabalho com a linguagem escrita para expressar o lado mais peculiar da
nova experiecircncia Hoje eacute praticamente impossiacutevel recuperar vivamente
aquele momento noacutes que crescemos satur~ados de imagens e nos movemos
num mundo em que o que era antes promessa dc revoluccedilatildeo se faz agora
dado banal do cotidiano experiecircncia reiterada De uma pluralidade de reashy
ccedilotildees elogios desconfianccedilas destaco dois tipos de recepccedilatildeo ao advento do
cinema Na primcira ele eacute observado como coroamento de um projeto jaacute
definido na esfera da representaccedilatildeo na segunda vislumbra-se o cinema
enquanto inauguraccedilatildeo de um universo de expressatildeo sem precedente destishy
nado a provocar uma ruptura na esfera da representaccedilatildeo
Aqueles que o vecircem com simpatia como um coroamento inserem
o cinema na tradiccedilatildeo do espetaacuteculo dramaacutetico mais popular de grande
vitalidade no seacuteculo raquoIX Avaliam que cumprindo os mesmos objetivos
o cinema vai mais longe pois multiplica os recursos da representaccedilatildeo faz o
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I I
espectador mergulhar no drama com mais intensidade O olho sem corshy t po cerca a encenaccedilatildeo torna tudo mais claro enfaacutetico expressivo ao narshy
rar uma histoacuteria o cinema faz fluir as accedilotildees no espaccedilo e no tempo e o I
mundo torna-se palpaacutevel aos olhos da plateacuteia com uma forccedila impensaacutevel I em outras formas de representaccedilatildeo Ou seja em seu tornar visiacutevel a meshy
rdiaccedilatildeo do olha cinematograacutefico otimiza o efeito da ficccedilatildeo cumprindo com
muita competecircncia uma tarefa que na esfera da cultura considera-se como Jproacutepria da arte e em especial dos espetaacuteculos Ao exaltar esse salto na efishy ccedil
iciecircncia dentro d~ continuidade de princiacutepios e funccedilotildees os criacuteticos cineasshy
tas e prod~tores afinados agraves regras do mercado cultural da eacutepoca celebram
o na produccedilatildeo industrial do seacuteculo xx de um projeto que vem do
seacuteculo XVIII e que se definiu na origem para a representaccedilatildeo teatraL
Eacute comum sermos lembrados ~o quanto a cacircmera fotograacutefica constishy
tui uma objetivaccedilatildeo tecnoloacutegica recente de princiacutepios da representaccedilatildeo jaacute I
conhecidos cuja sistematizaccedilatildeo vem do Renascimento italiano (cacircmara i iacuteescura o meacutetodo da perspectiva os efeitos de profundidade na superfiacutecie
da tela) Com a imagem em movimento o representar a dos homens iacute se daacute com a franca hegemonia do ilusionismo a encenaccedilatildeo tal e qual o I real plantado no cinema industrial desde os tempos de D W Griffith
Fato que cristaliza uma heranccedila menos tematizada pela criacutetica a do olhar Ital como constituiacutedo no drama burguecircs Aqui a referecircncia teoacuterica essenshy
cial eacute Diderot No momento em que escreve suas peccedilas e formula a teoria trenovadora do teatro definiuacutedoo drama seacuterio burguecircs do seacuteculo XVIII
~ um elemento central no seu ideaacuterio eacute a criacutetica ao teatro vinculado aos ~
gecircneros claacutessicos - principalmente ao tipo de encenaccedilatildeo que se dava agraves
trageacutedias claacutessicas francesas do seacuteculo XVII Esse teatro por demais ancoshy
rado na palavra depende da exclusiva forccedila poeacutetica do texto desdenhanshy
doo aspecto visual da experiecircncia do palco Ou eacute incapaz de elaboshy
rar a cena propriamente dita tal como o filoacutesofo a entende explorando a
expressividade do gesto e a cocircmposiccedilatildeo visual da cena (os tableaux consshy
truiacutedos pela posiccedilatildeo reciacuteproca dos atores e da cenografia)
Diderot queria um teatro dirigido agrave sensibilidade por meio da reshy
produccedilatildeo integral das aparecircncias do mundo queria um meacutetodo de dar
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a ver as situaccedilotildees os gestos as emoccedilotildees O ilusionismo fonte do enshy
volvimento da plateacuteia eacute entatildeo assumido como a ponte privilegiada no
caminho da compreensatildeo da experiecircncia humana da assimilaccedilatildeo de
valores da explicitaccedilatildeo de movimentos do coraccedilatildeo Tal demanda proacutepria
do universo da Ilustraccedilatildeo do seacuteculo XVIIl tem seus desdobramentos e
depois da Revoluccedilatildeo Francesa em outra atmosfera social e
explode no teatro popular de 1800 Aiacute se consolida o gecircnero dramaacutetico
de massas por excelecircncia o melodrama Esse tem sido por meio do teashy
tro (seacuteculo do cinema (seacuteculo xx) e da TV (desde
taccedilatildeo mais contundente de uma busca de expressividade
moral) em que tudo se quer ver estampado na superfiacutecie do mundo na
ecircnfase do gesto no trejeito do rosto na eloquumlecircncia da voz Apanaacutegio do
exagero e do excesso o melodrama eacute o gecircnero afim agraves grandes revelashy
ccedilotildees agraves encenaccedilotildees do acesso a uma verdade que se desvenda um
sem-nuacutemero de misteacuterios equiacutevocos pistas falsas vilanias Intenso nas
accedilotildees e sentimentos carrega nas reviravoltas ansioso pelo efeito e a
comunicaccedilatildeo envolvendo toda uma pedagogia em que nosso olhar eacute
convidado a apreender formas mais imediatas de reconhecimento da
virtude ou do pecado N a virada do seacuteculo XIX para o XX natildeo surpreende que a teacutecnica do
cinema entatildeo emergente tenha assumido essa pedagogia e tenha substishy
tuiacutedo o melodrama teatral na satisfaccedilatildeo de uma demanda de ficccedilatildeo na soshy
ciedade Quando falo em ilusionismo reproduccedilatildeo das aparecircncias na vershy
dade que adveacutem do conflito de forccedilas que se expressam e se revelam pelo
olhar estou afirmando princiacutepios da representaccedilatildeo aos quais o cinema vem
se ajustar como uma luva Como braccedilo da induacutestria cultural ele
do movimento de objetivaccedilatildeo institucional da Ilustraccedilatildeo Sua
do olhar melodramaacutetico eacute o ponto-limite de um projeto de expressatildeo
total da natureza na representaccedilatildeo Reflete um ideal de domiacutenio e controshy
le da aparecircncia como sinal de conhecimento da natureza um ideal que
inscreve a arte como espelho pedagoacutegico que requer a competecircncia tecnoshy
loacutegica de criar ilusatildeo e por essamiddotvia atingir a sensibilidade a passagem
das trevas agrave luz se faz de efeitos sobre o olhar
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Dentro do projeto de revelaccedilatildeo do mundo para o olhar os efeitos do
close-up logo adquirem a condiccedilatildeo de emblema das virtudes da nova arte
Mais do que a montagem - sua condiccedilatildeo preacutevia - o close-up na Franccedila e
nos Estados Unidos atrai o dos cineacutefilos corno ponto de condenshy
de um drama que se faz movimento dos olhos - o que vecirc e o
que eacute visto - e pela trama formada pela sucessatildeo de detalhes
e reveladores Corno movimento em direccedilatildeo agrave intimidade e V1stO corno
potecircncia maior do cinema que muito cedo impressionou a todos pela sua
capacidade de devastaccedilatildeo das intenccedilotildees ocultas do pequeno gesto fora do
alcance dos interlocutores do movimento facial que trai um sentimento
Natildeo foi preciso a manifestaccedilatildeo da criacutetica cineastas e produtores conduzishy
ram as experiecircncias reveladoras da forccedila dramaacutetica do rosto isolado na e usando a tradicional muito antes de 1920 jaacute insshy
truiacutea seus atores para a dos olhos - janela da alma _ trazishy
dos para perto no close-up para o exame
Foco das atenccedilotildees e dos o close-up estaraacute em I920 tambeacutem
no centro das reflexotildees de quem afastado dos valores promovidos pela
induacutestria do cinema observa seus prodiacutegios com outra moldura de inteshy
resses e julga os filmes do mercado por demais domesticados pela
demanda de ficccedilatildeo que induz o novo meio a seguir os passos do teatro e
da literatura popular Encontramos aqui quem vecirc o cinema como ruptushy
ra espectadores avessos aos do filme de accedilatildeo corrente cinecircfilos
natildeo interessados na fluecircncia dos acontecimentos no pulsar da
nas tensotildees dramaacuteticas usuais Por intermeacutedio deles o cinema uma
recepccedilatildeo mais empenhada em surpreender aspectos da plaacutestica da imashy
gem do trabalho da cacircmera e da presenccedila peculiar do mundo na tela que
permanecem recalcados na visatildeo dominante Para esse olhar diferenciashy
do por meio do cinema toda urna esfera nova de percepccedilotildees abre-se agrave
nossa experiecircncia desde que sejamos capazes de entender a expressividashy
de da nova imagem em outros termos elogiando sim o mas denshy
tro de urna outra oacutetica a de quem entende o cinema natildeo como coroamenshy
to do ilusionismo teatral mas como ruptura inauguraccedilatildeo de um novo diaacutelogo com a natureza e os homens
4deg
Satildeo os intelectuais e artistas ligados agrave arte moderna que lideram essa
nova leitura do cinema de uma perspectiva que na Franccedila traduziu-se no
cineacutema davant-garde nas experiecircncias dos surrealistas e nas polecircmicas
que tiveram como pauta a superaccedilatildeo da moldura melodramaacutetica a libershy
taccedilatildeo do olhar sem corpo das amarras da continuidade narrativa a adeshy
da nova arte agrave sua teacutecnica moderna A
fcrentes grupos postos de lado os conflitos que os
cinema destina-se a uma tarefa de redenccedilatildeo A cultural
do Ocidente europeu estaria falida o poder criador preso a convenccedilotildees
obsoletas saturado de referecircncias que o desvigoram Enredado em formas
de pensar e sentir desgastadas o homem culto se vecirc separado da natureshy
za reprimido cercado de mentiras de clichecircs da de maacutescaras
O cinema eacute radicalmente novo inocente e traz a da tecnologia
Ele pode e deve romper essa grade devolvendo aos homens o acesso a
uma natureza alienada pelos artifiacutecios de uma cultura
A vanguarda se estabelece como cultUra de separando o
espaccedilo utoacutepico da verdade (cinema vida futura) e o espaccedilo da mentira da
convenccedilatildeo (tradiccedilatildeo literaacuteria teatro cotidiano burguecircs) Sua feacute no cinema
ancora-se numa ideacuteia de expressatildeo que tambeacutem se apoacuteia na acuidade de
reproduccedilatildeo da aparecircncia proacutepria da nova teacutecnica mas com um traccedilo pecushy
liar que afasta a do pensamento gerado na esfera da induacutestria
Germaine Dulac e Epstein principais porta-vozes da avant-ga
concebem o cinema corno expressividade do mundo num sentido radishy
ca1 Combatem a vaga que nos leva a sob qualquer pretexto
isto expressa aquilo de um modo que equivale a isto significa aquilo
dentro dos variados caminhos pelos quais vamos de um poacutelo a outro do
significante ao significado Reservam expressatildeo para designar um proshy
cesso determinado impelido por forccedilas naturais no a composiccedilatildeo de
forccedilas interior a um organismo deixa narcas na do mesmo shy
eacute o movimento nelo Qual ci Que estaacute no interior vem forcosashy
mente agrave tona a forma
I Cf Xavier Seacutetima arte um cuto moderno (Satildeo Paulo 1978)
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vel) que o cinema vemcaptar com exclusividade pois fixa os movimenshy
tos na peliacutecula sem as atrapalhaccedilotildees do olho natural O cinema tem seu
vigor proacuteprio de um olhar mais automaacutetico
natildeo maculado pelos preconceitos culturais
dade Eacute irocircnico que justamente porque natildeo tem interioridade o olhar
da maacutequina possa atingir o princiacutepio interior dos movimentos revelar a
verdade que organicamente expressa-se em sentido pleno imprime-se
numa textura do mundo que soacute a cacircmera eacute capaz de registrar O proacuteprio
instantacircneo fotograacutefico em sua estrutura mais simples jaacute nos mostra o
quanto a imagem revelada faz emergir dados ocultos que natildeo estavam na
mira do fotoacutegrafo No cinema o movimento poteacutencializa tal desocultashy
mento o qual pode tornar-se mais efetivo quando os cineastas forem cuacutemshy
plices da nova teacutecnica em vez de tentar agrave como no
melodrama a expressividade do fica atrelada a toda uma
cadeia de loacutegica eacute tomada de empreacutestimo agrave do natushy
em que o tOrnar visiacutevel resulta do de uma retoacuterica que ~rH+tia Para
o que era aaequado ao teatro - como ilusionismo do seacuteculo XIX natildeo o eacute para o cinema do seacuteculo xx pois a
imitaccedilatildeo dos gestos antes oferecida a olhos desarmados natildeo resiste agrave anaacuteshy
lise da nova sensibilidade Com o cinema a percepccedilatildeo humana ganhou
um acesso especial agrave intimidade dos processos - ~ele a aparecircncia eacute jaacute uma
anaacutelise O cose-up natildeo eacute o lugar do fingimento eacute uma presenccedila que reveshy
la o que se eacute natildeo o que se pretende ser (inuacuteteis as caretas dos
A aposta da vanguarda estaacute no poder analiacutetico do cinematoshygraacutefico no que ressalta natildeil
espaccedilo) mas tambeacutem as
mente a cacircmera lenta (arnplia(acirco no eixo do tempo) que reveshyIa o mundo em outra e de~cobre-nos a vida secreta que se tece a
nossa volta e em noacutes ganhando ~xpressatildeo nas formas instaacuteveis fora da
nossa consciecircncia que temo~ fixadas pela teacutecnica2 Epstein nos seus
2 Essa aposta no poder analiacutetko do dnema tem uma versatildeo radical moshymento na Uniatildeo Sovieacutetica encarnada rio projeto do Cine-Olho de Vertov gt
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o ~__ao~ das diferentes velocidades
do movimento animal e dos fenocircmenos Fershy
nand Leacuteger as relaccedilotildees e a forma dos objetos fora de sua inserccedilatildeo
utilitaacuteria no cotidiano Embora natildeo totalmente afinado ao cineacutema dayantshy
garde o surrealismo torna-se o movimento de contestaccedil50 ao cinema inshy
dustrial de maior impacto com sua exploraccedilatildeo da montagem como reveshy
laccedil50 das pulsotildees anatomia do desejo Em diferentes busca-se a
experiecircncia fora do senso comum o olhar em sintonia com ~l~r
do - a sensibilidade efetivamente moderna A
(Epstein) surge entatildeo como nova pedagogia
ccedilatildeo ao cenaacuterio do melodrama - pois o cincma teria como destino
trazer-nos de volta uma cosmologia e um encantamento do mundo para
os quais o cartesianismo e a filosofia da Ilustraccedilatildeo cegos
O horizonte desse renascimento seria a explosatildeo do universo carceraacuterio
da existecircncia atual (para usar a expressatildeo de Walter Benjamin em seu
ceacutelebre ensaio de T936 ao falar de reproduccedilatildeo teacutecnica arte e
A formulaccedilatildeo de Epstein-Dulae eacute questionaacutevel auando examinada a
partir de sua ideacuteia-matriz de expressatildeo
analiacutetico (inegaacutevel) da ~~a~Mrl~ aiacute uma feacute inteshy
gral no dado visiacutevel na caj)acldlde exclusiva de
suas relaccedilotildees internas trazer a verdade agrave tona
agrave ao contexto de cada a~aM~A mais de-
no entanto estaacute no impulso utoacutepico nela presente c no salto teoacuterico
que oferece ao buscar um pensameMo agrave alwra dos aspectos radicalmente
novos da experiecircncia do cinema no inicio do seacuteculo Benjamin o filoacutesofo
atento agraves transformaccedilotildees da sensibilidade geradas pelas novas diraacute
em 1936 A natureza que se dirifie dmera natildeo eacute a mesma que a que se
dirige ao olhar Essas c outras suas - sobre o ator o
gt que procura realizar no cinema documentaacuterio a verdade que desmascara a culshy
tura tradicional A cIacutee Vertov diante dos franceses eacute a
ccedilatildeo que ele estabelece cntre desmascaramento e exposiccedilatildeo dos processos efetivos
da Drodudiacuteo social das relaccedilotildees de atraveacutes do montagem cinematogniacutefica
43
analiacutetico da Imagem retomam muito do repertoacuterio da vanguarda dos anos
20 inserindo a caracterizaccedilatildeo do olhar do cinema numa reflexatildeo mais amshy
pIa sobre teacutecnica e cultura Nessa reflexatildeo a moldura eacute outra mas prevalece
o mesmo movimento de ressaltar o papel subversivo revelado r da fotoshy
grafia e do cinema dentro da cultura europeacuteia A promessa entatildeo se reafirshy
ma sem as premissas de eXflressividade total e de retorno agrave natureza
Com Benjamin ela aSSume um contorno histoacuterico mais bem demarcado eacute
por um persamento mais sensiacutevel agrave contradiccedilatildeo e ao caraacuteter das
forccedilas sociais em conflito Pensamento que nos trouxe uma avaliaccedilatildeo da
questatildeo da arte dentro de uma articulaccedilatildeo mais luacutecida com a conjuntura
poliacutetica e a proacutepria natureza das apostas em na Europa dos anos 30
polarizada por uma confrontaccedilatildeo decisiva entre revoluccedilatildeo e reaccedilatildeo
A CRiacuteTICA DO OLHAR SEM CORPO
No seu elogio ao aspecto revelador do olhar no cinema o pensamento
dos anos 20 colocou o debate em termos de verdade (cinema) emendra
(tradiccedilatildeo cultural) e deu toda ecircnfase agrave cumplicidade entre cinema e natushy
reza solidaacuterios enquanto um organismo e sua expressatildeo visual prontos a
expulsar a simulaccedilatildeo desde que a nova teacutecnica fosse salva de su~ adultera-
promovida pelo universo da mercadoria Por esse a oposishyentre um cinema desejado objeto do recalque e aquele que
realmente impera (a pedagogia da induacutestria orienta-se por uma teleoIOPla o presente eacute o mOmelItO dos entraves que impedem o desenshy
volvimento na direccedilatildeo COrreta eacuteapaz de realizar as promessas da nova
teacutecnica o futuro eacute o preenchimen~o dessas promessas que desde jaacute as vanshy
guardas anunciam e preparam Entre 1920 e J960 os poderes reais inshy
sistiram em repor o mesno cinema dominante o que trouxe em linhas
a reiteraccedilatildeo da mesnla matriz de contestaccedilatildeo O conflito dominanshy
tedominado traduzido em termos de verdade e refez-se ao
longo de eixos diversos Quando prevaleceu um eixo poliacutetico o poacutelo da
verdade (futuro) identificou-se agrave cultura revolucionaacuteria o da mentira
presentet agraves mistificaccedilotildees da reaccedilatildeo Quando prevaleceu um eixo esteacutetishy
co verdade foi poesia originalidade experimentaccedilatildeo mentira foi a rotishy
na do comeacutercio o kitscll industrializado
Natildeo cabe agora a recapitulaccedilatildeo do que foram as diferentes versotildees
desse conflito vanguardacultura de massa em cada e eacutepoca Natildeo o
poderia fazer nem quero pois meu objetivo eacute saltar dessa primeira refleshy
xatildeo dos anos 20 para uma mais proacutexima de gerada no contexto franshy
cecircs poacutes-68 reflexatildeo que abandonou a tradiccedilatildeo de opor verdade e mentishy
ra deslocando a discussatildeo sobre a teacutecnica do cinema
No grande intervalo que a criacutetica avanccedilou na caracterizashy
ccedilatildeo do olhar sem corpo e suas implicaccedilotildees notadamente na avaliaccedilatildeo de
sua estrutura mais comunicativa e sedutora o cinema olhar da
induacutestria da ideologia dominante nos meios Extensatildeo do qlle
chamei olhar melodramaacutetico o cinema claacutessico eacute sua modernizaccedilatildeo Faz
com que ele abandone os excessos maiores do ganhe em
profundidade dramaacutetica amplitude temaacutetica concretizando o ver mais e
melhor do cinema na direccedilatildeo de um ilusionismo mais completo - o cineshy
ma claacutessico eacute o olhar sem corpo atuando em sentido
caracterizaccedilatildeo dos seus poderes apresentada em minha primeira
que de fato ajusta-se mais precisamente a esse estilo particular dOJTIinanshy
te no mercado e natildeo a todo o cinema possiacutevel Eacute nele mais do que em
qualquer outra proposta que vemos realizado o de intensificar ao
extremo nossa relaccedilatildeo com o mundo-objeto fazer tal mundo parecer autocircshy
nomo existente em seu proacuteprio direito natildeo encorajando perguntas na
direccedilatildeo do proacuteprio olhar mediador sua estrutura e comportamento Soshy
mos aiacute convidados a tomar o olhar sem corpo como dado natural
Entre a Segunda Guerra Mundial e os anos 60 dois grandes
de reflexatildeo conduziram a criacutetica a essa naturalidade postulada pelo cineshy
ma claacutessico a teoria radical do cinema-discurso baseado nas operaccedilotildees da
montagem (o Eisenstein dos anos 20-30 permaneceu aqui a referecircncia
central) e a criacutetica francesa inspirada na fenomenologia tendo como [oco
maior Andreacute Bazin3
3 Cf Bazin Cinema ensaios trad Eloisa Ribeiro (Satildeo Paulo Brasilicnse 1991)
44 45
Falar de Eisenstein exigiria uma abordagem radicalmente distinta da
que faccedilo agora pois sua criacutetica ao ilusionismo COmeccedila com a advertecircncia
de que a imagem cinematograacutefica natildeo deve ser lida c0f110 produto de um
olhar Para ele a suposiccedilatildeo de que houve um encontro uma contiguumlidade
espacial e temporal entre cacircmera e objeto natildeo eacute O dado central e impresshy
cindiacutevel da leitura da imagem Sua presenccedila na tela eacute um fato de natureza
que deve ser observado em seu valor simboacutelico
caracteriacutesticas de sua composiccedilatildeo e sua no Contexto de um discurshy
so que eacute exposiccedilatildeo de ideacuteias natildeo sucessatildeo natural de fatos captados
pelo olhar A diferenccedila entre um plano geral e um cose-up por
muitas vezes natildeo pode ser entendida como olhar versus
olhar de mesmo quando se focaliza o mesmo ODjeto mas como
confronto de duas imagens de valores distintos A diferenccedila eacute de
natildeo de posiccedilatildeo no espaccedilo pois pode natildeo haver COntinuidade e
homogeneidade espacial para que se possa falar num mais perto
- tudo depende do contexto do discurso por imagens
Ao contraacuterio de Eisenstein os criacuteticos inspirados na fenomenologia
endossam e defendem a premissa de que no cinema toda imagem eacute proshy
duto de um olhar - eacute essencial que ela seja vista como tal- e a sucessatildeo
define sempre a atitude do observador diante de um mundo homogecircneo
Agrave imagem-signo de Eisenstein eles opotildeem a imagem-acontecimento agrave
defesa da descontinuidade proacutepria do cineasta russo respondem Com
uma defesa ateacute mais radical do princiacutepio de continuidade jaacute presente na
narraccedilatildeo claacutessica fazendo a ela um reparo fundamental se a imagem em
movimento nos traz a percepccedilatildeo privilegiada do homem como ser lanccedilashy
do no mundo como ser-em-situaccedilatildeo a falsidade do cinema claacutessico estaacute
na manipulaccedilatildeo impliacutecita em sua montagem o olhar sem corpo e a
onividecircncia criam na tela uni mundo abstrato de sentido fechado preshy
julgado e organizado pelo cin~ina Toda montagem eacute discurso manipulashy
ccedilatildeo de Eisenstein de GrUacutefith ou de Bufiacuteuel Em oposiccedilatildeo um criacutetishy
co como Bazin solicita um olhar cinematograacutefico mais afinado ao olho de
um sujeito circunstanciado que p6ssui limites aceita a abertura do
mundo convive com ambiguumlidades Quando pede realismo ele natildeo se
46
deteacutem em consideraccedilotildees de conteuacutedo (o tipo de universo Ciccional ou doshy
cumentaacuterio) Sublinha a postura do olhar em sua interaccedilatildeo com o mundo
tanto mais legiacutetima quanto mais as condiccedilotildees de nosso olhar
ancorado no corpo vivenciando uma duraccedilatildeo e uma circunstacircncia em sua
continuidade trabalhando as incertezas de uma percepccedilatildeo
ultrapassada mundo Daiacute sua minimizaccedilatildeo da montagem (instacircncia
construtora da onividecircncia) sua defesa do plano-seguumlecircncia (olhar uacutenico
sem cortes observando uma em seu um acontecimento
em seu fluir
Numa visatildeo mais atual prestamos atenccedilatildeo especial ao que aproxima
e natildeo apenas ao que afasta o cinema-discurso de Eisenstein e o realismo
existencial de Bazin haacute em ambos novamente a atribuiccedilatildeo de um poder
de verdade e de um poder de mentira encarnados em determinados estishy
los Para Eisenstein haacute um estilo capaz de dizer o mundo social-histoacuterishy
co colocando o cinema como potecircncia maior no plano do conhecimento
Para Bazin O cinema eacute uma espeacutecie de terceiro estado da e exisshy
te um estilo autecircntico na captaccedilatildeo da vivecircncia humana em sua
essencial abertura no tempo
Contra esse pano de fundo da tradiccedilatildeo teoacuterica a intervenccedilatildeo de
]ean-Louis Baudry em 1969-70 em questatildeo a constante promessa de
um estilo mais verdadeiro e dirige seu ataque agraves premissas do cinema em
geral examinando mais a fundo as condiccedilotildees do espectador raciociacuteshy
nio estaacute municiado para analisar o espectador do filme claacutessico mas
fala em cinema tout couTe) 4 O horizonte de seu exame eacute ressaltar o
modo pelo qual a recepccedilatildeo da imagem possui uma estrutura que a seu ver
solapa o reiterado creacutedito - de Eisenstein Griffith Epstein na
da verdade como destinaccedilatildeo fundamental do cinema Ele invershy
te a tradiccedilatildeo e vecirc na simulaccedilatildeo na de efeitos (ilusoacuterios) de
conhecimento o destino maior da nova arte (visatildeo que
4 O mais importante dos textos de Jean-Louis dessa
1970 Os efeitos ideoloacutegicos do de base estaacute publicado em Ismail
Xavier (orll) A experiecircncia do cinema (Rio de Janeiro
47
pela permanecircncia do ilusionismo do cinema industrial) Isso se daacute por
forccedila da proacutepria natureza da teacutecnica cinematograacutefica herdeira das ilusotildees _
da perspectiva da persistecircncia retiniana (natildeo vemos os fotogramas vemos
o que natildeo ocorre na tela ou seja o movimento da imagem e temos a imshy
pressatildeo de continuidade) da falsa autenticidade documental da fotografia
Rearticulando elementos jaacute conhecidos Baudry nos traz uma interpretashy
ccedilatildeo radical que- questiona natildeo estilos particulares de fazer cinema mas o
fundamento mesmo de sua objetividade como teacutecnica essa mes~a objetishy
vidade que tem sido a sustentaccedilatildeo maior das esperanccedilas de verdade Na
nova perspectiva as diferentes posiccedilotildees teoacutericas desde 1920 definem um
pensar o cinema a priori capturado pelas ilusotildees da teacutecnica e desatento agraves
implicaccedilotildees contidas na proacutepria estrutura do olhar da cacircmera tal como se
daacute para noacutes na plateacuteia A teacutecnica tem suas inclinaccedilotildees seus efeitos ideoloacuteshy
gicos e nesse sentido eacute ela mesma que impele o cinema industrial a desenshy
volver seu ilusionismo e trazer o espectador para dentro do mundo ficcioshy
na A forccedila de encantamento desse cinema persiste na histoacuteria porque o
dado crucial em jogo natildeo eacute tanto a imitaccedilatildeo do real na tela _ a reproduccedilatildeo
integral das aparecircncias - mas a simulaccedilatildeo de um certo tipo de sujeito-doshy
olhar pelas operaccedilotildees do aparato cinematograacutefico
Avaliar a potecircncia do olhar sem corpo natildeo eacute entatildeo inventariar as
imagens que ele oferece efocaIacuteIacutezar o seu movimento proacuteprio sua forma
de mediaccedilatildeo o que impiacuteica analisar sua incidecircncia no espectador que
vivenda o poder de clarividecircncia a percepccedilatildeo tota Na sala escura idenshy
tificado com o movimento do olhar da cacircmera eu me represento como
sujeito dessa percepccedilatildeo total capaz de doar sentido agraves coisas sobrevoar as
aparecircncias fazer a siacutentese do mundo Minha emoccedilatildeo estaacute com os fatos
que o olhar segue mas a cbndiccedilatildeo desse envolvimento eacute eu me colocar no
lugar do aparato sintoniz~do com suas operaccedilotildees Com isso incorporo
(ilusoriamente) seus poder~s e ericontro nessa sintonia - solo do entendishy
mento cinematograacutefico - o maior cenaacuterio de simulaccedilatildeo de uma onipotecircnshy
cia imaginaacuteria No cinema faccedilo uma viagem que confirma minha condishy
ccedilatildeo de sujeito tal como a desejo Maacutequina de efeitos a realizaccedilatildeo maior do
cinema seria entatildeo esse efeito-sujeito a simulaccedilatildeo de uma consciecircncia
48
transcendente que descortina o mundo e se vecirc no centro das coisas ao
mesmo tempo que radicalmente separada delas a observar o mundo coshy
mo puro olhar Nessa apropriaccedilatildeo ilusoacuteria da competecircncia ideal do olhar
estou portanto no centro mas eacute o aparato que aiacute me coloca pois eacute dele o
movimento da percepccedilatildeo monitor da minha fantasia
Para Baudry uma filosofia idealista que postula um sujeito transshy
cendente em oposiccedilatildeo ao mundo objetivo que se dispotildee ao conhecimento
encontra aiacute na teacutecnica do cinema sua traduccedilatildeo visiacutevel Toda sua ecircnfase
recai sobre a produccedilatildeo simultacircnea da imagem e do sujeito-observador
onividente A engenharia simuladora do cinema define com o efeitoshy
sujeito seu teatro da percepccedilatildeo total cujo protagonista sou eu-espectador
identificado com o olhar da cacircmera
N esses termos o que dificulta a consolidaccedilatildeo de linguagens alternashy
tivas mais verdadeiras eacute esse pecado original inscrito na teacutecnica Esta
tem na ilusatildeo seu sustentaacuteculo e os percalccedilos das vanguardas devem-se a
que sua aposta eacute reverter a funccedilatildeo daquilo que jaacute nasceu para cumprir
outro destino Digo destino porque a loacutegica dessa teoria transforma o cineshy
ma num oacutergatildeo que surgiu para cumprir um programa o de objetivar na
esfera do visiacutevel estrateacutegias de dominaccedilatildeo especialmente as da classe burshy
guesa que presidiu sua origem Assim antes de instacircncia liberadora subshy
versiva a condiccedilatildeo do cinema eacute preencher uma demanda do proacuteprio unishy
verso carceraacuterio tornando-o mais preciso e poderoso em seu aparato
Haacute uma atmosfera de desencanto instalada a partir dos anos 70 a
formulaccedilatildeo aqui exposta eacute a traduccedilatildeo teacuteoacuterica radical dos impasses da conshy
testaccedilatildeo no cinema Temos o esgotamento de uma teleologia a da teacutecnishy
ca redentora entravada pela poliacutetica e a economia e sua substituiccedilatildeo
por u~a outra a da teacutecnica como instrumento maior de reposiccedilatildeo de um
sistema de poder Em consonacircncia corn a tonalidade da reflexatildeo sobre a
linguagem a cultura e a ideologia naquele momento a teoria do cinema
mais original e polecircmica ressalta o lado sistemaacutetico inelutaacutevel das ilusotildees
e dos enganos do olhar da cacircmera Nesse contexto a proacutepria praacutetica do
cinema amplia o espaccedilo para a reflexatildeo teoacuterica voltada para a questatildeo do
simulacro - a citaccedilatildeo a imagem que-alude agrave imagem o circuito das refeshy
49
recircncias a si mesmo que o cinema leva ao paroxismo entram para valer na
esfera da induacutestria constituem sua nova marca Tal reflexatildeo se faz dentro
de molduras conceituais diversas e num processo em que a teoria do
cinema reflete o andamento dos debates mais abrangentes sobre a cultura
contemporacircnea A imagem cinematograacutefica eacute entatildeo obseJvada a partir de
sua participaccedilatildeo em outra rede de relaccedilotildees em que natildeo haacute para a
interpretaccedilatildeo (esse tomar a imagem como representaccedilatildeo de algo exterior
a ela) para o juiacutezo da verdade ou mentira em que se a oposlccedilao
aparecircncia (imagem)essecircncia (substacircncia) -nada haacute por traacutes das lmlti~e~ns
elas valem como efeitos-de-superfiacutecie imagem remetendo a imagem fluxo de simulacros
Faccedilo agora uma incursatildeo que natildeo eacute propriamente no terreno da
nova filosofia e das questotildees mais amplas do simulacro na produccedilatildeo
Trata-se de uma anaacutelise particular no niacutevel da engenharia da simulaccedilatildeo
caracterizaccedilatildeo de um efeito na qual natildeo eacute necessaacuterio assumir as noccedilotildees
com a mesma ressonacircncia elas adquiriram na literatura dos anos 80
Fecho a exposiccedilatildeo com a consideraccedilatildeo de um novo exeacutemplo que acredishy
to esclareccedila algumas observaccedilotildees feitas ateacute aqui sobre a interaccedilatildeo entre
espectador e imagem sobre o papel da moldura do sujeito na leitura
Parti de um primeiro exemplo mais simples para explicar como o
efeito de uma depende de sua ~elaccedilatildeo com o sujeito em determishy
nadas condiccedilotildees Da situaccedilatildeo da testemunha de McCarthy passei a uma
caracterizaccedilatildeo mais detida do olhar do cinema e examinei dois momenshy
tos opostos dentro do conflito de perspectivas que marcou a reflexatildeo criacuteshy
tica em torno do que hiacute de erigano e rcvelaccedilatildeo nesse olhar A partir de
uma discussatildeo mais sobre a simulaccedilatildeo do fato - na fotografia no
cinema chegamos a uma questatildeo mais especiacutefica a simulaccedilatildeo do sujeishy
to na estrutura mesma (lo olhar cinematograacutefico Dentro da discussatildeo
mais geral o exemplo a envolve uma situaccedilatildeo mais complicada do
quea das fotos do tribunal estaremos no cinema Como inspiraccedilatildeo
terei presentes as liccedilotildees de Baildry sem no entanto incorporar o movishy
mento totalizador de suaacute criacutetica ao olhar do cinema Seu amplo diagnoacutesshy
tico mobilizando a psicaacutenaacutelise tem como pressuposto o fato de sabershy
0
mos o bastante sobre a natureza do espectador de modo a prever o caraacuteshy
tcr de sua identificaccedilatildeo com o aparato a qual assume uma dimensatildeo
uacutenica de adesatildeo agrave imagem por forccedila do efeito-sujeito Como conhecedoshy
res do desejo do espectador denunciamos o conluio desse desejo com o
programa da induacutestria e deduzimos daiacute as alienaccedilotildees do cinema e da
teacuteia Natildeo tenho condiccedilotildees de endossar a generalidade desse saber a resshy
peito do espectador o aparato atua em determinada direccedilatildeo mas a expeshy
riecircncia do cinema inclui outras forccedilas e condiccedilotildees que natildeo se ajustam ao
programa do sistema A formulaccedilatildeo dc Baudry embora inclua com toda
a forccedila a dimensatildeo do desejo do espectador natildeo deixa de ser outra vershy
satildeo das teorias da manipulaccedilatildeo global centradas em excesso no aspecto
da experiecircncia de modo a confundir o processo que efetishy
vamente ocorre com a loacutegica ideal do sistema Focalizo uma situaccedilatildeo
didaacutetica nesse contcxto em que eacute perfeito o funcionamcnto do
aparato cm quc podemos verificar o mecanismo da simulaccedilatildeo em estashy
do digamos de laboratoacuterio
IVIULALAU E PONTO OE VISTA
Toda leitura de eacute pr()(llltatildeo de um ponto de vista o do sujeito
observador natildeo o da objetividade (b irnagetnA condiccedilatildeo dos efeitos
da imagem eacute essa Em particular o ekilO rb apoacuteia-se numa
construccedilatildeo que inclui o fmguh do obSlrVIr1or O simulacro parece o
que natildeo eacute a partir de um pOIHo ele vista () sujeito estaacute aiacute pressuposto Porshy
tanto o processo elc simulaccedilatildeo nlo l o (Li imagemem si mas o da sua
relaccedilatildeo com o sujeito Num (gt1lt1110 elemelltar podemos tomar o cinema
como modelo do processo O (llIC eacute a fjltnilgcm senatildeo a organizaccedilatildeo do
I 1 I - C f dacontecllnento pra 11111 angu () (C o lscrvaccedilao o que se con un e com
Nessas asserccedilotildees no de Xavier Audouard Le Simulacrc in
eacutepisteacutemologie de lEcole Normale gtuucushy
rc n mai-jun 1966) O horizonte de Audouard eacute o de uma discussatildeo sobre o
idealismo platocircnico seu terreno eacute ponanto distinto e meu natildeo
ca uma identificaccedilatildeo agrave sua perspectiva de anaacutelise
i J
o da cacircmera e nenhum outro mais) O que eacute a fachada de preacutedio de estuacuteshy
dio senatildeo a duplicaccedilatildeo do mesmo princiacutepio da fachada de rua que sushy
gere o que natildeo eacute justamente quando observada de um certo acircngulo e disshy
tacircncia jaacute pressupostos em sua composiccedilatildeo O que eacute a ficccedilatildeo do cinema
senatildeo uma simulaccedilatildeo de mundo para o espectador identificado com o aparato
Vertigo (Um corpo que cai) O filme de Hitchcock realizado
em 1958 Ele eacute a trama da simulaccedilatildeo por excelecircncia como jaacute foi observashy
do pela criacutetica Trago um aspecto novo agrave consideraccedilatildeo o do espelhamenshy
to que existe entre o estratagema que envolve as personagens do drama e
o proacuteprio princiacutepio da narraccedilatildeo do filme Tal como em outras obras de
Hitchcltck o cinepa c1aacutessi~o aqui operagrave com eficiecircncia maacutexima e ao
mesmo tempo oferece a metaacutefora viva para o seu proacuteprio processo Inteshy
ressado nessa metaacutefora acentuo nesta anaacutelise a mecacircnica da simulaccedilacirco o
funcionamento exterior do aparato natildeo o que nas personagens eacute desejo
do estratagema e disposiccedilatildeo para a vertigem da imagem
Sigamos passo a passo a narrativa ateacute o ponto que interessa
Vertigem tiacutetulo original eacute a palavra que condensa as ideacuteias-forccedila
do filme em sua tematiacutezaccedilatildeo do olhar e do ponto de vista A apresentaccedilatildeo
de Vertigo criaccedilatildeo de Saul nos traz a imagem do rosto feminino em
close-up tratado como maacutescara enigmaacutetica imoacutevel Uma aproximaccedilatildeo
maior e um passeio da cacircmcra examinam essa maacutescara em seus detalhes
ateacute que isolado o olho ofereccedila os sinais de vida Os seus movimentos no
entanto natildeo criam uma ~xpressatildeo definida uma intcncionalidade do olhar
Preparam apenas o cenaacuterio ptra um movimentoem espiral na profundishy
dade Mergulho na inteacuteiioridaacutedc cujo fundo inatingiacutevel estaacute sempre em
recesso Aproximaccedilatildeo e recuo atraccedilatildeo e fuga a ambiguumlidade do movishy
mento da espiral ~ experiecircncia matriz de todo o filme cujo eixo eacute o
percurso de profissional do olhar detetive personificaccedilatildeo da
vertigem Logo na primeira sequumlecircncia define-se a questatildeo desse protagoshy
nista numa perseguiccedilatildeo telhados de Satildeo Francisco a vertigem de Scottie o faz responsaacuteveacutel pela morte de um
tentar ajudaacute-lo Sentimeriacuteto de cu1Da aposentadoria
52
lecida a disponibilidade total de a situaccedilatildeo-chave de Vertigo deseshy
nha-se quando ele atende ao chamado de Elster de escola que
no reencontro surpreende-o com o pedido para que sua mulher
Madeleine Elster mostra-se apreensivo com as manifestaccedilotildees de ausecircnshy
cia que ela apresenta com os periacuteodos de comportamento estranho em
que ela parece ser outra pessoa de que retoma sem lembranccedilas
O ex-detetive ensaia um ceticismo apenas aparente e dobra-se ao enigma
proposto Passa a acompanhar os trajetos de Madeleine pesquisa pela
recolhe dados essenciais Um primeiro quadro se compotildee a
ra que dela se apossa em seus transes eacute Cadota Valdez mulher que viveu
em San Francisco no seacuteculo XIX e que se suicidou em circunstacircncias meshy
lancoacutelicas Novamente com Elster Scottie relata as descobertas O marishy
do introduz novo dado Madeleine estaacute em perigo de vida pois descende
de Carlota outras mulheres da linhagem cometeram suiciacutedio e ela tem
agora a idade de Carlota ao morrer
Na primeiraacute seacuterie de passeios de Madeleine fase em que se compotildec
o quadro tivemos uma ostensiva duplicaccedilatildeo num primeiro plano Scortie
observa MadeJeine que natildeo reconhece sua presenccedila (ele estaacute fora do tershy
ritoacuterio dela) e se potildee disponiacutevel ao olhar movimentando-se como numa
cena num segundo plano ao longo do mesmo eixo a cacircmera observa
Scottie que Madeleine Satildeo duas uma dentro da outra que
natildeo se tocam Ela el)quadrada pelo ponto de vista dele ambos enquadra~
dos por noacutes no lugar da cacircmera Madeleine nunca devolve o olhar a Scotshy
tie devolve o olhar agrave cacircmera (regra do filme claacutessico) Mas eacute
ambiacutegua essa passividade pois eacute o movimento dela que dirige o olhar
dele eacute a accedilatildeo de ambos que dirige o nosso olhar sempre na esteira do
acircngulo de de Scottie com quem partilhamos a ignoracircncia a
curiosidade a descoberta
Apoacutes a segunda conversa com Elster o tema do suiciacutedio engendra
uma ruptura nesse esquema de perfeita simetria MadeleineCarlota
atira-se nas aacuteguas da baiacutea de San Francisco Scottie a resgata Permaneceshy
mos puro olhar ele passa ao plano da intervenccedilatildeo e do diaacutelogo Com os
dois juntos certa concretude o que em Scottie eacute jaacute sonho romacircnshy
53
tico tonalidade de experiecircncia ironicamente mimetizada pela textura do
filme projetada nos espaccedilos no som configurando um desfile de clichecircs
do melodrama Encarnando a figura hiacutebrida de e
terapeuta Scottie permeia cada encontro de inquIacutefIacuteAtildeM
sar o imaginaacuterio de MadeleineCarlota decifrar a
lt catarse reveladora curar a mulher por quem estaacute
coloca adiante dele na investigaccedilatildeo
A nova ruptura vem quando Scottie conduz Madeleine a uma Misshy
satildeo Catoacutelica perto de Satildeo Francisco procurando explorar um sonho dela
que ele julga revelador sinal de que a soluccedilatildeo do enigma estaacute e
com esta a salvaccedilatildeo superada a pulsatildeo de morte que a domina Laacute cheshy
gando tudo se precipita auando Madeleine abandona suas recaDitulacotildees e insiste em caminhar sozinha em agrave
de Scottie que natildeo consegue enfim retecirc-la e perceDe em pamco a torre
alta do sino A montagem alternada nos traz a pressa de Madeleine ao se
e agrave torre seguida de Scottie que como suspeitamos
da escada retido pela vertigem - e somos retidos
com ele Ouve-se o grito Por uma das aberturas da torre vislumbra-se o corpo que cai
O ex-detetive vive a reiteraccedilatildeo da a humilhaccedilatildeo puacuteblica de um
psicologicamente massacrado Elsshy
natildeo sem antes tambeacutem absolvecirc-lo Scottie entra em colapso eacute internado Quando retoma agraves ruas de San Francisco
destila sua no passado volta aos mesmos lugares quer encontrar
em cada mulher a figura perdida movido por qualquer semelhanccedila Um
dia depara com Judy (Kim Noacutevak novamente) diferente nas maneiras
no em termos de classe Em tudo o mais a reacuteplica de
Madeleine Ele a segue bate agrave porta do seu quarto de hotel explica seus
motivos convida-a para jantar Ela desconfia daacute provas de sua identidade
(sou Judy natildeo o conheccedilo) tenta a rejeiccedilatildeo mas finalmente aceita Satisfeishy
to ele diz a hora do encontro e retira-se Pela primeira vez em todo o filme
natildeo o acompanhamos nos separamos de seu ponto de vista De repente
natildeo eacute mais dele a moldura que define os contornos do nosso olhar Retishy
54
dos no quarto ficamos ao lado de
sem delongas que natildeo espera o final
Sozinha no quarto hesitante nervosa
assume o risco do reencontro com nova identidade JUdyI Madeleme reshy
a trama urdida por Elster Para livrar-se de sua mulher ele COl1shy
para simular Madeleine Ou seja assumir essa identidade
para aIguem colocado no ponto de vista de Scottie Elster sabia dos proshy
blemas do detetive aposentado e engendrou o esquema do crime que fez
de Scottie a testemunha ideal pois era esperado que nunca ao
topo para ver Madeleine ser atirada por ele Elster quando Judy com o
mesmo traje e aparecircncia chegasse certamente sozinha ao alto da torre
Pensando ser sujeito ativo na cura de MadeleineCarlota Scottie tentou
resgataacute-la e apaixonou-se por um simulacro por uma imagem constmiacuteda
para seu ponto de vista O dispositivo montado estava todo apoiado nas
posiccedilotildees reciacuteprocas de observador e imagem dueto que deu corpo agrave ficshy
ccedilatildeo consagrada a posteriori pela sistemaacutetica do tribunal (num estratagema
bem mais complexo Judy Madeleine ocupa o lugar da falsa evidecircncia
apresentada agrave testemunha no meu primeiro exemplo) O diagnoacutestico do
suiciacutedio que absolve Scottie eacute a consumaccedilatildeo do crime perfeito A posiccedilatildeo
de Elster - aquele que sabe - corresponde agrave posiccedilatildeo do dispositivo narrashy
dor da histoacuteria no cinema claacutessico (ele permanece agrave sombra e orquestra as
imagens) Portanto no enredo que coloca em cena Vertigo espelha ()
prio mecanismo desse cinema que via de regra constroacutei-se segundo a
loacutegica do crime define o meu ponto de vista daacute corpo ao simushy
lacro eacute monitor de meu desejo tal como o dispositivo Elster-Judy-Madeshy
leine-Carlota em a Scottic
O filme de Hitchcock vai natildeo se reduz agrave exposiccedilatildeo desse
mecanismo Este se encontra inserido num tecido de ~elaccedilotildees que envolshy
vem natildeo soacute a identidade e o desejo de Scottie mas tambeacutem a identidade
e o de (a natildeo foi apenas para ele a
Urna leimra mais completa de Vertigo exishy
~rlprriiacute() detalhada do movimento derradeiro da trama Reshy
para o estratagema do as permanecem na
55
esfera das duas personagens agora entregues agrave resoluccedilatildeo de todo o disposhy
sitivo de identidadesimulaccedilatildeovertigem6 Permanecendo poreacutem nas
consideraccedilotildees sobre o aparato do olhar que eacute meu objetivo central aqui
afasto-me do filme natildeo sem antes fazer breve referecircncia ao que na parte
final de Vertigo devolve-nos agrave questatildeo da leitura da imagem no cinema
No reencontro das personagens Scottie impelido por sua fixaccedilatildeo
na imagem do passado in~iste em fazer de Judy nos miacutenimos detalhes a
reacuteplica fiel de Madeleine Ao observar sua metamorfose redefinimos
nossa relaccedilatildeo com a cena antiga a imagem de Kim Novak era Judy que
era Madeleine agraves vezes Carlota Judy possuiacuteda por Madeleine (a possesshy
satildeo transferecircncia se refaz agora) Madeleine (Judy) falando de sentimenshy
tos que eram de Judy (Madeleine) numa duplicaccedilatildeo de palavras expresshy
sotildees gestos que natildeo permite definir os contornos que separam uma da
outra essas quatro presenccedilas Refiro-me a Kim N ovak porque todo o
estratagema do filme conta com os falsetes fragilidades de seu desempeshy
nho para o bom efeito A construccedilatildeo das identidades em abismo embarashy
Iha a enunciaccedilatildeo dos gestos como dizer quem expressa o quecirc quando a
accedilatildeo dramaacutetica requer um fingir fingimento num processo em cascata
Vertigo ilustra nesse aspecto o quanto a leitura do rosto estaacute atrelada agrave
moldura que possuo e natildeo agrave exclusiva expressividade da imagem Tudo
nas palavras e gestos de Judy Madeleine ganha um sentido novo a partir
de cada deslocamento do ponto de vista O que natildeo significa apenas uma
questatildeo de espaccedilo e informaccedilatildeo mas inclui de modo decisivo uma disshy
posiccedilatildeo particular do observador que completa a accedilatildeo invisiacutevel do aparashy
to (no caso para a consumaccedilatildeo dos efeitos desejados era preciso que o
espectador da cena fosse Scottie com seu perfil e seu passado)
6 Para uma leitura de Vertigo que trabalha o dispositivo identidade simulashy
ccedilatildeovertigem e em particular sua resoluccedilatildeo traacutegica ao final do filme ver Robin
Wood Hitchcocks Films (Nova York Castle Books 1969) no qual a moldura eacute a
psicanaacutelise e Nelson Brissac Peixoto Cenaacuterio em ruiacutenas (Satildeo Paulo Brasiliense
1987) cujo texto pressupotildee uma reflexatildeo sobre o mundo dos efeitos-de-superficie o vazio a dissoluccedilatildeo da origem o simulacrQ
Tomei Vertigo como um laboratoacuterio no qual sob controle exibe-se
uma engenharia da simulaccedilatildeo aqrelaacionada pelo olhar do filme claacutessishy
co a qual alia a forccedila de seduccedilatildeo da cena agrave invisibilidade do aparato Para
finalizar gostaria de ir aleacutem dessa referecircncia mais imediata ao aparato do
cinema claacutessico pois a anaacutelise aqui feita permite uma inversatildeo nos mecashy
nismos destacados por discursos sobre o poder que mobilizam a metaacutefoshy
ra da sociedade como universo carceraacuterio e se desdobram em imagens
do aprisionamento pelo olhar Diante dos aparatos de comunicaccedilatildeo que
nos cercam eacute comum a caracterizaccedilatildeo de uma competecircncia de controle
de ordenamento cristalizada no olhar vigilante onipresente que se volta
o tempo todo para noacutes Considerando as tecnologias do olhar podemos
entretanto destacar um processo ordenador menos ostensivo que envolve
a accedilatildeo de um olhar que em vez de estar voltado para mim olha por rrtim
oferece-me pontos de vista coloca-se entre mim e o mundo (lembremos
a ironia de Vertigo Scottie eacute o olhar vigilante profissional mas o processhy
so de controle atua em sentido inverso - eacute o dispositivo que define seu
ponto de vista) Cercado de imagens vejo-me inscrito pela media numa
segunda natureza num processo que implica um cotejo de pontos de vista
muito peculiar que me afasta por exemplo do enfrentamento proacuteprio da
relaccedilatildeo pessoal intersubjetiva Esta se constitui pela devoluccedilatildeo do olhar
e nela repercute o que nos diz o poeta Antonio Machado o olho que vejo
eacute olho porque me vecirc natildeo porque o vejo Diante do aparato construtor de
imagens minha interaccedilatildeo eacute de outra ordem envolve um olho que natildeo
vejo e natildeo me vecirc que eacute olho porque substitui o meu porque me conduz
de bom grado ao seu lugar para eu enxe~gar mais ou talvez menos
Dado inagravelienaacutevel de minha experiecircncia o olhar fabricado eacute constanshy
te oferta de pontos de vista Enxergar efetivamente mais sem recusaacute-lo
implica discutir os termos desse olhar observar com ele o mundo mas
colocaacute-lo tambeacutem em foco recusando a condiccedilatildeo de total identificaccedilatildeo
com o aparato Enxergar mais eacute estar atento ao visiacutevel e tambeacutem ao que
fora do campo torna visiacutevel
56 57
I Cinema revelaccedilatildeo e engano
ATESTEMUNHA DE MCCARTHY
Haacute quem tome o cinema como lugar de de acesso a uma vershy
dade por outros meios inatingiacutevel Haacute quem assuma tal poder revclatoacuterio
como uma simulaccedilatildeo de acesso agrave verdade engano que natildeo resulta de acishy
dente mas de estrateacutegia Eacute preciso discutir essa questatildeo ao especificar
determinadas condiccedilotildees de leitura de imagens para tanto faccedilo uma recashy
pitulaccedilatildeo histoacuterica pois o binocircmio revelaccedilatildeo-engano projeta-se no temshy
po referido a dois momentos da reflexatildeo sobre cinema o da promessa
maior na aurora do seacuteculo xx e o do desencanto nos anos
Comento de iniacutecio uma situaccedilatildeo extraiacuteda do documentaacuterio Poiacutent of
Order [I963] de Emilio de Antonio filme que focaliza os processos e as
seccedilotildees de tribunal no periacuteodo do macarthismo nos Estados Unidos Tratashy
se de uma remontagem da documentaccedilatildeo colhida ao vivo nos
rios Em determinado momento uma testemunha de eacute
pelo advogado de defesa de um militar aCllsado de atividades anriamerishy
canas Esse advogado mostra uma foto agrave testemunha Nessa foto se
numa tomada relativamente proacutexima duas figuras o reacuteu e ao seu
promotoria como peccedila
testemunha se considera a foto verdadei~a Aacute resposta eacute sim O
do mostra uma foto maior em que aacuteparece numa reuniatildeo
um grupo de pessoas - dentre elas algumas insuspeitas e que traz num
algueacutem jaacute comprometido jaacute indexado na eacuteaccedila agraves bruxas A imagem
mostrar os dois conversando em tom de certa intimidade
da acusaccedilao pergunta agrave
dos cantos a anteriormente vista na foto menor Entendemos sem
demora que a eacute um recorte da segunda ou eacute parte
31
de um contexto maior com muita gente envolvida uma situaccedilatildeo puacuteblica
que natildeo denota nenhuma cumplicidade entre o reacuteu e seu interlocu
O curioso no fato eacute que ao ser reiterada a pergunta vocecirc continua
achando esta foto [menor] verdadeira - a resposta eacute de novo sim
Chegamos aqui ao dado significativo A -resposta surpreende-nos mas
ilustra muito bem uma certa noccedilatildeo de verdade noccedilatildeo muito mais presenshy
te no senso comum de uma sociedade como a nossa do que tagravelvez gostariacuteashy
mos A testemunha trazia a convicccedilatildeo de que a verdade estava em cada
pedacinho da foto como tambeacutem da realidade Aquele canto da imagem
aquele fragmentoacute extraiacutedo da maior foi obtido sem que se adulshy
terasse cada ponto da foto sem maquiagem sem alteraccedilatildeo das
que lhe satildeo internas Logo conteacutem a verdad~ Eacute uma imagem
as duas figuras estiveram efetivamente juntas diante da cacircmera
importa aiacute o contexto) O recorte definidor da moldura natildeo incomodou
a testemunha para quem a verdade eacute soma estaacute em cada parte
Em nossa cultura o processo fotograacutefico tem grande poder sobre as
convicccedilotildees desse tipo de observador assim embalado pela evidecircncia
empiacuterica trazida pela imagem Mais ateacute do que a acuidade da reproduccedilatildeo
(eixo da semelhanccedila) a imagem fotograacutefica (e cinematograacutefica) ganha
autenticidade porque corresponde a u~ registro automaacutetico ela se imprishy
me na emulsatildeo sensiacutevel por um processo objetivo sustentado na causalishy
dade fotoquiacutemica Como resultado do encontro entre o olhar do sistema
de lentes (a objetiva da e o acontecimento fica depositada uma
desse que funciona como um documento Quando se esquece a
funccedilatildeo do recorte prevalecendo a feacute na evidecircncia da imagem isolada
temos um sujeito totalmente cativo do processo de simulaccedilatildeo por mais
que ele pareccedila Caso tiacutepico eacute o dessa testemunha de McCarthv a consagrar o engodo de uma promotoria
Diantc de tal feacute na imagem nossa primeira operaccedilatildeo eacute reverter o
processo e chamar a atenccedilatildeo para a moldura para a entre a foto e
seu entorno para o fato de que o sentido se tece a partir das relaccedilotildees entre
o visiacutevel e o invisiacutevcl de cada situaccedilatildeo Vou aqui um pouco adiante para
ressaltar o quanto aleacutem da foto e de seu contexto haacute que se inserir no
tambeacutem o universo do observador e o tipo de pergunta que ele endereccedila agrave
imagem Ou seja dentro de que se daacute a leitura e ao longo de que
eixo opotildeem-se verdade e revelaccedilatildeo e engano Voltando agrave foto
menor apresentada pelo advogado constatamos num niacutevel mais elemenshy
tar de interrogaccedilatildeo que ela produz um resiacuteduo de documento na imagem
dos interlocutores (sua postura e suas roupas indicam certo estilo etc) No
entanto a ilegitimidade da foto eacute flagrante quando fabrico o fato convershy
sa isolada c o evidecircncia da culpabilidade interessado na dimensatildeo
poliacutetica da imagem Quando pergunto pela autenticidade de uma imagem
natildeo estou portanto discutindo sua verdade em sentido absoluto incondishy
cionado Natildeo discuto a existecircncia das dadas ao olhar Pergunto
pela significaccedilatildeo do que eacute dado a ver numa interrogaccedilatildeo cuja resposta
mobiliza dois referenciais o da foto (enquadre e moldura) que definc um
campo visiacutevel e seus limites e o do observador que define um campo de
Questotildees e seu estatuto seu lugar na ellperiecircncia individual e coletiva
No cinema as entre visiacutevel e invisiacutevel a interaccedilatildeo entre o
dado imediato e sua significaccedilatildeo tornam-se mais intrincadas A sucessatildeo
de imagens criada montagem relaccedilotildees novas a todo instante e
somos sempre levados a estabelecer ligaccedilotildees propriamente natildeo existentes
na tela A montagem sugere noacutes deduzimos As significaccedilotildees engendramshy
se menos por forccedila de isolamentos (como na foto comentada) e mais por
forccedila de contextualizaccedilotildees para as quais o cinema possui uma liberdade inshy
vejaacutevel Eacute sabido que a combinaccedilatildeo de imagens cria significados natildeo preshy
sentes em cada uma isoladamertte Eacute ceacutelebre o experimento do cineasta
russo Kulechov primeiro grande teoacuterico da montagem Selecionando uma
uacuteniea tomada do rosto de um ator e inserindo-a em contextos
chegou a conclusotildees radicais a cada combinaccedilatildeo o rosto parecia expressar
algo bem diferente num espectro que incluiacutea ternura fome alegria
A elasticidade admitida por Kulechov num primeiro momento (anos
foi depois atenuada por ele proacuteprio e seria hoje ingecircnuo supor um
poder absoluto da montagem nesses casos Dentro de determinados limishy
tes jaacute no periacuteodo do cinema mudo era comum a utilizaccedilatildeo da diferenccedila enshy
tre as circunstacircncias da filmagem e as da imagem na tela para sugerir um
33
acontecimento ou dar significado particular a um rosto em close-up
Pudovkin ao realizar A matildee [I926] queria uma expressatildeo particular de
no rosto do heroacutei numa cena em que na prisatildeo ele recebe uma
mensagem de sua matildee trazendo esperanccedilas de liberdade O jovem ator
natildeo conseguiu a expressatildeo pedida o cineasta buscou outra soluccedilatildeo Surshy
o ator num momento desavisado numa circunstacircncia de riso e
filmou seu rosto que reagia a um estiacutemulo completamente estrashy
nho agrave cena do heroacutei Combinou a imagcm registrada com as cenas
vizinhas no filme e julgou saacircsfatoacuterio o efeito obtido Se imagem do
ator eacute um material no qual a montagem inocular um se~tido esse foi
e ainda hoje eacute um dado de desconforto para muita gente Os atores tecircm
razatildeo em desconfiar dessa distacircncia entre seu trabalho e a percepccedilatildeo de
sua imagem na tela Operaccedilotildees como essa de Pudovkin desde cedo entrashy
ram na rotina do trabalho Muitos teoacutericos tecircm se interessado pela discusshy
satildeo de diferentes aspectos dessa manipulaccedilatildeo que ilustra com bastante
evidecircncia a relatividade das expressotildees e das performances no cinema
Comparando a questatildeo dos atores a serviccedilo da ficccedilatildeo com a da foto
observada no tribunal ganha toda ecircnfase a importacircncia da pergunta que
o observador dirige agrave imagem em funccedilatildeo de sua proacutepria circunstacircncia e
interesse Afinal na condiccedilatildeo de espectador de um filme de ficccedilatildeo estou
no de quem aceita o do faz-de-contaacute de quem sabe estar dianshy
te de representaccedilotildees e portanto natildeo vecirc cabimento em discutir questotildees
de legitimidade ou autenticidade no niacutevel da testemunha de tribunal
Aceito e ateacute acho bem-vindi~ o artifiacutecio do diretor que muda o signif shy
do de um gesto - o essencial eacute a imagem ser convincente dentro dos proshy
poacutesitos do filme que procuraacute instaiirar um mundo imaginaacute
A partir de imagens deesquiilas fachadas e avenidas o cinema cria
uma nova geografia com friigmenros de diferentes corpos um novo corshy
po com segmentos de ereaccedilOtildees um fato que soacute existe na tela Natildeo
questiono a cidade imaginaacuteiacutea - o vejo na tela natildeo corresponde por
exemplo ao Rio ou agrave Satildeo PaJlo que conheccedilo Natildeo cabe perguntar de quem
eacute o corpo imaginaacuterio ou qual aestnIacutetura real de um espaccedilo visto na tela em
fragmentos Se assim o o espectador rompe o pacto que assina ao
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entrar na sala escura para assistir a um filme que tem
res Diante da imagem apresentada como prova em a Clrcunsshy
tacircncia e o compromisso satildeo outros o eixo da verdade e da mentira requer
criteacuterios proacuteprios Para iludir convencer eacute necessaacuterio competecircncia e frtz
parte dessa saber antecipar com precisatildeo a moldura do observador as cirshy
cunstacircncias da recepccedilatildeo da os em jogo Embora pareccedila
a leitura da imagem natildeo eacute imediata Ela resulta de um processo em que
intervecircm natildeo soacute as mediaccedilotildees que estatildeo na esfera do olhar que produz a
imagem mas tambeacutem aquelas presentes na esfera do olhar que as recebe
Este natildeo eacute inerte pois armado participa do
o OLHAH DO CINEMA COMO MEDIACcedilAtildeO
Haacute entre o aparato cinematograacutefico e o olho natural uma seacuterie de elemenshy
tos e operaccedilotildees comuns que favorecem uma identificaccedilatildeo do meu olhar
com o da cacircmera resultando daiacute um forte sentimento da presenccedila do
mundo emoldurado na tela simultacircneo ao meu saber de sua ausecircncia
(trata-se de e natildeo das proacuteprias coisas) Discutir essa identificaccedilatildeo
e essa presenccedila do mundo em minha consciecircncia eacute em primeiro lugar
acentuar as accedilotildees do aparato que constroacutei o olhar do cinema A imagem
que recebo compotildee um mundo filtrado por um olhar exterior a mim que
me organiza uma aparecircncia das coisas estabelecendo uma ponte mas tamshy
beacutem se interpondo entre mim e o mundo Trata-se de um olhar anterior ao
meu cuja circunstacircncia natildeo se confunde com a minha na sala de projeccedilatildeo
O encontro cacircmeraobjeto (a produccedilatildeo do acontecimento que me eacute dado
ver) e o encontro espectadoraparato de projeccedilatildeo constituem dois moshy
mentos distintos separados por todo um processo Na estatildeo
implicados uma co-presenccedila um compromisso um riSCO um prazer e um
poder de quem tem a possibilidade e escolhe filmar Como espectador
tenho acesso agrave aparecircnci
ou seja sem a circunstacircncia Conteiacutenplo uma imagem sem ter parshy
ticipado de sua produccedilatildeo sem escolher acircngulo distacircncia sem definir uma
perspectiva proacutepria para a observaccedilatildeo Ao contraacuterio das situaccedilotildees de vida
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em que estou presente ao acontecimento na sala de espetaacuteculos jaacute sentashy
do natildeo tenho o trabalho de buscar diferentes posiccedilotildees para observar o
mundo pois tudo se faz em meu nome antes de meu olhar intervir num
processo que franqueia o que talvez de outro modo seria para mim de
impossiacutevel acesso Espectador de cinema tenho meus privileacutegios Mas
simultaneamente algo me eacute roubado o privileacutegio da escolha
Nesse compromisso de ganhos e perdas aceito e valorizo o olhar
mediador do cinema porque as imagens que ele me oferece tecircm algo de
prodigioso - hoje talvez banalizado advindo de sua liberdade ao invashy
dir a intimidade (uma liberdade da qual usufruo sem riscos) de sua preshy
cisatildeo e destreza nos maiores desafios No cinema posso ver tudo de
perto e bem visto ampliado na tela de modo a ~urpreender detalhes no
fluxo dos acontecimentos e dos gestos A imagem na tela tem sua durashy
ccedilatildeo ela persiste pulsa reserva surpresas Se eacute contiacutenua posso acompashy
nhar um movimento enquanto esse se faz diante da cacircmera se a montashy
gem interveacutem vejo uma sucessatildeo de imagens tomadas de diferentes
acircngulos acompanho a evoluccedilatildeo de um ac~gtntecimento a partir de uma
coleccedilatildeo de pontos de vista via privilegiados especialmente cuishy
dados para que o espetaacuteculo do mundo se faccedila para miiacuten com clareza
dramaticidade beleza As possibilidades abertas pela temporal idade proacuteshy
pria da imagem satildeo infinitas haacute o movimento do mundo observado e o
movimento do olhar do apa~ato que observa Quando a imagem eacute de rosshy
tos tenho a interaccedilatildeo dos olhares (lue se confrontam verdadeira orquesshy
traccedilatildeo o olho que vecirc e o que eacute vi~to tecircm ambos sua dinacircmica proacutepria e
cada um de noacutes jaacute teve ocasiOtildees de avaliar com maior ou menor consciecircnshy
cia a intensidade dos efeitos extraiacutedos dessa orquestraccedilatildeo
O usufruto desse olhar privilegiacuteado natildeo a sua anaacutelise eacute algo que o
cinema tem nos garantido propiciando essa condiccedilatildeo prazerosa de ver
o mundo e estar a salvo ocupar o centro sem assumir encargos Estou preshy
sente sem participar do mundo observado Puro olhar insinuo-me invishy
shrel nos espaccedilos a interceptr os ~ihares de dois interlocutores escrutishy
narreaccedilotildees e gestos explorar ambientes de longe de perto Salto com
velocidade infinita de um poacutento a outro de um tempo a outro Ocupo
posiccedilotildees do olhar sem comprometer o corpo sem os limites do meu corshy
po Na ficccedilatildeo cinematograacutefica junto com a cacircmera estou em toda parte c
em nenhum lugar em todos os cantos ao lado das personagens mas sem
preencher espaccedilo sem ter presenccedila reconhecida Em suma o olhar do
cinema eacute um olhar sem corpo Por isso mesmo ubiacutequo onividente Idenshy
tificado com esse olhar eu espectador tenho o prazer do olhar que natildeo
estaacute situado natildeo estaacute ancorado vejo muito mais e melhor
Observando a experiecircncia por esse acircngulo como entatildeo natildeo exaltar
o cinema Como natildeo pensar sua teacutecnica de base cm termos de
de progresso Retomemos um clima tiacutepico do iniacutecio do seacuteculo
o PRIMEIRO ELOGIO AgraveS DO OLHAR
O MOMENTO DA PROMESSA
Alguns cineastas e estetas dos anos 10-20 deixaram registradas as duas reashy
ccedilotildees a esse lado prodigioso da oferecida pela entatildeo nova teacutecnica de
reproduccedilatildeo Pensaram o cinema quando sua mediaccedilatildeo era um dado inaushy
gural que gerava certas descobertas uma eacuteonstelaccedilatildeo de sentimentos e pershy
cepccedilotildees novos ainda natildeo bem equacionados que exigiacuteam novos conceitos
um trabalho com a linguagem escrita para expressar o lado mais peculiar da
nova experiecircncia Hoje eacute praticamente impossiacutevel recuperar vivamente
aquele momento noacutes que crescemos satur~ados de imagens e nos movemos
num mundo em que o que era antes promessa dc revoluccedilatildeo se faz agora
dado banal do cotidiano experiecircncia reiterada De uma pluralidade de reashy
ccedilotildees elogios desconfianccedilas destaco dois tipos de recepccedilatildeo ao advento do
cinema Na primcira ele eacute observado como coroamento de um projeto jaacute
definido na esfera da representaccedilatildeo na segunda vislumbra-se o cinema
enquanto inauguraccedilatildeo de um universo de expressatildeo sem precedente destishy
nado a provocar uma ruptura na esfera da representaccedilatildeo
Aqueles que o vecircem com simpatia como um coroamento inserem
o cinema na tradiccedilatildeo do espetaacuteculo dramaacutetico mais popular de grande
vitalidade no seacuteculo raquoIX Avaliam que cumprindo os mesmos objetivos
o cinema vai mais longe pois multiplica os recursos da representaccedilatildeo faz o
36 37
I I
espectador mergulhar no drama com mais intensidade O olho sem corshy t po cerca a encenaccedilatildeo torna tudo mais claro enfaacutetico expressivo ao narshy
rar uma histoacuteria o cinema faz fluir as accedilotildees no espaccedilo e no tempo e o I
mundo torna-se palpaacutevel aos olhos da plateacuteia com uma forccedila impensaacutevel I em outras formas de representaccedilatildeo Ou seja em seu tornar visiacutevel a meshy
rdiaccedilatildeo do olha cinematograacutefico otimiza o efeito da ficccedilatildeo cumprindo com
muita competecircncia uma tarefa que na esfera da cultura considera-se como Jproacutepria da arte e em especial dos espetaacuteculos Ao exaltar esse salto na efishy ccedil
iciecircncia dentro d~ continuidade de princiacutepios e funccedilotildees os criacuteticos cineasshy
tas e prod~tores afinados agraves regras do mercado cultural da eacutepoca celebram
o na produccedilatildeo industrial do seacuteculo xx de um projeto que vem do
seacuteculo XVIII e que se definiu na origem para a representaccedilatildeo teatraL
Eacute comum sermos lembrados ~o quanto a cacircmera fotograacutefica constishy
tui uma objetivaccedilatildeo tecnoloacutegica recente de princiacutepios da representaccedilatildeo jaacute I
conhecidos cuja sistematizaccedilatildeo vem do Renascimento italiano (cacircmara i iacuteescura o meacutetodo da perspectiva os efeitos de profundidade na superfiacutecie
da tela) Com a imagem em movimento o representar a dos homens iacute se daacute com a franca hegemonia do ilusionismo a encenaccedilatildeo tal e qual o I real plantado no cinema industrial desde os tempos de D W Griffith
Fato que cristaliza uma heranccedila menos tematizada pela criacutetica a do olhar Ital como constituiacutedo no drama burguecircs Aqui a referecircncia teoacuterica essenshy
cial eacute Diderot No momento em que escreve suas peccedilas e formula a teoria trenovadora do teatro definiuacutedoo drama seacuterio burguecircs do seacuteculo XVIII
~ um elemento central no seu ideaacuterio eacute a criacutetica ao teatro vinculado aos ~
gecircneros claacutessicos - principalmente ao tipo de encenaccedilatildeo que se dava agraves
trageacutedias claacutessicas francesas do seacuteculo XVII Esse teatro por demais ancoshy
rado na palavra depende da exclusiva forccedila poeacutetica do texto desdenhanshy
doo aspecto visual da experiecircncia do palco Ou eacute incapaz de elaboshy
rar a cena propriamente dita tal como o filoacutesofo a entende explorando a
expressividade do gesto e a cocircmposiccedilatildeo visual da cena (os tableaux consshy
truiacutedos pela posiccedilatildeo reciacuteproca dos atores e da cenografia)
Diderot queria um teatro dirigido agrave sensibilidade por meio da reshy
produccedilatildeo integral das aparecircncias do mundo queria um meacutetodo de dar
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a ver as situaccedilotildees os gestos as emoccedilotildees O ilusionismo fonte do enshy
volvimento da plateacuteia eacute entatildeo assumido como a ponte privilegiada no
