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OPINIÃOJURÍDICASUMÁRIO: I. PRELIMINARES; II. A MERCANTILIZAÇÃO DO FUTURO; III. EMENDISMO EXACERBADO; III.a. As complexidades no manuseio da Constituição; III.b. As intoleráveis interferências em um dos Poderes; IV. A DESCONSTITUCIONALIZAÇÃO É FRAUDE CONSTITUCIONAL; V. UMA JURISDIÇÃO MANIETADA VIOLA A SEPARAÇÃO DE PODERES E ATENTA CONTRA A SUPREMACIA DA CONSTITUIÇÃO; VI. DESDÉM COM O PACTO FEDERATIVO: a unicidade gestora no sistema federativo.
SÍNTESE GERAL: i) A Constituição há de ser um todo coerente e harmônico. Qualquer proposta que ignore esse pressuposto é uma tentativa de desestabilização do nosso regime constitucional. Uma constante e injustificada alteração do Texto Maior solapa as bases de seu arranjo normativo intrínseco, de sua austeridade normativa, de sua sustentabilidade social original, desfigurando-a. Bem por isso é vedada até mesmo a mera tramitação de Proposta de Emenda Constitucional tendente a abolir as chamadas cláusulas de eternidade, como os direitos fundamentais, a separação de Poderes e o desenho federativo. ii) Não quero, aqui, estabelecer uma polêmica entre ideologias diversas, mas apenas sublinhar um movimento que, no Brasil, para ser legítimo, demandaria uma mudança da própria Constituição, e não uma mera mudança na Constituição vigente. O critério desta análise, é, portanto, a Constituição. iii) O sistema de capitalização é o grande diferencial a ser debatido. Com ele, de um lado, promove-se a transferência de todo o risco social para o indivíduo isolado e, de outro, promove-se a transferência para o sistema financeiro de benefícios econômicos inerentes ao regime das aposentadorias e demais prestações pecuniárias da previdência. A mudança para o sistema de capitalização é o reforço de um modelo de Estado cada vez mais ausente e distante da Constituição de 1988, que não se ocupa de políticas econômicas relacionadas ao crescimento do mercado de trabalho e ao desenvolvimento nacional. Ignora-se, ainda, a estrutura que amparou as escolhas constitucionais, como se fosse possível realizar mudanças dessa magnitude sem atingir outros setores sensíveis da Constituição. A passagem para a capitalização jamais poderá ser realizada, legitimamente, sob a Constituição de 1988. iv) Já vivenciamos, no Brasil, um longo período de reformas na previdência social. Em nenhum momento, porém, a radicalidade ínsita à atual Proposta havia se manifestado. Posso afirmar que os magistrados foram os mais afetados até o momento, porque deixaram definitivamente no passado o antigo regime especial, regulado principalmente por sua Lei Orgânica, para ingressarem em um novo regime previdenciário. Sobre essa migração ainda pairam relevantes impasses. Isso porque a previdência tem importante e insuperável papel na construção da Magistratura técnica, e não pode ser tratada como algo menor, deslocado do todo no qual se insere inexoravelmente. v) A miniaturização constitucional, com a retirada de uma rubrica previdenciária da Constituição, a chamada “desconstitucionalização” de regras previdenciárias, é, por si só, um decréscimo de garantia institucional e individual, algo inaceitável em termos constitucionais (art. 60, §4o, da B); a mudança em dois atos, nos termos em que desenvolvo, representa uma forma de fraude à Constituição. vi) Se fosse permitido ao constituinte reformador (que é apenas o Legislativo ordinário em quórum qualificadíssimo) retirar da pauta do Poder Judiciário certos assuntos, o que o impediria de, mais adiante, impedir decisões que supostamente prejudiquem os políticos em exercício democrático de seus cargos? A aplicação dessa ideia para outros setores, portanto, pode checar rapidamente à novas propostas, a incorporarem nacos de impunidade. O assunto sequer merece discussão. vii) A busca pela unicidade da gestão previdenciária, de maneira a englobar também o regime previdenciário dos magistrados, é inconstitucional, vai de encontro à separação de poderes, comprometendo decisivamente a autonomia do Poder Judiciário, a ponto de poder impactar na imparcialidade que se exige do juiz, submetendo-o ao constante risco de um decréscimo legislativo de seus proventos de aposentadoria.
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OPINIÃO JURÍDICA Emmuitomehonramasseguintesentidadeseseusmuiilustresrepresentantes:a ASSOCIAÇÃO DOS MAGISTRADOS BRASILEIROS – AMB, por seu PresidenteJayme Martins de Oliveira Neto; a ASSOCIAÇÃO DOS JUÍZES FEDERAIS DOBRASIL–AJUFE,porseuPresidenteFernandoMarceloMendes;aASSOCIAÇÃONACIONALDOSMAGISTRADOSDAJUSTIÇADOTRABALHO–ANAMATRA,porseuPresidenteGuilhermeGuimarãesFeliciano;aASSOCIAÇÃONACIONALDOSMEMBROS DO MINISTÉRIO PÚBLICO – CONAMP, por seu Presidente VictorHugo Palmeiro de Azevedo Neto; a ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOSPROCURADORES DA REPÚBLICA – ANPR, por seu Presidente José RobalinhoCavalcanti; a ASSOCIAÇÃO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO MILITAR –ANMPM, por seu Presidente Antônio Pereira Duarte; a ASSOCIAÇÃO DOMINISTÉRIOPÚBLICODODISTRITOFEDERALETERRITÓRIOS–AMPDFT,porseu Presidente Elísio Teixeira Lima Neto; a ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOSPROCURADORESDO TRABALHO – ANPT, por seu Presidente Ângelo FabianoFariasdaCosta aASSOCIAÇÃODOSMAGISTRADOSDODISTRITOFEDERALETERRITÓRIOS–AMAGIS/DF, por seuPresidenteFábioFranciscoEsteves, comconsultaendereçadaàPropostadeEmendaConstitucionaldaPrevidência,aPECno06,de2019.A Consulta, neste importante e destacado momento da sociedade brasileira,permite-melançarereforçarosentidoealcancedenossaConstituiçãocidadãde1988 – CB/88, resgatar algumas preocupações que deveriam estardefinitivamente superadas e sepultadas no passado, e apontar outras, cujapolêmica parece iniciar-se, agora, em caráter exacerbado. O intuito é o derealizar,nestemomento,umestudomaisobjetivo, sobrea constitucionalidadedealgunsaspectoscentraisdareferidaPEC.
I.PRELIMINARES
Emmomentos de acentuada crise, com nítido impacto
socialefortepressãopormudançasomaiordesafioénãosucumbiràtentação
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derevolucionarosistemapormeiododesrespeitoàsregrasbásicas,querdizer,
comafrontaàConstituição.Aessetipoderupturanãoestáautorizadonenhum
Governo,emnenhummomento.
Assim, ainda que se concorde firmemente com a
imprescindibilidadeeurgênciadeumamudançasubstancialnascontaspúblicas
enoorçamento,aindaqueumamploajustedevaocorrer,prioritariamente,no
microssistema previdenciário, nem por isso se poderá aceitar ou encampar,
automaticamente, todaequalquersolução,pormaisengenhosaeatraenteque
possa ser ou pormais amplo que possa ser seu apoio, político, econômico ou
mesmopopular.
ApropostadereformadaPrevidência,PECn.6,de2019,
está lançadacomoprioritáriapeloGoverno.Todossabemos,portanto,quenão
se trata de apenasmais umaPEC, ao ladode tantas outras que se diluemnos
meandrosdoCongressoNacional,quetramitamnotempopolíticoprópriodessa
instituiçãoquasebicentenária,cujoperfilcertamentenãoé–enemdeveser–o
daradicalidade.
