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MARIANA LIMA MARQUES
HERDEIROS DA PAMPA POBRE: A TRAJETÓRIA DOS FILHOS DA OLIGARQUIA DIANTE DA REVOLUÇÃO BURGUESA BRASILEIRA,
ANALISADA NAS OBRAS DO “CICLO DE PORTO ALEGRE” DE ERICO VERISSIMO
Campinas
2015
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MARIANA LIMA MARQUES
HERDEIROS DA PAMPA POBRE: A TRAJETÓRIA DOS FILHOS DA OLIGARQUIA DIANTE DA REVOLUÇÃO BURGUESA BRASILEIRA,
ANALISADA NAS OBRAS DO “CICLO DE PORTO ALEGRE” DE ERICO VERISSIMO
ORIENTADOR: PROF. DR. RUBEM MURILO LEÃO REGO
Campinas
2015
Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de Sociolo-gia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universi-dade Estadual de Campinas para obtenção do título de Douto-ra em Sociologia.
ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA PELA ALUNA MARIANA LIMA MARQUES E ORI-ENTADA PELO PROF. DR. RUBEM MURILO LEÃO REGO, CPG, 31/03/2015
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Ficha catalográficaUniversidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências HumanasCecília Maria Jorge Nicolau - CRB 8/3387
Marques, Mariana Lima, 1982- M348h MarHerdeiros da pampa pobre : a trajetória dos filhos da oligarquia gaúcha diante
da revolução burguesa brasileira analisada nas obras do "ciclo de Porto Alegre",de Érico Veríssimo" / Mariana Lima Marques. – Campinas, SP : [s.n.], 2015.
MarOrientador: Rubem Murilo Leão Rego. MarTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia
e Ciências Humanas.
Mar1. Veríssimo, Érico, 1905-1975. 2. Patriarcado. 3. Literatura brasileira. 4. Brasil
- História - Revolução, 1930. 5. Rio Grande do Sul (RS) - Condições sociais. I.Rego, Rubem Murilo Leão,1943-. II. Universidade Estadual de Campinas. Institutode Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.
Informações para Biblioteca Digital
Título em outro idioma: Heirs of poor pampaPalavras-chave em inglês:PatriarchyBrazilian literatureBrazil - History - Relovution, 1930Rio Grande do Sul (RS) - Social conditionÁrea de concentração: SociologiaTitulação: Doutora em SociologiaBanca examinadora:Rubem Murilo Leão Rego [Orientador]António Sáez DelgadoGilda Figueiredo Portugal GouvêaMaria da Glória BordiniSuzi Frankl SperberData de defesa: 31-03-2015Programa de Pós-Graduação: Sociologia
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RESUMO
A presente tese de doutorado propõe a análise dos romances que configuram
o chamado "Ciclo de Porto Alegre" em que Erico Verissimo enfoca as relações sociais
no Rio Grande pós-1945. Assim, a pretensão é a de analisar nos sete livros que com-
põem tal ciclo a herança da tradição patriarcal e os resquícios do iberismo na vida da-
queles que apesar de terem pertencido à oligarquia gaúcha, tentam encontrar um novo
espaço na sociedade que se urbaniza e se despersonaliza com a revolução burguesa bra-
sileira.
Palavras Chave: Erico Verissimo, 1905-1975, Patriarcado, Literatura brasileira, Brasil -
História, Revolução de 1930, Rio Grande do Sul (RS) - Condições sociais
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ABSTRACT
The present dissertation offers the analysis of the novels that shape the known
“Ciclo de Porto Alegre” (Porto Alegre cycle) on which Erico Verissimo focuses the soci-
al relations in Rio Grande post-1945. Thus, the intention is to analyze the seven books
that compose such cycle with the focus on the inheritance of patriarchal tradition and the
remains of iberianism on the lives of those who, despite having been part of the Gaúcha
oligarchy, have been trying to occupy a new space in the urbanized society that deperso-
nalizes itself with the bourgeois revolution.
Keywords: Erico Verissimo, Patriarchy, Brazilian Literature, Brazil - History, 1930, Re-
volution, Rio Grande do Sul
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APRESENTAÇÃO 1
INTRODUÇÃO 5
CAPÍTULO 1: Filha do mundo: entre a Sociologia e a Literatura 17
CAPÍTULO 2: Caminhos da Revolução à Brasileira 27
CAPÍTULO 3: O desenvolvimento da economia mercantil no Rio 3.1 Porto Alegre como Palco 49
3.2 Indústria e burguesia industrial no Rio Grande do 65
CAPÍTULO 4: Herdeiros da pampa pobre 4.1 Clarissa Albuquerque 73
4.2 Vasco, um flâneur no labirinto 81 4.3 O retorno ao campo 90 4.4 Novos rostos entre os gaúchos: os imigrantes 101 4.5 Coronéis na cidade 108 4.6 A ascensão em Porto Alegre 119
CAPÍTULO 6 - Conclusão 133
BIBLIOGRAFIA 141
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Pela vida , pela renovação e pela esperança,
a Campinas, Lisboa e Sarajevo.
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I. AGRADECIMENTOS
Antes de iniciar os agradecimentos necessários para a abertura dos trabalhos da
presente tese de doutoramento, acabei por fazer a leitura da mesma seção de minha dis-
sertação de mestrado, defendida no ano de 2009, e constatei mais uma vez o que para
mim sempre foi óbvio. Que além de essa ser a parte mais gostosa de tecer no texto da
tese, que o estudo da literatura veio contemplar a totalidade do meus quereres dentro do
mundo acadêmico, que para mim foi se tornando frio, competitivo e por esses motivos,
sem encanto.
Porém, a Sociologia me encanta. A pesquisa me instiga. E foi na obra de Veris-
simo que eu encontrei o incentivo para continuar na vida acadêmica, pois sem ternura
não se vive. Dos livros, eu apenas não havia lido durante a juventude Saga. Sua leitura
foi finalizada em uma viagem a Berlim na passagem de ano de 2011-2012. E o trecho
que faz a epígrafe da presente tese faz deste o meu livro preferido de todos os tempos.
Porque fala tanto de mim e das minhas escolhas. E também, porque não, do problema
que vos apresento.
E por falar em motivação, agradeço primeiramente meus pais Waldir e Marilza e
minha irmã, Gabriela. Que possibilitaram o trabalho, que acompanharam de perto. Que
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pularam de alegria e correram comigo atrás de documentos e até os aeroportos. E que
continuam andando comigo pela vida.
À Picchi, Vito, Max, Warzinho e Osório, que provendo alegria tornaram tudo
possível de ser realizado.
À minha família acadêmica formada por Gilda Figueiredo Portugal Gouvêa e
Antônio Carlos Dias Jr, que estão novamente em meus agradecimentos com o mesmo
status. O agradecimento pela atenção, pela leitura, pelas dicas e pela presença carinhosa
em minha vida.
Ao meu orientador Rubem Murilo Leão Rego e aos professores Suzi Frankl
Sperber, Mauro Rovai e Maria da Glória Bordini pelo carinho e disponibilidade de sem-
pre em ler e assinar documentos, escrever pareceres, participar de bancas de qualifica-
ção, dando sempre credibilidade ao meu trabalho.
Ao meu querido professor e orientador da Universidade de Évora durante o pe-
ríodo de Doutorado Sanduíche, António Sáez Delgado, sempre tão acessível e atencioso
ao me orientar nos estudos sobre Iberismo. Uma das experiências mais ricas de minha
vida, com certeza.
Aos companheiros de vida João Melo, Jade Jakobsen, Patrícia da Silva Santos,
Edileuza Silva, Patrícia Lima, Ananda Filipi e Alessandro Iglesias: meu amor e amizade.
Aos queridos amigos que tive o prazer de fazer além-mar e que são para a vida
toda: Raimundo Fernandes, Valentín Cozar, Alfredo e Rosário Paixão, Sónia Lopes, Wil-
son Kozlowski, Cátia Azevedo da Costa, Sara Costa, Dina Marques, Mafalda Chitas,
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Evelin e Mel Menezes, Lídia Pires, David Gomes, Maria Angélica Nunes, Vasco Nunes
da Ponte, Iva Pasilova e em especial minhas amadas Joana Gomes e Catarina Torres,
amizade para toda a vida.
À Escola São Paulo de Holambra, que confiou em meu trabalho e me concedeu
licença de um ano para que eu pudesse cursar o período de Doutorado Sanduíche em
Portugal.
E à CAPES, ao me conceder uma bolsa de pesquisa - dessa vez de Doutorado
Sanduíche para que eu pudesse estudar os fundamentos do movimento iberista in loco,
ampliando a visão sobre a minha pesquisa de doutorado.
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“Atravessei o oceano para vir ao encontro justamente das coisas que mais
odeio. Não posso culpar ninguém do que me aconteceu. Quando eu vivia no Brasil a
minha vida de sonhos insatisfeitos, comparava-me ao peru que, segundo se diz, me-
tido num centro dum círculo traçado a giz no chão, se julga irremediavelmente pre-
so dele. Um dia achei que devia correr para a liberdade, saltando o risco de giz.
Cortei as amarras que me prendiam a todas as convenções sociais e a esse manso
comodismo dos hábitos. Dei o salto... E agora, moendo e remoendo as experiências
recentes, comparando-as com as antigas, chego à conclusão de que a vida não passa
de uma série numerosa de círculos de giz concêntricos. A gente salta por cima de
um apenas para depois verificar que está prisioneiro do outro e assim por diante. É
a condição humana.”
Vasco, em Saga.
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I. APRESENTAÇÃO
O presente texto configura o material final, resultado da pesquisa de douto-
rado defendida no dia 31 de março de 2015 pela Universidade Estadual de Campinas –
Programa de Pós-Graduação, Doutorado em Sociologia pelo Departamento de Filosofia
e Ciências Humanas. Seu corpus é formado pelos resultados da pesquisa que se intitula
Herdeiros da Pampa Pobre: a trajetória dos filhos da oligarquia gaúcha após a Revolu-
ção Burguesa no Brasil, orientada pelo Prof. Dr. Rubem Murilo Leão Rego e que tem
como foco a questão da Revolução Burguesa no Brasil, no que tange especificamente ao
período que se inaugura a partir do processo de modernização brasileira, iniciado em
1822 e intensificado entre os anos de 1889 e 1930. O estudo tem a pretensão de analisar
como, nas obras do escritor Erico Verissimo, a aristocracia falida do meio rural do estado
do Rio Grande do Sul se comporta ao migrar para a capital Porto Alegre.
