Post on 09-Jan-2017
7ALÍPIO DE SOUSA FILHO
EDITOR
Gênero e SexualidadesESTUDOS GAYS
Proposta Editorial
Publicação semestral de estudos teóricos, pesquisas empíricas, ensaios e resenhas sobre as temáticas de gênero e sexualidade, com destaque para os estudos gays, lésbicos e queer sobre homossexualidades, lesbianidades, transexualidades. A revista publica igualmente trabalhos de teoria social, direitos humanos, cultura e política que dialoguem com a temática central.
Bagoas : revista de estudos gays / Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. - V. 1, n. 1 jul./dez. 2007)- . - Natal : EDUFRN, 2007- . v. ; 23 cm.
Semestral. Início: jul./dez. 2007. Editor: Alípio de Sousa Filho. Descrição baseada em: v. 1, n.1, jul./dez. 2007. ISSN 1982-0518 1. Ciências Humanas e Sociais - Periódico. 2. Sexualidades - Periódico. 3. Ética sexual - Periódico. 4. Ética moral - Periódico. 5. Homossexualidades - Periódico. I. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. II. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. III. Título.
RN/BSE-CCHLA CDU 168.522:3(05)
A revista tem registo no Sociological Abstracts
Catalogação da Publicação na Fonte. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Biblioteca Setorial Especializada do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA).
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTEReitora: Ângela Maria Paiva Cruz
Vice-Reitora: Maria de Fátima Freire de Melo Ximenes
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS LETRAS E ARTESDiretor: Herculano Ricardo Campos
Vice-Diretora: Maria das Graças Soares Rodrigues
EDITORAlípio de Sousa Filho
EDITORES ADJUNTOS
Antonio Eduardo de OliveiraDurval Muniz Albuquerque Junior
SECRETÁRIO EXECUTIVOJosé Eider Madeiros
BOLSISTA DE APOIO TÉCNICOGlauber Vinícius
ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃOLaurisa Alves
COMISSÃO EDITORIAL
Anne Christine Damásio – UFRNCarlos Guilherme Valle – UFRN
Cinara Nahra – UFRN Eduardo Anibal Pellejero – UFRN
Elisete Schwade – UFRN Makarios Maia – UFRN
Márcio de Lima Dantas – UFRN Maria das Graças Pinto Coelho – UFRN
Rozeli Maria Porto – UFRN
CONSULTORIA EDITORIALAdriana Piscitelli – UNICAMP
Adriana Resende Barretto Vianna – UFRJ Alessandro Soares da Silva – USP
Alexandre Câmara Vale – UFCDaniel Welzer-Lang – Univerité Toulouse 2 – França
David Foster – Arizon University – EUADenílson Lopes – UFRJ
Edrisi Fernandes – UFRN Emerson da Cruz Inácio – USP
Eugênia Correia Krutzen – UFPBFabiano Gontijo – UFPI
Fernando Bessa Ribeiro – UTAD – PortugalFernando Villamil – Universidad Complutense de Madri – EspanhaFrancisco Oliveira Barros Junior – UFPIHorácio Costa – USPJames Noyle Green - University of Brown – EUAJoel Birman – UFRJJúlio Simões – USPLaura Moutinho – USPLeandro Colling – UFBALuiz Fernando Dias Duarte – UFRJLuiz Mello de Almeida Neto – UFGLuiz Mott – UFBALuiz Paulo Moita Lopes – UFRJLourdes Bandeira – UNBMarcos Antônio Costa – UFRNMárcia Aran – UERJMaria Helena Braga – UFRNMaria Luiza Heilborn – UERJMichel Maffesoli – Sorbonne – FrançaMiguel Vale de Almeida – ISCTE – PortugalMiriam Grossi – UFSCPeter Fry – UFRJRicardo Barrocas – UFCPaulo Roberto Ceccarelli – PUC-BHRegina Facchini – UNICAMPRobert Howes – University of London – InglaterraRogério Diniz Junqueira – INEPSérgio Carrara – UERJSonia Correa – ABIASteven Butterman – University of Miami – EUASeverino João Albuquerque - University of Wisconsin – EUATânia Navarro-Swain – UNBToni Reis – ABGLTWilton Garcia Sobrinho – UBC
REVISÃOJúlia Ribeiro Fagundes Oscar Maurício Gómez Gómez (para o Espanhol) PROJETO GRÁFICOJanilson Torres
CAPAJanilson Torres (a partir da obra anônima "Master of the jardin de vertueuse consolation” - 1470-1475 d.c. - , na qual Bagoas é retratado, intercedendo por Nabarzanes, diante de Alexandre Magno. Visualize o original).
EDITORIAL
ARTIGOS
A inversão sexual entre os Azande
E. E. Evans-Pritchard
Ser Queer
Paul Goodman
A homossexualidade perante a lei na França:
do pós-guerra à “liberação gay”
Geoffroy Huard de La Marre
Identidades, cuerpos y educación sexual:
una lectura queer
Germán S. M. Torres
Para uma análise sobre a incorporação de disposições
normativas de prescrição dos corpos
na contemporaneidade
Juliana Perucchi
Sexual inversion among the Azande
Being Queer
The homosexuality in front of the law in France:
from postwar to “Gay Liberation”
Identities, bodies and sex education:
a queer approach
Towards an analysis of the incorporation
of body-regulating dispositions
in contemporary times.
13
sumário
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31
43
63
81
9
99
123
173
199
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Para além de um kit anti-homofobia: políticas públicas
de educação para a população LGBT no Brasil
Luiz Mello
Fátima Freitas
Cláudio Pedrosa
Walderes Brito
O caso Geisy Arruda: representações midiáticas
brasileiras sobre violências contra mulheres
Rayani Mariano dos Santos
Patrícia Rosalba Salvador Moura Costa
Giovanna Lícia Rocha Triñanes
Miriam Pillar Grossi
Para se pensar sobre a experiência transexual na escola:
algumas cenas
Dayana Brunetto Carlin dos Santos
Da finada à europeia: experiências de ser,
não permanecer e estar travesti na adolescência
Tiago Duque
A construção da homossexualidade no curso da vida a
partir da lembrança de gays velhos
Murilo Peixoto da Mota
Beyond an anti-homofobic kit: public policies on
education for the LGBT population in Brazil
The Geisy Arruda case: Brazilian media representations
of violence against women
To think about the transsexual experience in education:
some scenes
From the deceased to the "Europeans": experiences of
being, not continuing, and temporarily becoming a
transvestite in adolescence
The construction of homosexuality during life
time before recollections of old gay men
223
253
281
309
351
331
Sexualidade e política:
uma abordagem a partir do mercado e do consumo
Isadora Lins França
A homossexualidade no Brasil no século XIX
Adailson Moreira
De vigilias y sueños:
los dibujos eróticos de Helga Montalván
Francisco Zaragoza Zaldívar
Uma cultura dos contatos: sexualidades
e erotismo em duas obras de Gilberto Freyre
Thiago Barcelos Soliva
Rompendo com a binaridade masculino e
feminino nas canções buarqueanas:
um estudo de Folhetim e Tango de Nancy
Roberto Gabriel Guilherme de Lima
RESENHA
CONFIANÇA E MEDO NA CIDADEZYGMUNT BAUMAN
Por Daniel Gonçalves de Menezes
NORMAS
Sexuality and politics:
an approach related to market and consumption
Homosexuality in the Nineteenth Century
Vigils and dreams:
the erotic drawings of Helga Montalván
A culture of contacts: sexualities and
eroticism in two works of Gilberto Freyre
Breaking with the binarism masculine/feminine in the Chico Buarque's songs:
a study of the “Folhetim” and “Tango de Nancy”
357
349
QUANTOS ARTISTAS PERDEREMOS MAIS?
Este ano, a mídia noticiou caso de menino de 12 anos que se
matou, em Vitória, vítima de bullying homofóbico na escola. Descrito
como criança “alegre e sonhadora”, Roliver de Jesus teria sido
continuamente vítima de agressões nas quais era chamado de “bicha”,
“gay” etc. Véspera de carnaval, escreveu carta anunciando seu
suicídio e enforca-se. Uma colega de Roliver declarou: “ele dizia que
queria ser um grande artista”.
Fatos assim não são raros no Brasil e em outros países. Para
muitas crianças e jovens, a escola tem sido o lugar para o aprendizado
do olhar do preconceito, do estigma e da injúria, seja para praticá-los
contra outros, seja para suportar a violência de que se é vítima. Esse
aprendizado muitas vezes ocorre simultaneamente com a
aprendizagem da própria língua. Aprende-se muito cedo que se pode
maltratar alguém com palavras e outros aprendem a carregar por
muito tempo (ou para sempre) as sequelas de insultos que funcionam
como espécie de interdito à existência. Designados logo cedo por
palavras como “bicha”, “veado”, “mulherzinha”, “sapatão”, meninos e
meninas, confusos com os sentidos desses termos, vão tendo seus
destinos sociais traçados, quando ainda eles pouco ou nada sabem de
si. Destinos que podem variar muito: sorte quando são belos! Outros
destinos atam alguns sobreviventes ao signo de sua vulnerabilidade
psicológica e social produzida pelo estigma.
A pergunta que cabe fazer é: por que razão o governo federal
brasileiro deixou de implantar o programa Escola sem Homofobia,
sendo o bullying homofóbico na escola tão corriqueiro e de efeitos tão
perversos? Pergunta especial caberia à Presidente da República,
Dilma Rousseff, que vetou o kit educativo contra a homofobia proposto
pelo MEC: quantas crianças como Roliver de Jesus, com sonhos de
serem artistas, poetas, escritores, filósofos, cientistas, médicos,
arquitetos, juízes etc., perderemos mais, por suicídio ou assassinato,
sem que nossos governantes promovam políticas educativas de
combate à homofobia? O que mais governantes e gestores públicos
esperam para se decidirem por corajosas políticas de enfrentamento às
crueldades praticadas contras gays, lésbicas e transexuais na
sociedade brasileira?
9
editorial
10
Como produto de uma educação social generalizada nas
famílias e reforçada nas escolas e pelas mídias, a homofobia somente
pode ser combatida por meio de uma contraeducação à educação
homofóbica. Contraeducação crítica à ideologia da heterossexualidade
como única via normal da sexualidade, estigmatizante da
homossexualidade como anormalidade, disfunção sexual, desvio
moral. Essa contraeducação não pretende ser “propaganda da
homossexualidade” (como equivocadamente a Presidente da
República falou à nação), mas crítica ao preconceito homofóbico e
relativização de instituições históricas como a cultura da
heterossexualidade, que, negando-se como invenção histórica, impõe-
se como um fato natural. Aliás, se o assunto for propaganda, que dizer
da heterossexualização da esfera pública por meio de outdoors,
novelas, publicidades, canções, como uma espécie de reiteração
social obsessiva da heterossexualidade como norma?
Para aqueles que vivem o massacre do preconceito e da
discriminação, decisões são esperadas dos governantes, em todos os
níveis, que sejam portadoras da esperança que teremos uma
sociedade sem homofobia amanhã. De governos que se apresentam
como comprometidos com transformações, não se pode aceitar que
permitam a chantagem política, de natureza religiosa ou outra, em
nome da governabilidade, admitindo que atrocidades continuem a
acontecer contra aqueles que o preconceito pretende isolar como uma
maldita espécie sexual à parte. O Brasil não necessita apenas de
desenvolvimento econômico, mas também de desenvolvimento
cultural, intelectual, moral. Não o terá se continuar conservador e
homofóbico.
_______________________________
Na organização deste número, por colaboração dos autores
que nos enviaram seus artigos e pelo trabalho de nossos consultores,
conseguimos conjugar reflexões teóricas e metodológicas sobre as
questões da homossexualidade, travestilidade e gênero nas suas
diversas interfaces com outras questões sociais. Reunindo na mesma
edição textos clássicos e textos que tratam de questões da atualidade
brasileira e mundial, oferecemos às leitoras e aos leitores reflexões
críticas sobre temas que constituem o foco da revista.
Menção especial cabe fazer às traduções de Evans-Pritchard e
Paul Goodman: a primeira, realizada por Felipe Bruno Martins
11
Fernandes e Dennis Wayne Werner, oferece a leitura em português de
texto do antropólogo britânico que está entre os principais expoentes
da fundação e desenvolvimento da antropologia; seu texto sobre a
homossexualidade entre os Azande, como esclarecem os tradutores,
“é citado como fundador de um subcampo da etnologia comprometido
com os estudos de sociedades não homofóbicas”. A tradução
publicada nesta edição tem a permissão da American Anthropological
Association. O segundo, a tradução de Paul Goodman, é colaboração
entusiasmada do tradutor Chico Guedes, que fez chegar a Bagoas texto
do escritor estadunidense, um ensaio de 1969, pioneiro no uso
político do termo queer antes que se convertesse, em resposta à
homofobia, numa categoria acadêmica e do ativismo.
A partir desta edição, a Bagoas estará disponível também no
Portal de Periódicos da UFRN http://www.periodicos.ufrn.br/ojs, em
continuidade ao princípio de ampliação do acesso ao conhecimento
produzido nas universidades. Continuamos com o site
http://www.cchla.ufrn.br/bagoas e com a versão impressa da revista,
disponível à venda em livrarias e pelo nosso site.
Que nossa alegria com a edição de mais um número da
Bagoas seja também a alegria de nossas leitoras e leitores!
Alípio de Sousa Filho
Editor
12
Artigos
1
2E. E. Evans-PritchardAntropólogo, Universidade de Oxford
Tradução: Felipe Bruno Martins FernandesBolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior e do Comitê Francês de Avaliação da Cooperação Universitária e Científica com o Brasil (CAPES/COFECUB)
EHESS/Toulouse)complex.lipe@gmail.com
Revisão: Dennis Wayne WernerProfessor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
Doutor em Antropologia pela City University de Nova York (CUNY)dennisww@redel.com.br
École des Hautes Études en Sciences Sociales (
1Inversão sexual entre os Azande
Sexual inversion among the Azande
16
Resumo
A relação homossexual masculina e feminina parece ter sido comum entre os Azande em
tempos passados. Entre homens, essa relação era aprovada nas companhias militares
de homens solteiros. Entre mulheres, a relação era descrita como frequente nas práticas
em casas poligâmicas, apesar de altamente desaprovada.
Palavras-chave: Sudão – região sul. Azande. Inversão sexual.
Abstract
Male and female homosexual relationship seems to have been common among the
Azande in past times. Between males it was approved of in the bachelor military
companies. Between females it is said to have been a frequent, though highly
disapproved of, practice in polygamous homes.
Keywords: Sudan – southern. Azande. Sexual inversion.
1 Publicação original: EVANS-PRITCHARD, E. E. Sexual Inversion among the Azande. American Anthropologist, New Series, v. 72, n. 6, p. 1428-1434, dec. 1970. Texto reproduzido com a permissão da American Anthropological Association (AAA).2 Sir Edward Evan (E. E.) Evans-Pritchard nasceu na cidade de Crowborough/Inglaterra, em 21 de setembro de 1902, e morreu no mesmo país em 11 de setembro de 1973, na cidade de Oxford, poucos anos após ter recebido a honraria de cavaleiro, em 1971 (para conhecer este ritual britânico, veja LEACH, Edmund. Once a knight is quite enouch: como nasce um cavaleiro britânico. Mana, Rio de Janeiro, v. 6, n. 1, apr. 2000). Foi professor de Antropologia Social na Universidade de Oxford. Dessa geração de antropólogos, foi um dos primeiros a dar centralidade ao papel da experiência do pesquisador na pesquisa de campo antropológica, sendo reconhecido até os dias de hoje pelo racionalismo com o qual analisava sua entrada em campo. Um dos principais representantes da escola antropológica estrutural-funcionalista britânica, esse autor começou seu trabalho de campo dentre o povo Zande em 1926, defendendo sua tese de doutorado em 1927. Esse trabalho resultou no clássico Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande (publicado em 1937). O texto que se segue é uma nota do autor sobre o trabalho com esse povo africano. Entretanto, essa nota foi publicada quase quarenta anos após sua escrita (1970) e em outro país, os Estados Unidos, no ano da primeira marcha gay em Nova York (celebrando a Rebelião de Stonewall, ocorrida em 1969), e quando o tema das homossexualidades tinha finalmente sido liberado nas discussões acadêmicas naquele país. A tradução desse artigo surge da análise realizada por Walter L. Williams no verbete “Antropologia”, do Dictionnaire de l'Homophobie (TIN, Louis George. Presses Universitaires de France, 2003). No referido verbete, Evans-Pritchard é citado como fundador de um subcampo da etnologia comprometido com os estudos de sociedades não homofóbicas. O texto que se segue é visto por Walter L. Williams como uma grande contribuição para esse empreendimento. Evans-Pritchard é também autor de inúmeras outras obras, dentre elas a clássica monografia intitulada “The Nuer: A Description of the Modes of Livelihood and Political Institutions of a Nilotic People”, publicada originalmente pela Clarendon Press/Oxford em 1940 e traduzida para o português.
É inquestionável que a homossexualidade masculina, ou melhor, a
relação sexual entre jovens guerreiros e rapazes, era comum em tempos pré-
europeus entre os Azande e, como assinalou Czekanowski (1924, p. 56),
citando Junker (1892, p. 3-4), não há quaisquer razões para supor que a 3homossexualidade foi introduzida pelos Árabes , como alguns já pensaram.
Todos os Azande que conheci bem o bastante para discutir esses assuntos
afirmaram que a homossexualidade feminina (lesbianismo) também era
praticada em casas poligâmicas em tempos passados e ainda o é no presente
(1930). Este ensaio reúne informações sobre ambas as práticas e apresenta
traduções de alguns textos sobre o assunto, coletados entre os Azande do 4Sudão há quarenta anos .
Antes da imposição da regra do governo europeu, havia muitas
disputas entre os diferentes reinos (EVANS-PRITCHARD, 1957b, 1957c).
Parte da população masculina adulta de cada reino era organizada em
companhias militares de abakumba, “homens casados”, e aparanga, “homens
solteiros”. Essas mesmas companhias, para além das funções militares,
serviam na corte de várias formas, inclusive os homens das companhias eram
chamados para trabalhar nas lavouras dos reis e dos príncipes (EVANS-
PRITCHARD, 1957a). No presente relato, não nos referiremos outra vez às
companhias de homens casados. Fazia parte do costume das companhias de
homens solteiros, alguns dos quais viviam em tempo integral nas cabanas do
reino, tomarem rapazes-esposas. Isso era, sem dúvida, produzido pela
escassez de mulheres disponíveis para o casamento nos tempos em que os
mais ricos mantinham grandes haréns, o que só era possível para eles porque
eram necessários muitos recursos para se obter uma esposa e esses homens
tinham mais facilidade do que homens pobres para consegui-los. A maioria dos
homens jovens, consequentemente, casava-se tarde, quando tinha em torno de
trinta anos – e isso se devia ao fato de as meninas ficarem noivas (em um
sentido legal, já casadas) bastante novas, muitas vezes, desde o nascimento.
Dessa forma, a única maneira pela qual os jovens podiam obter satisfação com
uma mulher era por meio do adultério. Entretanto, o adultério era uma solução
muito perigosa para resolver o problema do jovem, em função da multa muito
17E. E. Evans-Pritchardn. 07 | 2012 | p. 15-30
3 N.T.: Evans-Pritchard refere-se às problemáticas dadas pelo nascente movimento homossexual na Europa, particularmente no final do século XIX e início do século XX, em um sentido muito semelhante àquele proposto por Borrillo (2010) com relação às ideias difundidas por inúmeras ideologias (nazismo, comunismo etc.), sempre se referindo à homossexualidade como uma prática do “outro”, remetendo assim a uma possível causa externa dessas práticas. Fonte: BORRILLO, Daniel. Homofobia: história e crítica de um preconceito. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.4 N.T.: Levando-se em conta que a publicação original desse texto aconteceu no ano de 1970.
alta que seu pai teria que pagar caso fosse descoberto – vinte lanças e uma
mulher, o que significava, concretamente, o pagamento de duas mulheres ao
marido. Algumas vezes, o marido ficava tão enfurecido que recusava a
compensação e escolhia, em vez desta, a mutilação do ofensor, cortando suas
orelhas, lábio superior, genitália e mãos. Assim, com o risco sendo tão alto, era
comum aos solteiros cautelosos das companhias militares que viviam na corte,
caso não se satisfizessem com a masturbação – prática que não era
considerada vergonhosa, embora nenhum jovem a fizesse em público –,
casarem-se com rapazes para, dessa forma, “satisfazerem” com eles suas
necessidades sexuais. Um jovem de boa posição em sua companhia talvez
pudesse ter mais de um rapaz (kumba gude). Para esses rapazes, seus
companheiros guerreiros eram badiya ngbanga, “amantes da corte”.
Acredito que o desaparecimento total dessa instituição em tempos
pós-europeus mostra que o reconhecimento dessa união temporária entre um
jovem e um rapaz era decorrente das dificuldades no passado de estes se
satisfazerem com relações heterossexuais. É verdade que as companhias
militares também desapareceram, mas os Azande atribuem (corretamente, ao
que acredito) o abandono do costume ao fato de o casamento para jovens ter se
tornado mais acessível e ao desarranjo geral da moral, incluindo a supressão
das punições habituais nos casos de adultério e fornicação. O casamento entre
rapazes era devido, como dizem os Azande, à zanga ade, “carência de
mulheres”. Como pontuou um homem: “qual homem preferiria um rapaz ao
invés de uma mulher? Ele seria um tolo. O amor por rapazes surgiu pela
carência de mulheres”. Dessa forma, os Azande falavam do casamento entre
rapazes como um kuru pai, “costume antigo”, ainda que eu não tenha escutado
nenhum homem falar sobre dormir com um rapaz com desagrado – na pior das
hipóteses, consideravam o costume como algo engraçado. Mesmo na minha
época, os Azande falavam de um homem que antes foi o rapaz-esposa de
algum guerreiro da mesma forma como nós, na Inglaterra, falamos de alguém 5que tinha sido o fag de alguma celebridade. Também é necessário esclarecer
que, como na Grécia antiga, até onde podemos julgar, quando os rapazes-
esposas cresciam e quando eles e seus maridos posteriormente se casavam
com mulheres, passavam a ter uma vida normal de casados, como qualquer 6outro casal. Não havia os urnings que existem no sentido europeu moderno.
18
5 N.T.: Termo específico da época de publicação do artigo usado para referenciar uma espécie de “escravo” de um colega mais velho nas escolas particulares inglesas.6 N.T.: Termo específico da época de publicação do artigo usado por Kraft-Ebing para homossexuais passivos convictos.
O costume do casamento entre rapazes desapareceu antes de minha
primeira visita ao território Zande, o que impossibilitou a observação direta.
Dependo, dessa forma, apenas dos relatos sobre o passado, os quais eram
unânimes entre os homens mais velhos. Tenho usado propositadamente os
termos “esposa”, “marido” e “casamento” porque, como os textos a seguir
deixarão claro, se tratavam de uniões legais nos modelos de um casamento
normal (pelo menos enquanto durassem). O guerreiro pagava o preço da noiva
(por volta de cinco lanças ou mais) para os pais do rapaz e realizava serviços
para eles da mesma forma que faria se tivesse casado com uma das suas filhas.
Caso ele provasse que era um bom marido, os pais então substituiriam o filho
por uma filha. Também, se outro homem tivesse relações com o rapaz, ele
poderia, como me contaram, processá-lo no tribunal por adultério.
Os rapazes eram “mulheres”: “Ade nga ami”, eles diriam, “nós somos
mulheres”. Um rapaz era chamado por seu amante como diare, “minha
esposa”, e o rapaz o chamaria de kumbami, “meu marido”. O rapaz comeria
fora da vista dos guerreiros da mesma forma que as mulheres não comem na
presença de seus maridos. Os rapazes realizavam muitos dos serviços menores
que uma mulher cumpria diariamente para seu marido, tais como a coleta de
folhas para sua limpeza sanitária, a coleta de folhas para sua cama, a coleta de
água, o corte de lenha, a ajuda no roçado das lavouras do pai de seu esposo e o
fornecimento de mensagens e mantimentos cozidos de sua casa para a corte
para complementar aqueles dados pelo príncipe, mas não cozinharia mingau
para ele. No que diz respeito a esses serviços, o que devemos manter em mente
é que um rapaz na corte não tinha a mãe ou as irmãs para cuidarem dele.
Também o rapaz-esposa carregaria o escudo de seu marido quando a
companhia estivesse em viagem. Deve ser entendido que ele realizava esses
serviços a fim de que a relação não fosse pensada como inteiramente de
natureza sexual, uma vez que deveria ser entendida como tendo um lado
educacional. No que diz respeito ao lado sexual, à noite, o rapaz dormiria com
seu amante, que manteria com ele, por entre as coxas, relações sexuais (os
Azande demonstravam aversão à possibilidade de penetração anal). Os
rapazes conseguiam o máximo de prazer que podiam ao friccionar seus órgãos
na barriga ou na virilha do marido. De qualquer maneira, embora existisse esse
lado da relação, era claro nos relatos dos Zande que também havia o conforto
em compartilhar uma noite na cama em companhia.
A palavra “rapaz” (kumba gude) aparentemente deve ser traduzida
livremente, pois, a partir do que escutei, os mancebos deveriam ter entre doze e
vinte anos. Quando deixassem de ser rapazes, eles adeririam às companhias de
19E. E. Evans-Pritchardn. 07 | 2012 | p. 15-30
guerreiros de seus ex maridos e tomariam por sua vez rapazes como esposas;
dessa forma, o período de casamento era também um período de aprendizado.
Não posso apresentar números de casamentos com rapazes, entretanto, posso
afirmar que a prática era aceita e comum. Obtive listas com séries de tais
casamentos de vários homens mais velhos, mas seria de pouco proveito tentar
documentar tais séries com nomes, uma vez que já se passou muito tempo (65
anos após a morte do rei Gbudwe).
Antes de apresentar os textos, há que se declarar ainda que alguns
membros da nobreza reinante se envolviam em relações sexuais homossexuais.
Normalmente, eram os filhos jovens de príncipes que permaneciam na corte
até seus pais entenderem que era a hora de dar-lhes uma esposa e distritos para
sua administração. Eles se mantinham distantes do harém de seus pais e
tomavam rapazes plebeus como serviçais e para seu prazer sexual. Parece que
o príncipe, por maior número de esposas que pudesse ter, também dormia
eventualmente com um rapaz, em vez de ficar sozinho na noite anterior de uma
consulta ao oráculo, uma vez que a relação sexual com uma mulher era um 7tabu nessas ocasiões . Era dito que “kumba gude na gberesa nga benge te”:
“um rapaz não arruína o oráculo de veneno”. Fora isso, soube apenas de um
príncipe sênior – deposto pela administração – que, apesar de ter muitas
esposas, ainda dormia habitualmente com rapazes. Por essa e outras razões,
ele era considerado pelos Azande como levemente louco. Ninguém deve tirar
conclusões precipitadas, como Czekanowski fez sobre os registros de Junker a
propósito dos rapazes que acompanhavam o príncipe Zande onde quer que ele
fosse, pois todos os reis e príncipes são acompanhados por pajens, que eram
tratados por seus mestres com notável indulgência, em contraste com o
distanciamento severo com o qual seus superiores eram usualmente tratados.
Texto coletado com Kuagbiaru (EVANS-PRITCHARD, 1963a, p. 277-
280), um homem muito conhecedor da vida da corte nos tempos passados,
que foi um rapaz-esposa e, como chefe de uma companhia de guerreiros na
corte de Príncipe Gangura, muitas vezes foi marido de rapazes:
Antigamente os homens costumavam ter relações sexuais
com rapazes da mesma forma que eles tinham com
esposas. Um homem pagaria uma multa para outro caso
20
7 N.T.: Em sua monografia clássica sobre o povo Zande, Evans-Pritchard (1978) se refere a algumas interdições rituais para a consulta do oráculo de veneno, entre elas, a impossibilidade de o homem adentrar a consulta após ter mantido relações sexuais com mulheres (p. 179), porém, não faz referência à existência de práticas sexuais entre homens. Já no que tange às relações sexuais entre mulheres, o autor realiza algumas discussões e salienta que essas práticas são comuns nos haréns dos príncipes. Fonte: EVANS-PRITCHARD, E. E. Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
ele tivesse tido relação sexual com seu rapaz. As pessoas
pediam a mão de um rapaz com uma lança, da mesma 8forma que pediam a mão de uma menina a seus pais .