Ademais,tambémnãosetratadeumaPECpontualoude
curtoespectromaterial.Estamosdiantedeumapropostademudançaaltamente
impactante para um tema muito sensível, desde a redemocratização, que é a
reconstruçãodasrelaçõessociaisbrasileiras,paranãofalardosignificadomais
intuitivodessetema,queéaescolhadeummodelodefuturoparaoBrasil.Esses
aspectoscostumamescaparaosanalistasmaisocupadoscomaspectostécnicos
da Proposta. Por isso entendo que a PEC, como desenhada, não pode ser
reduzidaaumameraquestãoprevidenciáriae,neste círculo temático restrito,
ser novamente reduzida a uma mera questão de escolha entre uma opção
saudável e outra (a atual) que seria destrutiva emaléfica. Apresentar o tema
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dessa forma envolve já adotar um pressuposto enviesado1, uma postura de
intransigência, que é inadmissível na Democracia, na medida em que solapa
desde a origem qualquer legitimidade de um discurso diferente, atentando
contraonúcleodequalquerDemocracia,queéadiscussãoamplaeorespeitoao
pluralismodeideias2.
Reforço,umavezmais,queesteestudonãosepropõea
apresentar uma análiseminuciosa de todos dispositivos encartados na PEC n.
06/163.Oobjetivo, aqui, é elencaras inconstitucionalidadesmais “destacadas”
dessaProposta,demaneiraacontribuirparaumaimportantereflexãoacercado
marco constitucional civilizatório que devemos ter como pressuposto em
qualquerdiscussãodesseporte.Tambémnãopretendodefenderdeterminadas
soluções ou alternativas dentre as várias possíveis. Em nossa Democracia, a
construção destes caminhos deve estar dirigida ao diálogo entre os Poderes e
destes com a sociedade civil, com a sociedade organizada e com as demais
instituições públicas e privadas envolvidas, e certamente requer uma análise
extremamente ampla, a englobar múltiplos fatores e dimensões da realidade,
alémdediversasalternativasquejácircularamemgovernosanteriores.
Destaco,aindanestaspreliminares,duasideiasquetêm
povoado alguns discursos reformistasmais inflamados, bem como as falas de
alguns atores políticos e sociais que as apoiam. Chamo a atenção para essas
específicas ideiasporqueépreciso tercuidadoredobradoparanão incorporar
inconscientementearadicalidadequelheséinerente.Asideiascontraasquais1 Aproprio-me, aqui, do sentido adotado em: HERMAN, Edward, CHOMSKY, Noam. A manipulação do público: política e poder econômico no uso da mídia. São Paulo: Futura, 2003. 2 Sobre o tema, cf. HÄBERLE, Peter. Pluralismo y Constitución: estudios de teoría constitucional de la sociedad abierta. Madrid: Tecnos, 2013. 3 Mas tomo isto também como preocupação, de maneira a não criar espantalhos pela falta de compreensão geral da PEC. A visão completa é imprescindível para levar adiante uma análise técnica e correta. Apenas não farei uma segmentação elucidativa item por item dos artigos da PEC e daqueles por ela referidos, alterados, eliminados ou acrescentados.
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devemosnosresguardarsão:i)aimpossibilidadedealternativas,nosentidode
que a atual (e também antiga) crise nos conduz à inevitabilidade do caminho
adotado (falo, aqui, especialmente, da capitalização), demaneira que contra o
inevitávelseria toliceoporouterdeseguiralgumpunhadoderegras jurídicas
obsoletas, como as constitucionais e, ii) a insistência em atribuir a pecha de
privilégiosaalgunsdireitosconstitucionaisedeterminadossetores,aíincluídoo
funcionalismopúblico.
A primeira ideia viola a supremacia constitucional
(parágrafo único do art. 1o da CB) e os limites constitucionais aos poderes
constituídos(art.2o,art.37,art.78,caputeart.64,§4o,todosdaCB).Asegunda
ideiaintentaconstruirumdiscursoque,emseuâmago,é,novamente,deataque
à Constituição, ao desenho institucional de funcionamento do Estado e aos
direitosconsagrados.Retornareiaestetemamaisadiante.
Em sua participação recente no Congresso Nacional o
MinistrodaEconomiabemsublinhouaimportânciadeodebatepolíticobalizar-
sepelamolduradenossaConstituição;assim,dentreoutrosaspectosressaltouo
necessário respeito à chamada “solidariedade” inerente ao sistema
previdenciário,(art.3o,inc.I,art.40,caputeart.201,caputdaCB)4.Deixoualia
mensagem,que considero extremamenteoportuna eprecisa, dequenãopode
haver reforma ou solução fora da Constituição. Contrapôs-se, pois, a alguns
discursos mais agressivos, que protagonizam uma luta imaginária com a
Constituiçãode1988,propositadamentealocada,demaneiranovelística,comoo
centro de todos os males e problemas que acometem o país. Essas cruzadas
4 Certamente há discordâncias sobre o ponto em que se rompe definitivamente com a solidariedade, mas quando se invoca a Constituição e o respeito à solidariedade emerge um consenso, nesse discurso, sobre o marco conceitual aceitável e legítimo para essa batalha, quer dizer, para as discordâncias.
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precarizam o diálogo racional e impedem o necessário avanço, com o qual a
grandemaioriaestá,primafacie,deacordo5.
Acercada atenção redobradaqueuma sociedadeháde
emprestar a esses contextos, de crise, urgência e inevitabilidade, já anotei, em
textopublicadoem2011,naRevistadoTribunalSuperiorEleitoral:
“A Constituição, como diploma normativo superior, fruto de um pacto social em dado momento histórico da sociedade, contém um equilíbrio muito delicado, que impõe, acima de tudo, o respeito no Estado Constitucional de Direito. Sua constante e injustificada alteração vai solapando-lhe as bases de seu arranjo normativo intrínseco, de sua austeridade normativa, de sua sustentabilidade social original, desfigurando-a. “Esse endereçamento inconsequente cobra um alto preço do estágio avançado (ou a avançar e consolidar) de nosso Estado Constitucional e Social de Direito, por ensejar o constante debate sobre a superação de um legítimo texto constitucional, banalizando e fragilizando a Constituição e os direitos humanos fundamentais. Como bem observou Carpizo (2008, p. 124), há uma preocupação legítima de que possam ocorrer retrocessos na democracia da América Latina [...]. “A democracia cobra atenção constante por parte de seus legítimos interessados. Estejamos atentos aos motivos e finalidades pretendidos por reformistas e por reformas normativas.”. (Justiça e Administração eleitorais na federação brasileira, in: Revista de Estudos Eleitorais, v. 6, n. 2, maio/ago 2011, p. 27).
Tenho reiteradamente insistido em um ponto que
haveria de ser amplamente consensual, independentemente das ideologias ou
interesses envolvidos: é uma contradição insuperável tentar transformar a
Constituição em um espaço de anomia, no qual caberiam todas as ideias,
soluções e figurinos que a imaginação humana fosse capaz de elucubrar. Isso
significa a própria negativa da essência do fenômeno constitucional. Não é
preciso, aqui, invocar este ou aquele dispositivo constitucional violado, pois
5 Apesar de pesquisa divulgada pelo instituto Datafolha, em 10 de abril de 2019, indicar que 51% são contra a reforma da Previdência, refiro-me, no texto, à ideia geral de mudanças para melhoria e aprimoramento do sistema, e não à PEC 6/19, que é o meu objeto de análise neste estudo, em alguns de seus tópicos.
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estamosdiantedeumaviolaçãomaciçado significadodeEstado limitado, sob
pena de retornarmos ao arbítrio das vontades individuais, de há tanto tempo
superadopeloGovernodasLeis.Tambémnãosepodeaceitarumtalpontode
partida,querdizer, uma liberdadeampla, geral e irrestrita, paraasdiscussões
previdenciárias, sob a Constituição de 1988. Retomarei esta linha de
pensamento adiante, porque ela é essencial e se conecta diretamente com as
chamadascláusulaspétreasoudeeternidade.
ONorteaqui,querdizer,ocritérioquenosdevemover
nesta e em qualquer outra análise de proposições normativas, é sempre a
Constituição, o marco civilizatório que encampa e as suas amarras ou
salvaguardas (direitos fundamentais, garantias processuais, instrumentais e
institucionais) que propiciaram ao Brasil alcançar o atual patamar normativo
avançadodoqualdevemosnosorgulhar.