A tese que se apresenta é composta por um Resumo, uma Introdução à pes-
quisa, pelo primeiro capítulo que explora a questão da literatura como material de traba-
lho da sociologia, um segundo capítulo sobre a questão das heranças ibéricas e a Revo-
lução Burguesa Brasileira, pelo terceiro que insere o caso particular do Rio Grande do
Sul no contexto da Revolução Burguesa e um derradeiro capítulo que trabalha a análise
de como tais mudanças são analisadas nas obras de Erico Verissimo que compõem o
chamado “Ciclo de Porto Alegre”.
O primeiro capítulo se intitula Filha do mundo: entre a sociologia e a
literatura, e explora, sob o viés de Antonio Cândido, como se justifica uma análise da
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literatura de certo momento histórico socialmente expressa e passível de análise socioló-
gica, enriquecido com visões especificas sobre a obra de Verissimo embasadas em arti-
gos de Regina Zilberman e Maria da Glória Bordini, além da análise de Luís Bueno em
O Romance de 30.
Florestan Fernandes e Luís Werneck Vianna servirão de base teórica para o
desenvolvimento do segundo capítulo da presente tese, enfocando como a revolução
burguesa se desenvolve no Brasil dentro de condições peculiares, servindo de base para
a análise dos romances de Verissimo, onde reconhecemos a herança da tradição na vida
daqueles que, apesar de terem pertencido à oligarquia da sociedade gaúcha, tentam en-
contrar um novo espaço na sociedade que se urbaniza, principalmente nos anos que se-
guem a Revolução de 1930, quando a chamada Revolução Burguesa se intensifica.
O terceiro capítulo traz a questão do desenvolvimento industrial do Rio
Grande do Sul assim como a crise agropastoril que levou muitos migrantes para a capital
Porto Alegre. Também se faz necessária uma análise da formação da burguesia gaúcha,
sobretudo entre os anos de 1889 e 1930, assim como a averiguação de como se deu o
desenvolvimento da economia do estado e a formação dos círculos de poder gaúcho nos
anos 30. Para isso, se utilizou como base os estudos da autora Sandra Jatahy Pesavento
em A Burguesia Gaúcha, RS: A Economia & Poder nos anos 30 e RS: Agropecuária Co-
lonial & Industrialização.
Completando a tese, o quarto e último capítulo vem tratar especificamente
da análise da trajetória dos herdeiros da pampa pobre na cidade de Porto Alegre e analisa
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de fato as obras de Erico Verissimo. O texto prioriza o estudo pela divisão em temas dis-
tintos: a descoberta da cidade evidenciada pela chegada de Clarissa, o refúgio do des-
possuído na cidade grande e a flânerie na figura de Vasco, os coronéis deslocados em
uma Porto Alegre aburguesada e despersonalizada, a importância dos imigrantes, as no-
vas possibilidades de ascensão social e a surpreendente e metafórica opção que faz a
personagem de Vasco pelo retorno ao campo.
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II - INTRODUÇÃO
A presente tese prioriza o estudo das obras do chamado “Ciclo de Porto Ale-
gre”, enfocando como Erico Verissimo retrata, através da construção de suas persona-
gens e de suas respectivas relações, o deslocamento daquele que já pertenceu ao mundo
tradicional e fora íntimo das esferas de poder para o mundo modernizado e racionalizado
das cidades, sobretudo após a Revolução de 30. Além disso, quer-se analisar como o
ethos tradicional tenta manter a supremacia sobre essa sociedade em transformação e
averiguar se este ethos, de fato, permanece.
A literatura de Erico Verissimo integra-se no chamado “romance de 30”, po-
rém, não se caracteriza como os outros romances contemporâneos que, em sua maioria,
primam pela adoção da análise das relações no mundo rural como principal forma de
expressão. Embora muitas de suas personagens tenham origem no campo, como a prota-
gonista Clarissa, Verissimo destaca as relações do mundo urbano, o desenvolvimento
industrial e a constituição de grandes capitais, especificamente o caso de Porto Alegre.
Embora concentre suas análises na capital gaúcha, já dizem autores como Jorge Amado e
Flávio Loureiro Chaves que, ao abordar relações que descrevem a sociedade brasileira,
sua obra se abre para reflexões sobre o Brasil como um todo.
Embora O tempo e o vento tenha sido redigido posteriormente aos romances
do chamado “Ciclo de Porto Alegre” – os três volumes foram escritos entre 1949 e 1961,
enquanto que os sete livros que compõem o ciclo porto-alegrense foram compostos entre
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1933 e 1943 -, onde dar-se-á prioridade aqui à análise dos anos que seguem a revolução
de 1930 e da trajetória de personagens que se deslocaram do mundo tradicional - conta-
minado então por características sociais como a dominação pessoal e o patrimonialismo
- e de como essas mesmas personagens serão objeto de análise na presente tese de douto-
ramento.
O Rio Grande se urbaniza, sobretudo sua capital, Porto Alegre, para onde
migram as personagens que se deslocaram do mundo tradicional: a decadência de suas
famílias, a vulgarização da figura do gaúcho, que agora anda a pé e a emergência dos
imigrantes como uma das conseqüências da industrialização e modernização do Estado
sulino contrastam com a permanência de caracteres advindos da herança tradicional, que
não deixam de se imprimir na sociedade que se configura em novos moldes determina-
dos pela urbanização e pelas relações menos marcadas pelo traço de pessoalidade.
A literatura tem se mostrado um campo de grande valia no que diz respeito
ao estudo das idéias, exemplificando como os grupos se comportam e evoluem dentro da
sociedade e destacando em suas linhas as minúcias das relações sociais. Embora autores
como A. A. Mendilow e Pierre Bourdieu concordem que o romance é formado por 1 2
“fatias de vida”, a tarefa de estudar elementos sociais através da literatura esbarra na
questão já bem trabalhada por diversos autores de que se pode incorrer no erro de anali-
sar a obra literária como se ela fosse uma cópia fiel da realidade. Ao escrever, o autor
MENDILOW. A. A. O tempo e o romance. Trad. Flavio Wolf. Porto Alegre: Globo, 1972.1
BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.2
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cria um universo, imbuído de sua pessoalidade. Dessa forma, ao compor os romances
que configuram o chamado “Ciclo de Porto Alegre”, Erico Verissimo aborda, através de
suas personagens, os diversos caminhos que pessoas oriundas da antiga tradição oligár-
quica - fundamentada em um histórico social que se traduz em patrimonialismo e domi-
nação pessoal – percorrem na Porto Alegre que se urbaniza sobretudo a partir da década
de 1930.
Os moldes tradicionalistas da sociedade monarquista se perpetuaram durante
a República Velha que, dentre suas diversas etapas, manteve a fisionomia oligárquica,
sendo o poder estatal controlado na maioria das vezes de forma autoritária, sobretudo
com relação às aspirações dos setores populares que almejavam conquistas democráti-
cas. A política dos governadores preservava, durante a primeira fase da República (1889-
1930), o poder da oligarquia agrária, sedimentando a distancia cabal entre o poder e o
povo.
Com a crise do setor cafeeiro e a chegada da Revolução de 30, há a
transição do antigo modelo para um novo panorama que se apresenta mais dinâmico em
setores determinantes, como a política, a cultura e a economia. As classes que emergem
e passam a constituir o poder se dividem, fortalecendo a presença da classe média urba-
na e a movimentação intensa das mais diversas categorias sociais da cidade, antes ausen-
tes na sociedade. Tais eventos estão ancorados a importantes acontecimentos históricos,
como a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Bolchevique e a crise de Wall Street,
configurando um momento de impulso da industrialização e grande deslocamento da
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população rural para as cidades ao redor do mundo. O período é, portanto, de ebulição
social. Basta relembrar alguns dos importantes movimentos acontecidos na década de 20
no Brasil, como Os 18 do Forte, a Coluna Prestes, a formação do Partido Comunista
Brasileiro e a realização da Semana de Arte Moderna em 1922. Esta última, além de en-
fatizar as características puramente brasileiras, criticava o modelo cultural vigente, além
de explicitar sua censura ao federalismo oligárquico.
Há, porém, durante os anos que se iniciam em 1930, um arranjo entre as
classes urbanas e a burguesia agrária, fazendo com que os blocos de poder continuassem
monopolizando o aparelho do Estado, tanto no âmbito urbano, quanto no rural, configu-
rando uma combinação de setores na execução do poder. Trata-se, segundo a análise de
Octávio Ianni , de crise de hegemonia, em que o poder não tem mãos certas para perten3 -
cer. Nesse período de ebulição, as forças sociais e políticas são heterogêneas e são pola-
rizadas, de um lado, pelas dissidências oligárquicas (lideradas principalmente pelo Esta-
do de São Paulo), e pela parcela que almejava mudanças na estrutura política do país e
conseqüentemente também gozar de alguns privilégios.
O que se pode afirmar, porém, é que, com a crise cafeeira e com a inaugura-
ção da nova política, a camada agrária se via enfraquecida, culminando na emergência
das camadas urbanas que passavam a disputar posições em pé de igualdade com os seto-
res rurais. Inaugura-se, com efeito, um novo patamar de desenvolvimento econômico e
social que se apoiou no governo de Vargas e que instituía lei e tribunal eleitoral, modifi-
IANNI, Octávio. O ciclo da revolução burguesa. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1984.3
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cando a forma de se fazer eleições vigente até então. Nesse contexto, o Estado do Rio
Grande do Sul se via inserido num clima de verdadeiro entusiasmo cívico, dado o impor-
tante papel desempenhado pelos gaúchos na Revolução de 1930.