caminho da compreensatildeo da experiecircncia humana da assimilaccedilatildeo de
valores da explicitaccedilatildeo de movimentos do coraccedilatildeo Tal demanda proacutepria
do universo da Ilustraccedilatildeo do seacuteculo XVIIl tem seus desdobramentos e
depois da Revoluccedilatildeo Francesa em outra atmosfera social e
explode no teatro popular de 1800 Aiacute se consolida o gecircnero dramaacutetico
de massas por excelecircncia o melodrama Esse tem sido por meio do teashy
tro (seacuteculo do cinema (seacuteculo xx) e da TV (desde
taccedilatildeo mais contundente de uma busca de expressividade
moral) em que tudo se quer ver estampado na superfiacutecie do mundo na
ecircnfase do gesto no trejeito do rosto na eloquumlecircncia da voz Apanaacutegio do
exagero e do excesso o melodrama eacute o gecircnero afim agraves grandes revelashy
ccedilotildees agraves encenaccedilotildees do acesso a uma verdade que se desvenda um
sem-nuacutemero de misteacuterios equiacutevocos pistas falsas vilanias Intenso nas
accedilotildees e sentimentos carrega nas reviravoltas ansioso pelo efeito e a
comunicaccedilatildeo envolvendo toda uma pedagogia em que nosso olhar eacute
convidado a apreender formas mais imediatas de reconhecimento da
virtude ou do pecado N a virada do seacuteculo XIX para o XX natildeo surpreende que a teacutecnica do
cinema entatildeo emergente tenha assumido essa pedagogia e tenha substishy
tuiacutedo o melodrama teatral na satisfaccedilatildeo de uma demanda de ficccedilatildeo na soshy
ciedade Quando falo em ilusionismo reproduccedilatildeo das aparecircncias na vershy
dade que adveacutem do conflito de forccedilas que se expressam e se revelam pelo
olhar estou afirmando princiacutepios da representaccedilatildeo aos quais o cinema vem
se ajustar como uma luva Como braccedilo da induacutestria cultural ele
do movimento de objetivaccedilatildeo institucional da Ilustraccedilatildeo Sua
do olhar melodramaacutetico eacute o ponto-limite de um projeto de expressatildeo
total da natureza na representaccedilatildeo Reflete um ideal de domiacutenio e controshy
le da aparecircncia como sinal de conhecimento da natureza um ideal que
inscreve a arte como espelho pedagoacutegico que requer a competecircncia tecnoshy
loacutegica de criar ilusatildeo e por essamiddotvia atingir a sensibilidade a passagem
das trevas agrave luz se faz de efeitos sobre o olhar
39
Dentro do projeto de revelaccedilatildeo do mundo para o olhar os efeitos do
close-up logo adquirem a condiccedilatildeo de emblema das virtudes da nova arte
Mais do que a montagem - sua condiccedilatildeo preacutevia - o close-up na Franccedila e
nos Estados Unidos atrai o dos cineacutefilos corno ponto de condenshy
de um drama que se faz movimento dos olhos - o que vecirc e o
que eacute visto - e pela trama formada pela sucessatildeo de detalhes
e reveladores Corno movimento em direccedilatildeo agrave intimidade e V1stO corno
potecircncia maior do cinema que muito cedo impressionou a todos pela sua
capacidade de devastaccedilatildeo das intenccedilotildees ocultas do pequeno gesto fora do
alcance dos interlocutores do movimento facial que trai um sentimento
Natildeo foi preciso a manifestaccedilatildeo da criacutetica cineastas e produtores conduzishy
ram as experiecircncias reveladoras da forccedila dramaacutetica do rosto isolado na e usando a tradicional muito antes de 1920 jaacute insshy
truiacutea seus atores para a dos olhos - janela da alma _ trazishy
dos para perto no close-up para o exame
Foco das atenccedilotildees e dos o close-up estaraacute em I920 tambeacutem
no centro das reflexotildees de quem afastado dos valores promovidos pela
induacutestria do cinema observa seus prodiacutegios com outra moldura de inteshy
resses e julga os filmes do mercado por demais domesticados pela
demanda de ficccedilatildeo que induz o novo meio a seguir os passos do teatro e
da literatura popular Encontramos aqui quem vecirc o cinema como ruptushy
ra espectadores avessos aos do filme de accedilatildeo corrente cinecircfilos
natildeo interessados na fluecircncia dos acontecimentos no pulsar da
nas tensotildees dramaacuteticas usuais Por intermeacutedio deles o cinema uma
recepccedilatildeo mais empenhada em surpreender aspectos da plaacutestica da imashy
gem do trabalho da cacircmera e da presenccedila peculiar do mundo na tela que
permanecem recalcados na visatildeo dominante Para esse olhar diferenciashy
do por meio do cinema toda urna esfera nova de percepccedilotildees abre-se agrave
nossa experiecircncia desde que sejamos capazes de entender a expressividashy
de da nova imagem em outros termos elogiando sim o mas denshy
tro de urna outra oacutetica a de quem entende o cinema natildeo como coroamenshy
to do ilusionismo teatral mas como ruptura inauguraccedilatildeo de um novo diaacutelogo com a natureza e os homens
4deg
Satildeo os intelectuais e artistas ligados agrave arte moderna que lideram essa
nova leitura do cinema de uma perspectiva que na Franccedila traduziu-se no
cineacutema davant-garde nas experiecircncias dos surrealistas e nas polecircmicas
que tiveram como pauta a superaccedilatildeo da moldura melodramaacutetica a libershy
taccedilatildeo do olhar sem corpo das amarras da continuidade narrativa a adeshy
da nova arte agrave sua teacutecnica moderna A
fcrentes grupos postos de lado os conflitos que os
cinema destina-se a uma tarefa de redenccedilatildeo A cultural
do Ocidente europeu estaria falida o poder criador preso a convenccedilotildees
obsoletas saturado de referecircncias que o desvigoram Enredado em formas
de pensar e sentir desgastadas o homem culto se vecirc separado da natureshy
za reprimido cercado de mentiras de clichecircs da de maacutescaras
O cinema eacute radicalmente novo inocente e traz a da tecnologia
Ele pode e deve romper essa grade devolvendo aos homens o acesso a
uma natureza alienada pelos artifiacutecios de uma cultura
A vanguarda se estabelece como cultUra de separando o
espaccedilo utoacutepico da verdade (cinema vida futura) e o espaccedilo da mentira da
convenccedilatildeo (tradiccedilatildeo literaacuteria teatro cotidiano burguecircs) Sua feacute no cinema
ancora-se numa ideacuteia de expressatildeo que tambeacutem se apoacuteia na acuidade de
reproduccedilatildeo da aparecircncia proacutepria da nova teacutecnica mas com um traccedilo pecushy
liar que afasta a do pensamento gerado na esfera da induacutestria
Germaine Dulac e Epstein principais porta-vozes da avant-ga
concebem o cinema corno expressividade do mundo num sentido radishy
ca1 Combatem a vaga que nos leva a sob qualquer pretexto
isto expressa aquilo de um modo que equivale a isto significa aquilo
dentro dos variados caminhos pelos quais vamos de um poacutelo a outro do
significante ao significado Reservam expressatildeo para designar um proshy
cesso determinado impelido por forccedilas naturais no a composiccedilatildeo de
forccedilas interior a um organismo deixa narcas na do mesmo shy
eacute o movimento nelo Qual ci Que estaacute no interior vem forcosashy
mente agrave tona a forma
I Cf Xavier Seacutetima arte um cuto moderno (Satildeo Paulo 1978)
41
vel) que o cinema vemcaptar com exclusividade pois fixa os movimenshy
tos na peliacutecula sem as atrapalhaccedilotildees do olho natural O cinema tem seu
vigor proacuteprio de um olhar mais automaacutetico
natildeo maculado pelos preconceitos culturais
dade Eacute irocircnico que justamente porque natildeo tem interioridade o olhar
da maacutequina possa atingir o princiacutepio interior dos movimentos revelar a
verdade que organicamente expressa-se em sentido pleno imprime-se
numa textura do mundo que soacute a cacircmera eacute capaz de registrar O proacuteprio
instantacircneo fotograacutefico em sua estrutura mais simples jaacute nos mostra o
quanto a imagem revelada faz emergir dados ocultos que natildeo estavam na
mira do fotoacutegrafo No cinema o movimento poteacutencializa tal desocultashy
mento o qual pode tornar-se mais efetivo quando os cineastas forem cuacutemshy
plices da nova teacutecnica em vez de tentar agrave como no
melodrama a expressividade do fica atrelada a toda uma
cadeia de loacutegica eacute tomada de empreacutestimo agrave do natushy
em que o tOrnar visiacutevel resulta do de uma retoacuterica que ~rH+tia Para
o que era aaequado ao teatro - como ilusionismo do seacuteculo XIX natildeo o eacute para o cinema do seacuteculo xx pois a
imitaccedilatildeo dos gestos antes oferecida a olhos desarmados natildeo resiste agrave anaacuteshy
lise da nova sensibilidade Com o cinema a percepccedilatildeo humana ganhou
um acesso especial agrave intimidade dos processos - ~ele a aparecircncia eacute jaacute uma
anaacutelise O cose-up natildeo eacute o lugar do fingimento eacute uma presenccedila que reveshy
la o que se eacute natildeo o que se pretende ser (inuacuteteis as caretas dos
A aposta da vanguarda estaacute no poder analiacutetico do cinematoshygraacutefico no que ressalta natildeil
espaccedilo) mas tambeacutem as
mente a cacircmera lenta (arnplia(acirco no eixo do tempo) que reveshyIa o mundo em outra e de~cobre-nos a vida secreta que se tece a
nossa volta e em noacutes ganhando ~xpressatildeo nas formas instaacuteveis fora da
nossa consciecircncia que temo~ fixadas pela teacutecnica2 Epstein nos seus
2 Essa aposta no poder analiacutetko do dnema tem uma versatildeo radical moshymento na Uniatildeo Sovieacutetica encarnada rio projeto do Cine-Olho de Vertov gt
42
o ~__ao~ das diferentes velocidades
do movimento animal e dos fenocircmenos Fershy
nand Leacuteger as relaccedilotildees e a forma dos objetos fora de sua inserccedilatildeo
utilitaacuteria no cotidiano Embora natildeo totalmente afinado ao cineacutema dayantshy
garde o surrealismo torna-se o movimento de contestaccedil50 ao cinema inshy
dustrial de maior impacto com sua exploraccedilatildeo da montagem como reveshy
laccedil50 das pulsotildees anatomia do desejo Em diferentes busca-se a
experiecircncia fora do senso comum o olhar em sintonia com ~l~r
do - a sensibilidade efetivamente moderna A
(Epstein) surge entatildeo como nova pedagogia
ccedilatildeo ao cenaacuterio do melodrama - pois o cincma teria como destino
trazer-nos de volta uma cosmologia e um encantamento do mundo para
os quais o cartesianismo e a filosofia da Ilustraccedilatildeo cegos
O horizonte desse renascimento seria a explosatildeo do universo carceraacuterio
da existecircncia atual (para usar a expressatildeo de Walter Benjamin em seu
ceacutelebre ensaio de T936 ao falar de reproduccedilatildeo teacutecnica arte e
A formulaccedilatildeo de Epstein-Dulae eacute questionaacutevel auando examinada a
partir de sua ideacuteia-matriz de expressatildeo
analiacutetico (inegaacutevel) da ~~a~Mrl~ aiacute uma feacute inteshy
gral no dado visiacutevel na caj)acldlde exclusiva de
suas relaccedilotildees internas trazer a verdade agrave tona
agrave ao contexto de cada a~aM~A mais de-
no entanto estaacute no impulso utoacutepico nela presente c no salto teoacuterico
que oferece ao buscar um pensameMo agrave alwra dos aspectos radicalmente
novos da experiecircncia do cinema no inicio do seacuteculo Benjamin o filoacutesofo
atento agraves transformaccedilotildees da sensibilidade geradas pelas novas diraacute
em 1936 A natureza que se dirifie dmera natildeo eacute a mesma que a que se
dirige ao olhar Essas c outras suas - sobre o ator o
gt que procura realizar no cinema documentaacuterio a verdade que desmascara a culshy
tura tradicional A cIacutee Vertov diante dos franceses eacute a
ccedilatildeo que ele estabelece cntre desmascaramento e exposiccedilatildeo dos processos efetivos
da Drodudiacuteo social das relaccedilotildees de atraveacutes do montagem cinematogniacutefica
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analiacutetico da Imagem retomam muito do repertoacuterio da vanguarda dos anos
20 inserindo a caracterizaccedilatildeo do olhar do cinema numa reflexatildeo mais amshy
pIa sobre teacutecnica e cultura Nessa reflexatildeo a moldura eacute outra mas prevalece
o mesmo movimento de ressaltar o papel subversivo revelado r da fotoshy
grafia e do cinema dentro da cultura europeacuteia A promessa entatildeo se reafirshy
ma sem as premissas de eXflressividade total e de retorno agrave natureza
Com Benjamin ela aSSume um contorno histoacuterico mais bem demarcado eacute
por um persamento mais sensiacutevel agrave contradiccedilatildeo e ao caraacuteter das
forccedilas sociais em conflito Pensamento que nos trouxe uma avaliaccedilatildeo da
questatildeo da arte dentro de uma articulaccedilatildeo mais luacutecida com a conjuntura
poliacutetica e a proacutepria natureza das apostas em na Europa dos anos 30
polarizada por uma confrontaccedilatildeo decisiva entre revoluccedilatildeo e reaccedilatildeo
A CRiacuteTICA DO OLHAR SEM CORPO
No seu elogio ao aspecto revelador do olhar no cinema o pensamento
dos anos 20 colocou o debate em termos de verdade (cinema) emendra
(tradiccedilatildeo cultural) e deu toda ecircnfase agrave cumplicidade entre cinema e natushy
reza solidaacuterios enquanto um organismo e sua expressatildeo visual prontos a
expulsar a simulaccedilatildeo desde que a nova teacutecnica fosse salva de su~ adultera-
promovida pelo universo da mercadoria Por esse a oposishyentre um cinema desejado objeto do recalque e aquele que
realmente impera (a pedagogia da induacutestria orienta-se por uma teleoIOPla o presente eacute o mOmelItO dos entraves que impedem o desenshy
volvimento na direccedilatildeo COrreta eacuteapaz de realizar as promessas da nova
teacutecnica o futuro eacute o preenchimen~o dessas promessas que desde jaacute as vanshy
guardas anunciam e preparam Entre 1920 e J960 os poderes reais inshy
sistiram em repor o mesno cinema dominante o que trouxe em linhas
a reiteraccedilatildeo da mesnla matriz de contestaccedilatildeo O conflito dominanshy
tedominado traduzido em termos de verdade e refez-se ao
longo de eixos diversos Quando prevaleceu um eixo poliacutetico o poacutelo da
verdade (futuro) identificou-se agrave cultura revolucionaacuteria o da mentira
presentet agraves mistificaccedilotildees da reaccedilatildeo Quando prevaleceu um eixo esteacutetishy
co verdade foi poesia originalidade experimentaccedilatildeo mentira foi a rotishy
na do comeacutercio o kitscll industrializado
Natildeo cabe agora a recapitulaccedilatildeo do que foram as diferentes versotildees
desse conflito vanguardacultura de massa em cada e eacutepoca Natildeo o
poderia fazer nem quero pois meu objetivo eacute saltar dessa primeira refleshy
xatildeo dos anos 20 para uma mais proacutexima de gerada no contexto franshy
cecircs poacutes-68 reflexatildeo que abandonou a tradiccedilatildeo de opor verdade e mentishy
ra deslocando a discussatildeo sobre a teacutecnica do cinema
No grande intervalo que a criacutetica avanccedilou na caracterizashy
ccedilatildeo do olhar sem corpo e suas implicaccedilotildees notadamente na avaliaccedilatildeo de
sua estrutura mais comunicativa e sedutora o cinema olhar da
induacutestria da ideologia dominante nos meios Extensatildeo do qlle
chamei olhar melodramaacutetico o cinema claacutessico eacute sua modernizaccedilatildeo Faz
com que ele abandone os excessos maiores do ganhe em
profundidade dramaacutetica amplitude temaacutetica concretizando o ver mais e
melhor do cinema na direccedilatildeo de um ilusionismo mais completo - o cineshy
ma claacutessico eacute o olhar sem corpo atuando em sentido
caracterizaccedilatildeo dos seus poderes apresentada em minha primeira
que de fato ajusta-se mais precisamente a esse estilo particular dOJTIinanshy
te no mercado e natildeo a todo o cinema possiacutevel Eacute nele mais do que em
qualquer outra proposta que vemos realizado o de intensificar ao
extremo nossa relaccedilatildeo com o mundo-objeto fazer tal mundo parecer autocircshy
nomo existente em seu proacuteprio direito natildeo encorajando perguntas na
direccedilatildeo do proacuteprio olhar mediador sua estrutura e comportamento Soshy
mos aiacute convidados a tomar o olhar sem corpo como dado natural
Entre a Segunda Guerra Mundial e os anos 60 dois grandes
de reflexatildeo conduziram a criacutetica a essa naturalidade postulada pelo cineshy
ma claacutessico a teoria radical do cinema-discurso baseado nas operaccedilotildees da
montagem (o Eisenstein dos anos 20-30 permaneceu aqui a referecircncia
central) e a criacutetica francesa inspirada na fenomenologia tendo como [oco
maior Andreacute Bazin3
3 Cf Bazin Cinema ensaios trad Eloisa Ribeiro (Satildeo Paulo Brasilicnse 1991)
44 45
Falar de Eisenstein exigiria uma abordagem radicalmente distinta da
que faccedilo agora pois sua criacutetica ao ilusionismo COmeccedila com a advertecircncia
de que a imagem cinematograacutefica natildeo deve ser lida c0f110 produto de um
olhar Para ele a suposiccedilatildeo de que houve um encontro uma contiguumlidade
espacial e temporal entre cacircmera e objeto natildeo eacute O dado central e impresshy
cindiacutevel da leitura da imagem Sua presenccedila na tela eacute um fato de natureza
que deve ser observado em seu valor simboacutelico
caracteriacutesticas de sua composiccedilatildeo e sua no Contexto de um discurshy
so que eacute exposiccedilatildeo de ideacuteias natildeo sucessatildeo natural de fatos captados
pelo olhar A diferenccedila entre um plano geral e um cose-up por
muitas vezes natildeo pode ser entendida como olhar versus
olhar de mesmo quando se focaliza o mesmo ODjeto mas como
confronto de duas imagens de valores distintos A diferenccedila eacute de
natildeo de posiccedilatildeo no espaccedilo pois pode natildeo haver COntinuidade e
homogeneidade espacial para que se possa falar num mais perto
- tudo depende do contexto do discurso por imagens
Ao contraacuterio de Eisenstein os criacuteticos inspirados na fenomenologia
endossam e defendem a premissa de que no cinema toda imagem eacute proshy
duto de um olhar - eacute essencial que ela seja vista como tal- e a sucessatildeo
define sempre a atitude do observador diante de um mundo homogecircneo
Agrave imagem-signo de Eisenstein eles opotildeem a imagem-acontecimento agrave
defesa da descontinuidade proacutepria do cineasta russo respondem Com
uma defesa ateacute mais radical do princiacutepio de continuidade jaacute presente na
narraccedilatildeo claacutessica fazendo a ela um reparo fundamental se a imagem em
movimento nos traz a percepccedilatildeo privilegiada do homem como ser lanccedilashy
do no mundo como ser-em-situaccedilatildeo a falsidade do cinema claacutessico estaacute
na manipulaccedilatildeo impliacutecita em sua montagem o olhar sem corpo e a
onividecircncia criam na tela uni mundo abstrato de sentido fechado preshy
julgado e organizado pelo cin~ina Toda montagem eacute discurso manipulashy
ccedilatildeo de Eisenstein de GrUacutefith ou de Bufiacuteuel Em oposiccedilatildeo um criacutetishy
co como Bazin solicita um olhar cinematograacutefico mais afinado ao olho de
um sujeito circunstanciado que p6ssui limites aceita a abertura do
mundo convive com ambiguumlidades Quando pede realismo ele natildeo se
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deteacutem em consideraccedilotildees de conteuacutedo (o tipo de universo Ciccional ou doshy
cumentaacuterio) Sublinha a postura do olhar em sua interaccedilatildeo com o mundo
tanto mais legiacutetima quanto mais as condiccedilotildees de nosso olhar
ancorado no corpo vivenciando uma duraccedilatildeo e uma circunstacircncia em sua
continuidade trabalhando as incertezas de uma percepccedilatildeo
ultrapassada mundo Daiacute sua minimizaccedilatildeo da montagem (instacircncia
construtora da onividecircncia) sua defesa do plano-seguumlecircncia (olhar uacutenico
sem cortes observando uma em seu um acontecimento
em seu fluir
Numa visatildeo mais atual prestamos atenccedilatildeo especial ao que aproxima
e natildeo apenas ao que afasta o cinema-discurso de Eisenstein e o realismo
existencial de Bazin haacute em ambos novamente a atribuiccedilatildeo de um poder
de verdade e de um poder de mentira encarnados em determinados estishy
los Para Eisenstein haacute um estilo capaz de dizer o mundo social-histoacuterishy
co colocando o cinema como potecircncia maior no plano do conhecimento
Para Bazin O cinema eacute uma espeacutecie de terceiro estado da e exisshy
te um estilo autecircntico na captaccedilatildeo da vivecircncia humana em sua
essencial abertura no tempo
Contra esse pano de fundo da tradiccedilatildeo teoacuterica a intervenccedilatildeo de
]ean-Louis Baudry em 1969-70 em questatildeo a constante promessa de
um estilo mais verdadeiro e dirige seu ataque agraves premissas do cinema em
geral examinando mais a fundo as condiccedilotildees do espectador raciociacuteshy
nio estaacute municiado para analisar o espectador do filme claacutessico mas
fala em cinema tout couTe) 4 O horizonte de seu exame eacute ressaltar o
modo pelo qual a recepccedilatildeo da imagem possui uma estrutura que a seu ver
solapa o reiterado creacutedito - de Eisenstein Griffith Epstein na
da verdade como destinaccedilatildeo fundamental do cinema Ele invershy
te a tradiccedilatildeo e vecirc na simulaccedilatildeo na de efeitos (ilusoacuterios) de
conhecimento o destino maior da nova arte (visatildeo que
4 O mais importante dos textos de Jean-Louis dessa
1970 Os efeitos ideoloacutegicos do de base estaacute publicado em Ismail
Xavier (orll) A experiecircncia do cinema (Rio de Janeiro
47
pela permanecircncia do ilusionismo do cinema industrial) Isso se daacute por
forccedila da proacutepria natureza da teacutecnica cinematograacutefica herdeira das ilusotildees _
da perspectiva da persistecircncia retiniana (natildeo vemos os fotogramas vemos
o que natildeo ocorre na tela ou seja o movimento da imagem e temos a imshy
pressatildeo de continuidade) da falsa autenticidade documental da fotografia
Rearticulando elementos jaacute conhecidos Baudry nos traz uma interpretashy
ccedilatildeo radical que- questiona natildeo estilos particulares de fazer cinema mas o
fundamento mesmo de sua objetividade como teacutecnica essa mes~a objetishy
vidade que tem sido a sustentaccedilatildeo maior das esperanccedilas de verdade Na
nova perspectiva as diferentes posiccedilotildees teoacutericas desde 1920 definem um
pensar o cinema a priori capturado pelas ilusotildees da teacutecnica e desatento agraves
implicaccedilotildees contidas na proacutepria estrutura do olhar da cacircmera tal como se
daacute para noacutes na plateacuteia A teacutecnica tem suas inclinaccedilotildees seus efeitos ideoloacuteshy
gicos e nesse sentido eacute ela mesma que impele o cinema industrial a desenshy
volver seu ilusionismo e trazer o espectador para dentro do mundo ficcioshy
na A forccedila de encantamento desse cinema persiste na histoacuteria porque o
dado crucial em jogo natildeo eacute tanto a imitaccedilatildeo do real na tela _ a reproduccedilatildeo
integral das aparecircncias - mas a simulaccedilatildeo de um certo tipo de sujeito-doshy
olhar pelas operaccedilotildees do aparato cinematograacutefico
Avaliar a potecircncia do olhar sem corpo natildeo eacute entatildeo inventariar as
imagens que ele oferece efocaIacuteIacutezar o seu movimento proacuteprio sua forma
de mediaccedilatildeo o que impiacuteica analisar sua incidecircncia no espectador que
vivenda o poder de clarividecircncia a percepccedilatildeo tota Na sala escura idenshy
tificado com o movimento do olhar da cacircmera eu me represento como
sujeito dessa percepccedilatildeo total capaz de doar sentido agraves coisas sobrevoar as
aparecircncias fazer a siacutentese do mundo Minha emoccedilatildeo estaacute com os fatos
que o olhar segue mas a cbndiccedilatildeo desse envolvimento eacute eu me colocar no
lugar do aparato sintoniz~do com suas operaccedilotildees Com isso incorporo
(ilusoriamente) seus poder~s e ericontro nessa sintonia - solo do entendishy
mento cinematograacutefico - o maior cenaacuterio de simulaccedilatildeo de uma onipotecircnshy
cia imaginaacuteria No cinema faccedilo uma viagem que confirma minha condishy
ccedilatildeo de sujeito tal como a desejo Maacutequina de efeitos a realizaccedilatildeo maior do
cinema seria entatildeo esse efeito-sujeito a simulaccedilatildeo de uma consciecircncia
48
transcendente que descortina o mundo e se vecirc no centro das coisas ao
mesmo tempo que radicalmente separada delas a observar o mundo coshy
mo puro olhar Nessa apropriaccedilatildeo ilusoacuteria da competecircncia ideal do olhar
estou portanto no centro mas eacute o aparato que aiacute me coloca pois eacute dele o
movimento da percepccedilatildeo monitor da minha fantasia
Para Baudry uma filosofia idealista que postula um sujeito transshy
cendente em oposiccedilatildeo ao mundo objetivo que se dispotildee ao conhecimento
encontra aiacute na teacutecnica do cinema sua traduccedilatildeo visiacutevel Toda sua ecircnfase
recai sobre a produccedilatildeo simultacircnea da imagem e do sujeito-observador
onividente A engenharia simuladora do cinema define com o efeitoshy
sujeito seu teatro da percepccedilatildeo total cujo protagonista sou eu-espectador
identificado com o olhar da cacircmera
N esses termos o que dificulta a consolidaccedilatildeo de linguagens alternashy
tivas mais verdadeiras eacute esse pecado original inscrito na teacutecnica Esta
tem na ilusatildeo seu sustentaacuteculo e os percalccedilos das vanguardas devem-se a
que sua aposta eacute reverter a funccedilatildeo daquilo que jaacute nasceu para cumprir
outro destino Digo destino porque a loacutegica dessa teoria transforma o cineshy
ma num oacutergatildeo que surgiu para cumprir um programa o de objetivar na
esfera do visiacutevel estrateacutegias de dominaccedilatildeo especialmente as da classe burshy
guesa que presidiu sua origem Assim antes de instacircncia liberadora subshy
versiva a condiccedilatildeo do cinema eacute preencher uma demanda do proacuteprio unishy
verso carceraacuterio tornando-o mais preciso e poderoso em seu aparato
Haacute uma atmosfera de desencanto instalada a partir dos anos 70 a
formulaccedilatildeo aqui exposta eacute a traduccedilatildeo teacuteoacuterica radical dos impasses da conshy
testaccedilatildeo no cinema Temos o esgotamento de uma teleologia a da teacutecnishy
ca redentora entravada pela poliacutetica e a economia e sua substituiccedilatildeo
por u~a outra a da teacutecnica como instrumento maior de reposiccedilatildeo de um
sistema de poder Em consonacircncia corn a tonalidade da reflexatildeo sobre a
linguagem a cultura e a ideologia naquele momento a teoria do cinema
mais original e polecircmica ressalta o lado sistemaacutetico inelutaacutevel das ilusotildees
e dos enganos do olhar da cacircmera Nesse contexto a proacutepria praacutetica do
cinema amplia o espaccedilo para a reflexatildeo teoacuterica voltada para a questatildeo do
simulacro - a citaccedilatildeo a imagem que-alude agrave imagem o circuito das refeshy
49
recircncias a si mesmo que o cinema leva ao paroxismo entram para valer na
esfera da induacutestria constituem sua nova marca Tal reflexatildeo se faz dentro
de molduras conceituais diversas e num processo em que a teoria do
cinema reflete o andamento dos debates mais abrangentes sobre a cultura
contemporacircnea A imagem cinematograacutefica eacute entatildeo obseJvada a partir de
sua participaccedilatildeo em outra rede de relaccedilotildees em que natildeo haacute para a
interpretaccedilatildeo (esse tomar a imagem como representaccedilatildeo de algo exterior
a ela) para o juiacutezo da verdade ou mentira em que se a oposlccedilao
aparecircncia (imagem)essecircncia (substacircncia) -nada haacute por traacutes das lmlti~e~ns
elas valem como efeitos-de-superfiacutecie imagem remetendo a imagem fluxo de simulacros
Faccedilo agora uma incursatildeo que natildeo eacute propriamente no terreno da
nova filosofia e das questotildees mais amplas do simulacro na produccedilatildeo
Trata-se de uma anaacutelise particular no niacutevel da engenharia da simulaccedilatildeo
caracterizaccedilatildeo de um efeito na qual natildeo eacute necessaacuterio assumir as noccedilotildees
com a mesma ressonacircncia elas adquiriram na literatura dos anos 80
Fecho a exposiccedilatildeo com a consideraccedilatildeo de um novo exeacutemplo que acredishy
to esclareccedila algumas observaccedilotildees feitas ateacute aqui sobre a interaccedilatildeo entre
espectador e imagem sobre o papel da moldura do sujeito na leitura
Parti de um primeiro exemplo mais simples para explicar como o
efeito de uma depende de sua ~elaccedilatildeo com o sujeito em determishy
nadas condiccedilotildees Da situaccedilatildeo da testemunha de McCarthy passei a uma
caracterizaccedilatildeo mais detida do olhar do cinema e examinei dois momenshy
tos opostos dentro do conflito de perspectivas que marcou a reflexatildeo criacuteshy
tica em torno do que hiacute de erigano e rcvelaccedilatildeo nesse olhar A partir de
uma discussatildeo mais sobre a simulaccedilatildeo do fato - na fotografia no
cinema chegamos a uma questatildeo mais especiacutefica a simulaccedilatildeo do sujeishy
to na estrutura mesma (lo olhar cinematograacutefico Dentro da discussatildeo
mais geral o exemplo a envolve uma situaccedilatildeo mais complicada do
quea das fotos do tribunal estaremos no cinema Como inspiraccedilatildeo
terei presentes as liccedilotildees de Baildry sem no entanto incorporar o movishy
mento totalizador de suaacute criacutetica ao olhar do cinema Seu amplo diagnoacutesshy
tico mobilizando a psicaacutenaacutelise tem como pressuposto o fato de sabershy
0
mos o bastante sobre a natureza do espectador de modo a prever o caraacuteshy
tcr de sua identificaccedilatildeo com o aparato a qual assume uma dimensatildeo
uacutenica de adesatildeo agrave imagem por forccedila do efeito-sujeito Como conhecedoshy
res do desejo do espectador denunciamos o conluio desse desejo com o
programa da induacutestria e deduzimos daiacute as alienaccedilotildees do cinema e da
teacuteia Natildeo tenho condiccedilotildees de endossar a generalidade desse saber a resshy
peito do espectador o aparato atua em determinada direccedilatildeo mas a expeshy
riecircncia do cinema inclui outras forccedilas e condiccedilotildees que natildeo se ajustam ao
programa do sistema A formulaccedilatildeo dc Baudry embora inclua com toda
a forccedila a dimensatildeo do desejo do espectador natildeo deixa de ser outra vershy
satildeo das teorias da manipulaccedilatildeo global centradas em excesso no aspecto
da experiecircncia de modo a confundir o processo que efetishy
vamente ocorre com a loacutegica ideal do sistema Focalizo uma situaccedilatildeo
didaacutetica nesse contcxto em que eacute perfeito o funcionamcnto do
aparato cm quc podemos verificar o mecanismo da simulaccedilatildeo em estashy
do digamos de laboratoacuterio
IVIULALAU E PONTO OE VISTA
Toda leitura de eacute pr()(llltatildeo de um ponto de vista o do sujeito
observador natildeo o da objetividade (b irnagetnA condiccedilatildeo dos efeitos
da imagem eacute essa Em particular o ekilO rb apoacuteia-se numa
construccedilatildeo que inclui o fmguh do obSlrVIr1or O simulacro parece o
que natildeo eacute a partir de um pOIHo ele vista () sujeito estaacute aiacute pressuposto Porshy
tanto o processo elc simulaccedilatildeo nlo l o (Li imagemem si mas o da sua
relaccedilatildeo com o sujeito Num (gt1lt1110 elemelltar podemos tomar o cinema
como modelo do processo O (llIC eacute a fjltnilgcm senatildeo a organizaccedilatildeo do
I 1 I - C f dacontecllnento pra 11111 angu () (C o lscrvaccedilao o que se con un e com
Nessas asserccedilotildees no de Xavier Audouard Le Simulacrc in
eacutepisteacutemologie de lEcole Normale gtuucushy
rc n mai-jun 1966) O horizonte de Audouard eacute o de uma discussatildeo sobre o
idealismo platocircnico seu terreno eacute ponanto distinto e meu natildeo
ca uma identificaccedilatildeo agrave sua perspectiva de anaacutelise
i J
o da cacircmera e nenhum outro mais) O que eacute a fachada de preacutedio de estuacuteshy
dio senatildeo a duplicaccedilatildeo do mesmo princiacutepio da fachada de rua que sushy
gere o que natildeo eacute justamente quando observada de um certo acircngulo e disshy
tacircncia jaacute pressupostos em sua composiccedilatildeo O que eacute a ficccedilatildeo do cinema
senatildeo uma simulaccedilatildeo de mundo para o espectador identificado com o aparato
Vertigo (Um corpo que cai) O filme de Hitchcock realizado
em 1958 Ele eacute a trama da simulaccedilatildeo por excelecircncia como jaacute foi observashy
do pela criacutetica Trago um aspecto novo agrave consideraccedilatildeo o do espelhamenshy
to que existe entre o estratagema que envolve as personagens do drama e
o proacuteprio princiacutepio da narraccedilatildeo do filme Tal como em outras obras de
Hitchcltck o cinepa c1aacutessi~o aqui operagrave com eficiecircncia maacutexima e ao
mesmo tempo oferece a metaacutefora viva para o seu proacuteprio processo Inteshy
ressado nessa metaacutefora acentuo nesta anaacutelise a mecacircnica da simulaccedilacirco o
funcionamento exterior do aparato natildeo o que nas personagens eacute desejo
do estratagema e disposiccedilatildeo para a vertigem da imagem
Sigamos passo a passo a narrativa ateacute o ponto que interessa
Vertigem tiacutetulo original eacute a palavra que condensa as ideacuteias-forccedila
do filme em sua tematiacutezaccedilatildeo do olhar e do ponto de vista A apresentaccedilatildeo
de Vertigo criaccedilatildeo de Saul nos traz a imagem do rosto feminino em
close-up tratado como maacutescara enigmaacutetica imoacutevel Uma aproximaccedilatildeo
maior e um passeio da cacircmcra examinam essa maacutescara em seus detalhes
ateacute que isolado o olho ofereccedila os sinais de vida Os seus movimentos no
entanto natildeo criam uma ~xpressatildeo definida uma intcncionalidade do olhar
Preparam apenas o cenaacuterio ptra um movimentoem espiral na profundishy
dade Mergulho na inteacuteiioridaacutedc cujo fundo inatingiacutevel estaacute sempre em
recesso Aproximaccedilatildeo e recuo atraccedilatildeo e fuga a ambiguumlidade do movishy
mento da espiral ~ experiecircncia matriz de todo o filme cujo eixo eacute o
percurso de profissional do olhar detetive personificaccedilatildeo da
vertigem Logo na primeira sequumlecircncia define-se a questatildeo desse protagoshy
nista numa perseguiccedilatildeo telhados de Satildeo Francisco a vertigem de Scottie o faz responsaacuteveacutel pela morte de um
tentar ajudaacute-lo Sentimeriacuteto de cu1Da aposentadoria
52
lecida a disponibilidade total de a situaccedilatildeo-chave de Vertigo deseshy
nha-se quando ele atende ao chamado de Elster de escola que
no reencontro surpreende-o com o pedido para que sua mulher
Madeleine Elster mostra-se apreensivo com as manifestaccedilotildees de ausecircnshy
cia que ela apresenta com os periacuteodos de comportamento estranho em
que ela parece ser outra pessoa de que retoma sem lembranccedilas
O ex-detetive ensaia um ceticismo apenas aparente e dobra-se ao enigma
proposto Passa a acompanhar os trajetos de Madeleine pesquisa pela
recolhe dados essenciais Um primeiro quadro se compotildee a
ra que dela se apossa em seus transes eacute Cadota Valdez mulher que viveu
em San Francisco no seacuteculo XIX e que se suicidou em circunstacircncias meshy
lancoacutelicas Novamente com Elster Scottie relata as descobertas O marishy
do introduz novo dado Madeleine estaacute em perigo de vida pois descende
de Carlota outras mulheres da linhagem cometeram suiciacutedio e ela tem
agora a idade de Carlota ao morrer
Na primeiraacute seacuterie de passeios de Madeleine fase em que se compotildec
o quadro tivemos uma ostensiva duplicaccedilatildeo num primeiro plano Scortie
observa MadeJeine que natildeo reconhece sua presenccedila (ele estaacute fora do tershy
ritoacuterio dela) e se potildee disponiacutevel ao olhar movimentando-se como numa
cena num segundo plano ao longo do mesmo eixo a cacircmera observa
Scottie que Madeleine Satildeo duas uma dentro da outra que
natildeo se tocam Ela el)quadrada pelo ponto de vista dele ambos enquadra~
dos por noacutes no lugar da cacircmera Madeleine nunca devolve o olhar a Scotshy
tie devolve o olhar agrave cacircmera (regra do filme claacutessico) Mas eacute
ambiacutegua essa passividade pois eacute o movimento dela que dirige o olhar
dele eacute a accedilatildeo de ambos que dirige o nosso olhar sempre na esteira do
acircngulo de de Scottie com quem partilhamos a ignoracircncia a
curiosidade a descoberta
Apoacutes a segunda conversa com Elster o tema do suiciacutedio engendra
uma ruptura nesse esquema de perfeita simetria MadeleineCarlota
atira-se nas aacuteguas da baiacutea de San Francisco Scottie a resgata Permaneceshy
mos puro olhar ele passa ao plano da intervenccedilatildeo e do diaacutelogo Com os
dois juntos certa concretude o que em Scottie eacute jaacute sonho romacircnshy
53
tico tonalidade de experiecircncia ironicamente mimetizada pela textura do
filme projetada nos espaccedilos no som configurando um desfile de clichecircs
do melodrama Encarnando a figura hiacutebrida de e
terapeuta Scottie permeia cada encontro de inquIacutefIacuteAtildeM
sar o imaginaacuterio de MadeleineCarlota decifrar a
lt catarse reveladora curar a mulher por quem estaacute
coloca adiante dele na investigaccedilatildeo
A nova ruptura vem quando Scottie conduz Madeleine a uma Misshy
satildeo Catoacutelica perto de Satildeo Francisco procurando explorar um sonho dela
que ele julga revelador sinal de que a soluccedilatildeo do enigma estaacute e
com esta a salvaccedilatildeo superada a pulsatildeo de morte que a domina Laacute cheshy
gando tudo se precipita auando Madeleine abandona suas recaDitulacotildees e insiste em caminhar sozinha em agrave
de Scottie que natildeo consegue enfim retecirc-la e perceDe em pamco a torre
alta do sino A montagem alternada nos traz a pressa de Madeleine ao se
e agrave torre seguida de Scottie que como suspeitamos
da escada retido pela vertigem - e somos retidos
com ele Ouve-se o grito Por uma das aberturas da torre vislumbra-se o corpo que cai
O ex-detetive vive a reiteraccedilatildeo da a humilhaccedilatildeo puacuteblica de um
psicologicamente massacrado Elsshy
natildeo sem antes tambeacutem absolvecirc-lo Scottie entra em colapso eacute internado Quando retoma agraves ruas de San Francisco
destila sua no passado volta aos mesmos lugares quer encontrar
em cada mulher a figura perdida movido por qualquer semelhanccedila Um
dia depara com Judy (Kim Noacutevak novamente) diferente nas maneiras
no em termos de classe Em tudo o mais a reacuteplica de
Madeleine Ele a segue bate agrave porta do seu quarto de hotel explica seus
motivos convida-a para jantar Ela desconfia daacute provas de sua identidade
(sou Judy natildeo o conheccedilo) tenta a rejeiccedilatildeo mas finalmente aceita Satisfeishy
to ele diz a hora do encontro e retira-se Pela primeira vez em todo o filme
natildeo o acompanhamos nos separamos de seu ponto de vista De repente
natildeo eacute mais dele a moldura que define os contornos do nosso olhar Retishy
54
dos no quarto ficamos ao lado de
sem delongas que natildeo espera o final
Sozinha no quarto hesitante nervosa
assume o risco do reencontro com nova identidade JUdyI Madeleme reshy
a trama urdida por Elster Para livrar-se de sua mulher ele COl1shy
para simular Madeleine Ou seja assumir essa identidade
para aIguem colocado no ponto de vista de Scottie Elster sabia dos proshy
blemas do detetive aposentado e engendrou o esquema do crime que fez
de Scottie a testemunha ideal pois era esperado que nunca ao
topo para ver Madeleine ser atirada por ele Elster quando Judy com o
mesmo traje e aparecircncia chegasse certamente sozinha ao alto da torre
Pensando ser sujeito ativo na cura de MadeleineCarlota Scottie tentou
resgataacute-la e apaixonou-se por um simulacro por uma imagem constmiacuteda
para seu ponto de vista O dispositivo montado estava todo apoiado nas
posiccedilotildees reciacuteprocas de observador e imagem dueto que deu corpo agrave ficshy
ccedilatildeo consagrada a posteriori pela sistemaacutetica do tribunal (num estratagema
bem mais complexo Judy Madeleine ocupa o lugar da falsa evidecircncia
apresentada agrave testemunha no meu primeiro exemplo) O diagnoacutestico do
suiciacutedio que absolve Scottie eacute a consumaccedilatildeo do crime perfeito A posiccedilatildeo
de Elster - aquele que sabe - corresponde agrave posiccedilatildeo do dispositivo narrashy
dor da histoacuteria no cinema claacutessico (ele permanece agrave sombra e orquestra as
imagens) Portanto no enredo que coloca em cena Vertigo espelha ()
prio mecanismo desse cinema que via de regra constroacutei-se segundo a
loacutegica do crime define o meu ponto de vista daacute corpo ao simushy
lacro eacute monitor de meu desejo tal como o dispositivo Elster-Judy-Madeshy
leine-Carlota em a Scottic
O filme de Hitchcock vai natildeo se reduz agrave exposiccedilatildeo desse
mecanismo Este se encontra inserido num tecido de ~elaccedilotildees que envolshy
vem natildeo soacute a identidade e o desejo de Scottie mas tambeacutem a identidade
e o de (a natildeo foi apenas para ele a
Urna leimra mais completa de Vertigo exishy
~rlprriiacute() detalhada do movimento derradeiro da trama Reshy
para o estratagema do as permanecem na
55
esfera das duas personagens agora entregues agrave resoluccedilatildeo de todo o disposhy
sitivo de identidadesimulaccedilatildeovertigem6 Permanecendo poreacutem nas
consideraccedilotildees sobre o aparato do olhar que eacute meu objetivo central aqui
afasto-me do filme natildeo sem antes fazer breve referecircncia ao que na parte
final de Vertigo devolve-nos agrave questatildeo da leitura da imagem no cinema
No reencontro das personagens Scottie impelido por sua fixaccedilatildeo
na imagem do passado in~iste em fazer de Judy nos miacutenimos detalhes a
reacuteplica fiel de Madeleine Ao observar sua metamorfose redefinimos
nossa relaccedilatildeo com a cena antiga a imagem de Kim Novak era Judy que
era Madeleine agraves vezes Carlota Judy possuiacuteda por Madeleine (a possesshy
satildeo transferecircncia se refaz agora) Madeleine (Judy) falando de sentimenshy
tos que eram de Judy (Madeleine) numa duplicaccedilatildeo de palavras expresshy
sotildees gestos que natildeo permite definir os contornos que separam uma da
outra essas quatro presenccedilas Refiro-me a Kim N ovak porque todo o
estratagema do filme conta com os falsetes fragilidades de seu desempeshy
nho para o bom efeito A construccedilatildeo das identidades em abismo embarashy
Iha a enunciaccedilatildeo dos gestos como dizer quem expressa o quecirc quando a
accedilatildeo dramaacutetica requer um fingir fingimento num processo em cascata
Vertigo ilustra nesse aspecto o quanto a leitura do rosto estaacute atrelada agrave
moldura que possuo e natildeo agrave exclusiva expressividade da imagem Tudo
nas palavras e gestos de Judy Madeleine ganha um sentido novo a partir
de cada deslocamento do ponto de vista O que natildeo significa apenas uma
questatildeo de espaccedilo e informaccedilatildeo mas inclui de modo decisivo uma disshy
posiccedilatildeo particular do observador que completa a accedilatildeo invisiacutevel do aparashy
to (no caso para a consumaccedilatildeo dos efeitos desejados era preciso que o
espectador da cena fosse Scottie com seu perfil e seu passado)
6 Para uma leitura de Vertigo que trabalha o dispositivo identidade simulashy
ccedilatildeovertigem e em particular sua resoluccedilatildeo traacutegica ao final do filme ver Robin
Wood Hitchcocks Films (Nova York Castle Books 1969) no qual a moldura eacute a
psicanaacutelise e Nelson Brissac Peixoto Cenaacuterio em ruiacutenas (Satildeo Paulo Brasiliense
1987) cujo texto pressupotildee uma reflexatildeo sobre o mundo dos efeitos-de-superficie o vazio a dissoluccedilatildeo da origem o simulacrQ
Tomei Vertigo como um laboratoacuterio no qual sob controle exibe-se
uma engenharia da simulaccedilatildeo aqrelaacionada pelo olhar do filme claacutessishy
co a qual alia a forccedila de seduccedilatildeo da cena agrave invisibilidade do aparato Para
finalizar gostaria de ir aleacutem dessa referecircncia mais imediata ao aparato do
cinema claacutessico pois a anaacutelise aqui feita permite uma inversatildeo nos mecashy
nismos destacados por discursos sobre o poder que mobilizam a metaacutefoshy
ra da sociedade como universo carceraacuterio e se desdobram em imagens
do aprisionamento pelo olhar Diante dos aparatos de comunicaccedilatildeo que
nos cercam eacute comum a caracterizaccedilatildeo de uma competecircncia de controle
de ordenamento cristalizada no olhar vigilante onipresente que se volta
o tempo todo para noacutes Considerando as tecnologias do olhar podemos
entretanto destacar um processo ordenador menos ostensivo que envolve
a accedilatildeo de um olhar que em vez de estar voltado para mim olha por rrtim
oferece-me pontos de vista coloca-se entre mim e o mundo (lembremos
a ironia de Vertigo Scottie eacute o olhar vigilante profissional mas o processhy
so de controle atua em sentido inverso - eacute o dispositivo que define seu
ponto de vista) Cercado de imagens vejo-me inscrito pela media numa
segunda natureza num processo que implica um cotejo de pontos de vista
muito peculiar que me afasta por exemplo do enfrentamento proacuteprio da
relaccedilatildeo pessoal intersubjetiva Esta se constitui pela devoluccedilatildeo do olhar
e nela repercute o que nos diz o poeta Antonio Machado o olho que vejo
eacute olho porque me vecirc natildeo porque o vejo Diante do aparato construtor de
imagens minha interaccedilatildeo eacute de outra ordem envolve um olho que natildeo
vejo e natildeo me vecirc que eacute olho porque substitui o meu porque me conduz
de bom grado ao seu lugar para eu enxe~gar mais ou talvez menos
Dado inagravelienaacutevel de minha experiecircncia o olhar fabricado eacute constanshy
te oferta de pontos de vista Enxergar efetivamente mais sem recusaacute-lo
implica discutir os termos desse olhar observar com ele o mundo mas
colocaacute-lo tambeacutem em foco recusando a condiccedilatildeo de total identificaccedilatildeo
com o aparato Enxergar mais eacute estar atento ao visiacutevel e tambeacutem ao que
fora do campo torna visiacutevel
56 57
de um contexto maior com muita gente envolvida uma situaccedilatildeo puacuteblica
que natildeo denota nenhuma cumplicidade entre o reacuteu e seu interlocu
O curioso no fato eacute que ao ser reiterada a pergunta vocecirc continua
achando esta foto [menor] verdadeira - a resposta eacute de novo sim
Chegamos aqui ao dado significativo A -resposta surpreende-nos mas
ilustra muito bem uma certa noccedilatildeo de verdade noccedilatildeo muito mais presenshy
te no senso comum de uma sociedade como a nossa do que tagravelvez gostariacuteashy
mos A testemunha trazia a convicccedilatildeo de que a verdade estava em cada
pedacinho da foto como tambeacutem da realidade Aquele canto da imagem
aquele fragmentoacute extraiacutedo da maior foi obtido sem que se adulshy
terasse cada ponto da foto sem maquiagem sem alteraccedilatildeo das
que lhe satildeo internas Logo conteacutem a verdad~ Eacute uma imagem
as duas figuras estiveram efetivamente juntas diante da cacircmera
importa aiacute o contexto) O recorte definidor da moldura natildeo incomodou
a testemunha para quem a verdade eacute soma estaacute em cada parte
Em nossa cultura o processo fotograacutefico tem grande poder sobre as
convicccedilotildees desse tipo de observador assim embalado pela evidecircncia
empiacuterica trazida pela imagem Mais ateacute do que a acuidade da reproduccedilatildeo
(eixo da semelhanccedila) a imagem fotograacutefica (e cinematograacutefica) ganha
autenticidade porque corresponde a u~ registro automaacutetico ela se imprishy
me na emulsatildeo sensiacutevel por um processo objetivo sustentado na causalishy
dade fotoquiacutemica Como resultado do encontro entre o olhar do sistema
de lentes (a objetiva da e o acontecimento fica depositada uma
desse que funciona como um documento Quando se esquece a
funccedilatildeo do recorte prevalecendo a feacute na evidecircncia da imagem isolada
temos um sujeito totalmente cativo do processo de simulaccedilatildeo por mais
que ele pareccedila Caso tiacutepico eacute o dessa testemunha de McCarthv a consagrar o engodo de uma promotoria
Diantc de tal feacute na imagem nossa primeira operaccedilatildeo eacute reverter o
processo e chamar a atenccedilatildeo para a moldura para a entre a foto e
seu entorno para o fato de que o sentido se tece a partir das relaccedilotildees entre
o visiacutevel e o invisiacutevcl de cada situaccedilatildeo Vou aqui um pouco adiante para
ressaltar o quanto aleacutem da foto e de seu contexto haacute que se inserir no
tambeacutem o universo do observador e o tipo de pergunta que ele endereccedila agrave
imagem Ou seja dentro de que se daacute a leitura e ao longo de que
eixo opotildeem-se verdade e revelaccedilatildeo e engano Voltando agrave foto
menor apresentada pelo advogado constatamos num niacutevel mais elemenshy
tar de interrogaccedilatildeo que ela produz um resiacuteduo de documento na imagem
dos interlocutores (sua postura e suas roupas indicam certo estilo etc) No
entanto a ilegitimidade da foto eacute flagrante quando fabrico o fato convershy
sa isolada c o evidecircncia da culpabilidade interessado na dimensatildeo
poliacutetica da imagem Quando pergunto pela autenticidade de uma imagem
natildeo estou portanto discutindo sua verdade em sentido absoluto incondishy
cionado Natildeo discuto a existecircncia das dadas ao olhar Pergunto
pela significaccedilatildeo do que eacute dado a ver numa interrogaccedilatildeo cuja resposta
mobiliza dois referenciais o da foto (enquadre e moldura) que definc um
campo visiacutevel e seus limites e o do observador que define um campo de
Questotildees e seu estatuto seu lugar na ellperiecircncia individual e coletiva
No cinema as entre visiacutevel e invisiacutevel a interaccedilatildeo entre o
dado imediato e sua significaccedilatildeo tornam-se mais intrincadas A sucessatildeo
de imagens criada montagem relaccedilotildees novas a todo instante e
somos sempre levados a estabelecer ligaccedilotildees propriamente natildeo existentes
na tela A montagem sugere noacutes deduzimos As significaccedilotildees engendramshy
se menos por forccedila de isolamentos (como na foto comentada) e mais por
forccedila de contextualizaccedilotildees para as quais o cinema possui uma liberdade inshy
vejaacutevel Eacute sabido que a combinaccedilatildeo de imagens cria significados natildeo preshy
sentes em cada uma isoladamertte Eacute ceacutelebre o experimento do cineasta
russo Kulechov primeiro grande teoacuterico da montagem Selecionando uma
uacuteniea tomada do rosto de um ator e inserindo-a em contextos
chegou a conclusotildees radicais a cada combinaccedilatildeo o rosto parecia expressar
algo bem diferente num espectro que incluiacutea ternura fome alegria
A elasticidade admitida por Kulechov num primeiro momento (anos
foi depois atenuada por ele proacuteprio e seria hoje ingecircnuo supor um
poder absoluto da montagem nesses casos Dentro de determinados limishy
tes jaacute no periacuteodo do cinema mudo era comum a utilizaccedilatildeo da diferenccedila enshy
tre as circunstacircncias da filmagem e as da imagem na tela para sugerir um
33
acontecimento ou dar significado particular a um rosto em close-up
Pudovkin ao realizar A matildee [I926] queria uma expressatildeo particular de
no rosto do heroacutei numa cena em que na prisatildeo ele recebe uma
mensagem de sua matildee trazendo esperanccedilas de liberdade O jovem ator
natildeo conseguiu a expressatildeo pedida o cineasta buscou outra soluccedilatildeo Surshy
o ator num momento desavisado numa circunstacircncia de riso e
filmou seu rosto que reagia a um estiacutemulo completamente estrashy
nho agrave cena do heroacutei Combinou a imagcm registrada com as cenas
vizinhas no filme e julgou saacircsfatoacuterio o efeito obtido Se imagem do
ator eacute um material no qual a montagem inocular um se~tido esse foi
e ainda hoje eacute um dado de desconforto para muita gente Os atores tecircm
razatildeo em desconfiar dessa distacircncia entre seu trabalho e a percepccedilatildeo de
sua imagem na tela Operaccedilotildees como essa de Pudovkin desde cedo entrashy
ram na rotina do trabalho Muitos teoacutericos tecircm se interessado pela discusshy
satildeo de diferentes aspectos dessa manipulaccedilatildeo que ilustra com bastante
evidecircncia a relatividade das expressotildees e das performances no cinema
Comparando a questatildeo dos atores a serviccedilo da ficccedilatildeo com a da foto
observada no tribunal ganha toda ecircnfase a importacircncia da pergunta que
o observador dirige agrave imagem em funccedilatildeo de sua proacutepria circunstacircncia e
interesse Afinal na condiccedilatildeo de espectador de um filme de ficccedilatildeo estou
no de quem aceita o do faz-de-contaacute de quem sabe estar dianshy
te de representaccedilotildees e portanto natildeo vecirc cabimento em discutir questotildees
de legitimidade ou autenticidade no niacutevel da testemunha de tribunal
Aceito e ateacute acho bem-vindi~ o artifiacutecio do diretor que muda o signif shy
do de um gesto - o essencial eacute a imagem ser convincente dentro dos proshy
poacutesitos do filme que procuraacute instaiirar um mundo imaginaacute
A partir de imagens deesquiilas fachadas e avenidas o cinema cria
uma nova geografia com friigmenros de diferentes corpos um novo corshy
po com segmentos de ereaccedilOtildees um fato que soacute existe na tela Natildeo
questiono a cidade imaginaacuteiacutea - o vejo na tela natildeo corresponde por
exemplo ao Rio ou agrave Satildeo PaJlo que conheccedilo Natildeo cabe perguntar de quem
eacute o corpo imaginaacuterio ou qual aestnIacutetura real de um espaccedilo visto na tela em
fragmentos Se assim o o espectador rompe o pacto que assina ao
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entrar na sala escura para assistir a um filme que tem
res Diante da imagem apresentada como prova em a Clrcunsshy
tacircncia e o compromisso satildeo outros o eixo da verdade e da mentira requer
criteacuterios proacuteprios Para iludir convencer eacute necessaacuterio competecircncia e frtz
parte dessa saber antecipar com precisatildeo a moldura do observador as cirshy
cunstacircncias da recepccedilatildeo da os em jogo Embora pareccedila
a leitura da imagem natildeo eacute imediata Ela resulta de um processo em que
intervecircm natildeo soacute as mediaccedilotildees que estatildeo na esfera do olhar que produz a
imagem mas tambeacutem aquelas presentes na esfera do olhar que as recebe
Este natildeo eacute inerte pois armado participa do
o OLHAH DO CINEMA COMO MEDIACcedilAtildeO
Haacute entre o aparato cinematograacutefico e o olho natural uma seacuterie de elemenshy
tos e operaccedilotildees comuns que favorecem uma identificaccedilatildeo do meu olhar
com o da cacircmera resultando daiacute um forte sentimento da presenccedila do
mundo emoldurado na tela simultacircneo ao meu saber de sua ausecircncia
(trata-se de e natildeo das proacuteprias coisas) Discutir essa identificaccedilatildeo
e essa presenccedila do mundo em minha consciecircncia eacute em primeiro lugar
acentuar as accedilotildees do aparato que constroacutei o olhar do cinema A imagem
que recebo compotildee um mundo filtrado por um olhar exterior a mim que
me organiza uma aparecircncia das coisas estabelecendo uma ponte mas tamshy
beacutem se interpondo entre mim e o mundo Trata-se de um olhar anterior ao
meu cuja circunstacircncia natildeo se confunde com a minha na sala de projeccedilatildeo
O encontro cacircmeraobjeto (a produccedilatildeo do acontecimento que me eacute dado
ver) e o encontro espectadoraparato de projeccedilatildeo constituem dois moshy
mentos distintos separados por todo um processo Na estatildeo
implicados uma co-presenccedila um compromisso um riSCO um prazer e um
poder de quem tem a possibilidade e escolhe filmar Como espectador
tenho acesso agrave aparecircnci
ou seja sem a circunstacircncia Conteiacutenplo uma imagem sem ter parshy
ticipado de sua produccedilatildeo sem escolher acircngulo distacircncia sem definir uma
perspectiva proacutepria para a observaccedilatildeo Ao contraacuterio das situaccedilotildees de vida
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em que estou presente ao acontecimento na sala de espetaacuteculos jaacute sentashy
do natildeo tenho o trabalho de buscar diferentes posiccedilotildees para observar o
mundo pois tudo se faz em meu nome antes de meu olhar intervir num
processo que franqueia o que talvez de outro modo seria para mim de
impossiacutevel acesso Espectador de cinema tenho meus privileacutegios Mas
simultaneamente algo me eacute roubado o privileacutegio da escolha
Nesse compromisso de ganhos e perdas aceito e valorizo o olhar
mediador do cinema porque as imagens que ele me oferece tecircm algo de
prodigioso - hoje talvez banalizado advindo de sua liberdade ao invashy
dir a intimidade (uma liberdade da qual usufruo sem riscos) de sua preshy
cisatildeo e destreza nos maiores desafios No cinema posso ver tudo de
perto e bem visto ampliado na tela de modo a ~urpreender detalhes no
fluxo dos acontecimentos e dos gestos A imagem na tela tem sua durashy
ccedilatildeo ela persiste pulsa reserva surpresas Se eacute contiacutenua posso acompashy
nhar um movimento enquanto esse se faz diante da cacircmera se a montashy
gem interveacutem vejo uma sucessatildeo de imagens tomadas de diferentes
acircngulos acompanho a evoluccedilatildeo de um ac~gtntecimento a partir de uma
coleccedilatildeo de pontos de vista via privilegiados especialmente cuishy
dados para que o espetaacuteculo do mundo se faccedila para miiacuten com clareza
dramaticidade beleza As possibilidades abertas pela temporal idade proacuteshy
pria da imagem satildeo infinitas haacute o movimento do mundo observado e o
movimento do olhar do apa~ato que observa Quando a imagem eacute de rosshy
tos tenho a interaccedilatildeo dos olhares (lue se confrontam verdadeira orquesshy
traccedilatildeo o olho que vecirc e o que eacute vi~to tecircm ambos sua dinacircmica proacutepria e
cada um de noacutes jaacute teve ocasiOtildees de avaliar com maior ou menor consciecircnshy
cia a intensidade dos efeitos extraiacutedos dessa orquestraccedilatildeo
O usufruto desse olhar privilegiacuteado natildeo a sua anaacutelise eacute algo que o
cinema tem nos garantido propiciando essa condiccedilatildeo prazerosa de ver
o mundo e estar a salvo ocupar o centro sem assumir encargos Estou preshy
sente sem participar do mundo observado Puro olhar insinuo-me invishy
shrel nos espaccedilos a interceptr os ~ihares de dois interlocutores escrutishy
narreaccedilotildees e gestos explorar ambientes de longe de perto Salto com
velocidade infinita de um poacutento a outro de um tempo a outro Ocupo
posiccedilotildees do olhar sem comprometer o corpo sem os limites do meu corshy
po Na ficccedilatildeo cinematograacutefica junto com a cacircmera estou em toda parte c
em nenhum lugar em todos os cantos ao lado das personagens mas sem
preencher espaccedilo sem ter presenccedila reconhecida Em suma o olhar do
cinema eacute um olhar sem corpo Por isso mesmo ubiacutequo onividente Idenshy
tificado com esse olhar eu espectador tenho o prazer do olhar que natildeo
estaacute situado natildeo estaacute ancorado vejo muito mais e melhor
Observando a experiecircncia por esse acircngulo como entatildeo natildeo exaltar
o cinema Como natildeo pensar sua teacutecnica de base cm termos de
de progresso Retomemos um clima tiacutepico do iniacutecio do seacuteculo
o PRIMEIRO ELOGIO AgraveS DO OLHAR
O MOMENTO DA PROMESSA
Alguns cineastas e estetas dos anos 10-20 deixaram registradas as duas reashy
ccedilotildees a esse lado prodigioso da oferecida pela entatildeo nova teacutecnica de
reproduccedilatildeo Pensaram o cinema quando sua mediaccedilatildeo era um dado inaushy
gural que gerava certas descobertas uma eacuteonstelaccedilatildeo de sentimentos e pershy
cepccedilotildees novos ainda natildeo bem equacionados que exigiacuteam novos conceitos
um trabalho com a linguagem escrita para expressar o lado mais peculiar da
nova experiecircncia Hoje eacute praticamente impossiacutevel recuperar vivamente
aquele momento noacutes que crescemos satur~ados de imagens e nos movemos
num mundo em que o que era antes promessa dc revoluccedilatildeo se faz agora
dado banal do cotidiano experiecircncia reiterada De uma pluralidade de reashy
ccedilotildees elogios desconfianccedilas destaco dois tipos de recepccedilatildeo ao advento do
cinema Na primcira ele eacute observado como coroamento de um projeto jaacute
definido na esfera da representaccedilatildeo na segunda vislumbra-se o cinema
enquanto inauguraccedilatildeo de um universo de expressatildeo sem precedente destishy
nado a provocar uma ruptura na esfera da representaccedilatildeo
Aqueles que o vecircem com simpatia como um coroamento inserem
o cinema na tradiccedilatildeo do espetaacuteculo dramaacutetico mais popular de grande
vitalidade no seacuteculo raquoIX Avaliam que cumprindo os mesmos objetivos
o cinema vai mais longe pois multiplica os recursos da representaccedilatildeo faz o
36 37
I I
espectador mergulhar no drama com mais intensidade O olho sem corshy t po cerca a encenaccedilatildeo torna tudo mais claro enfaacutetico expressivo ao narshy
rar uma histoacuteria o cinema faz fluir as accedilotildees no espaccedilo e no tempo e o I
mundo torna-se palpaacutevel aos olhos da plateacuteia com uma forccedila impensaacutevel I em outras formas de representaccedilatildeo Ou seja em seu tornar visiacutevel a meshy
rdiaccedilatildeo do olha cinematograacutefico otimiza o efeito da ficccedilatildeo cumprindo com
muita competecircncia uma tarefa que na esfera da cultura considera-se como Jproacutepria da arte e em especial dos espetaacuteculos Ao exaltar esse salto na efishy ccedil
iciecircncia dentro d~ continuidade de princiacutepios e funccedilotildees os criacuteticos cineasshy
tas e prod~tores afinados agraves regras do mercado cultural da eacutepoca celebram
o na produccedilatildeo industrial do seacuteculo xx de um projeto que vem do
seacuteculo XVIII e que se definiu na origem para a representaccedilatildeo teatraL
Eacute comum sermos lembrados ~o quanto a cacircmera fotograacutefica constishy
tui uma objetivaccedilatildeo tecnoloacutegica recente de princiacutepios da representaccedilatildeo jaacute I
conhecidos cuja sistematizaccedilatildeo vem do Renascimento italiano (cacircmara i iacuteescura o meacutetodo da perspectiva os efeitos de profundidade na superfiacutecie
da tela) Com a imagem em movimento o representar a dos homens iacute se daacute com a franca hegemonia do ilusionismo a encenaccedilatildeo tal e qual o I real plantado no cinema industrial desde os tempos de D W Griffith
Fato que cristaliza uma heranccedila menos tematizada pela criacutetica a do olhar Ital como constituiacutedo no drama burguecircs Aqui a referecircncia teoacuterica essenshy
cial eacute Diderot No momento em que escreve suas peccedilas e formula a teoria trenovadora do teatro definiuacutedoo drama seacuterio burguecircs do seacuteculo XVIII
~ um elemento central no seu ideaacuterio eacute a criacutetica ao teatro vinculado aos ~
gecircneros claacutessicos - principalmente ao tipo de encenaccedilatildeo que se dava agraves
trageacutedias claacutessicas francesas do seacuteculo XVII Esse teatro por demais ancoshy
rado na palavra depende da exclusiva forccedila poeacutetica do texto desdenhanshy
doo aspecto visual da experiecircncia do palco Ou eacute incapaz de elaboshy
rar a cena propriamente dita tal como o filoacutesofo a entende explorando a
expressividade do gesto e a cocircmposiccedilatildeo visual da cena (os tableaux consshy
truiacutedos pela posiccedilatildeo reciacuteproca dos atores e da cenografia)
Diderot queria um teatro dirigido agrave sensibilidade por meio da reshy
produccedilatildeo integral das aparecircncias do mundo queria um meacutetodo de dar
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a ver as situaccedilotildees os gestos as emoccedilotildees O ilusionismo fonte do enshy
volvimento da plateacuteia eacute entatildeo assumido como a ponte privilegiada no
caminho da compreensatildeo da experiecircncia humana da assimilaccedilatildeo de
valores da explicitaccedilatildeo de movimentos do coraccedilatildeo Tal demanda proacutepria
do universo da Ilustraccedilatildeo do seacuteculo XVIIl tem seus desdobramentos e
depois da Revoluccedilatildeo Francesa em outra atmosfera social e
explode no teatro popular de 1800 Aiacute se consolida o gecircnero dramaacutetico
de massas por excelecircncia o melodrama Esse tem sido por meio do teashy
tro (seacuteculo do cinema (seacuteculo xx) e da TV (desde
taccedilatildeo mais contundente de uma busca de expressividade
moral) em que tudo se quer ver estampado na superfiacutecie do mundo na
ecircnfase do gesto no trejeito do rosto na eloquumlecircncia da voz Apanaacutegio do
exagero e do excesso o melodrama eacute o gecircnero afim agraves grandes revelashy
ccedilotildees agraves encenaccedilotildees do acesso a uma verdade que se desvenda um
sem-nuacutemero de misteacuterios equiacutevocos pistas falsas vilanias Intenso nas
accedilotildees e sentimentos carrega nas reviravoltas ansioso pelo efeito e a
comunicaccedilatildeo envolvendo toda uma pedagogia em que nosso olhar eacute
convidado a apreender formas mais imediatas de reconhecimento da
virtude ou do pecado N a virada do seacuteculo XIX para o XX natildeo surpreende que a teacutecnica do
cinema entatildeo emergente tenha assumido essa pedagogia e tenha substishy
tuiacutedo o melodrama teatral na satisfaccedilatildeo de uma demanda de ficccedilatildeo na soshy
ciedade Quando falo em ilusionismo reproduccedilatildeo das aparecircncias na vershy
dade que adveacutem do conflito de forccedilas que se expressam e se revelam pelo
olhar estou afirmando princiacutepios da representaccedilatildeo aos quais o cinema vem
se ajustar como uma luva Como braccedilo da induacutestria cultural ele
do movimento de objetivaccedilatildeo institucional da Ilustraccedilatildeo Sua
do olhar melodramaacutetico eacute o ponto-limite de um projeto de expressatildeo
total da natureza na representaccedilatildeo Reflete um ideal de domiacutenio e controshy
le da aparecircncia como sinal de conhecimento da natureza um ideal que
inscreve a arte como espelho pedagoacutegico que requer a competecircncia tecnoshy
loacutegica de criar ilusatildeo e por essamiddotvia atingir a sensibilidade a passagem
das trevas agrave luz se faz de efeitos sobre o olhar
39
Dentro do projeto de revelaccedilatildeo do mundo para o olhar os efeitos do
close-up logo adquirem a condiccedilatildeo de emblema das virtudes da nova arte
Mais do que a montagem - sua condiccedilatildeo preacutevia - o close-up na Franccedila e
nos Estados Unidos atrai o dos cineacutefilos corno ponto de condenshy
de um drama que se faz movimento dos olhos - o que vecirc e o
que eacute visto - e pela trama formada pela sucessatildeo de detalhes
e reveladores Corno movimento em direccedilatildeo agrave intimidade e V1stO corno
potecircncia maior do cinema que muito cedo impressionou a todos pela sua
capacidade de devastaccedilatildeo das intenccedilotildees ocultas do pequeno gesto fora do
alcance dos interlocutores do movimento facial que trai um sentimento
Natildeo foi preciso a manifestaccedilatildeo da criacutetica cineastas e produtores conduzishy
ram as experiecircncias reveladoras da forccedila dramaacutetica do rosto isolado na e usando a tradicional muito antes de 1920 jaacute insshy
truiacutea seus atores para a dos olhos - janela da alma _ trazishy
dos para perto no close-up para o exame
Foco das atenccedilotildees e dos o close-up estaraacute em I920 tambeacutem
no centro das reflexotildees de quem afastado dos valores promovidos pela
induacutestria do cinema observa seus prodiacutegios com outra moldura de inteshy
resses e julga os filmes do mercado por demais domesticados pela
demanda de ficccedilatildeo que induz o novo meio a seguir os passos do teatro e
da literatura popular Encontramos aqui quem vecirc o cinema como ruptushy
ra espectadores avessos aos do filme de accedilatildeo corrente cinecircfilos
natildeo interessados na fluecircncia dos acontecimentos no pulsar da
nas tensotildees dramaacuteticas usuais Por intermeacutedio deles o cinema uma
recepccedilatildeo mais empenhada em surpreender aspectos da plaacutestica da imashy
gem do trabalho da cacircmera e da presenccedila peculiar do mundo na tela que
permanecem recalcados na visatildeo dominante Para esse olhar diferenciashy
do por meio do cinema toda urna esfera nova de percepccedilotildees abre-se agrave
nossa experiecircncia desde que sejamos capazes de entender a expressividashy
de da nova imagem em outros termos elogiando sim o mas denshy
tro de urna outra oacutetica a de quem entende o cinema natildeo como coroamenshy
to do ilusionismo teatral mas como ruptura inauguraccedilatildeo de um novo diaacutelogo com a natureza e os homens
4deg
Satildeo os intelectuais e artistas ligados agrave arte moderna que lideram essa
nova leitura do cinema de uma perspectiva que na Franccedila traduziu-se no
cineacutema davant-garde nas experiecircncias dos surrealistas e nas polecircmicas
que tiveram como pauta a superaccedilatildeo da moldura melodramaacutetica a libershy
taccedilatildeo do olhar sem corpo das amarras da continuidade narrativa a adeshy
da nova arte agrave sua teacutecnica moderna A
fcrentes grupos postos de lado os conflitos que os
cinema destina-se a uma tarefa de redenccedilatildeo A cultural
do Ocidente europeu estaria falida o poder criador preso a convenccedilotildees
obsoletas saturado de referecircncias que o desvigoram Enredado em formas
de pensar e sentir desgastadas o homem culto se vecirc separado da natureshy
za reprimido cercado de mentiras de clichecircs da de maacutescaras
O cinema eacute radicalmente novo inocente e traz a da tecnologia
Ele pode e deve romper essa grade devolvendo aos homens o acesso a
uma natureza alienada pelos artifiacutecios de uma cultura
A vanguarda se estabelece como cultUra de separando o
espaccedilo utoacutepico da verdade (cinema vida futura) e o espaccedilo da mentira da