Exatamente por isso a Constituição estabelece que é
vedada até mesmo a mera tramitação de Proposta de Emenda Constitucional
tendenteaabolirasreferidascláusulasdeeternidade(art.60,§4o,daCB),como
é o caso dos direitos fundamentais, da separação de Poderes e do desenho
federativo,todoselesviolentadospelaPECno6/19,comotereiaoportunidade
de demonstrar adiante. Estes temas ali figuram como fora da agenda do
Legislador(edoExecutivo,pormaiorrazão)paraprotegeratodos,enãocomo
umafórmulaarcaicadeengessamentosocial.
Portanto, é imprescindível, em uma verificação de
constitucionalidade,averiguaracompatibilidadeentrepropostasdemudançae
aparcela inquebrantáveldaConstituição.Nãosetrata-e insistonesseponto-
de julgar uma PEC pelo seumérito, grau de inovação, conveniência ou beleza
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estrutural, e sim pela sua compatibilidade com nosso Pacto Fundamental
naquiloquepodemosconsideraronúcleodurodestePacto.
Assim,aconclusãoaquechegodaPropostaapresentada
peloGovernoFederal–antecipandooestudoquesesegue–éanecessidadede
reparos imediatos, filtrandoseusexcessosedesajustesparaalinhá-laaonosso
EstadoConstitucional, demaneira a reforçar a supremaciadaConstituiçãoe a
subordinaçãodetodosaoquevainelapreceituadocomoinalterável.
Essa tarefa,querdizer, aanálisedaconstitucionalidade
de um texto que pretendemudar a própria Constituição, é função primordial
(inaugural) que compete ao Congresso Nacional, a cada uma de suas Casas e,
especialmente,àsrespectivascomissõesencarregadasdessealtomister.
NaCâmaradosDeputados,espaçotécnico-políticoonde
atualmente se encontra a Proposta, a Comissão de Constituição e Justiça e de
Cidadania deve avaliar a “admissibilidade de proposta de emenda à
Constituição”(alíneabdoinc.IVdoart.32,doRICD).EaPropostaseráavaliada
poressaComissãoparaenfrentar“oexamedosaspectosdeconstitucionalidade,
legalidade, juridicidade, regimentalidade ede técnica legislativa, e, juntamente
comascomissõestécnicas,parapronunciar-sesobreoseumérito,quandoforo
caso”(art.53,inc.III,doRICD,cf.redaçãoadaptadaàResoluçãon.20,de2004).
Como registrei em outra oportunidade, sobre se o
Projeto “éoportuno,bomouvirtuosonãodeverápronunciar-se”6, respeitando
asatribuiçõesdasdemaiscomissõestemáticasemesmodoPlenário.Trata-sede
6 TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 17 ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 1049.
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análisedecaráterestritamentetécnico7,masdealtarelevânciaparaasociedade,
porqueimplicaempreservarocernedurodaConstituição.
Caso a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania
adote parecer favorável à PEC sem os ajustes ou ressalvas de
constitucionalidade,estarácertamenteinfringindooart.60,§4o,daCB.
Expurgados os vícios de inconstitucionalidade por
violação ao art. 60, §4o, da CB, teremos então uma regular a tramitação de
qualquerPropostadeEmenda,peloCongressoNacional,afimdeserdiscutida,
aprimorada e, eventualmente, ser aprovada. Esse iter confere a qualquer
mudança ou inovação normativa a necessária certificação de legitimidade
mínimaqueseimpõe,àspropostas,emumaDemocraciaavançada.
II.AMERCANTILIZAÇÃODOFUTURO
Écertoqueainclusãodosdireitosprevidenciáriosnorol
dascláusulaspétreasé fontedegrandeceleuma,enãopretendoretomaresse
assuntoealongadiscussãoquecomelesearrasta.
Façoessareservaporqueconsideroestarmosdiantede
umadiscussãocalcadaempressupostomuitodiverso,aqui,daquelaqueocorreu
emmudanças (ediscussões) constitucionaispassadas.É certoquesobreessas
ocorrências passadas é possível encontrar alguns posicionamentos mais
flexíveis, tantodoSupremoTribunalFederal8,acercadedireitoadquiridoede
proteçãoda segurança, como tambémda literatura especializada e atémesmo7 Atuação realizada por uma Casa política, mas que nem por isso deve deixar de ser técnica. Pelo contrário, adotado um viés político na avaliação de qualquer proposta, tem-se a deturpação imediata dessa alta função comissional e a nulidade do resultado assim obtido. 8 Cf. STF, ADI 3128/DF, rel. Min. Ellen Gracie, rel. para o acórdão, Min. Cezar Peluso, j. 18/08/2004.
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deoutrostribunaispeloMundo9,queforamconfrontadoscomfortesmedidasde
austeridadeourestriçõesemmomentosdecriseeconômicarecente.
OcasodaPEC16/19,comodizia,étotalmentediferente
e,nessamedida,nãocabeinvocarajurisprudênciapermissivadoSTF.Équenão
se trata de retomar uma discussão sobre decréscimo de contrapartida ou
distensão temporal para iniciar o exercício de direitos, dentro de ummesmo
sistema,comoocorreunasreformaspassadasdasPrevidência.Estamos,agora,
diante de uma proposta de mudança muito mais profunda, a substituir os
próprios pilares do sistema previdenciário adotado em 1988. Seria isso
possível? Essa é uma discussão inédita. Essa percepção nos obriga a
compreenderqueaperguntacorreta(ouaanálisedeconstitucionalidade)aser
feita é totalmente diversa daquela que se fez em momentos anteriores de
mudança.
O que importa saber, agora, é da compatibilidade
constitucionalnesse alijar aspessoas (emgeral, e não apenaso funcionalismo
público)deummodeloconcebidoinicialmentecomoomaisadequadoejustoà
sociedadebrasileira(art.3oc.c.art.170eart.201,caput,todosdaCB),equeestá
integrado a diversas outras normas constitucionais, como os direitos
fundamentais, os direitos trabalhistas (art. 6o), o mercado interno como
patrimônionacional e não comopatrimônio exclusivamenteprivado (art. 219,
daCB)ecomaseparaçãodepoderes(art.2oc.c.art.93,incs.VeVI,art.95eart.
96,todosdaCB).Areviravoltaemrelaçãoàsengrenagensengendradasem1988
coloca a mutação pretendida em uma posição nunca antes proposta
oficialmente.
9 A exemplo de certos pronunciamentos do Tribunal Constitucional português. Cf., a propósito do tema daquela que ficou chamada como jurisprudência de crise: Acórdão 396/2011; Acórdão 353/2012; Acórdão 187/2013 e Acórdão 413/2014. No Brasil temos uma discussão sobre o consequencialismo jurídico.
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Ademais, e ainda nessa linha, é também preciso
compreender o contexto do qual emerge essa Proposta. Estamos vivenciando
ummomento que é, nitidamente, de ataque ao chamadoEstadodoBem-Estar
social.Omaissurpreendente,porém,éaacusaçãodequeomodelosocialdesse
Estado seria a origemda crise emiséria social, que é ele o culpado e omaior
responsável pelo desmantelamento dos empregos, pelos altos índices de
desocupação da mão-de-obra e pela ausência de uma perspectiva mínima de
futuro adequado para a sociedade. Sob essa bandeira, que é infundada,
desconexa, incoerente e, em certos momentos, raivosa, promoveram-se, no
BrasileemoutraspartesdoMundo,v.g.,reformastrabalhistasquetornaramo
respectivo mercado menos regulado, a exemplo do que já havia sido feito,
pioneiramente,pelosEUA,comomercadofinanceiro(equenosconduziuàcrise
econômicamundialde2008,cujosefeitosprolongam-seatéosdiasdehoje)10.