Nesse contexto, a ficção de 30 enfoca o romance social, que se caracteriza
por reconhecer o espaço brasileiro por documentação e exposição de tipos característi-
cos. A sociedade, nesse caso, representa a premissa de condição do indivíduo que se
apresenta na realidade narrada no texto. Assim, Erico Verissimo inaugura, como diz Flá-
vio Loureiro Chaves na literatura de 30 o “romance urbano”, levando além dos limites 4
de São Paulo o enredo que enfoca a cidade moderna ainda que com características pró-
prias do Rio Grande.
O contexto histórico, nesse sentido, é fundamental. A estrutura inau-
gurado com a Revolução de 30 prometia o fim dos privilégios e das formas personalistas
de governo vigentes durante a República “café-com-leite”, engendrando uma proposta
de modernização estatal que se concretizou em parte no plano econômico, porém inca-
paz de mudar a herança cultural de uma sociedade que herdou de Portugal os moldes
administrativos, baseados na forma estamental de poder, como bem argumenta Raymun-
do Faoro . Assim, a sociedade se urbaniza e moderniza com base em modelos que pri5 -
mam pela burocratização das formas de poder e continua recebendo imigrantes, vendo
CHAVES, Flávio Loureiro. Erico Verissimo: realismo & sociedade. Porto Alegre: Mercado Aberto, 41981.
FAORO, Raymundo. Os donos do poder: a origem do patronato brasileiro. São Paulo: Publifolha, 2000. 5v. 1 e 2
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muitos destes emergirem socialmente, constituindo uma nova camada de proprietários
que difere daquela tradicionalmente conhecida, ou seja, diversa dos grandes latifundiári-
os, portadores de terras, gado e um exército de agregados dos quais também se alienam a
vontade e juízo próprios.
Max Weber define a dominação pessoal com base em moldes tradi6 -
cionais, onde a legitimidade se dá na crença da santidade e poderes já estabelecidos. O
dominador não é apenas um superior, mas sim um senhor pessoal. Os “funcionários” são
companheiros tradicionais ou súditos, e, o que é decisivo, é a fidelidade pessoal do ser-
vidor. Não se obedece a estatutos, mas à pessoa indicada pela tradição . A natureza afeti7 -
va, como diz o autor, é importante, e, o senhor domina com ou sem quadro administrati-
vo, contando com o auxílio de pessoas tradicionalmente ligadas a ele, por vínculos de
piedade, que significa o recrutamento patrimonial e funcionários domésticos dependen-
tes, sendo inerentes relações pessoais de confiança, pacto de fidelidade entre o senhor e
os funcionários livres.
Segundo Weber, toda dominação tradicional pende para o patrimonia-
lismo, que é a dominação orientada pela tradição que se exerce em virtude de pleno di-
reito pessoal , pois “os companheiros se tornam súditos, o direito do senhor interpretado 8
WEBER, Max. Os tipos de dominação In Economia e Sociedade. Brasília: Editora UnB, 1994, vol. I.6
Idem.7
WEBER, Max. Os tipos de dominação In Economia e Sociedade. Brasília: Editora UnB, 1994, vol. I p. 8152.
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até então como direito preeminente dos associados, converte-se em seu direito próprio,
apropriado por ele da mesma.”
A formação e ascensão de uma camada de grandes latifundiários, que tinham
como objeto de exercício de poder as pessoas, as estâncias, as cidades, chegando a exer-
cer influência nos âmbitos estadual e nacional (como é o exemplo de Rodrigo Terra
Cambará, portador de um diploma universitário, dono de muitas terras, intendente de
Santa Fé, deputado estadual e como descreve Verissimo, “um figurão do Estado Novo”),
são bem descritas em O tempo e o vento.
É justamente o último volume e são as últimas páginas desse romance que
inspiraram a hipótese que objetivaram a presente tese de doutoramento: quando a velha
Maria Valéria acende uma “vela para o negrinho”, a fim de que sua família retome seus
elos, seu sobrinho-neto Floriano entende que o Continente se esfacelou, formando um
arquipélago de ilhas perdidas. A metáfora que a personagem-autor (Floriano) utiliza para
designar o destino de sua família serve também para analisarmos a condição do Rio
Grande que se modernizou; o que se constituía como um Continente coeso se transfor-
mou num arquipélago de ilhas distintas; o gaúcho desse novo Rio Grande anda a pé e se
depara com rostos europeizados no comando dos negócios; o mundo da estância dá lugar
ao mundo impessoal das cidades onde não se conta mais com a proteção do estancieiro.
Erico Verissimo, natural de Cruz Alta, uma região conturbada politicamente
devido à forte influência da camada oligárquica, também é uma “personagem” que se
desloca do interior do Rio Grande para o meio urbano representado, sobretudo, por Porto
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Alegre. Na capital gaúcha, Erico se envolveu a partir de 1931 nos projetos da Editora
Globo e foi responsável por traduções de autores fundamentais da literatura universal
como Thomas Mann e Virginia Woolf. Entre uma tradução e outra, escreveu seu primei-
ro livro, Fantoches, e alcançou o grande público ao publicar Olhai os lírios do campo,
em 1938. Todos seus livros foram editados pela editora que ajudou a erguer, a Globo de
Porto Alegre.
Foi nos escritórios da Editora que Verissimo compôs o primeiro volume de
O tempo e o vento - O continente - que já tem seu enredo enunciado nas últimas pági-
nas de O resto é silêncio, quando Tônio Santiago vislumbra em uma concerto os primór-
dios do Continente de São Pedro, evidenciando a idéia de dívida para com a terra natal
que entra em consonância com as que tinha Verissimo naquele momento: em 1937 se
instaurava o Estado Novo, que ao mesmo tempo em que fazia enaltecer as diferenças
regionais, procurava agregar um sentimento de pertencimento dos estados a uma unida-
de nacional, caracterizado pela simbólica queima das bandeiras estaduais.
Posteriormente, nos anos 40, no Rio Grande do Sul o novo tradicionalismo
organizou-se em torno dos Centros de Tradições Gaúchas - CTGs -, recriação lúdica da
antiga fazenda pastoril, onde um patrão protetor e benevolente confraterniza com seus
peões. Recriando o passado segundo suas necessidades, o tradicionalismo ignorou o tra-
balhador escravizado no passado sulino e nas fazendas pastoris. Os CTGs estão espalha-
dos ainda hoje por todo o Estado do Rio Grande do Sul, denunciando a importância da
preservação da tradição recriada durante os tempos de Getúlio, tendo sua manifestação
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máxima na Semana Farroupilha, que acontece anualmente entre os dias 14 e 20 de se-
tembro. A Semana, que tem para os gaúchos importância simbólica equivalente ao Car-
naval para os cariocas, demonstra o caráter de apego à tradição mantida no Rio Grande
do Sul.
Nesse contexto é que se analisará como a herança tradicional se comporta
quando se depara com uma capital urbanizada; como os homens acostumados ao man-
donismo se posicionam nessa nova realidade social, como se tenta a manutenção de
tais valores tradicionais, como eles de fato permanecem na sociedade que se moderniza
e de que forma a geração que já chega “a pé” enfrenta e se posiciona nesse espaço tran-
sitório: Clarissa, Fernanda, Vasco, Coronel Joaquim, personagens do “ciclo de Porto
Alegre”, são herdeiros de sobrenomes que pesam como status social, mas que não mais
se fundamentam na posse da terra.
O panorama que tem Clarissa, aos 14 anos, ao escrever seu diário, é o mes-
mo que apresenta a família Cambará em 1945: a decadência do patriarcado rural, que é
justamente o tema do romance social de 30 e que coloca a aura do patriarcalismo em
cheque, enfocando justamente a passagem do poder das mãos de uma aristocracia rural
para a burguesia que se formou lentamente nos centros urbanos a partir do século XIX.
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Nome do livro que inaugura o ciclo, Clarissa é a personagem que levará ao desenvol9 -
vimento de todos os outros romances do “ciclo de Porto Alegre”, mostrando a visão
que tem uma garota sobre a crise na atividade agrária de sua família, que arrasta seus
pais para a derrocada econômica.
Musica ao longe , por sua vez, constitui-se como um texto sugestivo neste 10
sentido. O livro reúne um material de extrema importância quando se trata da análise da
dominação pessoal, uma vez que enfoca a decadência de uma tradicional família de pro-
prietários - os Albuquerque - que, mesmo destituída de propriedades e poder, ainda enca-
ra o círculo social como um bastião de seu legado. Os Albuquerque vêem sua derrocada
econômica, ao passo que alguns imigrantes italianos e alemães, chegados quase em esta-
do de indigência, prosperam e se tornam proprietários de terras e estabelecimentos antes
pertencentes aos clãs tradicionais da cidade. Assim, quem sofre as conseqüências da dis-
puta política são as classes que têm o presente sufocado pela herança negativa do passa-
do. Erico Verissimo prioriza, em sua escrita, os caminhos de personagens que não têm
Publicado em 1933, Clarissa conta a trajetória de uma menina que vai de Jacarecanga, no interior do 9estado do Rio Grande do Sul para a capital Porto Alegre estudar para ser professora. Ao viver na pensão administrada por sua tia, Clarissa vive o despontar da adolescência e o amadurecimento diante de tipos tão diferentes que habitam o estabelecimento de D. Eufrasina, como o do erudito, porém falido Amaro. Do microcosmo da pensão, Verissimo traça um panorama do Brasil do início dos anos 30. Os passeios pelas ruas da capital mostram a modernidade advinda do processo de revolução burguesa aos olhos da menina Clarissa, enquanto que as cartas que chegam da estância do interior evidenciam a decadência pela qual passava a pecuária e o latifúndio gaúchos.
Música ao Longe, publicado em 1936 retrata o retorno de Clarissa à Jacarecanga e a sua visão acerca da 10decadência de sua família. No decorrer do romance, a descoberta da paixão de Clarissa pelo primo Vasco serve de pano de fundo para a luta da família Albuquerque em não perder o último reduto tradicional da família, - o casarão. O romance enfoca a chegada dos Gamba, italianos que mais à frente tomarão dos Albuquerque os últimos resquícios da herança deixada pelo general Olivério Albuquerque, assim como a decadência moral e financeira da família, culminando no assassinato político de João de Deus, pai de Clarissa e a mudança do restante da família para a capital Porto Alegre.