Todos os jovens guerreiros que estavam na corte, todos
tinham seus rapazes. As cabanas dos homens jovens que
ficavam ao redor da corte, todos os rapazes-amantes
ficavam nestas cabanas. Eles construíam suas cabanas
grandes e compridas e havia vários jovens em cada cabana,
cada um em seu próprio lugar, juntamente com seu capitão.
Seus rapazes-amantes também dormiam nas cabanas.
Quando chegava a noite, eles acendiam o fogo em frente à
cama dos maridos, cada um acendia um fogo em frente à
cama do seu amante. Quando os jovens guerreiros
começavam a ficar com muita fome na corte eles
mandavam seus rapazes-amantes para a casa de seus pais
[do rapaz] para buscar comida para eles. Os rapazes-
amantes iriam à casa dos pais e retornariam com
montantes agradáveis de mingau e galinha cozida, além de
cerveja. Os parentes do rapaz o escoltariam [quando ele era
casado] da mesma forma que eles escoltavam uma noiva
[no seu casamento] para seu marido com muita comida
boa. Entretanto, os rapazes não cozinhavam eles mesmos o
mingau para seus maridos, eles cozinhavam mandioca e
batata-doce para seus amantes. Eram as mães [dos
rapazes] que cozinhavam mingau em suas casas, e ótimas
carnes. Alguns cozinhavam galinhas. Eles juntavam toda
essa quantidade de comida e levavam para onde estavam
seus maridos. Todos esses jovens e seus amantes; não
havia esquecimento dos rapazes de sua tarefa de prover
comida para seus maridos. Mas o mingau que eles serviam
a eles, eles escondiam parte da carne no meio do mingau
para dar aos seus maridos, porque eles eram como 9esposas . Seus amantes não aprovavam que eles rissem
alto como homens, eles desejavam que eles falassem
suavemente, como falavam as mulheres.
Quando todos os jovens guerreiros iam roçar as lavouras do
príncipe cada um levava seu amor. Quando chegassem ao
cultivo, eles construiriam uma grande cabana para seu
8 Um homem daria uma lança no momento de pedir a mão da menina em casamento como a primeira prestação do dote. No caso dos rapazes, a admissão da lança igualmente constituía um casamento legal.9 No preparo de uma refeição para convidados, uma esposa Zande frequentemente guardava parte nos fundos para que seu marido pudesse, secretamente, ter uma segunda refeição quando os convidados fossem embora.
21E. E. Evans-Pritchardn. 07 | 2012 | p. 15-30
capitão e colocariam uma cerca ao redor. Nesse campo,
cheio de rapazes, sendo de outra maneira o capitão ficaria
sozinho. Então os jovens começariam a construir pequenos
abrigos adjacentes à cabana do capitão, o acampamento ia
longe, atravessando riachos. Mas todos os rapazes ficavam
no cercamento que eles haviam erguido para o capitão.
Quando anoitecia, os rapazes se dispersavam, cada um
para a cabana do seu amante e acendiam ali um fogo para
ele. Cada um ia acender o fogo na cabana de seu amante.
Na manhã seguinte eles se encontrariam no cercamento do
capitão. Nenhum jovem poderia entrar ali sem permissão.
O capitão dava a eles a refeição atrás do cercamento.
Apenas se o capitão estivesse bem disposto acerca de
algum jovem guerreiro que ele o convidaria para entrar no
cercamento e compartilhar a refeição com ele. Todos os
outros nunca entrariam no cercamento; eles veriam seus
amores à noite. Os jovens roçariam a lavoura até o
anoitecer e então eles retornariam para o local de dormir.
Os amores já teriam preparado a cama dos maridos e
acendido o fogo para eles na cabana.
Texto coletado com Ganga (EVANS-PRITCHARD, 1962, p. 16-17),
um dos capitães das companhias de guerreiros do rei Gbudwe:
Isso é sobre como homens se casavam com rapazes
quando o rei Gbudwe era senhor de seus domínios.
Naqueles dias, se um homem tivesse relações com a
esposa de outro homem, o marido mataria ele ou cortaria
suas mãos e genitais. Então por essa razão um homem
costumava casar com um rapaz para ter orgasmo entre
suas coxas, o que acalmaria seu desejo por mulheres. Se
um rapaz era uma boa esposa para seu marido, cinco
lanças seriam pagas por ele, e por outro, até dez lanças.
Um marido que fosse generoso com seus sogros, eles lhe
dariam depois uma mulher; dizendo que se ele era bom
para um rapaz, seria melhor ainda para uma mulher. Se ele
se casasse com uma mulher seus sogros se beneficiariam
muito. Este seu menino, ele não toleraria ver outro homem
perto; eles brigariam, e se levassem o caso diante do [rei]
Gbudwe, Gbudwe disse ao homem que foi atrás do rapaz
do outro que ele deveria pagar ao homem lanças [em
compensação], uma vez que ele tinha ido atrás do rapaz do
outro. Também existiam homens que, apesar de terem
[mulheres] esposas, ainda assim se casavam com rapazes.
22
Quando a guerra eclodiu, eles levaram seus rapazes com 10eles , mas eles não levavam seus rapazes para o lugar da
batalha; os rapazes ficavam atrás no campo, porque eles
eram mulheres; e eles coletavam lenha para o marido e
depenavam as folhas nzawa [para limpeza sanitária] e
cozinhavam as refeições para quando seus maridos
retornavam da batalha. Eles faziam para os maridos tudo o
que uma esposa faz para seu marido. Eles buscavam água
e a apresentavam para o marido de joelhos e eles pegavam
a comida e levavam para eles, e o marido então lavaria as
mãos e comeria a refeição e contaria para seu rapaz-esposa
o que acontecera no campo de batalha.
Até agora alguma coisa já foi dita sobre a homossexualidade masculina.
E sobre o lesbianismo? Este também deve ser considerado como um produto,
assim como a homossexualidade masculina, da poligamia em larga escala. Se a
poligamia em larga escala excluía jovens homens do sexo normal, aquela
condição de casas poligâmicas também impedia que as esposas, ou algumas
delas, recebessem a quantidade de atenção sexual que elas desejavam de seu
marido comum, que poderia muito bem ser um homem velho sem o vigor sexual
da sua juventude. Apesar de os homens terem hábitos ligeiramente diferentes,
pode-se dizer comumente que uma mulher que é uma de três esposas não
dormiria com seu marido mais do que dez noites por mês, uma de seis esposas
não dormiria com seu marido mais do que cinco noites por mês e assim por
diante. Uma de muitas esposas de um príncipe ou de um plebeu importante no
passado talvez não compartilhe a cama do marido com ele há mais de um mês
ou dois. No caso de uma das dúzias, às vezes centenas, de esposas de um rei,
ela poderia ficar totalmente privada de uma vida sexual normal para uma mulher
de um lar comum. Relações sexuais adúlteras eram muito difíceis para as
esposas de tais famílias poligâmicas tão extensas, pois estas eram mantidas em
reclusão e cuidadosamente vigiadas; a morte na descoberta, ou até mesmo na
suspeita, seria a pena para ambos, a esposa e seu amante.
Era nessas famílias poligâmicas, como dizem os Azande, que o
lesbianismo era praticado. Obviamente, não tive a possibilidade de saber disso
através da observação, dessa forma somente posso dizer o que me foi contado
(exclusivamente por homens, embora as mulheres admitissem que algumas
praticavam o lesbianismo). As esposas esculpiriam uma batata-doce ou raiz de
mandioca no formato de um órgão masculino, ou usariam uma banana para o
10 Relações sexuais com mulheres eram um tabu para os guerreiros em momentos de batalha.
23E. E. Evans-Pritchardn. 07 | 2012 | p. 15-30
propósito. Duas delas iriam então se trancar em uma cabana e uma delas se
deitaria na cama e assumiria o papel feminino, ao mesmo tempo em que a
outra, com o órgão artificial amarrado ao redor de sua abdômen, assumiria o
papel masculino; então, elas inverteriam os papéis.
As mulheres eram certamente desprivilegiadas na antiga sociedade
Zande e uma indicação adicional da dominação masculina é que o que era
encorajado aos homens era condenado entre as mulheres. Homens Zande,
especialmente os príncipes, têm horror ao lesbianismo e o considera como
altamente perigoso, sendo mais ou menos equivalente ao adandara, um tipo de 11parto em que as mulheres dão à luz gatos , como se acredita (EVANS-
PRITCHARD, 1937, p. 51-56). Seria fatal se um homem visse uma dessas
mulheres amamentando seus gatos. Escutei falar que alguns dos mais notáveis
reis do passado – Bazingbi, Gbduwe, Wando e outros – morreram por causa das
práticas lésbicas entre suas esposas. É inclusive alegado que na casa de
Gbduwe uma de suas esposas mais antigas, Nanduru, uma velha senhora
grisalha nos meus dias, executou muitas de suas coesposas devido a essa
ofensa. Alguns Azande me disseram que o lesbianismo era muito praticado
pelas filhas e irmãs da nobreza reinante, em cujas casas elas viviam relações
incestuosas. O nobre reinante pode dar uma menina escrava a uma de suas
filhas, que a ungiria e pintaria para que a escrava se tornasse atrativa e então se
deitaria com ela. Além disso, os Azande falam que uma vez uma mulher
comece a ter relações sexuais homossexuais ela provavelmente continua a
mantê-las, porque ela então passa a ser senhora de si e pode buscar
gratificação quando quer, e não apenas quando um homem resolve lhe
gratificar, podendo a gratificação durar o tempo que ela desejar.
Pareceria, se as afirmações Zande estão corretas, que a relação lésbica
é produzida em primeira instância por um ritual simples. Quando duas
mulheres são muito amigas, elas podem solicitar a formalização da amizade
24
11 N.T.: No apêndice III, intitulado “Outros agentes nefastos associados à bruxaria” (p. 293-298), Evans-Pritchard (1978) descreve outros agentes que podem ser considerados bruxos ou detentores das ações de bruxaria, entre eles alguns animais. Andandara, uma espécie de gato selvagem, é a mais temível das criaturas malignas classificadas como bruxas. Até mesmo sua possível aparição é temida pelos Azande, já que apenas olhar para esse gato pode causar a morte. Dessa forma, o gato macho tem relações sexuais com humanas que, a partir disso, ficam grávidas de outros gatos. Após a relação sexual com o gato, a mulher mantém relações com seu marido e fica grávida de crianças e gatos. No dia anterior ao parto, ela vai ao mato, com uma especialista, dá à luz o gato (que fica guardado em sua casa) e, no dia seguinte, a criança, sendo que ninguém fica sabendo do primeiro parto. Os Azande, segundo o autor, se referem ao lesbianismo como andandara, pois ambas são ações femininas que podem causar a morte de qualquer homem que testemunhe. Assim, o lesbianismo é considerado agourento pelo povo Zande e suas consequências são nefastas, não o ato. Evans-Prithcard (1978) relaciona esse mal provocado por andandara (lesbianismo e gato) com os malefícios das funções sexuais femininas. Fonte: EVANS-PRITCHARD, E. E. Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
através de uma cerimônia intitulada bagbaru, tendo conseguido a permissão de
seus maridos para fazê-la. Um marido sente dificuldade de negar o
consentimento, uma vez que essa formalização, normalmente, não significa o
envolvimento de um elemento sexual. Uma das mulheres faz um pequeno
presente para a outra, a outra então faz um presente de retorno. Elas então
dividem um sabugo de milho e cada uma planta as sementes da sua parte do 12sabugo em seu jardim . Algum tempo depois, as mulheres executam várias
tarefas mútuas e vão, de tempos em tempos, trocar alguns presentes.
Entretanto, mesmo que um esposo consinta com a amizade, ele o faz
geralmente com relutância, porque os homens Zande pensam que essa ligação
de amizade entre mulheres pode claramente se configurar como um disfarce
para intimidades homossexuais.
Texto coletado com Kuagbiaru (EVANS-PRITCHARD, 1963b, p. 13-14):
Entre os Azande muitas mulheres fazem o mesmo que
homens. Muitas delas têm relações sexuais entre elas da
mesma forma que um esposo faria. O lesbianismo começou
com um milho cujo nome é kaima, um milho cuja espiga é
vermelha como o sangue. Elas pegam essa espiga e
proferem um feitiço sobre ela, da mesma forma que os
homens proferem um feitiço sobre o sangue ao fazerem a 13irmandade de sangue , e quando isso é feito uma delas
[dentre as duas mulheres] tem que segurar no topo da
espiga e a outra segura na base da espiga que é sua parte e
elas então quebram a espiga entre elas. Depois disso, elas
não devem chamar uma a outra pelo seus nomes próprios,
mas sim chamar uma a outra de bagburu. Aquela que é a
esposa deve cozinhar o mingau e um frango e levá-los para
aquela que é o esposo. Elas fazem isso entre elas várias
vezes. Elas têm relações sexuais entre elas com batatas-
doces esculpidas no formato de um pênis circuncidado e
também o fazem com mandiocas esculpidas e também
com bananas. No topo é como se fosse um órgão
masculino. O esposo não gosta que sua mulher fique de
conversa com outras mulheres. Ela bate em sua esposa da
mesma forma que um esposo bate em uma esposa no caso
12 O ritual corresponde à troca de sangue entre homens. Sugiro que o ritual feminino é uma cópia do uso do sabugo de milho vermelho-sangue (EVANS-PRITCHARD, 1933).13 N.T.: Segundo Evans-Pritchard (1978), irmãos de sangue são indivíduos não aparentados que estabelecem uma aliança especial por um pacto em que o sangue é o símbolo. Opõe-se em inúmeros aspectos à relação entre irmãos consanguíneos. Fonte: EVANS-PRITCHARD, E. E. Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
25E. E. Evans-Pritchardn. 07 | 2012 | p. 15-30
de mau comportamento, como no caso de sair com um
homem. Entretanto, quando Gdbuwe era vivo, ele era
muito contrário a qualquer coisa que tivesse a ver com
lesbianismo.
Texto coletado com Kisanga (EVANS-PRITCHARD), um homem com
amplo conhecimento dos costumes Zande:
As mulheres se encontram e uma diz para a outra, “Oh,
minha amiga, você, por que não gosta de mim, amor!”. A
outra responde, “Oh, Senhora, minha amante, por que eu
deveria te querer mal?”. A primeira fala, “Senhora, venha
depois de amanhã que eu tenho uma pequena coisa pra lhe
dizer”. Ela replica, “oh, Senhora, o que é isto que você não
me fala agora? A menos que você me diga agora não
poderei sobreviver a noite esperando para saber!”. Então
uma fala para a outra, “Senhora, estou profundamente
apaixonada por você. Oh senhora, como deveremos
gerenciar esse horrível esposo?”
“Hm! Oh, Senhora, será que eles mantêm essa guarda toda
sobre uma mulher!”.
“Ahe, Senhora, vamos bolar uma artimanha. Você vem
depois do meu esposo e nós faremos um pacto de amizade
amorosa (bagburu) entre nós e ele pensará que é só uma
amizade entre mulheres, e assim Senhora você poderá me
dar prazer”. Ela acrescenta, “Amanhã cedo você venha com
um pequeno presente para ele”.
Na manhã, bem cedinho, ela pega um presente, como uma
lança, e vem visitar o esposo em sua casa. Ela fala para o
esposo:
“Então, você escutará com atenção o que eu venho lhe
dizer?”.
“Senhora, diga o que a Senhora veio fazer em minha casa”.
“Eh, Senhor, é sobre minha amiga, mestre. Eu disse a mim
mesma, Senhor, que eu viria perguntar ao príncipe sobre
ela. Eu não sou um homem que poderia lhe enganar com
uma mulher”.
Ele então diz, “Eh, Senhora, pode ser que eu consinta”.
“Oh, Senhor, por sua cabeça! Oh, Senhor, por sua cabeça!
Permita que eu tenha a mulher, Senhor. Eu vou moer
farinha para ela, e se ela estiver doente eu vou apanhar
lenha para ela”.
26
14“Primeiro eu preciso consultar os oráculos, Senhora .
Penso que devo primeiro consultar os oráculos”.
“Eh, Senhor, está recusando a sua mulher? Será que ela é
um homem?”.
“Tudo bem, Senhora, você deixa a lança e vai para sua casa
que eu pensarei no assunto”.
Ela esfrega o solo diante dele [agradece a ele] dizendo, “Oh,
meu mestre, eu vou sozinha entre as pessoas, Senhor!”.
Então ela vai para casa. Ela dorme duas noites e então ela
mói farinha e ela retorna com farinha e mingau. Quando ela
aparece no caminho sua amante corre ao seu encontro:
“Oh, meu amor, Oh, minha amiga, Oh, Senhora você não
veio hoje?”. Ela coloca a farinha e o mingau ao lado no
terreiro. Ela pega um banquinho e coloca para ela se sentar.
O esposo fala amuado:
“Você veio, minha amiga?”.
“Sim, Senhor”.
“Senhora, me deixe em paz estou sentindo frio hoje”.
Elas pegam a comida dele e a trazem. Ele está embaraçado.
“Menina, derrame água sobre minhas mãos”. Sua esposa
pega água e derrama sobre suas mãos. Ele diz, “Senhora,
isso é bom, senhora, isso é bom”. Ele tira um monte de
mingau. Ele se emburra e continua emburrado, dizendo
para suas filhas, “agora então peguem e levem para as
crianças”.
“Ahe, Senhor! Uma pessoa traz sua comida e um homem
não está bem – essa comida não deve ser dada para
outrem, não deveria esta comida ser guardada para que ele
a coma em outro momento?”.
“Hm! Eh, mulher, como uma pessoa pode argumentar com
um pai dessa maneira!”. Elas o enganam. “Oh não, Senhor,
eu não estou discordando nada, Senhor”.
14 N.T.: Evans-Pritchard (1978) argumenta que a explicação dos infortúnios entre os Azande se dá em torno da noção de bruxaria, que se transforma em uma causa indireta para relatar determinadas dificuldades cotidianas. Dessa forma, a consulta a oráculos é uma ação rotineira na cultura Azande, sendo o oráculo de veneno um dos principais e mais certeiros, responsável pelas acusações de bruxaria. São os oráculos que fornecem elementos para a interpretação dos indivíduos quanto aos possíveis malfeitores (bruxos) de seus infortúnios. Evans-Pritchard (1978) coloca ainda que os oráculos são meios para impor comportamentos (p. 76), bem como que a função de bruxaria envolve juízos morais (p. 88). Fonte: EVANS-PRITCHARD, E. E. Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
27E. E. Evans-Pritchardn. 07 | 2012 | p. 15-30
28
“Senhora, eu não estou me sentindo bem hoje, hoje não é
um bom dia para mim. Devo retirar-me”.
“Ele! Espia só, que esposo desagradável esse meu,
Senhora, que personagem antipático!”.
A esposa coloca água diante de sua amante da mesma
forma que ela faria se fosse seu [homem] marido. Ela tem
seu pênis em sua bolsa – ela leva o pênis com ela onde quer
que ela vá. Elas esculpem uma batata-doce na forma de um
pênis circuncidado. A mulher-esposo faz um furo ao longo
da batata-doce e então amarra a batata-doce com corda em
seu lombo para que ela fique como um homem. Ela se lava
com água e unge a si mesma com óleo.
Enquanto isso o esposo está comendo sua refeição na
cabana de sua esposa mais velha. Ele diz a ela, “Oh,
Senhora, como você já está comigo há tanto tempo e você
nunca me fez sofrer. Minha esposa, isto que eu estou
vendo, você vê também?”.
“Não, Senhor, mas tenho uma ideia sobre isso. Não estou
certa das coisas, Senhor! Eh, Senhor, como você é um
homem, em um caso como este, porque você não escuta o
que ela tem a dizer para satisfazer a sua mente?”.
Ele tosse: “tudo bem, essa minha morte de que elas estão
falando, vou até o fim”.
As duas mulheres se levantam para se deitarem no chão,
porque na cama seus movimentos fazem muito barulho. A
esposa do homem diz: “Aquele meu esposo desagradável, é
capaz de ele tentar armar uma cilada para pegar as pessoas
na cabana!”.
“Se ele o fizer ele vai morrer se ele vir isso. Madame, não se
fatigue pensando sobre assuntos de mulher, você verá o
que acontece”.
“Deixe-nos fazer o que estamos prestes a fazer. Somente
pare de falar do meu esposo”. Ela faz com que ela fique
quieta ao apertar sua cabeça sobre ela enquanto ela obtém
o prazer de seu amor. O esposo chega e se inclina sobre o
alpendre e ele escuta os sons delas dentro da cabana, ele
escuta o movimento dentro da cabana, como dizem “Oh,
meu irmão, Oh, minha querida, Oh, meu esposo, Oh,
Senhora”. Ele entra na cabana e quando elas o veem elas se
levantam do chão. Ele agarra sua esposa e fala (para a
outra mulher):
“Oh, minha amiga, você me matou. Pensei que você tivesse
vindo em minha casa com boas intenções, mas pelo que
vejo é minha morte que você traz”.
Então ele chama sua esposa mais velha:
“Amante, venha ver o mal que me atingiu – esta mulher, eu
a peguei junto com sua companheira...”.
“Heyo! Meu esposo! Você me chama para ver uma relação
de mulheres – suas esposas podem ser muito maliciosas,
Senhor”.
“Eh, mulher, nós dividimos uma casa com você em
conversa-dupla (sanza). Então vocês estão todas
mobilizadas pelo desejo de minha morte!”.
“Opa! Sai fora e não fale comigo – é a minha culpa que você
tenha caminhado e entrado na cabana?”.
Talvez deva incluir na conclusão desta nota que não estou sugerindo de
forma alguma que a pederastia e o tribadismo são explicados pelas condições
sociais, como essas obtidas com os Azande. Evidentemente, não o são. O que é
certamente explicado, dada a plasticidade libidinosa, são as formas
institucionais prevalentes na sociedade Zande e as atitudes (masculinas)
direcionadas a elas.
29E. E. Evans-Pritchardn. 07 | 2012 | p. 15-30
30
Referências
BORRILLO, Daniel. Homofobia: história e crítica de um preconceito. Belo Horizonte:
Autêntica, 2010.
CZEKANOWSKI, Jan. Forschungen im Nil-Kongo Zwischengebiet. Leipzig: Klinkhardt &
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JUNKER, Wilhelm. Travels in Africa. London: Chapman and Hall, 1892.
2
1Ser queer
Being queer
Paul Goodman2 Sociólogo, poeta e escritor estadunidense
Tradução: Chico Moreira GuedesBacharel em Letras pela UFRJ, professor de inglês,
estudioso de idiomas e tradutorfdguedes@gmail.com
32
Resumo
Paul Goodman faz um balanço de como a homossexualidade afetou a sua vida pessoal e
profissional e as suas relações com o mundo acadêmico, intelectual e literário da sua
época. Reflete também sobre as implicações políticas, sociais e afetivas de uma
atividade homossexual intensa e promíscua, ou da sua repressão, nos Estados Unidos
da metade do século XX.
Palavras-chave: Queer. Nigger. Homossexualidade. Liberdade. Preconceito. Repressão.
Universidade. Literature. Pacifismo.
Abstract
Paul Goodman gives an account of how homosexuality affected his personal and
professional life and his relationship with the academic, intellectual and literary world of
his time. He also reflects on the political, social and emotional implications of an thintensive and promiscuous homosexual life in mid-20 Century USA.
Key-words: Queer. Nigger. Homosexuality. Freedom. Prejudice. Repression. University.
Literature. Pacifism.
1 Escrito e publicado pela primeira vez em 1969, três anos antes da morte do autor, por encomenda da revista WIN, órgão de imprensa da organização pacifista War Resisters League, para uma edição dedicada ao tema da homossexualidade. A tradução aqui publicada foi fruto de uma solicitação feita a Chico Guedes por Jonathan Lee, produtor e diretor do documentário Paul Goodman Changed My Life, lançado nos EUA em outubro de 2011.2 Paul Goodman nasceu na Cidade de Nova York em 09 de setembro de 1911 e morreu em 02 de agosto de 1972 em uma propriedade rural no estado de New Hampshire. Sociólogo, poeta, escritor, crítico literário, e intelectual militante, Goodman é principalmente lembrado como o autor de Growing Up Absurd, best-seller sobre educação e delinquência juvenil, publicado em 1960, e como ativista pacifista, líder da nova esquerda norte-americana na década de 1960. Inspirador do movimento de jovens contra a Guerra do Vietnã, Goodman escreveu também sobre planejamento urbano e modelos para vida em comunidade, além de ter sido cofundador da Terapia Gestalt nas décadas de 1940 e 1950. A liberdade e naturalidade com que Goodman, que era casado e pai de três filhos, tratava publicamente – em escritos e nas suas falas públicas – da sua vida homossexual intensa tornou-se um dos mais importantes pontos de partida para a emergência do movimento de liberação gay nos anos 1970.
Em maneiras essenciais, minhas necessidades homossexuais me 3tornaram um nigger . No sentido mais óbvio, tenho sido submetido, é claro, à
brutalidade arbitrária de cidadãos e da polícia; mas, fora ter sido derrubado
uma vez ou outra, me livrei sem grandes problemas nesses casos. Tenho um
bom faro para confusão incipiente e costumava ter pés ligeiros. O que me torna
um nigger é que não se pressupõe que meu impulso para abordar alguém seja
um direito meu. Então fico com a sensação de que essa não é minha rua.
Não reclamo de minhas cantadas não serem aceitas; ninguém pode
reivindicar ser amado (exceto crianças pequenas). Contudo, eu sou
menosprezado pelo fato em si de dar cantadas, por ser eu mesmo. Ninguém
gosta de ser rejeitado, mas há uma maneira de rejeitar uma pessoa que lhe
concede o direito de existir, que só fica abaixo de sermos aceitos. Eu raramente
desfrutei desse tratamento.
Allen Ginsberg e eu uma vez chamamos a atenção de Stokely
Charmichael para o fato de sermos niggers, mas ele nos desconsiderou sem
pestanejar, dizendo que nós poderíamos sempre esconder nossa disposição e
passar despercebidos. Ou seja, ele nos concedeu a mesma falta de imaginação
que normalmente se concede aos negros; para ele, nós não existíamos
verdadeiramente. É interessante que esse diálogo tenha se passado na TV
nacional britânica, esse bastião do sigilo. Mais recentemente, desde a
formação do Gay Liberation Front, Huey Newton, dos Black Panthers, deu
boas-vindas aos homossexuais à revolução, por serem igualmente oprimidos.
4Em geral, na América, ser um nigger queer não é econômica e
profissionalmente uma desvantagem tão grande quanto ser um nigger negro, a
não ser em algumas áreas como o serviço público, em que há medo e
dissimulação consideráveis (em regimes mais puritanos, como a Cuba de hoje,
ser queer é um mau negócio profissional e civilmente. Regimes totalitários,
sejam comunistas, sejam fascistas, parecem ser intrinsecamente puritanos).
Porém, minha experiência pessoal tem sido bem mista. Já fui despedido três
vezes por causa do meu comportamento queer ou por reivindicar meu direito a
33Paul Goodmann. 07 | 2012 | p. 32-41
3 N.T.: A decisão de manter nigger do original em inglês decorre da impossibilidade de traduzir fielmente a carga fortemente pejorativa e racista que o termo carrega historicamente na cultura estadunidense. Nego, negão, crioulo ou termos assemelhados, aparentes soluções, não dão conta da força negativa que nigger adquiriu no contexto do racismo nos Estados Unidos. 4 N.T.: A decisão de manter o termo queer reflete a opção que tem sido feita universalmente nos textos dos estudos gays traduzidos em várias línguas nos quais ele aparece no original. O termo queer, tradicionalmente usado com o sentido de estranho, anormal, aquilo ou aquele que não está de acordo com uma presumida normalidade, foi apropriado por vários autores, preocupados com as questões da sexualidade, sobretudo antes de o termo gay se tornar corrente, como foi o caso do autor.
ele, foram as únicas vezes em que fui despedido. Fui mandado embora da
Universidade de Chicago nos primeiros anos de Robert Hutchins; da Escola
Manumit, afiliada ao Brookwood Labor College, de A. J. Muste; e do Black
Mountain College. Essas eram instituições altamente liberais e progressistas e
duas delas se orgulhavam de se considerarem comunidades – francamente,
minha experiência com comunidades radicais é que elas não toleram minha
liberdade. Apesar disso, sou totalmente a favor de comunidade, porque é uma
coisa humana, só que parece que eu estou fadado a ser excluído delas.