O problema que pretendo ressaltar, aqui, está
justamenteemignorarosinevitáveisvínculosentreasrelaçõestrabalhistasem
geral e o sistema previdenciário (que compõem o Estado social). O
desmantelamento de um funciona como combustível para implodir o outro. É
que o sistema previdenciário opera com um modelo de financiamento
contributivo cuja base e cujo pressuposto são as saudáveis relações na vida
laboral(salvo,evidentemente,omodelodecapitalização).Oenvelhecimentode
grandepartedapopulaçãobrasileira,emsuasprojeçõesparaofuturoéalgoque
necessita serequacionado.Masoquemolestouprofundamenteesseequilíbrio
fino construído constitucionalmente foi a reforma trabalhista somada com a
10 Para uma crítica aos economistas e a falta de atenção a certos sinais que conduziram à crise, cf. GLABRAITH, James K. The end of normal. New York: Simon & Schuster, 2014, pp. 65 e ss.
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falta de políticas econômicas de proteção do chamadomercado de trabalho11.
Em análise extremamente precisa, Antón Losada posiciona-se, nesse mesmo
sentido, ao advertir que: “Se o emprego é seguro, estável e de qualidade, o
sistemaprevidenciáriotemingressossuficientespararepartirenãosofre.”12.
Se a economia é forte ou se há, ao menos, políticas
econômicas devidamente planejadas e implementadas, que sinalizam uma
consciência estatal, um caminho de retomada do desenvolvimento nacional,
resulta, inevitavelmente, uma tutela também do mercado de trabalho. Ao
contrário,sesucumbimosaosimplóriodiscursodaescassezgeral,lugarcomum
nosdiasdehoje,eaodaimpossibilidadedecrescimentoedesenvolvimentosem
cortes, reduções e constrições imediatas, o resultado costuma ser,
invariavelmente,aparalisiaeconômica,comataqueaosdoisprincipaisinimigos
imaginários: as regras de proteção do mercado de trabalho e as regras
previdenciárias. O Brasil, lamentavelmente, trilha um roteiro bem conhecido,
perigosoe inconsequenteparacomofuturosocioeconômicodopaís,aoeleger
essessupostosinimigos.
Insisto nesse ponto, que me parece crucial para bem
situar aPEC6/19.Estivemosprocessandonosúltimos temposoabandonodo
tradicionalcentrodegravidadelaboral,calcadonotrabalhoqualitativoeseguro,
comas respectivas formalidades e doqual surgemas bases adequadaspara o
financiamento público da previdência. E caminhamos para um outro cenário,
bemdiverso, de relações trabalhistas supostamente entre autônomos e iguais.
Essa mudança não foi apenas normativa, pois também ganhou impulso pela
11 Certamente podem haver outras causas, como políticas populistas, envelhecimento acentuado da população, elevação da expecatativa de vida e processos inflacionários. Refiro-me, porém, às causas mais evidenciadas em ações estatais recentes. 12 Piratas de lo público. 3. ed. Barcelona: Deusto, 2014, p. 266.
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completafalta(oufalhagrave,emalgunsraroscasos13)depolíticaseconômicas
capazes de incentivar e promover a imprescindível expansão de postos de
trabalhos e da economia como um todo. Assim, foram, deliberadamente,
retiradas as bases de sustentação do modelo de financiamento contributivo
intergeracional, o que está, ainda hoje, a representar um ataque direto à
solidariedadeconstitucionalmenteimpostaeaofuturodasociedade.
Outro resultado foi, certamente, o revigoramento do
discursodaescassez, jáquepartedaengrenagemconstitucional foidesfeitae,
com ela, esgotou-se o delicado equilíbrio que existia inicialmente.
Independentemente dos caminhos para a superação desse estado de coisas,
quero apenas sublinhar, neste momento, que o assunto não pode ser tratado
comoalgoinesperadoouinevitável.
Como se percebe, o Brasil parece tentar inverter a
fórmula,amplamentereconhecidaeconomicamente,eatécertopontointuitiva,
de ampliar os postos de trabalho (e até reforçar a segurança das relações
trabalhistas)e/ouomercadoconsumidoresuacapacidadededemanda,como
meiodeestimularaeconomia.Medidasconstritivasdomercadodetrabalhosão
revigoradase as relaçõesvão sedegradandoatéumponto (queéo atual) em
que cortes, reduções e políticas regressivas ainda maiores são elaboradas e
implementadas. Parece assumir uma posição secundária, cronologicamente
falando,aelaboraçãodeefetivaspolíticaseconômicasderetomada.Ouseja,na
crise, ao invés de debelá-la, seja pelo lado da demanda, do consumo ou de
qualquer outra perspectiva assumida como apropriada, quer-se realizar mais
reduçãosocioeconômica,maiscortes,menosdireitos,menosserviçospúblicos,
levantando salvaguardas ainda existentes, para o cidadão, para sua família e
13 Como a política de isenções para grandes indústrias, sem contrapartidas concretas.
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paraseufuturo,apatamaresirrisóriose,emalgunsserviços,atéoníveldesua
aniquilaçãoemtermosdepresençadoEstado.
Disso resulta, para ser sintético, que, de um lado,
promove-seatransferênciadetodooriscosocialparaoindivíduoisolado
e,deoutro,umbenefícioqueéúnicoedirecionadoexclusivamenteparao
sistemafinanceiro.Oretrocessonãopoderiasermaisevidente.Vejamosesses
dois pontos, sem perder a perspectiva do cenário fático que descrevi
anteriormente.
Carlo Bordoni, em reflexão datada de 2014, trata
amplamente sobre essa que é uma das mais surpreendentes mudanças em
andamentonaatualidade,tendocomopanodefundoospretensosperíodosde
crise(quepassaramaserpermanentesenãocíclicos,umcapitalismoquenãoé
nunca mais de prosperidade para todos). O pressuposto parece ser muito
apropriado para as economias periféricas e para o Brasil, dentre elas, em
especial. As últimas décadas têm sidomarcadas pela crise econômica e pelas
medidasfrustradasemtermosdeavançosocioeconômico.
Há, na linha desse pensador, ummovimento forte pela
ausência do Estado, sob o slogan do empreendedorismo individual. É o que
vimos operar nas referidas reformas trabalhistas e que outros poderiam
apresentar como sendo “apenas” a ampla liberdade com responsabilidade
pessoal.Maisdoquerelembrarumalongapolêmicasocial,tenhoporcertoque
essemodelopresta-seaabandonardeterminadospadrõesdesegurançaque,no
casobrasileiro,estão incorporadosdefinitivamenteemnossaConstituição(art.
1o, incs. II, IIIe IV,art.3o, incs. I, IIe III, art.5o,caput e inc.XXXVI,art.7o, inc.
XXIVeart.170,inc.VIIeVIII).Nassuaspalavras:
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“À diferença do liberalismo clássico, que contemplava um modelo puramente de mercado, deixado à iniciativa privada e à livre competição sem nenhuma intervenção do Estado (‘mais mercado, menos Estado’), o neoliberalismo se instala no próprio Estado. Wendy Brown argumenta que o liberalismo, em contraste com o liberalismo clássico, tende a empoderar cidadãos para transformá-los em empreendedores; por conseguinte, em estabelecer uma ética sem precedentes de cálculo econômico’, a qual se aplica a atividades em favor do público que antes o governo garantia.”14. Em uma das análises que considero dasmais acuradas
sobreoqueestamosavivenciarnosdiasatuais,CarloBordoniarremata:
“A prática do neoliberalismo submete as funções sociais do Estado ao cálculo econômico: uma prática não usual, que introduziu critérios de viabilidade nos serviços públicos, como se eles fossem empresas privadas, para ordenar os campos de educação, saúde, seguridade social [...] sob uma perspectiva econômica. “Consequentemente, o neoliberalismo retira a responsabilidade do Estado, fazendo-o renunciar às suas prerrogativas e avançar na direção e sua gradual privatização. “[...] A crise do Estado se deve à presença desses dois elementos: incapacidade de tomar decisões concretas no âmbito econômico e, portanto, a incapacidade de prover serviços socais adequados.”15.