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autonomia em relação aos seus próprios destinos, em decorrência da pressão que a tradi-
ção patriarcal e os novos rumos da sociedade exercem sobre tais homens.
Da mesma forma, a parte inicial de Um lugar ao sol representa uma sátira ao
caudilhismo como exposição do gauchismo. Emblemático, nesse sentido, é o general
Campolargo, que permanece no poder político de sua região por mais de trinta anos, sem
oposição alguma, numa metáfora que leva a crer que Campolargo representa o Rio
Grande do passado.
Caminhos cruzados também debate a questão da decadência do patriarcado 11
rural e a ascensão da burguesia urbana: ao se deslocarem para a cidade grande, os filhos
da aristocracia sentem o desencantamento com a sociedade, que transforma os atores
sociais a medida que estes são inseridos em um ambiente mediado por hábitos diferen-
tes, permanecendo vivo, porém, em tal processo, o espírito da tradição, ora alimentada
pela história ou pelas ações das personagens. É nesse livro que se enfoca uma parcela da
sociedade que se aburguesou, mas que não alcançou a tradição ou o status de família
Anterior à Música ao Longe (embora este último tenha sido escrito antes), Caminhos Cruzados foi escri11 -to por Erico Verissimo em 1935 e apresenta uma escrita densa, surpreendendo os leitores entusiastas de Clarissa. Considerado subversivo por alguns críticos da época, o livro exibe o paradoxo da vida urbana em Porto Alegre à época do governo de Getúlio Vargas, a discrepância do luxo da vida da burguesia e a miséria dos esquecidos pelo sistema. O romance nos introduz à obra de Verissimo as personagens de Noel e Fernanda, que serão fundamentais para o desenrolar dos destinos de Vasco e Clarissa nos posteriores Um Lugar ao Sol e Saga. A técnica do contraponto, adotada de Aldous Huxley (do qual o próprio Verissimo fora tradutor) fica evidente. Um Lugar ao Sol começa num sábado e termina na quarta-feira. E é nesse contexto que um professor de meia-idade, uma família aristocrata, onde a matriarca D. Dodó posa em chás beneficentes, um ex-taberneiro de Jacarecanga recém premiado na loteria e sua filha deslumbrada, além dos já citados Fernanda e o aristocrata Noel, em contraponto com João Benévolo e sua miséria causada pela demissão ocasionada pelo marido de D. Dodó desenvolvem seus enredos ao longo de cinco dias, sem necessaria-mente se encontrarem.
! 15
como a dos Leiria; a classe média tem seu ponto de apoio na abordagem das profissões
liberais.
Outro grupo também é de destaque e ocupará lugar importante nos outros
títulos que configuram o “Ciclo” – os coronéis, que disputam com a burguesia já estabe-
lecida o topo da pirâmide social, assim como a classe média inferior que luta pela sub-
sistência nas grandes cidades. Os romances que Erico Verissimo publica entre 1936 e
1943 (Um lugar ao sol, Olhai os lírios do campo, Saga e O resto é silencio) têm como
um dos temas a crise da oligarquia rural enfocando no contexto urbano a condição da-
queles que abandonaram a vida no campo para viver em Porto Alegre. A condição da
dominação antes exercida pela oligarquia gaúcha ultrapassa gerações, fazendo com que
seus filhos, mesmo quando inseridos em uma estrutura mais racionalizada - a da cidade -
se utilizem do mesmo ethos adquirido da tradição, contaminado pelo patrimonialismo.
Os romances do “Ciclo”, ao que tudo indica, querem mostrar o papel dos herdeiros da
tradição desempenhado na cidade aburguesada.
! 16
CAPÍTULO 1
FILHA DO MUNDO - ENTRE A SOCIOLOGIA E A LITERATURA
“Embora filha do mundo, a obra é um mundo (...)”
Antonio Candido
Os sete livros que compõem o chamado ciclo de Porto Alegre (Clarissa
(1933), Caminhos Cruzados (1935), Música ao Longe (1936), Um Lugar ao Sol (1936), 12
Um Lugar ao Sol (1936) marca o encontro de Vasco, Clarissa, Fernanda e Noel, que irão, juntos, enfren12 -tar as vicissitudes da vida na capital do Rio Grande do Sul. Ao auxiliar Clarissa no encontro de um lugar para viver, Fernanda estabelece para com a família Albuquerque um laço que ainda se fará presente em Saga. Em Um Lugar ao Sol, Clarissa passa arcar com a responsabilidade do sustento da família, enquanto seu primo Vasco erra em busca de sua personalidade e aproveita a novidade da vida em uma cidade mar-cada pela urbanização. Vale destacar a presença do Dr. Seixas, o médico que atende aos pobres sem a in-tenção do lucro, falecendo pobre. Em um texto enxuto, Erico Verissimo retrata a cidade de Porto Alegre e seus dramas. O título do livro se justifica ao ser o mesmo do composto por Noel, agora marido de Fernan-da. Ao receber a herança do pai, Noel e Fernanda abrem uma editora, da qual Vasco será ilustrador, con-quistando assim, seu “lugar ao sol”.
! 17
Saga (1940), Olhai os lírios do campo (1938) e O resto é silêncio (1943)), com13 14 15 -
põem uma narrativa em que as personagens se encontram ao longo dos volumes e desen-
laçam seus destinos ao mesmo tempo em que as histórias econômica e política do Brasil
tomam rumos muito diferentes daqueles que as nortearam durante seus 400 anos de tra-
jetória.
Erico Verissimo inicia sua vida literária com o livro de contos Fantoches,
conquistando definitivamente o público ao contar a história da menina que sai da peque-
na Jacarecanga para se formar professora na crescente Porto Alegre: é com Clarissa que
Verissimo se consolidou como autor literário. Clarissa ainda seria personagem de mais
três romances escritos pelo autor: Música ao longe, Um lugar ao sol e Saga.
Publicado em 1940, no contexto da Segunda Grande Guerra, Saga nos traz a figura de Vasco Bruno en13 -frentando duas guerras: a Civil Espanhola no campo direto e a guerra do retorno ao enfrentar as vicissitu-des de uma sociedade burguesa cada vez mais complexa. Em uma manobra que surpreende o leitor, Vasco, já casado com a sua prima Clarissa, opta pelo retorno às origens - a decisão pelo retorno ao campo e à simplicidade da vida bucólica, fechando o Ciclo de Clarissa.
Olhai os lírios do campo, romance que fez Erico Verissimo despontar como um escritor de best sellers, 14e conta a trajetória de Eugênio Pontes, que renúncia à família, aos amigos e ao amor da mulher que verda-deiramente ama em nome da ascensão social por via de um casamento sem amor. O caminho de Eugênio, que vai da vergonha de ser pobre, do ingresso na Faculdade de Medicina, do encontro com Eunice Leiria, até sua volta - a tomada de coragem em confrontar o sogro e abandonar os negócios da família Leiria, o divórcio e o acerto de contas com Olívia e o posterior falecimento desta mostra ao leitor o crescimento pessoal de uma personagem em um contexto de plena revolução burguesa na capital do Rio Grande do Sul.
! Mais uma vez adotando a técnica do contraponto dramático de Aldous Huxley, Erico Verissimo engen15 -dra uma diversa gama de personagens no romance de 1943. O Resto é Silêncio tem seu ponto de partida no suicído - ou seria um assassinato, ou ainda um acidente? - de Joana Karewska. O corpo caído de um dos prédios centrais de Porto Alegre passa a ser enredo das conversas das diversas personagens, encabeça-das pelo escritor alter-ego de Verissimo, Tônio Santiago. A partir dele, outras personagens misturarão ao acontecido suas questões pessoais. É o caso do Doutor Lustosa, um desembargador aposentado, de Nori-val, um homem de negócios à beira da falência, de Aristides Barreiro, um ex-deputado e rico advogado, do carismático Sete-Meis, um menino vendedor de jornais, de Chicharro, um boêmio e de Marina, uma mu-lher angustiada que vive à sombra do marido maestro, Bernardo Rezende. O resto é silêncio nos traz ainda a figura do coronel Quim Barreiro, emblemática ao mostrar o comportamento de um ex coronel na cidade urbanizada e despersonalizada, marcada por um desastre característico urbano - um corpo que caiu (por motivo que fica à mercê da imaginação do leitor e das personagens) de um prédio, chocando a multidão.
! 18
http://www.infoescola.com/profissoes/desembargador/
Música ao longe mostra a decadência da família de Clarissa, a tradicional
estirpe dos Albuquerque, culminando no assassinato de João de Deus, seu pai; já Um
lugar ao sol desenha os passos de Clarissa e seu primo Vasco pela hostil Porto Alegre e
o encontro dos protagonistas com a valente e determinada Fernanda, que tivera o pai as-
sassinado em condições muito parecidas com as que ocorreram com João de Deus, o pai
de Clarissa. Juntos, enfrentarão as vicissitudes e dificuldades de uma Porto Alegre em
que a história construída pelos Albuquerque nada significa e em que os traços de impes-
soalidade começam a se delinear. Já em Saga, há a incrível narração de Vasco e sua par-
ticipação na Brigada Internacional durante a Guerra Civil Espanhola, culminando em
seu casamento com Clarissa e em seu retorno com a esposa para a vida bucólica que tan-
to renegara.
Caminhos cruzados enuncia a história daquela que pode ser considerada a
verdadeira heroína do ciclo de Porto Alegre, a humilde Fernanda e seu encontro, roman-
ce e casamento com o aristocrata Noel, que rompe com a família para poder assumir o
relacionamento com a antiga colega de infância. Considerado subversivo justamente no
ano em que estourou no Brasil a Intentona Comunista, Caminhos cruzados despertou
diferentes opiniões da crítica por revelar os contrastes sociais de uma capital em desen-
volvimento. Olhai os lírios do campo, o romance mais lido e traduzido de Verissimo,
trabalha a questão de um jovem ambicioso, Eugenio, que troca o amor verdadeiro pela
oportunidade de ascensão social e o seu tortuoso caminho até o arrependimento, mos-
! 19
trando uma Porto Alegre onde imperam o impessoalismo, a desigualdade social e a pos-
sibilidade de ascensão dos profissionais liberais.