convenccedilatildeo (tradiccedilatildeo literaacuteria teatro cotidiano burguecircs) Sua feacute no cinema
ancora-se numa ideacuteia de expressatildeo que tambeacutem se apoacuteia na acuidade de
reproduccedilatildeo da aparecircncia proacutepria da nova teacutecnica mas com um traccedilo pecushy
liar que afasta a do pensamento gerado na esfera da induacutestria
Germaine Dulac e Epstein principais porta-vozes da avant-ga
concebem o cinema corno expressividade do mundo num sentido radishy
ca1 Combatem a vaga que nos leva a sob qualquer pretexto
isto expressa aquilo de um modo que equivale a isto significa aquilo
dentro dos variados caminhos pelos quais vamos de um poacutelo a outro do
significante ao significado Reservam expressatildeo para designar um proshy
cesso determinado impelido por forccedilas naturais no a composiccedilatildeo de
forccedilas interior a um organismo deixa narcas na do mesmo shy
eacute o movimento nelo Qual ci Que estaacute no interior vem forcosashy
mente agrave tona a forma
I Cf Xavier Seacutetima arte um cuto moderno (Satildeo Paulo 1978)
41
vel) que o cinema vemcaptar com exclusividade pois fixa os movimenshy
tos na peliacutecula sem as atrapalhaccedilotildees do olho natural O cinema tem seu
vigor proacuteprio de um olhar mais automaacutetico
natildeo maculado pelos preconceitos culturais
dade Eacute irocircnico que justamente porque natildeo tem interioridade o olhar
da maacutequina possa atingir o princiacutepio interior dos movimentos revelar a
verdade que organicamente expressa-se em sentido pleno imprime-se
numa textura do mundo que soacute a cacircmera eacute capaz de registrar O proacuteprio
instantacircneo fotograacutefico em sua estrutura mais simples jaacute nos mostra o
quanto a imagem revelada faz emergir dados ocultos que natildeo estavam na
mira do fotoacutegrafo No cinema o movimento poteacutencializa tal desocultashy
mento o qual pode tornar-se mais efetivo quando os cineastas forem cuacutemshy
plices da nova teacutecnica em vez de tentar agrave como no
melodrama a expressividade do fica atrelada a toda uma
cadeia de loacutegica eacute tomada de empreacutestimo agrave do natushy
em que o tOrnar visiacutevel resulta do de uma retoacuterica que ~rH+tia Para
o que era aaequado ao teatro - como ilusionismo do seacuteculo XIX natildeo o eacute para o cinema do seacuteculo xx pois a
imitaccedilatildeo dos gestos antes oferecida a olhos desarmados natildeo resiste agrave anaacuteshy
lise da nova sensibilidade Com o cinema a percepccedilatildeo humana ganhou
um acesso especial agrave intimidade dos processos - ~ele a aparecircncia eacute jaacute uma
anaacutelise O cose-up natildeo eacute o lugar do fingimento eacute uma presenccedila que reveshy
la o que se eacute natildeo o que se pretende ser (inuacuteteis as caretas dos
A aposta da vanguarda estaacute no poder analiacutetico do cinematoshygraacutefico no que ressalta natildeil
espaccedilo) mas tambeacutem as
mente a cacircmera lenta (arnplia(acirco no eixo do tempo) que reveshyIa o mundo em outra e de~cobre-nos a vida secreta que se tece a
nossa volta e em noacutes ganhando ~xpressatildeo nas formas instaacuteveis fora da
nossa consciecircncia que temo~ fixadas pela teacutecnica2 Epstein nos seus
2 Essa aposta no poder analiacutetko do dnema tem uma versatildeo radical moshymento na Uniatildeo Sovieacutetica encarnada rio projeto do Cine-Olho de Vertov gt
42
o ~__ao~ das diferentes velocidades
do movimento animal e dos fenocircmenos Fershy
nand Leacuteger as relaccedilotildees e a forma dos objetos fora de sua inserccedilatildeo
utilitaacuteria no cotidiano Embora natildeo totalmente afinado ao cineacutema dayantshy
garde o surrealismo torna-se o movimento de contestaccedil50 ao cinema inshy
dustrial de maior impacto com sua exploraccedilatildeo da montagem como reveshy
laccedil50 das pulsotildees anatomia do desejo Em diferentes busca-se a
experiecircncia fora do senso comum o olhar em sintonia com ~l~r
do - a sensibilidade efetivamente moderna A
(Epstein) surge entatildeo como nova pedagogia
ccedilatildeo ao cenaacuterio do melodrama - pois o cincma teria como destino
trazer-nos de volta uma cosmologia e um encantamento do mundo para
os quais o cartesianismo e a filosofia da Ilustraccedilatildeo cegos
O horizonte desse renascimento seria a explosatildeo do universo carceraacuterio
da existecircncia atual (para usar a expressatildeo de Walter Benjamin em seu
ceacutelebre ensaio de T936 ao falar de reproduccedilatildeo teacutecnica arte e
A formulaccedilatildeo de Epstein-Dulae eacute questionaacutevel auando examinada a
partir de sua ideacuteia-matriz de expressatildeo
analiacutetico (inegaacutevel) da ~~a~Mrl~ aiacute uma feacute inteshy
gral no dado visiacutevel na caj)acldlde exclusiva de
suas relaccedilotildees internas trazer a verdade agrave tona
agrave ao contexto de cada a~aM~A mais de-
no entanto estaacute no impulso utoacutepico nela presente c no salto teoacuterico
que oferece ao buscar um pensameMo agrave alwra dos aspectos radicalmente
novos da experiecircncia do cinema no inicio do seacuteculo Benjamin o filoacutesofo
atento agraves transformaccedilotildees da sensibilidade geradas pelas novas diraacute
em 1936 A natureza que se dirifie dmera natildeo eacute a mesma que a que se
dirige ao olhar Essas c outras suas - sobre o ator o
gt que procura realizar no cinema documentaacuterio a verdade que desmascara a culshy
tura tradicional A cIacutee Vertov diante dos franceses eacute a
ccedilatildeo que ele estabelece cntre desmascaramento e exposiccedilatildeo dos processos efetivos
da Drodudiacuteo social das relaccedilotildees de atraveacutes do montagem cinematogniacutefica
43
analiacutetico da Imagem retomam muito do repertoacuterio da vanguarda dos anos
20 inserindo a caracterizaccedilatildeo do olhar do cinema numa reflexatildeo mais amshy
pIa sobre teacutecnica e cultura Nessa reflexatildeo a moldura eacute outra mas prevalece
o mesmo movimento de ressaltar o papel subversivo revelado r da fotoshy
grafia e do cinema dentro da cultura europeacuteia A promessa entatildeo se reafirshy
ma sem as premissas de eXflressividade total e de retorno agrave natureza
Com Benjamin ela aSSume um contorno histoacuterico mais bem demarcado eacute
por um persamento mais sensiacutevel agrave contradiccedilatildeo e ao caraacuteter das
forccedilas sociais em conflito Pensamento que nos trouxe uma avaliaccedilatildeo da
questatildeo da arte dentro de uma articulaccedilatildeo mais luacutecida com a conjuntura
poliacutetica e a proacutepria natureza das apostas em na Europa dos anos 30
polarizada por uma confrontaccedilatildeo decisiva entre revoluccedilatildeo e reaccedilatildeo
A CRiacuteTICA DO OLHAR SEM CORPO
No seu elogio ao aspecto revelador do olhar no cinema o pensamento
dos anos 20 colocou o debate em termos de verdade (cinema) emendra
(tradiccedilatildeo cultural) e deu toda ecircnfase agrave cumplicidade entre cinema e natushy
reza solidaacuterios enquanto um organismo e sua expressatildeo visual prontos a
expulsar a simulaccedilatildeo desde que a nova teacutecnica fosse salva de su~ adultera-
promovida pelo universo da mercadoria Por esse a oposishyentre um cinema desejado objeto do recalque e aquele que
realmente impera (a pedagogia da induacutestria orienta-se por uma teleoIOPla o presente eacute o mOmelItO dos entraves que impedem o desenshy
volvimento na direccedilatildeo COrreta eacuteapaz de realizar as promessas da nova
teacutecnica o futuro eacute o preenchimen~o dessas promessas que desde jaacute as vanshy
guardas anunciam e preparam Entre 1920 e J960 os poderes reais inshy
sistiram em repor o mesno cinema dominante o que trouxe em linhas
a reiteraccedilatildeo da mesnla matriz de contestaccedilatildeo O conflito dominanshy
tedominado traduzido em termos de verdade e refez-se ao
longo de eixos diversos Quando prevaleceu um eixo poliacutetico o poacutelo da
verdade (futuro) identificou-se agrave cultura revolucionaacuteria o da mentira
presentet agraves mistificaccedilotildees da reaccedilatildeo Quando prevaleceu um eixo esteacutetishy
co verdade foi poesia originalidade experimentaccedilatildeo mentira foi a rotishy
na do comeacutercio o kitscll industrializado
Natildeo cabe agora a recapitulaccedilatildeo do que foram as diferentes versotildees
desse conflito vanguardacultura de massa em cada e eacutepoca Natildeo o
poderia fazer nem quero pois meu objetivo eacute saltar dessa primeira refleshy
xatildeo dos anos 20 para uma mais proacutexima de gerada no contexto franshy
cecircs poacutes-68 reflexatildeo que abandonou a tradiccedilatildeo de opor verdade e mentishy
ra deslocando a discussatildeo sobre a teacutecnica do cinema
No grande intervalo que a criacutetica avanccedilou na caracterizashy
ccedilatildeo do olhar sem corpo e suas implicaccedilotildees notadamente na avaliaccedilatildeo de
sua estrutura mais comunicativa e sedutora o cinema olhar da
induacutestria da ideologia dominante nos meios Extensatildeo do qlle
chamei olhar melodramaacutetico o cinema claacutessico eacute sua modernizaccedilatildeo Faz
com que ele abandone os excessos maiores do ganhe em
profundidade dramaacutetica amplitude temaacutetica concretizando o ver mais e
melhor do cinema na direccedilatildeo de um ilusionismo mais completo - o cineshy
ma claacutessico eacute o olhar sem corpo atuando em sentido
caracterizaccedilatildeo dos seus poderes apresentada em minha primeira
que de fato ajusta-se mais precisamente a esse estilo particular dOJTIinanshy
te no mercado e natildeo a todo o cinema possiacutevel Eacute nele mais do que em
qualquer outra proposta que vemos realizado o de intensificar ao
extremo nossa relaccedilatildeo com o mundo-objeto fazer tal mundo parecer autocircshy
nomo existente em seu proacuteprio direito natildeo encorajando perguntas na
direccedilatildeo do proacuteprio olhar mediador sua estrutura e comportamento Soshy
mos aiacute convidados a tomar o olhar sem corpo como dado natural
Entre a Segunda Guerra Mundial e os anos 60 dois grandes
de reflexatildeo conduziram a criacutetica a essa naturalidade postulada pelo cineshy
ma claacutessico a teoria radical do cinema-discurso baseado nas operaccedilotildees da
montagem (o Eisenstein dos anos 20-30 permaneceu aqui a referecircncia
central) e a criacutetica francesa inspirada na fenomenologia tendo como [oco
maior Andreacute Bazin3
3 Cf Bazin Cinema ensaios trad Eloisa Ribeiro (Satildeo Paulo Brasilicnse 1991)
44 45
Falar de Eisenstein exigiria uma abordagem radicalmente distinta da
que faccedilo agora pois sua criacutetica ao ilusionismo COmeccedila com a advertecircncia
de que a imagem cinematograacutefica natildeo deve ser lida c0f110 produto de um
olhar Para ele a suposiccedilatildeo de que houve um encontro uma contiguumlidade
espacial e temporal entre cacircmera e objeto natildeo eacute O dado central e impresshy
cindiacutevel da leitura da imagem Sua presenccedila na tela eacute um fato de natureza
que deve ser observado em seu valor simboacutelico
caracteriacutesticas de sua composiccedilatildeo e sua no Contexto de um discurshy
so que eacute exposiccedilatildeo de ideacuteias natildeo sucessatildeo natural de fatos captados
pelo olhar A diferenccedila entre um plano geral e um cose-up por
muitas vezes natildeo pode ser entendida como olhar versus
olhar de mesmo quando se focaliza o mesmo ODjeto mas como
confronto de duas imagens de valores distintos A diferenccedila eacute de
natildeo de posiccedilatildeo no espaccedilo pois pode natildeo haver COntinuidade e
homogeneidade espacial para que se possa falar num mais perto
- tudo depende do contexto do discurso por imagens
Ao contraacuterio de Eisenstein os criacuteticos inspirados na fenomenologia
endossam e defendem a premissa de que no cinema toda imagem eacute proshy
duto de um olhar - eacute essencial que ela seja vista como tal- e a sucessatildeo
define sempre a atitude do observador diante de um mundo homogecircneo
Agrave imagem-signo de Eisenstein eles opotildeem a imagem-acontecimento agrave
defesa da descontinuidade proacutepria do cineasta russo respondem Com
uma defesa ateacute mais radical do princiacutepio de continuidade jaacute presente na
narraccedilatildeo claacutessica fazendo a ela um reparo fundamental se a imagem em
movimento nos traz a percepccedilatildeo privilegiada do homem como ser lanccedilashy
do no mundo como ser-em-situaccedilatildeo a falsidade do cinema claacutessico estaacute
na manipulaccedilatildeo impliacutecita em sua montagem o olhar sem corpo e a
onividecircncia criam na tela uni mundo abstrato de sentido fechado preshy
julgado e organizado pelo cin~ina Toda montagem eacute discurso manipulashy
ccedilatildeo de Eisenstein de GrUacutefith ou de Bufiacuteuel Em oposiccedilatildeo um criacutetishy
co como Bazin solicita um olhar cinematograacutefico mais afinado ao olho de
um sujeito circunstanciado que p6ssui limites aceita a abertura do
mundo convive com ambiguumlidades Quando pede realismo ele natildeo se
46
deteacutem em consideraccedilotildees de conteuacutedo (o tipo de universo Ciccional ou doshy
cumentaacuterio) Sublinha a postura do olhar em sua interaccedilatildeo com o mundo
tanto mais legiacutetima quanto mais as condiccedilotildees de nosso olhar
ancorado no corpo vivenciando uma duraccedilatildeo e uma circunstacircncia em sua
continuidade trabalhando as incertezas de uma percepccedilatildeo
ultrapassada mundo Daiacute sua minimizaccedilatildeo da montagem (instacircncia
construtora da onividecircncia) sua defesa do plano-seguumlecircncia (olhar uacutenico
sem cortes observando uma em seu um acontecimento
em seu fluir
Numa visatildeo mais atual prestamos atenccedilatildeo especial ao que aproxima
e natildeo apenas ao que afasta o cinema-discurso de Eisenstein e o realismo
existencial de Bazin haacute em ambos novamente a atribuiccedilatildeo de um poder
de verdade e de um poder de mentira encarnados em determinados estishy
los Para Eisenstein haacute um estilo capaz de dizer o mundo social-histoacuterishy
co colocando o cinema como potecircncia maior no plano do conhecimento
Para Bazin O cinema eacute uma espeacutecie de terceiro estado da e exisshy
te um estilo autecircntico na captaccedilatildeo da vivecircncia humana em sua
essencial abertura no tempo
Contra esse pano de fundo da tradiccedilatildeo teoacuterica a intervenccedilatildeo de
]ean-Louis Baudry em 1969-70 em questatildeo a constante promessa de
um estilo mais verdadeiro e dirige seu ataque agraves premissas do cinema em
geral examinando mais a fundo as condiccedilotildees do espectador raciociacuteshy
nio estaacute municiado para analisar o espectador do filme claacutessico mas
fala em cinema tout couTe) 4 O horizonte de seu exame eacute ressaltar o
modo pelo qual a recepccedilatildeo da imagem possui uma estrutura que a seu ver
solapa o reiterado creacutedito - de Eisenstein Griffith Epstein na
da verdade como destinaccedilatildeo fundamental do cinema Ele invershy
te a tradiccedilatildeo e vecirc na simulaccedilatildeo na de efeitos (ilusoacuterios) de
conhecimento o destino maior da nova arte (visatildeo que
4 O mais importante dos textos de Jean-Louis dessa
1970 Os efeitos ideoloacutegicos do de base estaacute publicado em Ismail
Xavier (orll) A experiecircncia do cinema (Rio de Janeiro
47
pela permanecircncia do ilusionismo do cinema industrial) Isso se daacute por
forccedila da proacutepria natureza da teacutecnica cinematograacutefica herdeira das ilusotildees _
da perspectiva da persistecircncia retiniana (natildeo vemos os fotogramas vemos
o que natildeo ocorre na tela ou seja o movimento da imagem e temos a imshy
pressatildeo de continuidade) da falsa autenticidade documental da fotografia
Rearticulando elementos jaacute conhecidos Baudry nos traz uma interpretashy
ccedilatildeo radical que- questiona natildeo estilos particulares de fazer cinema mas o
fundamento mesmo de sua objetividade como teacutecnica essa mes~a objetishy
vidade que tem sido a sustentaccedilatildeo maior das esperanccedilas de verdade Na
nova perspectiva as diferentes posiccedilotildees teoacutericas desde 1920 definem um
pensar o cinema a priori capturado pelas ilusotildees da teacutecnica e desatento agraves
implicaccedilotildees contidas na proacutepria estrutura do olhar da cacircmera tal como se
daacute para noacutes na plateacuteia A teacutecnica tem suas inclinaccedilotildees seus efeitos ideoloacuteshy
gicos e nesse sentido eacute ela mesma que impele o cinema industrial a desenshy
volver seu ilusionismo e trazer o espectador para dentro do mundo ficcioshy
na A forccedila de encantamento desse cinema persiste na histoacuteria porque o
dado crucial em jogo natildeo eacute tanto a imitaccedilatildeo do real na tela _ a reproduccedilatildeo
integral das aparecircncias - mas a simulaccedilatildeo de um certo tipo de sujeito-doshy
olhar pelas operaccedilotildees do aparato cinematograacutefico
Avaliar a potecircncia do olhar sem corpo natildeo eacute entatildeo inventariar as
imagens que ele oferece efocaIacuteIacutezar o seu movimento proacuteprio sua forma
de mediaccedilatildeo o que impiacuteica analisar sua incidecircncia no espectador que
vivenda o poder de clarividecircncia a percepccedilatildeo tota Na sala escura idenshy
tificado com o movimento do olhar da cacircmera eu me represento como
sujeito dessa percepccedilatildeo total capaz de doar sentido agraves coisas sobrevoar as
aparecircncias fazer a siacutentese do mundo Minha emoccedilatildeo estaacute com os fatos
que o olhar segue mas a cbndiccedilatildeo desse envolvimento eacute eu me colocar no
lugar do aparato sintoniz~do com suas operaccedilotildees Com isso incorporo
(ilusoriamente) seus poder~s e ericontro nessa sintonia - solo do entendishy
mento cinematograacutefico - o maior cenaacuterio de simulaccedilatildeo de uma onipotecircnshy
cia imaginaacuteria No cinema faccedilo uma viagem que confirma minha condishy
ccedilatildeo de sujeito tal como a desejo Maacutequina de efeitos a realizaccedilatildeo maior do
cinema seria entatildeo esse efeito-sujeito a simulaccedilatildeo de uma consciecircncia
48
transcendente que descortina o mundo e se vecirc no centro das coisas ao
mesmo tempo que radicalmente separada delas a observar o mundo coshy
mo puro olhar Nessa apropriaccedilatildeo ilusoacuteria da competecircncia ideal do olhar
estou portanto no centro mas eacute o aparato que aiacute me coloca pois eacute dele o
movimento da percepccedilatildeo monitor da minha fantasia
Para Baudry uma filosofia idealista que postula um sujeito transshy
cendente em oposiccedilatildeo ao mundo objetivo que se dispotildee ao conhecimento
encontra aiacute na teacutecnica do cinema sua traduccedilatildeo visiacutevel Toda sua ecircnfase
recai sobre a produccedilatildeo simultacircnea da imagem e do sujeito-observador
onividente A engenharia simuladora do cinema define com o efeitoshy
sujeito seu teatro da percepccedilatildeo total cujo protagonista sou eu-espectador
identificado com o olhar da cacircmera
N esses termos o que dificulta a consolidaccedilatildeo de linguagens alternashy
tivas mais verdadeiras eacute esse pecado original inscrito na teacutecnica Esta
tem na ilusatildeo seu sustentaacuteculo e os percalccedilos das vanguardas devem-se a
que sua aposta eacute reverter a funccedilatildeo daquilo que jaacute nasceu para cumprir
outro destino Digo destino porque a loacutegica dessa teoria transforma o cineshy
ma num oacutergatildeo que surgiu para cumprir um programa o de objetivar na
esfera do visiacutevel estrateacutegias de dominaccedilatildeo especialmente as da classe burshy
guesa que presidiu sua origem Assim antes de instacircncia liberadora subshy
versiva a condiccedilatildeo do cinema eacute preencher uma demanda do proacuteprio unishy
verso carceraacuterio tornando-o mais preciso e poderoso em seu aparato
Haacute uma atmosfera de desencanto instalada a partir dos anos 70 a
formulaccedilatildeo aqui exposta eacute a traduccedilatildeo teacuteoacuterica radical dos impasses da conshy
testaccedilatildeo no cinema Temos o esgotamento de uma teleologia a da teacutecnishy
ca redentora entravada pela poliacutetica e a economia e sua substituiccedilatildeo
por u~a outra a da teacutecnica como instrumento maior de reposiccedilatildeo de um
sistema de poder Em consonacircncia corn a tonalidade da reflexatildeo sobre a
linguagem a cultura e a ideologia naquele momento a teoria do cinema
mais original e polecircmica ressalta o lado sistemaacutetico inelutaacutevel das ilusotildees
e dos enganos do olhar da cacircmera Nesse contexto a proacutepria praacutetica do
cinema amplia o espaccedilo para a reflexatildeo teoacuterica voltada para a questatildeo do
simulacro - a citaccedilatildeo a imagem que-alude agrave imagem o circuito das refeshy
49
recircncias a si mesmo que o cinema leva ao paroxismo entram para valer na
esfera da induacutestria constituem sua nova marca Tal reflexatildeo se faz dentro
de molduras conceituais diversas e num processo em que a teoria do
cinema reflete o andamento dos debates mais abrangentes sobre a cultura
contemporacircnea A imagem cinematograacutefica eacute entatildeo obseJvada a partir de
sua participaccedilatildeo em outra rede de relaccedilotildees em que natildeo haacute para a
interpretaccedilatildeo (esse tomar a imagem como representaccedilatildeo de algo exterior
a ela) para o juiacutezo da verdade ou mentira em que se a oposlccedilao
aparecircncia (imagem)essecircncia (substacircncia) -nada haacute por traacutes das lmlti~e~ns
elas valem como efeitos-de-superfiacutecie imagem remetendo a imagem fluxo de simulacros
Faccedilo agora uma incursatildeo que natildeo eacute propriamente no terreno da
nova filosofia e das questotildees mais amplas do simulacro na produccedilatildeo
Trata-se de uma anaacutelise particular no niacutevel da engenharia da simulaccedilatildeo
caracterizaccedilatildeo de um efeito na qual natildeo eacute necessaacuterio assumir as noccedilotildees
com a mesma ressonacircncia elas adquiriram na literatura dos anos 80
Fecho a exposiccedilatildeo com a consideraccedilatildeo de um novo exeacutemplo que acredishy
to esclareccedila algumas observaccedilotildees feitas ateacute aqui sobre a interaccedilatildeo entre
espectador e imagem sobre o papel da moldura do sujeito na leitura
Parti de um primeiro exemplo mais simples para explicar como o
efeito de uma depende de sua ~elaccedilatildeo com o sujeito em determishy
nadas condiccedilotildees Da situaccedilatildeo da testemunha de McCarthy passei a uma
caracterizaccedilatildeo mais detida do olhar do cinema e examinei dois momenshy
tos opostos dentro do conflito de perspectivas que marcou a reflexatildeo criacuteshy
tica em torno do que hiacute de erigano e rcvelaccedilatildeo nesse olhar A partir de
uma discussatildeo mais sobre a simulaccedilatildeo do fato - na fotografia no
cinema chegamos a uma questatildeo mais especiacutefica a simulaccedilatildeo do sujeishy
to na estrutura mesma (lo olhar cinematograacutefico Dentro da discussatildeo
mais geral o exemplo a envolve uma situaccedilatildeo mais complicada do
quea das fotos do tribunal estaremos no cinema Como inspiraccedilatildeo
terei presentes as liccedilotildees de Baildry sem no entanto incorporar o movishy
mento totalizador de suaacute criacutetica ao olhar do cinema Seu amplo diagnoacutesshy
tico mobilizando a psicaacutenaacutelise tem como pressuposto o fato de sabershy
0
mos o bastante sobre a natureza do espectador de modo a prever o caraacuteshy
tcr de sua identificaccedilatildeo com o aparato a qual assume uma dimensatildeo
uacutenica de adesatildeo agrave imagem por forccedila do efeito-sujeito Como conhecedoshy
res do desejo do espectador denunciamos o conluio desse desejo com o
programa da induacutestria e deduzimos daiacute as alienaccedilotildees do cinema e da
teacuteia Natildeo tenho condiccedilotildees de endossar a generalidade desse saber a resshy
peito do espectador o aparato atua em determinada direccedilatildeo mas a expeshy
riecircncia do cinema inclui outras forccedilas e condiccedilotildees que natildeo se ajustam ao
programa do sistema A formulaccedilatildeo dc Baudry embora inclua com toda
a forccedila a dimensatildeo do desejo do espectador natildeo deixa de ser outra vershy
satildeo das teorias da manipulaccedilatildeo global centradas em excesso no aspecto
da experiecircncia de modo a confundir o processo que efetishy
vamente ocorre com a loacutegica ideal do sistema Focalizo uma situaccedilatildeo
didaacutetica nesse contcxto em que eacute perfeito o funcionamcnto do
aparato cm quc podemos verificar o mecanismo da simulaccedilatildeo em estashy
do digamos de laboratoacuterio
IVIULALAU E PONTO OE VISTA
Toda leitura de eacute pr()(llltatildeo de um ponto de vista o do sujeito
observador natildeo o da objetividade (b irnagetnA condiccedilatildeo dos efeitos
da imagem eacute essa Em particular o ekilO rb apoacuteia-se numa
construccedilatildeo que inclui o fmguh do obSlrVIr1or O simulacro parece o
que natildeo eacute a partir de um pOIHo ele vista () sujeito estaacute aiacute pressuposto Porshy
tanto o processo elc simulaccedilatildeo nlo l o (Li imagemem si mas o da sua
relaccedilatildeo com o sujeito Num (gt1lt1110 elemelltar podemos tomar o cinema
como modelo do processo O (llIC eacute a fjltnilgcm senatildeo a organizaccedilatildeo do
I 1 I - C f dacontecllnento pra 11111 angu () (C o lscrvaccedilao o que se con un e com
Nessas asserccedilotildees no de Xavier Audouard Le Simulacrc in
eacutepisteacutemologie de lEcole Normale gtuucushy
rc n mai-jun 1966) O horizonte de Audouard eacute o de uma discussatildeo sobre o
idealismo platocircnico seu terreno eacute ponanto distinto e meu natildeo
ca uma identificaccedilatildeo agrave sua perspectiva de anaacutelise
i J
o da cacircmera e nenhum outro mais) O que eacute a fachada de preacutedio de estuacuteshy
dio senatildeo a duplicaccedilatildeo do mesmo princiacutepio da fachada de rua que sushy
gere o que natildeo eacute justamente quando observada de um certo acircngulo e disshy
tacircncia jaacute pressupostos em sua composiccedilatildeo O que eacute a ficccedilatildeo do cinema
senatildeo uma simulaccedilatildeo de mundo para o espectador identificado com o aparato
Vertigo (Um corpo que cai) O filme de Hitchcock realizado
em 1958 Ele eacute a trama da simulaccedilatildeo por excelecircncia como jaacute foi observashy
do pela criacutetica Trago um aspecto novo agrave consideraccedilatildeo o do espelhamenshy
to que existe entre o estratagema que envolve as personagens do drama e
o proacuteprio princiacutepio da narraccedilatildeo do filme Tal como em outras obras de
Hitchcltck o cinepa c1aacutessi~o aqui operagrave com eficiecircncia maacutexima e ao
mesmo tempo oferece a metaacutefora viva para o seu proacuteprio processo Inteshy
ressado nessa metaacutefora acentuo nesta anaacutelise a mecacircnica da simulaccedilacirco o
funcionamento exterior do aparato natildeo o que nas personagens eacute desejo
do estratagema e disposiccedilatildeo para a vertigem da imagem
Sigamos passo a passo a narrativa ateacute o ponto que interessa
Vertigem tiacutetulo original eacute a palavra que condensa as ideacuteias-forccedila
do filme em sua tematiacutezaccedilatildeo do olhar e do ponto de vista A apresentaccedilatildeo
de Vertigo criaccedilatildeo de Saul nos traz a imagem do rosto feminino em
close-up tratado como maacutescara enigmaacutetica imoacutevel Uma aproximaccedilatildeo
maior e um passeio da cacircmcra examinam essa maacutescara em seus detalhes
ateacute que isolado o olho ofereccedila os sinais de vida Os seus movimentos no
entanto natildeo criam uma ~xpressatildeo definida uma intcncionalidade do olhar
Preparam apenas o cenaacuterio ptra um movimentoem espiral na profundishy
dade Mergulho na inteacuteiioridaacutedc cujo fundo inatingiacutevel estaacute sempre em
recesso Aproximaccedilatildeo e recuo atraccedilatildeo e fuga a ambiguumlidade do movishy
mento da espiral ~ experiecircncia matriz de todo o filme cujo eixo eacute o
percurso de profissional do olhar detetive personificaccedilatildeo da
vertigem Logo na primeira sequumlecircncia define-se a questatildeo desse protagoshy
nista numa perseguiccedilatildeo telhados de Satildeo Francisco a vertigem de Scottie o faz responsaacuteveacutel pela morte de um
tentar ajudaacute-lo Sentimeriacuteto de cu1Da aposentadoria
52
lecida a disponibilidade total de a situaccedilatildeo-chave de Vertigo deseshy
nha-se quando ele atende ao chamado de Elster de escola que
no reencontro surpreende-o com o pedido para que sua mulher
Madeleine Elster mostra-se apreensivo com as manifestaccedilotildees de ausecircnshy
cia que ela apresenta com os periacuteodos de comportamento estranho em
que ela parece ser outra pessoa de que retoma sem lembranccedilas
O ex-detetive ensaia um ceticismo apenas aparente e dobra-se ao enigma
proposto Passa a acompanhar os trajetos de Madeleine pesquisa pela
recolhe dados essenciais Um primeiro quadro se compotildee a
ra que dela se apossa em seus transes eacute Cadota Valdez mulher que viveu
em San Francisco no seacuteculo XIX e que se suicidou em circunstacircncias meshy
lancoacutelicas Novamente com Elster Scottie relata as descobertas O marishy
do introduz novo dado Madeleine estaacute em perigo de vida pois descende
de Carlota outras mulheres da linhagem cometeram suiciacutedio e ela tem
agora a idade de Carlota ao morrer
Na primeiraacute seacuterie de passeios de Madeleine fase em que se compotildec
o quadro tivemos uma ostensiva duplicaccedilatildeo num primeiro plano Scortie
observa MadeJeine que natildeo reconhece sua presenccedila (ele estaacute fora do tershy
ritoacuterio dela) e se potildee disponiacutevel ao olhar movimentando-se como numa
cena num segundo plano ao longo do mesmo eixo a cacircmera observa
Scottie que Madeleine Satildeo duas uma dentro da outra que
natildeo se tocam Ela el)quadrada pelo ponto de vista dele ambos enquadra~
dos por noacutes no lugar da cacircmera Madeleine nunca devolve o olhar a Scotshy
tie devolve o olhar agrave cacircmera (regra do filme claacutessico) Mas eacute
ambiacutegua essa passividade pois eacute o movimento dela que dirige o olhar
dele eacute a accedilatildeo de ambos que dirige o nosso olhar sempre na esteira do
acircngulo de de Scottie com quem partilhamos a ignoracircncia a
curiosidade a descoberta
Apoacutes a segunda conversa com Elster o tema do suiciacutedio engendra
uma ruptura nesse esquema de perfeita simetria MadeleineCarlota
atira-se nas aacuteguas da baiacutea de San Francisco Scottie a resgata Permaneceshy
mos puro olhar ele passa ao plano da intervenccedilatildeo e do diaacutelogo Com os
dois juntos certa concretude o que em Scottie eacute jaacute sonho romacircnshy
53
tico tonalidade de experiecircncia ironicamente mimetizada pela textura do
filme projetada nos espaccedilos no som configurando um desfile de clichecircs
do melodrama Encarnando a figura hiacutebrida de e
terapeuta Scottie permeia cada encontro de inquIacutefIacuteAtildeM
sar o imaginaacuterio de MadeleineCarlota decifrar a
lt catarse reveladora curar a mulher por quem estaacute
coloca adiante dele na investigaccedilatildeo
A nova ruptura vem quando Scottie conduz Madeleine a uma Misshy
satildeo Catoacutelica perto de Satildeo Francisco procurando explorar um sonho dela
que ele julga revelador sinal de que a soluccedilatildeo do enigma estaacute e
com esta a salvaccedilatildeo superada a pulsatildeo de morte que a domina Laacute cheshy
gando tudo se precipita auando Madeleine abandona suas recaDitulacotildees e insiste em caminhar sozinha em agrave
de Scottie que natildeo consegue enfim retecirc-la e perceDe em pamco a torre
alta do sino A montagem alternada nos traz a pressa de Madeleine ao se
e agrave torre seguida de Scottie que como suspeitamos
da escada retido pela vertigem - e somos retidos
com ele Ouve-se o grito Por uma das aberturas da torre vislumbra-se o corpo que cai
O ex-detetive vive a reiteraccedilatildeo da a humilhaccedilatildeo puacuteblica de um
psicologicamente massacrado Elsshy
natildeo sem antes tambeacutem absolvecirc-lo Scottie entra em colapso eacute internado Quando retoma agraves ruas de San Francisco
destila sua no passado volta aos mesmos lugares quer encontrar
em cada mulher a figura perdida movido por qualquer semelhanccedila Um
dia depara com Judy (Kim Noacutevak novamente) diferente nas maneiras
no em termos de classe Em tudo o mais a reacuteplica de
Madeleine Ele a segue bate agrave porta do seu quarto de hotel explica seus
motivos convida-a para jantar Ela desconfia daacute provas de sua identidade
(sou Judy natildeo o conheccedilo) tenta a rejeiccedilatildeo mas finalmente aceita Satisfeishy
to ele diz a hora do encontro e retira-se Pela primeira vez em todo o filme
natildeo o acompanhamos nos separamos de seu ponto de vista De repente
natildeo eacute mais dele a moldura que define os contornos do nosso olhar Retishy
54
dos no quarto ficamos ao lado de
sem delongas que natildeo espera o final
Sozinha no quarto hesitante nervosa
assume o risco do reencontro com nova identidade JUdyI Madeleme reshy
a trama urdida por Elster Para livrar-se de sua mulher ele COl1shy
para simular Madeleine Ou seja assumir essa identidade
para aIguem colocado no ponto de vista de Scottie Elster sabia dos proshy
blemas do detetive aposentado e engendrou o esquema do crime que fez
de Scottie a testemunha ideal pois era esperado que nunca ao
topo para ver Madeleine ser atirada por ele Elster quando Judy com o
mesmo traje e aparecircncia chegasse certamente sozinha ao alto da torre
Pensando ser sujeito ativo na cura de MadeleineCarlota Scottie tentou
resgataacute-la e apaixonou-se por um simulacro por uma imagem constmiacuteda
para seu ponto de vista O dispositivo montado estava todo apoiado nas
posiccedilotildees reciacuteprocas de observador e imagem dueto que deu corpo agrave ficshy
ccedilatildeo consagrada a posteriori pela sistemaacutetica do tribunal (num estratagema
bem mais complexo Judy Madeleine ocupa o lugar da falsa evidecircncia
apresentada agrave testemunha no meu primeiro exemplo) O diagnoacutestico do
suiciacutedio que absolve Scottie eacute a consumaccedilatildeo do crime perfeito A posiccedilatildeo
de Elster - aquele que sabe - corresponde agrave posiccedilatildeo do dispositivo narrashy
dor da histoacuteria no cinema claacutessico (ele permanece agrave sombra e orquestra as
imagens) Portanto no enredo que coloca em cena Vertigo espelha ()
prio mecanismo desse cinema que via de regra constroacutei-se segundo a
loacutegica do crime define o meu ponto de vista daacute corpo ao simushy
lacro eacute monitor de meu desejo tal como o dispositivo Elster-Judy-Madeshy
leine-Carlota em a Scottic
O filme de Hitchcock vai natildeo se reduz agrave exposiccedilatildeo desse
mecanismo Este se encontra inserido num tecido de ~elaccedilotildees que envolshy
vem natildeo soacute a identidade e o desejo de Scottie mas tambeacutem a identidade
e o de (a natildeo foi apenas para ele a
Urna leimra mais completa de Vertigo exishy
~rlprriiacute() detalhada do movimento derradeiro da trama Reshy
para o estratagema do as permanecem na
55
esfera das duas personagens agora entregues agrave resoluccedilatildeo de todo o disposhy
sitivo de identidadesimulaccedilatildeovertigem6 Permanecendo poreacutem nas
consideraccedilotildees sobre o aparato do olhar que eacute meu objetivo central aqui
afasto-me do filme natildeo sem antes fazer breve referecircncia ao que na parte
final de Vertigo devolve-nos agrave questatildeo da leitura da imagem no cinema
No reencontro das personagens Scottie impelido por sua fixaccedilatildeo
na imagem do passado in~iste em fazer de Judy nos miacutenimos detalhes a
reacuteplica fiel de Madeleine Ao observar sua metamorfose redefinimos
nossa relaccedilatildeo com a cena antiga a imagem de Kim Novak era Judy que
era Madeleine agraves vezes Carlota Judy possuiacuteda por Madeleine (a possesshy
satildeo transferecircncia se refaz agora) Madeleine (Judy) falando de sentimenshy
tos que eram de Judy (Madeleine) numa duplicaccedilatildeo de palavras expresshy
sotildees gestos que natildeo permite definir os contornos que separam uma da
outra essas quatro presenccedilas Refiro-me a Kim N ovak porque todo o
estratagema do filme conta com os falsetes fragilidades de seu desempeshy
nho para o bom efeito A construccedilatildeo das identidades em abismo embarashy
Iha a enunciaccedilatildeo dos gestos como dizer quem expressa o quecirc quando a
accedilatildeo dramaacutetica requer um fingir fingimento num processo em cascata
Vertigo ilustra nesse aspecto o quanto a leitura do rosto estaacute atrelada agrave
moldura que possuo e natildeo agrave exclusiva expressividade da imagem Tudo
nas palavras e gestos de Judy Madeleine ganha um sentido novo a partir
de cada deslocamento do ponto de vista O que natildeo significa apenas uma
questatildeo de espaccedilo e informaccedilatildeo mas inclui de modo decisivo uma disshy
posiccedilatildeo particular do observador que completa a accedilatildeo invisiacutevel do aparashy
to (no caso para a consumaccedilatildeo dos efeitos desejados era preciso que o
espectador da cena fosse Scottie com seu perfil e seu passado)
6 Para uma leitura de Vertigo que trabalha o dispositivo identidade simulashy
ccedilatildeovertigem e em particular sua resoluccedilatildeo traacutegica ao final do filme ver Robin
Wood Hitchcocks Films (Nova York Castle Books 1969) no qual a moldura eacute a
psicanaacutelise e Nelson Brissac Peixoto Cenaacuterio em ruiacutenas (Satildeo Paulo Brasiliense
1987) cujo texto pressupotildee uma reflexatildeo sobre o mundo dos efeitos-de-superficie o vazio a dissoluccedilatildeo da origem o simulacrQ
Tomei Vertigo como um laboratoacuterio no qual sob controle exibe-se
uma engenharia da simulaccedilatildeo aqrelaacionada pelo olhar do filme claacutessishy
co a qual alia a forccedila de seduccedilatildeo da cena agrave invisibilidade do aparato Para
finalizar gostaria de ir aleacutem dessa referecircncia mais imediata ao aparato do
cinema claacutessico pois a anaacutelise aqui feita permite uma inversatildeo nos mecashy
nismos destacados por discursos sobre o poder que mobilizam a metaacutefoshy
ra da sociedade como universo carceraacuterio e se desdobram em imagens
do aprisionamento pelo olhar Diante dos aparatos de comunicaccedilatildeo que
nos cercam eacute comum a caracterizaccedilatildeo de uma competecircncia de controle
de ordenamento cristalizada no olhar vigilante onipresente que se volta
o tempo todo para noacutes Considerando as tecnologias do olhar podemos
entretanto destacar um processo ordenador menos ostensivo que envolve
a accedilatildeo de um olhar que em vez de estar voltado para mim olha por rrtim
oferece-me pontos de vista coloca-se entre mim e o mundo (lembremos
a ironia de Vertigo Scottie eacute o olhar vigilante profissional mas o processhy
so de controle atua em sentido inverso - eacute o dispositivo que define seu
ponto de vista) Cercado de imagens vejo-me inscrito pela media numa
segunda natureza num processo que implica um cotejo de pontos de vista
muito peculiar que me afasta por exemplo do enfrentamento proacuteprio da
relaccedilatildeo pessoal intersubjetiva Esta se constitui pela devoluccedilatildeo do olhar
e nela repercute o que nos diz o poeta Antonio Machado o olho que vejo
eacute olho porque me vecirc natildeo porque o vejo Diante do aparato construtor de
imagens minha interaccedilatildeo eacute de outra ordem envolve um olho que natildeo
vejo e natildeo me vecirc que eacute olho porque substitui o meu porque me conduz
de bom grado ao seu lugar para eu enxe~gar mais ou talvez menos
Dado inagravelienaacutevel de minha experiecircncia o olhar fabricado eacute constanshy
te oferta de pontos de vista Enxergar efetivamente mais sem recusaacute-lo
implica discutir os termos desse olhar observar com ele o mundo mas
colocaacute-lo tambeacutem em foco recusando a condiccedilatildeo de total identificaccedilatildeo
com o aparato Enxergar mais eacute estar atento ao visiacutevel e tambeacutem ao que
fora do campo torna visiacutevel
56 57
acontecimento ou dar significado particular a um rosto em close-up
Pudovkin ao realizar A matildee [I926] queria uma expressatildeo particular de
no rosto do heroacutei numa cena em que na prisatildeo ele recebe uma
mensagem de sua matildee trazendo esperanccedilas de liberdade O jovem ator
natildeo conseguiu a expressatildeo pedida o cineasta buscou outra soluccedilatildeo Surshy
o ator num momento desavisado numa circunstacircncia de riso e
filmou seu rosto que reagia a um estiacutemulo completamente estrashy
nho agrave cena do heroacutei Combinou a imagcm registrada com as cenas
vizinhas no filme e julgou saacircsfatoacuterio o efeito obtido Se imagem do
ator eacute um material no qual a montagem inocular um se~tido esse foi
e ainda hoje eacute um dado de desconforto para muita gente Os atores tecircm
razatildeo em desconfiar dessa distacircncia entre seu trabalho e a percepccedilatildeo de
sua imagem na tela Operaccedilotildees como essa de Pudovkin desde cedo entrashy
ram na rotina do trabalho Muitos teoacutericos tecircm se interessado pela discusshy
satildeo de diferentes aspectos dessa manipulaccedilatildeo que ilustra com bastante
evidecircncia a relatividade das expressotildees e das performances no cinema
Comparando a questatildeo dos atores a serviccedilo da ficccedilatildeo com a da foto
observada no tribunal ganha toda ecircnfase a importacircncia da pergunta que
o observador dirige agrave imagem em funccedilatildeo de sua proacutepria circunstacircncia e
interesse Afinal na condiccedilatildeo de espectador de um filme de ficccedilatildeo estou
no de quem aceita o do faz-de-contaacute de quem sabe estar dianshy
te de representaccedilotildees e portanto natildeo vecirc cabimento em discutir questotildees
de legitimidade ou autenticidade no niacutevel da testemunha de tribunal
Aceito e ateacute acho bem-vindi~ o artifiacutecio do diretor que muda o signif shy
do de um gesto - o essencial eacute a imagem ser convincente dentro dos proshy
poacutesitos do filme que procuraacute instaiirar um mundo imaginaacute
A partir de imagens deesquiilas fachadas e avenidas o cinema cria
uma nova geografia com friigmenros de diferentes corpos um novo corshy
po com segmentos de ereaccedilOtildees um fato que soacute existe na tela Natildeo
questiono a cidade imaginaacuteiacutea - o vejo na tela natildeo corresponde por
exemplo ao Rio ou agrave Satildeo PaJlo que conheccedilo Natildeo cabe perguntar de quem
eacute o corpo imaginaacuterio ou qual aestnIacutetura real de um espaccedilo visto na tela em
fragmentos Se assim o o espectador rompe o pacto que assina ao
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entrar na sala escura para assistir a um filme que tem
res Diante da imagem apresentada como prova em a Clrcunsshy
tacircncia e o compromisso satildeo outros o eixo da verdade e da mentira requer
criteacuterios proacuteprios Para iludir convencer eacute necessaacuterio competecircncia e frtz
parte dessa saber antecipar com precisatildeo a moldura do observador as cirshy
cunstacircncias da recepccedilatildeo da os em jogo Embora pareccedila
a leitura da imagem natildeo eacute imediata Ela resulta de um processo em que
intervecircm natildeo soacute as mediaccedilotildees que estatildeo na esfera do olhar que produz a
imagem mas tambeacutem aquelas presentes na esfera do olhar que as recebe
Este natildeo eacute inerte pois armado participa do
o OLHAH DO CINEMA COMO MEDIACcedilAtildeO
Haacute entre o aparato cinematograacutefico e o olho natural uma seacuterie de elemenshy
tos e operaccedilotildees comuns que favorecem uma identificaccedilatildeo do meu olhar
com o da cacircmera resultando daiacute um forte sentimento da presenccedila do
mundo emoldurado na tela simultacircneo ao meu saber de sua ausecircncia
(trata-se de e natildeo das proacuteprias coisas) Discutir essa identificaccedilatildeo
e essa presenccedila do mundo em minha consciecircncia eacute em primeiro lugar
acentuar as accedilotildees do aparato que constroacutei o olhar do cinema A imagem
que recebo compotildee um mundo filtrado por um olhar exterior a mim que
me organiza uma aparecircncia das coisas estabelecendo uma ponte mas tamshy
beacutem se interpondo entre mim e o mundo Trata-se de um olhar anterior ao
meu cuja circunstacircncia natildeo se confunde com a minha na sala de projeccedilatildeo
O encontro cacircmeraobjeto (a produccedilatildeo do acontecimento que me eacute dado
ver) e o encontro espectadoraparato de projeccedilatildeo constituem dois moshy
mentos distintos separados por todo um processo Na estatildeo
implicados uma co-presenccedila um compromisso um riSCO um prazer e um
poder de quem tem a possibilidade e escolhe filmar Como espectador
tenho acesso agrave aparecircnci
ou seja sem a circunstacircncia Conteiacutenplo uma imagem sem ter parshy
ticipado de sua produccedilatildeo sem escolher acircngulo distacircncia sem definir uma
perspectiva proacutepria para a observaccedilatildeo Ao contraacuterio das situaccedilotildees de vida
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em que estou presente ao acontecimento na sala de espetaacuteculos jaacute sentashy
do natildeo tenho o trabalho de buscar diferentes posiccedilotildees para observar o
mundo pois tudo se faz em meu nome antes de meu olhar intervir num
processo que franqueia o que talvez de outro modo seria para mim de
impossiacutevel acesso Espectador de cinema tenho meus privileacutegios Mas
simultaneamente algo me eacute roubado o privileacutegio da escolha
Nesse compromisso de ganhos e perdas aceito e valorizo o olhar
mediador do cinema porque as imagens que ele me oferece tecircm algo de
prodigioso - hoje talvez banalizado advindo de sua liberdade ao invashy
dir a intimidade (uma liberdade da qual usufruo sem riscos) de sua preshy
cisatildeo e destreza nos maiores desafios No cinema posso ver tudo de
perto e bem visto ampliado na tela de modo a ~urpreender detalhes no
fluxo dos acontecimentos e dos gestos A imagem na tela tem sua durashy
ccedilatildeo ela persiste pulsa reserva surpresas Se eacute contiacutenua posso acompashy
nhar um movimento enquanto esse se faz diante da cacircmera se a montashy
gem interveacutem vejo uma sucessatildeo de imagens tomadas de diferentes
acircngulos acompanho a evoluccedilatildeo de um ac~gtntecimento a partir de uma
coleccedilatildeo de pontos de vista via privilegiados especialmente cuishy
dados para que o espetaacuteculo do mundo se faccedila para miiacuten com clareza
dramaticidade beleza As possibilidades abertas pela temporal idade proacuteshy
pria da imagem satildeo infinitas haacute o movimento do mundo observado e o
movimento do olhar do apa~ato que observa Quando a imagem eacute de rosshy
tos tenho a interaccedilatildeo dos olhares (lue se confrontam verdadeira orquesshy
traccedilatildeo o olho que vecirc e o que eacute vi~to tecircm ambos sua dinacircmica proacutepria e
cada um de noacutes jaacute teve ocasiOtildees de avaliar com maior ou menor consciecircnshy
cia a intensidade dos efeitos extraiacutedos dessa orquestraccedilatildeo
O usufruto desse olhar privilegiacuteado natildeo a sua anaacutelise eacute algo que o
cinema tem nos garantido propiciando essa condiccedilatildeo prazerosa de ver
o mundo e estar a salvo ocupar o centro sem assumir encargos Estou preshy
sente sem participar do mundo observado Puro olhar insinuo-me invishy
shrel nos espaccedilos a interceptr os ~ihares de dois interlocutores escrutishy
narreaccedilotildees e gestos explorar ambientes de longe de perto Salto com
velocidade infinita de um poacutento a outro de um tempo a outro Ocupo
posiccedilotildees do olhar sem comprometer o corpo sem os limites do meu corshy
po Na ficccedilatildeo cinematograacutefica junto com a cacircmera estou em toda parte c
em nenhum lugar em todos os cantos ao lado das personagens mas sem
preencher espaccedilo sem ter presenccedila reconhecida Em suma o olhar do
cinema eacute um olhar sem corpo Por isso mesmo ubiacutequo onividente Idenshy
tificado com esse olhar eu espectador tenho o prazer do olhar que natildeo
estaacute situado natildeo estaacute ancorado vejo muito mais e melhor
Observando a experiecircncia por esse acircngulo como entatildeo natildeo exaltar
o cinema Como natildeo pensar sua teacutecnica de base cm termos de
de progresso Retomemos um clima tiacutepico do iniacutecio do seacuteculo
o PRIMEIRO ELOGIO AgraveS DO OLHAR
O MOMENTO DA PROMESSA
Alguns cineastas e estetas dos anos 10-20 deixaram registradas as duas reashy
ccedilotildees a esse lado prodigioso da oferecida pela entatildeo nova teacutecnica de
reproduccedilatildeo Pensaram o cinema quando sua mediaccedilatildeo era um dado inaushy
gural que gerava certas descobertas uma eacuteonstelaccedilatildeo de sentimentos e pershy
cepccedilotildees novos ainda natildeo bem equacionados que exigiacuteam novos conceitos
um trabalho com a linguagem escrita para expressar o lado mais peculiar da
nova experiecircncia Hoje eacute praticamente impossiacutevel recuperar vivamente
aquele momento noacutes que crescemos satur~ados de imagens e nos movemos
num mundo em que o que era antes promessa dc revoluccedilatildeo se faz agora
dado banal do cotidiano experiecircncia reiterada De uma pluralidade de reashy
ccedilotildees elogios desconfianccedilas destaco dois tipos de recepccedilatildeo ao advento do
cinema Na primcira ele eacute observado como coroamento de um projeto jaacute
definido na esfera da representaccedilatildeo na segunda vislumbra-se o cinema
enquanto inauguraccedilatildeo de um universo de expressatildeo sem precedente destishy
nado a provocar uma ruptura na esfera da representaccedilatildeo
Aqueles que o vecircem com simpatia como um coroamento inserem
o cinema na tradiccedilatildeo do espetaacuteculo dramaacutetico mais popular de grande
vitalidade no seacuteculo raquoIX Avaliam que cumprindo os mesmos objetivos
o cinema vai mais longe pois multiplica os recursos da representaccedilatildeo faz o
36 37
I I
espectador mergulhar no drama com mais intensidade O olho sem corshy t po cerca a encenaccedilatildeo torna tudo mais claro enfaacutetico expressivo ao narshy
rar uma histoacuteria o cinema faz fluir as accedilotildees no espaccedilo e no tempo e o I
mundo torna-se palpaacutevel aos olhos da plateacuteia com uma forccedila impensaacutevel I em outras formas de representaccedilatildeo Ou seja em seu tornar visiacutevel a meshy
rdiaccedilatildeo do olha cinematograacutefico otimiza o efeito da ficccedilatildeo cumprindo com
muita competecircncia uma tarefa que na esfera da cultura considera-se como Jproacutepria da arte e em especial dos espetaacuteculos Ao exaltar esse salto na efishy ccedil
iciecircncia dentro d~ continuidade de princiacutepios e funccedilotildees os criacuteticos cineasshy
tas e prod~tores afinados agraves regras do mercado cultural da eacutepoca celebram
o na produccedilatildeo industrial do seacuteculo xx de um projeto que vem do
seacuteculo XVIII e que se definiu na origem para a representaccedilatildeo teatraL
Eacute comum sermos lembrados ~o quanto a cacircmera fotograacutefica constishy
tui uma objetivaccedilatildeo tecnoloacutegica recente de princiacutepios da representaccedilatildeo jaacute I
conhecidos cuja sistematizaccedilatildeo vem do Renascimento italiano (cacircmara i iacuteescura o meacutetodo da perspectiva os efeitos de profundidade na superfiacutecie
da tela) Com a imagem em movimento o representar a dos homens iacute se daacute com a franca hegemonia do ilusionismo a encenaccedilatildeo tal e qual o I real plantado no cinema industrial desde os tempos de D W Griffith
Fato que cristaliza uma heranccedila menos tematizada pela criacutetica a do olhar Ital como constituiacutedo no drama burguecircs Aqui a referecircncia teoacuterica essenshy
cial eacute Diderot No momento em que escreve suas peccedilas e formula a teoria trenovadora do teatro definiuacutedoo drama seacuterio burguecircs do seacuteculo XVIII
~ um elemento central no seu ideaacuterio eacute a criacutetica ao teatro vinculado aos ~
gecircneros claacutessicos - principalmente ao tipo de encenaccedilatildeo que se dava agraves
trageacutedias claacutessicas francesas do seacuteculo XVII Esse teatro por demais ancoshy
rado na palavra depende da exclusiva forccedila poeacutetica do texto desdenhanshy
doo aspecto visual da experiecircncia do palco Ou eacute incapaz de elaboshy
rar a cena propriamente dita tal como o filoacutesofo a entende explorando a
expressividade do gesto e a cocircmposiccedilatildeo visual da cena (os tableaux consshy
truiacutedos pela posiccedilatildeo reciacuteproca dos atores e da cenografia)
Diderot queria um teatro dirigido agrave sensibilidade por meio da reshy
produccedilatildeo integral das aparecircncias do mundo queria um meacutetodo de dar
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a ver as situaccedilotildees os gestos as emoccedilotildees O ilusionismo fonte do enshy
volvimento da plateacuteia eacute entatildeo assumido como a ponte privilegiada no
caminho da compreensatildeo da experiecircncia humana da assimilaccedilatildeo de
valores da explicitaccedilatildeo de movimentos do coraccedilatildeo Tal demanda proacutepria
do universo da Ilustraccedilatildeo do seacuteculo XVIIl tem seus desdobramentos e
depois da Revoluccedilatildeo Francesa em outra atmosfera social e
explode no teatro popular de 1800 Aiacute se consolida o gecircnero dramaacutetico
de massas por excelecircncia o melodrama Esse tem sido por meio do teashy
tro (seacuteculo do cinema (seacuteculo xx) e da TV (desde
taccedilatildeo mais contundente de uma busca de expressividade
moral) em que tudo se quer ver estampado na superfiacutecie do mundo na
ecircnfase do gesto no trejeito do rosto na eloquumlecircncia da voz Apanaacutegio do
exagero e do excesso o melodrama eacute o gecircnero afim agraves grandes revelashy
ccedilotildees agraves encenaccedilotildees do acesso a uma verdade que se desvenda um
sem-nuacutemero de misteacuterios equiacutevocos pistas falsas vilanias Intenso nas
accedilotildees e sentimentos carrega nas reviravoltas ansioso pelo efeito e a
comunicaccedilatildeo envolvendo toda uma pedagogia em que nosso olhar eacute
convidado a apreender formas mais imediatas de reconhecimento da
virtude ou do pecado N a virada do seacuteculo XIX para o XX natildeo surpreende que a teacutecnica do
cinema entatildeo emergente tenha assumido essa pedagogia e tenha substishy
tuiacutedo o melodrama teatral na satisfaccedilatildeo de uma demanda de ficccedilatildeo na soshy
ciedade Quando falo em ilusionismo reproduccedilatildeo das aparecircncias na vershy
dade que adveacutem do conflito de forccedilas que se expressam e se revelam pelo
olhar estou afirmando princiacutepios da representaccedilatildeo aos quais o cinema vem
se ajustar como uma luva Como braccedilo da induacutestria cultural ele
do movimento de objetivaccedilatildeo institucional da Ilustraccedilatildeo Sua
do olhar melodramaacutetico eacute o ponto-limite de um projeto de expressatildeo
total da natureza na representaccedilatildeo Reflete um ideal de domiacutenio e controshy
le da aparecircncia como sinal de conhecimento da natureza um ideal que
inscreve a arte como espelho pedagoacutegico que requer a competecircncia tecnoshy
loacutegica de criar ilusatildeo e por essamiddotvia atingir a sensibilidade a passagem
das trevas agrave luz se faz de efeitos sobre o olhar
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Dentro do projeto de revelaccedilatildeo do mundo para o olhar os efeitos do
close-up logo adquirem a condiccedilatildeo de emblema das virtudes da nova arte
Mais do que a montagem - sua condiccedilatildeo preacutevia - o close-up na Franccedila e
nos Estados Unidos atrai o dos cineacutefilos corno ponto de condenshy
de um drama que se faz movimento dos olhos - o que vecirc e o
que eacute visto - e pela trama formada pela sucessatildeo de detalhes
e reveladores Corno movimento em direccedilatildeo agrave intimidade e V1stO corno
potecircncia maior do cinema que muito cedo impressionou a todos pela sua
capacidade de devastaccedilatildeo das intenccedilotildees ocultas do pequeno gesto fora do
alcance dos interlocutores do movimento facial que trai um sentimento
Natildeo foi preciso a manifestaccedilatildeo da criacutetica cineastas e produtores conduzishy
ram as experiecircncias reveladoras da forccedila dramaacutetica do rosto isolado na e usando a tradicional muito antes de 1920 jaacute insshy
truiacutea seus atores para a dos olhos - janela da alma _ trazishy
dos para perto no close-up para o exame
Foco das atenccedilotildees e dos o close-up estaraacute em I920 tambeacutem
no centro das reflexotildees de quem afastado dos valores promovidos pela
induacutestria do cinema observa seus prodiacutegios com outra moldura de inteshy
resses e julga os filmes do mercado por demais domesticados pela
demanda de ficccedilatildeo que induz o novo meio a seguir os passos do teatro e
da literatura popular Encontramos aqui quem vecirc o cinema como ruptushy
ra espectadores avessos aos do filme de accedilatildeo corrente cinecircfilos
natildeo interessados na fluecircncia dos acontecimentos no pulsar da
nas tensotildees dramaacuteticas usuais Por intermeacutedio deles o cinema uma
recepccedilatildeo mais empenhada em surpreender aspectos da plaacutestica da imashy
gem do trabalho da cacircmera e da presenccedila peculiar do mundo na tela que
permanecem recalcados na visatildeo dominante Para esse olhar diferenciashy
do por meio do cinema toda urna esfera nova de percepccedilotildees abre-se agrave
nossa experiecircncia desde que sejamos capazes de entender a expressividashy
de da nova imagem em outros termos elogiando sim o mas denshy
tro de urna outra oacutetica a de quem entende o cinema natildeo como coroamenshy
to do ilusionismo teatral mas como ruptura inauguraccedilatildeo de um novo diaacutelogo com a natureza e os homens
4deg
Satildeo os intelectuais e artistas ligados agrave arte moderna que lideram essa
nova leitura do cinema de uma perspectiva que na Franccedila traduziu-se no
cineacutema davant-garde nas experiecircncias dos surrealistas e nas polecircmicas
que tiveram como pauta a superaccedilatildeo da moldura melodramaacutetica a libershy
taccedilatildeo do olhar sem corpo das amarras da continuidade narrativa a adeshy
da nova arte agrave sua teacutecnica moderna A
fcrentes grupos postos de lado os conflitos que os
cinema destina-se a uma tarefa de redenccedilatildeo A cultural
do Ocidente europeu estaria falida o poder criador preso a convenccedilotildees
obsoletas saturado de referecircncias que o desvigoram Enredado em formas
de pensar e sentir desgastadas o homem culto se vecirc separado da natureshy
za reprimido cercado de mentiras de clichecircs da de maacutescaras
O cinema eacute radicalmente novo inocente e traz a da tecnologia
Ele pode e deve romper essa grade devolvendo aos homens o acesso a
uma natureza alienada pelos artifiacutecios de uma cultura
A vanguarda se estabelece como cultUra de separando o
espaccedilo utoacutepico da verdade (cinema vida futura) e o espaccedilo da mentira da
convenccedilatildeo (tradiccedilatildeo literaacuteria teatro cotidiano burguecircs) Sua feacute no cinema
ancora-se numa ideacuteia de expressatildeo que tambeacutem se apoacuteia na acuidade de
reproduccedilatildeo da aparecircncia proacutepria da nova teacutecnica mas com um traccedilo pecushy
liar que afasta a do pensamento gerado na esfera da induacutestria
Germaine Dulac e Epstein principais porta-vozes da avant-ga
concebem o cinema corno expressividade do mundo num sentido radishy
ca1 Combatem a vaga que nos leva a sob qualquer pretexto
isto expressa aquilo de um modo que equivale a isto significa aquilo
dentro dos variados caminhos pelos quais vamos de um poacutelo a outro do
significante ao significado Reservam expressatildeo para designar um proshy
cesso determinado impelido por forccedilas naturais no a composiccedilatildeo de
forccedilas interior a um organismo deixa narcas na do mesmo shy
eacute o movimento nelo Qual ci Que estaacute no interior vem forcosashy
mente agrave tona a forma
I Cf Xavier Seacutetima arte um cuto moderno (Satildeo Paulo 1978)
41
vel) que o cinema vemcaptar com exclusividade pois fixa os movimenshy
tos na peliacutecula sem as atrapalhaccedilotildees do olho natural O cinema tem seu
vigor proacuteprio de um olhar mais automaacutetico
natildeo maculado pelos preconceitos culturais
dade Eacute irocircnico que justamente porque natildeo tem interioridade o olhar
da maacutequina possa atingir o princiacutepio interior dos movimentos revelar a
verdade que organicamente expressa-se em sentido pleno imprime-se
numa textura do mundo que soacute a cacircmera eacute capaz de registrar O proacuteprio
instantacircneo fotograacutefico em sua estrutura mais simples jaacute nos mostra o
quanto a imagem revelada faz emergir dados ocultos que natildeo estavam na
mira do fotoacutegrafo No cinema o movimento poteacutencializa tal desocultashy
mento o qual pode tornar-se mais efetivo quando os cineastas forem cuacutemshy
plices da nova teacutecnica em vez de tentar agrave como no
melodrama a expressividade do fica atrelada a toda uma
cadeia de loacutegica eacute tomada de empreacutestimo agrave do natushy
em que o tOrnar visiacutevel resulta do de uma retoacuterica que ~rH+tia Para
o que era aaequado ao teatro - como ilusionismo do seacuteculo XIX natildeo o eacute para o cinema do seacuteculo xx pois a
imitaccedilatildeo dos gestos antes oferecida a olhos desarmados natildeo resiste agrave anaacuteshy
lise da nova sensibilidade Com o cinema a percepccedilatildeo humana ganhou
um acesso especial agrave intimidade dos processos - ~ele a aparecircncia eacute jaacute uma
anaacutelise O cose-up natildeo eacute o lugar do fingimento eacute uma presenccedila que reveshy
la o que se eacute natildeo o que se pretende ser (inuacuteteis as caretas dos
A aposta da vanguarda estaacute no poder analiacutetico do cinematoshygraacutefico no que ressalta natildeil
espaccedilo) mas tambeacutem as
mente a cacircmera lenta (arnplia(acirco no eixo do tempo) que reveshyIa o mundo em outra e de~cobre-nos a vida secreta que se tece a
nossa volta e em noacutes ganhando ~xpressatildeo nas formas instaacuteveis fora da
nossa consciecircncia que temo~ fixadas pela teacutecnica2 Epstein nos seus
2 Essa aposta no poder analiacutetko do dnema tem uma versatildeo radical moshymento na Uniatildeo Sovieacutetica encarnada rio projeto do Cine-Olho de Vertov gt
42
o ~__ao~ das diferentes velocidades
do movimento animal e dos fenocircmenos Fershy
nand Leacuteger as relaccedilotildees e a forma dos objetos fora de sua inserccedilatildeo
utilitaacuteria no cotidiano Embora natildeo totalmente afinado ao cineacutema dayantshy
garde o surrealismo torna-se o movimento de contestaccedil50 ao cinema inshy
dustrial de maior impacto com sua exploraccedilatildeo da montagem como reveshy
laccedil50 das pulsotildees anatomia do desejo Em diferentes busca-se a
experiecircncia fora do senso comum o olhar em sintonia com ~l~r
do - a sensibilidade efetivamente moderna A
(Epstein) surge entatildeo como nova pedagogia
ccedilatildeo ao cenaacuterio do melodrama - pois o cincma teria como destino
trazer-nos de volta uma cosmologia e um encantamento do mundo para
os quais o cartesianismo e a filosofia da Ilustraccedilatildeo cegos
O horizonte desse renascimento seria a explosatildeo do universo carceraacuterio
da existecircncia atual (para usar a expressatildeo de Walter Benjamin em seu
ceacutelebre ensaio de T936 ao falar de reproduccedilatildeo teacutecnica arte e
A formulaccedilatildeo de Epstein-Dulae eacute questionaacutevel auando examinada a
partir de sua ideacuteia-matriz de expressatildeo
analiacutetico (inegaacutevel) da ~~a~Mrl~ aiacute uma feacute inteshy
gral no dado visiacutevel na caj)acldlde exclusiva de
suas relaccedilotildees internas trazer a verdade agrave tona
agrave ao contexto de cada a~aM~A mais de-
no entanto estaacute no impulso utoacutepico nela presente c no salto teoacuterico
que oferece ao buscar um pensameMo agrave alwra dos aspectos radicalmente
novos da experiecircncia do cinema no inicio do seacuteculo Benjamin o filoacutesofo
atento agraves transformaccedilotildees da sensibilidade geradas pelas novas diraacute
em 1936 A natureza que se dirifie dmera natildeo eacute a mesma que a que se
dirige ao olhar Essas c outras suas - sobre o ator o
gt que procura realizar no cinema documentaacuterio a verdade que desmascara a culshy
tura tradicional A cIacutee Vertov diante dos franceses eacute a
ccedilatildeo que ele estabelece cntre desmascaramento e exposiccedilatildeo dos processos efetivos
da Drodudiacuteo social das relaccedilotildees de atraveacutes do montagem cinematogniacutefica
43
analiacutetico da Imagem retomam muito do repertoacuterio da vanguarda dos anos
20 inserindo a caracterizaccedilatildeo do olhar do cinema numa reflexatildeo mais amshy
pIa sobre teacutecnica e cultura Nessa reflexatildeo a moldura eacute outra mas prevalece
o mesmo movimento de ressaltar o papel subversivo revelado r da fotoshy
grafia e do cinema dentro da cultura europeacuteia A promessa entatildeo se reafirshy
ma sem as premissas de eXflressividade total e de retorno agrave natureza
Com Benjamin ela aSSume um contorno histoacuterico mais bem demarcado eacute
por um persamento mais sensiacutevel agrave contradiccedilatildeo e ao caraacuteter das
forccedilas sociais em conflito Pensamento que nos trouxe uma avaliaccedilatildeo da
questatildeo da arte dentro de uma articulaccedilatildeo mais luacutecida com a conjuntura
poliacutetica e a proacutepria natureza das apostas em na Europa dos anos 30
polarizada por uma confrontaccedilatildeo decisiva entre revoluccedilatildeo e reaccedilatildeo
A CRiacuteTICA DO OLHAR SEM CORPO
No seu elogio ao aspecto revelador do olhar no cinema o pensamento
dos anos 20 colocou o debate em termos de verdade (cinema) emendra
(tradiccedilatildeo cultural) e deu toda ecircnfase agrave cumplicidade entre cinema e natushy
reza solidaacuterios enquanto um organismo e sua expressatildeo visual prontos a
expulsar a simulaccedilatildeo desde que a nova teacutecnica fosse salva de su~ adultera-
promovida pelo universo da mercadoria Por esse a oposishyentre um cinema desejado objeto do recalque e aquele que
realmente impera (a pedagogia da induacutestria orienta-se por uma teleoIOPla o presente eacute o mOmelItO dos entraves que impedem o desenshy
volvimento na direccedilatildeo COrreta eacuteapaz de realizar as promessas da nova
teacutecnica o futuro eacute o preenchimen~o dessas promessas que desde jaacute as vanshy
guardas anunciam e preparam Entre 1920 e J960 os poderes reais inshy
sistiram em repor o mesno cinema dominante o que trouxe em linhas
a reiteraccedilatildeo da mesnla matriz de contestaccedilatildeo O conflito dominanshy
tedominado traduzido em termos de verdade e refez-se ao
longo de eixos diversos Quando prevaleceu um eixo poliacutetico o poacutelo da
verdade (futuro) identificou-se agrave cultura revolucionaacuteria o da mentira
presentet agraves mistificaccedilotildees da reaccedilatildeo Quando prevaleceu um eixo esteacutetishy
co verdade foi poesia originalidade experimentaccedilatildeo mentira foi a rotishy
na do comeacutercio o kitscll industrializado
Natildeo cabe agora a recapitulaccedilatildeo do que foram as diferentes versotildees
desse conflito vanguardacultura de massa em cada e eacutepoca Natildeo o
poderia fazer nem quero pois meu objetivo eacute saltar dessa primeira refleshy
xatildeo dos anos 20 para uma mais proacutexima de gerada no contexto franshy
cecircs poacutes-68 reflexatildeo que abandonou a tradiccedilatildeo de opor verdade e mentishy
ra deslocando a discussatildeo sobre a teacutecnica do cinema
No grande intervalo que a criacutetica avanccedilou na caracterizashy
ccedilatildeo do olhar sem corpo e suas implicaccedilotildees notadamente na avaliaccedilatildeo de
sua estrutura mais comunicativa e sedutora o cinema olhar da
induacutestria da ideologia dominante nos meios Extensatildeo do qlle
chamei olhar melodramaacutetico o cinema claacutessico eacute sua modernizaccedilatildeo Faz
com que ele abandone os excessos maiores do ganhe em
profundidade dramaacutetica amplitude temaacutetica concretizando o ver mais e
melhor do cinema na direccedilatildeo de um ilusionismo mais completo - o cineshy
ma claacutessico eacute o olhar sem corpo atuando em sentido
caracterizaccedilatildeo dos seus poderes apresentada em minha primeira
que de fato ajusta-se mais precisamente a esse estilo particular dOJTIinanshy
te no mercado e natildeo a todo o cinema possiacutevel Eacute nele mais do que em
qualquer outra proposta que vemos realizado o de intensificar ao
extremo nossa relaccedilatildeo com o mundo-objeto fazer tal mundo parecer autocircshy
nomo existente em seu proacuteprio direito natildeo encorajando perguntas na
direccedilatildeo do proacuteprio olhar mediador sua estrutura e comportamento Soshy
mos aiacute convidados a tomar o olhar sem corpo como dado natural
Entre a Segunda Guerra Mundial e os anos 60 dois grandes
de reflexatildeo conduziram a criacutetica a essa naturalidade postulada pelo cineshy
ma claacutessico a teoria radical do cinema-discurso baseado nas operaccedilotildees da
montagem (o Eisenstein dos anos 20-30 permaneceu aqui a referecircncia
central) e a criacutetica francesa inspirada na fenomenologia tendo como [oco
maior Andreacute Bazin3
3 Cf Bazin Cinema ensaios trad Eloisa Ribeiro (Satildeo Paulo Brasilicnse 1991)
44 45
Falar de Eisenstein exigiria uma abordagem radicalmente distinta da
que faccedilo agora pois sua criacutetica ao ilusionismo COmeccedila com a advertecircncia
de que a imagem cinematograacutefica natildeo deve ser lida c0f110 produto de um
olhar Para ele a suposiccedilatildeo de que houve um encontro uma contiguumlidade
espacial e temporal entre cacircmera e objeto natildeo eacute O dado central e impresshy
cindiacutevel da leitura da imagem Sua presenccedila na tela eacute um fato de natureza
que deve ser observado em seu valor simboacutelico
caracteriacutesticas de sua composiccedilatildeo e sua no Contexto de um discurshy
so que eacute exposiccedilatildeo de ideacuteias natildeo sucessatildeo natural de fatos captados
pelo olhar A diferenccedila entre um plano geral e um cose-up por