Por outro lado, até onde eu sei, meus atos homossexuais e minha
reivindicação explícita a eles nunca criaram desvantagem para mim em
instituições mais caretas. Ensinei em meia dúzia de universidades estaduais.
Sou constantemente convidado, muitas vezes como principal palestrante, para
convenções de superintendentes de escolas secundárias, conselhos de
diretores, conselheiros pedagógicos, forças-tarefa sobre delinquência juvenil e
assim por diante. Falo o que acho que é verdade – com frequência trata-se de
temas sexuais –, dou cantadas, se aparece oportunidade, e continuam a me
convidar. Até transei algumas vezes, o que é mais do que eu posso dizer de
conferências/convenções dos SDS (Students for a Democratic Society) ou da 5Resistência . Talvez as pessoas sejam tão caretas que não acreditam ou se
atrevem a notar o meu comportamento; ou, mais provavelmente, esse pessoal
profissionalmente mais careta é mais vivido (nossa palavra antiquada para
cool) e não dá a mínima para o que você fizer desde que eles não tenham que
encarar pais ansiosos e a imprensa sensacionalista.
Quando a gente vai envelhecendo, os desejos homossexuais nos
deixam mais alertas em relação a adolescentes e jovens, mais do que os
desejos heterossexuais, especialmente porque nossa sociedade desaprova
fortemente os casos entre homens mais velhos e meninas e mulheres mais
velhas e meninos. De qualquer forma, no homem, a parte homossexual da
personalidade é uma sobrevivência da adolescência. Porém, nem é preciso
dizer que há um limite para essa ponte sobre o abismo entre gerações.
Inexoravelmente, eu, como outros homens que frequentam campi
universitários, nos damos conta de que as sucessivas levas de calouros
parecem cada vez mais imaturas e incomunicáveis, e acabamos parando de
tentar assaltar o berçário. A música deles não me anima. Depois de um tempo,
meu melhor contato com os jovens passou a ser com os amigos dos meus
filhos, como conselheiro na sua política, e não por desejos sexuais meus (a
morte do meu filho me afastou totalmente do mundo jovem).
34
5 N.T.: ao alistamento obrigatório.
Embora eu tenha sido extremamente pobre até doze anos atrás – criei
minha família com a renda igual à de um meeiro –, no geral eu não atribuo isso
ao fato de ser queer, mas à minha total inaptidão, truculência e má sorte. Em
1945, até o exército me rejeitou como “Material Não Militar” (eles tinham esse
carimbo), não porque eu fosse queer, mas porque durante o exame enchi o
saco de todos com meu ativismo pacifista e também porque eu tinha a vista
ruim e hemorroidas.
Curiosamente, no entanto, escutei de Harold Rosenberg e do finado
Willie Poster que meu comportamento sexual me causava danos precisamente
no universo literário de Nova York. Por causa dele, eu deixava de ser convidado
para festas vantajosas nas quais poderia fazer contatos e conseguir publicação.
Só posso acreditar em Harold e Willlie porque eles eram observadores sem
preconceitos. O que eu próprio notei é que eu era excluído dos lucrativos
círculos literários dominados por marxistas nos anos trinta e por ex-marxistas
nos anos quarenta, porque eu era anarquista. Por exemplo, eu nunca era
convidado pelo PEN Club ou pelo Committee for Cultural Freedom. Quando o
CCF finalmente me procurou no final dos anos cinquenta, eu tive de recusar o
convite porque eles já eram patentemente uma ferramenta da C.I.A. (escrevi
isso em 1961, mas eles se safaram com mentiras).
Para continuar moralmente vivo, um nigger usa vários tipos de malícia,
que é a vitalidade dos sem-poder. Ele pode ser aleatoriamente destrutivo, já que
sente que não tem nenhum mundo a perder, e talvez consiga impedir os outros
de desfrutar o mundo deles, ou ele pode se tornar um grupista fanático,
achando que só os seus pares são autênticos e têm alma. Há queers e negros
pertencentes a ambas categorias. Queers são “artísticos”, negros têm “alma”
(esse é o tipo da teoria, sinto dizer, que se nega a si própria; quanto mais você
acredita nela, mais estúpido se torna; é como tentar provar que você tem senso
de humor).
No meu caso particular, entretanto, ser um nigger parece me inspirar a
querer uma humanidade mais elementar, mais selvagem, menos estruturada,
mais variegada e em que as pessoas prestem atenção umas às outras. Ou seja,
minhas dificuldades deram energia ao meu anarquismo, utopianismo e
gandhismo. Há negros nesse grupo também.
A minha posição política real é fruto de uma reação consciente ao fato
de ser um nigger. Eu ajo baseado em que “a sociedade na qual eu vivo é minha”,
esse é o título de um dos meus livros. Considero o Presidente como meu servidor
público, a quem eu pago, e o repreendo como um péssimo empregado. Sou mais
constitucional do que a Corte Suprema. Diante da grosseira ilegitimidade do
35Paul Goodmann. 07 | 2012 | p. 32-41
Governo – com sua guerra do Vietnam, sua facção industrial-militar e a C.I.A. –,
eu me apresento como um patriota antiquado, nem tão submisso nem mais
revolucionário do que o necessário para os meus modestos objetivos. Isso é uma
posição quixotesca. Às vezes eu me pareço com Cícero.
Quando estão no grupismo Gay Society, os homossexuais podem se
tornar fantasticamente esnobes e apolíticos ou reacionários. Essa é uma ego-defesa
compreensível: “Você precisa ser melhor do que alguém”, mas seu benefício é
muito limitado. Quando eu faço palestras na Mattachine Society, meu sermão
invariável é que eles devem se alinhar com todos os outros grupos libertários e
movimentos de libertação, já que a liberdade é indivisível. O que precisamos não é
de orgulho desafiador e autoconsciência, mas de espaço social para viver e respirar.
O pessoal do Gay Liberation finalmente entendeu a mensagem da liberdade
indivisível, mas eles têm o fanatismo usual do movimento.
No entanto, há um lado positivo. Pela minha observação e experiência,
a vida queer tem notáveis valores políticos. Pode ser profundamente
democratizante, juntando todas as classes e grupos, mais do que a
heterossexualidade consegue. Sua promiscuidade pode ser uma coisa linda
(mas que seja prudente em relação a doenças venéreas).
Eu já cacei ricos, pobres, classe média e pequenos burgueses; pretos,
brancos, amarelos e marrons; acadêmicos, esportistas amadores,
universitários medíocres filhos-de-papai e vagabundos; homens do campo,
pescadores, ferroviários, trabalhadores das indústrias pesada e leve, das
comunicações, dos negócios e das finanças; civis, soldados e marinheiros e,
uma ou duas vezes, policiais (mas provavelmente por motivos edipianos tenho
a tendência a ser sexualmente antissemita, o que é um saco). Há algum tipo de
significado político, creio, no fato de existirem tantos seres humanos atraentes;
mas o que é mais significativo é que as muitas funções que eu exerço
profissional e economicamente não estão exatamente definidas, retêm certa
animação e sensualidade. O HEW, em Washington, e a Escola 201, no Harlem,
não são uma perda de tempo total, embora eu fale para as paredes em ambos
os lugares. Tenho com que me ocupar nos trens, ônibus e durante as esperas
cada vez mais longas nos aeroportos. Em resorts de férias, onde as pessoas
ficam idiotas porque estão de férias, tenho um motivo para frequentar garçons e
camareiros, que estão trabalhando para ganhar a vida. Tenho alguma coisa
para fazer em protestos pela paz – música de guitarra não me anima –, embora,
sem dúvida, os arquivos da TV e o FBI tenham fotos de mim passando a mão
em alguém.
36
As características humanas que afinal têm importância para mim e
podem ganhar minha amizade duradoura são bem simples: saúde,
honestidade, não ser cruel ou ressentido, disponibilidade e doçura de
personalidade ou de feições. Refletindo sobre isso agora, só a estupidez óbvia, a
limpeza obsessiva, o preconceito racial, a insanidade e a bebedeira ou o uso
habitual de drogas realmente me causam rejeição.
Na maioria das sociedades humanas, é claro que a sexualidade
sempre foi uma área a mais na qual as pessoas podem ser injustas, ricos
comprando pobres, machos abusando das fêmeas, sahibs usando os niggers,
adultos explorando os jovens, mas acho que isso é neurótico e não traz a maior
satisfação. São Tomás, que foi um grande filósofo moral, embora ruim na
metafísica, diz que a principal utilidade do sexo – tomado separadamente da lei
natural da procriação – é permitir conhecer outras pessoas intimamente. Essa
tem sido minha experiência.
Uma crítica comum da promiscuidade sexual tem sido, é claro, a de
que em vez de democracia ela envolve uma superficialidade terrível da conduta
humana, sendo um arquétipo da idiotice da vida urbana massificada. Tenho
minhas dúvidas de que esse seja realmente o caso, embora eu não saiba; como
no caso do pessoal que frequenta galerias de arte, não sei a quem a arte diz
alguma coisa e quem fica ainda mais confuso – mas ao menos alguns estão
procurando alguma coisa. Um homem ou mulher jovem fica se preocupando:
“Ele está realmente interessado em mim, ou só no meu corpo? Se eu fizer sexo
com ele, ele vai me considerar como um nada”. Eu considero essa distinção
sem sentido e desastrosa; na verdade eu sempre me comportei de maneira
exatamente oposta e muitas das minhas lealdades pessoais de vida inteira
tiveram início com sexo. Porém, isso é a regra ou a exceção? Considerando a
frieza e fragmentação usual da vida comunitária atual, meu palpite é de que a
promiscuidade sexual enriquece mais vidas do que as torna insensíveis. Não é
preciso dizer que se tivéssemos melhor comunidade, teríamos também uma
vida sexual melhor.
Não posso dizer que minha própria promiscuidade (ou tentativas de)
tenha evitado que eu ficasse possessivamente enciumado de alguns dos meus
amantes – mais de mulheres do que de homens, mas de ambos. Minha
experiência não tem demonstrado o que Freud e Ferenczi parecem prometer:
que a homossexualidade diminui essa paixão voraz, cujas causas eu não
compreendo. Contudo, o ridículo da inconsistência e da injustiça da minha
atitude tem me ajudado a rir de mim mesmo e me impedido de exagerar.
37Paul Goodmann. 07 | 2012 | p. 32-41
Às vezes é a caçada sexual que me leva a um lugar onde conheço
alguém – por exemplo, eu costumava rondar bares perto do cais –, às vezes
estou em um lugar por outro motivo e caço por acaso – por exemplo, vou para o
estúdio de TV e dou uma cantada no câmera –, às vezes as duas coisas vêm
juntas – por exemplo, gosto de jogar handebol e tenho interesse sexual em
parceiros de handebol. Mas no final é tudo a mesma coisa, porque em todas as
situações eu costumo pensar, falar e agir da mesma forma. Fora ajustes
corteses comuns de vocabulário – mas não de sintaxe, que altera o caráter –, eu
falo das mesmas coisas e não uso máscaras diferentes, ou me vejo de repente
com uma personalidade diferente. Talvez haja duas razões opostas pelas quais
eu consigo manter minha integridade: por um lado, tenho um intelecto forte o
suficiente para perceber como as pessoas são de verdade neste nosso único
mundo e para conseguir fazer contato com elas independentemente de
diferenças de formação; por outro lado, é provável que eu esteja tão fechado
nas minhas pressuposições que nem noto obstáculos óbvios impedindo a
comunicação.
O jeito como eu realmente abordo não tem feito grande sucesso. Como
eu não uso meus dons para manipular a situação, eu raramente consigo o que
quero dela. Como não traio meus próprios valores, não me insinuo para
agradar. Meu igualitarismo aristocrático afasta as pessoas, a não ser que elas
sejam seguras de si mesmas o suficiente para também serem
aristocraticamente igualitárias. Ainda assim, o fato de eu não ser falso ou
manipulador também tem impedido pessoas de desgostarem ou se ressentirem
de mim e normalmente eu tenho a consciência limpa, não há muita mentira ou
papo-furado para varrer fora.
Ter-me tornado uma celebridade nesses últimos anos, no entanto, me
prejudicou sexualmente mais do que ajudou. Por exemplo, universitários jovens
e íntegros que poderiam gostar de mim e que costumavam me procurar agora
mantêm uma distância respeitosa do homem ilustre. Talvez achem agora que
eu só posso estar interessado no corpo deles, e não neles mesmos. Outros, que
me procuram somente porque eu sou muito conhecido, parecem entrar em
pânico quando fica claro que eu não dou a mínima para isso e me porto como eu
mesmo. Claro que uma explicação mais simples para a piora da minha sorte é
que eu estou mais velho a cada dia, provavelmente mais feio, e certamente
cansado demais para tentar com afinco.
Como regra, eu não acredito em pobreza e sofrimento como uma
maneira de aprender nada, mas, no meu caso, as dificuldades e a carência da
minha inepta vida queer tiveram a utilidade de simplificar minhas noções do
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que é uma boa sociedade. Como no caso de qualquer viciado que não consegue
sua dose facilmente, essas coisas têm me mantido em contato direto com a
fome material. Assim, eu não consigo levar o Produto Interno Bruto muito a
sério, nem status, nem credenciais, nem soluções tecnológicas grandiosas,
nem política ideológica, incluindo movimentos de libertação ideológicos. Para
uma pessoa esfomeada, o mundo tem que se apresentar na forma de gêneros
alimentícios. Mas não é o que acontece. Eu aprendi a ser modesto nas minhas
metas para a sociedade e para mim mesmo: coisas como ar limpo, grama
verde, crianças com brilho nos olhos, não ser empurrado pra lá e pra cá,
trabalho útil que se adapta às nossas habilidades, comida simples e gostosa e
uma fugidinha ocasional satisfatória.
Uma feliz propriedade dos atos sexuais e talvez, especialmente, de
atos homossexuais é que eles são sujos, como a vida: como Agostinho disse,
Inter urinas e feces nascimur, nascemos no meio de mijo e merda. Numa
sociedade tão classe-média, ordeira e tecnológica como a nossa, é bom romper
o enojamento, que é um fator importante no que é chamado racismo, bem
como na crueldade com crianças e no isolamento de doentes e moribundos. A
natureza ilegal e o pegue-o-que-der-pra-pegar de grande parte da vida
homossexual atual rompe outras atitudes convencionais. Embora eu desejasse
ter feito minhas festas com menos apreensão e menos pressa, foi uma
vantagem aprender que fins de cais, traseiras de caminhões, becos dos fundos,
atrás das escadarias, cabines de praias abandonadas e banheiros de trens são
amostras adequadas de todo espaço que há. Para bem e para mal, a vida
homossexual retém algo do alarme e excitação da sexualidade infantil.
É danoso para as sociedades reprimir qualquer vitalidade espontânea.
Às vezes, é necessário, mas só raramente; e certamente não no caso dos atos
homossexuais, que, até onde eu ouvi falar, nunca fizeram mal a ninguém. Parte
da hostilidade, paranoia e competitividade automática da nossa sociedade
resulta da inibição de contato físico. Contudo, de uma maneira muito
específica, a proibição da homossexualidade causa dano e despersonaliza o
sistema educacional. A relação professor-aluno é quase sempre erótica. As
únicas outras motivações psicológicas saudáveis são a mãe-protetora,
relevante no caso de crianças pequenas, e o profissional que precisa de
aprendizes, relevante para as escolas de graduação. Se houver medo e
preocupação de que os sentimentos eróticos podem se converter em sexo,
abertamente, a relação professor-aluno falha, ou pior, torna-se fria e cruel.
Nossa cultura se ressente enormemente da falta de amizades pedagógicas
sexuais, homossexuais, heterossexuais e lésbicas, que foram proeminentes em
outras culturas. Sem dúvida, uma sexualidade funcional é provavelmente
39Paul Goodmann. 07 | 2012 | p. 32-41
incompatível com nosso sistema educacional massificado. Essa é uma entre
muitas razões por que ele deveria ser desmantelado.
Lembro-me que quando Growing Up Absurd tinha recebido várias
críticas fulgurantes, finalmente um crítico irritado, Alfred Kazin, sugeriu
sombriamente que eu havia escrito sobre meus delinquentes porto-riquenhos
(e chamei-os de “mancebos”) porque eu tinha atração sexual por eles. Que
novidade. Como eu poderia escrever um livro perceptivo se eu não prestasse
atenção? E por que eu iria prestar atenção em alguma coisa a não ser que por
algum motivo ela me interessasse? A motivação da maior parte da sociologia,
seja ela qual for, tende a produzir livros piores. Duvido que alguém diga que
minha observação de adolescentes delinquentes ou dos universitários do
movimento estudantil foi prejudicada pelas minhas paixões. Mas quero bem a
eles, sim – claro, eles poderiam até dizer: “com um amigo desses, quem precisa
de inimigos?”
Porém, é verdade que um lado ruim das dificuldades e perigos da vida
queer na nossa sociedade, como em qualquer situação de escassez e fome, é
que nos tornamos obsessivos e fixados em relação a ela. Eu certamente gastei
um número excessivo de horas ansiosas da minha vida caçando, que poderia
ter gasto passeando com outros propósitos ou com nenhum, cultivando meu
espírito. Contudo, acredito que tive a energia, ou a teimosia, de não deixar
minha obsessão turvar minha honestidade. Até onde sei, nunca elogiei um mau
poema de um rapaz por ele ser atraente, mas é claro que fico especialmente
contente se o poema for bom e eu puder dizer isso. Melhor ainda, é claro, se ele
for meu amante e me mostrar algo que me deixe orgulhoso e que eu possa
empurrar para um editor. Sim, já que eu comecei essas reflexões com uma nota
amarga, deixe terminá-las com um poema feliz de que eu gosto, do meu livro
Hawkweed.
We have a crazy love affair
It is wanting each other to be happy.
Since nobody else cares for that
we try to see to it ourselves
Since everybody knows that sex
Is part of love, we make love.
40
When that's over , we return
to shrewdly plotting the other's advantage.
Today you gazed at me, that spell
is why I choose to live on.
God bless you who remind me simply
of the earth and sky and Adam.
I think of such things more than most
but you remind me simply. Man,
you make me proud to be a workman
6of the Six Days, practical .
Pesando tudo, não sei se minha escolha, ou compulsão, de uma vida
bissexual me tornou especialmente infeliz ou apenas medianamente infeliz. É
óbvio que toda maneira de viver tem seus problemas, ter ou não ter pai, ser
casado ou solteiro, ser fortemente sexuado ou mais assexuado e assim por
diante, mas é difícil julgar a experiência dos outros, fazer uma comparação. Senti
persistentemente que o mundo não foi feito para mim, mas tive bons momentos.
Trabalhei um bocado, criei filhos lindos e cheguei aos 58 anos de idade.
6 Tradução literal: Nós temos um louco caso de amor / e queremos a felicidade um do outro./ Como ninguém mais se importa com isso / nós tentamos resolver isso sozinhos. / Como todos sabem que o sexo / faz parte do amor, fazemos amor./ Quando isso termina, voltamos / a conspirar a vantagem um do outro. / Hoje você ficou me olhando, aquela magia / é o motivo por que escolho continuar vivendo. / Deus bendiga você que me lembra simplesmente / da terra, céu e de Adão. / Eu penso nessas coisas mais do que a maioria / mas você me lembra simplesmente. Homem, / você me faz orgulhoso de ser um trabalhador / dos Seis Dias, prático.
41Paul Goodmann. 07 | 2012 | p. 32-41
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3
The homosexuality in front of the law in France: from postwar to “Gay Liberation”
Geoffroy Huard de la MarreDoutorando na Universidad de Cádiz/Université de Picardie – Jules Verne
geoffroy.huarddelamarre@gmail.com
Tradução: Marcos TindoProfessor de Língua Francesa na Fundação de Apoio à Educação e ao
Desenvolvimento Tecnológico do Rio Grande do Norte (FUNCERN)Mestrando em Linguística Aplicada pela
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
A homossexualidade perante a lei na França: 1do pós-guerra à “liberação gay”
44
Resumo
Este artigo trata-se do estudo das diferentes leis que foram implementadas desde o pós-guerra até metade dos anos 1970, as quais condenavam as relações homossexuais em público, percebendo quais precauções os homossexuais deveriam tomar para evitarem a condenação. Mostra que é falsa a ideia de que a repressão jurídica da homossexualidade na França aparece de novo com o regime de Pétain e atinge o seu apogeu com a subemenda Mirguet em 1960. Com efeito, se o termo contre-nature (antinatural) reaparece nos textos legais dessa época, o qual já não aparecia desde a Revolução Francesa, os atos homossexuais em público sempre foram punidos por diversas leis que utilizavam outras terminologias.
Palavras-chave: Homossexualidade. França. Lei. Contre-nature. Pudor. Moralidade.
Abstract
I want to study in this article – from the post-war until the mid 1970's – the various laws which condemned the homosexuals's reports in public places, then to see what precautions were taken by homosexuals to avoid conviction. I would like to show that the idea that the legal repression of homosexuality in France appears again with the Petain's regime and culminates in the sub-amendment Mirguet in 1960 is false. Indeed, if the term “against nature” reappears in the legislation at that time when it had no longer appeared since the French Revolution, the public homosexual acts were always punished by several laws that used other terminologies.
Key-words: Homosexuality. France. Law. Against nature. Decency. Morality.
1 Este artigo constitui uma parte das pesquisas da minha tese de doutorado, a qual preparo atualmente, sobre a história da homossexualidade na França e na Espanha (1945-1975), na Université de Picardie – Jules Verne e na Universidad de Cádiz, sob a orientação conjunta dos senhores professores Didier Eribon e Francisco Vázquez García.
Introdução
A subemenda Mirguet, de 18 de julho de 1960, que classificava a
homossexualidade como “flagelo social”, foi o texto jurídico repressivo mais
discutido na história contemporânea dos homossexuais, desde que foi o alvo
das críticas do Front Homosexuel d'Action Révolutionnaire (Frente
Homossexual de Ação Revolucionária, FHAR, 1971-1974). Não obstante,
quase uma dezena de outras leis repressivas afetou diretamente os
homossexuais no pós-guerra, mesmo que o termo contre-nature (antinatural)
tenha reaparecido explicitamente somente em um texto de lei do regime do
Vichy – já que o crime de sodomia desaparecera desde 1791. Além do mais,
essas leis repressivas foram acompanhadas por medidas produtivas da ordem
sexual dominante: heterossexualidade, casamento de homens com mulheres,
procriação, natalidade, virilidade para os homens, privatização da sexualidade
(a sexualidade é privada, o espaço público é assexual).
O ato antinatural, com um menor, punido com prisão: 1942-1982
“Não há, na França, delito nem crime de homossexualidade. Este não
é punível na França”. Assim começa o dicionário dos Parquets (Ministérios
Públicos) (LE POITEVIN, 1884). Contudo, em 6 de agosto de 1942, uma lei –
utilizando argumentos teológicos – modificou o artigo 344 do código penal para
punir com “prisão de seis meses a três anos e com uma multa de 200 a 60.000
francos” toda pessoa que cometer um ato “indecente ou antinatural com um
menor do seu sexo” (Journal officiel de l'Etat français, 1942, p. 2923),
fixando-se a maioridade sexual, na época, à idade de vinte e um anos para as
relações homossexuais e quinze anos para as relações heterossexuais. O
aumento da natalidade foi um componente fundamental do regime de Pétain
para levar a cabo a “revolução nacional”, por isso o termo “antinatural” é aqui
especificado no sentido da sexualidade não produtora de crianças.
Essa lei do Vichy foi retomada na Liberação pelo governo provisório do
general DeGaulle, no artigo 331 do código penal, pois ela foi “inspirada pela
preocupação em prevenir a corrução dos menores” (Journal officiel de la
République française, 1945, p. 630). Com efeito, a preocupação dos
partidários da ordem moral consistia em “expiar as culpas que tinham trazido a
fúria divina sobre o país, designar categorias da população responsáveis pela
derrota” (DANET, 1977, p. 80).
Encontra-se, a propósito disso, muito frequentemente, o elo entre a
collaboration (simpatizantes da ocupação nazista) e a homossexualidade. “A
45Geoffroy Huard de la Marren. 07 | 2012 | p. 43-62
associação semântica resistência = virilidade é frequentemente acompanhada
pela identificação da homossexualidade à collaboration”, afirma Jackson
(2009, p. 47), pois vários escritores “pederastas” foram igualmente
collaborateurs, como: Marcel Jouhandeau, Robert Brasillach e Henry de
Montherlant. Contudo, esse elo entre homossexualidade e valores negativos é
mais antigo. Ele remonta aos anos trinta, quando certos textos aproximavam
homossexualidade e fascismo, fazendo-se elogio da hipervirilidade masculina
diante da democracia “efeminada”. A derrota de 1940 seria ligada à
feminilização da nação, e é por isso que se deveriam expurgar os inimigos após 2a guerra . As condenações por “afronta pública ao pudor” foram, outrossim,
mais numerosas durante os anos do pós-guerra do que nas décadas seguintes.
Esse elo entre homossexualidade e fascismo ou collaboration não é
feito somente na literatura e na imprensa – para dar somente um exemplo, em
L'enfance d'un chef, de Jean-Paul Sartre: a experiência homossexual de Lucien
leva-o à extrema direita e ao militantismo antissemita –, mas igualmente em
diversos filmes (Roma, città aperta, de Roberto Rossellini, em 1945, Les
maudits, de René Clément, em 1947, Rope, de Alfred Hitchcock, em 1948), o
que deu uma larga difusão a tais ideias.
O cinema não se limitou somente a fazer a ligação entre
homossexualidade e fascismo. Mostrou também quase sempre uma imagem
negativa da homossexualidade, fornecendo, cada vez mais, uma imagem
patológica, perigosa e frequentemente cômica dela: Strangers on a Train, de
Alfred Hitchcock, em 1951; Il conformista, de Bertolucci, em 1969; Der junge
Törless, de Schlöndorff, em 1966; La caduta degli dei, de Visconti, em 1969;
The Boys in the Band, de Friedkin, em 1969.
Foi necessário esperar a eleição de François Mitterrand, em 1981,
para que essa lei fosse ab-rogada, quase quarenta anos após a sua aparição, 3em 4 de agosto de 1982 . Os atos homossexuais com menores – acima dos 15
anos – não são mais condenáveis desde essa data.
Deve-se destacar que não era a homossexualidade, como tal, o que era
condenado, como na Inglaterra, na Alemanha ou na Espanha, mas somente as
relações homossexuais entre maior e menor de idade. Essa condenação
apareceu nas leis do regime do Vichy, mas sempre esteve presente – sob outras
46
2 Nesse ponto, remeto-me às análises de Julian Jackson, Arcadie, 2009, p. 46-49.3 A votação na Assembleia Nacional aconteceu em dezembro de 1981: 327 votos a favor (PC, PS, MRG) e 155 contra (UDF e RPR). Em 4 de agosto de 1982, a segunda alínea do artigo 331 do código penal foi ab-rogada. Journal officiel de la République française, n. 180, 5 ago. 1982.
4denominações – na lei, desde 1791 . Os “vícios”, os “atos perversos” e outros 5“maus costumes” eram constantemente catalogados e reprimidos . É por isso
que a afirmação de LePoitevin – comumente admitida hoje, desde o movimento
de liberação homossexual – não é exatamente correta.
A proteção da juventude e a exaltação da virilidade foram os elementos
fundadores da ordem moral familiarista, desenvolvida pelo regime de Pétain para
salvar a raça e a nação da derrota devido a uma “república feminilizada” pelos
seus “desviados”, “perversos” e “espécimes tarados da raça” (URVOY, 1942).
Esses homens [...] são uma legião e, contrariamente ao que
se crê, esses costumes não fazem deles uma casta
exclusivamente recrutada nas classes burguesas [...]. Dia a
dia Paris se desviriliza [...]. Eles invadiram tudo: a filosofia,
as artes, a política [...]. O mercado negro tendo acabado,
esses jovens depravados, vítimas dos tempos fáceis da
Liberação, buscavam na prostituição homossexual uma
sequência lógica à longa teoria das astúcias advindas da
guerra (SERVEZ, 1955, p. 8, 24, 26, 109 apud JACKSON,
2009, p. 43).