Insisto que não quero, aqui, retomar oume posicionar
em uma conhecida (e nãomuito profícua) polêmica entre ideologias diversas
que lamentavelmente se tornaram extremadas, mas apenas sublinhar a
ocorrência de um movimento concreto que, no Brasil, para ser legítimo,
demandariaumamudançadaprópriaConstituição,enãoumameramudançana
Constituição vigente, por força das cláusulas pétreas esgarçadas que acabo de
enumerar.Haveriade se fazer, pois, umdebatemuitomais amplo,profundoe
socialmentelegitimador,comaclarezadarupturacomoPactofundante.
14 Obra em co-autoria co Zygmunt Bauman: Estado de crise. Rio de Janeiro: Zahar, 2016, p. 27-8. 15 Op. cit., p. 28, original não grifado.
16
AatualConstituiçãodesautorizaumcálculomeramente
econômico para fins de impor uma mudança com o porte desta que vai
encartadanaPECno6/19.Essetipocálculoconduzànegaçãodosvínculosmais
básicosquesempreexistiramentrecidadãoeEstado,equeestãoimpostospela
Constituiçãobrasileira(art.1o,incs.II,IIIeIV,art.3o,incs.I,IIeIII,art.5o,caput
e inc.XXXVI,art.34, inc.X,art.40,art.170, inc.VIIeVIII,art.203eart.201).
Maisrecentementetem-setambémadmitidoachamadavedaçãodoretrocesso
social, ínsitaàdignidadedapessoahumana(art.1o, inc. III,daCB)eaoEstado
socialbrasileiro(art.6oeart.7o,inc.XXIV,daCB).
A mudança para o sistema de capitalização é
exatamenteoreforçoeocomplementodesseEstadocadavezmaisausente
e distante da Constituição de 1988, com o indivíduo sendo o único
responsável pelo seu bem-estar e dos demais sob sua responsabilidade, e,
finalmente,comatransferênciaparaomercadoprivadofinanceirodassituações
que,apresentandoonecessárioatrativodoretornoeconômico,encontravam-se,
anteriormente,sobaresponsabilidadedoEstado.
Acapitalizaçãocomocaminhomágicoderetomadapara
o país, em realidade, apenas reforça tendências recentes. Insere-se no amplo
movimento de estímulo e ampliação estatal da atividade financeira de poucas
instituições privadas autorizadas a operarem, em sistema altamente
concentrado,extremamenteopacoesemqualquercontrolesocial.AntónLosada
trata desse ponto commaestria, ao reforçar uma característicamuito própria
dos benefícios previdenciários: “diferentemente da saúde pública ou da
educação, convertem-se com relativa facilidade em um bem privado e em um
17
complexo produto financeiro.”16, representando, para os bancos, em suas
palavras,“umativofinanceirobarato”17.
A capitalização, portanto, tem pressupostos e
funcionamento significativamente diversos (diria até mesmo opostos) do
sistemapúblicoderepartiçãoesolidariedadeadotado,incorporadoeintegrado
naConstituiçãode1988,comocláusulapétrea,nostermosexatosanteriormente
apresentados.
A transformação de aposentadorias em ativos
financeiros émedidade evidenteprivatização ampla e irrestrita domodelo.A
passagem de empresas estatais para o setor privado, pormeio de fenômenos
como os de desestatização, privatização etc., não é necessariamente
inconstitucional. Mas, no caso presente, o Estado social é abalado
estruturalmente pela radicalidade inerente à capitalização como modelo
substitutopara aprevidência social.O também transmitir a “supervisão”, uma
atividade já típicadeumEstadomínimo,parao setorprivado, comose fazna
PECemrelaçãoaosbancos,evidenciaaagressividadeeotomdesacertadodessa
Proposta. Sua adoção, mesmo que apenas para as novas gerações, rompe
definitivamentecomessespilaresconstitucionais,comoassenteiacima.
Atrocapretendida,deummodelodesolidariedade,para
outro, de individualidade, viola o nível de proteção à dignidade alcançado em
1988(art.1o,inc.IIIc.c.art.23,inc.Xeart.60,§4o,inc.IV,daCB).
16 Op. cit., p. 295. Essa característica, no Brasil, está, ademais, reconhecida constitucionalmente, pelo art. 202, ao abordar a possibilidade de um regime complementar de previdência privada. 17 Id., ibid.: “[...] para las entidades financeiras, nuestros planes de pensiones son fondos de inversión depositados por clientes que no tienen control alguno sobre sus decisiones y como tales los gestionan en las Bolsas.”.
18
No julgamento da ADI 240-6/RJ ficou assentado, no
adendoaovotoproferidopeloMin.OctávioGallotti,Relator,queasolidariedade
constitui elemento intrínseco a todos os sistemas, superando até mesmo a
autonomia dos estados-membros. Trata-se, efetivamente, de elemento
impositivododesenhofederativobrasileiro.
Relembro,aqui,ainda,odispostonoreferidoart.23,que
determina competir aos Poderes Públicos de todos os níveis federativos “X –
combateras causasdapobreza [...] promovendoa integração [...]”.Trata-sede
determinação que institui deveres genéricos aos Poderes Públicos, a partir do
art. 3o, que impõe o objetivo de “erradicar a pobreza [...] e reduzir as
desigualdades”. Ora, como bem sabemos, a Seguridade Social estruturada na
Constituição realiza exatamente essesdesideratos edeveres, quando realizada
peloEstado.Portodosquejátrataramdoassunto,reforçoessepressupostocom
asliçõespontuaisdeGnazzo:
“[...] um dos argumentos mais estendidos para defender aexistência de uma rede de seguridade social é seu efeito parareduzirapobrezaemelhoraradistribuiçãodariqueza”18.Essa troca também envolve a passagemde ummodelo
desupervisãoecoordenaçãopúblicaparaoutrodesupervisãoprivada19,oque
viola o próprio Estado mínimo, que não está autorizado a desincumbir-se de
suas funções básicas e intransferíveis, delegando-as a entidades privadas (art.
201eart.230,caput,daCB).
18 Principios fundamentales de finanzas publicas. Montevideo: s/ed, 1997, p. 425, tradução livre. O autor anota as divergências que existem, muitas das quais decorrem de específicas regras de cada sistema, pelo que é necessário, sempre, ter atenção redobrada, não sendo suficiente apenas estabelecer um sistema de fundo único e repartição. 19 O assunto veio retratado no art. 115, a ser acrescido ao ADCT, que em seu inc. III tem os seguintes termos: “III - gestão das reservas por entidades de previdência públicas e privadas, habilitadas por órgão regulador [...]”, sem maiores preocupações ou especificações.
19
É absolutamente inapropriado pensar-se nomodelo de
previdênciasocialcomoumproblemaisolado,desvinculadodasdemaisopções
constitucionais, podendo ser enfrentado de maneira apartada como se a
Constituiçãofosseapenasumconjuntonãosistêmico20denormas,comosefosse
possível ignorar não apenas conexões internas, mas sobretudo a estrutura
constitucional em si mesma, que se formou em bloco e não em capítulos
independentes.Umaopçãoemumâmbitosocial,afetou(naconstituinte)eafeta
(na atualidade) a outra, sobretudo, como visto, no assunto aqui tratado. E
algumas opções estão vedadas, justamente por desfigurarem totalmente a
Constituição em seu núcleo imutável que venho indicado, em seus diversos
artigos,nesteestudo.
Assim, a passagem, supostamente inevitável, para um
novo universo previdenciário financeirizado, abandona as bases que se
assentaram em nosso Pacto Fundamental. Não é possível realizá-la, nesta
Quadraconstitucional,semofenderdiretamenteasolidariedade(art.3o,in.I,da
CB), os deveres mínimos e indelegáveis do Estado (art. 23, inc. X e art. 230,
caput),osvaloressociaisdotrabalhoedomercadointerno(art.170,caputeart.
219,daCB), e, demaneira geral, oblocodenormasqueerigeoBrasil emum
Estado Social e Democrático de Direito, já amplamente referido aqui. Todas
essas cláusulas são normas reforçadas pela imutabilidade típica de nosso
constitucionalismo(art.60,§4o,daCB).