muitas vezes natildeo pode ser entendida como olhar versus
olhar de mesmo quando se focaliza o mesmo ODjeto mas como
confronto de duas imagens de valores distintos A diferenccedila eacute de
natildeo de posiccedilatildeo no espaccedilo pois pode natildeo haver COntinuidade e
homogeneidade espacial para que se possa falar num mais perto
- tudo depende do contexto do discurso por imagens
Ao contraacuterio de Eisenstein os criacuteticos inspirados na fenomenologia
endossam e defendem a premissa de que no cinema toda imagem eacute proshy
duto de um olhar - eacute essencial que ela seja vista como tal- e a sucessatildeo
define sempre a atitude do observador diante de um mundo homogecircneo
Agrave imagem-signo de Eisenstein eles opotildeem a imagem-acontecimento agrave
defesa da descontinuidade proacutepria do cineasta russo respondem Com
uma defesa ateacute mais radical do princiacutepio de continuidade jaacute presente na
narraccedilatildeo claacutessica fazendo a ela um reparo fundamental se a imagem em
movimento nos traz a percepccedilatildeo privilegiada do homem como ser lanccedilashy
do no mundo como ser-em-situaccedilatildeo a falsidade do cinema claacutessico estaacute
na manipulaccedilatildeo impliacutecita em sua montagem o olhar sem corpo e a
onividecircncia criam na tela uni mundo abstrato de sentido fechado preshy
julgado e organizado pelo cin~ina Toda montagem eacute discurso manipulashy
ccedilatildeo de Eisenstein de GrUacutefith ou de Bufiacuteuel Em oposiccedilatildeo um criacutetishy
co como Bazin solicita um olhar cinematograacutefico mais afinado ao olho de
um sujeito circunstanciado que p6ssui limites aceita a abertura do
mundo convive com ambiguumlidades Quando pede realismo ele natildeo se
46
deteacutem em consideraccedilotildees de conteuacutedo (o tipo de universo Ciccional ou doshy
cumentaacuterio) Sublinha a postura do olhar em sua interaccedilatildeo com o mundo
tanto mais legiacutetima quanto mais as condiccedilotildees de nosso olhar
ancorado no corpo vivenciando uma duraccedilatildeo e uma circunstacircncia em sua
continuidade trabalhando as incertezas de uma percepccedilatildeo
ultrapassada mundo Daiacute sua minimizaccedilatildeo da montagem (instacircncia
construtora da onividecircncia) sua defesa do plano-seguumlecircncia (olhar uacutenico
sem cortes observando uma em seu um acontecimento
em seu fluir
Numa visatildeo mais atual prestamos atenccedilatildeo especial ao que aproxima
e natildeo apenas ao que afasta o cinema-discurso de Eisenstein e o realismo
existencial de Bazin haacute em ambos novamente a atribuiccedilatildeo de um poder
de verdade e de um poder de mentira encarnados em determinados estishy
los Para Eisenstein haacute um estilo capaz de dizer o mundo social-histoacuterishy
co colocando o cinema como potecircncia maior no plano do conhecimento
Para Bazin O cinema eacute uma espeacutecie de terceiro estado da e exisshy
te um estilo autecircntico na captaccedilatildeo da vivecircncia humana em sua
essencial abertura no tempo
Contra esse pano de fundo da tradiccedilatildeo teoacuterica a intervenccedilatildeo de
]ean-Louis Baudry em 1969-70 em questatildeo a constante promessa de
um estilo mais verdadeiro e dirige seu ataque agraves premissas do cinema em
geral examinando mais a fundo as condiccedilotildees do espectador raciociacuteshy
nio estaacute municiado para analisar o espectador do filme claacutessico mas
fala em cinema tout couTe) 4 O horizonte de seu exame eacute ressaltar o
modo pelo qual a recepccedilatildeo da imagem possui uma estrutura que a seu ver
solapa o reiterado creacutedito - de Eisenstein Griffith Epstein na
da verdade como destinaccedilatildeo fundamental do cinema Ele invershy
te a tradiccedilatildeo e vecirc na simulaccedilatildeo na de efeitos (ilusoacuterios) de
conhecimento o destino maior da nova arte (visatildeo que
4 O mais importante dos textos de Jean-Louis dessa
1970 Os efeitos ideoloacutegicos do de base estaacute publicado em Ismail
Xavier (orll) A experiecircncia do cinema (Rio de Janeiro
47
pela permanecircncia do ilusionismo do cinema industrial) Isso se daacute por
forccedila da proacutepria natureza da teacutecnica cinematograacutefica herdeira das ilusotildees _
da perspectiva da persistecircncia retiniana (natildeo vemos os fotogramas vemos
o que natildeo ocorre na tela ou seja o movimento da imagem e temos a imshy
pressatildeo de continuidade) da falsa autenticidade documental da fotografia
Rearticulando elementos jaacute conhecidos Baudry nos traz uma interpretashy
ccedilatildeo radical que- questiona natildeo estilos particulares de fazer cinema mas o
fundamento mesmo de sua objetividade como teacutecnica essa mes~a objetishy
vidade que tem sido a sustentaccedilatildeo maior das esperanccedilas de verdade Na
nova perspectiva as diferentes posiccedilotildees teoacutericas desde 1920 definem um
pensar o cinema a priori capturado pelas ilusotildees da teacutecnica e desatento agraves
implicaccedilotildees contidas na proacutepria estrutura do olhar da cacircmera tal como se
daacute para noacutes na plateacuteia A teacutecnica tem suas inclinaccedilotildees seus efeitos ideoloacuteshy
gicos e nesse sentido eacute ela mesma que impele o cinema industrial a desenshy
volver seu ilusionismo e trazer o espectador para dentro do mundo ficcioshy
na A forccedila de encantamento desse cinema persiste na histoacuteria porque o
dado crucial em jogo natildeo eacute tanto a imitaccedilatildeo do real na tela _ a reproduccedilatildeo
integral das aparecircncias - mas a simulaccedilatildeo de um certo tipo de sujeito-doshy
olhar pelas operaccedilotildees do aparato cinematograacutefico
Avaliar a potecircncia do olhar sem corpo natildeo eacute entatildeo inventariar as
imagens que ele oferece efocaIacuteIacutezar o seu movimento proacuteprio sua forma
de mediaccedilatildeo o que impiacuteica analisar sua incidecircncia no espectador que
vivenda o poder de clarividecircncia a percepccedilatildeo tota Na sala escura idenshy
tificado com o movimento do olhar da cacircmera eu me represento como
sujeito dessa percepccedilatildeo total capaz de doar sentido agraves coisas sobrevoar as
aparecircncias fazer a siacutentese do mundo Minha emoccedilatildeo estaacute com os fatos
que o olhar segue mas a cbndiccedilatildeo desse envolvimento eacute eu me colocar no
lugar do aparato sintoniz~do com suas operaccedilotildees Com isso incorporo
(ilusoriamente) seus poder~s e ericontro nessa sintonia - solo do entendishy
mento cinematograacutefico - o maior cenaacuterio de simulaccedilatildeo de uma onipotecircnshy
cia imaginaacuteria No cinema faccedilo uma viagem que confirma minha condishy
ccedilatildeo de sujeito tal como a desejo Maacutequina de efeitos a realizaccedilatildeo maior do
cinema seria entatildeo esse efeito-sujeito a simulaccedilatildeo de uma consciecircncia
48
transcendente que descortina o mundo e se vecirc no centro das coisas ao
mesmo tempo que radicalmente separada delas a observar o mundo coshy
mo puro olhar Nessa apropriaccedilatildeo ilusoacuteria da competecircncia ideal do olhar
estou portanto no centro mas eacute o aparato que aiacute me coloca pois eacute dele o
movimento da percepccedilatildeo monitor da minha fantasia
Para Baudry uma filosofia idealista que postula um sujeito transshy
cendente em oposiccedilatildeo ao mundo objetivo que se dispotildee ao conhecimento
encontra aiacute na teacutecnica do cinema sua traduccedilatildeo visiacutevel Toda sua ecircnfase
recai sobre a produccedilatildeo simultacircnea da imagem e do sujeito-observador
onividente A engenharia simuladora do cinema define com o efeitoshy
sujeito seu teatro da percepccedilatildeo total cujo protagonista sou eu-espectador
identificado com o olhar da cacircmera
N esses termos o que dificulta a consolidaccedilatildeo de linguagens alternashy
tivas mais verdadeiras eacute esse pecado original inscrito na teacutecnica Esta
tem na ilusatildeo seu sustentaacuteculo e os percalccedilos das vanguardas devem-se a
que sua aposta eacute reverter a funccedilatildeo daquilo que jaacute nasceu para cumprir
outro destino Digo destino porque a loacutegica dessa teoria transforma o cineshy
ma num oacutergatildeo que surgiu para cumprir um programa o de objetivar na
esfera do visiacutevel estrateacutegias de dominaccedilatildeo especialmente as da classe burshy
guesa que presidiu sua origem Assim antes de instacircncia liberadora subshy
versiva a condiccedilatildeo do cinema eacute preencher uma demanda do proacuteprio unishy
verso carceraacuterio tornando-o mais preciso e poderoso em seu aparato
Haacute uma atmosfera de desencanto instalada a partir dos anos 70 a
formulaccedilatildeo aqui exposta eacute a traduccedilatildeo teacuteoacuterica radical dos impasses da conshy
testaccedilatildeo no cinema Temos o esgotamento de uma teleologia a da teacutecnishy
ca redentora entravada pela poliacutetica e a economia e sua substituiccedilatildeo
por u~a outra a da teacutecnica como instrumento maior de reposiccedilatildeo de um
sistema de poder Em consonacircncia corn a tonalidade da reflexatildeo sobre a
linguagem a cultura e a ideologia naquele momento a teoria do cinema
mais original e polecircmica ressalta o lado sistemaacutetico inelutaacutevel das ilusotildees
e dos enganos do olhar da cacircmera Nesse contexto a proacutepria praacutetica do
cinema amplia o espaccedilo para a reflexatildeo teoacuterica voltada para a questatildeo do
simulacro - a citaccedilatildeo a imagem que-alude agrave imagem o circuito das refeshy
49
recircncias a si mesmo que o cinema leva ao paroxismo entram para valer na
esfera da induacutestria constituem sua nova marca Tal reflexatildeo se faz dentro
de molduras conceituais diversas e num processo em que a teoria do
cinema reflete o andamento dos debates mais abrangentes sobre a cultura
contemporacircnea A imagem cinematograacutefica eacute entatildeo obseJvada a partir de
sua participaccedilatildeo em outra rede de relaccedilotildees em que natildeo haacute para a
interpretaccedilatildeo (esse tomar a imagem como representaccedilatildeo de algo exterior
a ela) para o juiacutezo da verdade ou mentira em que se a oposlccedilao
aparecircncia (imagem)essecircncia (substacircncia) -nada haacute por traacutes das lmlti~e~ns
elas valem como efeitos-de-superfiacutecie imagem remetendo a imagem fluxo de simulacros
Faccedilo agora uma incursatildeo que natildeo eacute propriamente no terreno da
nova filosofia e das questotildees mais amplas do simulacro na produccedilatildeo
Trata-se de uma anaacutelise particular no niacutevel da engenharia da simulaccedilatildeo
caracterizaccedilatildeo de um efeito na qual natildeo eacute necessaacuterio assumir as noccedilotildees
com a mesma ressonacircncia elas adquiriram na literatura dos anos 80
Fecho a exposiccedilatildeo com a consideraccedilatildeo de um novo exeacutemplo que acredishy
to esclareccedila algumas observaccedilotildees feitas ateacute aqui sobre a interaccedilatildeo entre
espectador e imagem sobre o papel da moldura do sujeito na leitura
Parti de um primeiro exemplo mais simples para explicar como o
efeito de uma depende de sua ~elaccedilatildeo com o sujeito em determishy
nadas condiccedilotildees Da situaccedilatildeo da testemunha de McCarthy passei a uma
caracterizaccedilatildeo mais detida do olhar do cinema e examinei dois momenshy
tos opostos dentro do conflito de perspectivas que marcou a reflexatildeo criacuteshy
tica em torno do que hiacute de erigano e rcvelaccedilatildeo nesse olhar A partir de
uma discussatildeo mais sobre a simulaccedilatildeo do fato - na fotografia no
cinema chegamos a uma questatildeo mais especiacutefica a simulaccedilatildeo do sujeishy
to na estrutura mesma (lo olhar cinematograacutefico Dentro da discussatildeo
mais geral o exemplo a envolve uma situaccedilatildeo mais complicada do
quea das fotos do tribunal estaremos no cinema Como inspiraccedilatildeo
terei presentes as liccedilotildees de Baildry sem no entanto incorporar o movishy
mento totalizador de suaacute criacutetica ao olhar do cinema Seu amplo diagnoacutesshy
tico mobilizando a psicaacutenaacutelise tem como pressuposto o fato de sabershy
0
mos o bastante sobre a natureza do espectador de modo a prever o caraacuteshy
tcr de sua identificaccedilatildeo com o aparato a qual assume uma dimensatildeo
uacutenica de adesatildeo agrave imagem por forccedila do efeito-sujeito Como conhecedoshy
res do desejo do espectador denunciamos o conluio desse desejo com o
programa da induacutestria e deduzimos daiacute as alienaccedilotildees do cinema e da
teacuteia Natildeo tenho condiccedilotildees de endossar a generalidade desse saber a resshy
peito do espectador o aparato atua em determinada direccedilatildeo mas a expeshy
riecircncia do cinema inclui outras forccedilas e condiccedilotildees que natildeo se ajustam ao
programa do sistema A formulaccedilatildeo dc Baudry embora inclua com toda
a forccedila a dimensatildeo do desejo do espectador natildeo deixa de ser outra vershy
satildeo das teorias da manipulaccedilatildeo global centradas em excesso no aspecto
da experiecircncia de modo a confundir o processo que efetishy
vamente ocorre com a loacutegica ideal do sistema Focalizo uma situaccedilatildeo
didaacutetica nesse contcxto em que eacute perfeito o funcionamcnto do
aparato cm quc podemos verificar o mecanismo da simulaccedilatildeo em estashy
do digamos de laboratoacuterio
IVIULALAU E PONTO OE VISTA
Toda leitura de eacute pr()(llltatildeo de um ponto de vista o do sujeito
observador natildeo o da objetividade (b irnagetnA condiccedilatildeo dos efeitos
da imagem eacute essa Em particular o ekilO rb apoacuteia-se numa
construccedilatildeo que inclui o fmguh do obSlrVIr1or O simulacro parece o
que natildeo eacute a partir de um pOIHo ele vista () sujeito estaacute aiacute pressuposto Porshy
tanto o processo elc simulaccedilatildeo nlo l o (Li imagemem si mas o da sua
relaccedilatildeo com o sujeito Num (gt1lt1110 elemelltar podemos tomar o cinema
como modelo do processo O (llIC eacute a fjltnilgcm senatildeo a organizaccedilatildeo do
I 1 I - C f dacontecllnento pra 11111 angu () (C o lscrvaccedilao o que se con un e com
Nessas asserccedilotildees no de Xavier Audouard Le Simulacrc in
eacutepisteacutemologie de lEcole Normale gtuucushy
rc n mai-jun 1966) O horizonte de Audouard eacute o de uma discussatildeo sobre o
idealismo platocircnico seu terreno eacute ponanto distinto e meu natildeo
ca uma identificaccedilatildeo agrave sua perspectiva de anaacutelise
i J
o da cacircmera e nenhum outro mais) O que eacute a fachada de preacutedio de estuacuteshy
dio senatildeo a duplicaccedilatildeo do mesmo princiacutepio da fachada de rua que sushy
gere o que natildeo eacute justamente quando observada de um certo acircngulo e disshy
tacircncia jaacute pressupostos em sua composiccedilatildeo O que eacute a ficccedilatildeo do cinema
senatildeo uma simulaccedilatildeo de mundo para o espectador identificado com o aparato
Vertigo (Um corpo que cai) O filme de Hitchcock realizado
em 1958 Ele eacute a trama da simulaccedilatildeo por excelecircncia como jaacute foi observashy
do pela criacutetica Trago um aspecto novo agrave consideraccedilatildeo o do espelhamenshy
to que existe entre o estratagema que envolve as personagens do drama e
o proacuteprio princiacutepio da narraccedilatildeo do filme Tal como em outras obras de
Hitchcltck o cinepa c1aacutessi~o aqui operagrave com eficiecircncia maacutexima e ao
mesmo tempo oferece a metaacutefora viva para o seu proacuteprio processo Inteshy
ressado nessa metaacutefora acentuo nesta anaacutelise a mecacircnica da simulaccedilacirco o
funcionamento exterior do aparato natildeo o que nas personagens eacute desejo
do estratagema e disposiccedilatildeo para a vertigem da imagem
Sigamos passo a passo a narrativa ateacute o ponto que interessa
Vertigem tiacutetulo original eacute a palavra que condensa as ideacuteias-forccedila
do filme em sua tematiacutezaccedilatildeo do olhar e do ponto de vista A apresentaccedilatildeo
de Vertigo criaccedilatildeo de Saul nos traz a imagem do rosto feminino em
close-up tratado como maacutescara enigmaacutetica imoacutevel Uma aproximaccedilatildeo
maior e um passeio da cacircmcra examinam essa maacutescara em seus detalhes
ateacute que isolado o olho ofereccedila os sinais de vida Os seus movimentos no
entanto natildeo criam uma ~xpressatildeo definida uma intcncionalidade do olhar
Preparam apenas o cenaacuterio ptra um movimentoem espiral na profundishy
dade Mergulho na inteacuteiioridaacutedc cujo fundo inatingiacutevel estaacute sempre em
recesso Aproximaccedilatildeo e recuo atraccedilatildeo e fuga a ambiguumlidade do movishy
mento da espiral ~ experiecircncia matriz de todo o filme cujo eixo eacute o
percurso de profissional do olhar detetive personificaccedilatildeo da
vertigem Logo na primeira sequumlecircncia define-se a questatildeo desse protagoshy
nista numa perseguiccedilatildeo telhados de Satildeo Francisco a vertigem de Scottie o faz responsaacuteveacutel pela morte de um
tentar ajudaacute-lo Sentimeriacuteto de cu1Da aposentadoria
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lecida a disponibilidade total de a situaccedilatildeo-chave de Vertigo deseshy
nha-se quando ele atende ao chamado de Elster de escola que
no reencontro surpreende-o com o pedido para que sua mulher
Madeleine Elster mostra-se apreensivo com as manifestaccedilotildees de ausecircnshy
cia que ela apresenta com os periacuteodos de comportamento estranho em
que ela parece ser outra pessoa de que retoma sem lembranccedilas
O ex-detetive ensaia um ceticismo apenas aparente e dobra-se ao enigma
proposto Passa a acompanhar os trajetos de Madeleine pesquisa pela
recolhe dados essenciais Um primeiro quadro se compotildee a
ra que dela se apossa em seus transes eacute Cadota Valdez mulher que viveu
em San Francisco no seacuteculo XIX e que se suicidou em circunstacircncias meshy
lancoacutelicas Novamente com Elster Scottie relata as descobertas O marishy
do introduz novo dado Madeleine estaacute em perigo de vida pois descende
de Carlota outras mulheres da linhagem cometeram suiciacutedio e ela tem
agora a idade de Carlota ao morrer
Na primeiraacute seacuterie de passeios de Madeleine fase em que se compotildec
o quadro tivemos uma ostensiva duplicaccedilatildeo num primeiro plano Scortie
observa MadeJeine que natildeo reconhece sua presenccedila (ele estaacute fora do tershy
ritoacuterio dela) e se potildee disponiacutevel ao olhar movimentando-se como numa
cena num segundo plano ao longo do mesmo eixo a cacircmera observa
Scottie que Madeleine Satildeo duas uma dentro da outra que
natildeo se tocam Ela el)quadrada pelo ponto de vista dele ambos enquadra~
dos por noacutes no lugar da cacircmera Madeleine nunca devolve o olhar a Scotshy
tie devolve o olhar agrave cacircmera (regra do filme claacutessico) Mas eacute
ambiacutegua essa passividade pois eacute o movimento dela que dirige o olhar
dele eacute a accedilatildeo de ambos que dirige o nosso olhar sempre na esteira do
acircngulo de de Scottie com quem partilhamos a ignoracircncia a
curiosidade a descoberta
Apoacutes a segunda conversa com Elster o tema do suiciacutedio engendra
uma ruptura nesse esquema de perfeita simetria MadeleineCarlota
atira-se nas aacuteguas da baiacutea de San Francisco Scottie a resgata Permaneceshy
mos puro olhar ele passa ao plano da intervenccedilatildeo e do diaacutelogo Com os
dois juntos certa concretude o que em Scottie eacute jaacute sonho romacircnshy
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tico tonalidade de experiecircncia ironicamente mimetizada pela textura do
filme projetada nos espaccedilos no som configurando um desfile de clichecircs
do melodrama Encarnando a figura hiacutebrida de e
terapeuta Scottie permeia cada encontro de inquIacutefIacuteAtildeM
sar o imaginaacuterio de MadeleineCarlota decifrar a
lt catarse reveladora curar a mulher por quem estaacute
coloca adiante dele na investigaccedilatildeo
A nova ruptura vem quando Scottie conduz Madeleine a uma Misshy
satildeo Catoacutelica perto de Satildeo Francisco procurando explorar um sonho dela
que ele julga revelador sinal de que a soluccedilatildeo do enigma estaacute e
com esta a salvaccedilatildeo superada a pulsatildeo de morte que a domina Laacute cheshy
gando tudo se precipita auando Madeleine abandona suas recaDitulacotildees e insiste em caminhar sozinha em agrave
de Scottie que natildeo consegue enfim retecirc-la e perceDe em pamco a torre
alta do sino A montagem alternada nos traz a pressa de Madeleine ao se
e agrave torre seguida de Scottie que como suspeitamos
da escada retido pela vertigem - e somos retidos
com ele Ouve-se o grito Por uma das aberturas da torre vislumbra-se o corpo que cai
O ex-detetive vive a reiteraccedilatildeo da a humilhaccedilatildeo puacuteblica de um
psicologicamente massacrado Elsshy
natildeo sem antes tambeacutem absolvecirc-lo Scottie entra em colapso eacute internado Quando retoma agraves ruas de San Francisco
destila sua no passado volta aos mesmos lugares quer encontrar
em cada mulher a figura perdida movido por qualquer semelhanccedila Um
dia depara com Judy (Kim Noacutevak novamente) diferente nas maneiras
no em termos de classe Em tudo o mais a reacuteplica de
Madeleine Ele a segue bate agrave porta do seu quarto de hotel explica seus
motivos convida-a para jantar Ela desconfia daacute provas de sua identidade
(sou Judy natildeo o conheccedilo) tenta a rejeiccedilatildeo mas finalmente aceita Satisfeishy
to ele diz a hora do encontro e retira-se Pela primeira vez em todo o filme
natildeo o acompanhamos nos separamos de seu ponto de vista De repente
natildeo eacute mais dele a moldura que define os contornos do nosso olhar Retishy
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dos no quarto ficamos ao lado de
sem delongas que natildeo espera o final
Sozinha no quarto hesitante nervosa
assume o risco do reencontro com nova identidade JUdyI Madeleme reshy
a trama urdida por Elster Para livrar-se de sua mulher ele COl1shy
para simular Madeleine Ou seja assumir essa identidade
para aIguem colocado no ponto de vista de Scottie Elster sabia dos proshy
blemas do detetive aposentado e engendrou o esquema do crime que fez
de Scottie a testemunha ideal pois era esperado que nunca ao
topo para ver Madeleine ser atirada por ele Elster quando Judy com o
mesmo traje e aparecircncia chegasse certamente sozinha ao alto da torre
Pensando ser sujeito ativo na cura de MadeleineCarlota Scottie tentou
resgataacute-la e apaixonou-se por um simulacro por uma imagem constmiacuteda
para seu ponto de vista O dispositivo montado estava todo apoiado nas
posiccedilotildees reciacuteprocas de observador e imagem dueto que deu corpo agrave ficshy
ccedilatildeo consagrada a posteriori pela sistemaacutetica do tribunal (num estratagema
bem mais complexo Judy Madeleine ocupa o lugar da falsa evidecircncia
apresentada agrave testemunha no meu primeiro exemplo) O diagnoacutestico do
suiciacutedio que absolve Scottie eacute a consumaccedilatildeo do crime perfeito A posiccedilatildeo
de Elster - aquele que sabe - corresponde agrave posiccedilatildeo do dispositivo narrashy
dor da histoacuteria no cinema claacutessico (ele permanece agrave sombra e orquestra as
imagens) Portanto no enredo que coloca em cena Vertigo espelha ()
prio mecanismo desse cinema que via de regra constroacutei-se segundo a
loacutegica do crime define o meu ponto de vista daacute corpo ao simushy
lacro eacute monitor de meu desejo tal como o dispositivo Elster-Judy-Madeshy
leine-Carlota em a Scottic
O filme de Hitchcock vai natildeo se reduz agrave exposiccedilatildeo desse
mecanismo Este se encontra inserido num tecido de ~elaccedilotildees que envolshy
vem natildeo soacute a identidade e o desejo de Scottie mas tambeacutem a identidade
e o de (a natildeo foi apenas para ele a
Urna leimra mais completa de Vertigo exishy
~rlprriiacute() detalhada do movimento derradeiro da trama Reshy
para o estratagema do as permanecem na
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esfera das duas personagens agora entregues agrave resoluccedilatildeo de todo o disposhy
sitivo de identidadesimulaccedilatildeovertigem6 Permanecendo poreacutem nas
consideraccedilotildees sobre o aparato do olhar que eacute meu objetivo central aqui
afasto-me do filme natildeo sem antes fazer breve referecircncia ao que na parte
final de Vertigo devolve-nos agrave questatildeo da leitura da imagem no cinema
No reencontro das personagens Scottie impelido por sua fixaccedilatildeo
na imagem do passado in~iste em fazer de Judy nos miacutenimos detalhes a
reacuteplica fiel de Madeleine Ao observar sua metamorfose redefinimos
nossa relaccedilatildeo com a cena antiga a imagem de Kim Novak era Judy que
era Madeleine agraves vezes Carlota Judy possuiacuteda por Madeleine (a possesshy
satildeo transferecircncia se refaz agora) Madeleine (Judy) falando de sentimenshy
tos que eram de Judy (Madeleine) numa duplicaccedilatildeo de palavras expresshy
sotildees gestos que natildeo permite definir os contornos que separam uma da
outra essas quatro presenccedilas Refiro-me a Kim N ovak porque todo o
estratagema do filme conta com os falsetes fragilidades de seu desempeshy
nho para o bom efeito A construccedilatildeo das identidades em abismo embarashy
Iha a enunciaccedilatildeo dos gestos como dizer quem expressa o quecirc quando a
accedilatildeo dramaacutetica requer um fingir fingimento num processo em cascata
Vertigo ilustra nesse aspecto o quanto a leitura do rosto estaacute atrelada agrave
moldura que possuo e natildeo agrave exclusiva expressividade da imagem Tudo
nas palavras e gestos de Judy Madeleine ganha um sentido novo a partir
de cada deslocamento do ponto de vista O que natildeo significa apenas uma
questatildeo de espaccedilo e informaccedilatildeo mas inclui de modo decisivo uma disshy
posiccedilatildeo particular do observador que completa a accedilatildeo invisiacutevel do aparashy
to (no caso para a consumaccedilatildeo dos efeitos desejados era preciso que o
espectador da cena fosse Scottie com seu perfil e seu passado)
6 Para uma leitura de Vertigo que trabalha o dispositivo identidade simulashy
ccedilatildeovertigem e em particular sua resoluccedilatildeo traacutegica ao final do filme ver Robin
Wood Hitchcocks Films (Nova York Castle Books 1969) no qual a moldura eacute a
psicanaacutelise e Nelson Brissac Peixoto Cenaacuterio em ruiacutenas (Satildeo Paulo Brasiliense
1987) cujo texto pressupotildee uma reflexatildeo sobre o mundo dos efeitos-de-superficie o vazio a dissoluccedilatildeo da origem o simulacrQ
Tomei Vertigo como um laboratoacuterio no qual sob controle exibe-se
uma engenharia da simulaccedilatildeo aqrelaacionada pelo olhar do filme claacutessishy
co a qual alia a forccedila de seduccedilatildeo da cena agrave invisibilidade do aparato Para
finalizar gostaria de ir aleacutem dessa referecircncia mais imediata ao aparato do
cinema claacutessico pois a anaacutelise aqui feita permite uma inversatildeo nos mecashy
nismos destacados por discursos sobre o poder que mobilizam a metaacutefoshy
ra da sociedade como universo carceraacuterio e se desdobram em imagens
do aprisionamento pelo olhar Diante dos aparatos de comunicaccedilatildeo que
nos cercam eacute comum a caracterizaccedilatildeo de uma competecircncia de controle
de ordenamento cristalizada no olhar vigilante onipresente que se volta
o tempo todo para noacutes Considerando as tecnologias do olhar podemos
entretanto destacar um processo ordenador menos ostensivo que envolve
a accedilatildeo de um olhar que em vez de estar voltado para mim olha por rrtim
oferece-me pontos de vista coloca-se entre mim e o mundo (lembremos
a ironia de Vertigo Scottie eacute o olhar vigilante profissional mas o processhy
so de controle atua em sentido inverso - eacute o dispositivo que define seu
ponto de vista) Cercado de imagens vejo-me inscrito pela media numa
segunda natureza num processo que implica um cotejo de pontos de vista
muito peculiar que me afasta por exemplo do enfrentamento proacuteprio da
relaccedilatildeo pessoal intersubjetiva Esta se constitui pela devoluccedilatildeo do olhar
e nela repercute o que nos diz o poeta Antonio Machado o olho que vejo
eacute olho porque me vecirc natildeo porque o vejo Diante do aparato construtor de
imagens minha interaccedilatildeo eacute de outra ordem envolve um olho que natildeo
vejo e natildeo me vecirc que eacute olho porque substitui o meu porque me conduz
de bom grado ao seu lugar para eu enxe~gar mais ou talvez menos
Dado inagravelienaacutevel de minha experiecircncia o olhar fabricado eacute constanshy
te oferta de pontos de vista Enxergar efetivamente mais sem recusaacute-lo
implica discutir os termos desse olhar observar com ele o mundo mas
colocaacute-lo tambeacutem em foco recusando a condiccedilatildeo de total identificaccedilatildeo
com o aparato Enxergar mais eacute estar atento ao visiacutevel e tambeacutem ao que
fora do campo torna visiacutevel
56 57
em que estou presente ao acontecimento na sala de espetaacuteculos jaacute sentashy
do natildeo tenho o trabalho de buscar diferentes posiccedilotildees para observar o
mundo pois tudo se faz em meu nome antes de meu olhar intervir num
processo que franqueia o que talvez de outro modo seria para mim de
impossiacutevel acesso Espectador de cinema tenho meus privileacutegios Mas
simultaneamente algo me eacute roubado o privileacutegio da escolha
Nesse compromisso de ganhos e perdas aceito e valorizo o olhar
mediador do cinema porque as imagens que ele me oferece tecircm algo de
prodigioso - hoje talvez banalizado advindo de sua liberdade ao invashy
dir a intimidade (uma liberdade da qual usufruo sem riscos) de sua preshy
cisatildeo e destreza nos maiores desafios No cinema posso ver tudo de
perto e bem visto ampliado na tela de modo a ~urpreender detalhes no
fluxo dos acontecimentos e dos gestos A imagem na tela tem sua durashy
ccedilatildeo ela persiste pulsa reserva surpresas Se eacute contiacutenua posso acompashy
nhar um movimento enquanto esse se faz diante da cacircmera se a montashy
gem interveacutem vejo uma sucessatildeo de imagens tomadas de diferentes
acircngulos acompanho a evoluccedilatildeo de um ac~gtntecimento a partir de uma
coleccedilatildeo de pontos de vista via privilegiados especialmente cuishy
dados para que o espetaacuteculo do mundo se faccedila para miiacuten com clareza
dramaticidade beleza As possibilidades abertas pela temporal idade proacuteshy
pria da imagem satildeo infinitas haacute o movimento do mundo observado e o
movimento do olhar do apa~ato que observa Quando a imagem eacute de rosshy
tos tenho a interaccedilatildeo dos olhares (lue se confrontam verdadeira orquesshy
traccedilatildeo o olho que vecirc e o que eacute vi~to tecircm ambos sua dinacircmica proacutepria e
cada um de noacutes jaacute teve ocasiOtildees de avaliar com maior ou menor consciecircnshy
cia a intensidade dos efeitos extraiacutedos dessa orquestraccedilatildeo
O usufruto desse olhar privilegiacuteado natildeo a sua anaacutelise eacute algo que o
cinema tem nos garantido propiciando essa condiccedilatildeo prazerosa de ver
o mundo e estar a salvo ocupar o centro sem assumir encargos Estou preshy
sente sem participar do mundo observado Puro olhar insinuo-me invishy
shrel nos espaccedilos a interceptr os ~ihares de dois interlocutores escrutishy
narreaccedilotildees e gestos explorar ambientes de longe de perto Salto com
velocidade infinita de um poacutento a outro de um tempo a outro Ocupo
posiccedilotildees do olhar sem comprometer o corpo sem os limites do meu corshy
po Na ficccedilatildeo cinematograacutefica junto com a cacircmera estou em toda parte c
em nenhum lugar em todos os cantos ao lado das personagens mas sem
preencher espaccedilo sem ter presenccedila reconhecida Em suma o olhar do
cinema eacute um olhar sem corpo Por isso mesmo ubiacutequo onividente Idenshy
tificado com esse olhar eu espectador tenho o prazer do olhar que natildeo
estaacute situado natildeo estaacute ancorado vejo muito mais e melhor
Observando a experiecircncia por esse acircngulo como entatildeo natildeo exaltar
o cinema Como natildeo pensar sua teacutecnica de base cm termos de
de progresso Retomemos um clima tiacutepico do iniacutecio do seacuteculo
o PRIMEIRO ELOGIO AgraveS DO OLHAR
O MOMENTO DA PROMESSA
Alguns cineastas e estetas dos anos 10-20 deixaram registradas as duas reashy
ccedilotildees a esse lado prodigioso da oferecida pela entatildeo nova teacutecnica de
reproduccedilatildeo Pensaram o cinema quando sua mediaccedilatildeo era um dado inaushy
gural que gerava certas descobertas uma eacuteonstelaccedilatildeo de sentimentos e pershy
cepccedilotildees novos ainda natildeo bem equacionados que exigiacuteam novos conceitos
um trabalho com a linguagem escrita para expressar o lado mais peculiar da
nova experiecircncia Hoje eacute praticamente impossiacutevel recuperar vivamente
aquele momento noacutes que crescemos satur~ados de imagens e nos movemos
num mundo em que o que era antes promessa dc revoluccedilatildeo se faz agora
dado banal do cotidiano experiecircncia reiterada De uma pluralidade de reashy
ccedilotildees elogios desconfianccedilas destaco dois tipos de recepccedilatildeo ao advento do
cinema Na primcira ele eacute observado como coroamento de um projeto jaacute
definido na esfera da representaccedilatildeo na segunda vislumbra-se o cinema
enquanto inauguraccedilatildeo de um universo de expressatildeo sem precedente destishy
nado a provocar uma ruptura na esfera da representaccedilatildeo
Aqueles que o vecircem com simpatia como um coroamento inserem
o cinema na tradiccedilatildeo do espetaacuteculo dramaacutetico mais popular de grande
vitalidade no seacuteculo raquoIX Avaliam que cumprindo os mesmos objetivos
o cinema vai mais longe pois multiplica os recursos da representaccedilatildeo faz o
36 37
I I
espectador mergulhar no drama com mais intensidade O olho sem corshy t po cerca a encenaccedilatildeo torna tudo mais claro enfaacutetico expressivo ao narshy
rar uma histoacuteria o cinema faz fluir as accedilotildees no espaccedilo e no tempo e o I
mundo torna-se palpaacutevel aos olhos da plateacuteia com uma forccedila impensaacutevel I em outras formas de representaccedilatildeo Ou seja em seu tornar visiacutevel a meshy
rdiaccedilatildeo do olha cinematograacutefico otimiza o efeito da ficccedilatildeo cumprindo com
muita competecircncia uma tarefa que na esfera da cultura considera-se como Jproacutepria da arte e em especial dos espetaacuteculos Ao exaltar esse salto na efishy ccedil
iciecircncia dentro d~ continuidade de princiacutepios e funccedilotildees os criacuteticos cineasshy
tas e prod~tores afinados agraves regras do mercado cultural da eacutepoca celebram
o na produccedilatildeo industrial do seacuteculo xx de um projeto que vem do
seacuteculo XVIII e que se definiu na origem para a representaccedilatildeo teatraL
Eacute comum sermos lembrados ~o quanto a cacircmera fotograacutefica constishy
tui uma objetivaccedilatildeo tecnoloacutegica recente de princiacutepios da representaccedilatildeo jaacute I
conhecidos cuja sistematizaccedilatildeo vem do Renascimento italiano (cacircmara i iacuteescura o meacutetodo da perspectiva os efeitos de profundidade na superfiacutecie
da tela) Com a imagem em movimento o representar a dos homens iacute se daacute com a franca hegemonia do ilusionismo a encenaccedilatildeo tal e qual o I real plantado no cinema industrial desde os tempos de D W Griffith
Fato que cristaliza uma heranccedila menos tematizada pela criacutetica a do olhar Ital como constituiacutedo no drama burguecircs Aqui a referecircncia teoacuterica essenshy
cial eacute Diderot No momento em que escreve suas peccedilas e formula a teoria trenovadora do teatro definiuacutedoo drama seacuterio burguecircs do seacuteculo XVIII
~ um elemento central no seu ideaacuterio eacute a criacutetica ao teatro vinculado aos ~
gecircneros claacutessicos - principalmente ao tipo de encenaccedilatildeo que se dava agraves
trageacutedias claacutessicas francesas do seacuteculo XVII Esse teatro por demais ancoshy
rado na palavra depende da exclusiva forccedila poeacutetica do texto desdenhanshy
doo aspecto visual da experiecircncia do palco Ou eacute incapaz de elaboshy
rar a cena propriamente dita tal como o filoacutesofo a entende explorando a
expressividade do gesto e a cocircmposiccedilatildeo visual da cena (os tableaux consshy
truiacutedos pela posiccedilatildeo reciacuteproca dos atores e da cenografia)
Diderot queria um teatro dirigido agrave sensibilidade por meio da reshy
produccedilatildeo integral das aparecircncias do mundo queria um meacutetodo de dar
38
a ver as situaccedilotildees os gestos as emoccedilotildees O ilusionismo fonte do enshy
volvimento da plateacuteia eacute entatildeo assumido como a ponte privilegiada no
caminho da compreensatildeo da experiecircncia humana da assimilaccedilatildeo de
valores da explicitaccedilatildeo de movimentos do coraccedilatildeo Tal demanda proacutepria
do universo da Ilustraccedilatildeo do seacuteculo XVIIl tem seus desdobramentos e
depois da Revoluccedilatildeo Francesa em outra atmosfera social e
explode no teatro popular de 1800 Aiacute se consolida o gecircnero dramaacutetico
de massas por excelecircncia o melodrama Esse tem sido por meio do teashy
tro (seacuteculo do cinema (seacuteculo xx) e da TV (desde
taccedilatildeo mais contundente de uma busca de expressividade
moral) em que tudo se quer ver estampado na superfiacutecie do mundo na
ecircnfase do gesto no trejeito do rosto na eloquumlecircncia da voz Apanaacutegio do
exagero e do excesso o melodrama eacute o gecircnero afim agraves grandes revelashy
ccedilotildees agraves encenaccedilotildees do acesso a uma verdade que se desvenda um
sem-nuacutemero de misteacuterios equiacutevocos pistas falsas vilanias Intenso nas
accedilotildees e sentimentos carrega nas reviravoltas ansioso pelo efeito e a
comunicaccedilatildeo envolvendo toda uma pedagogia em que nosso olhar eacute
convidado a apreender formas mais imediatas de reconhecimento da
virtude ou do pecado N a virada do seacuteculo XIX para o XX natildeo surpreende que a teacutecnica do
cinema entatildeo emergente tenha assumido essa pedagogia e tenha substishy
tuiacutedo o melodrama teatral na satisfaccedilatildeo de uma demanda de ficccedilatildeo na soshy
ciedade Quando falo em ilusionismo reproduccedilatildeo das aparecircncias na vershy
dade que adveacutem do conflito de forccedilas que se expressam e se revelam pelo
olhar estou afirmando princiacutepios da representaccedilatildeo aos quais o cinema vem
se ajustar como uma luva Como braccedilo da induacutestria cultural ele
do movimento de objetivaccedilatildeo institucional da Ilustraccedilatildeo Sua
do olhar melodramaacutetico eacute o ponto-limite de um projeto de expressatildeo
total da natureza na representaccedilatildeo Reflete um ideal de domiacutenio e controshy
le da aparecircncia como sinal de conhecimento da natureza um ideal que
inscreve a arte como espelho pedagoacutegico que requer a competecircncia tecnoshy
loacutegica de criar ilusatildeo e por essamiddotvia atingir a sensibilidade a passagem
das trevas agrave luz se faz de efeitos sobre o olhar
39
Dentro do projeto de revelaccedilatildeo do mundo para o olhar os efeitos do
close-up logo adquirem a condiccedilatildeo de emblema das virtudes da nova arte
Mais do que a montagem - sua condiccedilatildeo preacutevia - o close-up na Franccedila e
nos Estados Unidos atrai o dos cineacutefilos corno ponto de condenshy
de um drama que se faz movimento dos olhos - o que vecirc e o
que eacute visto - e pela trama formada pela sucessatildeo de detalhes
e reveladores Corno movimento em direccedilatildeo agrave intimidade e V1stO corno
potecircncia maior do cinema que muito cedo impressionou a todos pela sua
capacidade de devastaccedilatildeo das intenccedilotildees ocultas do pequeno gesto fora do
alcance dos interlocutores do movimento facial que trai um sentimento
Natildeo foi preciso a manifestaccedilatildeo da criacutetica cineastas e produtores conduzishy
ram as experiecircncias reveladoras da forccedila dramaacutetica do rosto isolado na e usando a tradicional muito antes de 1920 jaacute insshy
truiacutea seus atores para a dos olhos - janela da alma _ trazishy
dos para perto no close-up para o exame
Foco das atenccedilotildees e dos o close-up estaraacute em I920 tambeacutem
no centro das reflexotildees de quem afastado dos valores promovidos pela
induacutestria do cinema observa seus prodiacutegios com outra moldura de inteshy
resses e julga os filmes do mercado por demais domesticados pela
demanda de ficccedilatildeo que induz o novo meio a seguir os passos do teatro e
da literatura popular Encontramos aqui quem vecirc o cinema como ruptushy
ra espectadores avessos aos do filme de accedilatildeo corrente cinecircfilos
natildeo interessados na fluecircncia dos acontecimentos no pulsar da
nas tensotildees dramaacuteticas usuais Por intermeacutedio deles o cinema uma
recepccedilatildeo mais empenhada em surpreender aspectos da plaacutestica da imashy
gem do trabalho da cacircmera e da presenccedila peculiar do mundo na tela que
permanecem recalcados na visatildeo dominante Para esse olhar diferenciashy
do por meio do cinema toda urna esfera nova de percepccedilotildees abre-se agrave
nossa experiecircncia desde que sejamos capazes de entender a expressividashy
de da nova imagem em outros termos elogiando sim o mas denshy
tro de urna outra oacutetica a de quem entende o cinema natildeo como coroamenshy
to do ilusionismo teatral mas como ruptura inauguraccedilatildeo de um novo diaacutelogo com a natureza e os homens
4deg
Satildeo os intelectuais e artistas ligados agrave arte moderna que lideram essa
nova leitura do cinema de uma perspectiva que na Franccedila traduziu-se no
cineacutema davant-garde nas experiecircncias dos surrealistas e nas polecircmicas
que tiveram como pauta a superaccedilatildeo da moldura melodramaacutetica a libershy
taccedilatildeo do olhar sem corpo das amarras da continuidade narrativa a adeshy
da nova arte agrave sua teacutecnica moderna A
fcrentes grupos postos de lado os conflitos que os
cinema destina-se a uma tarefa de redenccedilatildeo A cultural
do Ocidente europeu estaria falida o poder criador preso a convenccedilotildees
obsoletas saturado de referecircncias que o desvigoram Enredado em formas
de pensar e sentir desgastadas o homem culto se vecirc separado da natureshy
za reprimido cercado de mentiras de clichecircs da de maacutescaras
O cinema eacute radicalmente novo inocente e traz a da tecnologia
Ele pode e deve romper essa grade devolvendo aos homens o acesso a
uma natureza alienada pelos artifiacutecios de uma cultura
A vanguarda se estabelece como cultUra de separando o
espaccedilo utoacutepico da verdade (cinema vida futura) e o espaccedilo da mentira da
convenccedilatildeo (tradiccedilatildeo literaacuteria teatro cotidiano burguecircs) Sua feacute no cinema
ancora-se numa ideacuteia de expressatildeo que tambeacutem se apoacuteia na acuidade de
reproduccedilatildeo da aparecircncia proacutepria da nova teacutecnica mas com um traccedilo pecushy
liar que afasta a do pensamento gerado na esfera da induacutestria
Germaine Dulac e Epstein principais porta-vozes da avant-ga
concebem o cinema corno expressividade do mundo num sentido radishy
ca1 Combatem a vaga que nos leva a sob qualquer pretexto
isto expressa aquilo de um modo que equivale a isto significa aquilo
dentro dos variados caminhos pelos quais vamos de um poacutelo a outro do
significante ao significado Reservam expressatildeo para designar um proshy
cesso determinado impelido por forccedilas naturais no a composiccedilatildeo de
forccedilas interior a um organismo deixa narcas na do mesmo shy
eacute o movimento nelo Qual ci Que estaacute no interior vem forcosashy
mente agrave tona a forma
I Cf Xavier Seacutetima arte um cuto moderno (Satildeo Paulo 1978)
41
vel) que o cinema vemcaptar com exclusividade pois fixa os movimenshy
tos na peliacutecula sem as atrapalhaccedilotildees do olho natural O cinema tem seu
vigor proacuteprio de um olhar mais automaacutetico
natildeo maculado pelos preconceitos culturais
dade Eacute irocircnico que justamente porque natildeo tem interioridade o olhar
da maacutequina possa atingir o princiacutepio interior dos movimentos revelar a
verdade que organicamente expressa-se em sentido pleno imprime-se
numa textura do mundo que soacute a cacircmera eacute capaz de registrar O proacuteprio
instantacircneo fotograacutefico em sua estrutura mais simples jaacute nos mostra o
quanto a imagem revelada faz emergir dados ocultos que natildeo estavam na
mira do fotoacutegrafo No cinema o movimento poteacutencializa tal desocultashy
mento o qual pode tornar-se mais efetivo quando os cineastas forem cuacutemshy
plices da nova teacutecnica em vez de tentar agrave como no
melodrama a expressividade do fica atrelada a toda uma
cadeia de loacutegica eacute tomada de empreacutestimo agrave do natushy
em que o tOrnar visiacutevel resulta do de uma retoacuterica que ~rH+tia Para
o que era aaequado ao teatro - como ilusionismo do seacuteculo XIX natildeo o eacute para o cinema do seacuteculo xx pois a
imitaccedilatildeo dos gestos antes oferecida a olhos desarmados natildeo resiste agrave anaacuteshy
lise da nova sensibilidade Com o cinema a percepccedilatildeo humana ganhou
um acesso especial agrave intimidade dos processos - ~ele a aparecircncia eacute jaacute uma
anaacutelise O cose-up natildeo eacute o lugar do fingimento eacute uma presenccedila que reveshy
la o que se eacute natildeo o que se pretende ser (inuacuteteis as caretas dos
A aposta da vanguarda estaacute no poder analiacutetico do cinematoshygraacutefico no que ressalta natildeil
espaccedilo) mas tambeacutem as
mente a cacircmera lenta (arnplia(acirco no eixo do tempo) que reveshyIa o mundo em outra e de~cobre-nos a vida secreta que se tece a
nossa volta e em noacutes ganhando ~xpressatildeo nas formas instaacuteveis fora da
nossa consciecircncia que temo~ fixadas pela teacutecnica2 Epstein nos seus
2 Essa aposta no poder analiacutetko do dnema tem uma versatildeo radical moshymento na Uniatildeo Sovieacutetica encarnada rio projeto do Cine-Olho de Vertov gt
42
o ~__ao~ das diferentes velocidades
do movimento animal e dos fenocircmenos Fershy
nand Leacuteger as relaccedilotildees e a forma dos objetos fora de sua inserccedilatildeo
utilitaacuteria no cotidiano Embora natildeo totalmente afinado ao cineacutema dayantshy
garde o surrealismo torna-se o movimento de contestaccedil50 ao cinema inshy
dustrial de maior impacto com sua exploraccedilatildeo da montagem como reveshy
laccedil50 das pulsotildees anatomia do desejo Em diferentes busca-se a
experiecircncia fora do senso comum o olhar em sintonia com ~l~r
do - a sensibilidade efetivamente moderna A
(Epstein) surge entatildeo como nova pedagogia
ccedilatildeo ao cenaacuterio do melodrama - pois o cincma teria como destino
trazer-nos de volta uma cosmologia e um encantamento do mundo para
os quais o cartesianismo e a filosofia da Ilustraccedilatildeo cegos
O horizonte desse renascimento seria a explosatildeo do universo carceraacuterio
da existecircncia atual (para usar a expressatildeo de Walter Benjamin em seu
ceacutelebre ensaio de T936 ao falar de reproduccedilatildeo teacutecnica arte e
A formulaccedilatildeo de Epstein-Dulae eacute questionaacutevel auando examinada a
partir de sua ideacuteia-matriz de expressatildeo
analiacutetico (inegaacutevel) da ~~a~Mrl~ aiacute uma feacute inteshy
gral no dado visiacutevel na caj)acldlde exclusiva de
suas relaccedilotildees internas trazer a verdade agrave tona
agrave ao contexto de cada a~aM~A mais de-
no entanto estaacute no impulso utoacutepico nela presente c no salto teoacuterico
que oferece ao buscar um pensameMo agrave alwra dos aspectos radicalmente
novos da experiecircncia do cinema no inicio do seacuteculo Benjamin o filoacutesofo
atento agraves transformaccedilotildees da sensibilidade geradas pelas novas diraacute
em 1936 A natureza que se dirifie dmera natildeo eacute a mesma que a que se
dirige ao olhar Essas c outras suas - sobre o ator o
gt que procura realizar no cinema documentaacuterio a verdade que desmascara a culshy
tura tradicional A cIacutee Vertov diante dos franceses eacute a
ccedilatildeo que ele estabelece cntre desmascaramento e exposiccedilatildeo dos processos efetivos
da Drodudiacuteo social das relaccedilotildees de atraveacutes do montagem cinematogniacutefica
43
analiacutetico da Imagem retomam muito do repertoacuterio da vanguarda dos anos
20 inserindo a caracterizaccedilatildeo do olhar do cinema numa reflexatildeo mais amshy
pIa sobre teacutecnica e cultura Nessa reflexatildeo a moldura eacute outra mas prevalece
o mesmo movimento de ressaltar o papel subversivo revelado r da fotoshy
grafia e do cinema dentro da cultura europeacuteia A promessa entatildeo se reafirshy
ma sem as premissas de eXflressividade total e de retorno agrave natureza
Com Benjamin ela aSSume um contorno histoacuterico mais bem demarcado eacute
por um persamento mais sensiacutevel agrave contradiccedilatildeo e ao caraacuteter das
forccedilas sociais em conflito Pensamento que nos trouxe uma avaliaccedilatildeo da
questatildeo da arte dentro de uma articulaccedilatildeo mais luacutecida com a conjuntura
poliacutetica e a proacutepria natureza das apostas em na Europa dos anos 30
polarizada por uma confrontaccedilatildeo decisiva entre revoluccedilatildeo e reaccedilatildeo
A CRiacuteTICA DO OLHAR SEM CORPO
No seu elogio ao aspecto revelador do olhar no cinema o pensamento
dos anos 20 colocou o debate em termos de verdade (cinema) emendra
(tradiccedilatildeo cultural) e deu toda ecircnfase agrave cumplicidade entre cinema e natushy
reza solidaacuterios enquanto um organismo e sua expressatildeo visual prontos a
expulsar a simulaccedilatildeo desde que a nova teacutecnica fosse salva de su~ adultera-
promovida pelo universo da mercadoria Por esse a oposishyentre um cinema desejado objeto do recalque e aquele que
realmente impera (a pedagogia da induacutestria orienta-se por uma teleoIOPla o presente eacute o mOmelItO dos entraves que impedem o desenshy
volvimento na direccedilatildeo COrreta eacuteapaz de realizar as promessas da nova
teacutecnica o futuro eacute o preenchimen~o dessas promessas que desde jaacute as vanshy
guardas anunciam e preparam Entre 1920 e J960 os poderes reais inshy
sistiram em repor o mesno cinema dominante o que trouxe em linhas
a reiteraccedilatildeo da mesnla matriz de contestaccedilatildeo O conflito dominanshy
tedominado traduzido em termos de verdade e refez-se ao
longo de eixos diversos Quando prevaleceu um eixo poliacutetico o poacutelo da
verdade (futuro) identificou-se agrave cultura revolucionaacuteria o da mentira
presentet agraves mistificaccedilotildees da reaccedilatildeo Quando prevaleceu um eixo esteacutetishy
co verdade foi poesia originalidade experimentaccedilatildeo mentira foi a rotishy
na do comeacutercio o kitscll industrializado
Natildeo cabe agora a recapitulaccedilatildeo do que foram as diferentes versotildees
desse conflito vanguardacultura de massa em cada e eacutepoca Natildeo o
poderia fazer nem quero pois meu objetivo eacute saltar dessa primeira refleshy
xatildeo dos anos 20 para uma mais proacutexima de gerada no contexto franshy
cecircs poacutes-68 reflexatildeo que abandonou a tradiccedilatildeo de opor verdade e mentishy
ra deslocando a discussatildeo sobre a teacutecnica do cinema
No grande intervalo que a criacutetica avanccedilou na caracterizashy
ccedilatildeo do olhar sem corpo e suas implicaccedilotildees notadamente na avaliaccedilatildeo de
sua estrutura mais comunicativa e sedutora o cinema olhar da
induacutestria da ideologia dominante nos meios Extensatildeo do qlle
chamei olhar melodramaacutetico o cinema claacutessico eacute sua modernizaccedilatildeo Faz
com que ele abandone os excessos maiores do ganhe em
profundidade dramaacutetica amplitude temaacutetica concretizando o ver mais e
melhor do cinema na direccedilatildeo de um ilusionismo mais completo - o cineshy
ma claacutessico eacute o olhar sem corpo atuando em sentido
caracterizaccedilatildeo dos seus poderes apresentada em minha primeira
que de fato ajusta-se mais precisamente a esse estilo particular dOJTIinanshy
te no mercado e natildeo a todo o cinema possiacutevel Eacute nele mais do que em
qualquer outra proposta que vemos realizado o de intensificar ao
extremo nossa relaccedilatildeo com o mundo-objeto fazer tal mundo parecer autocircshy
nomo existente em seu proacuteprio direito natildeo encorajando perguntas na
direccedilatildeo do proacuteprio olhar mediador sua estrutura e comportamento Soshy
mos aiacute convidados a tomar o olhar sem corpo como dado natural
Entre a Segunda Guerra Mundial e os anos 60 dois grandes
de reflexatildeo conduziram a criacutetica a essa naturalidade postulada pelo cineshy
ma claacutessico a teoria radical do cinema-discurso baseado nas operaccedilotildees da
montagem (o Eisenstein dos anos 20-30 permaneceu aqui a referecircncia
central) e a criacutetica francesa inspirada na fenomenologia tendo como [oco
maior Andreacute Bazin3
3 Cf Bazin Cinema ensaios trad Eloisa Ribeiro (Satildeo Paulo Brasilicnse 1991)
44 45
Falar de Eisenstein exigiria uma abordagem radicalmente distinta da
que faccedilo agora pois sua criacutetica ao ilusionismo COmeccedila com a advertecircncia
de que a imagem cinematograacutefica natildeo deve ser lida c0f110 produto de um
olhar Para ele a suposiccedilatildeo de que houve um encontro uma contiguumlidade
espacial e temporal entre cacircmera e objeto natildeo eacute O dado central e impresshy
cindiacutevel da leitura da imagem Sua presenccedila na tela eacute um fato de natureza
que deve ser observado em seu valor simboacutelico
caracteriacutesticas de sua composiccedilatildeo e sua no Contexto de um discurshy
so que eacute exposiccedilatildeo de ideacuteias natildeo sucessatildeo natural de fatos captados
pelo olhar A diferenccedila entre um plano geral e um cose-up por
muitas vezes natildeo pode ser entendida como olhar versus
olhar de mesmo quando se focaliza o mesmo ODjeto mas como
confronto de duas imagens de valores distintos A diferenccedila eacute de
natildeo de posiccedilatildeo no espaccedilo pois pode natildeo haver COntinuidade e
homogeneidade espacial para que se possa falar num mais perto
- tudo depende do contexto do discurso por imagens
Ao contraacuterio de Eisenstein os criacuteticos inspirados na fenomenologia
endossam e defendem a premissa de que no cinema toda imagem eacute proshy
duto de um olhar - eacute essencial que ela seja vista como tal- e a sucessatildeo
define sempre a atitude do observador diante de um mundo homogecircneo
Agrave imagem-signo de Eisenstein eles opotildeem a imagem-acontecimento agrave
defesa da descontinuidade proacutepria do cineasta russo respondem Com
uma defesa ateacute mais radical do princiacutepio de continuidade jaacute presente na
narraccedilatildeo claacutessica fazendo a ela um reparo fundamental se a imagem em
movimento nos traz a percepccedilatildeo privilegiada do homem como ser lanccedilashy
do no mundo como ser-em-situaccedilatildeo a falsidade do cinema claacutessico estaacute
na manipulaccedilatildeo impliacutecita em sua montagem o olhar sem corpo e a
onividecircncia criam na tela uni mundo abstrato de sentido fechado preshy
julgado e organizado pelo cin~ina Toda montagem eacute discurso manipulashy
ccedilatildeo de Eisenstein de GrUacutefith ou de Bufiacuteuel Em oposiccedilatildeo um criacutetishy
co como Bazin solicita um olhar cinematograacutefico mais afinado ao olho de
um sujeito circunstanciado que p6ssui limites aceita a abertura do
mundo convive com ambiguumlidades Quando pede realismo ele natildeo se
46
deteacutem em consideraccedilotildees de conteuacutedo (o tipo de universo Ciccional ou doshy
cumentaacuterio) Sublinha a postura do olhar em sua interaccedilatildeo com o mundo
tanto mais legiacutetima quanto mais as condiccedilotildees de nosso olhar
ancorado no corpo vivenciando uma duraccedilatildeo e uma circunstacircncia em sua
continuidade trabalhando as incertezas de uma percepccedilatildeo
ultrapassada mundo Daiacute sua minimizaccedilatildeo da montagem (instacircncia
construtora da onividecircncia) sua defesa do plano-seguumlecircncia (olhar uacutenico
sem cortes observando uma em seu um acontecimento
em seu fluir
Numa visatildeo mais atual prestamos atenccedilatildeo especial ao que aproxima
e natildeo apenas ao que afasta o cinema-discurso de Eisenstein e o realismo
existencial de Bazin haacute em ambos novamente a atribuiccedilatildeo de um poder
de verdade e de um poder de mentira encarnados em determinados estishy
los Para Eisenstein haacute um estilo capaz de dizer o mundo social-histoacuterishy
co colocando o cinema como potecircncia maior no plano do conhecimento
Para Bazin O cinema eacute uma espeacutecie de terceiro estado da e exisshy
te um estilo autecircntico na captaccedilatildeo da vivecircncia humana em sua
essencial abertura no tempo
Contra esse pano de fundo da tradiccedilatildeo teoacuterica a intervenccedilatildeo de
]ean-Louis Baudry em 1969-70 em questatildeo a constante promessa de
um estilo mais verdadeiro e dirige seu ataque agraves premissas do cinema em
geral examinando mais a fundo as condiccedilotildees do espectador raciociacuteshy
nio estaacute municiado para analisar o espectador do filme claacutessico mas
fala em cinema tout couTe) 4 O horizonte de seu exame eacute ressaltar o
modo pelo qual a recepccedilatildeo da imagem possui uma estrutura que a seu ver
solapa o reiterado creacutedito - de Eisenstein Griffith Epstein na
da verdade como destinaccedilatildeo fundamental do cinema Ele invershy
te a tradiccedilatildeo e vecirc na simulaccedilatildeo na de efeitos (ilusoacuterios) de
conhecimento o destino maior da nova arte (visatildeo que
4 O mais importante dos textos de Jean-Louis dessa
1970 Os efeitos ideoloacutegicos do de base estaacute publicado em Ismail
Xavier (orll) A experiecircncia do cinema (Rio de Janeiro
47
pela permanecircncia do ilusionismo do cinema industrial) Isso se daacute por
forccedila da proacutepria natureza da teacutecnica cinematograacutefica herdeira das ilusotildees _
da perspectiva da persistecircncia retiniana (natildeo vemos os fotogramas vemos
o que natildeo ocorre na tela ou seja o movimento da imagem e temos a imshy
pressatildeo de continuidade) da falsa autenticidade documental da fotografia
Rearticulando elementos jaacute conhecidos Baudry nos traz uma interpretashy
ccedilatildeo radical que- questiona natildeo estilos particulares de fazer cinema mas o
fundamento mesmo de sua objetividade como teacutecnica essa mes~a objetishy
vidade que tem sido a sustentaccedilatildeo maior das esperanccedilas de verdade Na
nova perspectiva as diferentes posiccedilotildees teoacutericas desde 1920 definem um
pensar o cinema a priori capturado pelas ilusotildees da teacutecnica e desatento agraves
implicaccedilotildees contidas na proacutepria estrutura do olhar da cacircmera tal como se
daacute para noacutes na plateacuteia A teacutecnica tem suas inclinaccedilotildees seus efeitos ideoloacuteshy
gicos e nesse sentido eacute ela mesma que impele o cinema industrial a desenshy
volver seu ilusionismo e trazer o espectador para dentro do mundo ficcioshy
na A forccedila de encantamento desse cinema persiste na histoacuteria porque o
dado crucial em jogo natildeo eacute tanto a imitaccedilatildeo do real na tela _ a reproduccedilatildeo
integral das aparecircncias - mas a simulaccedilatildeo de um certo tipo de sujeito-doshy
olhar pelas operaccedilotildees do aparato cinematograacutefico
Avaliar a potecircncia do olhar sem corpo natildeo eacute entatildeo inventariar as
imagens que ele oferece efocaIacuteIacutezar o seu movimento proacuteprio sua forma
de mediaccedilatildeo o que impiacuteica analisar sua incidecircncia no espectador que
vivenda o poder de clarividecircncia a percepccedilatildeo tota Na sala escura idenshy
tificado com o movimento do olhar da cacircmera eu me represento como
sujeito dessa percepccedilatildeo total capaz de doar sentido agraves coisas sobrevoar as
aparecircncias fazer a siacutentese do mundo Minha emoccedilatildeo estaacute com os fatos
que o olhar segue mas a cbndiccedilatildeo desse envolvimento eacute eu me colocar no
lugar do aparato sintoniz~do com suas operaccedilotildees Com isso incorporo
(ilusoriamente) seus poder~s e ericontro nessa sintonia - solo do entendishy
mento cinematograacutefico - o maior cenaacuterio de simulaccedilatildeo de uma onipotecircnshy
cia imaginaacuteria No cinema faccedilo uma viagem que confirma minha condishy
ccedilatildeo de sujeito tal como a desejo Maacutequina de efeitos a realizaccedilatildeo maior do
cinema seria entatildeo esse efeito-sujeito a simulaccedilatildeo de uma consciecircncia
48
transcendente que descortina o mundo e se vecirc no centro das coisas ao
mesmo tempo que radicalmente separada delas a observar o mundo coshy
mo puro olhar Nessa apropriaccedilatildeo ilusoacuteria da competecircncia ideal do olhar
estou portanto no centro mas eacute o aparato que aiacute me coloca pois eacute dele o
movimento da percepccedilatildeo monitor da minha fantasia
Para Baudry uma filosofia idealista que postula um sujeito transshy
cendente em oposiccedilatildeo ao mundo objetivo que se dispotildee ao conhecimento
encontra aiacute na teacutecnica do cinema sua traduccedilatildeo visiacutevel Toda sua ecircnfase
recai sobre a produccedilatildeo simultacircnea da imagem e do sujeito-observador
onividente A engenharia simuladora do cinema define com o efeitoshy
sujeito seu teatro da percepccedilatildeo total cujo protagonista sou eu-espectador
identificado com o olhar da cacircmera
N esses termos o que dificulta a consolidaccedilatildeo de linguagens alternashy
tivas mais verdadeiras eacute esse pecado original inscrito na teacutecnica Esta
tem na ilusatildeo seu sustentaacuteculo e os percalccedilos das vanguardas devem-se a
que sua aposta eacute reverter a funccedilatildeo daquilo que jaacute nasceu para cumprir
outro destino Digo destino porque a loacutegica dessa teoria transforma o cineshy
ma num oacutergatildeo que surgiu para cumprir um programa o de objetivar na
esfera do visiacutevel estrateacutegias de dominaccedilatildeo especialmente as da classe burshy
guesa que presidiu sua origem Assim antes de instacircncia liberadora subshy
versiva a condiccedilatildeo do cinema eacute preencher uma demanda do proacuteprio unishy
verso carceraacuterio tornando-o mais preciso e poderoso em seu aparato
Haacute uma atmosfera de desencanto instalada a partir dos anos 70 a
formulaccedilatildeo aqui exposta eacute a traduccedilatildeo teacuteoacuterica radical dos impasses da conshy
testaccedilatildeo no cinema Temos o esgotamento de uma teleologia a da teacutecnishy
ca redentora entravada pela poliacutetica e a economia e sua substituiccedilatildeo
por u~a outra a da teacutecnica como instrumento maior de reposiccedilatildeo de um
sistema de poder Em consonacircncia corn a tonalidade da reflexatildeo sobre a
linguagem a cultura e a ideologia naquele momento a teoria do cinema
mais original e polecircmica ressalta o lado sistemaacutetico inelutaacutevel das ilusotildees
e dos enganos do olhar da cacircmera Nesse contexto a proacutepria praacutetica do
cinema amplia o espaccedilo para a reflexatildeo teoacuterica voltada para a questatildeo do
simulacro - a citaccedilatildeo a imagem que-alude agrave imagem o circuito das refeshy
49
recircncias a si mesmo que o cinema leva ao paroxismo entram para valer na
esfera da induacutestria constituem sua nova marca Tal reflexatildeo se faz dentro
de molduras conceituais diversas e num processo em que a teoria do
cinema reflete o andamento dos debates mais abrangentes sobre a cultura
contemporacircnea A imagem cinematograacutefica eacute entatildeo obseJvada a partir de
sua participaccedilatildeo em outra rede de relaccedilotildees em que natildeo haacute para a
interpretaccedilatildeo (esse tomar a imagem como representaccedilatildeo de algo exterior
a ela) para o juiacutezo da verdade ou mentira em que se a oposlccedilao
aparecircncia (imagem)essecircncia (substacircncia) -nada haacute por traacutes das lmlti~e~ns
elas valem como efeitos-de-superfiacutecie imagem remetendo a imagem fluxo de simulacros
Faccedilo agora uma incursatildeo que natildeo eacute propriamente no terreno da
nova filosofia e das questotildees mais amplas do simulacro na produccedilatildeo
Trata-se de uma anaacutelise particular no niacutevel da engenharia da simulaccedilatildeo
caracterizaccedilatildeo de um efeito na qual natildeo eacute necessaacuterio assumir as noccedilotildees
com a mesma ressonacircncia elas adquiriram na literatura dos anos 80
Fecho a exposiccedilatildeo com a consideraccedilatildeo de um novo exeacutemplo que acredishy
to esclareccedila algumas observaccedilotildees feitas ateacute aqui sobre a interaccedilatildeo entre
espectador e imagem sobre o papel da moldura do sujeito na leitura
Parti de um primeiro exemplo mais simples para explicar como o
efeito de uma depende de sua ~elaccedilatildeo com o sujeito em determishy
nadas condiccedilotildees Da situaccedilatildeo da testemunha de McCarthy passei a uma
caracterizaccedilatildeo mais detida do olhar do cinema e examinei dois momenshy
tos opostos dentro do conflito de perspectivas que marcou a reflexatildeo criacuteshy
tica em torno do que hiacute de erigano e rcvelaccedilatildeo nesse olhar A partir de
uma discussatildeo mais sobre a simulaccedilatildeo do fato - na fotografia no
cinema chegamos a uma questatildeo mais especiacutefica a simulaccedilatildeo do sujeishy
to na estrutura mesma (lo olhar cinematograacutefico Dentro da discussatildeo
mais geral o exemplo a envolve uma situaccedilatildeo mais complicada do
quea das fotos do tribunal estaremos no cinema Como inspiraccedilatildeo
terei presentes as liccedilotildees de Baildry sem no entanto incorporar o movishy
mento totalizador de suaacute criacutetica ao olhar do cinema Seu amplo diagnoacutesshy
tico mobilizando a psicaacutenaacutelise tem como pressuposto o fato de sabershy
0
mos o bastante sobre a natureza do espectador de modo a prever o caraacuteshy
tcr de sua identificaccedilatildeo com o aparato a qual assume uma dimensatildeo
uacutenica de adesatildeo agrave imagem por forccedila do efeito-sujeito Como conhecedoshy
res do desejo do espectador denunciamos o conluio desse desejo com o
programa da induacutestria e deduzimos daiacute as alienaccedilotildees do cinema e da
teacuteia Natildeo tenho condiccedilotildees de endossar a generalidade desse saber a resshy
peito do espectador o aparato atua em determinada direccedilatildeo mas a expeshy
riecircncia do cinema inclui outras forccedilas e condiccedilotildees que natildeo se ajustam ao
programa do sistema A formulaccedilatildeo dc Baudry embora inclua com toda
a forccedila a dimensatildeo do desejo do espectador natildeo deixa de ser outra vershy
satildeo das teorias da manipulaccedilatildeo global centradas em excesso no aspecto
da experiecircncia de modo a confundir o processo que efetishy
vamente ocorre com a loacutegica ideal do sistema Focalizo uma situaccedilatildeo
didaacutetica nesse contcxto em que eacute perfeito o funcionamcnto do
aparato cm quc podemos verificar o mecanismo da simulaccedilatildeo em estashy
do digamos de laboratoacuterio
IVIULALAU E PONTO OE VISTA
Toda leitura de eacute pr()(llltatildeo de um ponto de vista o do sujeito
observador natildeo o da objetividade (b irnagetnA condiccedilatildeo dos efeitos
da imagem eacute essa Em particular o ekilO rb apoacuteia-se numa
construccedilatildeo que inclui o fmguh do obSlrVIr1or O simulacro parece o
que natildeo eacute a partir de um pOIHo ele vista () sujeito estaacute aiacute pressuposto Porshy
tanto o processo elc simulaccedilatildeo nlo l o (Li imagemem si mas o da sua
relaccedilatildeo com o sujeito Num (gt1lt1110 elemelltar podemos tomar o cinema
como modelo do processo O (llIC eacute a fjltnilgcm senatildeo a organizaccedilatildeo do
I 1 I - C f dacontecllnento pra 11111 angu () (C o lscrvaccedilao o que se con un e com
Nessas asserccedilotildees no de Xavier Audouard Le Simulacrc in
eacutepisteacutemologie de lEcole Normale gtuucushy
rc n mai-jun 1966) O horizonte de Audouard eacute o de uma discussatildeo sobre o
idealismo platocircnico seu terreno eacute ponanto distinto e meu natildeo
ca uma identificaccedilatildeo agrave sua perspectiva de anaacutelise
i J
o da cacircmera e nenhum outro mais) O que eacute a fachada de preacutedio de estuacuteshy
dio senatildeo a duplicaccedilatildeo do mesmo princiacutepio da fachada de rua que sushy
gere o que natildeo eacute justamente quando observada de um certo acircngulo e disshy
tacircncia jaacute pressupostos em sua composiccedilatildeo O que eacute a ficccedilatildeo do cinema
senatildeo uma simulaccedilatildeo de mundo para o espectador identificado com o aparato
Vertigo (Um corpo que cai) O filme de Hitchcock realizado
em 1958 Ele eacute a trama da simulaccedilatildeo por excelecircncia como jaacute foi observashy
do pela criacutetica Trago um aspecto novo agrave consideraccedilatildeo o do espelhamenshy
to que existe entre o estratagema que envolve as personagens do drama e
o proacuteprio princiacutepio da narraccedilatildeo do filme Tal como em outras obras de
Hitchcltck o cinepa c1aacutessi~o aqui operagrave com eficiecircncia maacutexima e ao
mesmo tempo oferece a metaacutefora viva para o seu proacuteprio processo Inteshy
ressado nessa metaacutefora acentuo nesta anaacutelise a mecacircnica da simulaccedilacirco o
funcionamento exterior do aparato natildeo o que nas personagens eacute desejo
do estratagema e disposiccedilatildeo para a vertigem da imagem
Sigamos passo a passo a narrativa ateacute o ponto que interessa
Vertigem tiacutetulo original eacute a palavra que condensa as ideacuteias-forccedila
do filme em sua tematiacutezaccedilatildeo do olhar e do ponto de vista A apresentaccedilatildeo
de Vertigo criaccedilatildeo de Saul nos traz a imagem do rosto feminino em
close-up tratado como maacutescara enigmaacutetica imoacutevel Uma aproximaccedilatildeo