Foi necessário então reconstruir um estado viril e uma identidade 6masculina forte e guerreira contra essa “degeneração” , simbolizada pelos três
grandes escritores homossexuais: Proust, Gide e Cocteau, os quais valorizavam
a homossexualidade nas suas obras. Essa ideologia foi acompanhada de uma
4 Citemos, a título de exemplo, a condenação em 1903 do poeta Jacques d'Adelsward de Fersen por “excitação habitual de menores à imoralidade”, Le canard sauvage, 1 agosto de 1903, citado por Charles-Louis Philippe, “Messes noires”. In: Le crapouillot, n. 30, agosto de 1955, p. 53.5 Para se ater somente aos anos de antes da guerra, o governo Daladier publicou em 29 de julho de 1939 um decreto-lei sobre a família e a natalidade, no qual se invocava a “agravar a repressão dos vícios” e a “lutar contra os flagelos sociais que constituem tantos perigos para o futuro da raça”. Ademais, o governo de 1939 puniu as publicações pornográficas “que constituem insultos à dignidade familiar”. Citemos igualmente os artigos 119, 120 e 122 do decreto-lei de 29 de julho de 1939, reagrupados sob o título de “proteção da raça”: artigo 119: “Serão punidos com pena de prisão de um mês a dois anos, e multa de 100 a 5.000 francos, a fabricação, a detenção, a importação, a exportação, a transferência, a afixação, a exposição, a projeção, a venda, a oferta, a distribuição, a entrega de quaisquer impressos, escritos, desenhos, cartazes, gravuras, pinturas, fotografias, filmes, emblemas, objetos, imagens [...] contrários aos bons costumes”; artigo 120: “mesmas penas para todos os cantos, gritos ou discursos contrários aos bons costumes, publicação de anúncios ou de correspondências visando a imoralidade”; artigo 122: “essas penas serão dobradas se a vítima for um menor”; decreto-lei de 29 de novembro de 1939 contra as doenças venéreas: contra as doenças vergonhosas, punir-se-á – para além das prostitutas que fizerem captação de clientes – todos os que, “por gestos ou palavras ou por quaisquer outros meios, procedam publicamente ou tentem publicamente proceder à captação de pessoas de um ou do outro sexo com vistas a provocá-los à imoralidade”, Marc Daniel, Histoire de la législation pénale française concernant l'homosexualité. Arcadie, n. 97, p. 10-27, jan. 1962. Ver também Jean Danet. Famille et politique, discours juridique et perversions sexuelles, XIX et XX siècle. Nantes: Faculdade de Direito e de Ciências Políticas, Universidade de Nantes, 1977. v. 6.6 Acerca da história da ideologia virilista do Vichy, remeto a Patrick Buisson, 1940-1945 Années érotiques (BUISSON, 2008)
47Geoffroy Huard de la Marren. 07 | 2012 | p. 43-62
onda contrária de pudor a partir de 1946, representada pelo Cartel de Ação
Moral e Social (CAMS). O seu secretário geral, André Mignot, alcunhado “papa
da família francesa”, foi o principal responsável pela intensa propaganda
moralizadora desde a Liberação: fechamento de prostíbulos, proibição de
afixação sobre revistas e publicações libertinas, censura de filmes, medidas de 7proteção da mulher e da criança etc .
Processos jurídicos repressivos e sistemas produtivos da norma sexual
sempre tiveram lugar. Nos anos do pós-guerra, até aproximadamente os anos
1952-1954, a vontade de virilização da nação francesa tangeu
particularmente as relações sexuais entre homens – considerados como
desvirilizantes ou inviris – em locais públicos, porque estas sujeitavam a França 8ao risco dos seus valores morais . Existia todo um sistema de qualificação das
condutas a partir de dois valores opostos: o bem e o mal, o positivo e o negativo,
que servia para hierarquizar as condutas, diferenciá-las (normal-anormal),
para, em seguida, sancioná-las. Esse sistema objetivava reprimir, é claro, mas,
sobretudo, estabelecer diferenças e regras para normalizar, produzindo as
normas sociossexuais numa vontade de dessexualização do espaço público,
isto é, em um movimento de privatização da sexualidade.
Não poderia haver, no espaço público, pederastas, exibicionistas,
vagabundagem de menores, prostituição clandestina etc. A captação, “com
vistas a provocar a imoralidade”, a bigamia, a embriaguez e as atitudes em via
pública que incitassem provocar a imoralidade foram condenadas a fim de
recuperar os valores tradicionais, dentre os quais a família, exaltada pelo
governo do Vichy, era um elemento fundamental. A França quis expurgar-se dos
colaboradores com o inimigo (encontraram-se, nessa época, numerosos delitos
de “indignidade nacional”, por exemplo, por ter pertencido ao partido pró-
alemão NRP ), e entre os seus inimigos, estavam os homossexuais, conforme
mostra o elo frequentemente estabelecido, na altura, entre collaboration e
homossexualidade.
Essa vontade de virilização da nação foi acompanhada no mesmo
momento de uma valorização da família – a qual não podia ser senão
48
7 “Contra a onda de pudor, o French-Cancan encontrou o seu New-Look”, France-Dimanche, n. 92, p. 7, 6 jun. 1948. O CAMS foi fundado no começo do século XX para recuperar a moralidade pública. As suas principais ações consistiram em lutar contra o alcoolismo, a prostituição, o aborto, os espetáculos “nocivos” e outras debilidades da sociedade. Contra essa coalizão, diversos intelectuais fundaram a Academia do Erotismo: “Montherlant apoia (moralmente) a Academia do erotismo”, France-Dimanche, n. 124, p. 3, 16 jan. 1949. Para uma análise mais desenvolvida do CAMS, remeto à minha tese.8 As afrontas públicas ao pudor foram bem mais numerosas do pós-guerra até esse período. As cifras baixaram sensivelmente depois. Acerca de um estudo estatístico, remeto à minha tese.
heterossexual –, simbolizada pelo casal, o casamento e a procriação. Toda
sexualidade contrária a esse modelo de vida era “contrária aos bons costumes”.
Além das condenações por “afronta pública ao pudor”, as condenações por
prostituição clandestina e aborto ilegal foram também bastante numerosas.
Impregnado por essa ideologia, o almirante Darlan, então ministro da
Marinha, foi à origem do ordenamento de 1942 (SIBALIS, 2002, p. 31-34)
para proteger a moralidade da Marinha de um “importante caso de
homossexualidade no qual se encontr[av]am comprometidos marinheiros e
civis” (SIBALIS, 2002, p. 32; LIFFRAN, 1981, p. 18-19), o que era comum há
várias décadas. Devia-se evitar o contágio da homossexualidade junto à
juventude, protegendo os jovens dessa perversão. A lei do Vichy, retomada na
Liberação, assim como a emenda Mirguet eram apenas a ponta visível do
iceberg sempre citado pelos movimentos de liberação homossexual. Além
dessas, outras leis reprimiram e condicionaram a vida dos homossexuais do
pós-guerra.
Um escritor da revista Arcadie, o magistrado Claude Nérisse, explicou
em vários números quais eram os riscos incorridos pelos “homófilos” – como
então lhes chamava – diante das leis repressivas, não mencionando
explicitamente a homossexualidade (NERISSE, 1954-1955, p. 16-21, 16-19,
29-31, 32-34; GUERIN, 1958, p. 39-45). Ele estabeleceu um catálogo para
todos os tipos de desejos entre pessoas do mesmo sexo, sem nenhum
moralismo. Mesmo que a homossexualidade não seja expressamente nomeada
no código penal, as relações homossexuais são desentranhadas sob três outras 9denominações: afronta pública ao pudor , excitação de menores à imoralidade
e atentados aos costumes ou atos indecentes.
A afronta pública ao pudor e outras leis proibindo a homossexualidade no
espaço público
A afronta pública ao pudor, inscrita no artigo 330 do código penal, não
previa somente reprimir as relações homossexuais, mas igualmente a
licenciosidade nos locais públicos. Podiam enquadrar-se nessa lei uma pessoa
que urinasse em via pública, um casal que mostrasse em público demasiada
ternura nos gestos bem como os homens que se acariciassem nos urinóis
públicos (ou nas vespasiennes [cabines de banheiro de calçada]), nos parques
9 Código penal, livro III, título 2, seção 4, atentados aos costumes: artigo 330, lei de 13 de maio de 1863: “Toda pessoa que cometer uma afronta pública ao pudor será punida com prisão de três meses a dois anos, e com uma multa de 2.000 francos a 20.000 francos”.
49Geoffroy Huard de la Marren. 07 | 2012 | p. 43-62
10ou em outro local público. Os exemplos são numerosos . Para que o atentado
público fosse manifesto, devia reunir dois elementos: cometer ato indecente,
num local público, e ter a intenção culpada do delinquente reconhecida como
um acinte à decência (com um elemento de publicidade, isto é, expor-se para
ser visto). A lei não previa de diferença entre ato indecente heterossexual e
homossexual, mas havia nos fatos uma distinção de tratamento quanto à
apreciação do impudor do ato. Quando se tratava de atitudes homossexuais, a
lei era somente a primeira etapa dos vexames, contando com policiais à
partida, jurídicos na sequência e depois sociais, já que a prossecução popular
rejeitava esse tipo de comportamento “associal” ou “antinatural”.
Numerosos casos mostravam igualmente que foram condenados por
essa lei homossexuais que, pela sua atitude, suas palavras ou seus gestos 11obscenos, procuravam abordar outros em via pública . Ademais, o elemento
de publicidade podia ser interpretado de várias formas e impôs, portanto, aos
homossexuais múltiplas estratégias para levar a cabo os seus desejos. Com
efeito, era necessário evitar expor-se às vistas em local público, mas também
em local privado, onde os olhares exteriores podiam penetrar a autenticidade 12dos atos e atitudes ali cometidos por falta de precauções suficientes (as praias
nudistas notavelmente). Alguém podia também prestar queixa para denunciar
o que tinha visto, mesmo que houvesse consentimento entre as pessoas
envolvidas, sendo as diligências encaminhadas. A espionagem ou a delação
eram duas das técnicas comuns para fazer respeitar a ordem moral e os
homossexuais deviam adotar estratégias para burlar o poder desta última.
Ter relações sexuais em um carro em via pública enquadrava os
indivíduos em questão sob o artigo 330, já que, mesmo que o carro estivesse 13fechado, os passantes podiam tê-los percebido .
Quando se tratava de menores, estes eram ao mesmo tempo culpados
– o ato era consumado e consentido – e vítimas – por serem menores de idade.
Esses casos assemelhavam-se ao de “golpes e feridas recíprocas”, no qual cada
culpado era a vítima do outro.
Ademais, o despacho de 2 de julho de 1945 elevou para quinze anos a
maioridade sexual. Toda relação entre um adulto e um menor de quinze anos
50
10 Remeto à parte da minha tese dedicada à repressão policial baseada nos arquivos da Polícia de Paris.11 Decisão do tribunal civil de Marselha de 26 de fevereiro de 1908, Dalloz périodique, 1908-5-49, citado por Claude Nérisse, “Le libertin devant la loi”, Arcadie, Op. Cit., p. 18.12 Boletim criminal, 10 de novembro de 1932, Dalloz périodique, 1933, I, 133 apud Claude Nérisse, “Le libertin devant la loi”, Arcadie, Op. Cit., p. 20.13 Boletim criminal, 19 de julho de 1935, Dalloz hebdomadaire, 1935, p. 528 apud Claude Nérisse, “Le libertin devant la loi”, Arcadie, Op. Cit., p. 20.
era crime aos olhos da lei (essa maioridade era fixada em onze anos, em 1832,
e depois em treze anos, em 1863). Um adulto podia manter relação
heterossexual com uma menor a partir de quinze anos, ao passo que um adulto 14não podia ter relação homossexual com um menor até os 21 anos .
Além disso, em 16 de julho de 1949, uma lei regeu o conteúdo das
publicações destinadas à juventude por medo da delinquência desde a guerra.
Uma comissão de vigilância e de controle foi criada (JACKSON, 2009, p. 51).
No fim de 1948, Jacques Debu-Bridel, conselheiro municipal de Paris,
propôs fecharem-se todas as boates homossexuais da capital. Essa proposta foi
seguida de um despacho prefeitoral, de 1° de fevereiro de 1949, artigo 2º, que
proibiu os homens de dançarem juntos em público em Paris e que foi
estritamente aplicado até ao fim dos anos 1960 (AUDOUARD, 1948, p. 7;
GIRARD, 1981, p. 21).
Contudo, a lei podia ser contornada, notadamente, nos bares. Para dar
somente um exemplo, foi possível que os homens dançassem entre si em La
Chevrière, uma aldeota em Seine-et-Oise. O trem que partia de Saint-Lazare no
domingo à tarde era até mesmo chamado “trem das loucas” (MINELLA;
ANGELOTTI, 1996 apud JACKSON, 2009, p. 56-57). Não foi, porém, o único
lugar em que os homens podiam dançar entre si. Era perfeitamente possível
dançar em todos os bares ou clubes da capital onde a clientela homossexual era
majoritária. Era suficiente estabelecer códigos e ser vigilante no caso de possíveis
verificações policiais. Mesmo se o policial estivesse à paisana, era frequente
descobri-lo muito facilmente e os encarregados tinham então o tempo de parar a
música ou de fazer separarem-se os homens (DELPAL, 1970, p. 102).
Outro despacho de polícia muito mais antigo, datado de 22 de janeiro
de 1907, proibia os travestis de se travestirem em via pública. O artigo 4°
precisava: “Afora no domingo, segunda e terça-feira e da quinta-feira de Meia-
Quaresma, fica proibido de aparecer em via pública fantasiado ou travestido”.
Os travestis que se enquadravam nesse ordenamento deviam pagar uma multa
e mudar de roupas para corresponder ao sexo inscrito no seu documento de
identidade. O artigo 1º estipulava que “as atrações ou espetáculos ditos de
'travesti' que comportarem a vestidura de roupas femininas por parte de
homens são proibidos nos bailes públicos e nos estabelecimentos que vendam
para consumo no local”, o que não impedia os espetáculos de Chez Michou,
Carrousel, Alcazar ou Grande Eugène de acontecer sem problema (DELPAL,
1970, p. 87-88).
14 Sobre esse ponto, ver Janine Mossuz-Lavau. Les lois de l'amour, les politiques de la sexualité en France (1950-1990). Paris : Payot, 1991. p. 238.
51Geoffroy Huard de la Marren. 07 | 2012 | p. 43-62
O atentado ao pudor
O atentado ao pudor, artigo 331 do código penal, era considerado
como uma pena mais grave que a afronta pública ao pudor. Consistia em impor
a um terceiro uma visão ou um ato que pudesse escandalizar o seu pudor. Para
ser condenada, a pessoa devia ter cometido o ato com violência (ou “violência
moral”) ou constrangimento, se o querelante fosse maior de idade, e devia
haver uma “intenção culpada” nos dois casos (quer se tratasse de um maior,
quer de um menor). Porém, o ato devia ser demonstrado por testemunho ou por
confissão do autor presumido das violências. Caso se tratasse de um menor,
tinha uma presunção que contava em seu favor, pois era considerado inocente,
contando igualmente a diferença de idade entre os dois parceiros. Assim, os
policiais tiravam conclusões mais facilmente. Por outro lado, se fossem dois
maiores, era mais difícil provar os fatos, mas a vítima podia fazer chantagem ao
seu algoz para obter dinheiro, alegando, por exemplo, que não prestou queixa
durante as violências que sofreu porque não queria provocar escândalo no
recinto ou alhures, aceitando, obrigado e forçado, os atos que reprovava. Esse
argumento podia intimidar o algoz e obrigá-lo, então, a entrar no jogo da
chantagem, mesmo que ele pudesse não ter cometido nenhum ato. Entretanto,
a repressão jurídica era às vezes demasiado forte para não ceder à chantagem.
Vê-se então que essa lei abria a porta para extorsões em vez de evitá-las.
Outros casos similares condenavam igualmente o querelante. Em
1933, em Dinan, um marinheiro procurou hospedar-se uma noite na casa de
um membro da sua família, mas como este não tinha mais quartos livres,
convidou-o a dormir na mesma cama que um viajante quinquagenário, o qual
teria abusado dele durante a noite. Querendo evitar o escândalo, o marinheiro
não disse nada durante a noite, mas prestou queixa no dia seguinte. Porém, o
tribunal não acreditou em nada disso, posto que o marinheiro tinha 21 anos e
nessa idade ele poderia ter evitado essa violência sem problemas. O réu foi
então liberado. Contudo, as coisas teriam sido diferentes se esse incidente
tivesse acontecido após o despacho de 1945, que elevou a idade da vítima de 1518 a 21 anos. O réu teria sido condenado por causa da idade do marinheiro .
Esse tipo de caso era frequente nessa altura.
Circunstâncias agravantes foram também previstas: se o autor dos
gestos indecentes fosse um ascendente familiar e se o menor tivesse menos de
15 anos, o fato podia ser qualificado de crime e conduzir à reclusão a partir do
52
15 Tribunal correcional, Dinan, 1933 apud Claude Nérisse, Le libertin devant la loi, ce qu'il faut savoir, Arcadie, n. 11, p. 16-21, nov. 1954.
despacho de 2 de julho de 1945 do artigo 331 do código penal, ou ainda se o
ato fosse cometido por um professor, preceptor ou funcionário que abusasse
das suas funções. Esses últimos podiam ser condenados a trabalhos forçados, 16incluindo a prisão perpétua, depois de passar por um júri .
Em 1946, o artigo 16 do estatuto geral do funcionário indicava que
“ninguém pode ser nomeado para um emprego público se não for de boa
moral”. Por outro lado, um artigo do código trabalhista, de 30 de dezembro de
1910, que permanecia em vigor, afirmava que
o mestre deve se comportar para com o aprendiz como bom
pai de família; vigiar a sua conduta e os seus modos, seja
em casa, seja fora, e avisar os seus pais, ou os
representantes destes, das faltas graves que ele possa
cometer ou das inclinações viciosas que ele possa
manifestar (MOSSUZ-LAVAU, 1991, p. 239).
A legislação que dizia respeito, de perto ou de longe, à
homossexualidade exercia uma função de controle dos costumes na França do
pós-guerra.
A excitação de menores à imoralidade
Outra lei que não mencionava expressamente os homossexuais, mas
os tocava diretamente, tratava-se da excitação de menores à imoralidade,
artigo 334 do código penal, que existia já nas leis de 1810 e 1903. Ela
propunha-se a proteger a pureza dos jovens até a idade de 21 anos, em geral,
tingindo-se de certo moralismo religioso. Com efeito, a maioridade penal 17recuou de 18 a 21 anos, como a maioridade civil, desde a quarta República ,
no que concerne aos atentados aos costumes. No que diz respeito aos delitos de
direito comum (roubo, vagabundagem etc.), a maioridade permaneceu nos 18
anos, o que mostra bem qual foi a moral sexual que governou a redação desse
despacho de 8 de fevereiro de 1945.
A lei contemplava um fato que tendia a favorecer a imoralidade de
outrem: atos obscenos, práticas indecentes etc. em presença de um menor.
Porém, caso se tratasse de um menor consentidor, o adulto não se enquadrava
“em princípio” na lei, segundo o dicionário criminal:
16 Claude Nérisse lembra certos casos similares com “imprudentes vigiando os dormitórios” (Claude Nérisse, Le libertin devant la loi, Arcadie, Op. Cit., p. 20).17 Código Penal, artigo 334 bis, parágrafo 2º apud Claude Nérisse, Les libertins devant la loi, Arcadie, Op. Cit., p. 17.
53Geoffroy Huard de la Marren. 07 | 2012 | p. 43-62
Em princípio, aquele que excita um menor à imoralidade
para satisfazer as suas próprias paixões não se enquadra no
artigo 334 do código penal, pelo menos se se trata de uma
sedução direta e pessoal. O delito, pelo contrário, deverá ser
mantido se o acusado fomentava aproximações entre
menores para satisfazer a sua própria luxúria, seria mais 18para o menor um intermediário de corrupção .
Devia-se aí entender “corrupção” como proxenetismo. A finalidade
dessa lei era efetivamente reprimir o proxenetismo, evitando o relacionamento
de clientes eventuais com menores para obter benefícios financeiros ou outros.
Além do mais, para que o delito fosse constituído, dever-se-ia
adicionar dois outros elementos: a idade da vítima e o hábito. Com efeito, se a
vítima fosse menor de 16 anos, o hábito não era levado em conta: um só ato era
suficiente para condenar o adulto. Em contrapartida, se o menor tivesse entre
16 e 21 anos, o hábito era necessário para estabelecer o delito e condenar o
acusado, podendo isso tudo ser acompanhado de circunstâncias agravantes a
partir de 1946, podendo levar cinco anos de prisão e pagar três milhões de
francos de multa.
O deslocamento de menores
O artigo 354 do código penal estipulava que “o caso dos menores de
ambos os sexos raptados ou desviados ou deslocados dos locais onde eles
foram postos pela autoridade ou da direção daqueles aos quais eles estavam
entregues ou confiados sofrerá a pena de reclusão” (NERISSE, 1955, p. 29-
31), sendo necessário haver fraude ou violência da parte do adulto considerado
como autor do rapto. O que era punido não era realmente a relação sexual de
uma noite entre um adulto e um menor, mas a instalação de um menor na casa
de um adulto que não fosse a autoridade parental ou a Assistência pública.
Com efeito, se houvesse queixa, o magistrado podia condenar o “sequestrador”
mesmo que não tivesse “abusado'” do jovem, demonstrando que ele quisera
subtraí-lo à autoridade parental ou aos que dele tinham a guarda. Ademais, a
ideia de “desvio” era compreendida num sentido geográfico e não moral, como
deslocamento (durável) de um lugar a outro. Por fim, os magistrados entendiam
por “fraude” ou “violência” os eventuais subterfúgios orquestrados pelo adulto
para influenciar o consentimento do menor e obter dele os favores (chantagem,
proposta de dinheiro, “bebidas embriagantes” etc.). Sendo assim, o advogado
54
18 Garson, Dictionnaire criminel spécial annoté apud Claude Nérisse, Les libertins devant la loi, ce qu'il faut savoir, Arcadie, n. 12, p. 16-19, dez. 1954.
podia às vezes obter uma absolvição se a ausência de violência ou de fraude
fosse provada. Porém, se certa atração homossexual fosse demonstrada, o
adulto podia ter sérios aborrecimentos.
O adultério e os homossexuais casados
O homem casado podia encontrar-se numa situação fortemente
problemática em caso de adultério. Nérisse (1955, p. 33-34) tratou de um
problema desse tipo, de um marido traindo com um homem, o qual não
aparecia nos textos de lei, mas que foi definido como uma causa peremptória
de divórcio em 12 de abril de 1949 (não se deve esquecer que, nessa época, os
homossexuais casados com mulheres eram muito numerosos). Com efeito, o
código civil francês não reconhecia as relações homossexuais fora do
casamento como adultério. O mais interessante do artigo é que, sob forma de
carta a uma mulher cujo marido se deitou com um homem e ela desejou
denunciar por adultério, o autor deu preciosos conselhos aos numerosos
homens casados que tinham relações sexuais com homens e que liam a revista
Arcadie. Foi um meio cômodo de mostrar aos seus leitores como eles podiam
continuar a viver a sua vida dupla ou mesmo tripla (a vida profissional, a vida
familiar e a vida homossexual). Ele mostrou de fato a esses homens como eles
podiam evitar o escândalo público, com diferentes argumentos para que as
suas mulheres não arruinassem as suas vidas. Eles deviam fazer chantagem
emocional à sua esposa para que ela retirasse a sua queixa e, assim, os filhos
deles não descobrissem a verdadeira natureza do desejo do seu pai,
argumentando com a vergonha pela qual podia passar uma esposa em caso de
adultério, porque, para provar isso, as leis pediam testemunhos de amigo(a)s,
vizinho(a)s, esses motivos que já conseguiriam, em geral, persuadir a mulher a
não levar o problema a público.
Outras leis regiam ainda a vida das pessoas que se podiam agrupar sob
o nome de homossexuais, mesmo que tenhamos visto que as leis se abriam a
outras categorias: adulto que ama menores, prostituição masculina, homem
casado que se deita com homens etc. Os militares e os marinheiros também
eram contemplados por leis que reprimiam relações sexuais com homens.
Militares e marinheiros diante da lei: premissas do maccarthismo na França?
As infrações de direito comum cometidas pelos militares e marinheiros
fora do recinto portuário ou da caserna eram regidas pelo direito penal e
dependiam dos tribunais correcionais. Concernente aos delitos de afronta aos
55Geoffroy Huard de la Marren. 07 | 2012 | p. 43-62
56
costumes, mais precisamente às relações homossexuais com os militares ou
marinheiros, era bem sabido que estes últimos se entregavam à prostituição 19quando das permissões ou quando os marinheiros desciam a terra . Essa
atividade não era sem risco para os clientes – frequentemente casados e pais de
família –: roubo, espancamento e humilhação eram alguns dos exemplos mais
comuns, e eles podiam até mesmo ser condenados por “atentado ao pudor
cometido contra menores”, posto que muitos desses marinheiros ou jovens
militares ainda não tinham atingido vinte anos.
Os tribunais condenavam igualmente os militares e os marinheiros.
Por exemplo, os jovens engajados viam o seu engajamento suspenso segundo
um parágrafo da lei que permitia reter os “distúrbios mentais”, dentre os quais o
“desajuste dos sentidos e das secreções glandulares”. Deve-se, nesse aspecto,
lembrar que uma das causas de reforma ou de isenção do serviço militar era a
atração “não natural” de um homem por outro homem. Jean Genet fez menção
disso no Journal du voleur: “a pederastia teria sido suficiente para eu ser
dispensado [do serviço]” (GENET, 1949, p. 50). Além disso, as decisões de
justiça implicavam toda uma avaliação médica: visitas, retornos, perguntas do
médico-major, novos remédios para reequilibrar as secreções glandulares, tudo
isso acompanhado da vergonha do olhar social (vexações, fofocas). Alguns 20eram levados a chegar ao suicídio .
No exército, os homossexuais sofriam igualmente uma verdadeira caça
às bruxas durante os anos 1950-1960, diretamente inspirada pelo 21maccarthismo, que influenciou as instâncias militares francesas . Com efeito,
o exército francês recebeu instruções precisas da Direção de pessoal militar
dadas pelos Estados Unidos aos seus aliados atlânticos para expurgar dos seus 22serviços “personalidades que têm defeitos particularmente vulneráveis” . Os
homossexuais eram considerados como “espiões”. Eram acossados por
19 Os exemplos de marinheiros ou militares entregando-se à prostituição masculina ou tendo relações sexuais não tarifadas com outros homens nos portos não se limitavam nem à França nem aos anos do pós-guerra. Numerosas são as referências sobre esse assunto na obra de Jean Genet (GENET, Jean. Querelle de Brest. Paris: Gallimard, 1953. p. 32-33). O historiador George Chauncey mostra que as práticas eram muito difundidas em Nova Iorque na primeira metade do século XX, notavelmente nos anos 1920 e 1930, nos quais jornais populares publicavam regularmente caricaturas de gays abordando marinheiros (CHAUNCEY, George. Gay New York. Op. Cit. p. 227).20 Claude Nérisse faz referência a um caso similar numa cidadezinha da costa bretã que fez grande alarido na altura: “Os desertores do caminho das damas”. Um homem, casado e pai de família, suicidou-se após a aparição na impressa de um caso desse gênero. In: “Le libertin devant la loi, infractions de droit commun commises par des militaires ou marins”, Arcadie, n. 17/5, p. 32-34, maio 1955.21 A respeito de uma história da repressão dos homossexuais sob o maccarthismo, ver John D'Emilio, Sexual Politics, Sexual Communities, The Making of a Homosexual Minority in the United States, 1940-1970. Chicago et Londres, University of Chicago Press, 1983.22 Deputado Dronne na Assembleia Nacional, em 3 de dezembro de 1954 apud Daniel Guérin, “La répression de l'homosexualité”, Op. Cit., p. 43.
delatores. Daniel Guérin citou as declarações de um oficial geral da República
quando pronunciou a exclusão de um militar que tinha tido relações sexuais
com outro homem: “Vejo-me obrigado a puni-lo, pelo respeito ao Deus em que
creio” (GUERIN, 1958, p. 43). A influência do maccarthismo sobre as
autoridades militares francesas forrou-se de uma ideologia moralizadora e
religiosa que estendia o seu poder contra os homossexuais militares e
marinheiros.