20 Essa concepção é vastamente aceita na Doutrina. Cf.: BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e interpretação constitucional, 3ª ed. São Paulo: Celso Bastos Editor, 2002, p. 174, GARGARELLA, Roberto. La sala de máquinas de la Constitución. Madrid: Katz editores, 2015; TAVARES, André Ramos. Curso de Direito constitucional. 17. Ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 192.
20
III.EMENDISMOEXACERBADO
III.a.AscomplexidadesnomanuseiodaConstituição
O tema previdenciário, considerado de maneira geral,
encontra-se imerso em um cenário de alta complexidade normativa, dado o
conhecido contexto de modificações substanciais ocorrido na vigência da
Constituiçãode1988,porsucessivasemendasconstitucionaisqueensejarama
chamadaamplaegeralReformaPrevidenciária.Comosabemos,aprimeirafoia
ECn.03/9321,seguidapelaECn.20/98,ECn.41/03,ECn.47/05,ECn.70/12e,
maisrecentemente,aECn.88/15.
Seria desnecessário relembrar, neste ponto do estudo,
que a Constituição há de ser um todo coerente e harmônico. Mas gostaria de
retomar esse tema que mencionei no item anterior para assentar mais
profundamente as suas bases. A mudança de um único artigo pode gerar
impacto em diversos setores constitucionais, ainda que estes outros setores
permaneçam formalmente intocados. Por isso a dificuldade em aceitar-se o
fenômeno que ficou conhecido, de maneira depreciativa, como emendismo
constitucional22, considerado uma forma de retalhar a Constituição,
desfigurando-a,comoseestivéssemosapenasaretocá-laparaobemdetodos.A
preocupaçãoestábemassentadanaobra“AsalademáquinasdaConstituição”,
de Gargarella, em lição de todo aproveitável aqui: “Frente a tais reformas,
sustentamos que não se poderiam ler as mesmas como se afetasse a seções
autônomasdaConstituição”23.
21 A EC 3/93 alterou, dentre outras matérias, o §6º do art. 40 da CB, que dispunha sobre aposentadorias e pensões dos servidores públicos federais quanto ao custeio. Posteriormente foi integralmente revogado pela EC 20/98. 22 Fruto não de uma Constituição inadequada, mas sim de um Congresso Nacional que se mostrou, no passado recente, suscetível às pressões das mais diversas origens. 23 Op. cit., p. 309.
21
Asalteraçõesprevidenciáriasquesesucederamaolongo
da vigência da Constituição de 1988 não foram motivadas por um casuísmo
partidário,maspelasdiscussõesqueseiniciaramapartirde1991.Redundaram
noesforçopolíticodereformularosistemaprevidenciário,considerando,emum
primeiro momento, a necessidade de propiciar a sua sobrevida diante da
reconhecida “escassezde recursospúblicos e a consequente insuficiênciasdos
mesmospara fazer frente faceaocustodosbenefíciosprevidenciários”24e,em
umsegundomomento,tiveramporpressupostoamaioreficiênciaeotimização
operacionalnecessáriadiantedacrescentevariaçãodemográficadapopulação
brasileira.
Vislumbrou-secomocentralnesseprocessodemutação
aunificação do regime jurídico previdenciário dos servidores públicos, e uma
clara tendência política de aproximação das regras do RPPS às do RGPS.
Tendência esta que, ao invés de concretizar-se por uma única decisão
constituinte reformadora, estendeu-se por sucessivas emendas constitucionais
que desmantelaram o sistema previdenciário, tornando seu regime
demasiadamente complexo e suscetível a intermináveis discussões jurídicas,
sobretudoatinentesasuaconstitucionalidade.
Por isso,qualqueranálisedeumnovomacroprojetode
Reforma da Previdência não pode deixar de enfrentar o tema das camadas
sucessivasdecomplexidade25,comavaliaçãocríticadasdiversasimplicaçõesem
outros tantos setores constitucionais, como o do funcionalismo, do papel do
Estado,etc.,bemcomonãosepodedesconsiderarosquestionamentosqueserão
levados,nosanossucessivos,aoPoderJudiciário.
24 MINISTÉRIO DA PREVIDÊNCIA SOCIAL, Reflexões e desafios, p. 42. 25 Mesmo na mudança radical do sistema previdenciário em si, permanecem e se avolumam as dificuldades, seja em virtude das regras transitórias, seja em virtude das exceções, seja pela judicialização.
22
Ademais,oprocessodoemendismoeodajudicialização
impedemaestabilizaçãomínimadasregrasprevidenciáriase,porconsequência,
impedemaproteçãoda confiança legítimado cidadão (art. 5o,caput, daCB) e
segurado-contribuinte do sistema (art. 201, da CB). É o estado de completa
incertezaou,parausaraspalavrasmaischocantes,masnãomenosverdadeiras,
de Zygmunt Bauman, é a sensação “de ignorância (nenhuma ideia do que vai
acontecer)edeimpotência(nenhummeiodeevitarqueaconteça)”.Asurpresa
está emo Estado ser o promotor principal desse cenário perverso, aomesmo
tempo em que se torna, com ele, paradoxalmente, vítima de si mesmo (ao
reduzir-see,comisso,perderparcelavolumosadeumpoderdoqualpodevira
necessitar). Avoluma-se, assim, o fantasma da indignação geral, que está aí,
comodizoautor,eque“nosindicaramumamaneiradedescarregá-la,aindaque
temporariamente:irparaasruaseocupá-las”26.
Do ponto de vista jurídico-histórico, um rápido
vislumbre dessas alterações previdenciárias que se sucederam em anos
anteriores permite reconhecer um amplo campo de incertezas jurídicas em
torno da proteção da confiança e de direitos previdenciários, diante do
regramento transitório e definitivo que foi se acumulando, sucessivamente,
muitasvezesdemaneiraespúriaeatabalhoada.
Em meio a esse longo período de reformas, pode-se
afirmar, com correção, que os magistrados foram dos mais afetados, porque
deixaram definitivamente no passado o antigo regime especial, regulado
principalmente por sua Lei Orgânica, para ingressarem em um novo regime
previdenciário. Sobre essa migração ainda pairam relevantes impasses e até
mesmoduvidosaconstitucionalidade,especialmenteemrelaçãoacertostópicos
26 Estado de crise, pp. 36-7.
23
de maior conexão com as cláusulas constitucionais da independência e da
separaçãodospoderes.Masnãosepode,certamente,falaremprivilégios.
Os fundamentos que levaram aos questionamentos das
reformasanterioresretornarão,commaior intensidade,naeventualaprovação
destanovaProposta.
Um ponto em particular chama também a atenção. É a
violação sistemática, na PEC, à separação de poderes, seja a orgânica, seja a
territorial. No que toda à Magistratura constitucional, a previdência se
transformaemummeiosub-reptíciodequebrarsuaindependência.
III.b.AsintoleráveisinterferênciasemumdosPoderes
Umadasregrasconstitucionaismaiscomezinhas,aqui,é
a que veda aplicar um regime gravoso às situações prestacionais sociais em
cursooujáconsolidadas,porforçadomandamentoconstitucionalquepreserva
oato jurídicoperfeitoeodireitoadquiridoe,maisamplamente,aproteçãoda
segurançajurídicaevedaçãodoretrocesso,jámencionadasanteriormente.
Mas o assunto comporta uma especificação, pois a
mudançaemregrasprevidenciáriasdirigidasàMagistraturadeverespeitarum
outromicrossistema constitucional próprio. Amudança que vai lançada agora
na PEC n. 06/19 é uma proposta que está em franca rota de colisão com a
vitaliciedade e a irredutibilidade de remuneração (e com suas conexões
constitucionalmenteconsolidadas).
Sendo garantias da sociedade, dirigidas àMagistratura,
justamenteairredutibilidadeeavitaliciedade,gerar-se-iaumainconsistênciae
umainvalidadeinsuperávelumnovoregramentoquepermitisseaomagistrado
24
auferirdeterminadomontanteaolongodesuavidafuncionalpara,nomomento
de aposentar-se, perceber valores a menor. Há violação da separação de
poderes, da independência que se exige para uma Magistratura e, ainda, da
irredutibilidadeconsagradanaConstituiçãode1988.