maior e um passeio da cacircmcra examinam essa maacutescara em seus detalhes
ateacute que isolado o olho ofereccedila os sinais de vida Os seus movimentos no
entanto natildeo criam uma ~xpressatildeo definida uma intcncionalidade do olhar
Preparam apenas o cenaacuterio ptra um movimentoem espiral na profundishy
dade Mergulho na inteacuteiioridaacutedc cujo fundo inatingiacutevel estaacute sempre em
recesso Aproximaccedilatildeo e recuo atraccedilatildeo e fuga a ambiguumlidade do movishy
mento da espiral ~ experiecircncia matriz de todo o filme cujo eixo eacute o
percurso de profissional do olhar detetive personificaccedilatildeo da
vertigem Logo na primeira sequumlecircncia define-se a questatildeo desse protagoshy
nista numa perseguiccedilatildeo telhados de Satildeo Francisco a vertigem de Scottie o faz responsaacuteveacutel pela morte de um
tentar ajudaacute-lo Sentimeriacuteto de cu1Da aposentadoria
52
lecida a disponibilidade total de a situaccedilatildeo-chave de Vertigo deseshy
nha-se quando ele atende ao chamado de Elster de escola que
no reencontro surpreende-o com o pedido para que sua mulher
Madeleine Elster mostra-se apreensivo com as manifestaccedilotildees de ausecircnshy
cia que ela apresenta com os periacuteodos de comportamento estranho em
que ela parece ser outra pessoa de que retoma sem lembranccedilas
O ex-detetive ensaia um ceticismo apenas aparente e dobra-se ao enigma
proposto Passa a acompanhar os trajetos de Madeleine pesquisa pela
recolhe dados essenciais Um primeiro quadro se compotildee a
ra que dela se apossa em seus transes eacute Cadota Valdez mulher que viveu
em San Francisco no seacuteculo XIX e que se suicidou em circunstacircncias meshy
lancoacutelicas Novamente com Elster Scottie relata as descobertas O marishy
do introduz novo dado Madeleine estaacute em perigo de vida pois descende
de Carlota outras mulheres da linhagem cometeram suiciacutedio e ela tem
agora a idade de Carlota ao morrer
Na primeiraacute seacuterie de passeios de Madeleine fase em que se compotildec
o quadro tivemos uma ostensiva duplicaccedilatildeo num primeiro plano Scortie
observa MadeJeine que natildeo reconhece sua presenccedila (ele estaacute fora do tershy
ritoacuterio dela) e se potildee disponiacutevel ao olhar movimentando-se como numa
cena num segundo plano ao longo do mesmo eixo a cacircmera observa
Scottie que Madeleine Satildeo duas uma dentro da outra que
natildeo se tocam Ela el)quadrada pelo ponto de vista dele ambos enquadra~
dos por noacutes no lugar da cacircmera Madeleine nunca devolve o olhar a Scotshy
tie devolve o olhar agrave cacircmera (regra do filme claacutessico) Mas eacute
ambiacutegua essa passividade pois eacute o movimento dela que dirige o olhar
dele eacute a accedilatildeo de ambos que dirige o nosso olhar sempre na esteira do
acircngulo de de Scottie com quem partilhamos a ignoracircncia a
curiosidade a descoberta
Apoacutes a segunda conversa com Elster o tema do suiciacutedio engendra
uma ruptura nesse esquema de perfeita simetria MadeleineCarlota
atira-se nas aacuteguas da baiacutea de San Francisco Scottie a resgata Permaneceshy
mos puro olhar ele passa ao plano da intervenccedilatildeo e do diaacutelogo Com os
dois juntos certa concretude o que em Scottie eacute jaacute sonho romacircnshy
53
tico tonalidade de experiecircncia ironicamente mimetizada pela textura do
filme projetada nos espaccedilos no som configurando um desfile de clichecircs
do melodrama Encarnando a figura hiacutebrida de e
terapeuta Scottie permeia cada encontro de inquIacutefIacuteAtildeM
sar o imaginaacuterio de MadeleineCarlota decifrar a
lt catarse reveladora curar a mulher por quem estaacute
coloca adiante dele na investigaccedilatildeo
A nova ruptura vem quando Scottie conduz Madeleine a uma Misshy
satildeo Catoacutelica perto de Satildeo Francisco procurando explorar um sonho dela
que ele julga revelador sinal de que a soluccedilatildeo do enigma estaacute e
com esta a salvaccedilatildeo superada a pulsatildeo de morte que a domina Laacute cheshy
gando tudo se precipita auando Madeleine abandona suas recaDitulacotildees e insiste em caminhar sozinha em agrave
de Scottie que natildeo consegue enfim retecirc-la e perceDe em pamco a torre
alta do sino A montagem alternada nos traz a pressa de Madeleine ao se
e agrave torre seguida de Scottie que como suspeitamos
da escada retido pela vertigem - e somos retidos
com ele Ouve-se o grito Por uma das aberturas da torre vislumbra-se o corpo que cai
O ex-detetive vive a reiteraccedilatildeo da a humilhaccedilatildeo puacuteblica de um
psicologicamente massacrado Elsshy
natildeo sem antes tambeacutem absolvecirc-lo Scottie entra em colapso eacute internado Quando retoma agraves ruas de San Francisco
destila sua no passado volta aos mesmos lugares quer encontrar
em cada mulher a figura perdida movido por qualquer semelhanccedila Um
dia depara com Judy (Kim Noacutevak novamente) diferente nas maneiras
no em termos de classe Em tudo o mais a reacuteplica de
Madeleine Ele a segue bate agrave porta do seu quarto de hotel explica seus
motivos convida-a para jantar Ela desconfia daacute provas de sua identidade
(sou Judy natildeo o conheccedilo) tenta a rejeiccedilatildeo mas finalmente aceita Satisfeishy
to ele diz a hora do encontro e retira-se Pela primeira vez em todo o filme
natildeo o acompanhamos nos separamos de seu ponto de vista De repente
natildeo eacute mais dele a moldura que define os contornos do nosso olhar Retishy
54
dos no quarto ficamos ao lado de
sem delongas que natildeo espera o final
Sozinha no quarto hesitante nervosa
assume o risco do reencontro com nova identidade JUdyI Madeleme reshy
a trama urdida por Elster Para livrar-se de sua mulher ele COl1shy
para simular Madeleine Ou seja assumir essa identidade
para aIguem colocado no ponto de vista de Scottie Elster sabia dos proshy
blemas do detetive aposentado e engendrou o esquema do crime que fez
de Scottie a testemunha ideal pois era esperado que nunca ao
topo para ver Madeleine ser atirada por ele Elster quando Judy com o
mesmo traje e aparecircncia chegasse certamente sozinha ao alto da torre
Pensando ser sujeito ativo na cura de MadeleineCarlota Scottie tentou
resgataacute-la e apaixonou-se por um simulacro por uma imagem constmiacuteda
para seu ponto de vista O dispositivo montado estava todo apoiado nas
posiccedilotildees reciacuteprocas de observador e imagem dueto que deu corpo agrave ficshy
ccedilatildeo consagrada a posteriori pela sistemaacutetica do tribunal (num estratagema
bem mais complexo Judy Madeleine ocupa o lugar da falsa evidecircncia
apresentada agrave testemunha no meu primeiro exemplo) O diagnoacutestico do
suiciacutedio que absolve Scottie eacute a consumaccedilatildeo do crime perfeito A posiccedilatildeo
de Elster - aquele que sabe - corresponde agrave posiccedilatildeo do dispositivo narrashy
dor da histoacuteria no cinema claacutessico (ele permanece agrave sombra e orquestra as
imagens) Portanto no enredo que coloca em cena Vertigo espelha ()
prio mecanismo desse cinema que via de regra constroacutei-se segundo a
loacutegica do crime define o meu ponto de vista daacute corpo ao simushy
lacro eacute monitor de meu desejo tal como o dispositivo Elster-Judy-Madeshy
leine-Carlota em a Scottic
O filme de Hitchcock vai natildeo se reduz agrave exposiccedilatildeo desse
mecanismo Este se encontra inserido num tecido de ~elaccedilotildees que envolshy
vem natildeo soacute a identidade e o desejo de Scottie mas tambeacutem a identidade
e o de (a natildeo foi apenas para ele a
Urna leimra mais completa de Vertigo exishy
~rlprriiacute() detalhada do movimento derradeiro da trama Reshy
para o estratagema do as permanecem na
55
esfera das duas personagens agora entregues agrave resoluccedilatildeo de todo o disposhy
sitivo de identidadesimulaccedilatildeovertigem6 Permanecendo poreacutem nas
consideraccedilotildees sobre o aparato do olhar que eacute meu objetivo central aqui
afasto-me do filme natildeo sem antes fazer breve referecircncia ao que na parte
final de Vertigo devolve-nos agrave questatildeo da leitura da imagem no cinema
No reencontro das personagens Scottie impelido por sua fixaccedilatildeo
na imagem do passado in~iste em fazer de Judy nos miacutenimos detalhes a
reacuteplica fiel de Madeleine Ao observar sua metamorfose redefinimos
nossa relaccedilatildeo com a cena antiga a imagem de Kim Novak era Judy que
era Madeleine agraves vezes Carlota Judy possuiacuteda por Madeleine (a possesshy
satildeo transferecircncia se refaz agora) Madeleine (Judy) falando de sentimenshy
tos que eram de Judy (Madeleine) numa duplicaccedilatildeo de palavras expresshy
sotildees gestos que natildeo permite definir os contornos que separam uma da
outra essas quatro presenccedilas Refiro-me a Kim N ovak porque todo o
estratagema do filme conta com os falsetes fragilidades de seu desempeshy
nho para o bom efeito A construccedilatildeo das identidades em abismo embarashy
Iha a enunciaccedilatildeo dos gestos como dizer quem expressa o quecirc quando a
accedilatildeo dramaacutetica requer um fingir fingimento num processo em cascata
Vertigo ilustra nesse aspecto o quanto a leitura do rosto estaacute atrelada agrave
moldura que possuo e natildeo agrave exclusiva expressividade da imagem Tudo
nas palavras e gestos de Judy Madeleine ganha um sentido novo a partir
de cada deslocamento do ponto de vista O que natildeo significa apenas uma
questatildeo de espaccedilo e informaccedilatildeo mas inclui de modo decisivo uma disshy
posiccedilatildeo particular do observador que completa a accedilatildeo invisiacutevel do aparashy
to (no caso para a consumaccedilatildeo dos efeitos desejados era preciso que o
espectador da cena fosse Scottie com seu perfil e seu passado)
6 Para uma leitura de Vertigo que trabalha o dispositivo identidade simulashy
ccedilatildeovertigem e em particular sua resoluccedilatildeo traacutegica ao final do filme ver Robin
Wood Hitchcocks Films (Nova York Castle Books 1969) no qual a moldura eacute a
psicanaacutelise e Nelson Brissac Peixoto Cenaacuterio em ruiacutenas (Satildeo Paulo Brasiliense
1987) cujo texto pressupotildee uma reflexatildeo sobre o mundo dos efeitos-de-superficie o vazio a dissoluccedilatildeo da origem o simulacrQ
Tomei Vertigo como um laboratoacuterio no qual sob controle exibe-se
uma engenharia da simulaccedilatildeo aqrelaacionada pelo olhar do filme claacutessishy
co a qual alia a forccedila de seduccedilatildeo da cena agrave invisibilidade do aparato Para
finalizar gostaria de ir aleacutem dessa referecircncia mais imediata ao aparato do
cinema claacutessico pois a anaacutelise aqui feita permite uma inversatildeo nos mecashy
nismos destacados por discursos sobre o poder que mobilizam a metaacutefoshy
ra da sociedade como universo carceraacuterio e se desdobram em imagens
do aprisionamento pelo olhar Diante dos aparatos de comunicaccedilatildeo que
nos cercam eacute comum a caracterizaccedilatildeo de uma competecircncia de controle
de ordenamento cristalizada no olhar vigilante onipresente que se volta
o tempo todo para noacutes Considerando as tecnologias do olhar podemos
entretanto destacar um processo ordenador menos ostensivo que envolve
a accedilatildeo de um olhar que em vez de estar voltado para mim olha por rrtim
oferece-me pontos de vista coloca-se entre mim e o mundo (lembremos
a ironia de Vertigo Scottie eacute o olhar vigilante profissional mas o processhy
so de controle atua em sentido inverso - eacute o dispositivo que define seu
ponto de vista) Cercado de imagens vejo-me inscrito pela media numa
segunda natureza num processo que implica um cotejo de pontos de vista
muito peculiar que me afasta por exemplo do enfrentamento proacuteprio da
relaccedilatildeo pessoal intersubjetiva Esta se constitui pela devoluccedilatildeo do olhar
e nela repercute o que nos diz o poeta Antonio Machado o olho que vejo
eacute olho porque me vecirc natildeo porque o vejo Diante do aparato construtor de
imagens minha interaccedilatildeo eacute de outra ordem envolve um olho que natildeo
vejo e natildeo me vecirc que eacute olho porque substitui o meu porque me conduz
de bom grado ao seu lugar para eu enxe~gar mais ou talvez menos
Dado inagravelienaacutevel de minha experiecircncia o olhar fabricado eacute constanshy
te oferta de pontos de vista Enxergar efetivamente mais sem recusaacute-lo
implica discutir os termos desse olhar observar com ele o mundo mas
colocaacute-lo tambeacutem em foco recusando a condiccedilatildeo de total identificaccedilatildeo
com o aparato Enxergar mais eacute estar atento ao visiacutevel e tambeacutem ao que
fora do campo torna visiacutevel
56 57
I I
espectador mergulhar no drama com mais intensidade O olho sem corshy t po cerca a encenaccedilatildeo torna tudo mais claro enfaacutetico expressivo ao narshy
rar uma histoacuteria o cinema faz fluir as accedilotildees no espaccedilo e no tempo e o I
mundo torna-se palpaacutevel aos olhos da plateacuteia com uma forccedila impensaacutevel I em outras formas de representaccedilatildeo Ou seja em seu tornar visiacutevel a meshy
rdiaccedilatildeo do olha cinematograacutefico otimiza o efeito da ficccedilatildeo cumprindo com
muita competecircncia uma tarefa que na esfera da cultura considera-se como Jproacutepria da arte e em especial dos espetaacuteculos Ao exaltar esse salto na efishy ccedil
iciecircncia dentro d~ continuidade de princiacutepios e funccedilotildees os criacuteticos cineasshy
tas e prod~tores afinados agraves regras do mercado cultural da eacutepoca celebram
o na produccedilatildeo industrial do seacuteculo xx de um projeto que vem do
seacuteculo XVIII e que se definiu na origem para a representaccedilatildeo teatraL
Eacute comum sermos lembrados ~o quanto a cacircmera fotograacutefica constishy
tui uma objetivaccedilatildeo tecnoloacutegica recente de princiacutepios da representaccedilatildeo jaacute I
conhecidos cuja sistematizaccedilatildeo vem do Renascimento italiano (cacircmara i iacuteescura o meacutetodo da perspectiva os efeitos de profundidade na superfiacutecie
da tela) Com a imagem em movimento o representar a dos homens iacute se daacute com a franca hegemonia do ilusionismo a encenaccedilatildeo tal e qual o I real plantado no cinema industrial desde os tempos de D W Griffith
Fato que cristaliza uma heranccedila menos tematizada pela criacutetica a do olhar Ital como constituiacutedo no drama burguecircs Aqui a referecircncia teoacuterica essenshy
cial eacute Diderot No momento em que escreve suas peccedilas e formula a teoria trenovadora do teatro definiuacutedoo drama seacuterio burguecircs do seacuteculo XVIII
~ um elemento central no seu ideaacuterio eacute a criacutetica ao teatro vinculado aos ~
gecircneros claacutessicos - principalmente ao tipo de encenaccedilatildeo que se dava agraves
trageacutedias claacutessicas francesas do seacuteculo XVII Esse teatro por demais ancoshy
rado na palavra depende da exclusiva forccedila poeacutetica do texto desdenhanshy
doo aspecto visual da experiecircncia do palco Ou eacute incapaz de elaboshy
rar a cena propriamente dita tal como o filoacutesofo a entende explorando a
expressividade do gesto e a cocircmposiccedilatildeo visual da cena (os tableaux consshy
truiacutedos pela posiccedilatildeo reciacuteproca dos atores e da cenografia)
Diderot queria um teatro dirigido agrave sensibilidade por meio da reshy
produccedilatildeo integral das aparecircncias do mundo queria um meacutetodo de dar
38
a ver as situaccedilotildees os gestos as emoccedilotildees O ilusionismo fonte do enshy
volvimento da plateacuteia eacute entatildeo assumido como a ponte privilegiada no
caminho da compreensatildeo da experiecircncia humana da assimilaccedilatildeo de
valores da explicitaccedilatildeo de movimentos do coraccedilatildeo Tal demanda proacutepria
do universo da Ilustraccedilatildeo do seacuteculo XVIIl tem seus desdobramentos e
depois da Revoluccedilatildeo Francesa em outra atmosfera social e
explode no teatro popular de 1800 Aiacute se consolida o gecircnero dramaacutetico
de massas por excelecircncia o melodrama Esse tem sido por meio do teashy
tro (seacuteculo do cinema (seacuteculo xx) e da TV (desde
taccedilatildeo mais contundente de uma busca de expressividade
moral) em que tudo se quer ver estampado na superfiacutecie do mundo na
ecircnfase do gesto no trejeito do rosto na eloquumlecircncia da voz Apanaacutegio do
exagero e do excesso o melodrama eacute o gecircnero afim agraves grandes revelashy
ccedilotildees agraves encenaccedilotildees do acesso a uma verdade que se desvenda um
sem-nuacutemero de misteacuterios equiacutevocos pistas falsas vilanias Intenso nas
accedilotildees e sentimentos carrega nas reviravoltas ansioso pelo efeito e a
comunicaccedilatildeo envolvendo toda uma pedagogia em que nosso olhar eacute
convidado a apreender formas mais imediatas de reconhecimento da
virtude ou do pecado N a virada do seacuteculo XIX para o XX natildeo surpreende que a teacutecnica do
cinema entatildeo emergente tenha assumido essa pedagogia e tenha substishy
tuiacutedo o melodrama teatral na satisfaccedilatildeo de uma demanda de ficccedilatildeo na soshy
ciedade Quando falo em ilusionismo reproduccedilatildeo das aparecircncias na vershy
dade que adveacutem do conflito de forccedilas que se expressam e se revelam pelo
olhar estou afirmando princiacutepios da representaccedilatildeo aos quais o cinema vem
se ajustar como uma luva Como braccedilo da induacutestria cultural ele
do movimento de objetivaccedilatildeo institucional da Ilustraccedilatildeo Sua
do olhar melodramaacutetico eacute o ponto-limite de um projeto de expressatildeo
total da natureza na representaccedilatildeo Reflete um ideal de domiacutenio e controshy
le da aparecircncia como sinal de conhecimento da natureza um ideal que
inscreve a arte como espelho pedagoacutegico que requer a competecircncia tecnoshy
loacutegica de criar ilusatildeo e por essamiddotvia atingir a sensibilidade a passagem
das trevas agrave luz se faz de efeitos sobre o olhar
39
Dentro do projeto de revelaccedilatildeo do mundo para o olhar os efeitos do
close-up logo adquirem a condiccedilatildeo de emblema das virtudes da nova arte
Mais do que a montagem - sua condiccedilatildeo preacutevia - o close-up na Franccedila e
nos Estados Unidos atrai o dos cineacutefilos corno ponto de condenshy
de um drama que se faz movimento dos olhos - o que vecirc e o
que eacute visto - e pela trama formada pela sucessatildeo de detalhes
e reveladores Corno movimento em direccedilatildeo agrave intimidade e V1stO corno
potecircncia maior do cinema que muito cedo impressionou a todos pela sua
capacidade de devastaccedilatildeo das intenccedilotildees ocultas do pequeno gesto fora do
alcance dos interlocutores do movimento facial que trai um sentimento
Natildeo foi preciso a manifestaccedilatildeo da criacutetica cineastas e produtores conduzishy
ram as experiecircncias reveladoras da forccedila dramaacutetica do rosto isolado na e usando a tradicional muito antes de 1920 jaacute insshy
truiacutea seus atores para a dos olhos - janela da alma _ trazishy
dos para perto no close-up para o exame
Foco das atenccedilotildees e dos o close-up estaraacute em I920 tambeacutem
no centro das reflexotildees de quem afastado dos valores promovidos pela
induacutestria do cinema observa seus prodiacutegios com outra moldura de inteshy
resses e julga os filmes do mercado por demais domesticados pela
demanda de ficccedilatildeo que induz o novo meio a seguir os passos do teatro e
da literatura popular Encontramos aqui quem vecirc o cinema como ruptushy
ra espectadores avessos aos do filme de accedilatildeo corrente cinecircfilos
natildeo interessados na fluecircncia dos acontecimentos no pulsar da
nas tensotildees dramaacuteticas usuais Por intermeacutedio deles o cinema uma
recepccedilatildeo mais empenhada em surpreender aspectos da plaacutestica da imashy
gem do trabalho da cacircmera e da presenccedila peculiar do mundo na tela que
permanecem recalcados na visatildeo dominante Para esse olhar diferenciashy
do por meio do cinema toda urna esfera nova de percepccedilotildees abre-se agrave
nossa experiecircncia desde que sejamos capazes de entender a expressividashy
de da nova imagem em outros termos elogiando sim o mas denshy
tro de urna outra oacutetica a de quem entende o cinema natildeo como coroamenshy
to do ilusionismo teatral mas como ruptura inauguraccedilatildeo de um novo diaacutelogo com a natureza e os homens
4deg
Satildeo os intelectuais e artistas ligados agrave arte moderna que lideram essa
nova leitura do cinema de uma perspectiva que na Franccedila traduziu-se no
cineacutema davant-garde nas experiecircncias dos surrealistas e nas polecircmicas
que tiveram como pauta a superaccedilatildeo da moldura melodramaacutetica a libershy
taccedilatildeo do olhar sem corpo das amarras da continuidade narrativa a adeshy
da nova arte agrave sua teacutecnica moderna A
fcrentes grupos postos de lado os conflitos que os
cinema destina-se a uma tarefa de redenccedilatildeo A cultural
do Ocidente europeu estaria falida o poder criador preso a convenccedilotildees
obsoletas saturado de referecircncias que o desvigoram Enredado em formas
de pensar e sentir desgastadas o homem culto se vecirc separado da natureshy
za reprimido cercado de mentiras de clichecircs da de maacutescaras
O cinema eacute radicalmente novo inocente e traz a da tecnologia
Ele pode e deve romper essa grade devolvendo aos homens o acesso a
uma natureza alienada pelos artifiacutecios de uma cultura
A vanguarda se estabelece como cultUra de separando o
espaccedilo utoacutepico da verdade (cinema vida futura) e o espaccedilo da mentira da
convenccedilatildeo (tradiccedilatildeo literaacuteria teatro cotidiano burguecircs) Sua feacute no cinema
ancora-se numa ideacuteia de expressatildeo que tambeacutem se apoacuteia na acuidade de
reproduccedilatildeo da aparecircncia proacutepria da nova teacutecnica mas com um traccedilo pecushy
liar que afasta a do pensamento gerado na esfera da induacutestria
Germaine Dulac e Epstein principais porta-vozes da avant-ga
concebem o cinema corno expressividade do mundo num sentido radishy
ca1 Combatem a vaga que nos leva a sob qualquer pretexto
isto expressa aquilo de um modo que equivale a isto significa aquilo
dentro dos variados caminhos pelos quais vamos de um poacutelo a outro do
significante ao significado Reservam expressatildeo para designar um proshy
cesso determinado impelido por forccedilas naturais no a composiccedilatildeo de
forccedilas interior a um organismo deixa narcas na do mesmo shy
eacute o movimento nelo Qual ci Que estaacute no interior vem forcosashy
mente agrave tona a forma
I Cf Xavier Seacutetima arte um cuto moderno (Satildeo Paulo 1978)
41
vel) que o cinema vemcaptar com exclusividade pois fixa os movimenshy
tos na peliacutecula sem as atrapalhaccedilotildees do olho natural O cinema tem seu
vigor proacuteprio de um olhar mais automaacutetico
natildeo maculado pelos preconceitos culturais
dade Eacute irocircnico que justamente porque natildeo tem interioridade o olhar
da maacutequina possa atingir o princiacutepio interior dos movimentos revelar a
verdade que organicamente expressa-se em sentido pleno imprime-se
numa textura do mundo que soacute a cacircmera eacute capaz de registrar O proacuteprio
instantacircneo fotograacutefico em sua estrutura mais simples jaacute nos mostra o
quanto a imagem revelada faz emergir dados ocultos que natildeo estavam na
mira do fotoacutegrafo No cinema o movimento poteacutencializa tal desocultashy
mento o qual pode tornar-se mais efetivo quando os cineastas forem cuacutemshy
plices da nova teacutecnica em vez de tentar agrave como no
melodrama a expressividade do fica atrelada a toda uma
cadeia de loacutegica eacute tomada de empreacutestimo agrave do natushy
em que o tOrnar visiacutevel resulta do de uma retoacuterica que ~rH+tia Para
o que era aaequado ao teatro - como ilusionismo do seacuteculo XIX natildeo o eacute para o cinema do seacuteculo xx pois a
imitaccedilatildeo dos gestos antes oferecida a olhos desarmados natildeo resiste agrave anaacuteshy
lise da nova sensibilidade Com o cinema a percepccedilatildeo humana ganhou
um acesso especial agrave intimidade dos processos - ~ele a aparecircncia eacute jaacute uma
anaacutelise O cose-up natildeo eacute o lugar do fingimento eacute uma presenccedila que reveshy
la o que se eacute natildeo o que se pretende ser (inuacuteteis as caretas dos
A aposta da vanguarda estaacute no poder analiacutetico do cinematoshygraacutefico no que ressalta natildeil
espaccedilo) mas tambeacutem as
mente a cacircmera lenta (arnplia(acirco no eixo do tempo) que reveshyIa o mundo em outra e de~cobre-nos a vida secreta que se tece a
nossa volta e em noacutes ganhando ~xpressatildeo nas formas instaacuteveis fora da
nossa consciecircncia que temo~ fixadas pela teacutecnica2 Epstein nos seus
2 Essa aposta no poder analiacutetko do dnema tem uma versatildeo radical moshymento na Uniatildeo Sovieacutetica encarnada rio projeto do Cine-Olho de Vertov gt
42
o ~__ao~ das diferentes velocidades
do movimento animal e dos fenocircmenos Fershy
nand Leacuteger as relaccedilotildees e a forma dos objetos fora de sua inserccedilatildeo
utilitaacuteria no cotidiano Embora natildeo totalmente afinado ao cineacutema dayantshy
garde o surrealismo torna-se o movimento de contestaccedil50 ao cinema inshy
dustrial de maior impacto com sua exploraccedilatildeo da montagem como reveshy
laccedil50 das pulsotildees anatomia do desejo Em diferentes busca-se a
experiecircncia fora do senso comum o olhar em sintonia com ~l~r
do - a sensibilidade efetivamente moderna A
(Epstein) surge entatildeo como nova pedagogia
ccedilatildeo ao cenaacuterio do melodrama - pois o cincma teria como destino
trazer-nos de volta uma cosmologia e um encantamento do mundo para
os quais o cartesianismo e a filosofia da Ilustraccedilatildeo cegos
O horizonte desse renascimento seria a explosatildeo do universo carceraacuterio
da existecircncia atual (para usar a expressatildeo de Walter Benjamin em seu
ceacutelebre ensaio de T936 ao falar de reproduccedilatildeo teacutecnica arte e
A formulaccedilatildeo de Epstein-Dulae eacute questionaacutevel auando examinada a
partir de sua ideacuteia-matriz de expressatildeo
analiacutetico (inegaacutevel) da ~~a~Mrl~ aiacute uma feacute inteshy
gral no dado visiacutevel na caj)acldlde exclusiva de
suas relaccedilotildees internas trazer a verdade agrave tona
agrave ao contexto de cada a~aM~A mais de-
no entanto estaacute no impulso utoacutepico nela presente c no salto teoacuterico
que oferece ao buscar um pensameMo agrave alwra dos aspectos radicalmente
novos da experiecircncia do cinema no inicio do seacuteculo Benjamin o filoacutesofo
atento agraves transformaccedilotildees da sensibilidade geradas pelas novas diraacute
em 1936 A natureza que se dirifie dmera natildeo eacute a mesma que a que se
dirige ao olhar Essas c outras suas - sobre o ator o
gt que procura realizar no cinema documentaacuterio a verdade que desmascara a culshy
tura tradicional A cIacutee Vertov diante dos franceses eacute a
ccedilatildeo que ele estabelece cntre desmascaramento e exposiccedilatildeo dos processos efetivos
da Drodudiacuteo social das relaccedilotildees de atraveacutes do montagem cinematogniacutefica
43
analiacutetico da Imagem retomam muito do repertoacuterio da vanguarda dos anos
20 inserindo a caracterizaccedilatildeo do olhar do cinema numa reflexatildeo mais amshy
pIa sobre teacutecnica e cultura Nessa reflexatildeo a moldura eacute outra mas prevalece
o mesmo movimento de ressaltar o papel subversivo revelado r da fotoshy
grafia e do cinema dentro da cultura europeacuteia A promessa entatildeo se reafirshy
ma sem as premissas de eXflressividade total e de retorno agrave natureza
Com Benjamin ela aSSume um contorno histoacuterico mais bem demarcado eacute
por um persamento mais sensiacutevel agrave contradiccedilatildeo e ao caraacuteter das
forccedilas sociais em conflito Pensamento que nos trouxe uma avaliaccedilatildeo da
questatildeo da arte dentro de uma articulaccedilatildeo mais luacutecida com a conjuntura
poliacutetica e a proacutepria natureza das apostas em na Europa dos anos 30
polarizada por uma confrontaccedilatildeo decisiva entre revoluccedilatildeo e reaccedilatildeo
A CRiacuteTICA DO OLHAR SEM CORPO
No seu elogio ao aspecto revelador do olhar no cinema o pensamento
dos anos 20 colocou o debate em termos de verdade (cinema) emendra
(tradiccedilatildeo cultural) e deu toda ecircnfase agrave cumplicidade entre cinema e natushy
reza solidaacuterios enquanto um organismo e sua expressatildeo visual prontos a
expulsar a simulaccedilatildeo desde que a nova teacutecnica fosse salva de su~ adultera-
promovida pelo universo da mercadoria Por esse a oposishyentre um cinema desejado objeto do recalque e aquele que
realmente impera (a pedagogia da induacutestria orienta-se por uma teleoIOPla o presente eacute o mOmelItO dos entraves que impedem o desenshy
volvimento na direccedilatildeo COrreta eacuteapaz de realizar as promessas da nova
teacutecnica o futuro eacute o preenchimen~o dessas promessas que desde jaacute as vanshy
guardas anunciam e preparam Entre 1920 e J960 os poderes reais inshy
sistiram em repor o mesno cinema dominante o que trouxe em linhas
a reiteraccedilatildeo da mesnla matriz de contestaccedilatildeo O conflito dominanshy
tedominado traduzido em termos de verdade e refez-se ao
longo de eixos diversos Quando prevaleceu um eixo poliacutetico o poacutelo da
verdade (futuro) identificou-se agrave cultura revolucionaacuteria o da mentira
presentet agraves mistificaccedilotildees da reaccedilatildeo Quando prevaleceu um eixo esteacutetishy
co verdade foi poesia originalidade experimentaccedilatildeo mentira foi a rotishy
na do comeacutercio o kitscll industrializado
Natildeo cabe agora a recapitulaccedilatildeo do que foram as diferentes versotildees
desse conflito vanguardacultura de massa em cada e eacutepoca Natildeo o
poderia fazer nem quero pois meu objetivo eacute saltar dessa primeira refleshy
xatildeo dos anos 20 para uma mais proacutexima de gerada no contexto franshy
cecircs poacutes-68 reflexatildeo que abandonou a tradiccedilatildeo de opor verdade e mentishy
ra deslocando a discussatildeo sobre a teacutecnica do cinema
No grande intervalo que a criacutetica avanccedilou na caracterizashy
ccedilatildeo do olhar sem corpo e suas implicaccedilotildees notadamente na avaliaccedilatildeo de
sua estrutura mais comunicativa e sedutora o cinema olhar da
induacutestria da ideologia dominante nos meios Extensatildeo do qlle
chamei olhar melodramaacutetico o cinema claacutessico eacute sua modernizaccedilatildeo Faz
com que ele abandone os excessos maiores do ganhe em
profundidade dramaacutetica amplitude temaacutetica concretizando o ver mais e
melhor do cinema na direccedilatildeo de um ilusionismo mais completo - o cineshy
ma claacutessico eacute o olhar sem corpo atuando em sentido
caracterizaccedilatildeo dos seus poderes apresentada em minha primeira
que de fato ajusta-se mais precisamente a esse estilo particular dOJTIinanshy
te no mercado e natildeo a todo o cinema possiacutevel Eacute nele mais do que em
qualquer outra proposta que vemos realizado o de intensificar ao
extremo nossa relaccedilatildeo com o mundo-objeto fazer tal mundo parecer autocircshy
nomo existente em seu proacuteprio direito natildeo encorajando perguntas na
direccedilatildeo do proacuteprio olhar mediador sua estrutura e comportamento Soshy
mos aiacute convidados a tomar o olhar sem corpo como dado natural
Entre a Segunda Guerra Mundial e os anos 60 dois grandes
de reflexatildeo conduziram a criacutetica a essa naturalidade postulada pelo cineshy
ma claacutessico a teoria radical do cinema-discurso baseado nas operaccedilotildees da
montagem (o Eisenstein dos anos 20-30 permaneceu aqui a referecircncia
central) e a criacutetica francesa inspirada na fenomenologia tendo como [oco
maior Andreacute Bazin3
3 Cf Bazin Cinema ensaios trad Eloisa Ribeiro (Satildeo Paulo Brasilicnse 1991)
44 45
Falar de Eisenstein exigiria uma abordagem radicalmente distinta da
que faccedilo agora pois sua criacutetica ao ilusionismo COmeccedila com a advertecircncia
de que a imagem cinematograacutefica natildeo deve ser lida c0f110 produto de um
olhar Para ele a suposiccedilatildeo de que houve um encontro uma contiguumlidade
espacial e temporal entre cacircmera e objeto natildeo eacute O dado central e impresshy
cindiacutevel da leitura da imagem Sua presenccedila na tela eacute um fato de natureza
que deve ser observado em seu valor simboacutelico
caracteriacutesticas de sua composiccedilatildeo e sua no Contexto de um discurshy
so que eacute exposiccedilatildeo de ideacuteias natildeo sucessatildeo natural de fatos captados
pelo olhar A diferenccedila entre um plano geral e um cose-up por
muitas vezes natildeo pode ser entendida como olhar versus
olhar de mesmo quando se focaliza o mesmo ODjeto mas como
confronto de duas imagens de valores distintos A diferenccedila eacute de
natildeo de posiccedilatildeo no espaccedilo pois pode natildeo haver COntinuidade e
homogeneidade espacial para que se possa falar num mais perto
- tudo depende do contexto do discurso por imagens
Ao contraacuterio de Eisenstein os criacuteticos inspirados na fenomenologia
endossam e defendem a premissa de que no cinema toda imagem eacute proshy
duto de um olhar - eacute essencial que ela seja vista como tal- e a sucessatildeo
define sempre a atitude do observador diante de um mundo homogecircneo
Agrave imagem-signo de Eisenstein eles opotildeem a imagem-acontecimento agrave
defesa da descontinuidade proacutepria do cineasta russo respondem Com
uma defesa ateacute mais radical do princiacutepio de continuidade jaacute presente na
narraccedilatildeo claacutessica fazendo a ela um reparo fundamental se a imagem em
movimento nos traz a percepccedilatildeo privilegiada do homem como ser lanccedilashy
do no mundo como ser-em-situaccedilatildeo a falsidade do cinema claacutessico estaacute
na manipulaccedilatildeo impliacutecita em sua montagem o olhar sem corpo e a
onividecircncia criam na tela uni mundo abstrato de sentido fechado preshy
julgado e organizado pelo cin~ina Toda montagem eacute discurso manipulashy
ccedilatildeo de Eisenstein de GrUacutefith ou de Bufiacuteuel Em oposiccedilatildeo um criacutetishy
co como Bazin solicita um olhar cinematograacutefico mais afinado ao olho de
um sujeito circunstanciado que p6ssui limites aceita a abertura do
mundo convive com ambiguumlidades Quando pede realismo ele natildeo se
46
deteacutem em consideraccedilotildees de conteuacutedo (o tipo de universo Ciccional ou doshy
cumentaacuterio) Sublinha a postura do olhar em sua interaccedilatildeo com o mundo
tanto mais legiacutetima quanto mais as condiccedilotildees de nosso olhar
ancorado no corpo vivenciando uma duraccedilatildeo e uma circunstacircncia em sua
continuidade trabalhando as incertezas de uma percepccedilatildeo
ultrapassada mundo Daiacute sua minimizaccedilatildeo da montagem (instacircncia
construtora da onividecircncia) sua defesa do plano-seguumlecircncia (olhar uacutenico
sem cortes observando uma em seu um acontecimento
em seu fluir
Numa visatildeo mais atual prestamos atenccedilatildeo especial ao que aproxima
e natildeo apenas ao que afasta o cinema-discurso de Eisenstein e o realismo
existencial de Bazin haacute em ambos novamente a atribuiccedilatildeo de um poder
de verdade e de um poder de mentira encarnados em determinados estishy
los Para Eisenstein haacute um estilo capaz de dizer o mundo social-histoacuterishy
co colocando o cinema como potecircncia maior no plano do conhecimento
Para Bazin O cinema eacute uma espeacutecie de terceiro estado da e exisshy
te um estilo autecircntico na captaccedilatildeo da vivecircncia humana em sua
essencial abertura no tempo
Contra esse pano de fundo da tradiccedilatildeo teoacuterica a intervenccedilatildeo de
]ean-Louis Baudry em 1969-70 em questatildeo a constante promessa de
um estilo mais verdadeiro e dirige seu ataque agraves premissas do cinema em
geral examinando mais a fundo as condiccedilotildees do espectador raciociacuteshy
nio estaacute municiado para analisar o espectador do filme claacutessico mas
fala em cinema tout couTe) 4 O horizonte de seu exame eacute ressaltar o
modo pelo qual a recepccedilatildeo da imagem possui uma estrutura que a seu ver
solapa o reiterado creacutedito - de Eisenstein Griffith Epstein na
da verdade como destinaccedilatildeo fundamental do cinema Ele invershy
te a tradiccedilatildeo e vecirc na simulaccedilatildeo na de efeitos (ilusoacuterios) de
conhecimento o destino maior da nova arte (visatildeo que
4 O mais importante dos textos de Jean-Louis dessa
1970 Os efeitos ideoloacutegicos do de base estaacute publicado em Ismail
Xavier (orll) A experiecircncia do cinema (Rio de Janeiro
47
pela permanecircncia do ilusionismo do cinema industrial) Isso se daacute por
forccedila da proacutepria natureza da teacutecnica cinematograacutefica herdeira das ilusotildees _
da perspectiva da persistecircncia retiniana (natildeo vemos os fotogramas vemos
o que natildeo ocorre na tela ou seja o movimento da imagem e temos a imshy
pressatildeo de continuidade) da falsa autenticidade documental da fotografia
Rearticulando elementos jaacute conhecidos Baudry nos traz uma interpretashy
ccedilatildeo radical que- questiona natildeo estilos particulares de fazer cinema mas o
fundamento mesmo de sua objetividade como teacutecnica essa mes~a objetishy
vidade que tem sido a sustentaccedilatildeo maior das esperanccedilas de verdade Na
nova perspectiva as diferentes posiccedilotildees teoacutericas desde 1920 definem um
pensar o cinema a priori capturado pelas ilusotildees da teacutecnica e desatento agraves
implicaccedilotildees contidas na proacutepria estrutura do olhar da cacircmera tal como se
daacute para noacutes na plateacuteia A teacutecnica tem suas inclinaccedilotildees seus efeitos ideoloacuteshy
gicos e nesse sentido eacute ela mesma que impele o cinema industrial a desenshy
volver seu ilusionismo e trazer o espectador para dentro do mundo ficcioshy
na A forccedila de encantamento desse cinema persiste na histoacuteria porque o
dado crucial em jogo natildeo eacute tanto a imitaccedilatildeo do real na tela _ a reproduccedilatildeo
integral das aparecircncias - mas a simulaccedilatildeo de um certo tipo de sujeito-doshy
olhar pelas operaccedilotildees do aparato cinematograacutefico
Avaliar a potecircncia do olhar sem corpo natildeo eacute entatildeo inventariar as
imagens que ele oferece efocaIacuteIacutezar o seu movimento proacuteprio sua forma
de mediaccedilatildeo o que impiacuteica analisar sua incidecircncia no espectador que
vivenda o poder de clarividecircncia a percepccedilatildeo tota Na sala escura idenshy
tificado com o movimento do olhar da cacircmera eu me represento como
sujeito dessa percepccedilatildeo total capaz de doar sentido agraves coisas sobrevoar as
aparecircncias fazer a siacutentese do mundo Minha emoccedilatildeo estaacute com os fatos
que o olhar segue mas a cbndiccedilatildeo desse envolvimento eacute eu me colocar no
lugar do aparato sintoniz~do com suas operaccedilotildees Com isso incorporo
(ilusoriamente) seus poder~s e ericontro nessa sintonia - solo do entendishy
mento cinematograacutefico - o maior cenaacuterio de simulaccedilatildeo de uma onipotecircnshy
cia imaginaacuteria No cinema faccedilo uma viagem que confirma minha condishy
ccedilatildeo de sujeito tal como a desejo Maacutequina de efeitos a realizaccedilatildeo maior do
cinema seria entatildeo esse efeito-sujeito a simulaccedilatildeo de uma consciecircncia
48
transcendente que descortina o mundo e se vecirc no centro das coisas ao
mesmo tempo que radicalmente separada delas a observar o mundo coshy
mo puro olhar Nessa apropriaccedilatildeo ilusoacuteria da competecircncia ideal do olhar
estou portanto no centro mas eacute o aparato que aiacute me coloca pois eacute dele o
movimento da percepccedilatildeo monitor da minha fantasia
Para Baudry uma filosofia idealista que postula um sujeito transshy
cendente em oposiccedilatildeo ao mundo objetivo que se dispotildee ao conhecimento
encontra aiacute na teacutecnica do cinema sua traduccedilatildeo visiacutevel Toda sua ecircnfase
recai sobre a produccedilatildeo simultacircnea da imagem e do sujeito-observador
onividente A engenharia simuladora do cinema define com o efeitoshy
sujeito seu teatro da percepccedilatildeo total cujo protagonista sou eu-espectador
identificado com o olhar da cacircmera
N esses termos o que dificulta a consolidaccedilatildeo de linguagens alternashy
tivas mais verdadeiras eacute esse pecado original inscrito na teacutecnica Esta
tem na ilusatildeo seu sustentaacuteculo e os percalccedilos das vanguardas devem-se a
que sua aposta eacute reverter a funccedilatildeo daquilo que jaacute nasceu para cumprir
outro destino Digo destino porque a loacutegica dessa teoria transforma o cineshy
ma num oacutergatildeo que surgiu para cumprir um programa o de objetivar na
esfera do visiacutevel estrateacutegias de dominaccedilatildeo especialmente as da classe burshy
guesa que presidiu sua origem Assim antes de instacircncia liberadora subshy
versiva a condiccedilatildeo do cinema eacute preencher uma demanda do proacuteprio unishy
verso carceraacuterio tornando-o mais preciso e poderoso em seu aparato
Haacute uma atmosfera de desencanto instalada a partir dos anos 70 a
formulaccedilatildeo aqui exposta eacute a traduccedilatildeo teacuteoacuterica radical dos impasses da conshy
testaccedilatildeo no cinema Temos o esgotamento de uma teleologia a da teacutecnishy
ca redentora entravada pela poliacutetica e a economia e sua substituiccedilatildeo
por u~a outra a da teacutecnica como instrumento maior de reposiccedilatildeo de um
sistema de poder Em consonacircncia corn a tonalidade da reflexatildeo sobre a
linguagem a cultura e a ideologia naquele momento a teoria do cinema
mais original e polecircmica ressalta o lado sistemaacutetico inelutaacutevel das ilusotildees
e dos enganos do olhar da cacircmera Nesse contexto a proacutepria praacutetica do
cinema amplia o espaccedilo para a reflexatildeo teoacuterica voltada para a questatildeo do
simulacro - a citaccedilatildeo a imagem que-alude agrave imagem o circuito das refeshy
49
recircncias a si mesmo que o cinema leva ao paroxismo entram para valer na
esfera da induacutestria constituem sua nova marca Tal reflexatildeo se faz dentro
de molduras conceituais diversas e num processo em que a teoria do
cinema reflete o andamento dos debates mais abrangentes sobre a cultura
contemporacircnea A imagem cinematograacutefica eacute entatildeo obseJvada a partir de
sua participaccedilatildeo em outra rede de relaccedilotildees em que natildeo haacute para a
interpretaccedilatildeo (esse tomar a imagem como representaccedilatildeo de algo exterior
a ela) para o juiacutezo da verdade ou mentira em que se a oposlccedilao
aparecircncia (imagem)essecircncia (substacircncia) -nada haacute por traacutes das lmlti~e~ns
elas valem como efeitos-de-superfiacutecie imagem remetendo a imagem fluxo de simulacros
Faccedilo agora uma incursatildeo que natildeo eacute propriamente no terreno da
nova filosofia e das questotildees mais amplas do simulacro na produccedilatildeo
Trata-se de uma anaacutelise particular no niacutevel da engenharia da simulaccedilatildeo
caracterizaccedilatildeo de um efeito na qual natildeo eacute necessaacuterio assumir as noccedilotildees
com a mesma ressonacircncia elas adquiriram na literatura dos anos 80
Fecho a exposiccedilatildeo com a consideraccedilatildeo de um novo exeacutemplo que acredishy
to esclareccedila algumas observaccedilotildees feitas ateacute aqui sobre a interaccedilatildeo entre
espectador e imagem sobre o papel da moldura do sujeito na leitura
Parti de um primeiro exemplo mais simples para explicar como o
efeito de uma depende de sua ~elaccedilatildeo com o sujeito em determishy
nadas condiccedilotildees Da situaccedilatildeo da testemunha de McCarthy passei a uma
caracterizaccedilatildeo mais detida do olhar do cinema e examinei dois momenshy
tos opostos dentro do conflito de perspectivas que marcou a reflexatildeo criacuteshy
tica em torno do que hiacute de erigano e rcvelaccedilatildeo nesse olhar A partir de
uma discussatildeo mais sobre a simulaccedilatildeo do fato - na fotografia no
cinema chegamos a uma questatildeo mais especiacutefica a simulaccedilatildeo do sujeishy
to na estrutura mesma (lo olhar cinematograacutefico Dentro da discussatildeo
mais geral o exemplo a envolve uma situaccedilatildeo mais complicada do
quea das fotos do tribunal estaremos no cinema Como inspiraccedilatildeo
terei presentes as liccedilotildees de Baildry sem no entanto incorporar o movishy
mento totalizador de suaacute criacutetica ao olhar do cinema Seu amplo diagnoacutesshy
tico mobilizando a psicaacutenaacutelise tem como pressuposto o fato de sabershy
0
mos o bastante sobre a natureza do espectador de modo a prever o caraacuteshy
tcr de sua identificaccedilatildeo com o aparato a qual assume uma dimensatildeo
uacutenica de adesatildeo agrave imagem por forccedila do efeito-sujeito Como conhecedoshy
res do desejo do espectador denunciamos o conluio desse desejo com o
programa da induacutestria e deduzimos daiacute as alienaccedilotildees do cinema e da
teacuteia Natildeo tenho condiccedilotildees de endossar a generalidade desse saber a resshy
peito do espectador o aparato atua em determinada direccedilatildeo mas a expeshy
riecircncia do cinema inclui outras forccedilas e condiccedilotildees que natildeo se ajustam ao
programa do sistema A formulaccedilatildeo dc Baudry embora inclua com toda
a forccedila a dimensatildeo do desejo do espectador natildeo deixa de ser outra vershy
satildeo das teorias da manipulaccedilatildeo global centradas em excesso no aspecto
da experiecircncia de modo a confundir o processo que efetishy
vamente ocorre com a loacutegica ideal do sistema Focalizo uma situaccedilatildeo
didaacutetica nesse contcxto em que eacute perfeito o funcionamcnto do
aparato cm quc podemos verificar o mecanismo da simulaccedilatildeo em estashy
do digamos de laboratoacuterio
IVIULALAU E PONTO OE VISTA
Toda leitura de eacute pr()(llltatildeo de um ponto de vista o do sujeito
observador natildeo o da objetividade (b irnagetnA condiccedilatildeo dos efeitos
da imagem eacute essa Em particular o ekilO rb apoacuteia-se numa
construccedilatildeo que inclui o fmguh do obSlrVIr1or O simulacro parece o
que natildeo eacute a partir de um pOIHo ele vista () sujeito estaacute aiacute pressuposto Porshy
tanto o processo elc simulaccedilatildeo nlo l o (Li imagemem si mas o da sua
relaccedilatildeo com o sujeito Num (gt1lt1110 elemelltar podemos tomar o cinema
como modelo do processo O (llIC eacute a fjltnilgcm senatildeo a organizaccedilatildeo do
I 1 I - C f dacontecllnento pra 11111 angu () (C o lscrvaccedilao o que se con un e com
Nessas asserccedilotildees no de Xavier Audouard Le Simulacrc in
eacutepisteacutemologie de lEcole Normale gtuucushy
rc n mai-jun 1966) O horizonte de Audouard eacute o de uma discussatildeo sobre o
idealismo platocircnico seu terreno eacute ponanto distinto e meu natildeo
ca uma identificaccedilatildeo agrave sua perspectiva de anaacutelise
i J
o da cacircmera e nenhum outro mais) O que eacute a fachada de preacutedio de estuacuteshy
dio senatildeo a duplicaccedilatildeo do mesmo princiacutepio da fachada de rua que sushy
gere o que natildeo eacute justamente quando observada de um certo acircngulo e disshy
tacircncia jaacute pressupostos em sua composiccedilatildeo O que eacute a ficccedilatildeo do cinema
senatildeo uma simulaccedilatildeo de mundo para o espectador identificado com o aparato
Vertigo (Um corpo que cai) O filme de Hitchcock realizado
em 1958 Ele eacute a trama da simulaccedilatildeo por excelecircncia como jaacute foi observashy
do pela criacutetica Trago um aspecto novo agrave consideraccedilatildeo o do espelhamenshy
to que existe entre o estratagema que envolve as personagens do drama e
o proacuteprio princiacutepio da narraccedilatildeo do filme Tal como em outras obras de
Hitchcltck o cinepa c1aacutessi~o aqui operagrave com eficiecircncia maacutexima e ao
mesmo tempo oferece a metaacutefora viva para o seu proacuteprio processo Inteshy
ressado nessa metaacutefora acentuo nesta anaacutelise a mecacircnica da simulaccedilacirco o
funcionamento exterior do aparato natildeo o que nas personagens eacute desejo
do estratagema e disposiccedilatildeo para a vertigem da imagem
Sigamos passo a passo a narrativa ateacute o ponto que interessa
Vertigem tiacutetulo original eacute a palavra que condensa as ideacuteias-forccedila
do filme em sua tematiacutezaccedilatildeo do olhar e do ponto de vista A apresentaccedilatildeo
de Vertigo criaccedilatildeo de Saul nos traz a imagem do rosto feminino em
close-up tratado como maacutescara enigmaacutetica imoacutevel Uma aproximaccedilatildeo
maior e um passeio da cacircmcra examinam essa maacutescara em seus detalhes
ateacute que isolado o olho ofereccedila os sinais de vida Os seus movimentos no
entanto natildeo criam uma ~xpressatildeo definida uma intcncionalidade do olhar
Preparam apenas o cenaacuterio ptra um movimentoem espiral na profundishy
dade Mergulho na inteacuteiioridaacutedc cujo fundo inatingiacutevel estaacute sempre em
recesso Aproximaccedilatildeo e recuo atraccedilatildeo e fuga a ambiguumlidade do movishy
mento da espiral ~ experiecircncia matriz de todo o filme cujo eixo eacute o
percurso de profissional do olhar detetive personificaccedilatildeo da
vertigem Logo na primeira sequumlecircncia define-se a questatildeo desse protagoshy
nista numa perseguiccedilatildeo telhados de Satildeo Francisco a vertigem de Scottie o faz responsaacuteveacutel pela morte de um
tentar ajudaacute-lo Sentimeriacuteto de cu1Da aposentadoria
52
lecida a disponibilidade total de a situaccedilatildeo-chave de Vertigo deseshy
nha-se quando ele atende ao chamado de Elster de escola que
no reencontro surpreende-o com o pedido para que sua mulher
Madeleine Elster mostra-se apreensivo com as manifestaccedilotildees de ausecircnshy
cia que ela apresenta com os periacuteodos de comportamento estranho em
que ela parece ser outra pessoa de que retoma sem lembranccedilas
O ex-detetive ensaia um ceticismo apenas aparente e dobra-se ao enigma
proposto Passa a acompanhar os trajetos de Madeleine pesquisa pela
recolhe dados essenciais Um primeiro quadro se compotildee a
ra que dela se apossa em seus transes eacute Cadota Valdez mulher que viveu
em San Francisco no seacuteculo XIX e que se suicidou em circunstacircncias meshy
lancoacutelicas Novamente com Elster Scottie relata as descobertas O marishy
do introduz novo dado Madeleine estaacute em perigo de vida pois descende
de Carlota outras mulheres da linhagem cometeram suiciacutedio e ela tem
agora a idade de Carlota ao morrer
Na primeiraacute seacuterie de passeios de Madeleine fase em que se compotildec
o quadro tivemos uma ostensiva duplicaccedilatildeo num primeiro plano Scortie
observa MadeJeine que natildeo reconhece sua presenccedila (ele estaacute fora do tershy
ritoacuterio dela) e se potildee disponiacutevel ao olhar movimentando-se como numa
cena num segundo plano ao longo do mesmo eixo a cacircmera observa
Scottie que Madeleine Satildeo duas uma dentro da outra que
natildeo se tocam Ela el)quadrada pelo ponto de vista dele ambos enquadra~
dos por noacutes no lugar da cacircmera Madeleine nunca devolve o olhar a Scotshy
tie devolve o olhar agrave cacircmera (regra do filme claacutessico) Mas eacute
ambiacutegua essa passividade pois eacute o movimento dela que dirige o olhar
dele eacute a accedilatildeo de ambos que dirige o nosso olhar sempre na esteira do
acircngulo de de Scottie com quem partilhamos a ignoracircncia a
curiosidade a descoberta
Apoacutes a segunda conversa com Elster o tema do suiciacutedio engendra
uma ruptura nesse esquema de perfeita simetria MadeleineCarlota
atira-se nas aacuteguas da baiacutea de San Francisco Scottie a resgata Permaneceshy
mos puro olhar ele passa ao plano da intervenccedilatildeo e do diaacutelogo Com os
dois juntos certa concretude o que em Scottie eacute jaacute sonho romacircnshy
53
tico tonalidade de experiecircncia ironicamente mimetizada pela textura do
filme projetada nos espaccedilos no som configurando um desfile de clichecircs
do melodrama Encarnando a figura hiacutebrida de e
terapeuta Scottie permeia cada encontro de inquIacutefIacuteAtildeM
sar o imaginaacuterio de MadeleineCarlota decifrar a
lt catarse reveladora curar a mulher por quem estaacute
coloca adiante dele na investigaccedilatildeo
A nova ruptura vem quando Scottie conduz Madeleine a uma Misshy
satildeo Catoacutelica perto de Satildeo Francisco procurando explorar um sonho dela
que ele julga revelador sinal de que a soluccedilatildeo do enigma estaacute e
com esta a salvaccedilatildeo superada a pulsatildeo de morte que a domina Laacute cheshy
gando tudo se precipita auando Madeleine abandona suas recaDitulacotildees e insiste em caminhar sozinha em agrave
de Scottie que natildeo consegue enfim retecirc-la e perceDe em pamco a torre
alta do sino A montagem alternada nos traz a pressa de Madeleine ao se
e agrave torre seguida de Scottie que como suspeitamos
da escada retido pela vertigem - e somos retidos
com ele Ouve-se o grito Por uma das aberturas da torre vislumbra-se o corpo que cai
O ex-detetive vive a reiteraccedilatildeo da a humilhaccedilatildeo puacuteblica de um
psicologicamente massacrado Elsshy
natildeo sem antes tambeacutem absolvecirc-lo Scottie entra em colapso eacute internado Quando retoma agraves ruas de San Francisco
destila sua no passado volta aos mesmos lugares quer encontrar
em cada mulher a figura perdida movido por qualquer semelhanccedila Um
dia depara com Judy (Kim Noacutevak novamente) diferente nas maneiras
no em termos de classe Em tudo o mais a reacuteplica de
Madeleine Ele a segue bate agrave porta do seu quarto de hotel explica seus
motivos convida-a para jantar Ela desconfia daacute provas de sua identidade
(sou Judy natildeo o conheccedilo) tenta a rejeiccedilatildeo mas finalmente aceita Satisfeishy
to ele diz a hora do encontro e retira-se Pela primeira vez em todo o filme
natildeo o acompanhamos nos separamos de seu ponto de vista De repente
natildeo eacute mais dele a moldura que define os contornos do nosso olhar Retishy
54
dos no quarto ficamos ao lado de
sem delongas que natildeo espera o final
Sozinha no quarto hesitante nervosa
assume o risco do reencontro com nova identidade JUdyI Madeleme reshy
a trama urdida por Elster Para livrar-se de sua mulher ele COl1shy
para simular Madeleine Ou seja assumir essa identidade
para aIguem colocado no ponto de vista de Scottie Elster sabia dos proshy
blemas do detetive aposentado e engendrou o esquema do crime que fez
de Scottie a testemunha ideal pois era esperado que nunca ao
topo para ver Madeleine ser atirada por ele Elster quando Judy com o
mesmo traje e aparecircncia chegasse certamente sozinha ao alto da torre
Pensando ser sujeito ativo na cura de MadeleineCarlota Scottie tentou
resgataacute-la e apaixonou-se por um simulacro por uma imagem constmiacuteda
para seu ponto de vista O dispositivo montado estava todo apoiado nas
posiccedilotildees reciacuteprocas de observador e imagem dueto que deu corpo agrave ficshy
ccedilatildeo consagrada a posteriori pela sistemaacutetica do tribunal (num estratagema
bem mais complexo Judy Madeleine ocupa o lugar da falsa evidecircncia
apresentada agrave testemunha no meu primeiro exemplo) O diagnoacutestico do
suiciacutedio que absolve Scottie eacute a consumaccedilatildeo do crime perfeito A posiccedilatildeo
de Elster - aquele que sabe - corresponde agrave posiccedilatildeo do dispositivo narrashy
dor da histoacuteria no cinema claacutessico (ele permanece agrave sombra e orquestra as
imagens) Portanto no enredo que coloca em cena Vertigo espelha ()
prio mecanismo desse cinema que via de regra constroacutei-se segundo a
loacutegica do crime define o meu ponto de vista daacute corpo ao simushy
lacro eacute monitor de meu desejo tal como o dispositivo Elster-Judy-Madeshy
leine-Carlota em a Scottic
O filme de Hitchcock vai natildeo se reduz agrave exposiccedilatildeo desse
mecanismo Este se encontra inserido num tecido de ~elaccedilotildees que envolshy
vem natildeo soacute a identidade e o desejo de Scottie mas tambeacutem a identidade
e o de (a natildeo foi apenas para ele a
Urna leimra mais completa de Vertigo exishy
~rlprriiacute() detalhada do movimento derradeiro da trama Reshy
para o estratagema do as permanecem na
55
esfera das duas personagens agora entregues agrave resoluccedilatildeo de todo o disposhy
sitivo de identidadesimulaccedilatildeovertigem6 Permanecendo poreacutem nas
consideraccedilotildees sobre o aparato do olhar que eacute meu objetivo central aqui
afasto-me do filme natildeo sem antes fazer breve referecircncia ao que na parte
final de Vertigo devolve-nos agrave questatildeo da leitura da imagem no cinema
No reencontro das personagens Scottie impelido por sua fixaccedilatildeo
na imagem do passado in~iste em fazer de Judy nos miacutenimos detalhes a
reacuteplica fiel de Madeleine Ao observar sua metamorfose redefinimos
nossa relaccedilatildeo com a cena antiga a imagem de Kim Novak era Judy que
era Madeleine agraves vezes Carlota Judy possuiacuteda por Madeleine (a possesshy
satildeo transferecircncia se refaz agora) Madeleine (Judy) falando de sentimenshy
tos que eram de Judy (Madeleine) numa duplicaccedilatildeo de palavras expresshy
sotildees gestos que natildeo permite definir os contornos que separam uma da
outra essas quatro presenccedilas Refiro-me a Kim N ovak porque todo o
estratagema do filme conta com os falsetes fragilidades de seu desempeshy
nho para o bom efeito A construccedilatildeo das identidades em abismo embarashy
Iha a enunciaccedilatildeo dos gestos como dizer quem expressa o quecirc quando a
accedilatildeo dramaacutetica requer um fingir fingimento num processo em cascata
Vertigo ilustra nesse aspecto o quanto a leitura do rosto estaacute atrelada agrave
moldura que possuo e natildeo agrave exclusiva expressividade da imagem Tudo
nas palavras e gestos de Judy Madeleine ganha um sentido novo a partir
de cada deslocamento do ponto de vista O que natildeo significa apenas uma
questatildeo de espaccedilo e informaccedilatildeo mas inclui de modo decisivo uma disshy
posiccedilatildeo particular do observador que completa a accedilatildeo invisiacutevel do aparashy
to (no caso para a consumaccedilatildeo dos efeitos desejados era preciso que o
espectador da cena fosse Scottie com seu perfil e seu passado)
6 Para uma leitura de Vertigo que trabalha o dispositivo identidade simulashy
ccedilatildeovertigem e em particular sua resoluccedilatildeo traacutegica ao final do filme ver Robin
Wood Hitchcocks Films (Nova York Castle Books 1969) no qual a moldura eacute a
psicanaacutelise e Nelson Brissac Peixoto Cenaacuterio em ruiacutenas (Satildeo Paulo Brasiliense
1987) cujo texto pressupotildee uma reflexatildeo sobre o mundo dos efeitos-de-superficie o vazio a dissoluccedilatildeo da origem o simulacrQ
Tomei Vertigo como um laboratoacuterio no qual sob controle exibe-se
uma engenharia da simulaccedilatildeo aqrelaacionada pelo olhar do filme claacutessishy
co a qual alia a forccedila de seduccedilatildeo da cena agrave invisibilidade do aparato Para
finalizar gostaria de ir aleacutem dessa referecircncia mais imediata ao aparato do
cinema claacutessico pois a anaacutelise aqui feita permite uma inversatildeo nos mecashy
nismos destacados por discursos sobre o poder que mobilizam a metaacutefoshy
ra da sociedade como universo carceraacuterio e se desdobram em imagens
do aprisionamento pelo olhar Diante dos aparatos de comunicaccedilatildeo que
nos cercam eacute comum a caracterizaccedilatildeo de uma competecircncia de controle
de ordenamento cristalizada no olhar vigilante onipresente que se volta
o tempo todo para noacutes Considerando as tecnologias do olhar podemos
entretanto destacar um processo ordenador menos ostensivo que envolve
a accedilatildeo de um olhar que em vez de estar voltado para mim olha por rrtim
oferece-me pontos de vista coloca-se entre mim e o mundo (lembremos
a ironia de Vertigo Scottie eacute o olhar vigilante profissional mas o processhy
so de controle atua em sentido inverso - eacute o dispositivo que define seu
ponto de vista) Cercado de imagens vejo-me inscrito pela media numa
segunda natureza num processo que implica um cotejo de pontos de vista
muito peculiar que me afasta por exemplo do enfrentamento proacuteprio da
relaccedilatildeo pessoal intersubjetiva Esta se constitui pela devoluccedilatildeo do olhar
e nela repercute o que nos diz o poeta Antonio Machado o olho que vejo
eacute olho porque me vecirc natildeo porque o vejo Diante do aparato construtor de
imagens minha interaccedilatildeo eacute de outra ordem envolve um olho que natildeo
vejo e natildeo me vecirc que eacute olho porque substitui o meu porque me conduz
de bom grado ao seu lugar para eu enxe~gar mais ou talvez menos
Dado inagravelienaacutevel de minha experiecircncia o olhar fabricado eacute constanshy
te oferta de pontos de vista Enxergar efetivamente mais sem recusaacute-lo
implica discutir os termos desse olhar observar com ele o mundo mas
colocaacute-lo tambeacutem em foco recusando a condiccedilatildeo de total identificaccedilatildeo
com o aparato Enxergar mais eacute estar atento ao visiacutevel e tambeacutem ao que
fora do campo torna visiacutevel
56 57
Dentro do projeto de revelaccedilatildeo do mundo para o olhar os efeitos do
close-up logo adquirem a condiccedilatildeo de emblema das virtudes da nova arte
Mais do que a montagem - sua condiccedilatildeo preacutevia - o close-up na Franccedila e
nos Estados Unidos atrai o dos cineacutefilos corno ponto de condenshy
de um drama que se faz movimento dos olhos - o que vecirc e o
que eacute visto - e pela trama formada pela sucessatildeo de detalhes
e reveladores Corno movimento em direccedilatildeo agrave intimidade e V1stO corno
potecircncia maior do cinema que muito cedo impressionou a todos pela sua
capacidade de devastaccedilatildeo das intenccedilotildees ocultas do pequeno gesto fora do
alcance dos interlocutores do movimento facial que trai um sentimento
Natildeo foi preciso a manifestaccedilatildeo da criacutetica cineastas e produtores conduzishy
ram as experiecircncias reveladoras da forccedila dramaacutetica do rosto isolado na e usando a tradicional muito antes de 1920 jaacute insshy
truiacutea seus atores para a dos olhos - janela da alma _ trazishy
dos para perto no close-up para o exame
Foco das atenccedilotildees e dos o close-up estaraacute em I920 tambeacutem
no centro das reflexotildees de quem afastado dos valores promovidos pela
induacutestria do cinema observa seus prodiacutegios com outra moldura de inteshy
resses e julga os filmes do mercado por demais domesticados pela
demanda de ficccedilatildeo que induz o novo meio a seguir os passos do teatro e
da literatura popular Encontramos aqui quem vecirc o cinema como ruptushy
ra espectadores avessos aos do filme de accedilatildeo corrente cinecircfilos
natildeo interessados na fluecircncia dos acontecimentos no pulsar da
nas tensotildees dramaacuteticas usuais Por intermeacutedio deles o cinema uma
recepccedilatildeo mais empenhada em surpreender aspectos da plaacutestica da imashy
gem do trabalho da cacircmera e da presenccedila peculiar do mundo na tela que
permanecem recalcados na visatildeo dominante Para esse olhar diferenciashy
do por meio do cinema toda urna esfera nova de percepccedilotildees abre-se agrave
nossa experiecircncia desde que sejamos capazes de entender a expressividashy
de da nova imagem em outros termos elogiando sim o mas denshy
tro de urna outra oacutetica a de quem entende o cinema natildeo como coroamenshy
to do ilusionismo teatral mas como ruptura inauguraccedilatildeo de um novo diaacutelogo com a natureza e os homens
4deg
Satildeo os intelectuais e artistas ligados agrave arte moderna que lideram essa
nova leitura do cinema de uma perspectiva que na Franccedila traduziu-se no
cineacutema davant-garde nas experiecircncias dos surrealistas e nas polecircmicas
que tiveram como pauta a superaccedilatildeo da moldura melodramaacutetica a libershy
taccedilatildeo do olhar sem corpo das amarras da continuidade narrativa a adeshy
da nova arte agrave sua teacutecnica moderna A
fcrentes grupos postos de lado os conflitos que os
cinema destina-se a uma tarefa de redenccedilatildeo A cultural
do Ocidente europeu estaria falida o poder criador preso a convenccedilotildees
obsoletas saturado de referecircncias que o desvigoram Enredado em formas
de pensar e sentir desgastadas o homem culto se vecirc separado da natureshy
za reprimido cercado de mentiras de clichecircs da de maacutescaras
O cinema eacute radicalmente novo inocente e traz a da tecnologia
Ele pode e deve romper essa grade devolvendo aos homens o acesso a
uma natureza alienada pelos artifiacutecios de uma cultura
A vanguarda se estabelece como cultUra de separando o
espaccedilo utoacutepico da verdade (cinema vida futura) e o espaccedilo da mentira da
convenccedilatildeo (tradiccedilatildeo literaacuteria teatro cotidiano burguecircs) Sua feacute no cinema
ancora-se numa ideacuteia de expressatildeo que tambeacutem se apoacuteia na acuidade de
reproduccedilatildeo da aparecircncia proacutepria da nova teacutecnica mas com um traccedilo pecushy
liar que afasta a do pensamento gerado na esfera da induacutestria
Germaine Dulac e Epstein principais porta-vozes da avant-ga
concebem o cinema corno expressividade do mundo num sentido radishy
ca1 Combatem a vaga que nos leva a sob qualquer pretexto
isto expressa aquilo de um modo que equivale a isto significa aquilo
dentro dos variados caminhos pelos quais vamos de um poacutelo a outro do
significante ao significado Reservam expressatildeo para designar um proshy
cesso determinado impelido por forccedilas naturais no a composiccedilatildeo de
forccedilas interior a um organismo deixa narcas na do mesmo shy
eacute o movimento nelo Qual ci Que estaacute no interior vem forcosashy
mente agrave tona a forma
I Cf Xavier Seacutetima arte um cuto moderno (Satildeo Paulo 1978)
41
vel) que o cinema vemcaptar com exclusividade pois fixa os movimenshy
tos na peliacutecula sem as atrapalhaccedilotildees do olho natural O cinema tem seu
vigor proacuteprio de um olhar mais automaacutetico
natildeo maculado pelos preconceitos culturais
dade Eacute irocircnico que justamente porque natildeo tem interioridade o olhar
da maacutequina possa atingir o princiacutepio interior dos movimentos revelar a
verdade que organicamente expressa-se em sentido pleno imprime-se
numa textura do mundo que soacute a cacircmera eacute capaz de registrar O proacuteprio
instantacircneo fotograacutefico em sua estrutura mais simples jaacute nos mostra o
quanto a imagem revelada faz emergir dados ocultos que natildeo estavam na
mira do fotoacutegrafo No cinema o movimento poteacutencializa tal desocultashy
mento o qual pode tornar-se mais efetivo quando os cineastas forem cuacutemshy
plices da nova teacutecnica em vez de tentar agrave como no
melodrama a expressividade do fica atrelada a toda uma
cadeia de loacutegica eacute tomada de empreacutestimo agrave do natushy
em que o tOrnar visiacutevel resulta do de uma retoacuterica que ~rH+tia Para
o que era aaequado ao teatro - como ilusionismo do seacuteculo XIX natildeo o eacute para o cinema do seacuteculo xx pois a
imitaccedilatildeo dos gestos antes oferecida a olhos desarmados natildeo resiste agrave anaacuteshy
lise da nova sensibilidade Com o cinema a percepccedilatildeo humana ganhou
um acesso especial agrave intimidade dos processos - ~ele a aparecircncia eacute jaacute uma
anaacutelise O cose-up natildeo eacute o lugar do fingimento eacute uma presenccedila que reveshy
la o que se eacute natildeo o que se pretende ser (inuacuteteis as caretas dos
A aposta da vanguarda estaacute no poder analiacutetico do cinematoshygraacutefico no que ressalta natildeil
espaccedilo) mas tambeacutem as
mente a cacircmera lenta (arnplia(acirco no eixo do tempo) que reveshyIa o mundo em outra e de~cobre-nos a vida secreta que se tece a
nossa volta e em noacutes ganhando ~xpressatildeo nas formas instaacuteveis fora da
nossa consciecircncia que temo~ fixadas pela teacutecnica2 Epstein nos seus
2 Essa aposta no poder analiacutetko do dnema tem uma versatildeo radical moshymento na Uniatildeo Sovieacutetica encarnada rio projeto do Cine-Olho de Vertov gt
42
o ~__ao~ das diferentes velocidades
do movimento animal e dos fenocircmenos Fershy
nand Leacuteger as relaccedilotildees e a forma dos objetos fora de sua inserccedilatildeo
utilitaacuteria no cotidiano Embora natildeo totalmente afinado ao cineacutema dayantshy
garde o surrealismo torna-se o movimento de contestaccedil50 ao cinema inshy
dustrial de maior impacto com sua exploraccedilatildeo da montagem como reveshy
laccedil50 das pulsotildees anatomia do desejo Em diferentes busca-se a
experiecircncia fora do senso comum o olhar em sintonia com ~l~r
do - a sensibilidade efetivamente moderna A
(Epstein) surge entatildeo como nova pedagogia
ccedilatildeo ao cenaacuterio do melodrama - pois o cincma teria como destino
trazer-nos de volta uma cosmologia e um encantamento do mundo para
os quais o cartesianismo e a filosofia da Ilustraccedilatildeo cegos
O horizonte desse renascimento seria a explosatildeo do universo carceraacuterio
da existecircncia atual (para usar a expressatildeo de Walter Benjamin em seu
ceacutelebre ensaio de T936 ao falar de reproduccedilatildeo teacutecnica arte e
A formulaccedilatildeo de Epstein-Dulae eacute questionaacutevel auando examinada a
partir de sua ideacuteia-matriz de expressatildeo
analiacutetico (inegaacutevel) da ~~a~Mrl~ aiacute uma feacute inteshy
gral no dado visiacutevel na caj)acldlde exclusiva de
suas relaccedilotildees internas trazer a verdade agrave tona
agrave ao contexto de cada a~aM~A mais de-
no entanto estaacute no impulso utoacutepico nela presente c no salto teoacuterico