Para o enfoque na presente tese abordado, o mote de O resto é silêncio pou-
co importa, ou seja, Tônio Santiago, escritor consagrado, tenta descobrir o que teria le-
vado uma de suas leitoras a cometer suicídio. O mais interessante para a análise aqui
proposta seria, então, a trajetória coadjuvante do coronel Joaquim Barreiro e sua pitores-
ca transposição do interior para a capital Porto Alegre, assim como o comportamento
antagônico de seus filhos Aristides e Marcelo na cidade grande.
Erico Verissimo nasceu em 1905, em Cruz Alta. É filho de uma família
decadente e se viu obrigado a se deslocar, assim como suas personagens, do ventre pro-
tetor do interior rural marcado pelas relações caracterizadas pelos traços pessoais e se
enveredar por uma Porto Alegre hostil, já caracterizada pelo aburguesamento crescente.
Iniciando suas atividades literárias na editora que ajudou a estruturar – a Globo de Porto
Alegre -, Verissimo dedicaria sua vida, então, a contar histórias que bem poderiam ser
(ou são?) inspiradas na sua, embora seja ele mesmo um crítico da sociedade em que vi-
veu.
Os romances de Erico Verissimo, com exceção de O tempo e o vento, se
caracterizam por serem urbanos e expressarem uma Porto Alegre que muda e se desen-
volve sob a influência do contexto histórico marcado sobretudo pela Revolução de 30.
Dessa forma, o autor viveu intensamente as transformações pelas quais o país passou e
suas experiências se transformaram, então, em componentes da estrutura de suas obras
! 20
literárias. O conhecimento de tais estruturas nos permite como orienta Antonio Candi-
do , compreender a função sociológica dessa obra em conjunção com o período históri16 -
co estudado. O alcance de uma obra é decidido por sua constituição e pela sua recepti-
vidade e neste campo, a literatura de 30 é exemplar, uma vez que insere o desvalido na 17
expressão artística escrita, atribuindo-lhe lugar inclusive como protagonista das obras.
Aponta ainda Bueno que esse novo enfoque se apresentava como um problema para o
intelectual que enveredasse por seus caminhos, já que muitas vezes este não era oriundo
da mesma classe sobre a qual se propunha escrever.
Insere-se então no campo da literatura, o problema de se trabalhar e vivenci-
ar a experiência de outros mundos. No caso específico dos romances urbanos de Erico
Verissimo, as nuances da vida social e política não são ignoradas pelo autor: sejam nos
serões protagonizados por Vasco, Fernanda e Noel, em Saga ou Um lugar ao sol, seja
nas conversas acaloradas em família no casarão de Tônio Santiago, o externo, ou seja, os
fenômenos sociais agem como veículo da corrente criadora , atuando na constituição e 18
desenvolvimento dos enredos.
Em Sociologia, há de se ter cautela, pois como alerta Antonio Candido, “a
mímese é uma forma de poiese” , e a tarefa do sociólogo não é a de substituir a do teó19 -
rico literário, não ignorando, porém, que as obras não se desligam do contexto em que
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Publifolha, 2000. p. 1. 16
BUENO, Luís. O Romance de 30. São Paulo: EDUSP, 2006. 17
Idem, p. 6.18
Idem, p. 13.19
! 21
foram escritas. No caso brasileiro e mais especificamente dos romances regionais, os
autores e entre eles, Verissimo, usam os planos político e social como cenário, já que se
configuram como o caldo de cultura de suas obras. No caso da presente tese, o autor
trabalhado pode se utilizar da mímese para transpassar a realidade, na criação de mundos
intencionais , para demonstrar a transição de uma sociedade que aos poucos se destra20 -
dicionaliza, evidenciando os conflitos enfrentados pelas personagens na sociedade que
se aburguesa.
O momento em que se produzem os romances regionalistas modernistas
configura-se como uma época marcada pela catástrofe e a quebra de paradigmas que de-
limitavam a certeza de se viver num mundo seguro. No caso brasileiro, a inocência se
perde, de certa forma, com os resultados das rupturas ocorridas em contexto mundial - a
Primeira Grande Guerra, o colapso da Bolsa em 1929, para dar dois exemplos (que oca-
sionaram além do colapso físico, o de valores e instituições). Internamente, a sociedade
sofreu a quebra da ordem de sucessão política vigente durante a República Velha. Luís
Bueno diz que os personagens atuam num tempo de homens partidos, e a metáfora se 21
faz muito apropriada. Entre o campo e a cidade, entre a tradição e a contemporaneidade,
eles tentam escrever sua própria história. Como já abordado em A dominação, o tempo e
o vento: dominação pessoal e patriarcalismo no romance histórico de Erico Verissimo , 22
ROSENFELD, Anatol. et. al. A Personagem de Ficção. Perspectiva, SP, 2007.20
BUENO, Luís. O Romance de 30. São Paulo. EDUSP, 2006. p. 399. 21
MARQUES, Mariana Lima. A dominação, O tempo e o vento : dominação pessoal e patriarcalismo no 22romance histórico de Erico Verissimo. Dissertação de Mestrado. IFCH, Unicamp, 2009, disponível para download em http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000447075.
! 22
http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000447075
uma das grandes características de um romance como O tempo e o vento é a de consistir
na tentativa única de abranger as características brasileiras a partir de certa zona agrária,
no caso, o Rio Grande do Sul. Os vários exemplos de obras compostas durante a década
de 30 remontam à realidade brasileira. São Bernardo de Graciliano Ramos, Cacau, de
Jorge Amado e O tempo e o vento são exemplos de produções que enfatizam a figura do
coronel-pai e seu exército de agregados no engendro da sociedade brasileira.
Não há aqui a pretensão de se tomar o lugar da Teoria Literária. Mas
almeja-se fazer uma Sociologia da Literatura, onde a prioridade é o estudo da estrutura e
a sua influência na escolha de temas e desenrolar de destinos em um determinado con-
texto histórico-social. No caso do que se representa nos romances do Ciclo de Porto
Alegre, a realidade matizada pelos acontecimentos evidenciados pela Revolução de 30
agem para o escritor como elementos de estrutura literária, podendo ser estudado em si
mesmo, em decorrência do importante cenário social e político que representam. Nesse
sentido, o contexto social e histórico tem um papel decisivo nas obras que são compostas
por Erico Verissimo no período entre 1933 e 1946. Não por acaso, muitos críticos atribu-
em ao ciclo composto por Verissimo o cognome de “Romance Urbano”, escrita justa-
mente no momento crucial da consolidação da Revolução Burguesa no Brasil. Os ro-
mances se constituem naquilo que os caracteriza como textos modernistas da década de
30. Assim, o Ciclo de Porto Alegre, se pensado como inscrito em sua condição histórica
e levando-se em conta a experiência pessoal de Verissimo, pode, sim, ser pensado como
uma obra que representa os novos moldes do Brasil, o qual se modernizou após a passa-
! 23
gem pela Revolução Burguesa. Ao tratar de problemas inerentes à formação de uma das
principais capitais do Brasil, não renegando seus problemas sociais, o autor faz uma am-
pla análise da capital Porto Alegre, tornando sua obra uma expressão da sociedade gaú-
cha. Se posicionarmos tal idéia à proposta da presente tese, podemos antever que os
modernistas, e no nosso caso específico, Verissimo se utilizam de tal artifício para que
seus personagens se firmem na nova realidade social que se configura após a queda da
República Velha, tentando se ajustar à nova realidade que se delineia sob seus pés.
Erico Verissimo, além de exprimir a mesma intenção genealógica de
definição da tradição local , cerne da vertente regionalista do movimento modernista, 23
insere em seus romances algo mais: a crítica à transição do homem que se deslocou do
campo para a cidade e os problemas e dilemas que estes personagens enfrentam neste
cenário que lhes é inteiramente estranho. Segundo Antonio Cândido, o movimento mo-
dernista rompe com o estigma do brasileiro idealizado na literatura, numa proposta de
reinterpretação das deficiências como superioridades , o que Luís Bueno reescreve 24 25
dizendo ser uma reconciliação do intelectual com a sua realidade. O autor de O romance
de 30 nos diz que o herói de 30 incorpora aspectos da realidade social brasileira ao invés
de se apresentar como um transformador. Bueno ainda nos coloca que o retorno ao pas-
sado resulta como uma recusa às transformações mais severas em uma estrutura muito
ROSENFELD, Anatol. et. al. A Personagem de Ficção. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 156. 23
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Publifolha, 2000, p.11024
BUENO, Luís. O Romance de 30. São Paulo: EDUSP, 2006, p. 16825
! 24
enraizada por aspectos tão tradicionais. A trajetória de Vasco Bruno, como se analisará
adiante, é exemplar deste caso. Nas palavras de Maria da Glória Bordini,
essa tendência secular de representar o que de passa no País na litera-tura, para conferir-lhe uma feição própria, se radicaliza na Geração de 30, que lhe atribui uma função não apenas identificadora, mas formati-va: o romance deve expressar o modo de ser das sociedades mais ou menos reacionários do Brasil, para, denunciando-as, conscientizar o povo para reagir contra elas. Ao nacionalismo tradicional reúne-se em 30 (na verdade, de 22), um projeto de modernização que lê o Brasil conforme a malha ideológica de cada grupo. Todos continuam buscan-do uma identidade, que varia segundo o ideário adotado e as formas de luta nele implicadas. 26
Em O discurso e a cidade , Antonio Candido nos diz que o escritor, ao 27
compor sua obra, constrói um mundo novo, em um processo em que o ponto de partida é
a sociedade e o ponto de chegada, o texto em si. Para a realização desse novo universo, o
autor do romance moderno se utiliza daquilo que Candido conceitua como redução es-
trutural. Valendo-se dela, o autor usa de seus artifícios para dotar a sua obra da impres-
são de verdade.
Erico Verissimo se apropria da realidade que lhe é tão cara – a de Porto Ale-
gre – para evidenciar a situação de uma capital brasileira que se transforma em decor-
rência do período pelo qual o Brasil passa - A Revolução Burguesa. Ao construir seu
mundo urbano naquele que denominamos de “Ciclo de Porto Alegre”, destaca trajetórias
daqueles que são oriundos de uma oligarquia falida e que representam um Rio Grande
BORDINI, Maria da Glória. Criação literária em Erico Verissimo. Porto Alegre: L&PM e EDIPUCRS, 261995, p.56.