CabeaooperadorconscientedaConstituiçãoreconhecer
essapeculiaridadedoregimedaMagistraturanacional,queodiferencianãono
sentidodeestabelecimentodeprivilégios,massimnoâmbitodeumadisciplina
própria,específica,quefoiengendradapelaConstituiçãode1988naformatação
dos “Poderes”. A previdência tem importante e insuperável papel na
construção da Magistratura técnica, especialmente para preservar a
separaçãodePodereseasseguraranecessáriaindependênciadosmagistrados,
colocando-osa salvodopoderioeconômicoedaseventuais ameaçasadvindas
de outros poderes, que pudessem comprometer a lisura e imparcialidade que
devem caracterizar os julgamentos judiciais. Uma interpretação
constitucionalmente conforme não poderia desconhecer esse panorama
específico,sobpenadesetornarumaleituramancae,nessamedida,imprópria.
Em síntese, a irredutibilidade de remuneração está
diretamente relacionada com a vitaliciedade e, ainda, com a “separação de
Poderes”, e o respectivo regime de previdência, não podendo ser ignorado
enquanto elemento normativo particular desse específico sistema
constitucional.Daíasconclusõesaquialcançadaspela inconstitucionalidadeda
PECnessetópico.
25
IV.ADESCONSTITUCIONALIZAÇÃOÉFRAUDECONSTITUCIONAL
Aoalterar o art. 40, § 1º, o art. 201, § 4º, e criar o art.
201-A,aPECn.6/19remodelaosistemadeSeguridadeSocial(previdenciária)
do Poder Judiciário para remeter seu regramento à Lei Complementar,
promovendo uma retirada do tema de seu atual nível hierárquico, que é
constitucional.
Não quero, nestemomento, reiterar a crítica, acertada,
sobre uma dimensão excessivamente ampla da Constituição de 1988, de
maneiraque,comela, certamentepassamosa teruma larguezahiperbólicano
espectro temático e de detalhamento encontrado em nível constitucional.
Também não é desarrazoado supor que temas possam ser
desconstitucionalizados, reduzindo ou enxugando essa que é considerada por
muitoscomoumadasmaioresconstituiçõesdoMundo.
Mas quando são abordadas garantias constitucionais,
direitos estabelecidos e regras sobre a separação de poderes, essa
miniaturização constitucional, coma retiradadessa respectiva rubrica é,
por si só, um decréscimo de garantia institucional e individual, algo
inaceitável no estágio atual, a violar diretamente essas cláusulas
permanentes(art.60,§4o,incs.IeIII,daCB)27.
Mesmo que analisemos estritamente essa mudança de
nível,queocorreefetivamenteemalgunstemas,éprecisocompreenderqueela
incorpora uma facilitação de novamudança, no futuro, por quórumbemmais
simplificado e suscetível às pressões transitórias, de Governo ou mesmo de27 A Proposta, a um só tempo, retira direito e garantias institucionais da Constituição e, em outras passagens, promove sua redução. Logo, não é, como já sabemos, apenas uma mudança de nível (desconstitucionalização).
26
certos grupos de poder. Por qual motivo escancarar algumas salvaguardas
básicasaojogodepoderoudeinteressesqueésempretransitório?
OqueaPECfaz,nessescasos,énãoalterarcertasregras
oudireitos,agora,masdesconstitucionalizá-las,espelhandoavelhaConstituição
em nova Lei para, em momento seguinte, e com exigências (e salvaguardas)
menores,permitirqueseprocedaaumaradicalizaçãoaindamaiornaextirpação
dedireitos,garantiaseinstitutos.
Trata-se de utilizar expediente bem conhecido da
Doutrina constitucional, que é a realização de mudanças em dois passos, de
maneira a enfrentar uma vez só, e em nível reduzido de embates, a eventual
dificuldade para obter o elevado ônus político e evitar o bloqueio político de
uma“minoria”28.
Remeterao legisladorordináriocertasprerrogativasde
Magistratura significa deslocar seu eixo de sustentação, eis que acaba por
subordinar um Poder às vicissitudes de outro, por meio de seu instrumento
básico,queéaLei.
As garantias das Magistratura encontram-se na
Constituição e isso não se deve a um capricho ou a um erro da Assembleia
Constituinte, mas sim a um modelo civilizatório que não pode sofrer o
retrocesso pretendido, seja por ignorância da articulação dessas normas, seja
porconsciênciadoenfrentamentoesubalternização,sejaporqualoutromotivo
for.
28 Estou considerando, aqui, o “poder de veto” que existe quando o quórum para aprovação parlamentar é extremamente elevado, como o da PEC.
27
Aproibiçãodesseexpediente-queé,emgrandemedida,
fraudatóriodaConstituição–aplica-setantonaproteçãodaMagistraturacomo
dos direitos fundamentais em geral, bem como do desenho federativo
autonômico.
Porfim,reiteroque,nocasodaPECn.6/19,nãosetrata
apenas de reduzir o nível protetivo, abrindo direitos anteriormente
constitucionais à contingência do legislador ordinário. É que, na passagem do
nívelconstitucionalparaonívellegal,comovisto,muitosdireitosseperdem.
V. UMA JURISDIÇÃO MANIETADA VIOLA A SEPARAÇÃO DE PODERES E
ATENTACONTRAASUPREMACIADACONSTITUIÇÃO
Retomo, antes de ingressar na proposta específica de
manietar o juiz, um pressuposto consensual na literatura e na prática de
economiasavançadas.Discussõesradicaise imbuídasdeextremismo levamao
riscoderetrocessosinimagináveis.Mostra-seapropriado,pois,rememorarque
aotratardoPoderJudiciário,estamosfalando:
“[...]não apenas [de] um organismo direcionado a resolver conflitos de interesses surgidos na sociedade, mas também do ordenador da respeitabilidade dos direitos humanos fundamentais, seu garante último, inclusive contra o próprio Estado-administrador, ou Estado-legislador ou, ainda, Estado-Executivo. “A construção da cidadania brasileira, portanto, passa pela reconstrução do próprio Poder Judiciário e de toda a cultura jurídica que se forma em seu entorno e em seu interior, já que se trata do
28
organismo legitimado constitucionalmente para proceder à tutela, quando necessário, dos direitos humanos fundamentais.”29. A pretensão de alterar o art. 195, § 5º, CB, viola a
separaçãodepoderesefunçõesessenciaiseinerentesàMagistratura,aoretirar
docampojurisdicionaldeterminadosconteúdosdecisórios.Vejamosaproposta,
ipsislitteris:
“§ 5º Nenhum benefício ou serviço da seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido por ato administrativo, lei ou decisão judicial, sem a correspondente fonte de custeio total.”.
Se fosse permitido ao constituinte reformador (que é
apenasoLegislativoordinárioreunidoemquórumqualificadíssimo30)retirarda
pautadoPoder Judiciário certos assuntos, oqueo impediriade,mais adiante,
retirar outros, como, por exemplo, as decisões que agridam, prejudiquem,
incomodemouafetemospolíticosemexercíciodemocráticodeseuscargos?A
aplicação dessa ideia para outros setores, portanto, pode checar rapidamente
em novas propostas, a incorporarem nacos de impunidade. Quem fica ao
desamparo,nessascircunstâncias,éasociedade.
Considero,portanto,queaProposta,napartefinaldeste
dispositivo, estimula o conflito entre poderes e escancara uma porta, de todo
inaceitável, para o bloqueio de qualquer outra categoria de decisões judiciais,
sempreque foremconsideradas,pelo legislador, inconvenientesouultrajantes
certas categorias de decisões, a outras normas constitucionais, como as
orçamentárias,asdedignidadeparlamentaretc.
29 André Ramos TAVARES. Manual do Poder Judiciário Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2012: p. 38. 30 Quórum que, aliás, no Brasil, foi ligeiramente reduzido de 2/3 para 3/5, em 1988.