que oferece ao buscar um pensameMo agrave alwra dos aspectos radicalmente
novos da experiecircncia do cinema no inicio do seacuteculo Benjamin o filoacutesofo
atento agraves transformaccedilotildees da sensibilidade geradas pelas novas diraacute
em 1936 A natureza que se dirifie dmera natildeo eacute a mesma que a que se
dirige ao olhar Essas c outras suas - sobre o ator o
gt que procura realizar no cinema documentaacuterio a verdade que desmascara a culshy
tura tradicional A cIacutee Vertov diante dos franceses eacute a
ccedilatildeo que ele estabelece cntre desmascaramento e exposiccedilatildeo dos processos efetivos
da Drodudiacuteo social das relaccedilotildees de atraveacutes do montagem cinematogniacutefica
43
analiacutetico da Imagem retomam muito do repertoacuterio da vanguarda dos anos
20 inserindo a caracterizaccedilatildeo do olhar do cinema numa reflexatildeo mais amshy
pIa sobre teacutecnica e cultura Nessa reflexatildeo a moldura eacute outra mas prevalece
o mesmo movimento de ressaltar o papel subversivo revelado r da fotoshy
grafia e do cinema dentro da cultura europeacuteia A promessa entatildeo se reafirshy
ma sem as premissas de eXflressividade total e de retorno agrave natureza
Com Benjamin ela aSSume um contorno histoacuterico mais bem demarcado eacute
por um persamento mais sensiacutevel agrave contradiccedilatildeo e ao caraacuteter das
forccedilas sociais em conflito Pensamento que nos trouxe uma avaliaccedilatildeo da
questatildeo da arte dentro de uma articulaccedilatildeo mais luacutecida com a conjuntura
poliacutetica e a proacutepria natureza das apostas em na Europa dos anos 30
polarizada por uma confrontaccedilatildeo decisiva entre revoluccedilatildeo e reaccedilatildeo
A CRiacuteTICA DO OLHAR SEM CORPO
No seu elogio ao aspecto revelador do olhar no cinema o pensamento
dos anos 20 colocou o debate em termos de verdade (cinema) emendra
(tradiccedilatildeo cultural) e deu toda ecircnfase agrave cumplicidade entre cinema e natushy
reza solidaacuterios enquanto um organismo e sua expressatildeo visual prontos a
expulsar a simulaccedilatildeo desde que a nova teacutecnica fosse salva de su~ adultera-
promovida pelo universo da mercadoria Por esse a oposishyentre um cinema desejado objeto do recalque e aquele que
realmente impera (a pedagogia da induacutestria orienta-se por uma teleoIOPla o presente eacute o mOmelItO dos entraves que impedem o desenshy
volvimento na direccedilatildeo COrreta eacuteapaz de realizar as promessas da nova
teacutecnica o futuro eacute o preenchimen~o dessas promessas que desde jaacute as vanshy
guardas anunciam e preparam Entre 1920 e J960 os poderes reais inshy
sistiram em repor o mesno cinema dominante o que trouxe em linhas
a reiteraccedilatildeo da mesnla matriz de contestaccedilatildeo O conflito dominanshy
tedominado traduzido em termos de verdade e refez-se ao
longo de eixos diversos Quando prevaleceu um eixo poliacutetico o poacutelo da
verdade (futuro) identificou-se agrave cultura revolucionaacuteria o da mentira
presentet agraves mistificaccedilotildees da reaccedilatildeo Quando prevaleceu um eixo esteacutetishy
co verdade foi poesia originalidade experimentaccedilatildeo mentira foi a rotishy
na do comeacutercio o kitscll industrializado
Natildeo cabe agora a recapitulaccedilatildeo do que foram as diferentes versotildees
desse conflito vanguardacultura de massa em cada e eacutepoca Natildeo o
poderia fazer nem quero pois meu objetivo eacute saltar dessa primeira refleshy
xatildeo dos anos 20 para uma mais proacutexima de gerada no contexto franshy
cecircs poacutes-68 reflexatildeo que abandonou a tradiccedilatildeo de opor verdade e mentishy
ra deslocando a discussatildeo sobre a teacutecnica do cinema
No grande intervalo que a criacutetica avanccedilou na caracterizashy
ccedilatildeo do olhar sem corpo e suas implicaccedilotildees notadamente na avaliaccedilatildeo de
sua estrutura mais comunicativa e sedutora o cinema olhar da
induacutestria da ideologia dominante nos meios Extensatildeo do qlle
chamei olhar melodramaacutetico o cinema claacutessico eacute sua modernizaccedilatildeo Faz
com que ele abandone os excessos maiores do ganhe em
profundidade dramaacutetica amplitude temaacutetica concretizando o ver mais e
melhor do cinema na direccedilatildeo de um ilusionismo mais completo - o cineshy
ma claacutessico eacute o olhar sem corpo atuando em sentido
caracterizaccedilatildeo dos seus poderes apresentada em minha primeira
que de fato ajusta-se mais precisamente a esse estilo particular dOJTIinanshy
te no mercado e natildeo a todo o cinema possiacutevel Eacute nele mais do que em
qualquer outra proposta que vemos realizado o de intensificar ao
extremo nossa relaccedilatildeo com o mundo-objeto fazer tal mundo parecer autocircshy
nomo existente em seu proacuteprio direito natildeo encorajando perguntas na
direccedilatildeo do proacuteprio olhar mediador sua estrutura e comportamento Soshy
mos aiacute convidados a tomar o olhar sem corpo como dado natural
Entre a Segunda Guerra Mundial e os anos 60 dois grandes
de reflexatildeo conduziram a criacutetica a essa naturalidade postulada pelo cineshy
ma claacutessico a teoria radical do cinema-discurso baseado nas operaccedilotildees da
montagem (o Eisenstein dos anos 20-30 permaneceu aqui a referecircncia
central) e a criacutetica francesa inspirada na fenomenologia tendo como [oco
maior Andreacute Bazin3
3 Cf Bazin Cinema ensaios trad Eloisa Ribeiro (Satildeo Paulo Brasilicnse 1991)
44 45
Falar de Eisenstein exigiria uma abordagem radicalmente distinta da
que faccedilo agora pois sua criacutetica ao ilusionismo COmeccedila com a advertecircncia
de que a imagem cinematograacutefica natildeo deve ser lida c0f110 produto de um
olhar Para ele a suposiccedilatildeo de que houve um encontro uma contiguumlidade
espacial e temporal entre cacircmera e objeto natildeo eacute O dado central e impresshy
cindiacutevel da leitura da imagem Sua presenccedila na tela eacute um fato de natureza
que deve ser observado em seu valor simboacutelico
caracteriacutesticas de sua composiccedilatildeo e sua no Contexto de um discurshy
so que eacute exposiccedilatildeo de ideacuteias natildeo sucessatildeo natural de fatos captados
pelo olhar A diferenccedila entre um plano geral e um cose-up por
muitas vezes natildeo pode ser entendida como olhar versus
olhar de mesmo quando se focaliza o mesmo ODjeto mas como
confronto de duas imagens de valores distintos A diferenccedila eacute de
natildeo de posiccedilatildeo no espaccedilo pois pode natildeo haver COntinuidade e
homogeneidade espacial para que se possa falar num mais perto
- tudo depende do contexto do discurso por imagens
Ao contraacuterio de Eisenstein os criacuteticos inspirados na fenomenologia
endossam e defendem a premissa de que no cinema toda imagem eacute proshy
duto de um olhar - eacute essencial que ela seja vista como tal- e a sucessatildeo
define sempre a atitude do observador diante de um mundo homogecircneo
Agrave imagem-signo de Eisenstein eles opotildeem a imagem-acontecimento agrave
defesa da descontinuidade proacutepria do cineasta russo respondem Com
uma defesa ateacute mais radical do princiacutepio de continuidade jaacute presente na
narraccedilatildeo claacutessica fazendo a ela um reparo fundamental se a imagem em
movimento nos traz a percepccedilatildeo privilegiada do homem como ser lanccedilashy
do no mundo como ser-em-situaccedilatildeo a falsidade do cinema claacutessico estaacute
na manipulaccedilatildeo impliacutecita em sua montagem o olhar sem corpo e a
onividecircncia criam na tela uni mundo abstrato de sentido fechado preshy
julgado e organizado pelo cin~ina Toda montagem eacute discurso manipulashy
ccedilatildeo de Eisenstein de GrUacutefith ou de Bufiacuteuel Em oposiccedilatildeo um criacutetishy
co como Bazin solicita um olhar cinematograacutefico mais afinado ao olho de
um sujeito circunstanciado que p6ssui limites aceita a abertura do
mundo convive com ambiguumlidades Quando pede realismo ele natildeo se
46
deteacutem em consideraccedilotildees de conteuacutedo (o tipo de universo Ciccional ou doshy
cumentaacuterio) Sublinha a postura do olhar em sua interaccedilatildeo com o mundo
tanto mais legiacutetima quanto mais as condiccedilotildees de nosso olhar
ancorado no corpo vivenciando uma duraccedilatildeo e uma circunstacircncia em sua
continuidade trabalhando as incertezas de uma percepccedilatildeo
ultrapassada mundo Daiacute sua minimizaccedilatildeo da montagem (instacircncia
construtora da onividecircncia) sua defesa do plano-seguumlecircncia (olhar uacutenico
sem cortes observando uma em seu um acontecimento
em seu fluir
Numa visatildeo mais atual prestamos atenccedilatildeo especial ao que aproxima
e natildeo apenas ao que afasta o cinema-discurso de Eisenstein e o realismo
existencial de Bazin haacute em ambos novamente a atribuiccedilatildeo de um poder
de verdade e de um poder de mentira encarnados em determinados estishy
los Para Eisenstein haacute um estilo capaz de dizer o mundo social-histoacuterishy
co colocando o cinema como potecircncia maior no plano do conhecimento
Para Bazin O cinema eacute uma espeacutecie de terceiro estado da e exisshy
te um estilo autecircntico na captaccedilatildeo da vivecircncia humana em sua
essencial abertura no tempo
Contra esse pano de fundo da tradiccedilatildeo teoacuterica a intervenccedilatildeo de
]ean-Louis Baudry em 1969-70 em questatildeo a constante promessa de
um estilo mais verdadeiro e dirige seu ataque agraves premissas do cinema em
geral examinando mais a fundo as condiccedilotildees do espectador raciociacuteshy
nio estaacute municiado para analisar o espectador do filme claacutessico mas
fala em cinema tout couTe) 4 O horizonte de seu exame eacute ressaltar o
modo pelo qual a recepccedilatildeo da imagem possui uma estrutura que a seu ver
solapa o reiterado creacutedito - de Eisenstein Griffith Epstein na
da verdade como destinaccedilatildeo fundamental do cinema Ele invershy
te a tradiccedilatildeo e vecirc na simulaccedilatildeo na de efeitos (ilusoacuterios) de
conhecimento o destino maior da nova arte (visatildeo que
4 O mais importante dos textos de Jean-Louis dessa
1970 Os efeitos ideoloacutegicos do de base estaacute publicado em Ismail
Xavier (orll) A experiecircncia do cinema (Rio de Janeiro
47
pela permanecircncia do ilusionismo do cinema industrial) Isso se daacute por
forccedila da proacutepria natureza da teacutecnica cinematograacutefica herdeira das ilusotildees _
da perspectiva da persistecircncia retiniana (natildeo vemos os fotogramas vemos
o que natildeo ocorre na tela ou seja o movimento da imagem e temos a imshy
pressatildeo de continuidade) da falsa autenticidade documental da fotografia
Rearticulando elementos jaacute conhecidos Baudry nos traz uma interpretashy
ccedilatildeo radical que- questiona natildeo estilos particulares de fazer cinema mas o
fundamento mesmo de sua objetividade como teacutecnica essa mes~a objetishy
vidade que tem sido a sustentaccedilatildeo maior das esperanccedilas de verdade Na
nova perspectiva as diferentes posiccedilotildees teoacutericas desde 1920 definem um
pensar o cinema a priori capturado pelas ilusotildees da teacutecnica e desatento agraves
implicaccedilotildees contidas na proacutepria estrutura do olhar da cacircmera tal como se
daacute para noacutes na plateacuteia A teacutecnica tem suas inclinaccedilotildees seus efeitos ideoloacuteshy
gicos e nesse sentido eacute ela mesma que impele o cinema industrial a desenshy
volver seu ilusionismo e trazer o espectador para dentro do mundo ficcioshy
na A forccedila de encantamento desse cinema persiste na histoacuteria porque o
dado crucial em jogo natildeo eacute tanto a imitaccedilatildeo do real na tela _ a reproduccedilatildeo
integral das aparecircncias - mas a simulaccedilatildeo de um certo tipo de sujeito-doshy
olhar pelas operaccedilotildees do aparato cinematograacutefico
Avaliar a potecircncia do olhar sem corpo natildeo eacute entatildeo inventariar as
imagens que ele oferece efocaIacuteIacutezar o seu movimento proacuteprio sua forma
de mediaccedilatildeo o que impiacuteica analisar sua incidecircncia no espectador que
vivenda o poder de clarividecircncia a percepccedilatildeo tota Na sala escura idenshy
tificado com o movimento do olhar da cacircmera eu me represento como
sujeito dessa percepccedilatildeo total capaz de doar sentido agraves coisas sobrevoar as
aparecircncias fazer a siacutentese do mundo Minha emoccedilatildeo estaacute com os fatos
que o olhar segue mas a cbndiccedilatildeo desse envolvimento eacute eu me colocar no
lugar do aparato sintoniz~do com suas operaccedilotildees Com isso incorporo
(ilusoriamente) seus poder~s e ericontro nessa sintonia - solo do entendishy
mento cinematograacutefico - o maior cenaacuterio de simulaccedilatildeo de uma onipotecircnshy
cia imaginaacuteria No cinema faccedilo uma viagem que confirma minha condishy
ccedilatildeo de sujeito tal como a desejo Maacutequina de efeitos a realizaccedilatildeo maior do
cinema seria entatildeo esse efeito-sujeito a simulaccedilatildeo de uma consciecircncia
48
transcendente que descortina o mundo e se vecirc no centro das coisas ao
mesmo tempo que radicalmente separada delas a observar o mundo coshy
mo puro olhar Nessa apropriaccedilatildeo ilusoacuteria da competecircncia ideal do olhar
estou portanto no centro mas eacute o aparato que aiacute me coloca pois eacute dele o
movimento da percepccedilatildeo monitor da minha fantasia
Para Baudry uma filosofia idealista que postula um sujeito transshy
cendente em oposiccedilatildeo ao mundo objetivo que se dispotildee ao conhecimento
encontra aiacute na teacutecnica do cinema sua traduccedilatildeo visiacutevel Toda sua ecircnfase
recai sobre a produccedilatildeo simultacircnea da imagem e do sujeito-observador
onividente A engenharia simuladora do cinema define com o efeitoshy
sujeito seu teatro da percepccedilatildeo total cujo protagonista sou eu-espectador
identificado com o olhar da cacircmera
N esses termos o que dificulta a consolidaccedilatildeo de linguagens alternashy
tivas mais verdadeiras eacute esse pecado original inscrito na teacutecnica Esta
tem na ilusatildeo seu sustentaacuteculo e os percalccedilos das vanguardas devem-se a
que sua aposta eacute reverter a funccedilatildeo daquilo que jaacute nasceu para cumprir
outro destino Digo destino porque a loacutegica dessa teoria transforma o cineshy
ma num oacutergatildeo que surgiu para cumprir um programa o de objetivar na
esfera do visiacutevel estrateacutegias de dominaccedilatildeo especialmente as da classe burshy
guesa que presidiu sua origem Assim antes de instacircncia liberadora subshy
versiva a condiccedilatildeo do cinema eacute preencher uma demanda do proacuteprio unishy
verso carceraacuterio tornando-o mais preciso e poderoso em seu aparato
Haacute uma atmosfera de desencanto instalada a partir dos anos 70 a
formulaccedilatildeo aqui exposta eacute a traduccedilatildeo teacuteoacuterica radical dos impasses da conshy
testaccedilatildeo no cinema Temos o esgotamento de uma teleologia a da teacutecnishy
ca redentora entravada pela poliacutetica e a economia e sua substituiccedilatildeo
por u~a outra a da teacutecnica como instrumento maior de reposiccedilatildeo de um
sistema de poder Em consonacircncia corn a tonalidade da reflexatildeo sobre a
linguagem a cultura e a ideologia naquele momento a teoria do cinema
mais original e polecircmica ressalta o lado sistemaacutetico inelutaacutevel das ilusotildees
e dos enganos do olhar da cacircmera Nesse contexto a proacutepria praacutetica do
cinema amplia o espaccedilo para a reflexatildeo teoacuterica voltada para a questatildeo do
simulacro - a citaccedilatildeo a imagem que-alude agrave imagem o circuito das refeshy
49
recircncias a si mesmo que o cinema leva ao paroxismo entram para valer na
esfera da induacutestria constituem sua nova marca Tal reflexatildeo se faz dentro
de molduras conceituais diversas e num processo em que a teoria do
cinema reflete o andamento dos debates mais abrangentes sobre a cultura
contemporacircnea A imagem cinematograacutefica eacute entatildeo obseJvada a partir de
sua participaccedilatildeo em outra rede de relaccedilotildees em que natildeo haacute para a
interpretaccedilatildeo (esse tomar a imagem como representaccedilatildeo de algo exterior
a ela) para o juiacutezo da verdade ou mentira em que se a oposlccedilao
aparecircncia (imagem)essecircncia (substacircncia) -nada haacute por traacutes das lmlti~e~ns
elas valem como efeitos-de-superfiacutecie imagem remetendo a imagem fluxo de simulacros
Faccedilo agora uma incursatildeo que natildeo eacute propriamente no terreno da
nova filosofia e das questotildees mais amplas do simulacro na produccedilatildeo
Trata-se de uma anaacutelise particular no niacutevel da engenharia da simulaccedilatildeo
caracterizaccedilatildeo de um efeito na qual natildeo eacute necessaacuterio assumir as noccedilotildees
com a mesma ressonacircncia elas adquiriram na literatura dos anos 80
Fecho a exposiccedilatildeo com a consideraccedilatildeo de um novo exeacutemplo que acredishy
to esclareccedila algumas observaccedilotildees feitas ateacute aqui sobre a interaccedilatildeo entre
espectador e imagem sobre o papel da moldura do sujeito na leitura
Parti de um primeiro exemplo mais simples para explicar como o
efeito de uma depende de sua ~elaccedilatildeo com o sujeito em determishy
nadas condiccedilotildees Da situaccedilatildeo da testemunha de McCarthy passei a uma
caracterizaccedilatildeo mais detida do olhar do cinema e examinei dois momenshy
tos opostos dentro do conflito de perspectivas que marcou a reflexatildeo criacuteshy
tica em torno do que hiacute de erigano e rcvelaccedilatildeo nesse olhar A partir de
uma discussatildeo mais sobre a simulaccedilatildeo do fato - na fotografia no
cinema chegamos a uma questatildeo mais especiacutefica a simulaccedilatildeo do sujeishy
to na estrutura mesma (lo olhar cinematograacutefico Dentro da discussatildeo
mais geral o exemplo a envolve uma situaccedilatildeo mais complicada do
quea das fotos do tribunal estaremos no cinema Como inspiraccedilatildeo
terei presentes as liccedilotildees de Baildry sem no entanto incorporar o movishy
mento totalizador de suaacute criacutetica ao olhar do cinema Seu amplo diagnoacutesshy
tico mobilizando a psicaacutenaacutelise tem como pressuposto o fato de sabershy
0
mos o bastante sobre a natureza do espectador de modo a prever o caraacuteshy
tcr de sua identificaccedilatildeo com o aparato a qual assume uma dimensatildeo
uacutenica de adesatildeo agrave imagem por forccedila do efeito-sujeito Como conhecedoshy
res do desejo do espectador denunciamos o conluio desse desejo com o
programa da induacutestria e deduzimos daiacute as alienaccedilotildees do cinema e da
teacuteia Natildeo tenho condiccedilotildees de endossar a generalidade desse saber a resshy
peito do espectador o aparato atua em determinada direccedilatildeo mas a expeshy
riecircncia do cinema inclui outras forccedilas e condiccedilotildees que natildeo se ajustam ao
programa do sistema A formulaccedilatildeo dc Baudry embora inclua com toda
a forccedila a dimensatildeo do desejo do espectador natildeo deixa de ser outra vershy
satildeo das teorias da manipulaccedilatildeo global centradas em excesso no aspecto
da experiecircncia de modo a confundir o processo que efetishy
vamente ocorre com a loacutegica ideal do sistema Focalizo uma situaccedilatildeo
didaacutetica nesse contcxto em que eacute perfeito o funcionamcnto do
aparato cm quc podemos verificar o mecanismo da simulaccedilatildeo em estashy
do digamos de laboratoacuterio
IVIULALAU E PONTO OE VISTA
Toda leitura de eacute pr()(llltatildeo de um ponto de vista o do sujeito
observador natildeo o da objetividade (b irnagetnA condiccedilatildeo dos efeitos
da imagem eacute essa Em particular o ekilO rb apoacuteia-se numa
construccedilatildeo que inclui o fmguh do obSlrVIr1or O simulacro parece o
que natildeo eacute a partir de um pOIHo ele vista () sujeito estaacute aiacute pressuposto Porshy
tanto o processo elc simulaccedilatildeo nlo l o (Li imagemem si mas o da sua
relaccedilatildeo com o sujeito Num (gt1lt1110 elemelltar podemos tomar o cinema
como modelo do processo O (llIC eacute a fjltnilgcm senatildeo a organizaccedilatildeo do
I 1 I - C f dacontecllnento pra 11111 angu () (C o lscrvaccedilao o que se con un e com
Nessas asserccedilotildees no de Xavier Audouard Le Simulacrc in
eacutepisteacutemologie de lEcole Normale gtuucushy
rc n mai-jun 1966) O horizonte de Audouard eacute o de uma discussatildeo sobre o
idealismo platocircnico seu terreno eacute ponanto distinto e meu natildeo
ca uma identificaccedilatildeo agrave sua perspectiva de anaacutelise
i J
o da cacircmera e nenhum outro mais) O que eacute a fachada de preacutedio de estuacuteshy
dio senatildeo a duplicaccedilatildeo do mesmo princiacutepio da fachada de rua que sushy
gere o que natildeo eacute justamente quando observada de um certo acircngulo e disshy
tacircncia jaacute pressupostos em sua composiccedilatildeo O que eacute a ficccedilatildeo do cinema
senatildeo uma simulaccedilatildeo de mundo para o espectador identificado com o aparato
Vertigo (Um corpo que cai) O filme de Hitchcock realizado
em 1958 Ele eacute a trama da simulaccedilatildeo por excelecircncia como jaacute foi observashy
do pela criacutetica Trago um aspecto novo agrave consideraccedilatildeo o do espelhamenshy
to que existe entre o estratagema que envolve as personagens do drama e
o proacuteprio princiacutepio da narraccedilatildeo do filme Tal como em outras obras de
Hitchcltck o cinepa c1aacutessi~o aqui operagrave com eficiecircncia maacutexima e ao
mesmo tempo oferece a metaacutefora viva para o seu proacuteprio processo Inteshy
ressado nessa metaacutefora acentuo nesta anaacutelise a mecacircnica da simulaccedilacirco o
funcionamento exterior do aparato natildeo o que nas personagens eacute desejo
do estratagema e disposiccedilatildeo para a vertigem da imagem
Sigamos passo a passo a narrativa ateacute o ponto que interessa
Vertigem tiacutetulo original eacute a palavra que condensa as ideacuteias-forccedila
do filme em sua tematiacutezaccedilatildeo do olhar e do ponto de vista A apresentaccedilatildeo
de Vertigo criaccedilatildeo de Saul nos traz a imagem do rosto feminino em
close-up tratado como maacutescara enigmaacutetica imoacutevel Uma aproximaccedilatildeo
maior e um passeio da cacircmcra examinam essa maacutescara em seus detalhes
ateacute que isolado o olho ofereccedila os sinais de vida Os seus movimentos no
entanto natildeo criam uma ~xpressatildeo definida uma intcncionalidade do olhar
Preparam apenas o cenaacuterio ptra um movimentoem espiral na profundishy
dade Mergulho na inteacuteiioridaacutedc cujo fundo inatingiacutevel estaacute sempre em
recesso Aproximaccedilatildeo e recuo atraccedilatildeo e fuga a ambiguumlidade do movishy
mento da espiral ~ experiecircncia matriz de todo o filme cujo eixo eacute o
percurso de profissional do olhar detetive personificaccedilatildeo da
vertigem Logo na primeira sequumlecircncia define-se a questatildeo desse protagoshy
nista numa perseguiccedilatildeo telhados de Satildeo Francisco a vertigem de Scottie o faz responsaacuteveacutel pela morte de um
tentar ajudaacute-lo Sentimeriacuteto de cu1Da aposentadoria
52
lecida a disponibilidade total de a situaccedilatildeo-chave de Vertigo deseshy
nha-se quando ele atende ao chamado de Elster de escola que
no reencontro surpreende-o com o pedido para que sua mulher
Madeleine Elster mostra-se apreensivo com as manifestaccedilotildees de ausecircnshy
cia que ela apresenta com os periacuteodos de comportamento estranho em
que ela parece ser outra pessoa de que retoma sem lembranccedilas
O ex-detetive ensaia um ceticismo apenas aparente e dobra-se ao enigma
proposto Passa a acompanhar os trajetos de Madeleine pesquisa pela
recolhe dados essenciais Um primeiro quadro se compotildee a
ra que dela se apossa em seus transes eacute Cadota Valdez mulher que viveu
em San Francisco no seacuteculo XIX e que se suicidou em circunstacircncias meshy
lancoacutelicas Novamente com Elster Scottie relata as descobertas O marishy
do introduz novo dado Madeleine estaacute em perigo de vida pois descende
de Carlota outras mulheres da linhagem cometeram suiciacutedio e ela tem
agora a idade de Carlota ao morrer
Na primeiraacute seacuterie de passeios de Madeleine fase em que se compotildec
o quadro tivemos uma ostensiva duplicaccedilatildeo num primeiro plano Scortie
observa MadeJeine que natildeo reconhece sua presenccedila (ele estaacute fora do tershy
ritoacuterio dela) e se potildee disponiacutevel ao olhar movimentando-se como numa
cena num segundo plano ao longo do mesmo eixo a cacircmera observa
Scottie que Madeleine Satildeo duas uma dentro da outra que
natildeo se tocam Ela el)quadrada pelo ponto de vista dele ambos enquadra~
dos por noacutes no lugar da cacircmera Madeleine nunca devolve o olhar a Scotshy
tie devolve o olhar agrave cacircmera (regra do filme claacutessico) Mas eacute
ambiacutegua essa passividade pois eacute o movimento dela que dirige o olhar
dele eacute a accedilatildeo de ambos que dirige o nosso olhar sempre na esteira do
acircngulo de de Scottie com quem partilhamos a ignoracircncia a
curiosidade a descoberta
Apoacutes a segunda conversa com Elster o tema do suiciacutedio engendra
uma ruptura nesse esquema de perfeita simetria MadeleineCarlota
atira-se nas aacuteguas da baiacutea de San Francisco Scottie a resgata Permaneceshy
mos puro olhar ele passa ao plano da intervenccedilatildeo e do diaacutelogo Com os
dois juntos certa concretude o que em Scottie eacute jaacute sonho romacircnshy
53
tico tonalidade de experiecircncia ironicamente mimetizada pela textura do
filme projetada nos espaccedilos no som configurando um desfile de clichecircs
do melodrama Encarnando a figura hiacutebrida de e
terapeuta Scottie permeia cada encontro de inquIacutefIacuteAtildeM
sar o imaginaacuterio de MadeleineCarlota decifrar a
lt catarse reveladora curar a mulher por quem estaacute
coloca adiante dele na investigaccedilatildeo
A nova ruptura vem quando Scottie conduz Madeleine a uma Misshy
satildeo Catoacutelica perto de Satildeo Francisco procurando explorar um sonho dela
que ele julga revelador sinal de que a soluccedilatildeo do enigma estaacute e
com esta a salvaccedilatildeo superada a pulsatildeo de morte que a domina Laacute cheshy
gando tudo se precipita auando Madeleine abandona suas recaDitulacotildees e insiste em caminhar sozinha em agrave
de Scottie que natildeo consegue enfim retecirc-la e perceDe em pamco a torre
alta do sino A montagem alternada nos traz a pressa de Madeleine ao se
e agrave torre seguida de Scottie que como suspeitamos
da escada retido pela vertigem - e somos retidos
com ele Ouve-se o grito Por uma das aberturas da torre vislumbra-se o corpo que cai
O ex-detetive vive a reiteraccedilatildeo da a humilhaccedilatildeo puacuteblica de um
psicologicamente massacrado Elsshy
natildeo sem antes tambeacutem absolvecirc-lo Scottie entra em colapso eacute internado Quando retoma agraves ruas de San Francisco
destila sua no passado volta aos mesmos lugares quer encontrar
em cada mulher a figura perdida movido por qualquer semelhanccedila Um
dia depara com Judy (Kim Noacutevak novamente) diferente nas maneiras
no em termos de classe Em tudo o mais a reacuteplica de
Madeleine Ele a segue bate agrave porta do seu quarto de hotel explica seus
motivos convida-a para jantar Ela desconfia daacute provas de sua identidade
(sou Judy natildeo o conheccedilo) tenta a rejeiccedilatildeo mas finalmente aceita Satisfeishy
to ele diz a hora do encontro e retira-se Pela primeira vez em todo o filme
natildeo o acompanhamos nos separamos de seu ponto de vista De repente
natildeo eacute mais dele a moldura que define os contornos do nosso olhar Retishy
54
dos no quarto ficamos ao lado de
sem delongas que natildeo espera o final
Sozinha no quarto hesitante nervosa
assume o risco do reencontro com nova identidade JUdyI Madeleme reshy
a trama urdida por Elster Para livrar-se de sua mulher ele COl1shy
para simular Madeleine Ou seja assumir essa identidade
para aIguem colocado no ponto de vista de Scottie Elster sabia dos proshy
blemas do detetive aposentado e engendrou o esquema do crime que fez
de Scottie a testemunha ideal pois era esperado que nunca ao
topo para ver Madeleine ser atirada por ele Elster quando Judy com o
mesmo traje e aparecircncia chegasse certamente sozinha ao alto da torre
Pensando ser sujeito ativo na cura de MadeleineCarlota Scottie tentou
resgataacute-la e apaixonou-se por um simulacro por uma imagem constmiacuteda
para seu ponto de vista O dispositivo montado estava todo apoiado nas
posiccedilotildees reciacuteprocas de observador e imagem dueto que deu corpo agrave ficshy
ccedilatildeo consagrada a posteriori pela sistemaacutetica do tribunal (num estratagema
bem mais complexo Judy Madeleine ocupa o lugar da falsa evidecircncia
apresentada agrave testemunha no meu primeiro exemplo) O diagnoacutestico do
suiciacutedio que absolve Scottie eacute a consumaccedilatildeo do crime perfeito A posiccedilatildeo
de Elster - aquele que sabe - corresponde agrave posiccedilatildeo do dispositivo narrashy
dor da histoacuteria no cinema claacutessico (ele permanece agrave sombra e orquestra as
imagens) Portanto no enredo que coloca em cena Vertigo espelha ()
prio mecanismo desse cinema que via de regra constroacutei-se segundo a
loacutegica do crime define o meu ponto de vista daacute corpo ao simushy
lacro eacute monitor de meu desejo tal como o dispositivo Elster-Judy-Madeshy
leine-Carlota em a Scottic
O filme de Hitchcock vai natildeo se reduz agrave exposiccedilatildeo desse
mecanismo Este se encontra inserido num tecido de ~elaccedilotildees que envolshy
vem natildeo soacute a identidade e o desejo de Scottie mas tambeacutem a identidade
e o de (a natildeo foi apenas para ele a
Urna leimra mais completa de Vertigo exishy
~rlprriiacute() detalhada do movimento derradeiro da trama Reshy
para o estratagema do as permanecem na
55
esfera das duas personagens agora entregues agrave resoluccedilatildeo de todo o disposhy
sitivo de identidadesimulaccedilatildeovertigem6 Permanecendo poreacutem nas
consideraccedilotildees sobre o aparato do olhar que eacute meu objetivo central aqui
afasto-me do filme natildeo sem antes fazer breve referecircncia ao que na parte
final de Vertigo devolve-nos agrave questatildeo da leitura da imagem no cinema
No reencontro das personagens Scottie impelido por sua fixaccedilatildeo
na imagem do passado in~iste em fazer de Judy nos miacutenimos detalhes a
reacuteplica fiel de Madeleine Ao observar sua metamorfose redefinimos
nossa relaccedilatildeo com a cena antiga a imagem de Kim Novak era Judy que
era Madeleine agraves vezes Carlota Judy possuiacuteda por Madeleine (a possesshy
satildeo transferecircncia se refaz agora) Madeleine (Judy) falando de sentimenshy
tos que eram de Judy (Madeleine) numa duplicaccedilatildeo de palavras expresshy
sotildees gestos que natildeo permite definir os contornos que separam uma da
outra essas quatro presenccedilas Refiro-me a Kim N ovak porque todo o
estratagema do filme conta com os falsetes fragilidades de seu desempeshy
nho para o bom efeito A construccedilatildeo das identidades em abismo embarashy
Iha a enunciaccedilatildeo dos gestos como dizer quem expressa o quecirc quando a
accedilatildeo dramaacutetica requer um fingir fingimento num processo em cascata
Vertigo ilustra nesse aspecto o quanto a leitura do rosto estaacute atrelada agrave
moldura que possuo e natildeo agrave exclusiva expressividade da imagem Tudo
nas palavras e gestos de Judy Madeleine ganha um sentido novo a partir
de cada deslocamento do ponto de vista O que natildeo significa apenas uma
questatildeo de espaccedilo e informaccedilatildeo mas inclui de modo decisivo uma disshy
posiccedilatildeo particular do observador que completa a accedilatildeo invisiacutevel do aparashy
to (no caso para a consumaccedilatildeo dos efeitos desejados era preciso que o
espectador da cena fosse Scottie com seu perfil e seu passado)
6 Para uma leitura de Vertigo que trabalha o dispositivo identidade simulashy
ccedilatildeovertigem e em particular sua resoluccedilatildeo traacutegica ao final do filme ver Robin
Wood Hitchcocks Films (Nova York Castle Books 1969) no qual a moldura eacute a
psicanaacutelise e Nelson Brissac Peixoto Cenaacuterio em ruiacutenas (Satildeo Paulo Brasiliense
1987) cujo texto pressupotildee uma reflexatildeo sobre o mundo dos efeitos-de-superficie o vazio a dissoluccedilatildeo da origem o simulacrQ
Tomei Vertigo como um laboratoacuterio no qual sob controle exibe-se
uma engenharia da simulaccedilatildeo aqrelaacionada pelo olhar do filme claacutessishy
co a qual alia a forccedila de seduccedilatildeo da cena agrave invisibilidade do aparato Para
finalizar gostaria de ir aleacutem dessa referecircncia mais imediata ao aparato do
cinema claacutessico pois a anaacutelise aqui feita permite uma inversatildeo nos mecashy
nismos destacados por discursos sobre o poder que mobilizam a metaacutefoshy
ra da sociedade como universo carceraacuterio e se desdobram em imagens
do aprisionamento pelo olhar Diante dos aparatos de comunicaccedilatildeo que
nos cercam eacute comum a caracterizaccedilatildeo de uma competecircncia de controle
de ordenamento cristalizada no olhar vigilante onipresente que se volta
o tempo todo para noacutes Considerando as tecnologias do olhar podemos
entretanto destacar um processo ordenador menos ostensivo que envolve
a accedilatildeo de um olhar que em vez de estar voltado para mim olha por rrtim
oferece-me pontos de vista coloca-se entre mim e o mundo (lembremos
a ironia de Vertigo Scottie eacute o olhar vigilante profissional mas o processhy
so de controle atua em sentido inverso - eacute o dispositivo que define seu
ponto de vista) Cercado de imagens vejo-me inscrito pela media numa
segunda natureza num processo que implica um cotejo de pontos de vista
muito peculiar que me afasta por exemplo do enfrentamento proacuteprio da
relaccedilatildeo pessoal intersubjetiva Esta se constitui pela devoluccedilatildeo do olhar
e nela repercute o que nos diz o poeta Antonio Machado o olho que vejo
eacute olho porque me vecirc natildeo porque o vejo Diante do aparato construtor de
imagens minha interaccedilatildeo eacute de outra ordem envolve um olho que natildeo
vejo e natildeo me vecirc que eacute olho porque substitui o meu porque me conduz
de bom grado ao seu lugar para eu enxe~gar mais ou talvez menos
Dado inagravelienaacutevel de minha experiecircncia o olhar fabricado eacute constanshy
te oferta de pontos de vista Enxergar efetivamente mais sem recusaacute-lo
implica discutir os termos desse olhar observar com ele o mundo mas
colocaacute-lo tambeacutem em foco recusando a condiccedilatildeo de total identificaccedilatildeo
com o aparato Enxergar mais eacute estar atento ao visiacutevel e tambeacutem ao que
fora do campo torna visiacutevel
56 57
vel) que o cinema vemcaptar com exclusividade pois fixa os movimenshy
tos na peliacutecula sem as atrapalhaccedilotildees do olho natural O cinema tem seu
vigor proacuteprio de um olhar mais automaacutetico
natildeo maculado pelos preconceitos culturais
dade Eacute irocircnico que justamente porque natildeo tem interioridade o olhar
da maacutequina possa atingir o princiacutepio interior dos movimentos revelar a
verdade que organicamente expressa-se em sentido pleno imprime-se
numa textura do mundo que soacute a cacircmera eacute capaz de registrar O proacuteprio
instantacircneo fotograacutefico em sua estrutura mais simples jaacute nos mostra o
quanto a imagem revelada faz emergir dados ocultos que natildeo estavam na
mira do fotoacutegrafo No cinema o movimento poteacutencializa tal desocultashy
mento o qual pode tornar-se mais efetivo quando os cineastas forem cuacutemshy
plices da nova teacutecnica em vez de tentar agrave como no
melodrama a expressividade do fica atrelada a toda uma
cadeia de loacutegica eacute tomada de empreacutestimo agrave do natushy
em que o tOrnar visiacutevel resulta do de uma retoacuterica que ~rH+tia Para
o que era aaequado ao teatro - como ilusionismo do seacuteculo XIX natildeo o eacute para o cinema do seacuteculo xx pois a
imitaccedilatildeo dos gestos antes oferecida a olhos desarmados natildeo resiste agrave anaacuteshy
lise da nova sensibilidade Com o cinema a percepccedilatildeo humana ganhou
um acesso especial agrave intimidade dos processos - ~ele a aparecircncia eacute jaacute uma
anaacutelise O cose-up natildeo eacute o lugar do fingimento eacute uma presenccedila que reveshy
la o que se eacute natildeo o que se pretende ser (inuacuteteis as caretas dos
A aposta da vanguarda estaacute no poder analiacutetico do cinematoshygraacutefico no que ressalta natildeil
espaccedilo) mas tambeacutem as
mente a cacircmera lenta (arnplia(acirco no eixo do tempo) que reveshyIa o mundo em outra e de~cobre-nos a vida secreta que se tece a
nossa volta e em noacutes ganhando ~xpressatildeo nas formas instaacuteveis fora da
nossa consciecircncia que temo~ fixadas pela teacutecnica2 Epstein nos seus
2 Essa aposta no poder analiacutetko do dnema tem uma versatildeo radical moshymento na Uniatildeo Sovieacutetica encarnada rio projeto do Cine-Olho de Vertov gt
42
o ~__ao~ das diferentes velocidades
do movimento animal e dos fenocircmenos Fershy
nand Leacuteger as relaccedilotildees e a forma dos objetos fora de sua inserccedilatildeo
utilitaacuteria no cotidiano Embora natildeo totalmente afinado ao cineacutema dayantshy
garde o surrealismo torna-se o movimento de contestaccedil50 ao cinema inshy
dustrial de maior impacto com sua exploraccedilatildeo da montagem como reveshy
laccedil50 das pulsotildees anatomia do desejo Em diferentes busca-se a
experiecircncia fora do senso comum o olhar em sintonia com ~l~r
do - a sensibilidade efetivamente moderna A
(Epstein) surge entatildeo como nova pedagogia
ccedilatildeo ao cenaacuterio do melodrama - pois o cincma teria como destino
trazer-nos de volta uma cosmologia e um encantamento do mundo para
os quais o cartesianismo e a filosofia da Ilustraccedilatildeo cegos
O horizonte desse renascimento seria a explosatildeo do universo carceraacuterio
da existecircncia atual (para usar a expressatildeo de Walter Benjamin em seu
ceacutelebre ensaio de T936 ao falar de reproduccedilatildeo teacutecnica arte e
A formulaccedilatildeo de Epstein-Dulae eacute questionaacutevel auando examinada a
partir de sua ideacuteia-matriz de expressatildeo
analiacutetico (inegaacutevel) da ~~a~Mrl~ aiacute uma feacute inteshy
gral no dado visiacutevel na caj)acldlde exclusiva de
suas relaccedilotildees internas trazer a verdade agrave tona
agrave ao contexto de cada a~aM~A mais de-
no entanto estaacute no impulso utoacutepico nela presente c no salto teoacuterico
que oferece ao buscar um pensameMo agrave alwra dos aspectos radicalmente
novos da experiecircncia do cinema no inicio do seacuteculo Benjamin o filoacutesofo
atento agraves transformaccedilotildees da sensibilidade geradas pelas novas diraacute
em 1936 A natureza que se dirifie dmera natildeo eacute a mesma que a que se
dirige ao olhar Essas c outras suas - sobre o ator o
gt que procura realizar no cinema documentaacuterio a verdade que desmascara a culshy
tura tradicional A cIacutee Vertov diante dos franceses eacute a
ccedilatildeo que ele estabelece cntre desmascaramento e exposiccedilatildeo dos processos efetivos
da Drodudiacuteo social das relaccedilotildees de atraveacutes do montagem cinematogniacutefica
43
analiacutetico da Imagem retomam muito do repertoacuterio da vanguarda dos anos
20 inserindo a caracterizaccedilatildeo do olhar do cinema numa reflexatildeo mais amshy
pIa sobre teacutecnica e cultura Nessa reflexatildeo a moldura eacute outra mas prevalece
o mesmo movimento de ressaltar o papel subversivo revelado r da fotoshy
grafia e do cinema dentro da cultura europeacuteia A promessa entatildeo se reafirshy
ma sem as premissas de eXflressividade total e de retorno agrave natureza
Com Benjamin ela aSSume um contorno histoacuterico mais bem demarcado eacute
por um persamento mais sensiacutevel agrave contradiccedilatildeo e ao caraacuteter das
forccedilas sociais em conflito Pensamento que nos trouxe uma avaliaccedilatildeo da
questatildeo da arte dentro de uma articulaccedilatildeo mais luacutecida com a conjuntura
poliacutetica e a proacutepria natureza das apostas em na Europa dos anos 30
polarizada por uma confrontaccedilatildeo decisiva entre revoluccedilatildeo e reaccedilatildeo
A CRiacuteTICA DO OLHAR SEM CORPO
No seu elogio ao aspecto revelador do olhar no cinema o pensamento
dos anos 20 colocou o debate em termos de verdade (cinema) emendra
(tradiccedilatildeo cultural) e deu toda ecircnfase agrave cumplicidade entre cinema e natushy
reza solidaacuterios enquanto um organismo e sua expressatildeo visual prontos a
expulsar a simulaccedilatildeo desde que a nova teacutecnica fosse salva de su~ adultera-
promovida pelo universo da mercadoria Por esse a oposishyentre um cinema desejado objeto do recalque e aquele que
realmente impera (a pedagogia da induacutestria orienta-se por uma teleoIOPla o presente eacute o mOmelItO dos entraves que impedem o desenshy
volvimento na direccedilatildeo COrreta eacuteapaz de realizar as promessas da nova
teacutecnica o futuro eacute o preenchimen~o dessas promessas que desde jaacute as vanshy
guardas anunciam e preparam Entre 1920 e J960 os poderes reais inshy
sistiram em repor o mesno cinema dominante o que trouxe em linhas
a reiteraccedilatildeo da mesnla matriz de contestaccedilatildeo O conflito dominanshy
tedominado traduzido em termos de verdade e refez-se ao
longo de eixos diversos Quando prevaleceu um eixo poliacutetico o poacutelo da
verdade (futuro) identificou-se agrave cultura revolucionaacuteria o da mentira
presentet agraves mistificaccedilotildees da reaccedilatildeo Quando prevaleceu um eixo esteacutetishy
co verdade foi poesia originalidade experimentaccedilatildeo mentira foi a rotishy
na do comeacutercio o kitscll industrializado
Natildeo cabe agora a recapitulaccedilatildeo do que foram as diferentes versotildees
desse conflito vanguardacultura de massa em cada e eacutepoca Natildeo o
poderia fazer nem quero pois meu objetivo eacute saltar dessa primeira refleshy
xatildeo dos anos 20 para uma mais proacutexima de gerada no contexto franshy
cecircs poacutes-68 reflexatildeo que abandonou a tradiccedilatildeo de opor verdade e mentishy
ra deslocando a discussatildeo sobre a teacutecnica do cinema
No grande intervalo que a criacutetica avanccedilou na caracterizashy
ccedilatildeo do olhar sem corpo e suas implicaccedilotildees notadamente na avaliaccedilatildeo de
sua estrutura mais comunicativa e sedutora o cinema olhar da
induacutestria da ideologia dominante nos meios Extensatildeo do qlle
chamei olhar melodramaacutetico o cinema claacutessico eacute sua modernizaccedilatildeo Faz
com que ele abandone os excessos maiores do ganhe em
profundidade dramaacutetica amplitude temaacutetica concretizando o ver mais e
melhor do cinema na direccedilatildeo de um ilusionismo mais completo - o cineshy
ma claacutessico eacute o olhar sem corpo atuando em sentido
caracterizaccedilatildeo dos seus poderes apresentada em minha primeira
que de fato ajusta-se mais precisamente a esse estilo particular dOJTIinanshy
te no mercado e natildeo a todo o cinema possiacutevel Eacute nele mais do que em
qualquer outra proposta que vemos realizado o de intensificar ao
extremo nossa relaccedilatildeo com o mundo-objeto fazer tal mundo parecer autocircshy
nomo existente em seu proacuteprio direito natildeo encorajando perguntas na
direccedilatildeo do proacuteprio olhar mediador sua estrutura e comportamento Soshy
mos aiacute convidados a tomar o olhar sem corpo como dado natural
Entre a Segunda Guerra Mundial e os anos 60 dois grandes
de reflexatildeo conduziram a criacutetica a essa naturalidade postulada pelo cineshy
ma claacutessico a teoria radical do cinema-discurso baseado nas operaccedilotildees da
montagem (o Eisenstein dos anos 20-30 permaneceu aqui a referecircncia
central) e a criacutetica francesa inspirada na fenomenologia tendo como [oco
maior Andreacute Bazin3
3 Cf Bazin Cinema ensaios trad Eloisa Ribeiro (Satildeo Paulo Brasilicnse 1991)
44 45
Falar de Eisenstein exigiria uma abordagem radicalmente distinta da
que faccedilo agora pois sua criacutetica ao ilusionismo COmeccedila com a advertecircncia
de que a imagem cinematograacutefica natildeo deve ser lida c0f110 produto de um
olhar Para ele a suposiccedilatildeo de que houve um encontro uma contiguumlidade
espacial e temporal entre cacircmera e objeto natildeo eacute O dado central e impresshy
cindiacutevel da leitura da imagem Sua presenccedila na tela eacute um fato de natureza
que deve ser observado em seu valor simboacutelico
caracteriacutesticas de sua composiccedilatildeo e sua no Contexto de um discurshy
so que eacute exposiccedilatildeo de ideacuteias natildeo sucessatildeo natural de fatos captados
pelo olhar A diferenccedila entre um plano geral e um cose-up por
muitas vezes natildeo pode ser entendida como olhar versus
olhar de mesmo quando se focaliza o mesmo ODjeto mas como
confronto de duas imagens de valores distintos A diferenccedila eacute de
natildeo de posiccedilatildeo no espaccedilo pois pode natildeo haver COntinuidade e
homogeneidade espacial para que se possa falar num mais perto
- tudo depende do contexto do discurso por imagens
Ao contraacuterio de Eisenstein os criacuteticos inspirados na fenomenologia
endossam e defendem a premissa de que no cinema toda imagem eacute proshy
duto de um olhar - eacute essencial que ela seja vista como tal- e a sucessatildeo
define sempre a atitude do observador diante de um mundo homogecircneo
Agrave imagem-signo de Eisenstein eles opotildeem a imagem-acontecimento agrave
defesa da descontinuidade proacutepria do cineasta russo respondem Com
uma defesa ateacute mais radical do princiacutepio de continuidade jaacute presente na
narraccedilatildeo claacutessica fazendo a ela um reparo fundamental se a imagem em
movimento nos traz a percepccedilatildeo privilegiada do homem como ser lanccedilashy
do no mundo como ser-em-situaccedilatildeo a falsidade do cinema claacutessico estaacute
na manipulaccedilatildeo impliacutecita em sua montagem o olhar sem corpo e a
onividecircncia criam na tela uni mundo abstrato de sentido fechado preshy
julgado e organizado pelo cin~ina Toda montagem eacute discurso manipulashy
ccedilatildeo de Eisenstein de GrUacutefith ou de Bufiacuteuel Em oposiccedilatildeo um criacutetishy
co como Bazin solicita um olhar cinematograacutefico mais afinado ao olho de
um sujeito circunstanciado que p6ssui limites aceita a abertura do
mundo convive com ambiguumlidades Quando pede realismo ele natildeo se
46
deteacutem em consideraccedilotildees de conteuacutedo (o tipo de universo Ciccional ou doshy
cumentaacuterio) Sublinha a postura do olhar em sua interaccedilatildeo com o mundo
tanto mais legiacutetima quanto mais as condiccedilotildees de nosso olhar
ancorado no corpo vivenciando uma duraccedilatildeo e uma circunstacircncia em sua
continuidade trabalhando as incertezas de uma percepccedilatildeo
ultrapassada mundo Daiacute sua minimizaccedilatildeo da montagem (instacircncia
construtora da onividecircncia) sua defesa do plano-seguumlecircncia (olhar uacutenico
sem cortes observando uma em seu um acontecimento
em seu fluir
Numa visatildeo mais atual prestamos atenccedilatildeo especial ao que aproxima
e natildeo apenas ao que afasta o cinema-discurso de Eisenstein e o realismo
existencial de Bazin haacute em ambos novamente a atribuiccedilatildeo de um poder
de verdade e de um poder de mentira encarnados em determinados estishy
los Para Eisenstein haacute um estilo capaz de dizer o mundo social-histoacuterishy
co colocando o cinema como potecircncia maior no plano do conhecimento
Para Bazin O cinema eacute uma espeacutecie de terceiro estado da e exisshy
te um estilo autecircntico na captaccedilatildeo da vivecircncia humana em sua
essencial abertura no tempo
Contra esse pano de fundo da tradiccedilatildeo teoacuterica a intervenccedilatildeo de
]ean-Louis Baudry em 1969-70 em questatildeo a constante promessa de
um estilo mais verdadeiro e dirige seu ataque agraves premissas do cinema em
geral examinando mais a fundo as condiccedilotildees do espectador raciociacuteshy
nio estaacute municiado para analisar o espectador do filme claacutessico mas
fala em cinema tout couTe) 4 O horizonte de seu exame eacute ressaltar o
modo pelo qual a recepccedilatildeo da imagem possui uma estrutura que a seu ver
solapa o reiterado creacutedito - de Eisenstein Griffith Epstein na
da verdade como destinaccedilatildeo fundamental do cinema Ele invershy
te a tradiccedilatildeo e vecirc na simulaccedilatildeo na de efeitos (ilusoacuterios) de
conhecimento o destino maior da nova arte (visatildeo que
4 O mais importante dos textos de Jean-Louis dessa
1970 Os efeitos ideoloacutegicos do de base estaacute publicado em Ismail
Xavier (orll) A experiecircncia do cinema (Rio de Janeiro
47
pela permanecircncia do ilusionismo do cinema industrial) Isso se daacute por
forccedila da proacutepria natureza da teacutecnica cinematograacutefica herdeira das ilusotildees _
da perspectiva da persistecircncia retiniana (natildeo vemos os fotogramas vemos
o que natildeo ocorre na tela ou seja o movimento da imagem e temos a imshy
pressatildeo de continuidade) da falsa autenticidade documental da fotografia
Rearticulando elementos jaacute conhecidos Baudry nos traz uma interpretashy
ccedilatildeo radical que- questiona natildeo estilos particulares de fazer cinema mas o
fundamento mesmo de sua objetividade como teacutecnica essa mes~a objetishy
vidade que tem sido a sustentaccedilatildeo maior das esperanccedilas de verdade Na
nova perspectiva as diferentes posiccedilotildees teoacutericas desde 1920 definem um
pensar o cinema a priori capturado pelas ilusotildees da teacutecnica e desatento agraves
implicaccedilotildees contidas na proacutepria estrutura do olhar da cacircmera tal como se
daacute para noacutes na plateacuteia A teacutecnica tem suas inclinaccedilotildees seus efeitos ideoloacuteshy
gicos e nesse sentido eacute ela mesma que impele o cinema industrial a desenshy
volver seu ilusionismo e trazer o espectador para dentro do mundo ficcioshy
na A forccedila de encantamento desse cinema persiste na histoacuteria porque o
dado crucial em jogo natildeo eacute tanto a imitaccedilatildeo do real na tela _ a reproduccedilatildeo
integral das aparecircncias - mas a simulaccedilatildeo de um certo tipo de sujeito-doshy
olhar pelas operaccedilotildees do aparato cinematograacutefico
Avaliar a potecircncia do olhar sem corpo natildeo eacute entatildeo inventariar as
imagens que ele oferece efocaIacuteIacutezar o seu movimento proacuteprio sua forma
de mediaccedilatildeo o que impiacuteica analisar sua incidecircncia no espectador que
vivenda o poder de clarividecircncia a percepccedilatildeo tota Na sala escura idenshy
tificado com o movimento do olhar da cacircmera eu me represento como
sujeito dessa percepccedilatildeo total capaz de doar sentido agraves coisas sobrevoar as
aparecircncias fazer a siacutentese do mundo Minha emoccedilatildeo estaacute com os fatos
que o olhar segue mas a cbndiccedilatildeo desse envolvimento eacute eu me colocar no
lugar do aparato sintoniz~do com suas operaccedilotildees Com isso incorporo
(ilusoriamente) seus poder~s e ericontro nessa sintonia - solo do entendishy
mento cinematograacutefico - o maior cenaacuterio de simulaccedilatildeo de uma onipotecircnshy
cia imaginaacuteria No cinema faccedilo uma viagem que confirma minha condishy
ccedilatildeo de sujeito tal como a desejo Maacutequina de efeitos a realizaccedilatildeo maior do
cinema seria entatildeo esse efeito-sujeito a simulaccedilatildeo de uma consciecircncia
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transcendente que descortina o mundo e se vecirc no centro das coisas ao
mesmo tempo que radicalmente separada delas a observar o mundo coshy
mo puro olhar Nessa apropriaccedilatildeo ilusoacuteria da competecircncia ideal do olhar
estou portanto no centro mas eacute o aparato que aiacute me coloca pois eacute dele o
movimento da percepccedilatildeo monitor da minha fantasia
Para Baudry uma filosofia idealista que postula um sujeito transshy
cendente em oposiccedilatildeo ao mundo objetivo que se dispotildee ao conhecimento
encontra aiacute na teacutecnica do cinema sua traduccedilatildeo visiacutevel Toda sua ecircnfase
recai sobre a produccedilatildeo simultacircnea da imagem e do sujeito-observador
onividente A engenharia simuladora do cinema define com o efeitoshy
sujeito seu teatro da percepccedilatildeo total cujo protagonista sou eu-espectador
identificado com o olhar da cacircmera
N esses termos o que dificulta a consolidaccedilatildeo de linguagens alternashy
tivas mais verdadeiras eacute esse pecado original inscrito na teacutecnica Esta
tem na ilusatildeo seu sustentaacuteculo e os percalccedilos das vanguardas devem-se a
que sua aposta eacute reverter a funccedilatildeo daquilo que jaacute nasceu para cumprir
outro destino Digo destino porque a loacutegica dessa teoria transforma o cineshy
ma num oacutergatildeo que surgiu para cumprir um programa o de objetivar na
esfera do visiacutevel estrateacutegias de dominaccedilatildeo especialmente as da classe burshy
guesa que presidiu sua origem Assim antes de instacircncia liberadora subshy
versiva a condiccedilatildeo do cinema eacute preencher uma demanda do proacuteprio unishy
verso carceraacuterio tornando-o mais preciso e poderoso em seu aparato
Haacute uma atmosfera de desencanto instalada a partir dos anos 70 a
formulaccedilatildeo aqui exposta eacute a traduccedilatildeo teacuteoacuterica radical dos impasses da conshy
testaccedilatildeo no cinema Temos o esgotamento de uma teleologia a da teacutecnishy
ca redentora entravada pela poliacutetica e a economia e sua substituiccedilatildeo
por u~a outra a da teacutecnica como instrumento maior de reposiccedilatildeo de um
sistema de poder Em consonacircncia corn a tonalidade da reflexatildeo sobre a
linguagem a cultura e a ideologia naquele momento a teoria do cinema
mais original e polecircmica ressalta o lado sistemaacutetico inelutaacutevel das ilusotildees
e dos enganos do olhar da cacircmera Nesse contexto a proacutepria praacutetica do
cinema amplia o espaccedilo para a reflexatildeo teoacuterica voltada para a questatildeo do
simulacro - a citaccedilatildeo a imagem que-alude agrave imagem o circuito das refeshy
49
recircncias a si mesmo que o cinema leva ao paroxismo entram para valer na
esfera da induacutestria constituem sua nova marca Tal reflexatildeo se faz dentro
de molduras conceituais diversas e num processo em que a teoria do
cinema reflete o andamento dos debates mais abrangentes sobre a cultura
contemporacircnea A imagem cinematograacutefica eacute entatildeo obseJvada a partir de
sua participaccedilatildeo em outra rede de relaccedilotildees em que natildeo haacute para a
interpretaccedilatildeo (esse tomar a imagem como representaccedilatildeo de algo exterior
a ela) para o juiacutezo da verdade ou mentira em que se a oposlccedilao
aparecircncia (imagem)essecircncia (substacircncia) -nada haacute por traacutes das lmlti~e~ns
elas valem como efeitos-de-superfiacutecie imagem remetendo a imagem fluxo de simulacros
Faccedilo agora uma incursatildeo que natildeo eacute propriamente no terreno da
nova filosofia e das questotildees mais amplas do simulacro na produccedilatildeo
Trata-se de uma anaacutelise particular no niacutevel da engenharia da simulaccedilatildeo
caracterizaccedilatildeo de um efeito na qual natildeo eacute necessaacuterio assumir as noccedilotildees
com a mesma ressonacircncia elas adquiriram na literatura dos anos 80
Fecho a exposiccedilatildeo com a consideraccedilatildeo de um novo exeacutemplo que acredishy
to esclareccedila algumas observaccedilotildees feitas ateacute aqui sobre a interaccedilatildeo entre
espectador e imagem sobre o papel da moldura do sujeito na leitura
Parti de um primeiro exemplo mais simples para explicar como o
efeito de uma depende de sua ~elaccedilatildeo com o sujeito em determishy
nadas condiccedilotildees Da situaccedilatildeo da testemunha de McCarthy passei a uma
caracterizaccedilatildeo mais detida do olhar do cinema e examinei dois momenshy
tos opostos dentro do conflito de perspectivas que marcou a reflexatildeo criacuteshy
tica em torno do que hiacute de erigano e rcvelaccedilatildeo nesse olhar A partir de
uma discussatildeo mais sobre a simulaccedilatildeo do fato - na fotografia no
cinema chegamos a uma questatildeo mais especiacutefica a simulaccedilatildeo do sujeishy
to na estrutura mesma (lo olhar cinematograacutefico Dentro da discussatildeo
mais geral o exemplo a envolve uma situaccedilatildeo mais complicada do
quea das fotos do tribunal estaremos no cinema Como inspiraccedilatildeo
terei presentes as liccedilotildees de Baildry sem no entanto incorporar o movishy
mento totalizador de suaacute criacutetica ao olhar do cinema Seu amplo diagnoacutesshy
tico mobilizando a psicaacutenaacutelise tem como pressuposto o fato de sabershy
0
mos o bastante sobre a natureza do espectador de modo a prever o caraacuteshy
tcr de sua identificaccedilatildeo com o aparato a qual assume uma dimensatildeo
uacutenica de adesatildeo agrave imagem por forccedila do efeito-sujeito Como conhecedoshy
res do desejo do espectador denunciamos o conluio desse desejo com o
programa da induacutestria e deduzimos daiacute as alienaccedilotildees do cinema e da
teacuteia Natildeo tenho condiccedilotildees de endossar a generalidade desse saber a resshy
peito do espectador o aparato atua em determinada direccedilatildeo mas a expeshy
riecircncia do cinema inclui outras forccedilas e condiccedilotildees que natildeo se ajustam ao
programa do sistema A formulaccedilatildeo dc Baudry embora inclua com toda
a forccedila a dimensatildeo do desejo do espectador natildeo deixa de ser outra vershy
satildeo das teorias da manipulaccedilatildeo global centradas em excesso no aspecto
da experiecircncia de modo a confundir o processo que efetishy
vamente ocorre com a loacutegica ideal do sistema Focalizo uma situaccedilatildeo
didaacutetica nesse contcxto em que eacute perfeito o funcionamcnto do
aparato cm quc podemos verificar o mecanismo da simulaccedilatildeo em estashy
do digamos de laboratoacuterio
IVIULALAU E PONTO OE VISTA
Toda leitura de eacute pr()(llltatildeo de um ponto de vista o do sujeito
observador natildeo o da objetividade (b irnagetnA condiccedilatildeo dos efeitos
da imagem eacute essa Em particular o ekilO rb apoacuteia-se numa
construccedilatildeo que inclui o fmguh do obSlrVIr1or O simulacro parece o
que natildeo eacute a partir de um pOIHo ele vista () sujeito estaacute aiacute pressuposto Porshy
tanto o processo elc simulaccedilatildeo nlo l o (Li imagemem si mas o da sua
relaccedilatildeo com o sujeito Num (gt1lt1110 elemelltar podemos tomar o cinema
como modelo do processo O (llIC eacute a fjltnilgcm senatildeo a organizaccedilatildeo do
I 1 I - C f dacontecllnento pra 11111 angu () (C o lscrvaccedilao o que se con un e com
Nessas asserccedilotildees no de Xavier Audouard Le Simulacrc in
eacutepisteacutemologie de lEcole Normale gtuucushy
rc n mai-jun 1966) O horizonte de Audouard eacute o de uma discussatildeo sobre o
idealismo platocircnico seu terreno eacute ponanto distinto e meu natildeo
ca uma identificaccedilatildeo agrave sua perspectiva de anaacutelise
i J
o da cacircmera e nenhum outro mais) O que eacute a fachada de preacutedio de estuacuteshy
dio senatildeo a duplicaccedilatildeo do mesmo princiacutepio da fachada de rua que sushy
gere o que natildeo eacute justamente quando observada de um certo acircngulo e disshy
tacircncia jaacute pressupostos em sua composiccedilatildeo O que eacute a ficccedilatildeo do cinema
senatildeo uma simulaccedilatildeo de mundo para o espectador identificado com o aparato
Vertigo (Um corpo que cai) O filme de Hitchcock realizado
em 1958 Ele eacute a trama da simulaccedilatildeo por excelecircncia como jaacute foi observashy
do pela criacutetica Trago um aspecto novo agrave consideraccedilatildeo o do espelhamenshy
to que existe entre o estratagema que envolve as personagens do drama e
o proacuteprio princiacutepio da narraccedilatildeo do filme Tal como em outras obras de
Hitchcltck o cinepa c1aacutessi~o aqui operagrave com eficiecircncia maacutexima e ao
mesmo tempo oferece a metaacutefora viva para o seu proacuteprio processo Inteshy
ressado nessa metaacutefora acentuo nesta anaacutelise a mecacircnica da simulaccedilacirco o
funcionamento exterior do aparato natildeo o que nas personagens eacute desejo
do estratagema e disposiccedilatildeo para a vertigem da imagem
Sigamos passo a passo a narrativa ateacute o ponto que interessa
Vertigem tiacutetulo original eacute a palavra que condensa as ideacuteias-forccedila
do filme em sua tematiacutezaccedilatildeo do olhar e do ponto de vista A apresentaccedilatildeo
de Vertigo criaccedilatildeo de Saul nos traz a imagem do rosto feminino em
close-up tratado como maacutescara enigmaacutetica imoacutevel Uma aproximaccedilatildeo
maior e um passeio da cacircmcra examinam essa maacutescara em seus detalhes
ateacute que isolado o olho ofereccedila os sinais de vida Os seus movimentos no
entanto natildeo criam uma ~xpressatildeo definida uma intcncionalidade do olhar
Preparam apenas o cenaacuterio ptra um movimentoem espiral na profundishy
dade Mergulho na inteacuteiioridaacutedc cujo fundo inatingiacutevel estaacute sempre em
recesso Aproximaccedilatildeo e recuo atraccedilatildeo e fuga a ambiguumlidade do movishy
mento da espiral ~ experiecircncia matriz de todo o filme cujo eixo eacute o
percurso de profissional do olhar detetive personificaccedilatildeo da
vertigem Logo na primeira sequumlecircncia define-se a questatildeo desse protagoshy
nista numa perseguiccedilatildeo telhados de Satildeo Francisco a vertigem de Scottie o faz responsaacuteveacutel pela morte de um
tentar ajudaacute-lo Sentimeriacuteto de cu1Da aposentadoria
52
lecida a disponibilidade total de a situaccedilatildeo-chave de Vertigo deseshy
nha-se quando ele atende ao chamado de Elster de escola que
no reencontro surpreende-o com o pedido para que sua mulher
Madeleine Elster mostra-se apreensivo com as manifestaccedilotildees de ausecircnshy
cia que ela apresenta com os periacuteodos de comportamento estranho em
que ela parece ser outra pessoa de que retoma sem lembranccedilas
O ex-detetive ensaia um ceticismo apenas aparente e dobra-se ao enigma
proposto Passa a acompanhar os trajetos de Madeleine pesquisa pela
recolhe dados essenciais Um primeiro quadro se compotildee a
ra que dela se apossa em seus transes eacute Cadota Valdez mulher que viveu
em San Francisco no seacuteculo XIX e que se suicidou em circunstacircncias meshy
lancoacutelicas Novamente com Elster Scottie relata as descobertas O marishy
do introduz novo dado Madeleine estaacute em perigo de vida pois descende
de Carlota outras mulheres da linhagem cometeram suiciacutedio e ela tem
agora a idade de Carlota ao morrer
Na primeiraacute seacuterie de passeios de Madeleine fase em que se compotildec
o quadro tivemos uma ostensiva duplicaccedilatildeo num primeiro plano Scortie
observa MadeJeine que natildeo reconhece sua presenccedila (ele estaacute fora do tershy
ritoacuterio dela) e se potildee disponiacutevel ao olhar movimentando-se como numa
cena num segundo plano ao longo do mesmo eixo a cacircmera observa
Scottie que Madeleine Satildeo duas uma dentro da outra que
natildeo se tocam Ela el)quadrada pelo ponto de vista dele ambos enquadra~
dos por noacutes no lugar da cacircmera Madeleine nunca devolve o olhar a Scotshy
tie devolve o olhar agrave cacircmera (regra do filme claacutessico) Mas eacute
ambiacutegua essa passividade pois eacute o movimento dela que dirige o olhar
dele eacute a accedilatildeo de ambos que dirige o nosso olhar sempre na esteira do
acircngulo de de Scottie com quem partilhamos a ignoracircncia a
curiosidade a descoberta
Apoacutes a segunda conversa com Elster o tema do suiciacutedio engendra
uma ruptura nesse esquema de perfeita simetria MadeleineCarlota
atira-se nas aacuteguas da baiacutea de San Francisco Scottie a resgata Permaneceshy
mos puro olhar ele passa ao plano da intervenccedilatildeo e do diaacutelogo Com os
dois juntos certa concretude o que em Scottie eacute jaacute sonho romacircnshy
53
tico tonalidade de experiecircncia ironicamente mimetizada pela textura do
filme projetada nos espaccedilos no som configurando um desfile de clichecircs
do melodrama Encarnando a figura hiacutebrida de e
terapeuta Scottie permeia cada encontro de inquIacutefIacuteAtildeM
sar o imaginaacuterio de MadeleineCarlota decifrar a
lt catarse reveladora curar a mulher por quem estaacute
coloca adiante dele na investigaccedilatildeo
A nova ruptura vem quando Scottie conduz Madeleine a uma Misshy
satildeo Catoacutelica perto de Satildeo Francisco procurando explorar um sonho dela
que ele julga revelador sinal de que a soluccedilatildeo do enigma estaacute e
com esta a salvaccedilatildeo superada a pulsatildeo de morte que a domina Laacute cheshy
gando tudo se precipita auando Madeleine abandona suas recaDitulacotildees e insiste em caminhar sozinha em agrave
de Scottie que natildeo consegue enfim retecirc-la e perceDe em pamco a torre
alta do sino A montagem alternada nos traz a pressa de Madeleine ao se
e agrave torre seguida de Scottie que como suspeitamos
da escada retido pela vertigem - e somos retidos
com ele Ouve-se o grito Por uma das aberturas da torre vislumbra-se o corpo que cai
O ex-detetive vive a reiteraccedilatildeo da a humilhaccedilatildeo puacuteblica de um
psicologicamente massacrado Elsshy
natildeo sem antes tambeacutem absolvecirc-lo Scottie entra em colapso eacute internado Quando retoma agraves ruas de San Francisco
destila sua no passado volta aos mesmos lugares quer encontrar
em cada mulher a figura perdida movido por qualquer semelhanccedila Um
dia depara com Judy (Kim Noacutevak novamente) diferente nas maneiras
no em termos de classe Em tudo o mais a reacuteplica de
Madeleine Ele a segue bate agrave porta do seu quarto de hotel explica seus
motivos convida-a para jantar Ela desconfia daacute provas de sua identidade
(sou Judy natildeo o conheccedilo) tenta a rejeiccedilatildeo mas finalmente aceita Satisfeishy
to ele diz a hora do encontro e retira-se Pela primeira vez em todo o filme
natildeo o acompanhamos nos separamos de seu ponto de vista De repente
natildeo eacute mais dele a moldura que define os contornos do nosso olhar Retishy
54
dos no quarto ficamos ao lado de
sem delongas que natildeo espera o final
Sozinha no quarto hesitante nervosa
assume o risco do reencontro com nova identidade JUdyI Madeleme reshy
a trama urdida por Elster Para livrar-se de sua mulher ele COl1shy
para simular Madeleine Ou seja assumir essa identidade
para aIguem colocado no ponto de vista de Scottie Elster sabia dos proshy
blemas do detetive aposentado e engendrou o esquema do crime que fez
de Scottie a testemunha ideal pois era esperado que nunca ao
topo para ver Madeleine ser atirada por ele Elster quando Judy com o
mesmo traje e aparecircncia chegasse certamente sozinha ao alto da torre
Pensando ser sujeito ativo na cura de MadeleineCarlota Scottie tentou
resgataacute-la e apaixonou-se por um simulacro por uma imagem constmiacuteda
para seu ponto de vista O dispositivo montado estava todo apoiado nas
posiccedilotildees reciacuteprocas de observador e imagem dueto que deu corpo agrave ficshy
ccedilatildeo consagrada a posteriori pela sistemaacutetica do tribunal (num estratagema
bem mais complexo Judy Madeleine ocupa o lugar da falsa evidecircncia
apresentada agrave testemunha no meu primeiro exemplo) O diagnoacutestico do
suiciacutedio que absolve Scottie eacute a consumaccedilatildeo do crime perfeito A posiccedilatildeo
de Elster - aquele que sabe - corresponde agrave posiccedilatildeo do dispositivo narrashy
dor da histoacuteria no cinema claacutessico (ele permanece agrave sombra e orquestra as
imagens) Portanto no enredo que coloca em cena Vertigo espelha ()
prio mecanismo desse cinema que via de regra constroacutei-se segundo a
loacutegica do crime define o meu ponto de vista daacute corpo ao simushy
lacro eacute monitor de meu desejo tal como o dispositivo Elster-Judy-Madeshy
leine-Carlota em a Scottic
O filme de Hitchcock vai natildeo se reduz agrave exposiccedilatildeo desse
mecanismo Este se encontra inserido num tecido de ~elaccedilotildees que envolshy
vem natildeo soacute a identidade e o desejo de Scottie mas tambeacutem a identidade
e o de (a natildeo foi apenas para ele a
Urna leimra mais completa de Vertigo exishy
~rlprriiacute() detalhada do movimento derradeiro da trama Reshy
para o estratagema do as permanecem na
55
esfera das duas personagens agora entregues agrave resoluccedilatildeo de todo o disposhy
sitivo de identidadesimulaccedilatildeovertigem6 Permanecendo poreacutem nas
consideraccedilotildees sobre o aparato do olhar que eacute meu objetivo central aqui
afasto-me do filme natildeo sem antes fazer breve referecircncia ao que na parte
final de Vertigo devolve-nos agrave questatildeo da leitura da imagem no cinema
No reencontro das personagens Scottie impelido por sua fixaccedilatildeo
na imagem do passado in~iste em fazer de Judy nos miacutenimos detalhes a
reacuteplica fiel de Madeleine Ao observar sua metamorfose redefinimos
nossa relaccedilatildeo com a cena antiga a imagem de Kim Novak era Judy que
era Madeleine agraves vezes Carlota Judy possuiacuteda por Madeleine (a possesshy
satildeo transferecircncia se refaz agora) Madeleine (Judy) falando de sentimenshy
tos que eram de Judy (Madeleine) numa duplicaccedilatildeo de palavras expresshy
sotildees gestos que natildeo permite definir os contornos que separam uma da
outra essas quatro presenccedilas Refiro-me a Kim N ovak porque todo o
estratagema do filme conta com os falsetes fragilidades de seu desempeshy