CANDIDO, Antonio. O Discurso e a Cidade. São Paulo: Duas Cidades, 2004, 27
! 25
que só se faria presente, a partir de então, nas tradicionais festas do 20 de setembro . Ao 28
fundar a estrutura da obra em um contexto histórico de profundas transformações soci-
ais, políticas e econômicas para o Brasil, Erico Verissimo faz da realidade o cenário para
o desenlace de destinos daqueles que migraram para Porto Alegre e que se sentem deslo-
cados numa nova ordem de coisas que não corresponde à formação de seu ethos.
Assim, ao trabalhar a dinâmica de uma nova realidade, a posterior à
Revolução de 30 no Brasil, Erico Verissimo transforma os dados históricos em elemen-
tos de composição da estrutura de suas obras, que são assim, dotadas de realidade. Nas
palavras de Candido, a capacidade do autor de “intuir” associa-se com o elemento oculto
que totaliza na obra aquilo que parecera mero elemento parcial. Dessa forma, a genera29 -
lidade que se cria dá consistência à junção do real com fictício, que darão forma à obra
que se constrói.
20 de setembro é o dia em que se comemora, no Rio Grande do Sul a Revolução Farroupilha, e por ex28 -tensão, o Tradicionalismo gaúcho.
CANDIDO, Antonio. O Discurso e a Cidade. São Paulo: Duas Cidades, 2004, p. 30. 29
! 26
CAPÍTULO 2
O CAMINHO DA REVOLUÇÃO À BRASILEIRA
“Sem dúvida, nenhuma revolução sepulta o passado de um povo” Florestan Fernandes
Os romances que delineiam o chamado “Ciclo de Porto Alegre” são
concomitantes ao novo desenho que também toma os rumos do Brasil, que se depreende
da chamada República Velha para inaugurar um novo ciclo de sua vida política com a
Revolução de 30, embora esta consista mais numa tentativa de modernização conserva-
dora que uma revolução de fato.
Para tecer tal análise, se fará o contraponto entre algumas teses acerca da
Revolução Brasileira: a da revolução burguesa, adotada por Florestan Fernandes em Re-
volução burguesa no Brasil e a tese defendida pelo autor Luiz Werneck Vianna em A 30
revolução passiva , que contemplam bem o estudo das mudanças sociais, econômicas e 31
políticas da época na presente tese abordada, assim como a análise da Revolução de 30
feita por Bóris Fausto em seu livro homônimo.
Dessa forma, se adotará a teoria de que nossa Revolução de fez de forma
passiva, com influência de componentes inerentes à nossa formação política e social ad-
vindas da herança ibérica que possuímos devido aos mais de trezentos anos de coloniza-
FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil. São Paulo: Globo, 2005. 30
VIANNA, Luiz Werneck. A Revolução Passiva. Rio de Janeiro, Revan, 1997. 31
! 27
ção portuguesa. Para Weneck Vianna , o iberismo que nos é tão inerente não foi herda32 -
do: ao incorporá-lo, a ex-colônia tem para com a metrópole uma atitude de solidarieda-
de, da qual o Estado que se forjou foi convertendo a ordem em uma outra que lhe seria
conveniente. Neste sentido, o iberismo seria então a formalização das práticas e institui-
ções do Estado metropolitano que se ampliaram no Brasil na tentativa conservadora de
modernização comandada por uma elite que não conseguiu ser responsável pela integra-
ção política. O novo que se instaura não cancela a antiga ordem social, onde a principal
direção que se tomou foi a de conservar mudando, configurando então aqui um processo
intimamente ligado às características ibéricas . 33
O Brasil seria então uma Ibéria renovada, onde, para não se perder o “bonde
da história”, os estamentos políticos tomaram para si a tarefa da industrialização do país
principalmente durante os anos vigentes da política econômica do Estado Novo. Mesmo
que a industrialização fosse impulsionada pela intenção burguesa, os estamentos tradici-
onais acabaram atuando em setores importantes como gestão da administração e exérci-
VIANNA, Luiz Werneck. A Revolução Passiva. Rio de Janeiro, Revan, 1997, p. 19. 32
Vale ressaltar que o que em muitos livros sobre pensamento social brasileiro e análise de nossa forma33 -ção se denomina iberismo, não se configura com o mesmo sentido ao ser estudado na Ibéria. Na Espanha e em Portugal, o Iberismo representa uma importante vertente ideológica que renasceu apoiado nas manifes-tações do liberalismo e nos exemplos de unificação da Alemanha e da Itália, na segunda metade do século XIX. Muito embora possam ser observados intentos a esse respeito desde a mais tenra história da Penínsu-la Ibérica (sendo consolidada a união em 1580, depois da morte de D. Sebastião, até a Restauração em 1640), a formalização de um projeto se tornou realidade com este movimento que teve características tanto políticas como intelectuais. A questão do Iberismo ficou, porém, adormecida durante o período ditatorial que assolou a Península, sendo o tema posto em pauta apenas após a queda de Salazar e Franco, na década de 70 do século XX. Dentre os intelectuais que colocaram o Iberismo em pauta, está, por exemplo José Saramago. No Brasil, quando trata-se de iberismo na herança social brasileira, diz-se da influência dos padrões administrativos de Portugal e Espanha no cerne social e suas consequências em nossa formação. Tais vissicitudes foram alvo de pesquisa durante o período de Doutorado Sanduíche, financiado pela CA-PES no período de Agosto de 2013 à Julho de 2014, sob orientação do professor António Sáez Delgado, na Universidade de Évora.
! 28
to, por exemplo. Nesse sentido, o governo Vargas, a partir daquela que se denomina Re-
volução de 30, proporcionou às massas uma série de reformas que deram a impressão da
democratização de direitos aos excluídos do processo revolucionário, mesmo que o Bra-
sil da desordem sempre imperasse sobre o Brasil da ordem, como bem trabalhou Antô-
nio Cândido . Assim, pode-se dizer que a política atuou como libertadora das forças 34
produtivas e não o contrário, como aconteceria numa revolução autenticamente liberal.
Nossa estrutura social, singularmente marcada pelo advento de uma inde-
pendência sem ruptura, pela manutenção do legado ibérico de governo em decorrência
de um processo de independência que fora orquestrado pelas elites e de uma transição
republicana que se engendrou sob os mesmos moldes, caracteriza-se desde então pelo
diálogo entre a ordem, caracterizada pelo mundo burocratizado e maculado pelo libera-
lismo; e a desordem, onde prevalecem os desígnios tradicionais e paternalistas de nossa
formação social e política.
Segundo Luiz Werneck Vianna, no Brasil, os movimentos revolucionários
são articulações que atuam com a intenção de evitar que mudanças incisivas aconteçam
de fato: tais movimentos atuam na intenção de evitar a revolução , Tal fato que pode35 -
Para analisar Memórias de um sargento de milícias, Antônio Cândido desenvolve a chamada dialética 34da malandragem, onde o indivíduo recorre à prática da malandragem por se situar no limiar da ordem e a desordem social. O conceito fora retomado por Roberto Schwarz em “Pressupostos, salvo engano, de ‘Dialética da Malandragem’”, no livro Que horas são?, servindo como base para o trabalho que aqui se apresenta. Schwarz apresenta a malandragem como sabedoria genérica de sobrevivência em um mundo sem culpa, intermediando a vida do homem livre em uma sociedade de características marcadas pela he-rança da escravidão. Desse modo, o malandro vive numa esfera intermediária, não prescindindo da ordem nem vivendo fora dela. Cf. CANDIDO, Antonio. O discurso e a cidade. Duas Cidades: São Paulo, 2004 e SCHWARZ, Roberto. Que horas são? São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
VIANNA, Luiz Werneck. A Revolução Passiva. Editora Revan, RJ, 199735
! 29
mos analisar em momentos decisivos de nossa história, como no processo de Indepen-
dência, na chamada Revolução de 30 e no golpe militar de 1964, insistentemente deno-
minado por alguns de forma errônea como “Revolução”. A revolução passiva é a revolu-
ção sem revolução, sem a presença fundante das massas, pois se “evita varrer demasiado
resolutamente todos os restos do passado” da história social. 36
No prefácio da 5ª edição do livro de Florestan Fernandes, José de Souza
Martins diz que “o país do futuro” não tinha futuro. O futuro do Brasil, a partir dos mo-
vimentos de ruptura - mesmo que ocorressem sem ruptura no sentido marxista do termo
(a exemplo do que se pode analisar nos processos de 1822, 1889 e 1930), se configuraria
como uma repetição de referências de estruturas do passado, que viria “maquiada por
uma modernidade postiça relutante” . A partir daí teríamos a luta entre os dois Brasis: o 37
arcaico e o moderno, num processo revolucionário oposto ao que sucedeu na Europa e
que legaria ao Brasil um capitalismo dependente.
Segundo a tese de Florestan, aquilo que poderíamos considerar como
germe do espírito burguês teria tido seu impulso após o processo de Independência do
Brasil, em 1822, mesmo que a figura do capitalista de fato tenha aparecido aqui tardia-
mente. Outrossim, até 1888, ano em que os escravos deixaram as senzalas para contri-
VIANNA, Luiz Werrneck. A Revolução Passiva. Editora Revan, RJ, 1997, p. 98. 36
MARTINS, José de Souza. Prefácio, In: FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil. 37São Paulo: Globo, 2005, p. 16.
! 30
buírem para a monetarização da economia, tivemos aqui apenas um arremedo de capita-
lismo , ainda mediado por conjunturas puramente estamentais. 38
O processo que se engendra através da modernização iniciada com a
transferência da corte portuguesa para o Brasil em 1808 é o de que os senhores rurais
são capazes de romper o seu isolamento com a organização de um Estado Nacional que
os faz emergir e os projeta para o cenário econômico das cidades em pleno desenvolvi-
mento. Surgem então novos tipos sociais, estes menos ligados às formas estruturais da
tradição senhorial. Na tese defendida por Florestan, a Independência seria a primeira
grande Revolução, que marcaria a era colonial. Com ela se iniciaria a sociedade nacional
de fato no Brasil, sacramentando o rompimento com o status colonial, muito embora te-
nha sido este um processo inteiramente comandado pelas elites, que mantiveram várias
de suas prerrogativas. Estas, a partir da formação ou forja deste novo Estado Nacional,
passaram a manipulá-lo como forma de garantia de seus interesses.