29
ÉcertoquenãoseriaumatotalnovidadeparaoMundo
jurídico.Trata-sederetomaravetustasupremaciadolegislador,queprevaleceu,
porséculos,nocontinenteEuropeu,desdeofimdasMonarquiasabsolutistase,
emalgunspaíses,atémuitorecentementenaHistória,sobretudocomomitoda
soberania parlamentar. O anacronismo dessesmecanismos é inquestionável31.
NaFrançarevolucionáriao temaencontrouseuápice,servindode ilustraçãoo
art.12daLeideOrganizaçãoJudiciária,de16-24deagostode1790,eorèfèrè
legislatif, demaneira que, na necessidade de interpretação das leis, diante da
dúvida, o juiz fosse obrigado a remeter o problema diretamente ao Corpo
Legislativo32.
Agora esse modelo, típico do pré-constitucionalismo,
retorna, embora com algum refinamento, pois aparece sob a forma de um
legislador-pseudo-constituinte, que poderia a qualquer momento vetar
determinadas decisões jurisdicionais. A justificativa é, ainda hoje, amesmade
sempre: liberdade de decisão judicial ameaça a supremacia dos objetivos e
interessesgovernamentais.Épreciso,pois,controlarojuiz.
Também podemos rememorar, aqui,muito a propósito
domesmoassunto, o regimede exceçãoqueprevaleceuduranteoperíododo
governo militar. O momento está devidamente retratado no próprio sítio
eletrônicodoSTF,noqualcolhoaseguintepassagemelucidativa:
31 Cf. GIRONS, A. Saint. Manuel de Droit Constitutionnnel. 2. Ed. Paris: Larose ed., 1885, p. 295; TAVARES, André Ramos. Teoria da Justiça Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2005, pp. 29-48; Tremps, Pablo Pérez, Tribunal Constitucional y Poder Judicial. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1985, p. 38. 32 O instrumento da cassação, com remessa obrigatória para o Corpo Legislativo e proibição de um tribunal apreciar o tema, será incorporado na Constituição francesa de 1791, em seu art. 21 (cf. TAVARES, André Ramos. Teoria da Justiça Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 39-41). Estamos falando, portanto, de um mecanismo estranho ao constitucionalismo (deve-se considerar que a França, nesse momento, apesar de adotar formalmente uma Constituição, permanece situada conceitualmente na supremacia do legislador, submetendo os preceitos constitucionais à vontade legislativa).
30
“O Supremo Tribunal Federal (STF) não ficou imune aos efeitos do golpe. Nos primeiros anos da ditadura, até a decretação do AI-5, em 1968, ainda era possível conceder habeas-corpus a presos políticos. Com o AI-5, suspenderam-se os habeas-corpus para os crimes políticos e para os crimes contra a segurança nacional, a ordem econômica e social, e a economia popular.” (http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=62507 acesso em 9 de abril de 2019)
MasérealmentenoAI-6,de1odefevereirode1969,que
encontraremos a imunizaçãode atos, demaneira a impedir, claramente, a sua
apreciaçãopeloPoderJudiciário:
“Art. 4º - Excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato Institucional e seus Atos Complementares, bem como os respectivos efeitos.”.
Os atos institucionais, categoria jurídica que
praticamente pairava acima da própria Constituição, ao representar o
subjetivismo máximo do regime, impuseram essa derrota ao modelo
civilizatório, que clama por um Poder Judiciário técnico e independente, tal
como surgiu no final do século XVIII nos EUA.Mas a derrota foi imposta não
apenasaosjuízes,esim,sobretudo,àcidadaniabrasileira.
Todosessesexemplos,quepoderiam, lamentavelmente,
seremacrescidosdetantosoutros,servemapenaspararememorarmosquenão
existe verdadeira jurisdição-judicial, no sentido de sua plenitude, se a
possibilidadededecidircontraoregimeoucontraoGoverno,oucontraalguma
desuasideias,estáproibida.EsenãoháPoderJudiciárionosentidopleno,com
independênciaparadecidir,sejaqualforotamanhodaexceçãoquequeiramos
criar,nãoteremosverdadeiraDemocracianemEstadoConstitucionaldeDireito.
31
Nãoháopçõesaqui.Aretiradado§5ºdoar.195da
PEC6/19éimpositiva.Ocontráriosignificaassumirumataquedireitoeaberto
à supremacia da Constituição de 1988 e à independência do Poder Judiciário
(art.2o,daCB),bemcomoàtuteladoEstadoConstitucional(art.102,caput).Por
certo que nenhum dos poderes constituídos está autorizado ou legitimado a
tanto, já que auferem sua própria existência e legitimidade da supremacia
constitucionalreferida.
VI. DESDÉM COM O PACTO FEDERATIVO: a unicidade gestora no sistema
federativo
Apesar dos diversos problemas da PEC 6/19
relacionadosànossaFederação,voumeconcentraremapenasumdelesneste
estudo.Insiste-se,naPEC,pormeiodeacréscimodo§20doart.40,naunicidade
dagestãoprevidenciária.APropostaestáassimredigida:
“§ 17. Fica vedada a existência de mais de um regime próprio de previdência social aplicável a servidores públicos titulares de cargo efetivo e de mais de uma entidade gestora desse regime em cada ente federativo, abrangidos todos os poderes [...]”
Por meio desse dispositivo passaria a haver
centralização da fonte administrativa da Previdência nas entidades estatais
vinculadasaosExecutivosFederaleEstadual.Oobjetivosemprealegadoéode
ter uma unidade que administre e gerencie o sistema decorrente do regime
previdenciário,comreduçãodecustoseaumentodeeficiência.
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Mas a prática de certos atos, considerados inerentes à
concessãodebenefíciosespecificamenteparaomembroouservidordoPoder
Judiciário, não pode ser retirada da esfera na qual se encontra hoje. Cabe ao
respectivo Poder, dentro da almejada independência, realizar a tarefa que se
quertransferiraumaentidademenor,atreladaaumdosPoderes.Aconcessão
dos benefícios no âmbito da Magistratura deve seguir seu regime próprio. Já
expusessarestriçãoemestudoanterior,voltadoparaocasodeSãoPaulo,mas
quebempodeservirdemaneirailustrativaagora.
Isso não significa criar um mecanismo que opera à
margemdequalquercontrole.Éprecisodeixarclaroqueadiscussãoseencontra
reservadaaotema“separaçãodePoderes”eindependência,poisocontroledeve
permanecersempre.Oart.33,incisoIII,daConstituiçãodoEstadodeSãoPaulo,
v.g., no exercício da autonomia federativa legítima, prevê, como era de se
esperar,umcontroleexternodoPoderJudiciário,queficaacargodaAssembleia
Legislativa,queoexercecomoapoiodoTribunaldeContasdoEstado,aquemé
conferido o poder de aferir a legalidade da concessão de aposentadorias,
reformas e pensões. Mas o ato da concessão nos estados não pode ser
simplesmente transferido para fins de unicidade, por uma Emenda à
Constituição federal, sem ferir a autonomia federativa e o regime próprio da
Magistratura.
Nos termos em que venho me posicionando há algum
tempo,reiteroque todaessabuscapelaunicidadedagestãoprevidenciária,de
maneira a englobar também o regime previdenciário dos magistrados, é
absolutamente inconstitucional, vai de encontro à separação de poderes,
comprometendodecisivamenteaautonomiadoPoderJudiciário,alémdeferira
formafederativadeEstado,baseadanaautonomia.
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Quanto ao Poder Judiciário, não podemos esperar que
suaautonomiaadvenhaapenasdeboasintençõesgeraisparacomjuízes,sejada
população,sejadaclassepolítica,sejadequalqueroutrainstância.
A fonte dessa necessária autonomia, que torna
inconstitucional a PEC 6/19 nesse ponto, é normativa, institucional e está
desenhada na Constituição, como cláusula pétrea, somando-se a todas as
inconstitucionalidadesarroladaseexplicitadasnesteestudo.
Este é o meu parecer,
São Paulo, 12 de Abril de 2019
André Ramos Tavares