nho para o bom efeito A construccedilatildeo das identidades em abismo embarashy
Iha a enunciaccedilatildeo dos gestos como dizer quem expressa o quecirc quando a
accedilatildeo dramaacutetica requer um fingir fingimento num processo em cascata
Vertigo ilustra nesse aspecto o quanto a leitura do rosto estaacute atrelada agrave
moldura que possuo e natildeo agrave exclusiva expressividade da imagem Tudo
nas palavras e gestos de Judy Madeleine ganha um sentido novo a partir
de cada deslocamento do ponto de vista O que natildeo significa apenas uma
questatildeo de espaccedilo e informaccedilatildeo mas inclui de modo decisivo uma disshy
posiccedilatildeo particular do observador que completa a accedilatildeo invisiacutevel do aparashy
to (no caso para a consumaccedilatildeo dos efeitos desejados era preciso que o
espectador da cena fosse Scottie com seu perfil e seu passado)
6 Para uma leitura de Vertigo que trabalha o dispositivo identidade simulashy
ccedilatildeovertigem e em particular sua resoluccedilatildeo traacutegica ao final do filme ver Robin
Wood Hitchcocks Films (Nova York Castle Books 1969) no qual a moldura eacute a
psicanaacutelise e Nelson Brissac Peixoto Cenaacuterio em ruiacutenas (Satildeo Paulo Brasiliense
1987) cujo texto pressupotildee uma reflexatildeo sobre o mundo dos efeitos-de-superficie o vazio a dissoluccedilatildeo da origem o simulacrQ
Tomei Vertigo como um laboratoacuterio no qual sob controle exibe-se
uma engenharia da simulaccedilatildeo aqrelaacionada pelo olhar do filme claacutessishy
co a qual alia a forccedila de seduccedilatildeo da cena agrave invisibilidade do aparato Para
finalizar gostaria de ir aleacutem dessa referecircncia mais imediata ao aparato do
cinema claacutessico pois a anaacutelise aqui feita permite uma inversatildeo nos mecashy
nismos destacados por discursos sobre o poder que mobilizam a metaacutefoshy
ra da sociedade como universo carceraacuterio e se desdobram em imagens
do aprisionamento pelo olhar Diante dos aparatos de comunicaccedilatildeo que
nos cercam eacute comum a caracterizaccedilatildeo de uma competecircncia de controle
de ordenamento cristalizada no olhar vigilante onipresente que se volta
o tempo todo para noacutes Considerando as tecnologias do olhar podemos
entretanto destacar um processo ordenador menos ostensivo que envolve
a accedilatildeo de um olhar que em vez de estar voltado para mim olha por rrtim
oferece-me pontos de vista coloca-se entre mim e o mundo (lembremos
a ironia de Vertigo Scottie eacute o olhar vigilante profissional mas o processhy
so de controle atua em sentido inverso - eacute o dispositivo que define seu
ponto de vista) Cercado de imagens vejo-me inscrito pela media numa
segunda natureza num processo que implica um cotejo de pontos de vista
muito peculiar que me afasta por exemplo do enfrentamento proacuteprio da
relaccedilatildeo pessoal intersubjetiva Esta se constitui pela devoluccedilatildeo do olhar
e nela repercute o que nos diz o poeta Antonio Machado o olho que vejo
eacute olho porque me vecirc natildeo porque o vejo Diante do aparato construtor de
imagens minha interaccedilatildeo eacute de outra ordem envolve um olho que natildeo
vejo e natildeo me vecirc que eacute olho porque substitui o meu porque me conduz
de bom grado ao seu lugar para eu enxe~gar mais ou talvez menos
Dado inagravelienaacutevel de minha experiecircncia o olhar fabricado eacute constanshy
te oferta de pontos de vista Enxergar efetivamente mais sem recusaacute-lo
implica discutir os termos desse olhar observar com ele o mundo mas
colocaacute-lo tambeacutem em foco recusando a condiccedilatildeo de total identificaccedilatildeo
com o aparato Enxergar mais eacute estar atento ao visiacutevel e tambeacutem ao que
fora do campo torna visiacutevel
56 57
analiacutetico da Imagem retomam muito do repertoacuterio da vanguarda dos anos
20 inserindo a caracterizaccedilatildeo do olhar do cinema numa reflexatildeo mais amshy
pIa sobre teacutecnica e cultura Nessa reflexatildeo a moldura eacute outra mas prevalece
o mesmo movimento de ressaltar o papel subversivo revelado r da fotoshy
grafia e do cinema dentro da cultura europeacuteia A promessa entatildeo se reafirshy
ma sem as premissas de eXflressividade total e de retorno agrave natureza
Com Benjamin ela aSSume um contorno histoacuterico mais bem demarcado eacute
por um persamento mais sensiacutevel agrave contradiccedilatildeo e ao caraacuteter das
forccedilas sociais em conflito Pensamento que nos trouxe uma avaliaccedilatildeo da
questatildeo da arte dentro de uma articulaccedilatildeo mais luacutecida com a conjuntura
poliacutetica e a proacutepria natureza das apostas em na Europa dos anos 30
polarizada por uma confrontaccedilatildeo decisiva entre revoluccedilatildeo e reaccedilatildeo
A CRiacuteTICA DO OLHAR SEM CORPO
No seu elogio ao aspecto revelador do olhar no cinema o pensamento
dos anos 20 colocou o debate em termos de verdade (cinema) emendra
(tradiccedilatildeo cultural) e deu toda ecircnfase agrave cumplicidade entre cinema e natushy
reza solidaacuterios enquanto um organismo e sua expressatildeo visual prontos a
expulsar a simulaccedilatildeo desde que a nova teacutecnica fosse salva de su~ adultera-
promovida pelo universo da mercadoria Por esse a oposishyentre um cinema desejado objeto do recalque e aquele que
realmente impera (a pedagogia da induacutestria orienta-se por uma teleoIOPla o presente eacute o mOmelItO dos entraves que impedem o desenshy
volvimento na direccedilatildeo COrreta eacuteapaz de realizar as promessas da nova
teacutecnica o futuro eacute o preenchimen~o dessas promessas que desde jaacute as vanshy
guardas anunciam e preparam Entre 1920 e J960 os poderes reais inshy
sistiram em repor o mesno cinema dominante o que trouxe em linhas
a reiteraccedilatildeo da mesnla matriz de contestaccedilatildeo O conflito dominanshy
tedominado traduzido em termos de verdade e refez-se ao
longo de eixos diversos Quando prevaleceu um eixo poliacutetico o poacutelo da
verdade (futuro) identificou-se agrave cultura revolucionaacuteria o da mentira
presentet agraves mistificaccedilotildees da reaccedilatildeo Quando prevaleceu um eixo esteacutetishy
co verdade foi poesia originalidade experimentaccedilatildeo mentira foi a rotishy
na do comeacutercio o kitscll industrializado
Natildeo cabe agora a recapitulaccedilatildeo do que foram as diferentes versotildees
desse conflito vanguardacultura de massa em cada e eacutepoca Natildeo o
poderia fazer nem quero pois meu objetivo eacute saltar dessa primeira refleshy
xatildeo dos anos 20 para uma mais proacutexima de gerada no contexto franshy
cecircs poacutes-68 reflexatildeo que abandonou a tradiccedilatildeo de opor verdade e mentishy
ra deslocando a discussatildeo sobre a teacutecnica do cinema
No grande intervalo que a criacutetica avanccedilou na caracterizashy
ccedilatildeo do olhar sem corpo e suas implicaccedilotildees notadamente na avaliaccedilatildeo de
sua estrutura mais comunicativa e sedutora o cinema olhar da
induacutestria da ideologia dominante nos meios Extensatildeo do qlle
chamei olhar melodramaacutetico o cinema claacutessico eacute sua modernizaccedilatildeo Faz
com que ele abandone os excessos maiores do ganhe em
profundidade dramaacutetica amplitude temaacutetica concretizando o ver mais e
melhor do cinema na direccedilatildeo de um ilusionismo mais completo - o cineshy
ma claacutessico eacute o olhar sem corpo atuando em sentido
caracterizaccedilatildeo dos seus poderes apresentada em minha primeira
que de fato ajusta-se mais precisamente a esse estilo particular dOJTIinanshy
te no mercado e natildeo a todo o cinema possiacutevel Eacute nele mais do que em
qualquer outra proposta que vemos realizado o de intensificar ao
extremo nossa relaccedilatildeo com o mundo-objeto fazer tal mundo parecer autocircshy
nomo existente em seu proacuteprio direito natildeo encorajando perguntas na
direccedilatildeo do proacuteprio olhar mediador sua estrutura e comportamento Soshy
mos aiacute convidados a tomar o olhar sem corpo como dado natural
Entre a Segunda Guerra Mundial e os anos 60 dois grandes
de reflexatildeo conduziram a criacutetica a essa naturalidade postulada pelo cineshy
ma claacutessico a teoria radical do cinema-discurso baseado nas operaccedilotildees da
montagem (o Eisenstein dos anos 20-30 permaneceu aqui a referecircncia
central) e a criacutetica francesa inspirada na fenomenologia tendo como [oco
maior Andreacute Bazin3
3 Cf Bazin Cinema ensaios trad Eloisa Ribeiro (Satildeo Paulo Brasilicnse 1991)
44 45
Falar de Eisenstein exigiria uma abordagem radicalmente distinta da
que faccedilo agora pois sua criacutetica ao ilusionismo COmeccedila com a advertecircncia
de que a imagem cinematograacutefica natildeo deve ser lida c0f110 produto de um
olhar Para ele a suposiccedilatildeo de que houve um encontro uma contiguumlidade
espacial e temporal entre cacircmera e objeto natildeo eacute O dado central e impresshy
cindiacutevel da leitura da imagem Sua presenccedila na tela eacute um fato de natureza
que deve ser observado em seu valor simboacutelico
caracteriacutesticas de sua composiccedilatildeo e sua no Contexto de um discurshy
so que eacute exposiccedilatildeo de ideacuteias natildeo sucessatildeo natural de fatos captados
pelo olhar A diferenccedila entre um plano geral e um cose-up por
muitas vezes natildeo pode ser entendida como olhar versus
olhar de mesmo quando se focaliza o mesmo ODjeto mas como
confronto de duas imagens de valores distintos A diferenccedila eacute de
natildeo de posiccedilatildeo no espaccedilo pois pode natildeo haver COntinuidade e
homogeneidade espacial para que se possa falar num mais perto
- tudo depende do contexto do discurso por imagens
Ao contraacuterio de Eisenstein os criacuteticos inspirados na fenomenologia
endossam e defendem a premissa de que no cinema toda imagem eacute proshy
duto de um olhar - eacute essencial que ela seja vista como tal- e a sucessatildeo
define sempre a atitude do observador diante de um mundo homogecircneo
Agrave imagem-signo de Eisenstein eles opotildeem a imagem-acontecimento agrave
defesa da descontinuidade proacutepria do cineasta russo respondem Com
uma defesa ateacute mais radical do princiacutepio de continuidade jaacute presente na
narraccedilatildeo claacutessica fazendo a ela um reparo fundamental se a imagem em
movimento nos traz a percepccedilatildeo privilegiada do homem como ser lanccedilashy
do no mundo como ser-em-situaccedilatildeo a falsidade do cinema claacutessico estaacute
na manipulaccedilatildeo impliacutecita em sua montagem o olhar sem corpo e a
onividecircncia criam na tela uni mundo abstrato de sentido fechado preshy
julgado e organizado pelo cin~ina Toda montagem eacute discurso manipulashy
ccedilatildeo de Eisenstein de GrUacutefith ou de Bufiacuteuel Em oposiccedilatildeo um criacutetishy
co como Bazin solicita um olhar cinematograacutefico mais afinado ao olho de
um sujeito circunstanciado que p6ssui limites aceita a abertura do
mundo convive com ambiguumlidades Quando pede realismo ele natildeo se
46
deteacutem em consideraccedilotildees de conteuacutedo (o tipo de universo Ciccional ou doshy
cumentaacuterio) Sublinha a postura do olhar em sua interaccedilatildeo com o mundo
tanto mais legiacutetima quanto mais as condiccedilotildees de nosso olhar
ancorado no corpo vivenciando uma duraccedilatildeo e uma circunstacircncia em sua
continuidade trabalhando as incertezas de uma percepccedilatildeo
ultrapassada mundo Daiacute sua minimizaccedilatildeo da montagem (instacircncia
construtora da onividecircncia) sua defesa do plano-seguumlecircncia (olhar uacutenico
sem cortes observando uma em seu um acontecimento
em seu fluir
Numa visatildeo mais atual prestamos atenccedilatildeo especial ao que aproxima
e natildeo apenas ao que afasta o cinema-discurso de Eisenstein e o realismo
existencial de Bazin haacute em ambos novamente a atribuiccedilatildeo de um poder
de verdade e de um poder de mentira encarnados em determinados estishy
los Para Eisenstein haacute um estilo capaz de dizer o mundo social-histoacuterishy
co colocando o cinema como potecircncia maior no plano do conhecimento
Para Bazin O cinema eacute uma espeacutecie de terceiro estado da e exisshy
te um estilo autecircntico na captaccedilatildeo da vivecircncia humana em sua
essencial abertura no tempo
Contra esse pano de fundo da tradiccedilatildeo teoacuterica a intervenccedilatildeo de
]ean-Louis Baudry em 1969-70 em questatildeo a constante promessa de
um estilo mais verdadeiro e dirige seu ataque agraves premissas do cinema em
geral examinando mais a fundo as condiccedilotildees do espectador raciociacuteshy
nio estaacute municiado para analisar o espectador do filme claacutessico mas
fala em cinema tout couTe) 4 O horizonte de seu exame eacute ressaltar o
modo pelo qual a recepccedilatildeo da imagem possui uma estrutura que a seu ver
solapa o reiterado creacutedito - de Eisenstein Griffith Epstein na
da verdade como destinaccedilatildeo fundamental do cinema Ele invershy
te a tradiccedilatildeo e vecirc na simulaccedilatildeo na de efeitos (ilusoacuterios) de
conhecimento o destino maior da nova arte (visatildeo que
4 O mais importante dos textos de Jean-Louis dessa
1970 Os efeitos ideoloacutegicos do de base estaacute publicado em Ismail
Xavier (orll) A experiecircncia do cinema (Rio de Janeiro
47
pela permanecircncia do ilusionismo do cinema industrial) Isso se daacute por
forccedila da proacutepria natureza da teacutecnica cinematograacutefica herdeira das ilusotildees _
da perspectiva da persistecircncia retiniana (natildeo vemos os fotogramas vemos
o que natildeo ocorre na tela ou seja o movimento da imagem e temos a imshy
pressatildeo de continuidade) da falsa autenticidade documental da fotografia
Rearticulando elementos jaacute conhecidos Baudry nos traz uma interpretashy
ccedilatildeo radical que- questiona natildeo estilos particulares de fazer cinema mas o
fundamento mesmo de sua objetividade como teacutecnica essa mes~a objetishy
vidade que tem sido a sustentaccedilatildeo maior das esperanccedilas de verdade Na
nova perspectiva as diferentes posiccedilotildees teoacutericas desde 1920 definem um
pensar o cinema a priori capturado pelas ilusotildees da teacutecnica e desatento agraves
implicaccedilotildees contidas na proacutepria estrutura do olhar da cacircmera tal como se
daacute para noacutes na plateacuteia A teacutecnica tem suas inclinaccedilotildees seus efeitos ideoloacuteshy
gicos e nesse sentido eacute ela mesma que impele o cinema industrial a desenshy
volver seu ilusionismo e trazer o espectador para dentro do mundo ficcioshy
na A forccedila de encantamento desse cinema persiste na histoacuteria porque o
dado crucial em jogo natildeo eacute tanto a imitaccedilatildeo do real na tela _ a reproduccedilatildeo
integral das aparecircncias - mas a simulaccedilatildeo de um certo tipo de sujeito-doshy
olhar pelas operaccedilotildees do aparato cinematograacutefico
Avaliar a potecircncia do olhar sem corpo natildeo eacute entatildeo inventariar as
imagens que ele oferece efocaIacuteIacutezar o seu movimento proacuteprio sua forma
de mediaccedilatildeo o que impiacuteica analisar sua incidecircncia no espectador que
vivenda o poder de clarividecircncia a percepccedilatildeo tota Na sala escura idenshy
tificado com o movimento do olhar da cacircmera eu me represento como
sujeito dessa percepccedilatildeo total capaz de doar sentido agraves coisas sobrevoar as
aparecircncias fazer a siacutentese do mundo Minha emoccedilatildeo estaacute com os fatos
que o olhar segue mas a cbndiccedilatildeo desse envolvimento eacute eu me colocar no
lugar do aparato sintoniz~do com suas operaccedilotildees Com isso incorporo
(ilusoriamente) seus poder~s e ericontro nessa sintonia - solo do entendishy
mento cinematograacutefico - o maior cenaacuterio de simulaccedilatildeo de uma onipotecircnshy
cia imaginaacuteria No cinema faccedilo uma viagem que confirma minha condishy
ccedilatildeo de sujeito tal como a desejo Maacutequina de efeitos a realizaccedilatildeo maior do
cinema seria entatildeo esse efeito-sujeito a simulaccedilatildeo de uma consciecircncia
48
transcendente que descortina o mundo e se vecirc no centro das coisas ao
mesmo tempo que radicalmente separada delas a observar o mundo coshy
mo puro olhar Nessa apropriaccedilatildeo ilusoacuteria da competecircncia ideal do olhar
estou portanto no centro mas eacute o aparato que aiacute me coloca pois eacute dele o
movimento da percepccedilatildeo monitor da minha fantasia
Para Baudry uma filosofia idealista que postula um sujeito transshy
cendente em oposiccedilatildeo ao mundo objetivo que se dispotildee ao conhecimento
encontra aiacute na teacutecnica do cinema sua traduccedilatildeo visiacutevel Toda sua ecircnfase
recai sobre a produccedilatildeo simultacircnea da imagem e do sujeito-observador
onividente A engenharia simuladora do cinema define com o efeitoshy
sujeito seu teatro da percepccedilatildeo total cujo protagonista sou eu-espectador
identificado com o olhar da cacircmera
N esses termos o que dificulta a consolidaccedilatildeo de linguagens alternashy
tivas mais verdadeiras eacute esse pecado original inscrito na teacutecnica Esta
tem na ilusatildeo seu sustentaacuteculo e os percalccedilos das vanguardas devem-se a
que sua aposta eacute reverter a funccedilatildeo daquilo que jaacute nasceu para cumprir
outro destino Digo destino porque a loacutegica dessa teoria transforma o cineshy
ma num oacutergatildeo que surgiu para cumprir um programa o de objetivar na
esfera do visiacutevel estrateacutegias de dominaccedilatildeo especialmente as da classe burshy
guesa que presidiu sua origem Assim antes de instacircncia liberadora subshy
versiva a condiccedilatildeo do cinema eacute preencher uma demanda do proacuteprio unishy
verso carceraacuterio tornando-o mais preciso e poderoso em seu aparato
Haacute uma atmosfera de desencanto instalada a partir dos anos 70 a
formulaccedilatildeo aqui exposta eacute a traduccedilatildeo teacuteoacuterica radical dos impasses da conshy
testaccedilatildeo no cinema Temos o esgotamento de uma teleologia a da teacutecnishy
ca redentora entravada pela poliacutetica e a economia e sua substituiccedilatildeo
por u~a outra a da teacutecnica como instrumento maior de reposiccedilatildeo de um
sistema de poder Em consonacircncia corn a tonalidade da reflexatildeo sobre a
linguagem a cultura e a ideologia naquele momento a teoria do cinema
mais original e polecircmica ressalta o lado sistemaacutetico inelutaacutevel das ilusotildees
e dos enganos do olhar da cacircmera Nesse contexto a proacutepria praacutetica do
cinema amplia o espaccedilo para a reflexatildeo teoacuterica voltada para a questatildeo do
simulacro - a citaccedilatildeo a imagem que-alude agrave imagem o circuito das refeshy
49
recircncias a si mesmo que o cinema leva ao paroxismo entram para valer na
esfera da induacutestria constituem sua nova marca Tal reflexatildeo se faz dentro
de molduras conceituais diversas e num processo em que a teoria do
cinema reflete o andamento dos debates mais abrangentes sobre a cultura
contemporacircnea A imagem cinematograacutefica eacute entatildeo obseJvada a partir de
sua participaccedilatildeo em outra rede de relaccedilotildees em que natildeo haacute para a
interpretaccedilatildeo (esse tomar a imagem como representaccedilatildeo de algo exterior
a ela) para o juiacutezo da verdade ou mentira em que se a oposlccedilao
aparecircncia (imagem)essecircncia (substacircncia) -nada haacute por traacutes das lmlti~e~ns
elas valem como efeitos-de-superfiacutecie imagem remetendo a imagem fluxo de simulacros
Faccedilo agora uma incursatildeo que natildeo eacute propriamente no terreno da
nova filosofia e das questotildees mais amplas do simulacro na produccedilatildeo
Trata-se de uma anaacutelise particular no niacutevel da engenharia da simulaccedilatildeo
caracterizaccedilatildeo de um efeito na qual natildeo eacute necessaacuterio assumir as noccedilotildees
com a mesma ressonacircncia elas adquiriram na literatura dos anos 80
Fecho a exposiccedilatildeo com a consideraccedilatildeo de um novo exeacutemplo que acredishy
to esclareccedila algumas observaccedilotildees feitas ateacute aqui sobre a interaccedilatildeo entre
espectador e imagem sobre o papel da moldura do sujeito na leitura
Parti de um primeiro exemplo mais simples para explicar como o
efeito de uma depende de sua ~elaccedilatildeo com o sujeito em determishy
nadas condiccedilotildees Da situaccedilatildeo da testemunha de McCarthy passei a uma
caracterizaccedilatildeo mais detida do olhar do cinema e examinei dois momenshy
tos opostos dentro do conflito de perspectivas que marcou a reflexatildeo criacuteshy
tica em torno do que hiacute de erigano e rcvelaccedilatildeo nesse olhar A partir de
uma discussatildeo mais sobre a simulaccedilatildeo do fato - na fotografia no
cinema chegamos a uma questatildeo mais especiacutefica a simulaccedilatildeo do sujeishy
to na estrutura mesma (lo olhar cinematograacutefico Dentro da discussatildeo
mais geral o exemplo a envolve uma situaccedilatildeo mais complicada do
quea das fotos do tribunal estaremos no cinema Como inspiraccedilatildeo
terei presentes as liccedilotildees de Baildry sem no entanto incorporar o movishy
mento totalizador de suaacute criacutetica ao olhar do cinema Seu amplo diagnoacutesshy
tico mobilizando a psicaacutenaacutelise tem como pressuposto o fato de sabershy
0
mos o bastante sobre a natureza do espectador de modo a prever o caraacuteshy
tcr de sua identificaccedilatildeo com o aparato a qual assume uma dimensatildeo
uacutenica de adesatildeo agrave imagem por forccedila do efeito-sujeito Como conhecedoshy
res do desejo do espectador denunciamos o conluio desse desejo com o
programa da induacutestria e deduzimos daiacute as alienaccedilotildees do cinema e da
teacuteia Natildeo tenho condiccedilotildees de endossar a generalidade desse saber a resshy
peito do espectador o aparato atua em determinada direccedilatildeo mas a expeshy
riecircncia do cinema inclui outras forccedilas e condiccedilotildees que natildeo se ajustam ao
programa do sistema A formulaccedilatildeo dc Baudry embora inclua com toda
a forccedila a dimensatildeo do desejo do espectador natildeo deixa de ser outra vershy
satildeo das teorias da manipulaccedilatildeo global centradas em excesso no aspecto
da experiecircncia de modo a confundir o processo que efetishy
vamente ocorre com a loacutegica ideal do sistema Focalizo uma situaccedilatildeo
didaacutetica nesse contcxto em que eacute perfeito o funcionamcnto do
aparato cm quc podemos verificar o mecanismo da simulaccedilatildeo em estashy
do digamos de laboratoacuterio
IVIULALAU E PONTO OE VISTA
Toda leitura de eacute pr()(llltatildeo de um ponto de vista o do sujeito
observador natildeo o da objetividade (b irnagetnA condiccedilatildeo dos efeitos
da imagem eacute essa Em particular o ekilO rb apoacuteia-se numa
construccedilatildeo que inclui o fmguh do obSlrVIr1or O simulacro parece o
que natildeo eacute a partir de um pOIHo ele vista () sujeito estaacute aiacute pressuposto Porshy
tanto o processo elc simulaccedilatildeo nlo l o (Li imagemem si mas o da sua
relaccedilatildeo com o sujeito Num (gt1lt1110 elemelltar podemos tomar o cinema
como modelo do processo O (llIC eacute a fjltnilgcm senatildeo a organizaccedilatildeo do
I 1 I - C f dacontecllnento pra 11111 angu () (C o lscrvaccedilao o que se con un e com
Nessas asserccedilotildees no de Xavier Audouard Le Simulacrc in
eacutepisteacutemologie de lEcole Normale gtuucushy
rc n mai-jun 1966) O horizonte de Audouard eacute o de uma discussatildeo sobre o
idealismo platocircnico seu terreno eacute ponanto distinto e meu natildeo
ca uma identificaccedilatildeo agrave sua perspectiva de anaacutelise
i J
o da cacircmera e nenhum outro mais) O que eacute a fachada de preacutedio de estuacuteshy
dio senatildeo a duplicaccedilatildeo do mesmo princiacutepio da fachada de rua que sushy
gere o que natildeo eacute justamente quando observada de um certo acircngulo e disshy
tacircncia jaacute pressupostos em sua composiccedilatildeo O que eacute a ficccedilatildeo do cinema
senatildeo uma simulaccedilatildeo de mundo para o espectador identificado com o aparato
Vertigo (Um corpo que cai) O filme de Hitchcock realizado
em 1958 Ele eacute a trama da simulaccedilatildeo por excelecircncia como jaacute foi observashy
do pela criacutetica Trago um aspecto novo agrave consideraccedilatildeo o do espelhamenshy
to que existe entre o estratagema que envolve as personagens do drama e
o proacuteprio princiacutepio da narraccedilatildeo do filme Tal como em outras obras de
Hitchcltck o cinepa c1aacutessi~o aqui operagrave com eficiecircncia maacutexima e ao
mesmo tempo oferece a metaacutefora viva para o seu proacuteprio processo Inteshy
ressado nessa metaacutefora acentuo nesta anaacutelise a mecacircnica da simulaccedilacirco o
funcionamento exterior do aparato natildeo o que nas personagens eacute desejo
do estratagema e disposiccedilatildeo para a vertigem da imagem
Sigamos passo a passo a narrativa ateacute o ponto que interessa
Vertigem tiacutetulo original eacute a palavra que condensa as ideacuteias-forccedila
do filme em sua tematiacutezaccedilatildeo do olhar e do ponto de vista A apresentaccedilatildeo
de Vertigo criaccedilatildeo de Saul nos traz a imagem do rosto feminino em
close-up tratado como maacutescara enigmaacutetica imoacutevel Uma aproximaccedilatildeo
maior e um passeio da cacircmcra examinam essa maacutescara em seus detalhes
ateacute que isolado o olho ofereccedila os sinais de vida Os seus movimentos no
entanto natildeo criam uma ~xpressatildeo definida uma intcncionalidade do olhar
Preparam apenas o cenaacuterio ptra um movimentoem espiral na profundishy
dade Mergulho na inteacuteiioridaacutedc cujo fundo inatingiacutevel estaacute sempre em
recesso Aproximaccedilatildeo e recuo atraccedilatildeo e fuga a ambiguumlidade do movishy
mento da espiral ~ experiecircncia matriz de todo o filme cujo eixo eacute o
percurso de profissional do olhar detetive personificaccedilatildeo da
vertigem Logo na primeira sequumlecircncia define-se a questatildeo desse protagoshy
nista numa perseguiccedilatildeo telhados de Satildeo Francisco a vertigem de Scottie o faz responsaacuteveacutel pela morte de um
tentar ajudaacute-lo Sentimeriacuteto de cu1Da aposentadoria
52
lecida a disponibilidade total de a situaccedilatildeo-chave de Vertigo deseshy
nha-se quando ele atende ao chamado de Elster de escola que
no reencontro surpreende-o com o pedido para que sua mulher
Madeleine Elster mostra-se apreensivo com as manifestaccedilotildees de ausecircnshy
cia que ela apresenta com os periacuteodos de comportamento estranho em
que ela parece ser outra pessoa de que retoma sem lembranccedilas
O ex-detetive ensaia um ceticismo apenas aparente e dobra-se ao enigma
proposto Passa a acompanhar os trajetos de Madeleine pesquisa pela
recolhe dados essenciais Um primeiro quadro se compotildee a
ra que dela se apossa em seus transes eacute Cadota Valdez mulher que viveu
em San Francisco no seacuteculo XIX e que se suicidou em circunstacircncias meshy
lancoacutelicas Novamente com Elster Scottie relata as descobertas O marishy
do introduz novo dado Madeleine estaacute em perigo de vida pois descende
de Carlota outras mulheres da linhagem cometeram suiciacutedio e ela tem
agora a idade de Carlota ao morrer
Na primeiraacute seacuterie de passeios de Madeleine fase em que se compotildec
o quadro tivemos uma ostensiva duplicaccedilatildeo num primeiro plano Scortie
observa MadeJeine que natildeo reconhece sua presenccedila (ele estaacute fora do tershy
ritoacuterio dela) e se potildee disponiacutevel ao olhar movimentando-se como numa
cena num segundo plano ao longo do mesmo eixo a cacircmera observa
Scottie que Madeleine Satildeo duas uma dentro da outra que
natildeo se tocam Ela el)quadrada pelo ponto de vista dele ambos enquadra~
dos por noacutes no lugar da cacircmera Madeleine nunca devolve o olhar a Scotshy
tie devolve o olhar agrave cacircmera (regra do filme claacutessico) Mas eacute
ambiacutegua essa passividade pois eacute o movimento dela que dirige o olhar
dele eacute a accedilatildeo de ambos que dirige o nosso olhar sempre na esteira do
acircngulo de de Scottie com quem partilhamos a ignoracircncia a
curiosidade a descoberta
Apoacutes a segunda conversa com Elster o tema do suiciacutedio engendra
uma ruptura nesse esquema de perfeita simetria MadeleineCarlota
atira-se nas aacuteguas da baiacutea de San Francisco Scottie a resgata Permaneceshy
mos puro olhar ele passa ao plano da intervenccedilatildeo e do diaacutelogo Com os
dois juntos certa concretude o que em Scottie eacute jaacute sonho romacircnshy
53
tico tonalidade de experiecircncia ironicamente mimetizada pela textura do
filme projetada nos espaccedilos no som configurando um desfile de clichecircs
do melodrama Encarnando a figura hiacutebrida de e
terapeuta Scottie permeia cada encontro de inquIacutefIacuteAtildeM
sar o imaginaacuterio de MadeleineCarlota decifrar a
lt catarse reveladora curar a mulher por quem estaacute
coloca adiante dele na investigaccedilatildeo
A nova ruptura vem quando Scottie conduz Madeleine a uma Misshy
satildeo Catoacutelica perto de Satildeo Francisco procurando explorar um sonho dela
que ele julga revelador sinal de que a soluccedilatildeo do enigma estaacute e
com esta a salvaccedilatildeo superada a pulsatildeo de morte que a domina Laacute cheshy
gando tudo se precipita auando Madeleine abandona suas recaDitulacotildees e insiste em caminhar sozinha em agrave
de Scottie que natildeo consegue enfim retecirc-la e perceDe em pamco a torre
alta do sino A montagem alternada nos traz a pressa de Madeleine ao se
e agrave torre seguida de Scottie que como suspeitamos
da escada retido pela vertigem - e somos retidos
com ele Ouve-se o grito Por uma das aberturas da torre vislumbra-se o corpo que cai
O ex-detetive vive a reiteraccedilatildeo da a humilhaccedilatildeo puacuteblica de um
psicologicamente massacrado Elsshy
natildeo sem antes tambeacutem absolvecirc-lo Scottie entra em colapso eacute internado Quando retoma agraves ruas de San Francisco
destila sua no passado volta aos mesmos lugares quer encontrar
em cada mulher a figura perdida movido por qualquer semelhanccedila Um
dia depara com Judy (Kim Noacutevak novamente) diferente nas maneiras
no em termos de classe Em tudo o mais a reacuteplica de
Madeleine Ele a segue bate agrave porta do seu quarto de hotel explica seus
motivos convida-a para jantar Ela desconfia daacute provas de sua identidade
(sou Judy natildeo o conheccedilo) tenta a rejeiccedilatildeo mas finalmente aceita Satisfeishy
to ele diz a hora do encontro e retira-se Pela primeira vez em todo o filme
natildeo o acompanhamos nos separamos de seu ponto de vista De repente
natildeo eacute mais dele a moldura que define os contornos do nosso olhar Retishy
54
dos no quarto ficamos ao lado de
sem delongas que natildeo espera o final
Sozinha no quarto hesitante nervosa
assume o risco do reencontro com nova identidade JUdyI Madeleme reshy
a trama urdida por Elster Para livrar-se de sua mulher ele COl1shy
para simular Madeleine Ou seja assumir essa identidade
para aIguem colocado no ponto de vista de Scottie Elster sabia dos proshy
blemas do detetive aposentado e engendrou o esquema do crime que fez
de Scottie a testemunha ideal pois era esperado que nunca ao
topo para ver Madeleine ser atirada por ele Elster quando Judy com o
mesmo traje e aparecircncia chegasse certamente sozinha ao alto da torre
Pensando ser sujeito ativo na cura de MadeleineCarlota Scottie tentou
resgataacute-la e apaixonou-se por um simulacro por uma imagem constmiacuteda
para seu ponto de vista O dispositivo montado estava todo apoiado nas
posiccedilotildees reciacuteprocas de observador e imagem dueto que deu corpo agrave ficshy
ccedilatildeo consagrada a posteriori pela sistemaacutetica do tribunal (num estratagema
bem mais complexo Judy Madeleine ocupa o lugar da falsa evidecircncia
apresentada agrave testemunha no meu primeiro exemplo) O diagnoacutestico do
suiciacutedio que absolve Scottie eacute a consumaccedilatildeo do crime perfeito A posiccedilatildeo
de Elster - aquele que sabe - corresponde agrave posiccedilatildeo do dispositivo narrashy
dor da histoacuteria no cinema claacutessico (ele permanece agrave sombra e orquestra as
imagens) Portanto no enredo que coloca em cena Vertigo espelha ()
prio mecanismo desse cinema que via de regra constroacutei-se segundo a
loacutegica do crime define o meu ponto de vista daacute corpo ao simushy
lacro eacute monitor de meu desejo tal como o dispositivo Elster-Judy-Madeshy
leine-Carlota em a Scottic
O filme de Hitchcock vai natildeo se reduz agrave exposiccedilatildeo desse
mecanismo Este se encontra inserido num tecido de ~elaccedilotildees que envolshy
vem natildeo soacute a identidade e o desejo de Scottie mas tambeacutem a identidade
e o de (a natildeo foi apenas para ele a
Urna leimra mais completa de Vertigo exishy
~rlprriiacute() detalhada do movimento derradeiro da trama Reshy
para o estratagema do as permanecem na
55
esfera das duas personagens agora entregues agrave resoluccedilatildeo de todo o disposhy
sitivo de identidadesimulaccedilatildeovertigem6 Permanecendo poreacutem nas
consideraccedilotildees sobre o aparato do olhar que eacute meu objetivo central aqui
afasto-me do filme natildeo sem antes fazer breve referecircncia ao que na parte
final de Vertigo devolve-nos agrave questatildeo da leitura da imagem no cinema
No reencontro das personagens Scottie impelido por sua fixaccedilatildeo
na imagem do passado in~iste em fazer de Judy nos miacutenimos detalhes a
reacuteplica fiel de Madeleine Ao observar sua metamorfose redefinimos
nossa relaccedilatildeo com a cena antiga a imagem de Kim Novak era Judy que
era Madeleine agraves vezes Carlota Judy possuiacuteda por Madeleine (a possesshy
satildeo transferecircncia se refaz agora) Madeleine (Judy) falando de sentimenshy
tos que eram de Judy (Madeleine) numa duplicaccedilatildeo de palavras expresshy
sotildees gestos que natildeo permite definir os contornos que separam uma da
outra essas quatro presenccedilas Refiro-me a Kim N ovak porque todo o
estratagema do filme conta com os falsetes fragilidades de seu desempeshy
nho para o bom efeito A construccedilatildeo das identidades em abismo embarashy
Iha a enunciaccedilatildeo dos gestos como dizer quem expressa o quecirc quando a
accedilatildeo dramaacutetica requer um fingir fingimento num processo em cascata
Vertigo ilustra nesse aspecto o quanto a leitura do rosto estaacute atrelada agrave
moldura que possuo e natildeo agrave exclusiva expressividade da imagem Tudo
nas palavras e gestos de Judy Madeleine ganha um sentido novo a partir
de cada deslocamento do ponto de vista O que natildeo significa apenas uma
questatildeo de espaccedilo e informaccedilatildeo mas inclui de modo decisivo uma disshy
posiccedilatildeo particular do observador que completa a accedilatildeo invisiacutevel do aparashy
to (no caso para a consumaccedilatildeo dos efeitos desejados era preciso que o
espectador da cena fosse Scottie com seu perfil e seu passado)
6 Para uma leitura de Vertigo que trabalha o dispositivo identidade simulashy
ccedilatildeovertigem e em particular sua resoluccedilatildeo traacutegica ao final do filme ver Robin
Wood Hitchcocks Films (Nova York Castle Books 1969) no qual a moldura eacute a
psicanaacutelise e Nelson Brissac Peixoto Cenaacuterio em ruiacutenas (Satildeo Paulo Brasiliense
1987) cujo texto pressupotildee uma reflexatildeo sobre o mundo dos efeitos-de-superficie o vazio a dissoluccedilatildeo da origem o simulacrQ
Tomei Vertigo como um laboratoacuterio no qual sob controle exibe-se
uma engenharia da simulaccedilatildeo aqrelaacionada pelo olhar do filme claacutessishy
co a qual alia a forccedila de seduccedilatildeo da cena agrave invisibilidade do aparato Para
finalizar gostaria de ir aleacutem dessa referecircncia mais imediata ao aparato do
cinema claacutessico pois a anaacutelise aqui feita permite uma inversatildeo nos mecashy
nismos destacados por discursos sobre o poder que mobilizam a metaacutefoshy
ra da sociedade como universo carceraacuterio e se desdobram em imagens
do aprisionamento pelo olhar Diante dos aparatos de comunicaccedilatildeo que
nos cercam eacute comum a caracterizaccedilatildeo de uma competecircncia de controle
de ordenamento cristalizada no olhar vigilante onipresente que se volta
o tempo todo para noacutes Considerando as tecnologias do olhar podemos
entretanto destacar um processo ordenador menos ostensivo que envolve
a accedilatildeo de um olhar que em vez de estar voltado para mim olha por rrtim
oferece-me pontos de vista coloca-se entre mim e o mundo (lembremos
a ironia de Vertigo Scottie eacute o olhar vigilante profissional mas o processhy
so de controle atua em sentido inverso - eacute o dispositivo que define seu
ponto de vista) Cercado de imagens vejo-me inscrito pela media numa
segunda natureza num processo que implica um cotejo de pontos de vista
muito peculiar que me afasta por exemplo do enfrentamento proacuteprio da
relaccedilatildeo pessoal intersubjetiva Esta se constitui pela devoluccedilatildeo do olhar
e nela repercute o que nos diz o poeta Antonio Machado o olho que vejo
eacute olho porque me vecirc natildeo porque o vejo Diante do aparato construtor de
imagens minha interaccedilatildeo eacute de outra ordem envolve um olho que natildeo
vejo e natildeo me vecirc que eacute olho porque substitui o meu porque me conduz
de bom grado ao seu lugar para eu enxe~gar mais ou talvez menos
Dado inagravelienaacutevel de minha experiecircncia o olhar fabricado eacute constanshy
te oferta de pontos de vista Enxergar efetivamente mais sem recusaacute-lo
implica discutir os termos desse olhar observar com ele o mundo mas
colocaacute-lo tambeacutem em foco recusando a condiccedilatildeo de total identificaccedilatildeo
com o aparato Enxergar mais eacute estar atento ao visiacutevel e tambeacutem ao que
fora do campo torna visiacutevel
56 57
Falar de Eisenstein exigiria uma abordagem radicalmente distinta da
que faccedilo agora pois sua criacutetica ao ilusionismo COmeccedila com a advertecircncia
de que a imagem cinematograacutefica natildeo deve ser lida c0f110 produto de um
olhar Para ele a suposiccedilatildeo de que houve um encontro uma contiguumlidade
espacial e temporal entre cacircmera e objeto natildeo eacute O dado central e impresshy
cindiacutevel da leitura da imagem Sua presenccedila na tela eacute um fato de natureza
que deve ser observado em seu valor simboacutelico
caracteriacutesticas de sua composiccedilatildeo e sua no Contexto de um discurshy
so que eacute exposiccedilatildeo de ideacuteias natildeo sucessatildeo natural de fatos captados
pelo olhar A diferenccedila entre um plano geral e um cose-up por
muitas vezes natildeo pode ser entendida como olhar versus
olhar de mesmo quando se focaliza o mesmo ODjeto mas como
confronto de duas imagens de valores distintos A diferenccedila eacute de
natildeo de posiccedilatildeo no espaccedilo pois pode natildeo haver COntinuidade e
homogeneidade espacial para que se possa falar num mais perto
- tudo depende do contexto do discurso por imagens
Ao contraacuterio de Eisenstein os criacuteticos inspirados na fenomenologia
endossam e defendem a premissa de que no cinema toda imagem eacute proshy
duto de um olhar - eacute essencial que ela seja vista como tal- e a sucessatildeo
define sempre a atitude do observador diante de um mundo homogecircneo
Agrave imagem-signo de Eisenstein eles opotildeem a imagem-acontecimento agrave
defesa da descontinuidade proacutepria do cineasta russo respondem Com
uma defesa ateacute mais radical do princiacutepio de continuidade jaacute presente na
narraccedilatildeo claacutessica fazendo a ela um reparo fundamental se a imagem em
movimento nos traz a percepccedilatildeo privilegiada do homem como ser lanccedilashy
do no mundo como ser-em-situaccedilatildeo a falsidade do cinema claacutessico estaacute
na manipulaccedilatildeo impliacutecita em sua montagem o olhar sem corpo e a
onividecircncia criam na tela uni mundo abstrato de sentido fechado preshy
julgado e organizado pelo cin~ina Toda montagem eacute discurso manipulashy
ccedilatildeo de Eisenstein de GrUacutefith ou de Bufiacuteuel Em oposiccedilatildeo um criacutetishy
co como Bazin solicita um olhar cinematograacutefico mais afinado ao olho de
um sujeito circunstanciado que p6ssui limites aceita a abertura do
mundo convive com ambiguumlidades Quando pede realismo ele natildeo se
46
deteacutem em consideraccedilotildees de conteuacutedo (o tipo de universo Ciccional ou doshy
cumentaacuterio) Sublinha a postura do olhar em sua interaccedilatildeo com o mundo
tanto mais legiacutetima quanto mais as condiccedilotildees de nosso olhar
ancorado no corpo vivenciando uma duraccedilatildeo e uma circunstacircncia em sua
continuidade trabalhando as incertezas de uma percepccedilatildeo
ultrapassada mundo Daiacute sua minimizaccedilatildeo da montagem (instacircncia
construtora da onividecircncia) sua defesa do plano-seguumlecircncia (olhar uacutenico
sem cortes observando uma em seu um acontecimento
em seu fluir
Numa visatildeo mais atual prestamos atenccedilatildeo especial ao que aproxima
e natildeo apenas ao que afasta o cinema-discurso de Eisenstein e o realismo
existencial de Bazin haacute em ambos novamente a atribuiccedilatildeo de um poder
de verdade e de um poder de mentira encarnados em determinados estishy
los Para Eisenstein haacute um estilo capaz de dizer o mundo social-histoacuterishy
co colocando o cinema como potecircncia maior no plano do conhecimento
Para Bazin O cinema eacute uma espeacutecie de terceiro estado da e exisshy
te um estilo autecircntico na captaccedilatildeo da vivecircncia humana em sua
essencial abertura no tempo
Contra esse pano de fundo da tradiccedilatildeo teoacuterica a intervenccedilatildeo de
]ean-Louis Baudry em 1969-70 em questatildeo a constante promessa de
um estilo mais verdadeiro e dirige seu ataque agraves premissas do cinema em
geral examinando mais a fundo as condiccedilotildees do espectador raciociacuteshy
nio estaacute municiado para analisar o espectador do filme claacutessico mas
fala em cinema tout couTe) 4 O horizonte de seu exame eacute ressaltar o
modo pelo qual a recepccedilatildeo da imagem possui uma estrutura que a seu ver
solapa o reiterado creacutedito - de Eisenstein Griffith Epstein na
da verdade como destinaccedilatildeo fundamental do cinema Ele invershy
te a tradiccedilatildeo e vecirc na simulaccedilatildeo na de efeitos (ilusoacuterios) de
conhecimento o destino maior da nova arte (visatildeo que
4 O mais importante dos textos de Jean-Louis dessa
1970 Os efeitos ideoloacutegicos do de base estaacute publicado em Ismail
Xavier (orll) A experiecircncia do cinema (Rio de Janeiro
47
pela permanecircncia do ilusionismo do cinema industrial) Isso se daacute por
forccedila da proacutepria natureza da teacutecnica cinematograacutefica herdeira das ilusotildees _
da perspectiva da persistecircncia retiniana (natildeo vemos os fotogramas vemos
o que natildeo ocorre na tela ou seja o movimento da imagem e temos a imshy
pressatildeo de continuidade) da falsa autenticidade documental da fotografia
Rearticulando elementos jaacute conhecidos Baudry nos traz uma interpretashy
ccedilatildeo radical que- questiona natildeo estilos particulares de fazer cinema mas o
fundamento mesmo de sua objetividade como teacutecnica essa mes~a objetishy
vidade que tem sido a sustentaccedilatildeo maior das esperanccedilas de verdade Na
nova perspectiva as diferentes posiccedilotildees teoacutericas desde 1920 definem um
pensar o cinema a priori capturado pelas ilusotildees da teacutecnica e desatento agraves
implicaccedilotildees contidas na proacutepria estrutura do olhar da cacircmera tal como se
daacute para noacutes na plateacuteia A teacutecnica tem suas inclinaccedilotildees seus efeitos ideoloacuteshy
gicos e nesse sentido eacute ela mesma que impele o cinema industrial a desenshy
volver seu ilusionismo e trazer o espectador para dentro do mundo ficcioshy
na A forccedila de encantamento desse cinema persiste na histoacuteria porque o
dado crucial em jogo natildeo eacute tanto a imitaccedilatildeo do real na tela _ a reproduccedilatildeo
integral das aparecircncias - mas a simulaccedilatildeo de um certo tipo de sujeito-doshy
olhar pelas operaccedilotildees do aparato cinematograacutefico
Avaliar a potecircncia do olhar sem corpo natildeo eacute entatildeo inventariar as
imagens que ele oferece efocaIacuteIacutezar o seu movimento proacuteprio sua forma
de mediaccedilatildeo o que impiacuteica analisar sua incidecircncia no espectador que
vivenda o poder de clarividecircncia a percepccedilatildeo tota Na sala escura idenshy
tificado com o movimento do olhar da cacircmera eu me represento como
sujeito dessa percepccedilatildeo total capaz de doar sentido agraves coisas sobrevoar as
aparecircncias fazer a siacutentese do mundo Minha emoccedilatildeo estaacute com os fatos
que o olhar segue mas a cbndiccedilatildeo desse envolvimento eacute eu me colocar no
lugar do aparato sintoniz~do com suas operaccedilotildees Com isso incorporo
(ilusoriamente) seus poder~s e ericontro nessa sintonia - solo do entendishy
mento cinematograacutefico - o maior cenaacuterio de simulaccedilatildeo de uma onipotecircnshy
cia imaginaacuteria No cinema faccedilo uma viagem que confirma minha condishy
ccedilatildeo de sujeito tal como a desejo Maacutequina de efeitos a realizaccedilatildeo maior do
cinema seria entatildeo esse efeito-sujeito a simulaccedilatildeo de uma consciecircncia
48
transcendente que descortina o mundo e se vecirc no centro das coisas ao
mesmo tempo que radicalmente separada delas a observar o mundo coshy
mo puro olhar Nessa apropriaccedilatildeo ilusoacuteria da competecircncia ideal do olhar
estou portanto no centro mas eacute o aparato que aiacute me coloca pois eacute dele o
movimento da percepccedilatildeo monitor da minha fantasia
Para Baudry uma filosofia idealista que postula um sujeito transshy
cendente em oposiccedilatildeo ao mundo objetivo que se dispotildee ao conhecimento
encontra aiacute na teacutecnica do cinema sua traduccedilatildeo visiacutevel Toda sua ecircnfase
recai sobre a produccedilatildeo simultacircnea da imagem e do sujeito-observador
onividente A engenharia simuladora do cinema define com o efeitoshy
sujeito seu teatro da percepccedilatildeo total cujo protagonista sou eu-espectador
identificado com o olhar da cacircmera
N esses termos o que dificulta a consolidaccedilatildeo de linguagens alternashy
tivas mais verdadeiras eacute esse pecado original inscrito na teacutecnica Esta
tem na ilusatildeo seu sustentaacuteculo e os percalccedilos das vanguardas devem-se a
que sua aposta eacute reverter a funccedilatildeo daquilo que jaacute nasceu para cumprir
outro destino Digo destino porque a loacutegica dessa teoria transforma o cineshy
ma num oacutergatildeo que surgiu para cumprir um programa o de objetivar na
esfera do visiacutevel estrateacutegias de dominaccedilatildeo especialmente as da classe burshy
guesa que presidiu sua origem Assim antes de instacircncia liberadora subshy
versiva a condiccedilatildeo do cinema eacute preencher uma demanda do proacuteprio unishy
verso carceraacuterio tornando-o mais preciso e poderoso em seu aparato
Haacute uma atmosfera de desencanto instalada a partir dos anos 70 a
formulaccedilatildeo aqui exposta eacute a traduccedilatildeo teacuteoacuterica radical dos impasses da conshy
testaccedilatildeo no cinema Temos o esgotamento de uma teleologia a da teacutecnishy
ca redentora entravada pela poliacutetica e a economia e sua substituiccedilatildeo
por u~a outra a da teacutecnica como instrumento maior de reposiccedilatildeo de um
sistema de poder Em consonacircncia corn a tonalidade da reflexatildeo sobre a
linguagem a cultura e a ideologia naquele momento a teoria do cinema
mais original e polecircmica ressalta o lado sistemaacutetico inelutaacutevel das ilusotildees
e dos enganos do olhar da cacircmera Nesse contexto a proacutepria praacutetica do
cinema amplia o espaccedilo para a reflexatildeo teoacuterica voltada para a questatildeo do
simulacro - a citaccedilatildeo a imagem que-alude agrave imagem o circuito das refeshy
49
recircncias a si mesmo que o cinema leva ao paroxismo entram para valer na
esfera da induacutestria constituem sua nova marca Tal reflexatildeo se faz dentro
de molduras conceituais diversas e num processo em que a teoria do
cinema reflete o andamento dos debates mais abrangentes sobre a cultura
contemporacircnea A imagem cinematograacutefica eacute entatildeo obseJvada a partir de
sua participaccedilatildeo em outra rede de relaccedilotildees em que natildeo haacute para a
interpretaccedilatildeo (esse tomar a imagem como representaccedilatildeo de algo exterior
a ela) para o juiacutezo da verdade ou mentira em que se a oposlccedilao
aparecircncia (imagem)essecircncia (substacircncia) -nada haacute por traacutes das lmlti~e~ns
elas valem como efeitos-de-superfiacutecie imagem remetendo a imagem fluxo de simulacros
Faccedilo agora uma incursatildeo que natildeo eacute propriamente no terreno da
nova filosofia e das questotildees mais amplas do simulacro na produccedilatildeo
Trata-se de uma anaacutelise particular no niacutevel da engenharia da simulaccedilatildeo
caracterizaccedilatildeo de um efeito na qual natildeo eacute necessaacuterio assumir as noccedilotildees
com a mesma ressonacircncia elas adquiriram na literatura dos anos 80
Fecho a exposiccedilatildeo com a consideraccedilatildeo de um novo exeacutemplo que acredishy
to esclareccedila algumas observaccedilotildees feitas ateacute aqui sobre a interaccedilatildeo entre
espectador e imagem sobre o papel da moldura do sujeito na leitura
Parti de um primeiro exemplo mais simples para explicar como o
efeito de uma depende de sua ~elaccedilatildeo com o sujeito em determishy
nadas condiccedilotildees Da situaccedilatildeo da testemunha de McCarthy passei a uma
caracterizaccedilatildeo mais detida do olhar do cinema e examinei dois momenshy
tos opostos dentro do conflito de perspectivas que marcou a reflexatildeo criacuteshy
tica em torno do que hiacute de erigano e rcvelaccedilatildeo nesse olhar A partir de
uma discussatildeo mais sobre a simulaccedilatildeo do fato - na fotografia no
cinema chegamos a uma questatildeo mais especiacutefica a simulaccedilatildeo do sujeishy
to na estrutura mesma (lo olhar cinematograacutefico Dentro da discussatildeo
mais geral o exemplo a envolve uma situaccedilatildeo mais complicada do
quea das fotos do tribunal estaremos no cinema Como inspiraccedilatildeo
terei presentes as liccedilotildees de Baildry sem no entanto incorporar o movishy
mento totalizador de suaacute criacutetica ao olhar do cinema Seu amplo diagnoacutesshy
tico mobilizando a psicaacutenaacutelise tem como pressuposto o fato de sabershy
0
mos o bastante sobre a natureza do espectador de modo a prever o caraacuteshy
tcr de sua identificaccedilatildeo com o aparato a qual assume uma dimensatildeo
uacutenica de adesatildeo agrave imagem por forccedila do efeito-sujeito Como conhecedoshy
res do desejo do espectador denunciamos o conluio desse desejo com o
programa da induacutestria e deduzimos daiacute as alienaccedilotildees do cinema e da
teacuteia Natildeo tenho condiccedilotildees de endossar a generalidade desse saber a resshy
peito do espectador o aparato atua em determinada direccedilatildeo mas a expeshy
riecircncia do cinema inclui outras forccedilas e condiccedilotildees que natildeo se ajustam ao
programa do sistema A formulaccedilatildeo dc Baudry embora inclua com toda
a forccedila a dimensatildeo do desejo do espectador natildeo deixa de ser outra vershy
satildeo das teorias da manipulaccedilatildeo global centradas em excesso no aspecto
da experiecircncia de modo a confundir o processo que efetishy
vamente ocorre com a loacutegica ideal do sistema Focalizo uma situaccedilatildeo
didaacutetica nesse contcxto em que eacute perfeito o funcionamcnto do
aparato cm quc podemos verificar o mecanismo da simulaccedilatildeo em estashy
do digamos de laboratoacuterio
IVIULALAU E PONTO OE VISTA
Toda leitura de eacute pr()(llltatildeo de um ponto de vista o do sujeito
observador natildeo o da objetividade (b irnagetnA condiccedilatildeo dos efeitos
da imagem eacute essa Em particular o ekilO rb apoacuteia-se numa
construccedilatildeo que inclui o fmguh do obSlrVIr1or O simulacro parece o
que natildeo eacute a partir de um pOIHo ele vista () sujeito estaacute aiacute pressuposto Porshy
tanto o processo elc simulaccedilatildeo nlo l o (Li imagemem si mas o da sua
relaccedilatildeo com o sujeito Num (gt1lt1110 elemelltar podemos tomar o cinema
como modelo do processo O (llIC eacute a fjltnilgcm senatildeo a organizaccedilatildeo do
I 1 I - C f dacontecllnento pra 11111 angu () (C o lscrvaccedilao o que se con un e com
Nessas asserccedilotildees no de Xavier Audouard Le Simulacrc in
eacutepisteacutemologie de lEcole Normale gtuucushy
rc n mai-jun 1966) O horizonte de Audouard eacute o de uma discussatildeo sobre o
idealismo platocircnico seu terreno eacute ponanto distinto e meu natildeo
ca uma identificaccedilatildeo agrave sua perspectiva de anaacutelise
i J
o da cacircmera e nenhum outro mais) O que eacute a fachada de preacutedio de estuacuteshy
dio senatildeo a duplicaccedilatildeo do mesmo princiacutepio da fachada de rua que sushy
gere o que natildeo eacute justamente quando observada de um certo acircngulo e disshy
tacircncia jaacute pressupostos em sua composiccedilatildeo O que eacute a ficccedilatildeo do cinema
senatildeo uma simulaccedilatildeo de mundo para o espectador identificado com o aparato
Vertigo (Um corpo que cai) O filme de Hitchcock realizado
em 1958 Ele eacute a trama da simulaccedilatildeo por excelecircncia como jaacute foi observashy
do pela criacutetica Trago um aspecto novo agrave consideraccedilatildeo o do espelhamenshy
to que existe entre o estratagema que envolve as personagens do drama e
o proacuteprio princiacutepio da narraccedilatildeo do filme Tal como em outras obras de
Hitchcltck o cinepa c1aacutessi~o aqui operagrave com eficiecircncia maacutexima e ao
mesmo tempo oferece a metaacutefora viva para o seu proacuteprio processo Inteshy
ressado nessa metaacutefora acentuo nesta anaacutelise a mecacircnica da simulaccedilacirco o
funcionamento exterior do aparato natildeo o que nas personagens eacute desejo
do estratagema e disposiccedilatildeo para a vertigem da imagem
Sigamos passo a passo a narrativa ateacute o ponto que interessa
Vertigem tiacutetulo original eacute a palavra que condensa as ideacuteias-forccedila
do filme em sua tematiacutezaccedilatildeo do olhar e do ponto de vista A apresentaccedilatildeo
de Vertigo criaccedilatildeo de Saul nos traz a imagem do rosto feminino em
close-up tratado como maacutescara enigmaacutetica imoacutevel Uma aproximaccedilatildeo
maior e um passeio da cacircmcra examinam essa maacutescara em seus detalhes
ateacute que isolado o olho ofereccedila os sinais de vida Os seus movimentos no
entanto natildeo criam uma ~xpressatildeo definida uma intcncionalidade do olhar
Preparam apenas o cenaacuterio ptra um movimentoem espiral na profundishy
dade Mergulho na inteacuteiioridaacutedc cujo fundo inatingiacutevel estaacute sempre em
recesso Aproximaccedilatildeo e recuo atraccedilatildeo e fuga a ambiguumlidade do movishy
mento da espiral ~ experiecircncia matriz de todo o filme cujo eixo eacute o
percurso de profissional do olhar detetive personificaccedilatildeo da
vertigem Logo na primeira sequumlecircncia define-se a questatildeo desse protagoshy
nista numa perseguiccedilatildeo telhados de Satildeo Francisco a vertigem de Scottie o faz responsaacuteveacutel pela morte de um
tentar ajudaacute-lo Sentimeriacuteto de cu1Da aposentadoria
52
lecida a disponibilidade total de a situaccedilatildeo-chave de Vertigo deseshy
nha-se quando ele atende ao chamado de Elster de escola que
no reencontro surpreende-o com o pedido para que sua mulher
Madeleine Elster mostra-se apreensivo com as manifestaccedilotildees de ausecircnshy
cia que ela apresenta com os periacuteodos de comportamento estranho em
que ela parece ser outra pessoa de que retoma sem lembranccedilas
O ex-detetive ensaia um ceticismo apenas aparente e dobra-se ao enigma
proposto Passa a acompanhar os trajetos de Madeleine pesquisa pela
recolhe dados essenciais Um primeiro quadro se compotildee a
ra que dela se apossa em seus transes eacute Cadota Valdez mulher que viveu
em San Francisco no seacuteculo XIX e que se suicidou em circunstacircncias meshy
lancoacutelicas Novamente com Elster Scottie relata as descobertas O marishy
do introduz novo dado Madeleine estaacute em perigo de vida pois descende
de Carlota outras mulheres da linhagem cometeram suiciacutedio e ela tem
agora a idade de Carlota ao morrer
Na primeiraacute seacuterie de passeios de Madeleine fase em que se compotildec
o quadro tivemos uma ostensiva duplicaccedilatildeo num primeiro plano Scortie
observa MadeJeine que natildeo reconhece sua presenccedila (ele estaacute fora do tershy
ritoacuterio dela) e se potildee disponiacutevel ao olhar movimentando-se como numa
cena num segundo plano ao longo do mesmo eixo a cacircmera observa
Scottie que Madeleine Satildeo duas uma dentro da outra que
natildeo se tocam Ela el)quadrada pelo ponto de vista dele ambos enquadra~
dos por noacutes no lugar da cacircmera Madeleine nunca devolve o olhar a Scotshy
tie devolve o olhar agrave cacircmera (regra do filme claacutessico) Mas eacute
ambiacutegua essa passividade pois eacute o movimento dela que dirige o olhar
dele eacute a accedilatildeo de ambos que dirige o nosso olhar sempre na esteira do
acircngulo de de Scottie com quem partilhamos a ignoracircncia a
curiosidade a descoberta
Apoacutes a segunda conversa com Elster o tema do suiciacutedio engendra
uma ruptura nesse esquema de perfeita simetria MadeleineCarlota
atira-se nas aacuteguas da baiacutea de San Francisco Scottie a resgata Permaneceshy
mos puro olhar ele passa ao plano da intervenccedilatildeo e do diaacutelogo Com os
dois juntos certa concretude o que em Scottie eacute jaacute sonho romacircnshy
53
tico tonalidade de experiecircncia ironicamente mimetizada pela textura do
filme projetada nos espaccedilos no som configurando um desfile de clichecircs
do melodrama Encarnando a figura hiacutebrida de e
terapeuta Scottie permeia cada encontro de inquIacutefIacuteAtildeM
sar o imaginaacuterio de MadeleineCarlota decifrar a
lt catarse reveladora curar a mulher por quem estaacute
coloca adiante dele na investigaccedilatildeo
A nova ruptura vem quando Scottie conduz Madeleine a uma Misshy
satildeo Catoacutelica perto de Satildeo Francisco procurando explorar um sonho dela
que ele julga revelador sinal de que a soluccedilatildeo do enigma estaacute e
com esta a salvaccedilatildeo superada a pulsatildeo de morte que a domina Laacute cheshy
gando tudo se precipita auando Madeleine abandona suas recaDitulacotildees e insiste em caminhar sozinha em agrave
de Scottie que natildeo consegue enfim retecirc-la e perceDe em pamco a torre
alta do sino A montagem alternada nos traz a pressa de Madeleine ao se
e agrave torre seguida de Scottie que como suspeitamos
da escada retido pela vertigem - e somos retidos
com ele Ouve-se o grito Por uma das aberturas da torre vislumbra-se o corpo que cai
O ex-detetive vive a reiteraccedilatildeo da a humilhaccedilatildeo puacuteblica de um
psicologicamente massacrado Elsshy
natildeo sem antes tambeacutem absolvecirc-lo Scottie entra em colapso eacute internado Quando retoma agraves ruas de San Francisco
destila sua no passado volta aos mesmos lugares quer encontrar
em cada mulher a figura perdida movido por qualquer semelhanccedila Um
dia depara com Judy (Kim Noacutevak novamente) diferente nas maneiras
no em termos de classe Em tudo o mais a reacuteplica de
Madeleine Ele a segue bate agrave porta do seu quarto de hotel explica seus
motivos convida-a para jantar Ela desconfia daacute provas de sua identidade
(sou Judy natildeo o conheccedilo) tenta a rejeiccedilatildeo mas finalmente aceita Satisfeishy
to ele diz a hora do encontro e retira-se Pela primeira vez em todo o filme
natildeo o acompanhamos nos separamos de seu ponto de vista De repente
natildeo eacute mais dele a moldura que define os contornos do nosso olhar Retishy
54
dos no quarto ficamos ao lado de
sem delongas que natildeo espera o final
Sozinha no quarto hesitante nervosa
assume o risco do reencontro com nova identidade JUdyI Madeleme reshy
a trama urdida por Elster Para livrar-se de sua mulher ele COl1shy
para simular Madeleine Ou seja assumir essa identidade
para aIguem colocado no ponto de vista de Scottie Elster sabia dos proshy
blemas do detetive aposentado e engendrou o esquema do crime que fez
de Scottie a testemunha ideal pois era esperado que nunca ao
topo para ver Madeleine ser atirada por ele Elster quando Judy com o
mesmo traje e aparecircncia chegasse certamente sozinha ao alto da torre
Pensando ser sujeito ativo na cura de MadeleineCarlota Scottie tentou
resgataacute-la e apaixonou-se por um simulacro por uma imagem constmiacuteda
para seu ponto de vista O dispositivo montado estava todo apoiado nas
posiccedilotildees reciacuteprocas de observador e imagem dueto que deu corpo agrave ficshy
ccedilatildeo consagrada a posteriori pela sistemaacutetica do tribunal (num estratagema
bem mais complexo Judy Madeleine ocupa o lugar da falsa evidecircncia
apresentada agrave testemunha no meu primeiro exemplo) O diagnoacutestico do
suiciacutedio que absolve Scottie eacute a consumaccedilatildeo do crime perfeito A posiccedilatildeo
de Elster - aquele que sabe - corresponde agrave posiccedilatildeo do dispositivo narrashy
dor da histoacuteria no cinema claacutessico (ele permanece agrave sombra e orquestra as
imagens) Portanto no enredo que coloca em cena Vertigo espelha ()
prio mecanismo desse cinema que via de regra constroacutei-se segundo a
loacutegica do crime define o meu ponto de vista daacute corpo ao simushy
lacro eacute monitor de meu desejo tal como o dispositivo Elster-Judy-Madeshy
leine-Carlota em a Scottic
O filme de Hitchcock vai natildeo se reduz agrave exposiccedilatildeo desse
mecanismo Este se encontra inserido num tecido de ~elaccedilotildees que envolshy
vem natildeo soacute a identidade e o desejo de Scottie mas tambeacutem a identidade
e o de (a natildeo foi apenas para ele a
Urna leimra mais completa de Vertigo exishy
~rlprriiacute() detalhada do movimento derradeiro da trama Reshy
para o estratagema do as permanecem na
55
esfera das duas personagens agora entregues agrave resoluccedilatildeo de todo o disposhy
sitivo de identidadesimulaccedilatildeovertigem6 Permanecendo poreacutem nas
consideraccedilotildees sobre o aparato do olhar que eacute meu objetivo central aqui
afasto-me do filme natildeo sem antes fazer breve referecircncia ao que na parte
final de Vertigo devolve-nos agrave questatildeo da leitura da imagem no cinema
No reencontro das personagens Scottie impelido por sua fixaccedilatildeo
na imagem do passado in~iste em fazer de Judy nos miacutenimos detalhes a
reacuteplica fiel de Madeleine Ao observar sua metamorfose redefinimos
nossa relaccedilatildeo com a cena antiga a imagem de Kim Novak era Judy que
era Madeleine agraves vezes Carlota Judy possuiacuteda por Madeleine (a possesshy
satildeo transferecircncia se refaz agora) Madeleine (Judy) falando de sentimenshy
tos que eram de Judy (Madeleine) numa duplicaccedilatildeo de palavras expresshy
sotildees gestos que natildeo permite definir os contornos que separam uma da
outra essas quatro presenccedilas Refiro-me a Kim N ovak porque todo o
estratagema do filme conta com os falsetes fragilidades de seu desempeshy
nho para o bom efeito A construccedilatildeo das identidades em abismo embarashy
Iha a enunciaccedilatildeo dos gestos como dizer quem expressa o quecirc quando a
accedilatildeo dramaacutetica requer um fingir fingimento num processo em cascata
Vertigo ilustra nesse aspecto o quanto a leitura do rosto estaacute atrelada agrave
moldura que possuo e natildeo agrave exclusiva expressividade da imagem Tudo
nas palavras e gestos de Judy Madeleine ganha um sentido novo a partir
de cada deslocamento do ponto de vista O que natildeo significa apenas uma
questatildeo de espaccedilo e informaccedilatildeo mas inclui de modo decisivo uma disshy
posiccedilatildeo particular do observador que completa a accedilatildeo invisiacutevel do aparashy
to (no caso para a consumaccedilatildeo dos efeitos desejados era preciso que o
espectador da cena fosse Scottie com seu perfil e seu passado)
6 Para uma leitura de Vertigo que trabalha o dispositivo identidade simulashy
ccedilatildeovertigem e em particular sua resoluccedilatildeo traacutegica ao final do filme ver Robin
Wood Hitchcocks Films (Nova York Castle Books 1969) no qual a moldura eacute a
psicanaacutelise e Nelson Brissac Peixoto Cenaacuterio em ruiacutenas (Satildeo Paulo Brasiliense
1987) cujo texto pressupotildee uma reflexatildeo sobre o mundo dos efeitos-de-superficie o vazio a dissoluccedilatildeo da origem o simulacrQ
Tomei Vertigo como um laboratoacuterio no qual sob controle exibe-se
uma engenharia da simulaccedilatildeo aqrelaacionada pelo olhar do filme claacutessishy
co a qual alia a forccedila de seduccedilatildeo da cena agrave invisibilidade do aparato Para
finalizar gostaria de ir aleacutem dessa referecircncia mais imediata ao aparato do
cinema claacutessico pois a anaacutelise aqui feita permite uma inversatildeo nos mecashy
nismos destacados por discursos sobre o poder que mobilizam a metaacutefoshy
ra da sociedade como universo carceraacuterio e se desdobram em imagens
do aprisionamento pelo olhar Diante dos aparatos de comunicaccedilatildeo que
nos cercam eacute comum a caracterizaccedilatildeo de uma competecircncia de controle
de ordenamento cristalizada no olhar vigilante onipresente que se volta
o tempo todo para noacutes Considerando as tecnologias do olhar podemos
entretanto destacar um processo ordenador menos ostensivo que envolve
a accedilatildeo de um olhar que em vez de estar voltado para mim olha por rrtim
oferece-me pontos de vista coloca-se entre mim e o mundo (lembremos
a ironia de Vertigo Scottie eacute o olhar vigilante profissional mas o processhy
so de controle atua em sentido inverso - eacute o dispositivo que define seu
ponto de vista) Cercado de imagens vejo-me inscrito pela media numa
segunda natureza num processo que implica um cotejo de pontos de vista
muito peculiar que me afasta por exemplo do enfrentamento proacuteprio da
relaccedilatildeo pessoal intersubjetiva Esta se constitui pela devoluccedilatildeo do olhar
e nela repercute o que nos diz o poeta Antonio Machado o olho que vejo
eacute olho porque me vecirc natildeo porque o vejo Diante do aparato construtor de
imagens minha interaccedilatildeo eacute de outra ordem envolve um olho que natildeo
vejo e natildeo me vecirc que eacute olho porque substitui o meu porque me conduz
de bom grado ao seu lugar para eu enxe~gar mais ou talvez menos
Dado inagravelienaacutevel de minha experiecircncia o olhar fabricado eacute constanshy
te oferta de pontos de vista Enxergar efetivamente mais sem recusaacute-lo
implica discutir os termos desse olhar observar com ele o mundo mas
colocaacute-lo tambeacutem em foco recusando a condiccedilatildeo de total identificaccedilatildeo
com o aparato Enxergar mais eacute estar atento ao visiacutevel e tambeacutem ao que
fora do campo torna visiacutevel
56 57
pela permanecircncia do ilusionismo do cinema industrial) Isso se daacute por
forccedila da proacutepria natureza da teacutecnica cinematograacutefica herdeira das ilusotildees _
da perspectiva da persistecircncia retiniana (natildeo vemos os fotogramas vemos
o que natildeo ocorre na tela ou seja o movimento da imagem e temos a imshy
pressatildeo de continuidade) da falsa autenticidade documental da fotografia
Rearticulando elementos jaacute conhecidos Baudry nos traz uma interpretashy
ccedilatildeo radical que- questiona natildeo estilos particulares de fazer cinema mas o
fundamento mesmo de sua objetividade como teacutecnica essa mes~a objetishy
vidade que tem sido a sustentaccedilatildeo maior das esperanccedilas de verdade Na
nova perspectiva as diferentes posiccedilotildees teoacutericas desde 1920 definem um
pensar o cinema a priori capturado pelas ilusotildees da teacutecnica e desatento agraves
implicaccedilotildees contidas na proacutepria estrutura do olhar da cacircmera tal como se
daacute para noacutes na plateacuteia A teacutecnica tem suas inclinaccedilotildees seus efeitos ideoloacuteshy
gicos e nesse sentido eacute ela mesma que impele o cinema industrial a desenshy
volver seu ilusionismo e trazer o espectador para dentro do mundo ficcioshy
na A forccedila de encantamento desse cinema persiste na histoacuteria porque o
dado crucial em jogo natildeo eacute tanto a imitaccedilatildeo do real na tela _ a reproduccedilatildeo
integral das aparecircncias - mas a simulaccedilatildeo de um certo tipo de sujeito-doshy
olhar pelas operaccedilotildees do aparato cinematograacutefico
Avaliar a potecircncia do olhar sem corpo natildeo eacute entatildeo inventariar as
imagens que ele oferece efocaIacuteIacutezar o seu movimento proacuteprio sua forma
de mediaccedilatildeo o que impiacuteica analisar sua incidecircncia no espectador que
vivenda o poder de clarividecircncia a percepccedilatildeo tota Na sala escura idenshy
tificado com o movimento do olhar da cacircmera eu me represento como
sujeito dessa percepccedilatildeo total capaz de doar sentido agraves coisas sobrevoar as
aparecircncias fazer a siacutentese do mundo Minha emoccedilatildeo estaacute com os fatos
que o olhar segue mas a cbndiccedilatildeo desse envolvimento eacute eu me colocar no
lugar do aparato sintoniz~do com suas operaccedilotildees Com isso incorporo
(ilusoriamente) seus poder~s e ericontro nessa sintonia - solo do entendishy
mento cinematograacutefico - o maior cenaacuterio de simulaccedilatildeo de uma onipotecircnshy