Logo, temos uma via de mão dupla no processo que se configura: ele
revoluciona, na medida em que transforma toda uma estrutura e atua como conservador
na medida em que mantém uma ordem que anteriormente não detinha autonomia neces-
sária para engendrar o florescimento de uma nação. Nesse sentido, a herança ibérica se
reconstrói no movimento por meio do qual as elites se apropriam do Estado, transfor-
mando-se em estamento político e se reconfigurando em elites modernas.
FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil. São Paulo: Globo, 2005, p. 35.38
! 31
O liberalismo atuou como uma forma de quebrar as amarras com o
estatuto colonial, redefinindo a condição do Brasil que continuaria a estar dependente
dos mercados externos durante ainda boa parte de sua história econômica. Embora tenha
apresentado suas influências, principalmente no período dos anos que sucedem 1822, o
liberalismo se constituiu como uma realidade histórica apenas para uma minoria privile-
giada, fazendo com que o elemento senhorial se transfigurasse para o status de
cidadão . Em outras palavras, o liberalismo à brasileira teria sido climatizado e serviria 39
como pano de fundo para o desenlace da revolução forjada, tendo como base tradições
decididamente ibéricas. Como forte exemplo disso destaca-se a tradição territorialista
do Brasil.
Os estamentos assimilaram a nova ordem e a converteram em dominação
estamental propriamente dita: sociedade civil e estamentos sociais dominantes passaram
a ter, então, o mesmo significado. Há uma dualidade representada por tradição e buro-
cracia, mas há na estrutura que se forja em nosso país a prevalência da tradição, o que
impede, de certa forma, a quebra entre passado e presente. Nas palavras de Florestan,
“(...) a chamada massa de cidadãos ativos servia de pedestal e de instrumento aos cida-
dãos prestantes, a verdadeira nata e os autênticos donos do poder naquela sociedade ci-
vil” . Nosso liberalismo não aconteceu para consagrar a liberdade, mas sim para sus40 -
tentar a ordem e a autoridade do Estado Nacional forjado em revoluções que de fato não
FERNANDES, Florestan. A Revolução. Burguesa no Brasil. São Paulo: Globo, 2005, p 58.39
Idem, pp. 59-6040
! 32
foram. Dessa forma, a nossa revolução passiva é obra dos estamentos políticos que cri-
am uma nação para o Estado que os representa e se apresenta como oposta à revolução 41
norte-americana, cuja herança racionalizadora acaba criando uma internalização do Es-
tado, suprimindo a oposição aqui existente entre o público e o privado . 42
Sérgio Buarque de Holanda, no clássico Raízes do Brasil, diz que no Brasil
imperou desde os anos iniciais da colonização o modelo de família patriarcal. Tal estru-
turação acarretou um desequilíbrio social, onde os futuros dirigentes dos centros urbanos
advindos da experiência de dominação senhorial, teriam dificuldade em fazer a separa-
ção entre os aspectos públicos e privados. Nossa tradição consolidará a prática de atri-
buir funções do serviço público àquelas pessoas de confiança pessoal, desrespeitando a
ordem burocrática. A instituição familiar, então, será decisiva na constituição da estrutu-
ra das cidades e as relações da vida doméstica serão parâmetro para as composições so-
ciais brasileiras.
Emerge das profundezas das estruturas senhoriais tradicionais com os
novos moldes aquele que vem ser chamado por Florestan Fernandes de “senhor-cida-
dão” , que dimensiona o poder em novas bases, tendo como foco o alcance do poder 43
político: o poder do senhor tem a perspectiva, agora, de ir além das barreiras do enge-
nho. Mesmo que acanhada, a ordem legal se mostrou e teria permanecido ainda mais
VIANNA, Luiz Werneck. A Revolução Passiva. Editora Revan, RJ, 1997. 41
FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil. São Paulo: Globo, 2005, p. 80.42
Idem, p. 6043
! 33
fechada se não fossem as influências do liberalismo. Porém, “(...) a ordem legal perdia
sua eficácia onde ou quando colidisse com os interesses gerais dos estamentos senhori-
ais” , num movimento onde se pode inferir que aqui, o liberalismo não se configurou 44
como uma ideologia de massa, confinando-se aos quadros políticos das elites . 45
A herança ibérica, então, se faz presente. Transferiu-se para a colônia toda
a cultura política da Ibéria, cerceando os caminhos do Brasil em direção à modernização
do Estado que então tentava se consolidar. Os domínios rurais e os tipos de família regi-
das pelas normas clássicas do direito canônico da Península Ibérica serão a base de toda
a nossa organização social . Tal transplante gerou aqui a formação de um patriarcado 46
rural de vocação doméstica que, formando todo um complexo social dentro da esfera dos
grandes latifúndios, faria desta unidade autárquica, nas palavras de Werneck Vianna, a
nossa maior escola social . Tal ordem de acontecimentos teriam legado aos burgueses 47
não o costumeiro papel revolucionário, mas uma atuação secundária, sendo que os pró-
prios centros urbanos seriam subordinados ao domínio dos ‘senhores’. Sendo cada lati-
fúndio uma unidade distinta, a solidariedade social não se desenvolveu entre nós, os her-
deiros ibéricos. As diversas esferas de poder se organizavam através de vínculos biológi-
cos e afetivos, formando um todo indivisível, onde o amalgama associativo se configura
FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil. São Paulo: Globo, 2005, p. 64. 44
VIANNA, Luiz Werneck. A Revolução Passiva. Rio de Janeiro, Revan, 1997, p. 18.45
HOLANDA, Sergio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, p. 81. 46
Idem, p. 17147
! 34
na rede regida por sentimentos e deveres e nunca por interesses e idéias, como diz Sérgio
Buarque de Holanda . 48
Nesse sentido, podemos dizer que o passado colonial de certa forma
acaba se convertendo em modelo para a situação que irá se configurar no presente ou
ainda, que a dominação que se inaugurou com o modelo instaurado pela metrópole não
foi superada e se prolongou, o que nas palavras de Richard M. Morse , impede que o 49
presente se torne história. Para as elites senhoriais, manter essa prerrogativa seria a único
caminho para delinear o futuro do país. Acontece, então, uma revolução dentro da ordem
a partir do movimento de Independência de 1822, que funcionou como via de autorreali-
zação dos estamentos senhoriais, dando a eles privilégio político e exclusivismo social,
configurando a “necessária” comunidade solidária que se consolida na emergência de
um “Estado Nacional”. A manutenção dos estamentos senhoriais seria a condição para o
rompimento com o estatuto colonial, construindo uma nova ordem a partir das heranças
deixadas pela colonização. Os estamentos transformaram o Brasil em nação, estendendo
a dominação do plano do domínio para a coletividade através da burocratização. A mo-
dernização então é feita de cima para baixo por aqueles que são dissidentes das oligar-
quias rurais, não apresentando nenhum elemento novo na tentativa de constituição do
Estado burguês. Nossa modernização foi feita compromissada com as estruturas funda-
das no passado.
HOLANDA, Sergio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, p. 79. 48
MORSE, Richard M. O Espelho de Próspero. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. 49
! 35
Os estamentos senhoriais agiram de forma produtiva na emergência da na-
ção, controlando ao mesmo tempo a economia e o Estado, assim como a vida social.
Dessa forma, foram responsáveis pela modernização incipiente do país naquele determi-
nado momento histórico que se configurava nos anos que sucederam 1822. Algumas
áreas apresentaram o salto positivo, porém, no que tange às instituições políticas e jurí-
dicas, pode-se dizer que se converteram em instrumentos de dominação patrimonial e
estamental . Assim, a influência do liberalismo ocorreu apenas quanto aos aspectos re50 -
volucionários “formais”. Nas palavras de Florestan Fernandes,
“(...) por ser um amálgama, ele preencheu as funções mutuamente ex-clusivas e inconsistentes a que devia fazer face, estendendo a organiza-ção política e a ordem legal através e além do vazio histórico deixado pela economia colonial, pelo mandonismo e pela anomia social” . 51
O nosso popular é um homem que por sua natureza procura um chefe e
sofre um doloroso dilema pessoal quando tem que agir por si só . A forma de solidarie52 -
dade deturpada que se estabelece aqui na América ibérica é baseada no compadrio e nos
laços de dependência, impossibilitando a emergência do cidadão de fato. Tal centraliza-
ção na figura paternal do compadre, do coronel, ou do caudilho, paradoxalmente atribui
ao popular alguns direitos ou liberdades apenas possíveis dentro desta esfera protecionis-
ta. O Estado aparece como o único capaz de se responsabilizar pela construção da ordem
FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil. São Paulo: Globo, 2005, p. 87.50
Idem, pp. 90-91. 51
VIANNA, Luiz Werneck. A Revolução Passiva. Editora Revan, p. 172. 52
! 36
viável através do poder pessoal, características ibéricas. Nas palavras de Morse , o 53
mundo ibero-americano se fundou sob uma base ainda não desencantada pelo cientifi-
cismo que ajudara a moldar a América anglosaxônica. Assim sendo, as pessoas percebe-
riam os sistemas de poder como a elas exteriores e passíveis de manipulação mediante o
controle do sistema de votos e promessas particulares em mundo mediado por estruturas
de dominação.
As mudanças que se deram a partir do processo de independência não con-
sistem em uma reviravolta econômica propriamente dita, já que a emergência dos esta-
mentos senhoriais acabou por revitalizar a empresa agrícola como força motriz da eco-
nomia brasileira então fortemente dependente do uso da mão-de-obra escrava. A ordem
que se consolidaria persistiu à desagregação patrimonial e à abolição da escravatura.