Seria igualmente sensato interrogar-se acerca da influência do
maccarthismo não somente no Exército e na Marinha, mas também em toda a
França. A repressão jurídica e policial e depois também a subemenda Mirguet
não são as consequências dessa influência? A ideologia virilista da Liberação
expurgou os inimigos da nação (collaborateurs, homossexuais) como o
maccarthismo nos Estados Unidos fizera com os comunistas e os
homossexuais. Contudo, na França, houve certo controle dos homossexuais,
mas não houve repressão em grande escala.
A subemenda Mirguet: a homossexualidade como “flagelo social”
A subemenda do deputado Paul Mirguet do UNR (1911-2001) 23visando “lutar contra a homossexualidade” foi a nova lei, a partir de 1960,
que reprimiu ainda mais duramente os homossexuais, como lembram quase 24todas as publicações sobre a história da homossexualidade . Todavia, essa
subemenda Mirguet não implicou quase nenhuma consequência direta na
repressão policial e jurídica dos homossexuais. Essa lei não foi senão uma das
leis que condenavam as relações sexuais entre maior e menor de mesmo sexo.
Ficou, todavia, a mais famosa.
Ela nasceu num contexto de luta contra a delinquência juvenil. Em
1959, uma comissão foi encarregada pelo governo da inspeção dos filmes para
controlar o “crescimento da delinquência” e em 1961 novas classificações para
os filmes destinados a proteger os jovens foram criadas. A proteção da
juventude era um tema onipresente nessa altura e a subemenda Mirguet é um
exemplo disso, já que a homossexualidade é frequentemente associada à
delinquência. Em 1958, o diretor da polícia judiciária deu uma conferência
sobre “homossexualidade e as suas consequências na delinquência”
(JACKSON, 2009, p. 117).
23 Assembleia Nacional, constituição de 4 de outubro de 1958, legislatura 1958-1962, tabelas analíticas dos anais, 2ª parte, table nominative, tomo II, letras J a Z, p. 903.24 O exemplo mais flagrante da importância dessa subemenda é talvez o nome de um dos jornais do FHAR, O flagelo social. Sobre a história e o contexto dessa subemenda, remeto ao livro de Julian Jackson, Arcadie, Op. Cit., p. 115-119.
57Geoffroy Huard de la Marren. 07 | 2012 | p. 43-62
58
Paul Mirguet, deputado da Mosela de 1958 a 1962 e antigo
conselheiro municipal de Metz (SIBALIS, 2001, p. 285-286), propôs-se a
adicionar em 18 de julho de 1960 uma subemenda à emenda n. 8 de Marcelle
Devaud, a qual tomava medidas para lutar contra certas doenças assim como
contra o alcoolismo e a prostituição. Mirguet esperava acrescer a essa emenda
uma alínea para favorecer “todas as medidas próprias à luta contra a 25homossexualidade” . Os argumentos usados pelo deputado eram os mesmos
que os dos outros discursos que inferiorizavam a homossexualidade. Fazia-se 26necessário “proteger as nossas crianças” . A juventude e a delinquência juvenil
eram temas bem presentes na época em que as crianças do baby-boom se 27tornaram adolescentes .
Mirguet lembrou também que a emenda que visava lutar contra a
prostituição não fazia referência explicitamente à homossexualidade. Ademais,
ele brandia o espectro da “nossa civilização perigosamente minoritária” para
convencer os deputados de que se deveriam combater os valores que não
defendiam a moral dominante, sob o risco de perder o poder ou o “prestígio”
diante das evoluções que a sociedade estava conhecendo (contracepção,
aborto, mas, sobretudo, a independência argelina, que aparecia como
inevitável para DeGaulle). O presidente e a Assembleia riram repetidas vezes,
mas não houve objeção. A subemenda de Mirguet foi finalmente votada, não
condenando a homossexualidade como tal, mas sim as relações homossexuais
entre maior e menor de idade. Além disso, a afronta pública ao pudor era
condenada com uma multa mais importante quando se tratava de relações
sexuais entre homens.
O artigo 2º institui ao artigo 330 do código penal uma pena
agravada para o caso em que a afronta pública ao pudor é
cometida por homossexuais. Essa medida responde à
preocupação manifestada pelo Parlamento, a 4ª da lei
supracitada de 30 de julho de 1960. Com efeito, levando-
se em conta que o conjunto da legislação francesa relativa à
luta contra o proxenetismo e à prostituição se aplica sem
distinção de sexo e indiferentemente em caso de relações
homossexuais ou heterossexuais, pareceu que era
25 Anais da Assembleia nacional, Debates parlementares, legislatura de 1959 a 1960, de 30 de junho a 25 de julho de 1960, p. 1981.26 Anais da Assembleia nacional, Debates parlementares, legislatura de 1959 a 1960, de 30 de junho a 25 de julho de 1960, p. 1981.27 Alguns exemplos: SAUVY, Alfred. La montée des jeunes. Paris : Calmann-Lévy, 1959; Françoise Giroud lançou em 1957 no Express a fórmula “nouvelle vague” para falar da nova geração; FOURNIER, Christiane. Nos enfants sont-ils des monstres? Paris: Fayard, 1958.
particularmente útil, para responder ao desejo expresso
pelo Parlamento, aumentar as penas previstas quando essa
infração fosse cometida por homossexuais [...].
Art.2. – O artigo 330 do código penal é completado pela
alínea seguinte: ? ? alínea 2? ? Quando a afronta pública ao
pudor consistir em ato antinatural com um indivíduo do
mesmo sexo, a pena será reclusão de seis meses a três anos
e uma multa de 1.000 NF a 15.000 NF (Journal Officiel,
1960, p. 10603).
Contudo, essa subemenda provocou um verdadeiro pânico entre os
homossexuais. Baudry enviou uma carta da parte da Arcadie a Mirguet, em 20
de julho de 1960, na qual sublinhava a grande preocupação em que se
encontravam não somente os arcadianos, mas igualmente os homossexuais
em geral.
Infelizmente, a sua subemenda à futura lei sobre os flagelos
sociais, do fato que visa, de forma global e indiscriminada,
a “homossexualidade”, comporta o mui grave risco de
atingir, bem mais que os prostitutos, os proxenetas e os
corruptores de rapazes, centenas de milhares de
homossexuais honestos e dignos que, de nenhuma forma,
podem ser considerados como um flagelo social. Nós
dizemos mesmo centenas de milhares [...]. Dentre estes,
há colegas seus da Assembleia, senadores, médicos,
engenheiros, camponeses, operários, industriais,
comerciantes. Para todos esses, a sua subemenda abre 28perspectivas de angústia, de terror, de ruína .
Baudry relembrou que não era contra a homossexualidade que se
necessitava lutar, mas contra a prostituição masculina, a imoralidade pública e
pela proteção das crianças – o que previa Mirguet – e Baudry procurou
diferenciar dos “homossexuais ordinários”. Ademais, reforçou que as leis
existentes já concerniam às relações sexuais entre pessoas de mesmo sexo e
que não havia necessidade de mais repressão quanto a esse assunto.
Mirguet respondeu à carta de Baudry e afirmou que a sua subemenda
não pretendia ser um texto repressivo a mais. Ele esperava pedir ao governo 29para “agir com meios humanos e medicinais” . Esse texto permaneceu,
28 Carta enviada pela Arcadie a Mirguet em 20 de julho de 1960, documento datilografado enviado pela Arcadie aos seus assinantes.29 Carta de Paul Mirguet à Arcadie, 30 de julho de 1960, documento datilografado enviado pela Arcadie aos seus assinantes.
59Geoffroy Huard de la Marren. 07 | 2012 | p. 43-62
60
todavia, nas memórias dos homossexuais e marcou igualmente os militantes 30dos anos 1970 .
Conclusão
A reaparição do termo teológico “antinatural” em uma lei do Vichy,
retomada depois na Liberação por DeGaulle, foi somente um dos exemplos de
medidas para revirilizar a nação francesa após a guerra. Porém, esse “ato
antinatural com um menor punido com prisão” não significou a reaparição da
repressão dos homossexuais, como se esta tivesse desaparecido desde a
Revolução Francesa. Numerosas leis já existiam bem antes do regime de Pétain
e eram aplicadas. Todavia, a repressão jurídica da homossexualidade não é
senão um dos pilares da ideologia sexual dominante, que tenta inferiorizar
constantemente as relações entre pessoas do mesmo sexo enquanto valoriza a
heterossexualidade reprodutiva por meio da família e do casamento. A
patologização da homossexualidade pelo discurso médico e a consideração da
homossexualidade como pecado, conforme o faz a hierarquia eclesiástica, são
outros conceitos que configuram a ordem social dominante e, por isso mesmo, 31a vida dos(as) homossexuais . É por isso que nós deveremos nos apegar a
historicizar esses mecanismos de diferenciação entre homossexualidade e
heterossexualidade – percebidos como a-históricos – para lutar contra a
dominação heterossexual e masculina, que somente procura reproduzir a
ordem inigualitária estabelecida.
30 Remeto, acerca desse ponto, à parte da minha tese de doutorado dedicada ao FHAR.31 Remeto à minha tese de doutorado quanto ao estudo desses diferentes conceitos inferiorizantes da homossexualidade.
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61Geoffroy Huard de la Marren. 07 | 2012 | p. 43-62
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4
Identidades, cuerpos y
educación sexual: una lectura queer
Identities, bodies and sex education:
a queer approach
Germán S. M. TorresUniversidad Nacional de Quilmes
Máster en Investigación Aplicada a la Educación y Licenciado en Educación
Investigador del Departamento de Ciencias Sociales, UNQ, Argentina
germansmt@gmail.com
64
Resumen
El artículo aborda el campo de la educación y la sexualidad desde una perspectiva
queer. El objetivo es avanzar en la discusión de una perspectiva pedagógica queer,
tomando a la identidad y al cuerpo como dimensiones de análisis centrales tanto para la
apuesta teórica y política queer así como para la educación sexual. Haciendo foco en el
currículum oficial de la educación sexual de la ciudad de Buenos Aires, se señala el
modo en que son configurados las identidades y los cuerpos. Se da cuenta, por un lado,
de las condiciones de posibilidad que los construyen como dominios de intervención y
normalización y, por el otro, de los aportes de la teoría queer para su comprensión dentro
del campo de la pedagogía y de la educación sexual.
Palabras clave: Identidad. Cuerpo. Educación sexual. Pedagogía. Teoría queer.
Abstract
This paper focus on the field of education and sexuality from a queer approach. The aim
is to go into the discussion of a pedagogical queer perspective, taking identity and body
as main dimensions of analysis both for queer theory and politics as well as for sex
education. Focusing on the official curriculum for sex education of the city of Buenos
Aires, it is analyzed the way identities and bodies are configured. The article accounts,
on the one hand, the conditions of possibility which build them as domains of
intervention and normalization and, on the other hand, the contributions of queer theory
for their understanding and for the pedagogical and sex education field.
Keywords: Identity. Body. Sex education. Pedagogy. Queer theory.
Introducción
Este trabajo se propone una lectura crítica de las relaciones entre
educación y sexualidad y, particularmente, de la educación sexual en su versión
oficial. Antes que presentar los resultados conclusivos de una investigación,
este trabajo busca abrir un espacio de discusión acerca de lo que la educación y
la pedagogía hacen con nosotros y de lo que nosotros podemos hacer con ellas.
El foco estará puesto en la primera versión oficial del currículum de la
educación sexual de la Ciudad Autónoma de Buenos Aires, editada a partir de la
sanción en 2006 de la Ley 2110 de Educación Sexual Integral por parte de la
Legislatura porteña y de la Ley 26.150 de creación del Programa Nacional de
Educación Sexual Integral por parte del Congreso de la Nación Argentina. La
mirada crítica sobre la educación no ignora la multiplicidad de contextos,
espacios y prácticas en los que la sexualidad entra en tensión con otras
dimensiones relevantes de la vida de los individuos y los grupos sociales. Esta
mirada sólo pretende poner de relieve algunas de las tensiones constitutivas de
lo educativo, en tanto espacio clave donde se ponen en juego, de manera
explícita, distintos campos de saber, formas de dominación y, de manera
primordial, donde se construyen identidades y corporalidades.
Las coordenadas en las que se ubica la escuela (convertida en
sinónimo de educación a lo largo de los últimos dos siglos) la hacen uno de los
reductos más resistentes de los ideales del Iluminismo y la Modernidad. La
escuela se presenta ante la sociedad como el lugar en el que se encarnan y
afianzan los ideales del progreso, la razón, la libertad y la autonomía. Estos
ideales, que forman parte del “sentido común moderno” (SILVA, 1997, p.
275), perviven en las prácticas, relaciones y discursos que fundan y atraviesan
desde la cotidianidad escolar hasta la formulación de las políticas educativas. Y
uno de los puntos más densos donde esos ideales modernos se tensan es en el
cruce entre la educación y las sexualidades. Distintos trabajos han dado cuenta
de la sexualización de las prácticas educativas – las dinámicas escolares, las
prescripciones curriculares, las representaciones de los agentes educativos
(MORGADE, 2011; MORGADE; ALONSO, 2008). Estos aportes han
subrayado críticamente la presencia –excitada antes que reprimida – de la
sexualidad y de una educación sexual en la escuela: sea a través de
representaciones hegemónicas y heterosexistas que fundan una “educación
sexual” presente en el currículum oculto, cuyo principal sentido es preservar el
orden social de género establecido (MORGADE, 2006, p. 28); o bien como una
pedagogía de la sexualidad presente en el día a día escolar que legitima
determinadas identidades y prácticas sexuales, mientras que relega y margina
otras (LOURO, 2007). En oposición al cliché que ha indicado que en la escuela
65Germán S. M. Torresn. 07 | 2012 | p. 63-79
'de eso no se habla', esta serie de trabajos ha mostrado que ella aparece
configurada, en definitiva, como un ámbito regulado y cargado de
significaciones y poderes que, al decir de Michel Foucault (2003), hablan de y
a la sexualidad. Es en este contexto de proliferación regularizada de significados
que, a partir de la sanción de leyes que ordenan la obligatoriedad de la
educación sexual para el sistema educativo argentino, la sexualización de lo
escolar pasa a solaparse con una prescripción explícita y normatizada de la
cuestión.
Es en este punto donde se presenta la necesidad de una crítica sobre
las condiciones de posibilidad – y, por tanto, sobre las condiciones de
imposibilidad – que rigen la conformación de la educación sexual como un
dominio curricular específico en el que se ponen en juego saberes, identidades
y, en definitiva, relaciones de poder (SILVA, 1999). Dada la proliferación de
mecanismos de poder que invocan 'verdades' para el gobierno de los sujetos, la
crítica aparece como lo que Foucault (1996, p. 110-111) denominó una
“ontología histórica de nosotros mismos” que, apuntando a ese nudo entre
poder, verdad y sujeción, se constituye en una “crítica de lo que somos” pero
también en un “análisis histórico de los límites que se nos plantean y prueba
de su franqueamiento posible”. Llevadas al campo de la educación y la
sexualidad, estas consideraciones implican la puesta en cuestión de dos
dimensiones cruciales: la identidad y el cuerpo. En lo que sigue, este trabajo
abordará ambas cuestiones en sus cruces con el discurso oficial de la educación
sexual, tomando como recurso algunos elementos de la teoría queer.
Asumiendo que la puesta en cuestión tanto de la identidad así como del cuerpo
son dos de los ejes sobre los que se ha articulado esa apuesta teórica y política,
este trabajo se propone avanzar en la discusión y construcción de una
perspectiva pedagógica queer.
Educación sexual e identidad: del sí mismo autónomo a la desujeción
El orden discursivo pedagógico se ha erigido como una instancia de
poder que no sólo produce e instaura saberes 'verdaderos' sino que también, de
manera concomitante, produce formas particulares de subjetividad. En tal
sentido, puede considerarse que el discurso de la educación sexual se ha
configurado en sus lineas principales como una tecnología del yo. Estas
tecnologías constituyen procedimientos “que se proponen o prescriben a los
individuos para fijar su identidad, mantenerla o transformarla en función de
cierto número de fines, y todo ello gracias a las relaciones de dominio de sí
sobre uno mismo o de conocimiento de uno por sí mismo” (FOUCAULT, 1994,
66
p. 255). A partir de esta misma definición, Jorge Larrosa (1995, p. 282) ha
planteado el concepto de dispositivo pedagógico para dar cuenta de las formas
en que el discurso pedagógico “trata siempre de producir, capturar y mediar
pedagógicamente alguna modalidad de la relación de uno consigo mismo con
el objetivo explícito de su transformación”. En tanto dispositivo pedagógico, la
educación sexual se presenta como una instancia de delimitación identitaria
que busca regular un conjunto de prácticas pedagógicas en las que los y las
estudiantes son posicionados como sujetos que deben construirse a sí mismos
en el marco de condiciones restringidas de inteligibilidad. Los contendidos y
objetivos propuestos para la educación sexual por parte del Gobierno de la
Ciudad de Buenos Aires (GCBA) avanzan en tal sentido. Es así que se ha
instituido a la construcción, el conocimiento y el cuidado de sí mismo como
objetivos principales. Ello ha supuesto, por caso, que la educación sexual debe
colaborar en el “afianzamiento de la autoestima” (GCBA, 2007a, p. 11); en la
“autoafirmación y conciencia de sí” (GCBA, 2007e, p. 23); en la
“construcción de la identidad” o en “el cuidado de uno mismo” (GCBA,
2007d, p. 21). Otro de los puntos claves que han organizado a la educación
sexual es la producción de sujetos autónomos. En tal sentido, se ha planteado
como objetivo central el “desarrollo de la autonomía vinculado con la toma de
decisiones” (GCBA, 2009b, p. 22), o el “propender a la autonomía” de los
estudiantes (GCBA, 2009a, p. 18) como responsabilidad de la escuela, etc.
Ese sujeto consciente, autónomo e idéntico que se construye, se
enuncia, se conoce y se cuida a sí mismo aparece en la educación sexual
simultáneamente como un punto de llegada deseable pero también como un
punto de partida epistemológico incuestionado. Es aquí donde la apuesta
crítica queer debe entrar en juego. La pregunta inquieta y provocadora que ha
planteado Stuart Hall (2006): “¿Quién necesita identidad?” puede bien
trasladarse al currículum de la educación sexual, indagando acerca de la
necesidad o deseabilidad de construcción de sujetos conscientes, autónomos e
idénticos a sí mismos. No por un rechazo a la necesidad de la identidad per se
(pues no podría nunca exigirse la supresión de la identidad) sino a las
condiciones sobre las que se impone esa necesidad como fundamento y como
objetivo o, en términos foucaultianos, a las condiciones que imponen al
individuo la sujeción a la propia identidad. Pues la 'identidad', antes que ser
una descripción de lo que uno esencialmente 'es', constituye lo que Judith
Butler (2007, p. 71) ha denominado como un “ideal normativo”. Es decir, un
marco restrictivo que si bien posibilita la construcción del sujeto, también la
restringe. En tanto 'ideal' producido en el seno de relaciones de poder, la
identidad supone siempre diferenciaciones y exclusiones que delimitan un
67Germán S. M. Torresn. 07 | 2012 | p. 63-79
espacio de 'seres abyectos' cuyas vidas y cuerpos aparecerán como 'invivibles' e
'inhabitables'. Ese espacio resulta precisamente el “exterior constitutivo” del
espacio estable y normalizado de la identidad (BUTLER, 2005, p. 19-20). Es
en ese punto que, desde una perspectiva pedagógica queer, el ideal identitario
debería aparecer como un punto de tensión y cuestionamiento antes que un
supuesto dado o un objetivo a alcanzar. Como se detallará en el siguiente
apartado, los saberes que propone la educación sexual para la construcción del
sujeto sexuado que se conoce y cuida a sí mismo implican – incluso ya desde su
formulación legislativa (TORRES, 2009) – un recorte heterosexista de las
identidades, deseos y prácticas sexuales posibles. En ese marco, la 'identidad'
no puede ser nunca fundamento ni objetivo incuestionado de la educación en
general, ni de la educación sexual en particular. De igual modo, en este marco
resulta impugnable proclamar acríticamente a la autonomía como dimensión
fundamental de la construcción del sí mismo. Así como “[l]a promesa de
autonomía re-introduce, por la puerta de atrás, la fantasía de un sujeto
soberano y en pleno mando de sus actos” (SILVA, 2001, p. 9), tampoco da
cuenta de que la construcción de ese sujeto se desarrolla en condiciones
restrictivas que hacen de la autonomía un recorte de lo inteligible – es decir, una
exclusión de posibles alternativas disidentes – y no el desarrollo de una
característica esencial de la identidad.
La crítica a la noción de identidad marca precisamente una de las
lineas fundamentales sobre las que se han desarrollado la teoría y la política
queer. La crítica queer apunta, en tal sentido, a uno de los sentidos dominantes
del espacio social y cultural: la heterosexualidad. O, mejor dicho, a la
heteronormatividad, entendida como la construcción normativa y
normalizante de las formas de conocer, conformar y vivir los cuerpos así como
las identidades, las prácticas y los deseos sexuales. La apuesta queer apunta,
por tanto, a las formas de sujeción y normalización que imponen – a la vez que
limitan y excluyen – modos de ser, de actuar y de desear. Desde esta
perspectiva, se entiende que el régimen heteronormativo restringe el espacio de
la sexualidad a una heterosexualidad obligatoria (BUTLER 2005, 2007;
RICH, 1999; RUBIN, 2003; WITTIG, 2006). Pero puede pensarse también
que lo queer, como señala Tamsin Spargo (2004, p. 53), “está en perpetua
discordancia con lo normal, con la norma, sea esta la heterosexualidad
dominante o la identidad gay/lesbiana. En una palabra, es definitivamente
excéntrico, a-normal”. En tal sentido, no sólo el análisis de la cuestión de las
identidades sexuales aparece como uno de los ejes primordiales de lo queer
sino también, de modo indirecto, la cuestión de las identidades culturales y
sociales (SILVA, 1999). Desde esta perspectiva general, el foco está puesto en
68
la desestabilización de la noción misma de 'identidad', entendida como una
pretendida propiedad esencial, estable y homogénea, tanto de los individuos
como de los colectivos sociales. La teoría queer asume a la identidad, antes
bien, como un terreno fronterizo, relacional e inestable limitado – aunque
también posibilitado – por diversas instancias de poder y de saber.
Cabe ahora preguntarse de qué modo puede relacionarse la crítica
queer de la identidad con la educación y la pedagogía. O, como lo plantea
Guacira Lopes Louro (2001, p. 15), “¿Cómo un movimiento que se remite a lo
extraño y a lo excéntrico se puede articular con la educación,
tradicionalmente el lócus de la normalización y del orden?”. Como primera y
fundamental consideración, puede decirse que una pedagogía queer pondría
de relieve de manera explícita el carácter político de la educación, en tanto
instancia fundamental de la producción social de la normalidad. Suzanne
Luhmann (1998, p. 151) ha señalado, en efecto, que una pedagogía queer
“mira con escepticismo el proceso de cómo se construyen las identidades y
(...) pasa a preocuparse por las exclusiones inmanentes de la normalidad”.
Asimismo, en relación a lo identitario, una pedagogía y un currículum queer
“estarían dirigidos al proceso de producción de las diferencias y trabajarían,
centralmente, con la inestabilidad y la precariedad de todas las identidades”
(LOURO, 2001, p. 16). Siguiendo esta misma linea de sentido, Deborah
Britzman (2002, p. 200), en su propuesta queer o “transgresora”, nos insta a
imaginar una pedagogía “preparada para superar el sujeto duplicado
foucaultiano: 'sujeto a otra persona mediante el control y la dependencia, y
sujeto a su propia identidad mediante una conciencia o autoconocimiento'”. Y
detalla que “aunque pueda resultar difícil concebir el autoconocimiento como
un espacio de dominio, la mayor parte de mi argumentación pretende
desestabilizar los viejos principios del yo instituido por la educación: alterar el
mito de la normalidad como estado original y alterar el sujeto unitario de la
pedagogía” (BRITZMAN, 2002, p.200). En un intento de profundización y
complejización de estos argumentos, puede resultar fructífero el abordaje del
planteo que realiza Britzman en articulación con una lectura del propio
Foucault, junto a algunos aportes de Butler.
En el texto que cita Britzman (“El sujeto y el poder”), Foucault
planteaba un análisis retrospectivo de su trabajo, señalando que sus esfuerzos
habían estado centrados no tanto en el poder sino en la cuestión del sujeto. Es
precisamente en este punto donde aparecen algunos aportes relevantes de su
trabajo para la discusión de una pedagogía queer. En una conferencia ofrecida
en 1978, publicada con el título “¿Qué es la crítica?”, Foucault (1995, p. 8)
69Germán S. M. Torresn. 07 | 2012 | p. 63-79
ponía nuevamente el acento sobre el nudo entre sujeción, poder y verdad,
especificando su noción de crítica como “el arte de la inservidumbre
voluntaria, el de la indocilidad reflexiva”. Y agregaba que, así entendida, la
crítica “tendría esencialmente por función la desujeción en el juego de lo que
podría denominar, con una palabra, la política de la verdad” (FOUCAULT,
1995, p.8, énfasis añadido). Eso que el autor define como “desujeción” o,
como lo plantea en otra parte del mismo texto, como el “arte de no ser
gobernado” (FOUCAULT, 1995, p. 7) según un juego dado de condiciones
restrictivas y normativas, constituye una fuerte apuesta teórica y política.
Llevada al espacio de la pedagogía y de la educación sexual, esa apuesta tensa
la formación de sujetos idénticos a sí mismos hacia la formación de identidades
abiertas y necesariamente indeterminadas. En este punto, una pedagogía
queer, antes que plantear a la autonomía, la consciencia, la coherencia, la
fijeza y la unidad como elementos necesarios y deseables de la identidad,
trabajaría sobre un terreno decididamente inestable en el que la producción de
sujetos – sus límites, condiciones y exclusiones – no se plantearía como un
objetivo último y cerrado, sino como un problema constante a la vez que
movilizante. Antes que circunscribir las modalidades y los mecanismos para la
producción del sí mismo, la pedagogía y el currículum queer pondrían de relieve
los condicionamientos que regulan y limitan al sujeto y hacen de la identidad un
ideal regulatorio y normativo. Pero también, y de modo primordial, se
esforzarían por abrir el espacio de la creatividad y la libertad en la construcción
de la identidad en relación con los otros, en una dirección necesariamente
indeterminada, no prescriptiva y abierta al cuestionamiento. Todo ello en el
límite de las mismas matrices de poder que, si bien aparecen como
condicionantes, constituyen también el único lugar posible para la ruptura y el
desplazamiento hacia la agencia, o, en otros términos, para la crítica y la
desujeción.
Esta articulación entre poder, identidad y agencia ha sido abordada por
Butler como una cuestión primordial. En parte heredera de los planteos
foucaultianos, la autora ha emprendido un trabajo deconstructivo del sujeto y la
identidad, no para su supresión, sino en el marco de una genealogía crítica
preocupada por la apertura de nuevos espacios de movilización política. En
Mecanismos psíquicos del poder, atenta al carácter productivo del poder,
Butler (2001, p. 12) señala que éste “no es solamente algo a lo que nos
oponemos, sino también, de manera muy marcada, algo de lo que
dependemos para nuestra existencia y que abrigamos y preservamos en los
seres que somos”. Es en tal sentido que emprende un cuestionamiento en torno
70
1a lo que denomina el “dilema de la [agencia ]” (BUTLER, 2001, p. 24), es
decir, la ambivalencia en la que aparece ubicado el sujeto, que es a la vez efecto
del poder pero que, en virtud de ese mismo poder, aparece como la condición
de posibilidad para la agencia. Unos de los problemas que plantea este dilema
es, en palabras de la autora, “cómo adoptar una actitud de oposición ante el
poder aun reconociendo que toda oposición está comprometida con el mismo
poder al que se opone” (BUTLER, 2001, p. 27). En una relectura del planteo
de Foucault acerca de la crítica y la desujeción, Butler avanza en otro trabajo
sobre estos mismos problemas. Asumiendo que el sujeto se conforma en una
trama de discursos “verdaderos” y relaciones de poder, la autora plantea que la
crítica surge en el medio de “una rasgadura en el tejido de nuestra red
epistemológica” (BUTLER, 2000, p. 3). Es decir, en el momento en el que los
discursos disponibles se vuelven inadecuados o incoherentes para dar cuenta
de nuestras experiencias. Así, en el plano individual, la crítica supone la
pregunta “¿qué, dado el orden contemporáneo de ser, puedo ser?” (BUTLER,
2000, p. 9). A partir de tal interrogante se abre el paso a una forma de
“transformación de sí” crítica que adquiere la forma de un arte, una repetición y
una estilización:
[L]a crítica no puede consistir en un acto singular, ni
pertenecerá exclusivamente al dominio subjetivo, porque se
tratará de la relación estilizada con la exigencia que al
sujeto se le impone. Y el estilo será importante en la medida
en que, como estilo, no está totalmente determinado de
antemano, ya que incorpora la contingencia que en el curso
del tiempo marca los límites de la capacidad de
ordenamiento que tiene el campo en cuestión (BUTLER,
2000, p. 8; énfasis añadidos).