cia imaginaacuteria No cinema faccedilo uma viagem que confirma minha condishy
ccedilatildeo de sujeito tal como a desejo Maacutequina de efeitos a realizaccedilatildeo maior do
cinema seria entatildeo esse efeito-sujeito a simulaccedilatildeo de uma consciecircncia
48
transcendente que descortina o mundo e se vecirc no centro das coisas ao
mesmo tempo que radicalmente separada delas a observar o mundo coshy
mo puro olhar Nessa apropriaccedilatildeo ilusoacuteria da competecircncia ideal do olhar
estou portanto no centro mas eacute o aparato que aiacute me coloca pois eacute dele o
movimento da percepccedilatildeo monitor da minha fantasia
Para Baudry uma filosofia idealista que postula um sujeito transshy
cendente em oposiccedilatildeo ao mundo objetivo que se dispotildee ao conhecimento
encontra aiacute na teacutecnica do cinema sua traduccedilatildeo visiacutevel Toda sua ecircnfase
recai sobre a produccedilatildeo simultacircnea da imagem e do sujeito-observador
onividente A engenharia simuladora do cinema define com o efeitoshy
sujeito seu teatro da percepccedilatildeo total cujo protagonista sou eu-espectador
identificado com o olhar da cacircmera
N esses termos o que dificulta a consolidaccedilatildeo de linguagens alternashy
tivas mais verdadeiras eacute esse pecado original inscrito na teacutecnica Esta
tem na ilusatildeo seu sustentaacuteculo e os percalccedilos das vanguardas devem-se a
que sua aposta eacute reverter a funccedilatildeo daquilo que jaacute nasceu para cumprir
outro destino Digo destino porque a loacutegica dessa teoria transforma o cineshy
ma num oacutergatildeo que surgiu para cumprir um programa o de objetivar na
esfera do visiacutevel estrateacutegias de dominaccedilatildeo especialmente as da classe burshy
guesa que presidiu sua origem Assim antes de instacircncia liberadora subshy
versiva a condiccedilatildeo do cinema eacute preencher uma demanda do proacuteprio unishy
verso carceraacuterio tornando-o mais preciso e poderoso em seu aparato
Haacute uma atmosfera de desencanto instalada a partir dos anos 70 a
formulaccedilatildeo aqui exposta eacute a traduccedilatildeo teacuteoacuterica radical dos impasses da conshy
testaccedilatildeo no cinema Temos o esgotamento de uma teleologia a da teacutecnishy
ca redentora entravada pela poliacutetica e a economia e sua substituiccedilatildeo
por u~a outra a da teacutecnica como instrumento maior de reposiccedilatildeo de um
sistema de poder Em consonacircncia corn a tonalidade da reflexatildeo sobre a
linguagem a cultura e a ideologia naquele momento a teoria do cinema
mais original e polecircmica ressalta o lado sistemaacutetico inelutaacutevel das ilusotildees
e dos enganos do olhar da cacircmera Nesse contexto a proacutepria praacutetica do
cinema amplia o espaccedilo para a reflexatildeo teoacuterica voltada para a questatildeo do
simulacro - a citaccedilatildeo a imagem que-alude agrave imagem o circuito das refeshy
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recircncias a si mesmo que o cinema leva ao paroxismo entram para valer na
esfera da induacutestria constituem sua nova marca Tal reflexatildeo se faz dentro
de molduras conceituais diversas e num processo em que a teoria do
cinema reflete o andamento dos debates mais abrangentes sobre a cultura
contemporacircnea A imagem cinematograacutefica eacute entatildeo obseJvada a partir de
sua participaccedilatildeo em outra rede de relaccedilotildees em que natildeo haacute para a
interpretaccedilatildeo (esse tomar a imagem como representaccedilatildeo de algo exterior
a ela) para o juiacutezo da verdade ou mentira em que se a oposlccedilao
aparecircncia (imagem)essecircncia (substacircncia) -nada haacute por traacutes das lmlti~e~ns
elas valem como efeitos-de-superfiacutecie imagem remetendo a imagem fluxo de simulacros
Faccedilo agora uma incursatildeo que natildeo eacute propriamente no terreno da
nova filosofia e das questotildees mais amplas do simulacro na produccedilatildeo
Trata-se de uma anaacutelise particular no niacutevel da engenharia da simulaccedilatildeo
caracterizaccedilatildeo de um efeito na qual natildeo eacute necessaacuterio assumir as noccedilotildees
com a mesma ressonacircncia elas adquiriram na literatura dos anos 80
Fecho a exposiccedilatildeo com a consideraccedilatildeo de um novo exeacutemplo que acredishy
to esclareccedila algumas observaccedilotildees feitas ateacute aqui sobre a interaccedilatildeo entre
espectador e imagem sobre o papel da moldura do sujeito na leitura
Parti de um primeiro exemplo mais simples para explicar como o
efeito de uma depende de sua ~elaccedilatildeo com o sujeito em determishy
nadas condiccedilotildees Da situaccedilatildeo da testemunha de McCarthy passei a uma
caracterizaccedilatildeo mais detida do olhar do cinema e examinei dois momenshy
tos opostos dentro do conflito de perspectivas que marcou a reflexatildeo criacuteshy
tica em torno do que hiacute de erigano e rcvelaccedilatildeo nesse olhar A partir de
uma discussatildeo mais sobre a simulaccedilatildeo do fato - na fotografia no
cinema chegamos a uma questatildeo mais especiacutefica a simulaccedilatildeo do sujeishy
to na estrutura mesma (lo olhar cinematograacutefico Dentro da discussatildeo
mais geral o exemplo a envolve uma situaccedilatildeo mais complicada do
quea das fotos do tribunal estaremos no cinema Como inspiraccedilatildeo
terei presentes as liccedilotildees de Baildry sem no entanto incorporar o movishy
mento totalizador de suaacute criacutetica ao olhar do cinema Seu amplo diagnoacutesshy
tico mobilizando a psicaacutenaacutelise tem como pressuposto o fato de sabershy
0
mos o bastante sobre a natureza do espectador de modo a prever o caraacuteshy
tcr de sua identificaccedilatildeo com o aparato a qual assume uma dimensatildeo
uacutenica de adesatildeo agrave imagem por forccedila do efeito-sujeito Como conhecedoshy
res do desejo do espectador denunciamos o conluio desse desejo com o
programa da induacutestria e deduzimos daiacute as alienaccedilotildees do cinema e da
teacuteia Natildeo tenho condiccedilotildees de endossar a generalidade desse saber a resshy
peito do espectador o aparato atua em determinada direccedilatildeo mas a expeshy
riecircncia do cinema inclui outras forccedilas e condiccedilotildees que natildeo se ajustam ao
programa do sistema A formulaccedilatildeo dc Baudry embora inclua com toda
a forccedila a dimensatildeo do desejo do espectador natildeo deixa de ser outra vershy
satildeo das teorias da manipulaccedilatildeo global centradas em excesso no aspecto
da experiecircncia de modo a confundir o processo que efetishy
vamente ocorre com a loacutegica ideal do sistema Focalizo uma situaccedilatildeo
didaacutetica nesse contcxto em que eacute perfeito o funcionamcnto do
aparato cm quc podemos verificar o mecanismo da simulaccedilatildeo em estashy
do digamos de laboratoacuterio
IVIULALAU E PONTO OE VISTA
Toda leitura de eacute pr()(llltatildeo de um ponto de vista o do sujeito
observador natildeo o da objetividade (b irnagetnA condiccedilatildeo dos efeitos
da imagem eacute essa Em particular o ekilO rb apoacuteia-se numa
construccedilatildeo que inclui o fmguh do obSlrVIr1or O simulacro parece o
que natildeo eacute a partir de um pOIHo ele vista () sujeito estaacute aiacute pressuposto Porshy
tanto o processo elc simulaccedilatildeo nlo l o (Li imagemem si mas o da sua
relaccedilatildeo com o sujeito Num (gt1lt1110 elemelltar podemos tomar o cinema
como modelo do processo O (llIC eacute a fjltnilgcm senatildeo a organizaccedilatildeo do
I 1 I - C f dacontecllnento pra 11111 angu () (C o lscrvaccedilao o que se con un e com
Nessas asserccedilotildees no de Xavier Audouard Le Simulacrc in
eacutepisteacutemologie de lEcole Normale gtuucushy
rc n mai-jun 1966) O horizonte de Audouard eacute o de uma discussatildeo sobre o
idealismo platocircnico seu terreno eacute ponanto distinto e meu natildeo
ca uma identificaccedilatildeo agrave sua perspectiva de anaacutelise
i J
o da cacircmera e nenhum outro mais) O que eacute a fachada de preacutedio de estuacuteshy
dio senatildeo a duplicaccedilatildeo do mesmo princiacutepio da fachada de rua que sushy
gere o que natildeo eacute justamente quando observada de um certo acircngulo e disshy
tacircncia jaacute pressupostos em sua composiccedilatildeo O que eacute a ficccedilatildeo do cinema
senatildeo uma simulaccedilatildeo de mundo para o espectador identificado com o aparato
Vertigo (Um corpo que cai) O filme de Hitchcock realizado
em 1958 Ele eacute a trama da simulaccedilatildeo por excelecircncia como jaacute foi observashy
do pela criacutetica Trago um aspecto novo agrave consideraccedilatildeo o do espelhamenshy
to que existe entre o estratagema que envolve as personagens do drama e
o proacuteprio princiacutepio da narraccedilatildeo do filme Tal como em outras obras de
Hitchcltck o cinepa c1aacutessi~o aqui operagrave com eficiecircncia maacutexima e ao
mesmo tempo oferece a metaacutefora viva para o seu proacuteprio processo Inteshy
ressado nessa metaacutefora acentuo nesta anaacutelise a mecacircnica da simulaccedilacirco o
funcionamento exterior do aparato natildeo o que nas personagens eacute desejo
do estratagema e disposiccedilatildeo para a vertigem da imagem
Sigamos passo a passo a narrativa ateacute o ponto que interessa
Vertigem tiacutetulo original eacute a palavra que condensa as ideacuteias-forccedila
do filme em sua tematiacutezaccedilatildeo do olhar e do ponto de vista A apresentaccedilatildeo
de Vertigo criaccedilatildeo de Saul nos traz a imagem do rosto feminino em
close-up tratado como maacutescara enigmaacutetica imoacutevel Uma aproximaccedilatildeo
maior e um passeio da cacircmcra examinam essa maacutescara em seus detalhes
ateacute que isolado o olho ofereccedila os sinais de vida Os seus movimentos no
entanto natildeo criam uma ~xpressatildeo definida uma intcncionalidade do olhar
Preparam apenas o cenaacuterio ptra um movimentoem espiral na profundishy
dade Mergulho na inteacuteiioridaacutedc cujo fundo inatingiacutevel estaacute sempre em
recesso Aproximaccedilatildeo e recuo atraccedilatildeo e fuga a ambiguumlidade do movishy
mento da espiral ~ experiecircncia matriz de todo o filme cujo eixo eacute o
percurso de profissional do olhar detetive personificaccedilatildeo da
vertigem Logo na primeira sequumlecircncia define-se a questatildeo desse protagoshy
nista numa perseguiccedilatildeo telhados de Satildeo Francisco a vertigem de Scottie o faz responsaacuteveacutel pela morte de um
tentar ajudaacute-lo Sentimeriacuteto de cu1Da aposentadoria
52
lecida a disponibilidade total de a situaccedilatildeo-chave de Vertigo deseshy
nha-se quando ele atende ao chamado de Elster de escola que
no reencontro surpreende-o com o pedido para que sua mulher
Madeleine Elster mostra-se apreensivo com as manifestaccedilotildees de ausecircnshy
cia que ela apresenta com os periacuteodos de comportamento estranho em
que ela parece ser outra pessoa de que retoma sem lembranccedilas
O ex-detetive ensaia um ceticismo apenas aparente e dobra-se ao enigma
proposto Passa a acompanhar os trajetos de Madeleine pesquisa pela
recolhe dados essenciais Um primeiro quadro se compotildee a
ra que dela se apossa em seus transes eacute Cadota Valdez mulher que viveu
em San Francisco no seacuteculo XIX e que se suicidou em circunstacircncias meshy
lancoacutelicas Novamente com Elster Scottie relata as descobertas O marishy
do introduz novo dado Madeleine estaacute em perigo de vida pois descende
de Carlota outras mulheres da linhagem cometeram suiciacutedio e ela tem
agora a idade de Carlota ao morrer
Na primeiraacute seacuterie de passeios de Madeleine fase em que se compotildec
o quadro tivemos uma ostensiva duplicaccedilatildeo num primeiro plano Scortie
observa MadeJeine que natildeo reconhece sua presenccedila (ele estaacute fora do tershy
ritoacuterio dela) e se potildee disponiacutevel ao olhar movimentando-se como numa
cena num segundo plano ao longo do mesmo eixo a cacircmera observa
Scottie que Madeleine Satildeo duas uma dentro da outra que
natildeo se tocam Ela el)quadrada pelo ponto de vista dele ambos enquadra~
dos por noacutes no lugar da cacircmera Madeleine nunca devolve o olhar a Scotshy
tie devolve o olhar agrave cacircmera (regra do filme claacutessico) Mas eacute
ambiacutegua essa passividade pois eacute o movimento dela que dirige o olhar
dele eacute a accedilatildeo de ambos que dirige o nosso olhar sempre na esteira do
acircngulo de de Scottie com quem partilhamos a ignoracircncia a
curiosidade a descoberta
Apoacutes a segunda conversa com Elster o tema do suiciacutedio engendra
uma ruptura nesse esquema de perfeita simetria MadeleineCarlota
atira-se nas aacuteguas da baiacutea de San Francisco Scottie a resgata Permaneceshy
mos puro olhar ele passa ao plano da intervenccedilatildeo e do diaacutelogo Com os
dois juntos certa concretude o que em Scottie eacute jaacute sonho romacircnshy
53
tico tonalidade de experiecircncia ironicamente mimetizada pela textura do
filme projetada nos espaccedilos no som configurando um desfile de clichecircs
do melodrama Encarnando a figura hiacutebrida de e
terapeuta Scottie permeia cada encontro de inquIacutefIacuteAtildeM
sar o imaginaacuterio de MadeleineCarlota decifrar a
lt catarse reveladora curar a mulher por quem estaacute
coloca adiante dele na investigaccedilatildeo
A nova ruptura vem quando Scottie conduz Madeleine a uma Misshy
satildeo Catoacutelica perto de Satildeo Francisco procurando explorar um sonho dela
que ele julga revelador sinal de que a soluccedilatildeo do enigma estaacute e
com esta a salvaccedilatildeo superada a pulsatildeo de morte que a domina Laacute cheshy
gando tudo se precipita auando Madeleine abandona suas recaDitulacotildees e insiste em caminhar sozinha em agrave
de Scottie que natildeo consegue enfim retecirc-la e perceDe em pamco a torre
alta do sino A montagem alternada nos traz a pressa de Madeleine ao se
e agrave torre seguida de Scottie que como suspeitamos
da escada retido pela vertigem - e somos retidos
com ele Ouve-se o grito Por uma das aberturas da torre vislumbra-se o corpo que cai
O ex-detetive vive a reiteraccedilatildeo da a humilhaccedilatildeo puacuteblica de um
psicologicamente massacrado Elsshy
natildeo sem antes tambeacutem absolvecirc-lo Scottie entra em colapso eacute internado Quando retoma agraves ruas de San Francisco
destila sua no passado volta aos mesmos lugares quer encontrar
em cada mulher a figura perdida movido por qualquer semelhanccedila Um
dia depara com Judy (Kim Noacutevak novamente) diferente nas maneiras
no em termos de classe Em tudo o mais a reacuteplica de
Madeleine Ele a segue bate agrave porta do seu quarto de hotel explica seus
motivos convida-a para jantar Ela desconfia daacute provas de sua identidade
(sou Judy natildeo o conheccedilo) tenta a rejeiccedilatildeo mas finalmente aceita Satisfeishy
to ele diz a hora do encontro e retira-se Pela primeira vez em todo o filme
natildeo o acompanhamos nos separamos de seu ponto de vista De repente
natildeo eacute mais dele a moldura que define os contornos do nosso olhar Retishy
54
dos no quarto ficamos ao lado de
sem delongas que natildeo espera o final
Sozinha no quarto hesitante nervosa
assume o risco do reencontro com nova identidade JUdyI Madeleme reshy
a trama urdida por Elster Para livrar-se de sua mulher ele COl1shy
para simular Madeleine Ou seja assumir essa identidade
para aIguem colocado no ponto de vista de Scottie Elster sabia dos proshy
blemas do detetive aposentado e engendrou o esquema do crime que fez
de Scottie a testemunha ideal pois era esperado que nunca ao
topo para ver Madeleine ser atirada por ele Elster quando Judy com o
mesmo traje e aparecircncia chegasse certamente sozinha ao alto da torre
Pensando ser sujeito ativo na cura de MadeleineCarlota Scottie tentou
resgataacute-la e apaixonou-se por um simulacro por uma imagem constmiacuteda
para seu ponto de vista O dispositivo montado estava todo apoiado nas
posiccedilotildees reciacuteprocas de observador e imagem dueto que deu corpo agrave ficshy
ccedilatildeo consagrada a posteriori pela sistemaacutetica do tribunal (num estratagema
bem mais complexo Judy Madeleine ocupa o lugar da falsa evidecircncia
apresentada agrave testemunha no meu primeiro exemplo) O diagnoacutestico do
suiciacutedio que absolve Scottie eacute a consumaccedilatildeo do crime perfeito A posiccedilatildeo
de Elster - aquele que sabe - corresponde agrave posiccedilatildeo do dispositivo narrashy
dor da histoacuteria no cinema claacutessico (ele permanece agrave sombra e orquestra as
imagens) Portanto no enredo que coloca em cena Vertigo espelha ()
prio mecanismo desse cinema que via de regra constroacutei-se segundo a
loacutegica do crime define o meu ponto de vista daacute corpo ao simushy
lacro eacute monitor de meu desejo tal como o dispositivo Elster-Judy-Madeshy
leine-Carlota em a Scottic
O filme de Hitchcock vai natildeo se reduz agrave exposiccedilatildeo desse
mecanismo Este se encontra inserido num tecido de ~elaccedilotildees que envolshy
vem natildeo soacute a identidade e o desejo de Scottie mas tambeacutem a identidade
e o de (a natildeo foi apenas para ele a
Urna leimra mais completa de Vertigo exishy
~rlprriiacute() detalhada do movimento derradeiro da trama Reshy
para o estratagema do as permanecem na
55
esfera das duas personagens agora entregues agrave resoluccedilatildeo de todo o disposhy
sitivo de identidadesimulaccedilatildeovertigem6 Permanecendo poreacutem nas
consideraccedilotildees sobre o aparato do olhar que eacute meu objetivo central aqui
afasto-me do filme natildeo sem antes fazer breve referecircncia ao que na parte
final de Vertigo devolve-nos agrave questatildeo da leitura da imagem no cinema
No reencontro das personagens Scottie impelido por sua fixaccedilatildeo
na imagem do passado in~iste em fazer de Judy nos miacutenimos detalhes a
reacuteplica fiel de Madeleine Ao observar sua metamorfose redefinimos
nossa relaccedilatildeo com a cena antiga a imagem de Kim Novak era Judy que
era Madeleine agraves vezes Carlota Judy possuiacuteda por Madeleine (a possesshy
satildeo transferecircncia se refaz agora) Madeleine (Judy) falando de sentimenshy
tos que eram de Judy (Madeleine) numa duplicaccedilatildeo de palavras expresshy
sotildees gestos que natildeo permite definir os contornos que separam uma da
outra essas quatro presenccedilas Refiro-me a Kim N ovak porque todo o
estratagema do filme conta com os falsetes fragilidades de seu desempeshy
nho para o bom efeito A construccedilatildeo das identidades em abismo embarashy
Iha a enunciaccedilatildeo dos gestos como dizer quem expressa o quecirc quando a
accedilatildeo dramaacutetica requer um fingir fingimento num processo em cascata
Vertigo ilustra nesse aspecto o quanto a leitura do rosto estaacute atrelada agrave
moldura que possuo e natildeo agrave exclusiva expressividade da imagem Tudo
nas palavras e gestos de Judy Madeleine ganha um sentido novo a partir
de cada deslocamento do ponto de vista O que natildeo significa apenas uma
questatildeo de espaccedilo e informaccedilatildeo mas inclui de modo decisivo uma disshy
posiccedilatildeo particular do observador que completa a accedilatildeo invisiacutevel do aparashy
to (no caso para a consumaccedilatildeo dos efeitos desejados era preciso que o
espectador da cena fosse Scottie com seu perfil e seu passado)
6 Para uma leitura de Vertigo que trabalha o dispositivo identidade simulashy
ccedilatildeovertigem e em particular sua resoluccedilatildeo traacutegica ao final do filme ver Robin
Wood Hitchcocks Films (Nova York Castle Books 1969) no qual a moldura eacute a
psicanaacutelise e Nelson Brissac Peixoto Cenaacuterio em ruiacutenas (Satildeo Paulo Brasiliense
1987) cujo texto pressupotildee uma reflexatildeo sobre o mundo dos efeitos-de-superficie o vazio a dissoluccedilatildeo da origem o simulacrQ
Tomei Vertigo como um laboratoacuterio no qual sob controle exibe-se
uma engenharia da simulaccedilatildeo aqrelaacionada pelo olhar do filme claacutessishy
co a qual alia a forccedila de seduccedilatildeo da cena agrave invisibilidade do aparato Para
finalizar gostaria de ir aleacutem dessa referecircncia mais imediata ao aparato do
cinema claacutessico pois a anaacutelise aqui feita permite uma inversatildeo nos mecashy
nismos destacados por discursos sobre o poder que mobilizam a metaacutefoshy
ra da sociedade como universo carceraacuterio e se desdobram em imagens
do aprisionamento pelo olhar Diante dos aparatos de comunicaccedilatildeo que
nos cercam eacute comum a caracterizaccedilatildeo de uma competecircncia de controle
de ordenamento cristalizada no olhar vigilante onipresente que se volta
o tempo todo para noacutes Considerando as tecnologias do olhar podemos
entretanto destacar um processo ordenador menos ostensivo que envolve
a accedilatildeo de um olhar que em vez de estar voltado para mim olha por rrtim
oferece-me pontos de vista coloca-se entre mim e o mundo (lembremos
a ironia de Vertigo Scottie eacute o olhar vigilante profissional mas o processhy
so de controle atua em sentido inverso - eacute o dispositivo que define seu
ponto de vista) Cercado de imagens vejo-me inscrito pela media numa
segunda natureza num processo que implica um cotejo de pontos de vista
muito peculiar que me afasta por exemplo do enfrentamento proacuteprio da
relaccedilatildeo pessoal intersubjetiva Esta se constitui pela devoluccedilatildeo do olhar
e nela repercute o que nos diz o poeta Antonio Machado o olho que vejo
eacute olho porque me vecirc natildeo porque o vejo Diante do aparato construtor de
imagens minha interaccedilatildeo eacute de outra ordem envolve um olho que natildeo
vejo e natildeo me vecirc que eacute olho porque substitui o meu porque me conduz
de bom grado ao seu lugar para eu enxe~gar mais ou talvez menos
Dado inagravelienaacutevel de minha experiecircncia o olhar fabricado eacute constanshy
te oferta de pontos de vista Enxergar efetivamente mais sem recusaacute-lo
implica discutir os termos desse olhar observar com ele o mundo mas
colocaacute-lo tambeacutem em foco recusando a condiccedilatildeo de total identificaccedilatildeo
com o aparato Enxergar mais eacute estar atento ao visiacutevel e tambeacutem ao que
fora do campo torna visiacutevel
56 57
recircncias a si mesmo que o cinema leva ao paroxismo entram para valer na
esfera da induacutestria constituem sua nova marca Tal reflexatildeo se faz dentro
de molduras conceituais diversas e num processo em que a teoria do
cinema reflete o andamento dos debates mais abrangentes sobre a cultura
contemporacircnea A imagem cinematograacutefica eacute entatildeo obseJvada a partir de
sua participaccedilatildeo em outra rede de relaccedilotildees em que natildeo haacute para a
interpretaccedilatildeo (esse tomar a imagem como representaccedilatildeo de algo exterior
a ela) para o juiacutezo da verdade ou mentira em que se a oposlccedilao
aparecircncia (imagem)essecircncia (substacircncia) -nada haacute por traacutes das lmlti~e~ns
elas valem como efeitos-de-superfiacutecie imagem remetendo a imagem fluxo de simulacros
Faccedilo agora uma incursatildeo que natildeo eacute propriamente no terreno da
nova filosofia e das questotildees mais amplas do simulacro na produccedilatildeo
Trata-se de uma anaacutelise particular no niacutevel da engenharia da simulaccedilatildeo
caracterizaccedilatildeo de um efeito na qual natildeo eacute necessaacuterio assumir as noccedilotildees
com a mesma ressonacircncia elas adquiriram na literatura dos anos 80
Fecho a exposiccedilatildeo com a consideraccedilatildeo de um novo exeacutemplo que acredishy
to esclareccedila algumas observaccedilotildees feitas ateacute aqui sobre a interaccedilatildeo entre
espectador e imagem sobre o papel da moldura do sujeito na leitura
Parti de um primeiro exemplo mais simples para explicar como o
efeito de uma depende de sua ~elaccedilatildeo com o sujeito em determishy
nadas condiccedilotildees Da situaccedilatildeo da testemunha de McCarthy passei a uma
caracterizaccedilatildeo mais detida do olhar do cinema e examinei dois momenshy
tos opostos dentro do conflito de perspectivas que marcou a reflexatildeo criacuteshy
tica em torno do que hiacute de erigano e rcvelaccedilatildeo nesse olhar A partir de
uma discussatildeo mais sobre a simulaccedilatildeo do fato - na fotografia no
cinema chegamos a uma questatildeo mais especiacutefica a simulaccedilatildeo do sujeishy
to na estrutura mesma (lo olhar cinematograacutefico Dentro da discussatildeo
mais geral o exemplo a envolve uma situaccedilatildeo mais complicada do
quea das fotos do tribunal estaremos no cinema Como inspiraccedilatildeo
terei presentes as liccedilotildees de Baildry sem no entanto incorporar o movishy
mento totalizador de suaacute criacutetica ao olhar do cinema Seu amplo diagnoacutesshy
tico mobilizando a psicaacutenaacutelise tem como pressuposto o fato de sabershy
0
mos o bastante sobre a natureza do espectador de modo a prever o caraacuteshy
tcr de sua identificaccedilatildeo com o aparato a qual assume uma dimensatildeo
uacutenica de adesatildeo agrave imagem por forccedila do efeito-sujeito Como conhecedoshy
res do desejo do espectador denunciamos o conluio desse desejo com o
programa da induacutestria e deduzimos daiacute as alienaccedilotildees do cinema e da
teacuteia Natildeo tenho condiccedilotildees de endossar a generalidade desse saber a resshy
peito do espectador o aparato atua em determinada direccedilatildeo mas a expeshy
riecircncia do cinema inclui outras forccedilas e condiccedilotildees que natildeo se ajustam ao
programa do sistema A formulaccedilatildeo dc Baudry embora inclua com toda
a forccedila a dimensatildeo do desejo do espectador natildeo deixa de ser outra vershy
satildeo das teorias da manipulaccedilatildeo global centradas em excesso no aspecto
da experiecircncia de modo a confundir o processo que efetishy
vamente ocorre com a loacutegica ideal do sistema Focalizo uma situaccedilatildeo
didaacutetica nesse contcxto em que eacute perfeito o funcionamcnto do
aparato cm quc podemos verificar o mecanismo da simulaccedilatildeo em estashy
do digamos de laboratoacuterio
IVIULALAU E PONTO OE VISTA
Toda leitura de eacute pr()(llltatildeo de um ponto de vista o do sujeito
observador natildeo o da objetividade (b irnagetnA condiccedilatildeo dos efeitos
da imagem eacute essa Em particular o ekilO rb apoacuteia-se numa
construccedilatildeo que inclui o fmguh do obSlrVIr1or O simulacro parece o
que natildeo eacute a partir de um pOIHo ele vista () sujeito estaacute aiacute pressuposto Porshy
tanto o processo elc simulaccedilatildeo nlo l o (Li imagemem si mas o da sua
relaccedilatildeo com o sujeito Num (gt1lt1110 elemelltar podemos tomar o cinema
como modelo do processo O (llIC eacute a fjltnilgcm senatildeo a organizaccedilatildeo do
I 1 I - C f dacontecllnento pra 11111 angu () (C o lscrvaccedilao o que se con un e com
Nessas asserccedilotildees no de Xavier Audouard Le Simulacrc in
eacutepisteacutemologie de lEcole Normale gtuucushy
rc n mai-jun 1966) O horizonte de Audouard eacute o de uma discussatildeo sobre o
idealismo platocircnico seu terreno eacute ponanto distinto e meu natildeo
ca uma identificaccedilatildeo agrave sua perspectiva de anaacutelise
i J
o da cacircmera e nenhum outro mais) O que eacute a fachada de preacutedio de estuacuteshy
dio senatildeo a duplicaccedilatildeo do mesmo princiacutepio da fachada de rua que sushy
gere o que natildeo eacute justamente quando observada de um certo acircngulo e disshy
tacircncia jaacute pressupostos em sua composiccedilatildeo O que eacute a ficccedilatildeo do cinema
senatildeo uma simulaccedilatildeo de mundo para o espectador identificado com o aparato
Vertigo (Um corpo que cai) O filme de Hitchcock realizado
em 1958 Ele eacute a trama da simulaccedilatildeo por excelecircncia como jaacute foi observashy
do pela criacutetica Trago um aspecto novo agrave consideraccedilatildeo o do espelhamenshy
to que existe entre o estratagema que envolve as personagens do drama e
o proacuteprio princiacutepio da narraccedilatildeo do filme Tal como em outras obras de
Hitchcltck o cinepa c1aacutessi~o aqui operagrave com eficiecircncia maacutexima e ao
mesmo tempo oferece a metaacutefora viva para o seu proacuteprio processo Inteshy
ressado nessa metaacutefora acentuo nesta anaacutelise a mecacircnica da simulaccedilacirco o
funcionamento exterior do aparato natildeo o que nas personagens eacute desejo
do estratagema e disposiccedilatildeo para a vertigem da imagem
Sigamos passo a passo a narrativa ateacute o ponto que interessa
Vertigem tiacutetulo original eacute a palavra que condensa as ideacuteias-forccedila
do filme em sua tematiacutezaccedilatildeo do olhar e do ponto de vista A apresentaccedilatildeo
de Vertigo criaccedilatildeo de Saul nos traz a imagem do rosto feminino em
close-up tratado como maacutescara enigmaacutetica imoacutevel Uma aproximaccedilatildeo
maior e um passeio da cacircmcra examinam essa maacutescara em seus detalhes
ateacute que isolado o olho ofereccedila os sinais de vida Os seus movimentos no
entanto natildeo criam uma ~xpressatildeo definida uma intcncionalidade do olhar
Preparam apenas o cenaacuterio ptra um movimentoem espiral na profundishy
dade Mergulho na inteacuteiioridaacutedc cujo fundo inatingiacutevel estaacute sempre em
recesso Aproximaccedilatildeo e recuo atraccedilatildeo e fuga a ambiguumlidade do movishy
mento da espiral ~ experiecircncia matriz de todo o filme cujo eixo eacute o
percurso de profissional do olhar detetive personificaccedilatildeo da
vertigem Logo na primeira sequumlecircncia define-se a questatildeo desse protagoshy
nista numa perseguiccedilatildeo telhados de Satildeo Francisco a vertigem de Scottie o faz responsaacuteveacutel pela morte de um
tentar ajudaacute-lo Sentimeriacuteto de cu1Da aposentadoria
52
lecida a disponibilidade total de a situaccedilatildeo-chave de Vertigo deseshy
nha-se quando ele atende ao chamado de Elster de escola que
no reencontro surpreende-o com o pedido para que sua mulher
Madeleine Elster mostra-se apreensivo com as manifestaccedilotildees de ausecircnshy
cia que ela apresenta com os periacuteodos de comportamento estranho em
que ela parece ser outra pessoa de que retoma sem lembranccedilas
O ex-detetive ensaia um ceticismo apenas aparente e dobra-se ao enigma
proposto Passa a acompanhar os trajetos de Madeleine pesquisa pela
recolhe dados essenciais Um primeiro quadro se compotildee a
ra que dela se apossa em seus transes eacute Cadota Valdez mulher que viveu
em San Francisco no seacuteculo XIX e que se suicidou em circunstacircncias meshy
lancoacutelicas Novamente com Elster Scottie relata as descobertas O marishy
do introduz novo dado Madeleine estaacute em perigo de vida pois descende
de Carlota outras mulheres da linhagem cometeram suiciacutedio e ela tem
agora a idade de Carlota ao morrer
Na primeiraacute seacuterie de passeios de Madeleine fase em que se compotildec
o quadro tivemos uma ostensiva duplicaccedilatildeo num primeiro plano Scortie
observa MadeJeine que natildeo reconhece sua presenccedila (ele estaacute fora do tershy
ritoacuterio dela) e se potildee disponiacutevel ao olhar movimentando-se como numa
cena num segundo plano ao longo do mesmo eixo a cacircmera observa
Scottie que Madeleine Satildeo duas uma dentro da outra que
natildeo se tocam Ela el)quadrada pelo ponto de vista dele ambos enquadra~
dos por noacutes no lugar da cacircmera Madeleine nunca devolve o olhar a Scotshy
tie devolve o olhar agrave cacircmera (regra do filme claacutessico) Mas eacute
ambiacutegua essa passividade pois eacute o movimento dela que dirige o olhar
dele eacute a accedilatildeo de ambos que dirige o nosso olhar sempre na esteira do
acircngulo de de Scottie com quem partilhamos a ignoracircncia a
curiosidade a descoberta
Apoacutes a segunda conversa com Elster o tema do suiciacutedio engendra
uma ruptura nesse esquema de perfeita simetria MadeleineCarlota
atira-se nas aacuteguas da baiacutea de San Francisco Scottie a resgata Permaneceshy
mos puro olhar ele passa ao plano da intervenccedilatildeo e do diaacutelogo Com os
dois juntos certa concretude o que em Scottie eacute jaacute sonho romacircnshy
53
tico tonalidade de experiecircncia ironicamente mimetizada pela textura do
filme projetada nos espaccedilos no som configurando um desfile de clichecircs
do melodrama Encarnando a figura hiacutebrida de e
terapeuta Scottie permeia cada encontro de inquIacutefIacuteAtildeM
sar o imaginaacuterio de MadeleineCarlota decifrar a
lt catarse reveladora curar a mulher por quem estaacute
coloca adiante dele na investigaccedilatildeo
A nova ruptura vem quando Scottie conduz Madeleine a uma Misshy
satildeo Catoacutelica perto de Satildeo Francisco procurando explorar um sonho dela
que ele julga revelador sinal de que a soluccedilatildeo do enigma estaacute e
com esta a salvaccedilatildeo superada a pulsatildeo de morte que a domina Laacute cheshy
gando tudo se precipita auando Madeleine abandona suas recaDitulacotildees e insiste em caminhar sozinha em agrave
de Scottie que natildeo consegue enfim retecirc-la e perceDe em pamco a torre
alta do sino A montagem alternada nos traz a pressa de Madeleine ao se
e agrave torre seguida de Scottie que como suspeitamos
da escada retido pela vertigem - e somos retidos
com ele Ouve-se o grito Por uma das aberturas da torre vislumbra-se o corpo que cai
O ex-detetive vive a reiteraccedilatildeo da a humilhaccedilatildeo puacuteblica de um
psicologicamente massacrado Elsshy
natildeo sem antes tambeacutem absolvecirc-lo Scottie entra em colapso eacute internado Quando retoma agraves ruas de San Francisco
destila sua no passado volta aos mesmos lugares quer encontrar
em cada mulher a figura perdida movido por qualquer semelhanccedila Um
dia depara com Judy (Kim Noacutevak novamente) diferente nas maneiras
no em termos de classe Em tudo o mais a reacuteplica de
Madeleine Ele a segue bate agrave porta do seu quarto de hotel explica seus
motivos convida-a para jantar Ela desconfia daacute provas de sua identidade
(sou Judy natildeo o conheccedilo) tenta a rejeiccedilatildeo mas finalmente aceita Satisfeishy
to ele diz a hora do encontro e retira-se Pela primeira vez em todo o filme
natildeo o acompanhamos nos separamos de seu ponto de vista De repente
natildeo eacute mais dele a moldura que define os contornos do nosso olhar Retishy
54
dos no quarto ficamos ao lado de
sem delongas que natildeo espera o final
Sozinha no quarto hesitante nervosa
assume o risco do reencontro com nova identidade JUdyI Madeleme reshy
a trama urdida por Elster Para livrar-se de sua mulher ele COl1shy
para simular Madeleine Ou seja assumir essa identidade
para aIguem colocado no ponto de vista de Scottie Elster sabia dos proshy
blemas do detetive aposentado e engendrou o esquema do crime que fez
de Scottie a testemunha ideal pois era esperado que nunca ao
topo para ver Madeleine ser atirada por ele Elster quando Judy com o
mesmo traje e aparecircncia chegasse certamente sozinha ao alto da torre
Pensando ser sujeito ativo na cura de MadeleineCarlota Scottie tentou
resgataacute-la e apaixonou-se por um simulacro por uma imagem constmiacuteda
para seu ponto de vista O dispositivo montado estava todo apoiado nas
posiccedilotildees reciacuteprocas de observador e imagem dueto que deu corpo agrave ficshy
ccedilatildeo consagrada a posteriori pela sistemaacutetica do tribunal (num estratagema
bem mais complexo Judy Madeleine ocupa o lugar da falsa evidecircncia
apresentada agrave testemunha no meu primeiro exemplo) O diagnoacutestico do
suiciacutedio que absolve Scottie eacute a consumaccedilatildeo do crime perfeito A posiccedilatildeo
de Elster - aquele que sabe - corresponde agrave posiccedilatildeo do dispositivo narrashy
dor da histoacuteria no cinema claacutessico (ele permanece agrave sombra e orquestra as
imagens) Portanto no enredo que coloca em cena Vertigo espelha ()
prio mecanismo desse cinema que via de regra constroacutei-se segundo a
loacutegica do crime define o meu ponto de vista daacute corpo ao simushy
lacro eacute monitor de meu desejo tal como o dispositivo Elster-Judy-Madeshy
leine-Carlota em a Scottic
O filme de Hitchcock vai natildeo se reduz agrave exposiccedilatildeo desse
mecanismo Este se encontra inserido num tecido de ~elaccedilotildees que envolshy
vem natildeo soacute a identidade e o desejo de Scottie mas tambeacutem a identidade
e o de (a natildeo foi apenas para ele a
Urna leimra mais completa de Vertigo exishy
~rlprriiacute() detalhada do movimento derradeiro da trama Reshy
para o estratagema do as permanecem na
55
esfera das duas personagens agora entregues agrave resoluccedilatildeo de todo o disposhy
sitivo de identidadesimulaccedilatildeovertigem6 Permanecendo poreacutem nas
consideraccedilotildees sobre o aparato do olhar que eacute meu objetivo central aqui
afasto-me do filme natildeo sem antes fazer breve referecircncia ao que na parte
final de Vertigo devolve-nos agrave questatildeo da leitura da imagem no cinema
No reencontro das personagens Scottie impelido por sua fixaccedilatildeo
na imagem do passado in~iste em fazer de Judy nos miacutenimos detalhes a
reacuteplica fiel de Madeleine Ao observar sua metamorfose redefinimos
nossa relaccedilatildeo com a cena antiga a imagem de Kim Novak era Judy que
era Madeleine agraves vezes Carlota Judy possuiacuteda por Madeleine (a possesshy
satildeo transferecircncia se refaz agora) Madeleine (Judy) falando de sentimenshy
tos que eram de Judy (Madeleine) numa duplicaccedilatildeo de palavras expresshy
sotildees gestos que natildeo permite definir os contornos que separam uma da
outra essas quatro presenccedilas Refiro-me a Kim N ovak porque todo o
estratagema do filme conta com os falsetes fragilidades de seu desempeshy
nho para o bom efeito A construccedilatildeo das identidades em abismo embarashy
Iha a enunciaccedilatildeo dos gestos como dizer quem expressa o quecirc quando a
accedilatildeo dramaacutetica requer um fingir fingimento num processo em cascata
Vertigo ilustra nesse aspecto o quanto a leitura do rosto estaacute atrelada agrave
moldura que possuo e natildeo agrave exclusiva expressividade da imagem Tudo
nas palavras e gestos de Judy Madeleine ganha um sentido novo a partir
de cada deslocamento do ponto de vista O que natildeo significa apenas uma
questatildeo de espaccedilo e informaccedilatildeo mas inclui de modo decisivo uma disshy
posiccedilatildeo particular do observador que completa a accedilatildeo invisiacutevel do aparashy
to (no caso para a consumaccedilatildeo dos efeitos desejados era preciso que o
espectador da cena fosse Scottie com seu perfil e seu passado)
6 Para uma leitura de Vertigo que trabalha o dispositivo identidade simulashy
ccedilatildeovertigem e em particular sua resoluccedilatildeo traacutegica ao final do filme ver Robin
Wood Hitchcocks Films (Nova York Castle Books 1969) no qual a moldura eacute a
psicanaacutelise e Nelson Brissac Peixoto Cenaacuterio em ruiacutenas (Satildeo Paulo Brasiliense
1987) cujo texto pressupotildee uma reflexatildeo sobre o mundo dos efeitos-de-superficie o vazio a dissoluccedilatildeo da origem o simulacrQ
Tomei Vertigo como um laboratoacuterio no qual sob controle exibe-se
uma engenharia da simulaccedilatildeo aqrelaacionada pelo olhar do filme claacutessishy
co a qual alia a forccedila de seduccedilatildeo da cena agrave invisibilidade do aparato Para
finalizar gostaria de ir aleacutem dessa referecircncia mais imediata ao aparato do
cinema claacutessico pois a anaacutelise aqui feita permite uma inversatildeo nos mecashy
nismos destacados por discursos sobre o poder que mobilizam a metaacutefoshy
ra da sociedade como universo carceraacuterio e se desdobram em imagens
do aprisionamento pelo olhar Diante dos aparatos de comunicaccedilatildeo que
nos cercam eacute comum a caracterizaccedilatildeo de uma competecircncia de controle
de ordenamento cristalizada no olhar vigilante onipresente que se volta
o tempo todo para noacutes Considerando as tecnologias do olhar podemos
entretanto destacar um processo ordenador menos ostensivo que envolve
a accedilatildeo de um olhar que em vez de estar voltado para mim olha por rrtim
oferece-me pontos de vista coloca-se entre mim e o mundo (lembremos
a ironia de Vertigo Scottie eacute o olhar vigilante profissional mas o processhy
so de controle atua em sentido inverso - eacute o dispositivo que define seu
ponto de vista) Cercado de imagens vejo-me inscrito pela media numa
segunda natureza num processo que implica um cotejo de pontos de vista
muito peculiar que me afasta por exemplo do enfrentamento proacuteprio da
relaccedilatildeo pessoal intersubjetiva Esta se constitui pela devoluccedilatildeo do olhar
e nela repercute o que nos diz o poeta Antonio Machado o olho que vejo
eacute olho porque me vecirc natildeo porque o vejo Diante do aparato construtor de
imagens minha interaccedilatildeo eacute de outra ordem envolve um olho que natildeo
vejo e natildeo me vecirc que eacute olho porque substitui o meu porque me conduz
de bom grado ao seu lugar para eu enxe~gar mais ou talvez menos
Dado inagravelienaacutevel de minha experiecircncia o olhar fabricado eacute constanshy
te oferta de pontos de vista Enxergar efetivamente mais sem recusaacute-lo
implica discutir os termos desse olhar observar com ele o mundo mas
colocaacute-lo tambeacutem em foco recusando a condiccedilatildeo de total identificaccedilatildeo
com o aparato Enxergar mais eacute estar atento ao visiacutevel e tambeacutem ao que
fora do campo torna visiacutevel
56 57
o da cacircmera e nenhum outro mais) O que eacute a fachada de preacutedio de estuacuteshy
dio senatildeo a duplicaccedilatildeo do mesmo princiacutepio da fachada de rua que sushy
gere o que natildeo eacute justamente quando observada de um certo acircngulo e disshy
tacircncia jaacute pressupostos em sua composiccedilatildeo O que eacute a ficccedilatildeo do cinema
senatildeo uma simulaccedilatildeo de mundo para o espectador identificado com o aparato
Vertigo (Um corpo que cai) O filme de Hitchcock realizado
em 1958 Ele eacute a trama da simulaccedilatildeo por excelecircncia como jaacute foi observashy
do pela criacutetica Trago um aspecto novo agrave consideraccedilatildeo o do espelhamenshy
to que existe entre o estratagema que envolve as personagens do drama e
o proacuteprio princiacutepio da narraccedilatildeo do filme Tal como em outras obras de
Hitchcltck o cinepa c1aacutessi~o aqui operagrave com eficiecircncia maacutexima e ao
mesmo tempo oferece a metaacutefora viva para o seu proacuteprio processo Inteshy
ressado nessa metaacutefora acentuo nesta anaacutelise a mecacircnica da simulaccedilacirco o
funcionamento exterior do aparato natildeo o que nas personagens eacute desejo
do estratagema e disposiccedilatildeo para a vertigem da imagem
Sigamos passo a passo a narrativa ateacute o ponto que interessa
Vertigem tiacutetulo original eacute a palavra que condensa as ideacuteias-forccedila
do filme em sua tematiacutezaccedilatildeo do olhar e do ponto de vista A apresentaccedilatildeo
de Vertigo criaccedilatildeo de Saul nos traz a imagem do rosto feminino em
close-up tratado como maacutescara enigmaacutetica imoacutevel Uma aproximaccedilatildeo
maior e um passeio da cacircmcra examinam essa maacutescara em seus detalhes
ateacute que isolado o olho ofereccedila os sinais de vida Os seus movimentos no
entanto natildeo criam uma ~xpressatildeo definida uma intcncionalidade do olhar
Preparam apenas o cenaacuterio ptra um movimentoem espiral na profundishy
dade Mergulho na inteacuteiioridaacutedc cujo fundo inatingiacutevel estaacute sempre em
recesso Aproximaccedilatildeo e recuo atraccedilatildeo e fuga a ambiguumlidade do movishy
mento da espiral ~ experiecircncia matriz de todo o filme cujo eixo eacute o
percurso de profissional do olhar detetive personificaccedilatildeo da
vertigem Logo na primeira sequumlecircncia define-se a questatildeo desse protagoshy
nista numa perseguiccedilatildeo telhados de Satildeo Francisco a vertigem de Scottie o faz responsaacuteveacutel pela morte de um
tentar ajudaacute-lo Sentimeriacuteto de cu1Da aposentadoria
52
lecida a disponibilidade total de a situaccedilatildeo-chave de Vertigo deseshy
nha-se quando ele atende ao chamado de Elster de escola que
no reencontro surpreende-o com o pedido para que sua mulher
Madeleine Elster mostra-se apreensivo com as manifestaccedilotildees de ausecircnshy
cia que ela apresenta com os periacuteodos de comportamento estranho em
que ela parece ser outra pessoa de que retoma sem lembranccedilas
O ex-detetive ensaia um ceticismo apenas aparente e dobra-se ao enigma
proposto Passa a acompanhar os trajetos de Madeleine pesquisa pela
recolhe dados essenciais Um primeiro quadro se compotildee a
ra que dela se apossa em seus transes eacute Cadota Valdez mulher que viveu
em San Francisco no seacuteculo XIX e que se suicidou em circunstacircncias meshy
lancoacutelicas Novamente com Elster Scottie relata as descobertas O marishy
do introduz novo dado Madeleine estaacute em perigo de vida pois descende
de Carlota outras mulheres da linhagem cometeram suiciacutedio e ela tem
agora a idade de Carlota ao morrer
Na primeiraacute seacuterie de passeios de Madeleine fase em que se compotildec
o quadro tivemos uma ostensiva duplicaccedilatildeo num primeiro plano Scortie
observa MadeJeine que natildeo reconhece sua presenccedila (ele estaacute fora do tershy
ritoacuterio dela) e se potildee disponiacutevel ao olhar movimentando-se como numa
cena num segundo plano ao longo do mesmo eixo a cacircmera observa
Scottie que Madeleine Satildeo duas uma dentro da outra que
natildeo se tocam Ela el)quadrada pelo ponto de vista dele ambos enquadra~
dos por noacutes no lugar da cacircmera Madeleine nunca devolve o olhar a Scotshy
tie devolve o olhar agrave cacircmera (regra do filme claacutessico) Mas eacute
ambiacutegua essa passividade pois eacute o movimento dela que dirige o olhar
dele eacute a accedilatildeo de ambos que dirige o nosso olhar sempre na esteira do
acircngulo de de Scottie com quem partilhamos a ignoracircncia a
curiosidade a descoberta
Apoacutes a segunda conversa com Elster o tema do suiciacutedio engendra
uma ruptura nesse esquema de perfeita simetria MadeleineCarlota
atira-se nas aacuteguas da baiacutea de San Francisco Scottie a resgata Permaneceshy
mos puro olhar ele passa ao plano da intervenccedilatildeo e do diaacutelogo Com os
dois juntos certa concretude o que em Scottie eacute jaacute sonho romacircnshy
53
tico tonalidade de experiecircncia ironicamente mimetizada pela textura do
filme projetada nos espaccedilos no som configurando um desfile de clichecircs
do melodrama Encarnando a figura hiacutebrida de e
terapeuta Scottie permeia cada encontro de inquIacutefIacuteAtildeM
sar o imaginaacuterio de MadeleineCarlota decifrar a
lt catarse reveladora curar a mulher por quem estaacute
coloca adiante dele na investigaccedilatildeo
A nova ruptura vem quando Scottie conduz Madeleine a uma Misshy
satildeo Catoacutelica perto de Satildeo Francisco procurando explorar um sonho dela
que ele julga revelador sinal de que a soluccedilatildeo do enigma estaacute e
com esta a salvaccedilatildeo superada a pulsatildeo de morte que a domina Laacute cheshy
gando tudo se precipita auando Madeleine abandona suas recaDitulacotildees e insiste em caminhar sozinha em agrave
de Scottie que natildeo consegue enfim retecirc-la e perceDe em pamco a torre
alta do sino A montagem alternada nos traz a pressa de Madeleine ao se
e agrave torre seguida de Scottie que como suspeitamos
da escada retido pela vertigem - e somos retidos
com ele Ouve-se o grito Por uma das aberturas da torre vislumbra-se o corpo que cai
O ex-detetive vive a reiteraccedilatildeo da a humilhaccedilatildeo puacuteblica de um
psicologicamente massacrado Elsshy
natildeo sem antes tambeacutem absolvecirc-lo Scottie entra em colapso eacute internado Quando retoma agraves ruas de San Francisco
destila sua no passado volta aos mesmos lugares quer encontrar
em cada mulher a figura perdida movido por qualquer semelhanccedila Um
dia depara com Judy (Kim Noacutevak novamente) diferente nas maneiras
no em termos de classe Em tudo o mais a reacuteplica de
Madeleine Ele a segue bate agrave porta do seu quarto de hotel explica seus
motivos convida-a para jantar Ela desconfia daacute provas de sua identidade
(sou Judy natildeo o conheccedilo) tenta a rejeiccedilatildeo mas finalmente aceita Satisfeishy
to ele diz a hora do encontro e retira-se Pela primeira vez em todo o filme
natildeo o acompanhamos nos separamos de seu ponto de vista De repente
natildeo eacute mais dele a moldura que define os contornos do nosso olhar Retishy
54
dos no quarto ficamos ao lado de
sem delongas que natildeo espera o final
Sozinha no quarto hesitante nervosa
assume o risco do reencontro com nova identidade JUdyI Madeleme reshy
a trama urdida por Elster Para livrar-se de sua mulher ele COl1shy
para simular Madeleine Ou seja assumir essa identidade
para aIguem colocado no ponto de vista de Scottie Elster sabia dos proshy
blemas do detetive aposentado e engendrou o esquema do crime que fez
de Scottie a testemunha ideal pois era esperado que nunca ao
topo para ver Madeleine ser atirada por ele Elster quando Judy com o
mesmo traje e aparecircncia chegasse certamente sozinha ao alto da torre
Pensando ser sujeito ativo na cura de MadeleineCarlota Scottie tentou
resgataacute-la e apaixonou-se por um simulacro por uma imagem constmiacuteda
para seu ponto de vista O dispositivo montado estava todo apoiado nas
posiccedilotildees reciacuteprocas de observador e imagem dueto que deu corpo agrave ficshy
ccedilatildeo consagrada a posteriori pela sistemaacutetica do tribunal (num estratagema
bem mais complexo Judy Madeleine ocupa o lugar da falsa evidecircncia
apresentada agrave testemunha no meu primeiro exemplo) O diagnoacutestico do
suiciacutedio que absolve Scottie eacute a consumaccedilatildeo do crime perfeito A posiccedilatildeo
de Elster - aquele que sabe - corresponde agrave posiccedilatildeo do dispositivo narrashy
dor da histoacuteria no cinema claacutessico (ele permanece agrave sombra e orquestra as
imagens) Portanto no enredo que coloca em cena Vertigo espelha ()
prio mecanismo desse cinema que via de regra constroacutei-se segundo a
loacutegica do crime define o meu ponto de vista daacute corpo ao simushy
lacro eacute monitor de meu desejo tal como o dispositivo Elster-Judy-Madeshy
leine-Carlota em a Scottic
O filme de Hitchcock vai natildeo se reduz agrave exposiccedilatildeo desse
mecanismo Este se encontra inserido num tecido de ~elaccedilotildees que envolshy
vem natildeo soacute a identidade e o desejo de Scottie mas tambeacutem a identidade
e o de (a natildeo foi apenas para ele a
Urna leimra mais completa de Vertigo exishy
~rlprriiacute() detalhada do movimento derradeiro da trama Reshy
para o estratagema do as permanecem na
55
esfera das duas personagens agora entregues agrave resoluccedilatildeo de todo o disposhy
sitivo de identidadesimulaccedilatildeovertigem6 Permanecendo poreacutem nas
consideraccedilotildees sobre o aparato do olhar que eacute meu objetivo central aqui
afasto-me do filme natildeo sem antes fazer breve referecircncia ao que na parte
final de Vertigo devolve-nos agrave questatildeo da leitura da imagem no cinema
No reencontro das personagens Scottie impelido por sua fixaccedilatildeo
na imagem do passado in~iste em fazer de Judy nos miacutenimos detalhes a
reacuteplica fiel de Madeleine Ao observar sua metamorfose redefinimos
nossa relaccedilatildeo com a cena antiga a imagem de Kim Novak era Judy que
era Madeleine agraves vezes Carlota Judy possuiacuteda por Madeleine (a possesshy
satildeo transferecircncia se refaz agora) Madeleine (Judy) falando de sentimenshy
tos que eram de Judy (Madeleine) numa duplicaccedilatildeo de palavras expresshy
sotildees gestos que natildeo permite definir os contornos que separam uma da
outra essas quatro presenccedilas Refiro-me a Kim N ovak porque todo o
estratagema do filme conta com os falsetes fragilidades de seu desempeshy
nho para o bom efeito A construccedilatildeo das identidades em abismo embarashy
Iha a enunciaccedilatildeo dos gestos como dizer quem expressa o quecirc quando a
accedilatildeo dramaacutetica requer um fingir fingimento num processo em cascata
Vertigo ilustra nesse aspecto o quanto a leitura do rosto estaacute atrelada agrave
moldura que possuo e natildeo agrave exclusiva expressividade da imagem Tudo
nas palavras e gestos de Judy Madeleine ganha um sentido novo a partir
de cada deslocamento do ponto de vista O que natildeo significa apenas uma
questatildeo de espaccedilo e informaccedilatildeo mas inclui de modo decisivo uma disshy
posiccedilatildeo particular do observador que completa a accedilatildeo invisiacutevel do aparashy
to (no caso para a consumaccedilatildeo dos efeitos desejados era preciso que o
espectador da cena fosse Scottie com seu perfil e seu passado)
6 Para uma leitura de Vertigo que trabalha o dispositivo identidade simulashy
ccedilatildeovertigem e em particular sua resoluccedilatildeo traacutegica ao final do filme ver Robin
Wood Hitchcocks Films (Nova York Castle Books 1969) no qual a moldura eacute a
psicanaacutelise e Nelson Brissac Peixoto Cenaacuterio em ruiacutenas (Satildeo Paulo Brasiliense
1987) cujo texto pressupotildee uma reflexatildeo sobre o mundo dos efeitos-de-superficie o vazio a dissoluccedilatildeo da origem o simulacrQ
Tomei Vertigo como um laboratoacuterio no qual sob controle exibe-se
uma engenharia da simulaccedilatildeo aqrelaacionada pelo olhar do filme claacutessishy
co a qual alia a forccedila de seduccedilatildeo da cena agrave invisibilidade do aparato Para
finalizar gostaria de ir aleacutem dessa referecircncia mais imediata ao aparato do
cinema claacutessico pois a anaacutelise aqui feita permite uma inversatildeo nos mecashy
nismos destacados por discursos sobre o poder que mobilizam a metaacutefoshy
ra da sociedade como universo carceraacuterio e se desdobram em imagens
do aprisionamento pelo olhar Diante dos aparatos de comunicaccedilatildeo que
nos cercam eacute comum a caracterizaccedilatildeo de uma competecircncia de controle
de ordenamento cristalizada no olhar vigilante onipresente que se volta
o tempo todo para noacutes Considerando as tecnologias do olhar podemos
entretanto destacar um processo ordenador menos ostensivo que envolve
a accedilatildeo de um olhar que em vez de estar voltado para mim olha por rrtim
oferece-me pontos de vista coloca-se entre mim e o mundo (lembremos
a ironia de Vertigo Scottie eacute o olhar vigilante profissional mas o processhy
so de controle atua em sentido inverso - eacute o dispositivo que define seu
ponto de vista) Cercado de imagens vejo-me inscrito pela media numa
segunda natureza num processo que implica um cotejo de pontos de vista
muito peculiar que me afasta por exemplo do enfrentamento proacuteprio da
relaccedilatildeo pessoal intersubjetiva Esta se constitui pela devoluccedilatildeo do olhar
e nela repercute o que nos diz o poeta Antonio Machado o olho que vejo
eacute olho porque me vecirc natildeo porque o vejo Diante do aparato construtor de
imagens minha interaccedilatildeo eacute de outra ordem envolve um olho que natildeo
vejo e natildeo me vecirc que eacute olho porque substitui o meu porque me conduz
de bom grado ao seu lugar para eu enxe~gar mais ou talvez menos
Dado inagravelienaacutevel de minha experiecircncia o olhar fabricado eacute constanshy
te oferta de pontos de vista Enxergar efetivamente mais sem recusaacute-lo
implica discutir os termos desse olhar observar com ele o mundo mas
colocaacute-lo tambeacutem em foco recusando a condiccedilatildeo de total identificaccedilatildeo
com o aparato Enxergar mais eacute estar atento ao visiacutevel e tambeacutem ao que
fora do campo torna visiacutevel
56 57
tico tonalidade de experiecircncia ironicamente mimetizada pela textura do
filme projetada nos espaccedilos no som configurando um desfile de clichecircs
do melodrama Encarnando a figura hiacutebrida de e
terapeuta Scottie permeia cada encontro de inquIacutefIacuteAtildeM
sar o imaginaacuterio de MadeleineCarlota decifrar a
lt catarse reveladora curar a mulher por quem estaacute
coloca adiante dele na investigaccedilatildeo
A nova ruptura vem quando Scottie conduz Madeleine a uma Misshy
satildeo Catoacutelica perto de Satildeo Francisco procurando explorar um sonho dela
que ele julga revelador sinal de que a soluccedilatildeo do enigma estaacute e
com esta a salvaccedilatildeo superada a pulsatildeo de morte que a domina Laacute cheshy
gando tudo se precipita auando Madeleine abandona suas recaDitulacotildees e insiste em caminhar sozinha em agrave
de Scottie que natildeo consegue enfim retecirc-la e perceDe em pamco a torre
alta do sino A montagem alternada nos traz a pressa de Madeleine ao se
e agrave torre seguida de Scottie que como suspeitamos
da escada retido pela vertigem - e somos retidos
com ele Ouve-se o grito Por uma das aberturas da torre vislumbra-se o corpo que cai
O ex-detetive vive a reiteraccedilatildeo da a humilhaccedilatildeo puacuteblica de um
psicologicamente massacrado Elsshy
natildeo sem antes tambeacutem absolvecirc-lo Scottie entra em colapso eacute internado Quando retoma agraves ruas de San Francisco
destila sua no passado volta aos mesmos lugares quer encontrar
em cada mulher a figura perdida movido por qualquer semelhanccedila Um
dia depara com Judy (Kim Noacutevak novamente) diferente nas maneiras
no em termos de classe Em tudo o mais a reacuteplica de
Madeleine Ele a segue bate agrave porta do seu quarto de hotel explica seus
motivos convida-a para jantar Ela desconfia daacute provas de sua identidade
(sou Judy natildeo o conheccedilo) tenta a rejeiccedilatildeo mas finalmente aceita Satisfeishy
to ele diz a hora do encontro e retira-se Pela primeira vez em todo o filme
natildeo o acompanhamos nos separamos de seu ponto de vista De repente
natildeo eacute mais dele a moldura que define os contornos do nosso olhar Retishy
54
dos no quarto ficamos ao lado de
sem delongas que natildeo espera o final
Sozinha no quarto hesitante nervosa
assume o risco do reencontro com nova identidade JUdyI Madeleme reshy
a trama urdida por Elster Para livrar-se de sua mulher ele COl1shy
para simular Madeleine Ou seja assumir essa identidade
para aIguem colocado no ponto de vista de Scottie Elster sabia dos proshy
blemas do detetive aposentado e engendrou o esquema do crime que fez
de Scottie a testemunha ideal pois era esperado que nunca ao
topo para ver Madeleine ser atirada por ele Elster quando Judy com o
mesmo traje e aparecircncia chegasse certamente sozinha ao alto da torre
Pensando ser sujeito ativo na cura de MadeleineCarlota Scottie tentou
resgataacute-la e apaixonou-se por um simulacro por uma imagem constmiacuteda
para seu ponto de vista O dispositivo montado estava todo apoiado nas
posiccedilotildees reciacuteprocas de observador e imagem dueto que deu corpo agrave ficshy
ccedilatildeo consagrada a posteriori pela sistemaacutetica do tribunal (num estratagema
bem mais complexo Judy Madeleine ocupa o lugar da falsa evidecircncia
apresentada agrave testemunha no meu primeiro exemplo) O diagnoacutestico do
suiciacutedio que absolve Scottie eacute a consumaccedilatildeo do crime perfeito A posiccedilatildeo
de Elster - aquele que sabe - corresponde agrave posiccedilatildeo do dispositivo narrashy
dor da histoacuteria no cinema claacutessico (ele permanece agrave sombra e orquestra as
imagens) Portanto no enredo que coloca em cena Vertigo espelha ()
prio mecanismo desse cinema que via de regra constroacutei-se segundo a
loacutegica do crime define o meu ponto de vista daacute corpo ao simushy
lacro eacute monitor de meu desejo tal como o dispositivo Elster-Judy-Madeshy
leine-Carlota em a Scottic
O filme de Hitchcock vai natildeo se reduz agrave exposiccedilatildeo desse
mecanismo Este se encontra inserido num tecido de ~elaccedilotildees que envolshy
vem natildeo soacute a identidade e o desejo de Scottie mas tambeacutem a identidade
e o de (a natildeo foi apenas para ele a
Urna leimra mais completa de Vertigo exishy
~rlprriiacute() detalhada do movimento derradeiro da trama Reshy
para o estratagema do as permanecem na
55
esfera das duas personagens agora entregues agrave resoluccedilatildeo de todo o disposhy
sitivo de identidadesimulaccedilatildeovertigem6 Permanecendo poreacutem nas
consideraccedilotildees sobre o aparato do olhar que eacute meu objetivo central aqui
afasto-me do filme natildeo sem antes fazer breve referecircncia ao que na parte
final de Vertigo devolve-nos agrave questatildeo da leitura da imagem no cinema
No reencontro das personagens Scottie impelido por sua fixaccedilatildeo
na imagem do passado in~iste em fazer de Judy nos miacutenimos detalhes a
reacuteplica fiel de Madeleine Ao observar sua metamorfose redefinimos
nossa relaccedilatildeo com a cena antiga a imagem de Kim Novak era Judy que
era Madeleine agraves vezes Carlota Judy possuiacuteda por Madeleine (a possesshy
satildeo transferecircncia se refaz agora) Madeleine (Judy) falando de sentimenshy
tos que eram de Judy (Madeleine) numa duplicaccedilatildeo de palavras expresshy
sotildees gestos que natildeo permite definir os contornos que separam uma da
outra essas quatro presenccedilas Refiro-me a Kim N ovak porque todo o
estratagema do filme conta com os falsetes fragilidades de seu desempeshy
nho para o bom efeito A construccedilatildeo das identidades em abismo embarashy
Iha a enunciaccedilatildeo dos gestos como dizer quem expressa o quecirc quando a
accedilatildeo dramaacutetica requer um fingir fingimento num processo em cascata
Vertigo ilustra nesse aspecto o quanto a leitura do rosto estaacute atrelada agrave
moldura que possuo e natildeo agrave exclusiva expressividade da imagem Tudo
nas palavras e gestos de Judy Madeleine ganha um sentido novo a partir
de cada deslocamento do ponto de vista O que natildeo significa apenas uma
questatildeo de espaccedilo e informaccedilatildeo mas inclui de modo decisivo uma disshy
posiccedilatildeo particular do observador que completa a accedilatildeo invisiacutevel do aparashy
to (no caso para a consumaccedilatildeo dos efeitos desejados era preciso que o
espectador da cena fosse Scottie com seu perfil e seu passado)
6 Para uma leitura de Vertigo que trabalha o dispositivo identidade simulashy
ccedilatildeovertigem e em particular sua resoluccedilatildeo traacutegica ao final do filme ver Robin
Wood Hitchcocks Films (Nova York Castle Books 1969) no qual a moldura eacute a
psicanaacutelise e Nelson Brissac Peixoto Cenaacuterio em ruiacutenas (Satildeo Paulo Brasiliense
1987) cujo texto pressupotildee uma reflexatildeo sobre o mundo dos efeitos-de-superficie o vazio a dissoluccedilatildeo da origem o simulacrQ
Tomei Vertigo como um laboratoacuterio no qual sob controle exibe-se
uma engenharia da simulaccedilatildeo aqrelaacionada pelo olhar do filme claacutessishy
co a qual alia a forccedila de seduccedilatildeo da cena agrave invisibilidade do aparato Para
finalizar gostaria de ir aleacutem dessa referecircncia mais imediata ao aparato do
cinema claacutessico pois a anaacutelise aqui feita permite uma inversatildeo nos mecashy
nismos destacados por discursos sobre o poder que mobilizam a metaacutefoshy
ra da sociedade como universo carceraacuterio e se desdobram em imagens
do aprisionamento pelo olhar Diante dos aparatos de comunicaccedilatildeo que
nos cercam eacute comum a caracterizaccedilatildeo de uma competecircncia de controle
de ordenamento cristalizada no olhar vigilante onipresente que se volta
o tempo todo para noacutes Considerando as tecnologias do olhar podemos
entretanto destacar um processo ordenador menos ostensivo que envolve
a accedilatildeo de um olhar que em vez de estar voltado para mim olha por rrtim
oferece-me pontos de vista coloca-se entre mim e o mundo (lembremos
a ironia de Vertigo Scottie eacute o olhar vigilante profissional mas o processhy
so de controle atua em sentido inverso - eacute o dispositivo que define seu
ponto de vista) Cercado de imagens vejo-me inscrito pela media numa
segunda natureza num processo que implica um cotejo de pontos de vista
muito peculiar que me afasta por exemplo do enfrentamento proacuteprio da
relaccedilatildeo pessoal intersubjetiva Esta se constitui pela devoluccedilatildeo do olhar
e nela repercute o que nos diz o poeta Antonio Machado o olho que vejo
eacute olho porque me vecirc natildeo porque o vejo Diante do aparato construtor de
imagens minha interaccedilatildeo eacute de outra ordem envolve um olho que natildeo
vejo e natildeo me vecirc que eacute olho porque substitui o meu porque me conduz
de bom grado ao seu lugar para eu enxe~gar mais ou talvez menos
Dado inagravelienaacutevel de minha experiecircncia o olhar fabricado eacute constanshy
te oferta de pontos de vista Enxergar efetivamente mais sem recusaacute-lo
implica discutir os termos desse olhar observar com ele o mundo mas
colocaacute-lo tambeacutem em foco recusando a condiccedilatildeo de total identificaccedilatildeo
com o aparato Enxergar mais eacute estar atento ao visiacutevel e tambeacutem ao que
fora do campo torna visiacutevel
56 57
esfera das duas personagens agora entregues agrave resoluccedilatildeo de todo o disposhy
sitivo de identidadesimulaccedilatildeovertigem6 Permanecendo poreacutem nas
consideraccedilotildees sobre o aparato do olhar que eacute meu objetivo central aqui
afasto-me do filme natildeo sem antes fazer breve referecircncia ao que na parte
final de Vertigo devolve-nos agrave questatildeo da leitura da imagem no cinema
No reencontro das personagens Scottie impelido por sua fixaccedilatildeo
na imagem do passado in~iste em fazer de Judy nos miacutenimos detalhes a
reacuteplica fiel de Madeleine Ao observar sua metamorfose redefinimos
nossa relaccedilatildeo com a cena antiga a imagem de Kim Novak era Judy que
era Madeleine agraves vezes Carlota Judy possuiacuteda por Madeleine (a possesshy
satildeo transferecircncia se refaz agora) Madeleine (Judy) falando de sentimenshy
tos que eram de Judy (Madeleine) numa duplicaccedilatildeo de palavras expresshy
sotildees gestos que natildeo permite definir os contornos que separam uma da
outra essas quatro presenccedilas Refiro-me a Kim N ovak porque todo o
estratagema do filme conta com os falsetes fragilidades de seu desempeshy
nho para o bom efeito A construccedilatildeo das identidades em abismo embarashy
Iha a enunciaccedilatildeo dos gestos como dizer quem expressa o quecirc quando a
accedilatildeo dramaacutetica requer um fingir fingimento num processo em cascata
Vertigo ilustra nesse aspecto o quanto a leitura do rosto estaacute atrelada agrave
moldura que possuo e natildeo agrave exclusiva expressividade da imagem Tudo
nas palavras e gestos de Judy Madeleine ganha um sentido novo a partir
de cada deslocamento do ponto de vista O que natildeo significa apenas uma
questatildeo de espaccedilo e informaccedilatildeo mas inclui de modo decisivo uma disshy
posiccedilatildeo particular do observador que completa a accedilatildeo invisiacutevel do aparashy
to (no caso para a consumaccedilatildeo dos efeitos desejados era preciso que o
espectador da cena fosse Scottie com seu perfil e seu passado)
6 Para uma leitura de Vertigo que trabalha o dispositivo identidade simulashy
ccedilatildeovertigem e em particular sua resoluccedilatildeo traacutegica ao final do filme ver Robin
Wood Hitchcocks Films (Nova York Castle Books 1969) no qual a moldura eacute a
psicanaacutelise e Nelson Brissac Peixoto Cenaacuterio em ruiacutenas (Satildeo Paulo Brasiliense
1987) cujo texto pressupotildee uma reflexatildeo sobre o mundo dos efeitos-de-superficie o vazio a dissoluccedilatildeo da origem o simulacrQ
Tomei Vertigo como um laboratoacuterio no qual sob controle exibe-se
uma engenharia da simulaccedilatildeo aqrelaacionada pelo olhar do filme claacutessishy
co a qual alia a forccedila de seduccedilatildeo da cena agrave invisibilidade do aparato Para
finalizar gostaria de ir aleacutem dessa referecircncia mais imediata ao aparato do
cinema claacutessico pois a anaacutelise aqui feita permite uma inversatildeo nos mecashy
nismos destacados por discursos sobre o poder que mobilizam a metaacutefoshy
ra da sociedade como universo carceraacuterio e se desdobram em imagens
do aprisionamento pelo olhar Diante dos aparatos de comunicaccedilatildeo que
nos cercam eacute comum a caracterizaccedilatildeo de uma competecircncia de controle
de ordenamento cristalizada no olhar vigilante onipresente que se volta
o tempo todo para noacutes Considerando as tecnologias do olhar podemos
entretanto destacar um processo ordenador menos ostensivo que envolve
a accedilatildeo de um olhar que em vez de estar voltado para mim olha por rrtim
oferece-me pontos de vista coloca-se entre mim e o mundo (lembremos
a ironia de Vertigo Scottie eacute o olhar vigilante profissional mas o processhy
so de controle atua em sentido inverso - eacute o dispositivo que define seu
ponto de vista) Cercado de imagens vejo-me inscrito pela media numa
segunda natureza num processo que implica um cotejo de pontos de vista
muito peculiar que me afasta por exemplo do enfrentamento proacuteprio da
relaccedilatildeo pessoal intersubjetiva Esta se constitui pela devoluccedilatildeo do olhar
e nela repercute o que nos diz o poeta Antonio Machado o olho que vejo
eacute olho porque me vecirc natildeo porque o vejo Diante do aparato construtor de
imagens minha interaccedilatildeo eacute de outra ordem envolve um olho que natildeo
vejo e natildeo me vecirc que eacute olho porque substitui o meu porque me conduz
de bom grado ao seu lugar para eu enxe~gar mais ou talvez menos
Dado inagravelienaacutevel de minha experiecircncia o olhar fabricado eacute constanshy
te oferta de pontos de vista Enxergar efetivamente mais sem recusaacute-lo
implica discutir os termos desse olhar observar com ele o mundo mas
colocaacute-lo tambeacutem em foco recusando a condiccedilatildeo de total identificaccedilatildeo
com o aparato Enxergar mais eacute estar atento ao visiacutevel e tambeacutem ao que
fora do campo torna visiacutevel
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