O que se propõe em A Revolução Burguesa no Brasil é que houve duas
linhas de desenvolvimento capitalista no país: uma primeira, engendrada pela coloniza-
ção e ligada à empresa agrícola e o mercado exterior, e uma segunda representada pela
autonomização política e a criação de um Estado Nacional, que acabou não acarretando
em uma autonomização econômica ou estamental . Apesar do alavancamento econômi54 -
co que se processou com as alterações políticas no país, a situação de mercado aqui vi-
gente não condizia com a condição de país dependente e perifErico, sendo o desenvol-
vimento brasileiro essencialmente interno e mais ligado aos núcleos urbanos em desen-
MORSE, Richard M. O Espelho de Próspero. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. 53
FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil. São Paulo: Globo, 2005, p. 106.54
! 37
volvimento. Nosso principal aspecto de modernização econômica se deu sob a influência
das elites nativas, responsáveis pelo controle do Estado. Embora organizada através de
uma ordem legal e política controlada de dentro e para dentro, a economia brasileira tan-
to produzia quanto consumia para fora . 55
Estabeleceu-se no Brasil, então, uma ética econômica que tinha íntimo
interesse em coordenar-se com interesses econômicos que prevaleciam na relação que
tinha o país com o exterior. Mesmo que preso ao capital exterior e apesar de considerar
Florestan que não tenha sido em condições revolucionárias, houve sim transformações
econômicas no que tange ao liberalismo, que passou a organizar as novas bases da eco-
nomia, podendo se observar no Brasil, pela primeira vez, o palco propriamente burguês e
uma situação de mercado emergente. Havia, porém, um movimento pendular que oscila-
va entre o liberalismo e o controle estamental da economia do país: ordem e desordem
sempre presentes. Mesmo que a elite fosse entusiasta de mudanças e partilhasse de al-
gumas idéias civilizatórias, as atitudes autoritárias que se fizeram presentes em nossos
processos revolucionários denunciavam fortemente a nossa herança ibérica. Ao compa-
rar a revolução burguesa tardia que ocorre na Íbero-América ao caso alemão, por exem-
plo, destaca Morse que ambos os casos apresentam um modelo desenvolvimentista bu56 -
rocrático que acabou por entrevar a prática parlamentar em governos com tendências
fortementes autoritárias.
FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil. São Paulo: Globo, 2005, p. 111. 55
MORSE, Richard M. O Espelho de Próspero. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. 56
! 38
O Estado brasileiro do pós-independência é territorialista e se baseará no
trabalho escravo que fora incentivado pelas intenções mercantilistas da metrópole ibéri-
ca. O compromisso que se tem é o de realizar um Estado que se pretende liberal com
meios caracteristicamente pré-capitalistas. Nas palavras de Werneck Vianna, no Brasil,
“o liberalismo é prisioneiro do iberismo”, já que o liberalismo, aqui, não renovou ati57 -
tudes ou instituições coloniais. A bem da verdade, a vinda e a ação inovadora dos imi-
grantes acabaria, como diz José Carlos Mariátegui , por permitir a evolução da demo58 -
cracia burguesa em países como o Brasil e a Argentina, sendo ainda mais tardia em ou-
tros países da América ibérica pelo que o autor chama de “resquícios feudais”.
Segundo Florestan Fernandes, o novo setor que se inaugurou a partir da
autonomização política “possuía um circuito capitalista suficientemente diferenciado e
complexo para ordenar-se e crescer em função das condições materiais e morais do am-
biente” . Assim, podemos dizer que os senhores rurais deslocavam suas atividades para 59
a economia urbana, direcionando suas ações para o setor capitalista. A modernização
influenciou uma nova visão cultural, a do mundo mercantil, ao mesmo tempo em que
contrastava com a ética estamental. O nosso homem de negócios ia se transfigurando em
homo economicus.
VIANNA, Luiz Werneck. A Revolução Passiva. Rio de Janeiro, Revan, 1997, p. 46. 57
MARIÁTEGUI, José Carlos. Siete ensayos de interpretación de la realidad peruana. Santiago de Chile: 58Editorial Universitaria, 1955.
FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil. São Paulo: Globo, 2005, p. 126. 59
! 39
Se, no começo de nosso processo revolucionário, o senhor agrário renegava
o status de burguês para se garantir na aristocracia rural e conseqüentemente no coman-
do do Estado, no contexto da Proclamação da República houve a inversão de valores: o
senhor se aproxima do elemento burguês para se transformar no “cidadão
republicano” . Porém, a perpetuação da tradição senhorial indica que a defesa do status 60
seria para esse cidadão tão importante quanto a riqueza adquirida. Nesse sentido, a fa-
zenda representaria a base material do domínio e círculo de poder do senhor, direcionan-
do a metamorfose do senhor agrário em homem de negócios como a única saída. Assim,
a inauguração do ciclo do café nos apresenta uma visão dual: o barão é ao mesmo tempo
coronel e homem de negócios. Em contrapartida, não democratiza seu comportamento,
estabelece controles pessoais que propiciam a continuidade de seu mando. Para isso, o
barão apegou-se ao poder político para preservar sua dominação estamental e recorreu
ao nepotismo para se fazer sobreviver entre os estratos dominantes. A garantia que se
procura é a de domínio mercantil dentro da ordem, favorecendo, assim, a formação de
verdadeiras malhas de poder . 61
Os barões do café apresentam uma nova mentalidade econômica, uma vez
que se relacionam de forma diferente com o mercado. Seu poder não advém somente do
status senhorial: precede também de sua situação econômica e visam expandir através de
seu poder financeiro a sua produção agrária. Tal situação contrasta e muito com a dos
FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil. São Paulo: Globo, 2005, p. 130. 60
Idem, p. 142. 61
! 40
produtores agrários originais. “Estabeleceu-se uma ruptura entre as ‘normas ideais’ e o
‘comportamento prático’ em matérias essenciais para o código senhorial” . O barão 62
nega e supera o senhor agrário ao ceder à pressão estrutural do capitalismo comercial.
No Brasil, a ordem competitiva foi se instaurando paulatinamente a partir
da desintegração da ordem escravocrata, que possibilitou a reorganização das relações de
produção. O que se almejou foi modificar a ordem sem se colocar em risco o privilégio
daqueles que a controlavam. Os estamentos, ao terem em seu horizonte a prática capita-
lista, não aceitaram o autocontrole do mercado. O suporte que a economia precisaria vi-
ria do controle senhorial, tanto da economia quanto da sociedade. Porém, todo seu poder
não seria suficiente para modificar dinamismos, flutuações e situações de mercado ad63 -
vindas da nova situação que aos poucos ia se configurando.
A relação senhor - escravo teria prejudicado as bases da vida moral e
política, tornando difícil a individualização ou a transformação do indivíduo. Nas pala-
vras de Florestan, “seria preciso lembrar que no cosmos senhorial só pode existir um
tipo de individualismo, que nasce da exacerbação da vontade”.
Não houve ruptura do burguês com os estamentos senhoriais justamente
porque quem mais encarnava o espírito burguês neste período, os barões do café, identi-
ficavam-se com o ethos estamental consolidado em anos de Brasil Colônia, firmando-se
o poderio burguês durante a fase de transição entre o Império e a República. Não há in-
FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil. São Paulo: Globo, 2005, p. 148. 62
Idem, p. 185.63
! 41
tenção alguma de ruptura em tal processo: nossa revolução se fez de forma passiva, onde
o latifundiário coexistiu com um trabalhador livre peculiar, que detém fortes laços de
dependência para com esse senhor que se mercantiliza na nova realidade social.
A burguesia incipiente vinha de meios provincianos e rurais e era for-
temente atraída pelo ethos oligárquico, além de inserida em um horizonte caracterizado
por práticas estamentais. O mesmo mandonismo de outrora seria posto em prática pelo
burguês em formação, que agiria de forma conservadora sempre que necessário. Havia a
construção e a existência formal de procedimentos democráticos. Porém, eles eram ino-
perantes dentro da nossa tradição. A democracia que se constitui a partir de então é do
tipo burguês brasileiro: é restrita às rodas de poder; o liberalismo serviu de impulso para
a Independência, porém, não entrou em concordância com as estruturas que estavam
aqui impostas, como trabalho escravo e traços de clientelismo. O liberalismo foi utiliza-
do a favor da formação do Estado Nacional e não para consagrar a liberdade e a igualda-
de de direitos.
Constituiu-se uma nova aristocracia. Neste sentido, foi a oligarquia que de-
cidiu os rumos de nossa Revolução Burguesa, pois inovar e preservar estruturas só lhe
interessava como instrumentos econômico e político. Logo, há, no Brasil a fusão do ve-
lho e do novo, da antiga aristocracia comercial e dos imigrantes emergentes, prevalecen-
do a lógica burguesa da oligarquia, visando a preservação e a renovação de estruturas de
poder.
! 42
No período da República Velha, (1889-1930) o Estado não representa qual-
quer classe: ele representa a si próprio e em sua engrenagem articula grupos de classes
sociais emergentes da realidade que se apresenta no pós-1889, mantendo, porém, os tra-
ços de uma sociedade tradicionalmente patrimonialista . É um período também caracte64 -
rizado por avanços econômicos que priorizaram interesses regionais em detrimento de
um projeto nacional: as regiões obtiveram um desenvolvimento desigual, e, às vésperas
da Revolução de 30, aqueles que controlavam o governo já não representavam de modo
direto os grupos sociais hegemônicos.
Durante os anos que caracterizam a República Oligárquica, houve um surto
imigratório com ênfase no que tange ao Centro-Sul do Brasil. Com isso, há o crescimen-
to de uma classe média urbana e o surgimento do primeiro núcleo de classe operária. O
cenário político caracterizado pela sequência de presidentes paulistas até o início dos
anos 20 demonstrava a harmonia existente entre as classes dominantes e as dirigentes. A
partir da década de 20, os paulistas tiveram que dividir o poder com mineiros e gaúchos,
estes últimos que aos poucos iam rompendo seu isolamento enquanto os paulistas iam,
nas palavras de Boris Fausto, se entrincheirando em seu estado . 65
Houve, então, com a Revolução de 30, a abreviação do poder oligárquico por
meio da instituição de um poder autoritário impul