De este modo, la estilización crítica adquiere un carácter performativo,
presentándose tanto como la exposición de los límites de lo inteligible así como
el intento de su desplazamiento y transformación. La performatividad articula
aquí la formación del sujeto con las relaciones de poder que lo posibilitan y
condicionan. Butler (2001, p. 112) plantea que “el sujeto sólo se mantiene
como sujeto mediante una reiteración o rearticulación de sí mismo como tal”.
Pero es ese mismo carácter necesariamente repetitivo – o mejor dicho, iterable
– el que se presenta como una posibilidad de desestabilización. Es decir, como
una posibilidad de crítica en relación a las normas que intentan dictar los
modos de subjetivación posibles: “no hay posibilidad de aceptar o rechazar
En función de la pertinencia y claridad de la explicación, traducimos como “agencia” el término agency que en la traducción al español utilizada aquí figura como “potencia”.
71Germán S. M. Torresn. 07 | 2012 | p. 63-79
una regla sin un yo que se estiliza en respuesta a la exigencia ética que a él se
impone” (BUTLER, 2000, p. 6). Ese “yo” que se estiliza puede emprender una
resistencia performativa a las coacciones del poder, abriéndose paso desde el
sujeto sujetado al poder y a su propia identidad hacia la agencia y la desujeción.
Esta estilización crítica de la identidad se presenta, por tanto, como una
“práctica de libertad” (BUTLER, 2000, p. 7) que surge precisamente en los
límites de lo que se presenta como posible. Pero ésta no debe ser entendida
como una forma de voluntarismo que supone a un sujeto como causa, pues esa
práctica depende fundamentalmente del horizonte de posibilidades regulado
por la matriz de saberes 'verdaderos' en la que tiene lugar. Es decir, que la crítica
“no emana de la libertad innata del alma, sino que se forma en el crisol de un
intercambio particular entre una serie de normas o preceptos (que ya están
ahí) y una estilización de actos (que extiende y reformula esa serie previa de
reglas y preceptos)” (BUTLER, 2000, p. 7). La extensión y reformulación
estilizada de la identidad en el marco de normas que intentan circunscribir los
modos posibles de ser implican para Butler, en definitiva, “actuar con
artisticidad en la coacción” (BUTLER, 2000, p. 13). Pero esa “artisticidad”
performada en condiciones restrictivas no debe opacar que, de modo
primordial, se trata también de una búsqueda de “los límites de esas
condiciones, los momentos en los que esos límites señalan su contingencia y
su transformabilidad” (BUTLER, 2000, p. 10).
La contingencia y posibilidad trasformadora del poder estarían en la
base de una perspectiva educativa queer, emprendida en el momento preciso
en que los enunciados de la educación sexual se muestran frágiles e
insuficientes frente a la proliferación de formas identitarias, corporales y de
deseo que se oponen al ideal prescripto de identidad coherente y
heterosexualidad reproductiva. En el marco de una pedagogía queer se
asumiría al poder no como algo a ser abolido en nombre de algún objetivo
emancipatorio, sino como algo a ser puesto en práctica, reformulado y
desbordado en pos de la ruptura de los límites que recortan el dominio de lo
vivible. Así, en una pedagogía queer la 'identidad' no sería un objetivo a formar
sino algo a poner en riesgo. Si las condiciones en las que la identidad autonóma
y estable del sujeto sexuado se presenta como fin y como supuesto están dadas
por el régimen de heterosexualidad obligatoria, el objetivo de la pedagogía
queer será emprender el camino crítico que avance sobre las obligaciones y
restricciones que buscan imponerse como necesidades y fundamentos para
una existencia vivible. La pedagogía queer no temería a la incoherencia de las
identidades; por el contrario, jugaría en esa superficie indefinida, sin alarmarse
72
por la falta de estabilidad del sí mismo. Eso no significa que prescribiría un
modo de liberación al modo de 'sé incoherente', 'sé inestable' o 'sé queer'. La
estilización performativa de la identidad queer implicaría, antes bien, como lo
plantea David Halperin (2007, p. 83), el desarrollo de “una identidad sin
esencia”. Esto es, una identidad que se construye no como una sustancia
siempre igual a sí misma, sino como “una relación de resistencia” (HALPERIN,
2007, p. 135) frente a las normas, jerarquías y violencias sociales que buscan
definir las formas identitarias posibles, haciendo de la formación del sujeto un
campo decididamente abierto, indeterminado e incalculable.
Educación sexual y cuerpo: de la naturaleza a los placeres
Junto con la identidad, la cuestión del cuerpo constituye otro punto
crucial tanto para la educación sexual como para la apuesta queer. Así como el
'sentido común moderno' dispone al sujeto autónomo, racional y unitario como
fundamento y desiderátum, de igual modo dispone las coordenadas para la
inteligibilidad del cuerpo como una entidad fija, biológica y natural a la vez que
subordinada a la 'mente' dentro de una dicotomía reduccionista. En el proceso
de subjetivación que supone la educación sexual, uno de los objetivos
primordiales de conocimiento y cuidado del sí mismo ha sido, precisamente, el
cuerpo, asumido en su sentido moderno como naturalmente dado, con
determinadas funciones y sujeto a mutación sólo a partir de los cambios
propios de su naturaleza biológica siempre igual a sí misma. Así, han sido
prescriptos como contenidos u objetivos de la educación sexual, entre otros, el
“conocimiento del cuerpo y de los sistemas reproductores apoyados en los
conocimientos biológicos” (GCBA, 2007d, p. 10); o el “saber cómo es, cómo
funciona y cómo va cambiando (…) a medida que crece y adquiere nuevas
funciones” (GCBA, 2007c, p. 12). Ahora bien, el recorte del cuerpo conocible
prescripto por la educación sexual se ha centrado exclusivamente en las
funciones reproductivas del cuerpo. El conocimiento del cuerpo y sus cambios
supone así, por caso, el conocimiento de los “Cambios internos en los varones:
producción de semen. Manifestaciones de esos cambios: erección y
eyaculación. Cambios internos en las mujeres (…). Manifestaciones de estos
cambios: la menarca; la menstruación, frecuencia y duración” (GCBA,
2007b, p. 23); o la “[c]aracterización de la pubertad e identificación de los
cambios puberales. Producción de hormonas femeninas y masculinas”
(GCBA, 2007b, p. 23). Se establece así, en primer lugar, el carácter natural y
biológico del cuerpo y, por tanto, fijo e inmutable. Y, en segundo lugar, se
produce un cuerpo reproductivo o potencialmente reproductivo como condición
73Germán S. M. Torresn. 07 | 2012 | p. 63-79
necesaria. En esta versión de la educación sexual, por tanto, el único cuerpo
que merece ser conocido y cuidado es el cuerpo heterosexual y reproductivo.
La deconstrucción del cuerpo desde la teoría y la política queer ha
partido de la discusión con una parte de la teoría feminista que dio por sentado
el carácter natural, biológico y pasivo del cuerpo frente al carácter social,
cultural y construido del género. Desde la apuesta queer se ha avanzado sobre
esas dicotomías análogas entre naturaleza/cultura, sexo/género,
materia/discurso o fijo/construido, poniendo de relieve los mecanismos de
poder que han configurado la ficción del cuerpo como algo ya dado y anterior a
la cultura y al discurso. En tal sentido, Butler (2005, p. 28) ha señalado que la
“materia” del cuerpo, antes que ser un mero “sitio” o “superficie” sobre la que
se imprimiría la cultura, es el producto de “un proceso de materialización”
regulado por relaciones de poder que ordenan las significaciones en torno a lo
“femenino” y lo “masculino”. Tanto el cuerpo como el sexo o la diferencia sexual
no constituyen meros hechos dados en la naturaleza sino, al decir de Beatriz
Preciado (2002, p. 22), elementos propios de una “tecnología de dominación
heterosocial” a través de la cual no sólo se conmina el cuerpo a lo natural sino
que también se lo reduce a “zonas erógenas en función de una distribución
asimétrica del poder entre los géneros (femenino/masculino)” (PRECIADO,
2002, p.22). A esta regulación normalizante tanto del cuerpo como de la
identidad sexual y de género, Preciado (2008, p. 90) la denomina
programación de género, entendida como una tecnología que parte de la
premisa “un individuo = un cuerpo = un sexo = un género = una sexualidad”
en pos de asegurar “la relación estructural entre la producción de la identidad
de género y la producción de ciertos órganos (en detrimento de otros) como
órganos sexuales y reproductivos” (PRECIADO, 2008, p. 59). La 'naturaleza'
de lo corporal se revela por tanto no como una esencia estática, sino como una
tecnología que regula y organiza un dominio de coherencia heterosexista entre
el cuerpo, el sexo natural, la identidad de género, las prácticas y los deseos
sexuales. Esta coherencia y continuidad impuestas suponen y reconstruyen una
heterosexualidad que aparece como obligatoria, en tanto suprime las posibles
opciones que podrían desestabilizar tal secuencia normalizante.
Al especificar los cuerpos de varones y mujeres en el marco de la
educación sexual, han sido ciertas funciones, partes y órganos – y no otros – los
que fueron recortados como definitorios de lo sexual. Pero esa 'descripción' de lo
natural y corporal no es más que una imposición que regula el dominio legítimo
y normalizado de los cuerpos, los géneros y las sexualidades. A este mismo
respecto Butler sostiene que:
74
Se afirma que los placeres radican en el pene, la vagina y
los senos o que surgen de ellos, pero tales descripciones
pertenecen a un cuerpo que ya ha sido construido o
naturalizado como concerniente a un género específico. Es
decir, algunas partes del cuerpo se transforman en puntos
concebibles de placer justamente porque responden a un
ideal normativo de un cuerpo con género específico. (...)
Qué placeres se despertarán y cuáles permanecerán
dormidos normalmente en una cuestión a la que recurren
las prácticas legitimadoras de la formación de la identidad
que se originan dentro de la matriz de las normas de género
(BUTLER, 2007, p. 158-159).
En esta misma linea de sentido, Preciado (2002, p. 105-106) señala
que “los órganos sexuales no son solamente 'órganos reproductores', en el
sentido de que permiten la reproducción sexual de la especie, sino que son
también, y sobre todo, 'órganos productores' de la coherencia del cuerpo como
propiamente 'humano'”. Aquí, lo propiamente humano remite, en un sentido
muy importante, al campo de lo inteligible en materia de cuerpos, identidades,
prácticas, deseos y placeres sexuales. La especificación de determinadas
partes u órganos como propiamente sexuales no sólo opera sobre la definición
de lo 'verdaderamente' masculino y femenino, sino que también impone una
única dirección posible en el terreno de la sexualidad: la heterosexualidad. Esta
matriz no sólo se impone sobre aquellos individuos cuyas vidas y cuerpos no se
reconocen en el ideal regulatorio heterosexista sino que también opera efectos
sobre lo 'femenino', apareciendo asociado a la maternidad como destino
definitorio del cuerpo y la identidad femenina.
La obligatoriedad de la educación sexual abrió un espacio discursivo
que obligó a que el cuerpo fuera enunciado como un fundamento y un objetivo
ineludible en el discurso pedagógico. La educación sexual no sólo ha regulado
las identidades y los cuerpos según una versión hetero-reproductiva.
Fundamentalmente, ha colocado en el terreno de la abyección a una serie de
cuerpos indeseables e inhabitables: los cuerpos de las adolescentes
embarazadas, los cuerpos travestis y trans, los cuerpos violentados por el
aborto insalubre y penalizado, los cuerpos marcados por el racismo y las
distintas formas de homofobia, los cuerpos abusados, los cuerpos con
VIH/SIDA, los cuerpos autoerotizados... Desde ya, estas experiencias
corporales no son equivalentes. Entre ellas, la educación sexual se ha centrado
en el abuso sexual, el embarazo no deseado y el VIH/SIDA. Claramente, los tres
constituyen efectos adversos a erradicar. Pero cuando la educación sexual
75Germán S. M. Torresn. 07 | 2012 | p. 63-79
76
solamente se centra en ellos como instrumento sanitario de prevención frente a
los 'riesgos', 'amenazas' y 'patologías' de la sexualidad, se erige como una
instancia más de normalización que regula lo vivible, haciendo de las
identidades y los cuerpos dominios altamente regulados. Esas experiencias
corporales abyectas son configuradas como monstruosidades ubicadas en el
límite de lo normal. Esto es, como imposibilidades que habilitan y refuerzan la
inteligibilidad del cuerpo femenino y masculino normales: heterosexuales, a la
vez que inocentes, puros y pasivos en la infancia; y, en la adolescencia, fértil,
virgen y fecundable el primero, eyaculador, reproductivo e impenetrable el
segundo.
Frente a este panorama, una perspectiva pedagógica queer debe
avanzar sobre estas regulaciones del cuerpo hacia una crítica que lo arranque
de la 'naturaleza' y lo lleve hacia el terreno del poder y la disputa. En ese terreno,
el cuerpo aparecería como un dominio de intervención posible sólo a partir de la
puesta en juego del poder y el saber, en una estrategia de desbaratamiento de
las normas fundadas en la 'naturaleza' que se invocan como destinos
necesarios. Así, el cuerpo no sería un mero dato, complemento u objeto pasivo
sobre el que se construiría la 'identidad', sino un lugar de manipulación, disfrute
y exploración indeterminada. Tampoco sería un dominio diseccionado y
regulado como íntimo o privado sino, antes bien, un dominio social y político
abierto a la metamorfosis y a la proliferación de placeres. Pero no según una
regulación hedonista de las formas negativas y positivas del placer, sino a partir
de la apertura de un campo de posibilidades corporales cuyos límites no
pueden ser normados de antemano aunque sí elaborados constantemente en
un sentido crítico frente a las violencias y exclusiones que se imponen como
norma. Desde esta misma postura, en un currículum queer la salud aparecería
como una preocupación, pero sólo si está dada en el marco de una
diversificación de placeres y prácticas sexuales y no de los 'riesgos' y 'amenazas'
de la sexualidad hetero-reproductiva. De modo similar, en un currículum queer
el abuso sexual no sería constituido en el único fundamento, vehículo y objetivo
para la enunciación de la sexualidad infantil, sino apenas uno de los aspectos
posibles a abordar en la conformación de las identidades, los cuerpos y los
deseos. La anticoncepción tampoco sería el contenido a enseñar a modo de
'cura' frente a la 'epidemia' de embarazos no planificados, sino una herramienta
más para el disfrute y construcción del propio cuerpo en relación con otros y
otras. En definitiva, en una pedagogía y un currículum queer el cuerpo
aparecería como un dominio de experimentación moldeable e intensificable a la
vez que articulado – y nunca subordinado ni dominado – de maneras diversas
con la construcción crítica de la identidad.
Cuerpos e identidades: de la educación (hetero)sexual a la indeterminación
Este trabajo no es un manifiesto sino un ejercicio – entre otros posibles
– de articulación promiscua de distintos textos. Lo que se planteó aquí como
pedagogía queer podría bien llamarse pedagogía desviada, rara, excéntrica,
disidente... También podría entrar en diálogo o aproximarse a una pedagogía
profana en la que se busca escapar a “la captura social de la subjetividad”
(LARROSA, 2000, p. 42), o a una pedagogía contra-sexual que propone
“maximizar las superficies eróticas” del cuerpo (PRECIADO, 2002, p. 35).
Sus apropiaciones, discusiones o articulaciones ulteriores no pueden ser aquí
dirigidas ni planteadas de antemano, del mismo modo en que las identidades y
los cuerpos a los que se dirige no pueden ser normados y delimitados de manera
concluyente.
La crítica emprendida aquí se da en el contexto tanto de una educación
(hetero)sexual obligatoria erigida sobre el pánico al abuso sexual, la amenaza
del embarazo adolescente y el peligro de las enfermedades de transmisión
sexual, a la vez que vigilada o tergiversada por la Iglesia católica; así como de
una pedagogía de la sexualidad heterosexista que traduce las 'anormalidades'
como insultos, murmullos, rechazos y violencias cotidianas. En este marco,
una perspectiva educativa queer busca emprender una crítica a los modos de
ser y desear en pos de la construcción de un horizonte de posibilidades más
amplio que no pueda ser delimitado con anticipación. La puesta en cuestión de
las normas que rigen la inteligibilidad de la identidad y el cuerpo no implica la
caida en un terreno vaciado de valores éticos, sino la consideración de que esos
valores no pueden ser definidos de manera definitiva sin antes tomar en cuenta
las exclusiones constitutivas sobre las que se construyen. En síntesis,
cuestionar los discursos disponibles para la enunciación 'verdadera' de las
identidades y los cuerpos implica tanto el cuestionamiento de los entramados
de poder que imponen condiciones normalizantes, así como de la apertura de
un campo de experiencias identitarias y corporales indeterminadas que, lejos
de negar al poder, lo asuman como una instancia productiva abierta de modo
necesario a la contingencia en el marco de relaciones colectivas y valores
comunes a ser constantemente construidos y discutidos.
77Germán S. M. Torresn. 07 | 2012 | p. 63-79
78
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79Germán S. M. Torresn. 07 | 2012 | p. 63-79
80
5
Juliana PerucchiProfessora do Programa de Pós-graduação em Psicologia
da Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJFDoutora em Psicologia Social pela
Universidade Federal de Santa Catarina – UFSCjuliana.perucchi@ufjf.edu.br
Para uma análise sobre a incorporação de disposições normativas de prescrição
dos corpos na contemporaneidade
Towards an analysis of the incorporation of
body-regulating dispositions in contemporary times.
82
Resumo
Este ensaio teórico busca analisar as formas por meio das quais certas
regularidades objetivas são “incorporadas” pelas pessoas, de modo a
naturalizar práticas sociais radicalmente contextualizadas e situadas. Para
tanto, articula os conceitos de cuidado de si, de Michel Foucault, e
performatividade, de Judith Butler; em contraponto e diálogo com a noção de
habitus, de Pierre Bourdieu. A análise aponta que a produção de subjetividades
em meio às regularidades objetivas do sistema normativo de sexo/gênero se
converte em um sistema produtor dos corpos e das condutas.
Palavras-chave: Corpos. Cuidado de si. Performance. Habitus.
Abstract
The objective of this paper is to analyze the forms by which certain objective
regularities are spontaneously incorporated by people, in order to naturalize the
social practices radically situated. For so it articulates Foucault's concept of
care the self; and Butler's concept of performance, in contrast and dialogue at
Bourdieu's concept of habitus. The analysis points that the production of
subjectivities amidst objective regularities of normative sex-gender systems
converted onto at produce system of bodies and conduct.
Key-words: Bodies. Care of the self. Performance. Habitus.
Introdução
Propõe-se neste ensaio teórico uma articulação conceitual entre duas
categorias analíticas, a saber, a noção de cuidado de si, de Michel Foucault
(2006b), e a de performatividade, de Judith Butler (1999), as quais permitem
pensar as formas por meio das quais certas regularidades objetivas produzem
subjetividades. Contrapõem-se as perspectivas dessas duas categorias a uma
terceira, que consiste no conceito de habitus (BOURDIEU, 1974), por meio da
qual Pierre Bourdieu se propôs a analisar a incorporação de certas
configurações sociais que possibilitam a construção de condutas e estilos de
vida individuais, orientados por instâncias produtoras de valores culturais e por
referências identitárias, disponíveis na contemporaneidade.
É efetivamente a partir do conceito de cuidado de si, formulado por
Michel Foucault (2006b), que se inicia essa reflexão acerca dos processos
pelos quais certas disposições sociais produzem sujeitos, forjando práticas
corporais que passam a orientar outras práticas, de si sobre si próprio e sobre
outros, criando estilos de vida. É também por meio dele que se vislumbra a
possibilidade de diálogo entre esses três autores, na articulação com as
proposições de Butler e em contraponto e tensão com a perspectiva de
Bourdieu, no desiderato de articular proposições teóricas, nos limites de suas
(in)compatibilidades epistemológicas.
Considerando que a formulação do conceito de cuidado de si permite
problematizar o processo pelo qual o indivíduo transforma-se a fim de alcançar
certo modo de ser, pode-se articular tal categoria analítica à noção de
performatividade, na medida em que ambas remetem a constructos teóricos
que permitem analisar princípios de orientação de práticas.
O uso dos conceitos de cuidado de si e performatividade na reflexão acerca da
prescrição e da autonomia dos corpos na contemporaneidade
Primeiramente, pretende-se iniciar esta reflexão contextualizando a
perspectiva de análise do princípio do cuidado de si, construída por Michel
Foucault em suas últimas obras sobre a História da Sexualidade,
especificamente o segundo e o terceiro volumes (FOUCAULT, 2006a, 2006b). 1Nesses livros, o autor analisa, por meio da hermenêutica do cuidado de si na
Antiguidade e posteriormente nos primeiros tempos da era cristã, o processo que
os sujeitos operam sobre si mesmos de modo a exercitar certo estilo de vida.
83Juliana Perucchin. 07 | 2012 | p. 81-97
1 “Chamemos hermenêutica ao conjunto de conhecimentos e de técnicas que permitem fazer falar os signos e descobrir seu sentido” (FOUCAULT, 2007, p.40).
Concentrando-se na discussão proposta no terceiro volume, pode-se
conjeturar que, sendo a filosofia um modo de vida na Antiguidade clássica, o
fundamento do trabalho do indivíduo sobre si mesmo se dava conforme regras
de condutas preconizadas pela própria Filosofia. Era necessário abrir mão do
supérfluo para então se lançar ao primordial. No entanto, como analisa
Foucault, o primordial apresenta diferentes roupagens na filosofia clássica e,
consequentemente, o princípio do cuidado de si apresenta-se diferentemente
nos diversos contextos históricos da era clássica.
Os modos de vida nos primeiros séculos do Império Romano, por
exemplo, incidiam sobre o cuidado de si, mas esse cuidado adquiriu novas
facetas que o tornaram diferente do de outros períodos. Na filosofia antiga, o
ocupar-se de si era anterior ao conhecer a si mesmo, já na era cristã houve uma
inversão: o conhecimento de si aparece como princípio fundamental, enquanto
que o cuidado de si passa a ser negligenciado como algo imoral, pois a renúncia
de si passa a ser condição para a salvação, não mais no sentido atribuído pelos 2gregos da antiguidade clássica , mas sim no sentido espiritual cristão, em que o
indivíduo convertido abre mão de si mesmo para chegar à verdade. Assim, no
ascetismo cristão, as práticas de cuidado de si remetem a exercícios como os
procedimentos de provação, o exame de consciência e o trabalho do
pensamento sobre si mesmo. Todas essas práticas tinham como preocupação
fundamental a purificação do espírito.
A análise foucaultiana permite afirmar que, no período clássico, o foco
era a relação entre subjetividade e verdade, sendo o cuidado de si o princípio
que estabelece as possibilidades de o sujeito acessar a verdade, mas as
dimensões e as formas modificam-se ao longo do tempo. Enquanto para Platão
a verdade se encontrava no interior do indivíduo e precisava ser revelada por
meio do cuidado de si sobre si mesmo, que marca o ascetismo platônico na
busca da revelação do si por meio do cuidado de si; no ascetismo cristão, o que
conta é o conhecimento de si e a renúncia ao si, a conversão para que uma
outra realidade seja alcançada e revelada: a salvação. O acesso à verdade é,
portanto, diferente.
Nessa digressão contextual em relação às discussões que Foucault
desenvolve na sua genealogia quanto às regulações que se farão sobre a vida
das pessoas por meio das tecnologias de si, percebe-se que a ideia de ocupar-se
84
2 Michel Foucault problematiza o princípio do cuidado de si entre os gregos a partir do discurso em Alcebíades e analisa como foi elaborado, como foi constituindo sua história. Nesse sentido, a “salvação” aparece como uma atividade permanente sobre si mesmo, segundo Foucault, na análise de Alcebíades – salvação como “estar em posse de si”, não com o mesmo sentido que aparece na era cristã.
consigo é bem antiga nas culturas ocidentais e se desdobra atualmente nos
modos de vida de suas sociedades. A análise do princípio do cuidado de si
mostra que tal ideia já estava presente no ideal do cidadão espartano de
treinamento físico e de preparação para a guerra, mas foi com Sócrates que
esse ocupar-se de si ganhou a dimensão de um cuidado de si, adquirindo
paulatinamente as formas de uma verdadeira “cultura de si”.
Por essa expressão é preciso entender que o princípio do
cuidado de si adquiriu um alcance bem geral: o preceito
segundo o qual convém ocupar-se consigo mesmo é em
todo caso um imperativo que circula entre numerosas
doutrinas diferentes; ele também tomou a forma de uma
atitude, de uma maneira de se comportar, impregnou
formas de viver; desenvolveu-se em procedimentos, em
práticas e em receitas que eram refletidas, desenvolvidas,
aperfeiçoadas e ensinadas; ele constituiu assim uma
prática social, dando lugar a relações interindividuais, a
trocas e comunicações, e até mesmo a instituições; ele
proporcionou, enfim, um certo modo de conhecimento e a
elaboração de um saber (FOUCAULT, 2006b, p. 50).
A epimeleia heautou, ou a arte de ocupar-se de si, ultrapassa o
domínio do conhecimento de si, não indicando somente uma preocupação,
mas designando, sobretudo, um conjunto de práticas, de ações por meio das
quais se desenvolve um refinamento da alma com auxílio da razão, para que se
possa levar a melhor vida possível. Já no período helenístico, o cuidado de si
não se configura como um princípio de conhecimento apenas, mas sim uma
prática de cuidado. É um conjunto de exercícios em que o si, ao mesmo tempo
que é cuidado, é produzido. O si é objeto e fim do cuidado. Na virada para a
cultura helenista, o cuidado de si toma novas formas. Ele não se foca mais na
cidade, mas em si mesmo. A articulação entre o cuidado e o conhecimento que
se vê em Alcebíades já não se percebe aqui. A arte de ocupar-se de si remete ao
uso prático de um conjunto de verdades que operam como agentes de uma
modificação, de uma transformação subjetiva.
No estudo em torno da epimeleia, Foucault analisa o vocabulário e as
expressões que designam o cuidado de si e evidencia que a dimensão do
conhecimento de si está num conjunto de expressões que se remetem à
atenção, ao olhar, à percepção; em que o si é o objeto dessa atenção, desse
olhar, mas que, de todo modo, há uma ação, remetendo-se necessariamente a
uma prática. Enquanto que a dimensão do cuidado está voltada para a
conversão e para uma conduta dos corpos, a prática que designa o cuidado de
85Juliana Perucchin. 07 | 2012 | p. 81-97
si produz o sujeito da ação, que toma o “si mesmo” como refúgio, convertendo-
se nele, voltando-se para si mesmo, de sorte que
[...] sería necesario distinguir en el concepto de epimeleia
los aspectos siguientes: En primer lugar, nos encontramos
con que el concepto equivale a una actitud general, a un
determinado modo de enfrentarse al mundo, a un
determinado modo de comportarse, de establecer
relaciones con los otros. [...] En segundo lugar, la epimeleia
heautou es una determinada forma de atención [...] implica
que uno reconvierta su mirada y la desplace desde el
exterior, desde el mundo, y desde los otros, hacia si mismo.
La preocupación por uno mismo implica una cierta forma de
vigilancia sobre lo que uno piensa y sobre lo que acontece
en el pensamiento. En tercer lugar, la epimeleia designa
también uno determinado modo de actuar, una forma de
comportarse que se ejerce sobre uno mismo, a través de la
cual uno se hace cargo de si mismo, se modifica, se purifica,
se transforma o se transfigura. [...] La noción de epimeleia
implica, por último, uno corpus que define una manera de
ser, una actitud, formas de reflexión de un tipo determinado
de tal modo que, dadas sus características específicas,
convierten a esta noción en uno fenómeno de capital
importancia [...] en la historia de las prácticas de la
subjetividad (FOUCAULT, 1987, p. 34-36).
Por meio de sua hermenêutica, Michel Foucault permite-nos uma
constatação: o cuidado de si aparece como preocupação prática de cada
indivíduo durante toda a sua existência e como preocupação de todos os
indivíduos. Na esfera da vida individual, ao longo da existência, o cuidado de si
está vinculado à arte de viver, ao modo de vida do sujeito, na medida em que o
cuidado de si se estende para toda a vida. Foucault aponta para as práticas que
sustentam esse cuidado.
Um aspecto importante indicado por esse autor refere-se à
constatação do cuidado de si como ética universal. Uma consequência do
deslocamento cronológico do cuidado de si é exatamente o fim do privilégio
desse princípio para algumas pessoas (os aristocratas, em Alcebíades, por
exemplo) e sua universalização. Entretanto, as práticas do cuidado de si, em
todas as suas dimensões, dão-se institucionalmente, ou seja, contextualizadas
nas diversas redes de relação, de posições do sujeito. Embora seja evidenciado
como regra universal, o cuidado de si atinge a poucos. Essa forma, presente no
período helenístico, reaparece posteriormente no cristianismo: todos são
chamados, mas poucos os escolhidos.
86
A demanda no período helenista é a generalização do cuidado de si
para todos, algo semelhante ao que se tem hoje. Porém, hoje o cuidado de si
não tem um fim em si mesmo, há outras demandas. Atualmente, o cuidado de
si está em função de demandas produtivas, na medida em que eu cuido de mim
para poder produzir, como também está a serviço das relações familiares, no
sentido de que é necessário (ou pelo menos exigido socialmente) que eu saiba
cuidar de mim para que eu possa ser reconhecido como capaz de cuidar de
alguém. Governo de um, governo dos outros! Entretanto, para além dessas
dimensões, o cuidado de si na contemporaneidade está cada vez mais
vinculado ao individualismo, à preocupação consigo mesmo, à qualidade de
vida e à conduta individual. Essa demanda se processa cada vez com maior
visibilidade nos centros urbanos: produtos e serviços são criados para
atenderem prioritariamente os interesses de pessoas que vivem sozinhas e que
se (pré)ocupam consigo mesmas.
A análise do princípio do cuidado de si aponta para ações que definem
e constroem o sujeito: os tipos de ação levam para a atenção a si mesmo, a
voltar-se a si próprio, a cultuar-se a si, reivindicando-se de diferentes modos.
Remete-se a ações que designam a epimeleia heautou, ações pelas quais se
constituem os sujeitos e seus modos de vida. Foucault remete a um conjunto de
práticas de si, correlato de uma construção de si, que ultrapassa o domínio do
conhecimento.
Ocuparse de uno mismo significa ocuparse de su alma: yo
soy mi alma. [...] Se trata de transferir a una acción hablada
el hilo de una distinción que permitirá aislar, distinguir, al
sujeto de la acción del conjunto de elementos, las palavras,
los ruídos, que constituyen esta acción misma y que le
permiten realizarse. Se trata en suma, si ustedes quieren,
de hacer aparecer al sujeto en su irreductibilidad
(FOUCAULT, 1987, p. 46-47).
O indivíduo age, assim, de modo a operar como sujeito dessa ação em
relação aos códigos prescritivos disponíveis em sua cultura. Porém, vale
lembrar que existem diferentes níveis de consonância para a prescrição. Tais
gradações em relação às formas de prescrição foram denominadas por Foucault
como “substância ética”, que designa os modos como o indivíduo se constitui
enquanto sujeito moral (FOUCAULT, 2006a). Portanto, a forma como o sujeito
estabelece sua relação com tais regras, ou seja, seus modos de sujeição,
constitui-se por meio da elaboração do trabalho ético sobre si mesmo,
caracterizado pela obrigatoriedade de colocar tais regras em prática.
87Juliana Perucchin. 07 | 2012 | p. 81-97
A partir dessa reflexão, permite-se conjeturar acerca da noção de
cuidado de si, princípio norteador da cultura ocidental, como aparece na
contemporaneidade em contraponto e diálogo com a perspectiva de
incorporação de disposições normativas, tendo o corpo como matriz de
inscrição simbólica da cultura, bem como em diálogo e articulação com a
perspectiva do corpo como efeito da repetição citacional dos discursos. São
processos pelos quais subjetividades contemporâneas reclamam para si certas
identidades. Reclamar uma identidade é descrever (por meio de um conjunto
de conhecimentos e de práticas) aquilo que se é, ou aquilo que se faz
reconhecer-se (e ser reconhecido) como sujeito. Não se trata apenas de
conhecer a si mesmo, ou de conhecer o que faz de si um sujeito, mas sim uma
conduta prática de cuidar de si mesmo, a ponto de tornar-se, para si e para os
outros, um sujeito. Reclamar uma identidade é, portanto, exercer um conjunto
de práticas por meio das quais o sujeito se produz, ao mesmo tempo que cuida
de si. Essa produção se dá, fundamentalmente, pelo corpo em relação a certas
disposições sociais, do que se convencionou chamar de sistema sexo/gênero.
Trata-se de um sistema pelo qual se articula um cruzamento
estratégico de dispositivos normativos da sexualidade, de modo a delimitar
binariamente características de masculinidade e de feminilidade,
categorizando e hierarquizando práticas corporais. É pelo sistema sexo/gênero
– que Rubin (1993, p. 2) define como “o conjunto de medidas mediante o qual
a sociedade transforma a sexualidade biológica em produto da atividade
humana e essas necessidades sexuais transformadas são satisfeitas” – que se
estabelece a institucionalização das condutas corporais heteronormativas.
Essa institucionalização, por sua vez, estabelece as regras que fazem funcionar
a regularidade das condutas.
O termo “conduta”, apesar de sua natureza equívoca,
talvez seja um daqueles que melhor permite atingir aquilo
que há de específico nas relações de poder. A conduta é, ao
mesmo tempo, o ato de “conduzir” os outros (segundo
mecanismos de coerção mais ou menos estritos) e a
maneira de se comportar num campo mais ou menos
aberto de possibilidades. O exercício do poder consiste em
“conduzir as condutas” e em ordenar a probabilidade
(FOUCAULT, 1995, p. 243-244).
Analisar as conduções das condutas, ou esse conjunto de
possibilidades de exercícios de poder dos corpos/sobre os corpos, remete-se à
análise dos tipos de ação que leva à atenção a si mesmo, a voltar-se a si mesmo,
a cultuar-se a si mesmo, a reivindicar a si mesmo de acordo com diferentes
88
possibilidades discursivas. Essas possibilidades designam ações pelas quais se
constituem modos de vida, estilos de existência, performances de gênero
reguladas pelo sistema sexo/gênero. Esse sistema, conforme analisa Butler
(1993), configura uma matriz de significado que impede aos corpos uma
formulação alternativa (contra-hegemônica) aos significados de “homem” e
“mulher”, “masculino” e “feminino”. A inteligibilidade desses constructos
vincula-se ao que a autora define como “heterossexualidade compulsória”, ou
seja, a uma instituição social por meio da qual é inteligível apenas uma
classificação binária: homem/mulher, macho/fêmea. Assim, condutas
corporais fora desses limites de inteligibilidade configuram identidades de
gênero aberrantes, estranhas ou, nas palavras de Butler, abjetas.
Desse modo, a condução das condutas, que configuram as práticas de
cuidado de si na sociedade de controle na contemporaneidade, possibilita o
processo de “reconhecimento” de identidades nos limites do sistema de
sexo/gênero, nos parâmetros de inteligibilidade da matriz binária hegemônica e
compulsória. Assim, o gênero – concebido como um conjunto de gestos e
inscrições desempenhados sob a superfície do corpo – institui as fronteiras
desse corpo a partir dos limites do socialmente hegemônico. O sexo é assim
“materializado” pela performatividade dos agentes sociais, sobretudo por meio
de práticas de uso dos prazeres (FOUCAULT, 2006a) que “abrem ou fecham
superfícies ou orifícios à significação erótica”, reinscrevendo as fronteiras do
corpo (BUTLER, 2003, p. 190). A arte da existência “[...] se encontra
dominada pelo princípio segundo o qual é preciso 'ter cuidados consigo', é esse
princípio do cuidado de si que fundamenta a sua necessidade, comanda o seu
desenvolvimento e organiza a sua prática” (FOUCAULT, 2006a, p. 49).
Nesse sentido, as identidades de sexo e de gênero são concebidas
como práticas discursivas (que incidem sobre os corpos, suas condutas e seus
cuidados), sendo os sujeitos “efeitos de um discurso amarrado por regras”
(BUTLER, 2003, p. 208), regras de conduta e de cuidados que compõem o
conjunto de regularidades objetivas dispostas à incorporação.
Modos de falar, de sentar, de olhar, de transar, estilos de vestuário e de
acessórios, isto é, todo um conjunto de posturas e de artefatos – vinculados às
condutas e à circulação dos corpos – configuram um campo disperso de
disposições socioculturais pelas quais se possibilita certo reconhecimento do
sujeito social. A cena social na qual se processam as práticas que compõem os
dramas da vida cotidiana é, portanto, articulada nesse jogo de possibilidades
de incorporação das regularidades objetivas disponíveis. É nesse processo de
construção performativa e cuidadosa dos corpos que a vida social explicita sua
radicalidade.
89Juliana Perucchin. 07 | 2012 | p. 81-97
Porém, nesse mesmo processo também existem possibilidades de
transgressão, como a escolha por certo modo de vida que tem sido, cada vez
mais, expressado por pessoas que, inicialmente, se deparam com a expressão
de suas homossexualidades e que vão gradativamente se derivando para outra
construção da identidade de gênero, caracterizada pelo uso de indumentárias,
vestimentas e adereços, contrários à prescrição de gênero. Essas pessoas se
constituem em subjetividades femininas a partir de um corpo tido como
masculino, construindo novas relações de gêneros, inventando um outro
feminino, como, por exemplo, o feminino travesti (BENEDETTI, 2000). A
articulação entre os conceitos de cuidado de si e a performatividade permite
presumir que tais construções performativas – de si sobre si e sobre outros –,
engendradas pelo sistema normativo sexo-gênero-desejo, não se processam de
modo fixo, nem demarcam os territórios ou produzem os corpos da mesma
maneira, em distintos contextos históricos.
Certas performances – no sentido butleriano –, como as da drag
queen, dos travestis e de outras pessoas transgêneros, demonstram que não
existe coerência natural ou qualquer a priori inato para o sexo, o gênero e a
sexualidade. São, todas, inscrições “flutuantes” na configuração material e
simbólica dos corpos, constructos culturais forjados por repetições de atos
estilizados e de discursos (re)citados. Quanto mais repetidos, mais se dá a
impressão de que são naturais, inatos e a-históricos. Assim, por meio da
repetição de performances, da repetição de práticas que conduzem a conduta,
certos constructos de sexo, gênero e sexualidade são incorporados de forma
não reflexiva, como representações de alguma essência fixa e imutável; de uma
sexualidade naturalmente humana.
As possibilidades de condução das condutas corporais na
contemporaneidade, pelas práticas de cuidado de si e pelas performances
sexuais e de gênero, configuram a inteligibilidade das formas pelas quais os
atributos de masculinidade/feminilidade tornam-se legítimos, enquanto
regulados, gerando padrões identitários relativamente estáveis ou, dito de outro
modo, criando identidades de gênero inteligíveis. Essas “condições de
possibilidade” da emergência de determinados discursos ou formulações de
sexo/gênero, trabalhados por Butler, permitem refletir as formas pelas quais
essas regularidades objetivas orientam práticas individuais, regulam condutas
que, por sua vez, retroalimentam o sistema de manutenção da lógica binária
hegemônica.
É desse modo que elementos culturais que se constituem como
disposições sociais garantem a inteligibilidade de certas formulações do que
seja “masculino” ou “feminino” na estética dos corpos, do que seja “legítimo”
90
ou “ilegítimo” nas relações de gênero, do que seja “normal” ou “anormal” nas
práticas sexuais e, por fim, do que pode ou não ser “reconhecido” como
importante/inteligível. Não se trata, portanto, da mesma natureza daquilo que
Bourdieu define como habitus, ou seja, um conjunto de valores, de princípios,
de orientações que regulam condutas dos sujeitos de modo a torná-los
passíveis de reconhecimento cognitivo. Trata-se, efetivamente, da produção de
algumas vidas inteligíveis e de outras vidas não inteligíveis, de corpos que
importam e de corpos que não importam, vidas e corpos que não são
entendidas/os (no sentido ontológico) como vidas e corpos humanos, ainda que
sejam de pessoas.
Há uma diferença fundamental entre a noção de habitus trabalhada
por Pierre Bourdieu (1974) e a questão da centralidade do corpo nas
concepções de cuidado de si, em Michel Foucault, e de performatividade, em
Judith Butler. No primeiro, o corpo é entendido como matéria-prima de
inscrição simbólica e de materialização da cultura, lócus privilegiado de análise
do sujeito social. Nota-se como essa perspectiva difere radicalmente das
noções cunhadas por Foucault e por Butler, nas quais os corpos não são
superfícies de inscrição simbólica, mas sim, propriamente, produções
discursivas em suas materialidades. Para Bourdieu, o corpo inscreve na pessoa
a radicalidade da construção identitária que se realiza pela estrutura social,
construção da qual o próprio indivíduo não é inteiramente sujeito. Para
Foucault e Butler, a pessoa é, ela mesma, em sua própria materialidade
corporal, efeito das práticas discursivas que a fabricam.
Se o olhar do sociólogo francês volta-se ao habitus, ou seja, a essa
inscrição inapagável que, segundo o autor, se configura como matriz geradora
de práticas e que pode ser definida como “sistema de disposições socialmente
constituídas que, enquanto estruturas estruturadas e estruturantes, constituem
o princípio gerador e unificador do conjunto das práticas e das ideologias
características de um grupo de agentes” (BOURDIEU, 1998, p. 184) a leitura
de Foucault e de Butler leva a analisar outra seara, a dimensão ficcional dessas
narrativas de si, que atribuem a certos conjuntos de práticas uma ideia de
unidade, de identidade coesa.
Vale destacar que o desiderato bourdieusiano que interessa confrontar
nessa reflexão é aquele referente à análise da relação entre o indivíduo e o grupo
social ao qual pertence. Sendo assim, a noção de habitus contempla um
constructo que se propõe a entender como inscrições corporais se processam,
desde muito cedo, de modo a configurar comportamentos. Contudo, tal
conceito articula elementos de outra ordem, que não aqueles mobilizados pelo
conceito de cuidado de si e pela noção de performatividade de gênero, que, por
91Juliana Perucchin. 07 | 2012 | p. 81-97
sua vez, permitem analisar a produção de corpos e vidas (in)inteligíveis. A
distância conceitual do habitus com o princípio do cuidado de si remete ao
olhar, epistemologicamente, diferenciado dos autores, frente às práticas sociais
que tomam os movimentos corporais, as posturas, os gestos, os modos de
higiene, os modos de olhar, de andar, de falar, de comer, de se vestir, enfim,
tudo o que se refere ao corpo.
Considerando que os indivíduos são produzidos desde a mais tenra
infância, pela sociedade de controle e por sua ordem social normalizada por um
sistema de sexo/gênero heteronormativo, entende-se que a leitura de Foucault e
Butler remete-se à tese: discursos habitam corpos. Já pela perspectiva de
Pierre Bourdieu, o habitus de determinado grupo, como resultado histórico e
coletivo, individualiza-se em cada agente social.
Detemo-nos agora nos aspectos que concernem à elaboração de
condutas corporais produzidas por um universo simbólico marcado pela
(in)visibilidade das identidades. Tais aspectos compõem determinado perfil de
construção identitária que pode ser sintetizado em uma configuração de valor
que concatena quatro princípios ético-estéticos: o “assumir”, como estratégia
político-corporal de visibilidade de qualquer orientação sexual; o “ironizar”,
como a estratégia do exagero drag-queen/king, de sátira ao inalcançável ideal
de feminilidade/masculinidade; o “enrustir”, como estratégia político-corporal
de proteção/exclusão; e o “transviar”, como estratégia de reconstrução corporal
inteligível.
Tais princípios configuram os campos de força que atravessam os
processos de produção corporal, definindo leituras de mundo que se expressam
concretamente em condutas de valorização da singularidade individual e de
representação de valores coletivos: de afirmação de diferentes orientações do
desejo sexual como determinante de um estilo de vida; do exagero como
paródia da “normalidade”; da subordinação ao “armário” ou a uma “vida
dupla” como efeito normativo; da redefinição corporal-sexual como não
necessariamente ruptura à norma, nem tendo, em si mesma ou a priori, um
caráter contra-hegemônico de emancipação do sujeito.
As pessoas se enquadram em um determinado universo de valores que 3
encontram nos corpos uma “situação” privilegiada de reprodução da norma.
92
3 Termo que Judith Butler (2003, p. 27) toma emprestado de O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, mas em uma direção diferente da fenomenologia. Como pontua na nota de rodapé de seu livro Problemas de Gênero, Butler critica a manutenção da “relação externa e dualística entre uma imaterialidade significante e a materialidade do próprio corpo” (p.217). Neste sentido, se o corpo é uma situação “não há como recorrer a um corpo que já não tenha sido sempre interpretado por meio de significados culturais” (Butler, 2003, p. 27).
Portanto, é dentro desses marcos que devemos analisar os processos de
construção de identidades corporalmente vivenciadas. No âmbito das
experiências corporais – reguladas por certas disposições socioculturais acerca
de como se deve cuidar de si –, as construções identitárias são orientadas
discursivamente pela condução das condutas nos limites do inteligível. “A
alma, efeito e instrumento de uma anatomia política; alma, prisão do corpo”
(FOUCAULT, 1997, p. 32). Nessa perspectiva, como destaca Judith Butler, a
constituição do sujeito depende da subordinação e da destruição do corpo. A
partir da dependência do outro que condiciona e sustenta o desejo de existir, o
sujeito se constitui reiteradamente ao longo da vida, por meio do cuidado de si
mesmo. A repetição é a forma de reinstalação do poder que submete o sujeito à
captura identitária, e o diálogo conceitual estabelecido, neste ensaio, entre
Michel Foucault e Judith Butler permite partir do pressuposto de que a
condição de assujeitamento possibilita a emergência do sujeito.
Nesse sentido, problematizam-se as estratégias pelas quais a
regulação social estabelece que o sujeito possa ser ou homem, ou mulher.
Como o sujeito somente pode emergir a partir da condição de assujeitamento,
passa a reconhecer-se, exclusivamente, em algum desses dois lugares. Assim,
ao se analisar o “transviar” como estratégia de reconstrução corporal
(in)inteligível, propõe-se a reflexão acerca de como, por exemplo, um corpo
travesti, ao mesmo tempo que metaforiza um desvio à norma, subordina-se a
ela, uma vez que traduz tanto certa resistência ao assujeitamento da cultura
que designa ao corpo do macho um gênero masculino quanto se submete a
certo assujeitamento à identidade de gênero feminino, sem romper com a
norma de gênero hierarquizada. São expressivas as experiências “transviadas”
que ancoram identidades de gênero a diferenças sexuais anatômicas,
reduzindo possibilidades de emergência de sujeitos contra-hegemônicos por
meio da reprodução dualista da constituição dos gêneros.
A estratégia político-corporal de proteção/exclusão aqui denominada
como “enrustir” também traduz esse paradoxo frente à norma. Assim como o
“assumir” implica estratégia político-corporal de visibilidade de qualquer
orientação sexual, o “enrustir” remete-se ao jogo entre fazer invisível ou deixar
visível alguma orientação do desejo sexual. Tanto um quanto outro, nos limites
desses termos, constituem-se no paradoxo da possibilidade de subversão e da
subordinação à norma. Nesse sentido, as proposições de Sedgwick (2007, p.
28-29) são esclarecedoras:
Acredito que todo um conjunto das posições mais cruciais
para a contestação do significado na cultura ocidental do
século XX está consequente e indelevelmente marcado pela
93Juliana Perucchin. 07 | 2012 | p. 81-97
94
e s p e c i f i c i d a d e h i s t ó r i c a d a d e f i n i ç ã o
homossocial/homossexual, particularmente, mas não
exclusivamente, masculina, desde mais ou menos a virada
do século. Entre essas posições figuram, como já indiquei, os
pares segredo/revelação e privado/público. Ao lado desses
pares epistemologicamente carregados, e às vezes através
deles, condensados nas figuras do “armário” e do “assumir-
se”, essa crise específica de definição marcou por sua vez
outros pares tão básicos para a organização cultural
moderna, como masculino/feminino, maioria/minoria,
inocência/iniciação, natural/artificial, novo/velho,
crescimento/decadência, urbano/provinciano, saúde/doença,
mesmo/diferente, cognição/paranoia, arte/kitsch,
sinceridade/sentimentalidade e voluntariedade/dependência.
Tão espalhada tem sido a mancha dispersa da crise do
homo/heterossexual que discutir quaisquer desses índices
em qualquer contexto, sem uma análise anti-homofóbica,
acabaria, talvez, por perpetuar compulsões implícitas em
cada um deles sem o saber.
A reflexão da autora leva a pensar como a díade segredo/revelação é
constitutiva do que chamamos hoje homossexualidade. Se trouxermos à baila,
outra vez, a experiência travesti, constata-se que esta encena e revela a paródia
dos gêneros, uma vez que, não existindo uma origem ligada ao corpo biológico,
concebe-se a necessidade da destruição desse corpo, que, investido de poder,
dá condições à emergência de um sujeito.
Uma manifestação, até certo ponto, caricata dos aspectos que
concernem à elaboração de condutas corporais produzidas por um universo
simbólico marcado pela (in)visibilidade das identidades, contempla o
“ironizar” e sua estratégia do exagero e da sátira ao inalcançável ideal de
feminilidade/masculinidade. O carnaval, nesse contexto, representa certa
ironia com situações de transgressão da norma dentro dela mesma,
constituindo-se simultaneamente restritivo e liberador. Contudo, ironizar pode
tomar também um outro sentido mais estratégico, talvez no que se refere à
brincadeira e ao jogo com representações da natureza e do artifício,
desestabilizando a distinção entre falso e verdadeiro, entre corpos e
tecnologias, entre órgãos sexuais e práticas de sexo.
Nesse sentido, e sem alongar por mais tempo a explanação neste texto
ou propor qualquer aprofundamento necessário, aqui, vale destacar o debate
crítico que Beatriz Preciado estabelece com as proposições de Judith Butler,
como o lançado na entrevista concedida a Jesús Carrillo:
Los análisis queer ortodoxos en términos de género como
performance me parecen insuficientes para entender los
procesos de incorporación de sexo y de género. Al acentuar
la posibilidad de cruzar los géneros a través de la
performance teatral, Gender Trouble (1990), el texto
canónico de la teoría queer, habría subestimado los
procesos corporales y especialmente las transformaciones
sexuales presentes en los cuerpos transexuales y
transgenéricos, pero también las técnicas estandarizadas
de estabilización de género y de sexo que operan en los
cuerpos “normales”. Precisamente por ello, las primeras
críticas frente a esta formulación de identidad en términos
de parodia o drag surgieron desde las comunidades
transgenéricas y transexuales. Aunque es cierto que en sus
libros posteriores hasta llegar al más reciente – Undoing
Gender (2004) –, Judith Butler se ha esforzado por restituir
los “cuerpos” que habían quedado diluidos entre efectos
paródicos y performatividad linguística. [...] Podemos decir
que se han abierto al menos dos espacios de
conceptualización: uno dominado por nociones
performativas cuyo impacto ha sido de especial relevancia
en el ámbito estético, y otro de corte biopolítico, en el que se
perfila una nueva definición del cuerpo y de la vida. Lo que
la crítica transgenérica ha puesto sobre la mesa no so n
yaperformances, sino transformaciones corporales físicas,
sexuales, sociales y políticas que ocurren no en el escenario,
sino en el espacio público (CARRILLO, 2007, p. 381-382).
Uma dimensão do problema envolve a redução da cultura à mera
natureza performativa paródica da identidade de gênero, naquilo que Sedgwick
problematizou: certa incapacidade da formulação de identidade em termos de
paródia para explicar a produção da beleza, a economia do estilístico, o prazer
de inventar e criar estratégias de sobrevivência, que ocorrem em experiências
transexuais. A análise de Preciado (2011) acrescenta uma reflexão pertinente
com a inserção da análise da “sexopolítica”, retomando Foucault, para
investigar como
o sexo (os órgãos chamados “sexuais”, as práticas sexuais e
também os códigos da masculinidade e da feminilidade, as
identidades sexuais normais e desviantes) faz parte dos
cálculos do poder, fazendo dos discursos sobre o sexo e as
tecnologias de normalização das identidades sexuais um
agente de controle sobre a vida (PRECIADO, 2011, p. 11).
95Juliana Perucchin. 07 | 2012 | p. 81-97
96
Considerações finais
A articulação conceitual dos três constructos teóricos trabalhados
neste ensaio permite problematizar contextos de (in)visibilidade das
identidades socialmente vividas, sem reduzir o indivíduo a um reprodutor das
estruturas sociais, tampouco à figura de um agente plenamente livre em suas
escolhas ou independente das contingências sociais. Desse modo, pode-se
conjeturar que a construção das identidades sexuais e de gênero,
corporalmente vivenciadas, processa essa capacidade performática de
produção de diferentes sentidos do mundo social e de diferentes práticas de si,
que se concatenam em determinados estilos de vida coletivos.
Assim, à guisa de conclusão, para além da prescrição
feminilidade/masculinidade, legítimo/ilegítimo, normal/anormal, comum à
estética dos corpos (nas roupas, nos gestos, nas práticas sexuais etc.), a
produção de corpos em meio às regularidades objetivas do sistema sexo/gênero
– heteronormativo e binário – tem como efeito a construção performativa e
cuidadosa de sujeitos, por si mesmos e pelos outros.
Referências
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97Juliana Perucchin. 07 | 2012 | p. 81-97
98
6
Luiz MelloProfessor da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás (UFG)
Pesquisador do Ser-Tão, Núcleo de Estudos e Pesquisas em Gênero e Sexualidade da UFGluizman@gmail.com
Fátima FreitasPesquisadora do Ser-tão, Núcleo de Estudos e Pesquisas em Gênero e Sexualidade da UFG
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da UFGfatimareginaalmeida@gmail.com
Cláudio PedrosaProfessor do Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC/GO)
Mestre em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP)claudiohpedrosa@yahoo.com.br
Walderes BritoConsultor em relacionamento com stakeholders
Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) da UFGMestre em Comunicação pela UFG
waldbrito@gmail.com
Para além de um kit anti-homofobia: políticas públicas de educação para a população LGBT no Brasil
Beyond an anti-homofobic kit: public policies on education for the LGBT population in Brazil
100
Resumo
A escola costuma ser um dos primeiros espaços onde pessoas que subvertem as normas
de gênero são humilhadas. Frequentemente, isso é reforçado pela LGBTfobia das/os
profissionais de ensino e/ou por sua falta de preparo para tomar os direitos sexuais como
tema motivador de processos educativos comprometidos com a equidade sexual e a
justiça erótica. Recentemente, políticas públicas começaram a ser implementadas para
superar esse quadro, na forma de ações como a oferta de cursos para professoras/es, a
confecção de material didático, a inclusão desse tema em conferências nacionais de
educação e semelhantes, entre outras iniciativas. Neste artigo, procuramos refletir sobre
os limites e as possibilidades dessas iniciativas a partir da análise de documentos
governamentais e de entrevistas com gestoras/es e representantes da sociedade civil.
Palavras-chave: Educação. LGBT. Políticas públicas. Cidadania. Sexualidades. Brasil.
Abstract
The school is generally one of the first places where people who subvert the gender rules
are humiliated. Frequently, this is enhanced by LGBTphobic education professionals
and/or their lack of preparation to adopt sexual rights as a motivational theme in
educational processes committed to sexual equity and erotic justice. Recently, public
policies started being implemented to overcome this situation, in the concrete form of
actions such as offering teacher training courses, developing didactic material, and
including this theme in national conferences on education and similar subjects, among
other initiatives. In this article, we aim at reflecting on the limitations and possibilities of
these initiatives, based on the analysis of governmental documents and interviews with
public sector managers and civil society representatives.
Key-words: Education. LGBT. Public policies. Citizenship. Sexualities. Brazil.
Notas metodológicas preliminares
Antes de iniciar o texto propriamente dito, queremos destacar três
opções teórico-metodológicas e políticas que pautaram a nossa escrita. Em
primeiro lugar, invertemos deliberadamente a regra gramatical que define o
masculino como elemento neutro e adotamos o feminino como referência
constante, independentemente do sexo dos sujeitos referidos. Adjetivos e
substantivos masculinos, em nossa convenção, passam a ser o termo
particular, usados apenas para se referir a pessoas do sexo masculino, quando
no singular. Provavelmente, o estranhamento inicial decorrente dessa
feminização da escrita e insurreição contra o androcentrismo linguístico
passará após algumas poucas páginas de leitura.
A segunda opção se materializa na utilização aleatória da ordem das
letras que compõem a sigla LGBT, a qual assume, nos textos aqui
apresentados, a forma GLBT, TLBG, BTGL e outras. Entendemos que os grupos
organizados de travestis, transexuais, lésbicas, gays e bissexuais no Brasil
passam por um momento de forte afirmação de suas demandas na arena
política, ao mesmo tempo que são aliados em permanente disputa identitária e
de poder, a despeito de se apresentarem e de serem socialmente vistos como
um movimento social unificado. Mais que privilegiar uma ordem fixa e rígida de
letras na sigla, o que poderia gerar o entendimento de que as demandas de uns
grupos são mais importantes ou prioritárias que as de outros, utilizamos o
conjunto de letras B, G, L e T em qualquer sequência, como marcador
identitário desse coletivo de grupos sociossexuais, sem que se estabeleçam
hierarquias ou subordinações entre eles. No caso de nomes de eventos,
documentos, grupos da sociedade civil ou órgãos de governo, a sigla será
sempre apresentada no formato utilizado pelas instâncias responsáveis.
Por fim, em vez de homofobia utilizamos nos textos a expressão
LGBTfobia – e suas variantes GLBTfobia, TLBGfobia, BTGLfobia, entre outras.
A intenção é explicitar que o preconceito, a discriminação, a intolerância e o
ódio que atingem travestis, transexuais, lésbicas, gays e bissexuais possuem
em comum o fato de esses segmentos sociais questionarem a ordem sexual e de
gênero de maneiras afins, mas diferentes. O que se pretende com essa opção é
sublinhar que a intolerância social em relação à homossexualidade masculina
(ideia implícita à noção de homofobia) não é da mesma ordem que a
intolerância que atinge lésbicas (oprimidas por uma lesbofobia que, além de
homofóbica, é machista e sexista), nem do repúdio que sistematicamente
atinge travestis e transexuais, cujas existências ferem de morte os binarismos
macho-fêmea, homem-mulher, o que as torna vítimas preferenciais do
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Luiz Mello | Fátima FreitasCláudio Pedrosa | Walderes Brito
terrorismo de gênero. Optamos por LGBTfobia (e variantes da sigla), ainda,
para evitar o uso repetitivo das expressões lesbofobia, transfobia, travestifobia,
gayfobia e bifobia, o que cansaria a leitora. Resta-nos dizer que a adoção do
sufixo “fobia” para caracterizar qualquer modalidade de preconceito e
discriminação sexual e de gênero parece-nos limitada, já que reforça um
discurso biológico e patologizante, quando se sabe que os fundamentos das
disputas de poder entre grupos diversos, inclusive sexuais, são claramente de
ordem social, política, cultural e econômica. Porém, essa discussão está além
dos objetivos que motivaram a produção deste paper e, na falta de alternativa
melhor, também recorremos à ideia de que a aversão e o ódio contra a
população LGBT possuem um componente fóbico. Manteremos o uso de
homofobia em vez de LGBTfobia e variantes sempre que a expressão integrar
nomes de eventos ou for referida em documentos citados e entrevistas
realizadas com gestoras e ativistas no contexto da pesquisa.
Além dessas notas preliminares e das breves considerações iniciais no
próximo tópico, este texto estrutura-se em duas outras seções. Na primeira, são
apresentadas ações do governo, na área da educação, voltadas ao combate à
LGBTfobia e à promoção da cidadania e dos direitos humanos da população
TGBL, já implementadas e em desenvolvimento, enquanto na segunda são
propostas algumas considerações de cunho analítico, na tentativa de ponderar
avanços, limites e impasses das discussões e práticas a respeito de pessoas
TBGL no espaço escolar.
Como educar quem educa?
Este texto tem como tema as políticas públicas de educação voltadas
para a população LGBT e reúne parte dos resultados dos projetos de pesquisa
“Políticas públicas para a população LGBT no Brasil: um mapeamento crítico
preliminar” e “Políticas públicas para a população LGBTT: mapeamento de 1iniciativas exemplares para o estado de Goiás” , desenvolvidos no âmbito do
Ser-Tão, Núcleo de Estudos e Pesquisas em Gênero e Sexualidade da
Universidade Federal de Goiás. Ao longo da pesquisa, foram aplicados
questionários e realizadas entrevistas com 52 gestoras públicas que atuam nas
esferas federal, estadual e municipal, em ministérios/secretarias que
desenvolvem ações/programas/projetos que buscam garantir a cidadania e os
direitos humanos de pessoas TLGB, assim como entrevistas com 43
102
1 Esses projetos contaram com o apoio financeiro da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (FAPEG), respectivamente. O relatório das pesquisas está disponível em: <www.sertao.ufg.br/politicaslgbt>.
representantes da sociedade civil que atuam na mesma área. Para o
mapeamento preliminar das políticas públicas voltadas para essa população,
foram priorizadas seis áreas de atuação governamental: educação, saúde,
segurança, trabalho, assistência social e previdência social. O levantamento de
dados foi realizado no Distrito Federal e em nove estados, distribuídos nas cinco
regiões geográficas do país: Amazonas, Ceará, Goiás, Pará, Paraná, Piauí, Rio
de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo. Das 52 gestoras entrevistadas, 16
estavam vinculadas a órgãos de políticas especificamente voltadas a pessoas
LGBT, como coordenadorias/coordenações/núcleos, nos três níveis de governo,
enquanto 36 representavam órgãos com atuação setorial em uma das áreas
privilegiadas na pesquisa. Desse total, dez eram gestoras vinculadas à área de
educação, sete das quais atuantes na esfera estadual e três, na federal.
Um dos conceitos que está na base da pesquisa é que o estudo das
políticas públicas constitui um campo de conhecimento que busca
compreender o “Estado em ação”, analisar essa ação e propor mudanças, caso
seja necessário – e possível (HOFLING, 2001; SOUZA, 2006). A partir daí,
podemos refletir sobre os diversos interesses em jogo na formulação,
implementação, monitoramento e avaliação dessas políticas. Somente quando
essas múltiplas esferas de ação são pensadas conjuntamente é possível
compreender os caminhos pelos quais as iniciativas saem – ou não – do papel e
como as pessoas, para quem as políticas foram pensadas, terão acesso a elas.
Nesse contexto, é também fundamental que o olhar alcance a complexa relação
entre governo e sociedade civil na negociação dessas políticas.
Para a análise das políticas públicas no foco deste texto, tomamos
como ponto de partida o conceito de educação, que consta no art. 1º da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação (LDB), de 1996: “A educação abrange os
processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência
humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos
sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais”. Em
outras palavras, a educação é uma área que perpassa toda a sociedade e que
não está restrita apenas à escola. Por questões metodológicas, entretanto,
nesta pesquisa, assim como na LDB (por outras motivações), o foco é a
educação escolar, envolvendo alunas, professoras, gestoras e comunidade.
Assumido esse enfoque escolar, buscamos, então, mapear ações e programas
promovidos pelo Ministério da Educação, geralmente por meio da Secretaria de
Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad) e por secretarias
estaduais e municipais de educação que conduzem ou que participam de
políticas públicas para a população LGBT.
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A essa altura, alguns pressupostos que fundamentaram o
desenvolvimento de nossa pesquisa precisam ser explicitados, ainda que não
esgotem os argumentos metodológicos sobre a relevância deste estudo. Em
primeiro lugar, em consonância com a opção por enfatizar os processos
educacionais característicos da instituição escolar, entendemos que escola é
um espaço onde diversas concepções de mundo, ideologicamente
estruturadas, estão em disputa, não sendo apenas um aparelho do Estado,
reprodutor dos interesses da classe dominante (ALTHUSSER, 1985). Também
pensamos que a escola não é um lugar onde somente devam ser ensinados
conteúdos como matemática, ciências, português, mas onde se pode aprender
sobre cidadania bem como se pode exercitar a convivência e o respeito – e não
apenas a tolerância – à diferença. Enfim, consideramos a escola um espaço
profundamente significativo para a construção das subjetividades em nossa
sociedade. Em segundo lugar, entendemos a sexualidade como uma
construção social constitutiva da experiência humana, que em nossa sociedade
é elemento-chave para a formação das subjetividades. Desse modo, devido à
importância dos processos educacionais na construção das subjetividades, a
escola deve estar preparada também para orientar as alunas a viverem em um
mundo plural, onde práticas e desejos sexuais diferentes sejam possíveis e
igualmente respeitados.
Ainda como afirmação de uma posição ética, articulada a uma
preocupação técnica, apontamos a necessidade de capacitação para que
profissionais de educação e gestoras públicas possam/consigam lidar com a
diversidade – étnico-racial, religiosa e, especialmente, no âmbito da
sexualidade, entre outras –, pois uma constatação que surge na maioria
absoluta das entrevistas realizadas é que aquelas profissionais não estão
“preparadas” – qualificadas e sensibilizadas – para lidar com esses temas e por
isso se calam diante de tantos atos de preconceito e discriminação, como
afirma uma gestora federal:
Eu acho que entre os principais problemas reside mesmo a
sensibilidade e a qualificação dos profissionais, os gestores
de maneira geral pra atuarem nesse campo. Acho que é
necessário de uma maneira geral expandir essa discussão
tão importante que é o combate à homofobia pros
diferentes atores, ah... e gestores das políticas públicas [...]
Esse é um dos principais problemas, que é de fato a pouca
qualificação e pouca sensibilidade de alguns profissionais
pra estarem acolhendo essa demanda no processo de
formulação e de implementação das políticas públicas.
104
Saindo do armário e do papel
Na pesquisa, foram identificados dois cursos como instrumentos de
capacitação de professoras na temática em discussão, propostos pelo Governo
Federal em parceria com estados e municípios: Saúde e prevenção nas escolas
(SPE) e Gênero e diversidade na escola (GDE). Ambos passaram a ser ofertados
em 2006, último ano do primeiro mandato do presidente Lula. Se houve cursos
dessa natureza em anos anteriores, o silenciamento das pessoas entrevistadas
a respeito deles pode indicar baixo alcance, descontinuidade ou simples
inexistência.
O Saúde e prevenção nas escolas foi criado pelos Ministérios da
Educação e da Saúde, com o apoio da Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), do Fundo das Nações Unidas para
a Infância (UNICEF) e do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA). O
projeto pretende integrar saúde e educação com o objetivo de “transformar os
contextos de vulnerabilidade que expõem adolescentes e jovens à infecção pelo
HIV e à aids, a outras doenças de transmissão sexual e à gravidez não
planejada” (BRASIL, 2006b, p. 17). Esse projeto é realizado conjuntamente
pelas secretarias estaduais/municipais de educação e saúde nos estados, por
meio da promoção de cursos de formação de profissionais nas escolas. O curso
é dividido em unidades e as unidades em oficinas. A despeito da forte ênfase
em questões relacionadas à saúde sexual e reprodutiva, na unidade “A
sexualidade na vida humana”, há duas oficinas que tratam diretamente do
tema orientação sexual: “A orientação sexual do desejo” e “Homossexualidade
na escola”.
Além de uma gestora federal, gestoras de cinco das dez unidades da
federação pesquisadas mencionaram o projeto “Saúde e prevenção na escola”
entre as ações do governo que estão em desenvolvimento, embora uma das
entrevistadas tenha enfatizado o problema da escala dessa implementação:
Num primeiro momento foram abertas 600 vagas, mas
num universo de 70.000 professores, 600 vagas não faz
nem cócegas. Pra você ter cara de política pública tem que
ter um investimento do Governo Estadual de um lado, a
contrapartida, e investimento do Governo Federal no
sentido de ampliar a ação, já que é um curso a distância. Na
verdade é um curso semipresencial, tem 170 horas a
distância e 30 presenciais. Então, vai formar 1500
professores da rede estadual. E a contrapartida do estado
são as formações presenciais. A gente vai entrar com a
docência, que é feito pelos próprios militantes (teremos um
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docente que é um professor transexual, outra, uma lésbica,
então são todos de caráter afirmativo, pessoas que não só
têm o conteúdo acadêmico, mas vivenciam as
experiências).
Já o curso Gênero e diversidade na escola: formação de
professoras/es em Gênero, Orientação Sexual e Relações Étnico-Raciais
também foi ofertado pela primeira vez em 2006, como um projeto piloto
resultante da parceria entre a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres
(SPM), o Ministério da Educação, a Secretaria Especial de Políticas de
Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), o British Council e o Centro Latino-
Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM/UERJ), nas seguintes
cidades: Niterói e Nova Iguaçu/RJ, Maringá/PR, Dourados/MS, Porto Velho/RO
e Salvador/BA. O conjunto de conteúdos do curso, como seu próprio subtítulo
indica, aborda os temas gênero, sexualidades e relações étnico-raciais e tem
como objetivo principal contribuir para a formação continuada de profissionais
de educação da rede pública de ensino acerca dessas três questões, tratadas
articuladamente. O curso faz parte da modalidade semipresencial, com carga
horária de 200 horas – destas, 24 são presencias e 176 a distância –, e tem em
sua estrutura unidades que abordam “Sexualidade, direitos e educação” e
“Sexualidade no cotidiano escolar”.
Em 2008, o projeto foi ampliado, a partir de parceria com a Rede de
Educação para a Diversidade, que reúne várias instituições públicas de
educação superior dedicadas à formação continuada semipresencial. Foram
selecionadas 19 instituições de ensino superior que passaram a oferecer
formação nessa modalidade, totalizando 13.000 vagas e um investimento de
aproximadamente R$ 9.000.000,00. Em 2009, o Ministério da Educação
abriu edital para universidades que tivessem interesse em disponibilizar o
curso, o qual passou a ser ofertado como extensão (carga horária de 200 horas)
e também como especialização (380 horas). Foram selecionadas as propostas
de mais nove IES, que ofereceram cerca de 6.500 vagas, com um investimento
de aproximadamente R$ 5.000.000,00. Em 2010, o GDE também foi
ofertado como curso de extensão e especialização, por nove IES, 2correspondendo a 3.500 vagas .
Nas entrevistas, esse curso foi comentado por gestoras e ativistas de
quatro das dez unidades da federação entrevistadas, com destaque para o
106
2 Para informações sobre as iniciativas do Ministério da Educação relativas ao combate à LGBTfobia, ver Relatório de Monitoramento das Ações do Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais – PNPCDH-LGBT.
alcance de número relativamente alto de professoras e para o fato de ser uma
ação conjunta entre órgãos e instâncias de governo, oferecendo formação em
gênero e sexualidade para um público variado. Nas palavras de uma gestora e
de uma representante da sociedade civil entrevistadas:
Temos parceria com a Rede Nacional de Jovens Vivendo e
Convivendo com HIV/Aids. Então eles estão formulando uns
projetos pra serem implementados nas escolas em termos
de prevenção de DST/aids e de forma a tentar diminuir a
discriminação. Por exemplo, o grupo tá participando agora
de um curso que é “Gênero e diversidade na escola”, que
também envolve essa questão de estar diminuindo nas
escolas esse impacto da discriminação.
Na área da educação, nós estamos envolvidos num projeto
que articula governo estadual e governo federal, né? Que é o
“Gênero e diversidade na escola”. A gente desenvolveu
esse, esse projeto, todo esse conteúdo, é um curso online,
né? Foi desenvolvido numa interlocução a pedido da
Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, mas já
uma articulação com a SEPPIR e com o MEC. Esse curso foi
desenvolvido em 2006, foi testado um projeto piloto em
seis capitais e depois a gente revisou o material, os
conteúdos. Aí o MEC incorporou esse curso na Universidade
Aberta do Brasil, na UAB, e abriu para universidades
brasileiras, né?
Além dos cursos, especialmente a partir de 2007, o Governo Federal
também estimulou a discussão sobre enfrentamento do preconceito e da
discriminação relativos à orientação sexual e à identidade de gênero na escola
por meio da publicação de livros a respeito dessa temática. Um dos principais
materiais identificados nesta pesquisa é o volume dos Cadernos Secad,
intitulado Gênero e diversidade sexual na escola: reconhecer diferenças e
superar preconceitos. Produzida em 2007, a publicação faz parte de um
conjunto de Cadernos elaborado pela Secad para documentar as políticas
públicas que o MEC vem realizando em diversos âmbitos, como educação no
campo e educação ambiental, por exemplo. No subtítulo Marcos
institucionais, são apresentadas a discussão conceitual dos temas e a
legislação relacionada – incluindo o PNDH II e o Brasil sem Homofobia (BSH).
Em Gênero e diversidade na educação: diagnóstico, são registrados resultados
de pesquisas que mostram a necessidade de se desenvolver políticas públicas
em educação para o enfrentamento da discriminação de gênero e para a
orientação sexual na escola. Já no subtítulo Gênero e diversidade na educação:
políticas públicas, afirma-se:
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Luiz Mello | Fátima FreitasCláudio Pedrosa | Walderes Brito
Considerando os planos de ação já existentes – Plano
Nacional de Políticas para as Mulheres (PNPM) e Programa
Brasil sem Homofobia (BSH) – a tarefa do Ministério da
Educação é fazer com que a sua implementação, a médio e
longo prazos, promova o enraizamento dessa agenda de
enfrentamento ao sexismo e à homofobia nos sistemas de
ensino e na sociedade. No curto prazo, é indispensável
atuar, de forma coerente e consistente, sobre as ações já em
curso, visando a superar concepções limitadoras em que
corpos, sexualidades, gêneros e identidades são pensadas a
partir de pressupostos disciplinadores heteronormativos e
essencialistas (BRASIL, 2007, p. 35).
Por fim, em Programas, projetos e ações, aparecem em destaque
algumas iniciativas da Secad que contribuem para promover direitos humanos
e cidadania para mulheres e população LGBT, tais como: o curso “Gênero e
diversidade na escola”, mencionado anteriormente, e o “Prêmio Construindo a
Igualdade de Gênero”. Esse prêmio integra o Programa Mulher e Ciência, que
está em sua 6ª edição, e foi criado pela Secretaria de Políticas para as
Mulheres, da Presidência da República (SPM/PR), com o objetivo de “estimular
a produção científica e a reflexão acerca das relações de gênero, mulheres e
feminismos no País e de promover a participação das mulheres no campo das
ciências e em carreiras acadêmicas” (BRASIL, 2007, p. 67).
O “Relatório de Monitoramento das Ações do Plano Nacional de
Promoção da Cidadania e Direitos Humanos de Lésbicas, Gays, Bissexuais,
Travestis e Transexuais”, produzido pela SDH e divulgado em julho de 2010,
traz dados atualizados sobre o investimento financeiro no âmbito do Prêmio
Construindo a Igualdade de Gênero: da 1ª à 4ª edição, R$ 233.000,00 por ano
(concurso de redações para estudantes do ensino médio e artigos científicos de
graduandos, graduados, especialistas, mestrandos, mestres e doutorandos);
na 5ª edição, R$ 249.500,00 (mantidos os concursos anteriores e criada a
categoria Escola Promotora da Igualdade de Gênero, com o objetivo fomentar
projetos comprometidos com a igualdade de gênero – premiada uma escola por
região); e na 6ª edição, R$ 506.400,00 (com a inovação de se premiar, na
categoria Escola Promotora da Igualdade de Gênero, uma escola por unidade
da federação).
Ainda como indicador de reconhecimento por parte do Estado da
relevância da ampliação do debate sobre diversidade – pensada numa
perspectiva abrangente, que envolve diversos grupos subalternizados –, o
Ministério da Educação, por meio da Secad, tem promovido a publicação de
108
livros como os de Ramos (2003), Teles e Franco (2006) e Hernaiz (2007),
além de outros dois que tratam especificamente dos temas homofobia e
diversidade escolar (ABRAMOVAY; ANDRADE; ESTEVES, 2007; JUNQUEIRA,
2009a). A mesma Secad também lançou editais – sobretudo por meio da 3Universidade Aberta do Brasil – dirigidos a universidades onde haja grupos de
pesquisadoras dispostas a promover, em seus estados, cursos de extensão
direcionados a profissionais de educação, que tratem dos temas gênero,
diversidade sexual e relações étnico-raciais.
Por outro lado, diversas organizações não governamentais, muitas
vezes com recursos originários de parcerias com os governos federal, estaduais
e municipais, também produzem material pedagógico dirigido a adolescentes,
professoras e pais-mães, que trata de temas relacionados ao combate à
TGBLfobia e à promoção do respeito à diversidade sexual e a como a família e a
escola podem contribuir para que adolescentes não heterossexuais e rebeldes
em relação aos estereótipos de gênero vivam com menos culpa e mais prazer,
preparadas para enfrentar as situações de preconceito e discriminação. Essas
publicações relacionam os temas combate ao preconceito e respeito e
promoção da cidadania com informações sobre desejos, conhecimento do
corpo e prevenção às DST/aids, a exemplo de Jesus et al. (2006), Kamel e
Pimenta (2008), Pedrosa e Castro (2008) e Penalvo e Bernardes (2009). Além
disso, muitas ativistas do movimento LGBT recorrentemente são convidadas a
participar de, ou mesmo organizar, grande parte das ações promovidas por
secretarias de educação estaduais e municipais relacionadas ao combate à
GTBLfobia e à promoção da cidadania, especialmente tendo em vista a escassa
presença de gestoras capacitadas, em todas as esferas de governo, a
desenvolver iniciativas que contemplem tais temas. Como afirma uma ativista
entrevistada:
A grande maioria das ONGs virou prestador de serviços do
Estado, né? Está sendo engolido pelo sistema, inclusive daí
fica com dificuldades de fazer a crítica e de apontar, porque
acaba sendo um, mais uma instância. Mas só que é
desigual essa participação, digamos assim, e a
responsabilidade fica a cargo da sociedade civil.
Todavia, uma preocupação que esse tipo de iniciativa desperta é: em
que medida organizações da sociedade civil têm assumido para si a execução
3 Segundo informações do portal UAB/CAPES: “A Universidade Aberta do Brasil é um sistema integrado por universidades públicas que oferecem cursos de nível superior para camadas da população que têm dificuldade de acesso à formação universitária, por meio do uso da metodologia da educação à distância”. O Manual operacional da Rede de Educação para a Diversidade explica como funcionam esses cursos.
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de atribuições que são do governo (tais como distribuir preservativos ou educar
profissionais de educação para lidar com adolescentes LGBT)? Afinal, a frente
prioritária de atuação de qualquer movimento social talvez ainda seja a de
cobrar/monitorar (ou, numa linguagem mais tecnocrática, “fazer o controle
social”) as ações do governo e não atuar como um “prestador de serviços”, haja
vista os riscos de que ativistas e seus grupos assumam uma posição de
subordinação diante do governo, em face das relações de dependência,
inclusive financeira e político-partidária, que se estabelecem.
A respeito da produção de materiais didáticos, é importante registrar
que as pessoas entrevistadas fizeram pouca menção, exceto uma gestora
federal, que mencionou a existência de editais orientados pelo Plano Nacional
de Direitos Humanos e Cidadania LGBT, e outra gestora também federal, que
fez algumas considerações críticas sobre o tema, a partir de uma pergunta
integrante do questionário da pesquisa relativa à existência de “monitoramento
e revisão dos livros escolares didáticos, manuais escolares e programas
educativos visando a eliminar estereótipos”:
Não existe monitoramento. [...] o que existe é antes; não é o
monitoramento a posteriori. O que existe é a análise
preliminar do material. [...] Agora, a pesquisa da Débora
Diniz e da Tatiana [Lionço], a partir dos materiais
aprovados no âmbito nacional, do livro didático, elas
conseguiram verificar, elas verificaram que não há
homofobia explícita, propaganda homofóbica, não é nada
disso. [...] Porém, existe todo um silêncio acerca da
diversidade sexual, então se isso também não for
homofobia...
Um passo qualitativamente superior à promoção episódica de cursos
de capacitação e da publicação pontual de materiais a respeito da proteção de
direitos da população LGBT no espaço da escola foi dado a partir de 2008 com
a realização da Conferência Nacional de Educação Básica (2008), da
Conferência Nacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais
(2008) e da Conferência Nacional de Educação (2010). O que muda com
essas iniciativas é, principalmente, a criação de um espaço plural para o debate
envolvendo não apenas os setores do governo mas também as pessoas afetadas
pela questão, por meio de representantes da sociedade civil.
A Conferência Nacional de Educação Básica ocorreu em abril de 2008
e contou com delegadas de todos os estados e do Distrito Federal,
representando gestoras, grupos da sociedade civil, profissionais de educação e
pais-mães de alunas. O tema central foi Construção do Sistema Nacional
110
Articulado de Educação e as discussões estiveram estruturadas a partir de
cinco eixos temáticos, sendo o que mais nos interessa aqui o IV – Inclusão e
Diversidade na Educação Básica, no qual são apresentadas propostas relativas
aos temas educação e afrodescendência, educação indígena, educação
especial e diversidade sexual. Especificamente em relação ao tema diversidade
sexual, são apresentadas cinco ações para as políticas de educação, com
destaque para 1) combate à linguagem sexista, homofóbica e discriminatória
nos livros didáticos e paradidáticos; 2) promoção de cultura de reconhecimento
da diversidade sexual e de gênero no cotidiano escolar; 3) inserção dos estudos
de gênero e diversidade sexual no currículo das licenciaturas.
A Conferência Nacional LGBT foi realizada em junho de 2008, com a
presença de 1.118 participantes, sendo 569 delegadas representantes do
poder público e da sociedade civil, 108 convidadas e 441 observadoras
(BRASIL, 2008a, p. 313-314). Como resultado de um grupo de trabalho
composto por 102 participantes, foram aprovadas na Plenária Final da
Conferência 60 deliberações relativas ao eixo “educação”, versando sobre
temas como o fomento à pesquisa e à produção de materiais didáticos e
paradidáticos que promovam o reconhecimento e o respeito à diversidade
sexual e identidade de gênero bem como a criação de coordenadorias
específicas para LGBT nos diversos órgãos e instâncias do Ministério da
Educação, entre muitos outros.
Já a Conferência Nacional de Educação foi realizada entre 28 de
março e 1º de abril de 2010, em Brasília, e teve como tema Construindo o
Sistema Nacional Articulado de Educação: O Plano Nacional de Educação:
Diretrizes e Estratégias de Ação. Um de seus objetivos principais está
relacionado à formulação do novo Plano Nacional de Educação, como se
observa abaixo:
Espera-se que sua ampla divulgação, disseminação e
debate possam servir de referencial e subsídio efetivo para
a construção do novo Plano Nacional de Educação (2011-
2020) e para o estabelecimento, consolidação e avanço
das políticas de educação e gestão que dele resultarem em
políticas de Estado (BRASIL, 2010, p. 11).
O que mais nos interessa nesse documento é o Eixo VI – Justiça Social,
Educação e Trabalho: Inclusão, Diversidade e Igualdade, do qual faz parte o
tema gênero e diversidade sexual, contemplado em 25 deliberações – número
bem ampliado se comparado às cinco propostas referidas anteriormente e que
integram o documento final da Conferência de Educação Básica, realizada em
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2008. Seguramente, a participação de ativistas e educadoras LGBT na
Conferência Nacional de Educação e sua capacidade de articulação com
representantes de outros segmentos sociais foram determinantes para a
aprovação desse número de propostas, entre as quais quatro são
particularmente relevantes, a saber: 1) introdução e garantia da discussão de
gênero e diversidade sexual na política de valorização e formação inicial e
continuada dos/das profissionais da educação; 2) construção de uma proposta
pedagógica sobre gênero e diversidade sexual para nortear o trabalho na rede
escolar de ensino; 3) garantia de que o MEC assegure os recursos financeiros
necessários à implementação do Projeto Escola sem Homofobia em toda a rede
de ensino e das ações relativas à educação previstas no Plano Nacional de
Promoção da Cidadania e Direitos Humanos de LGBT; e 4) criação de grupos de
trabalhos permanentes nos órgãos gestores da educação dos diversos sistemas,
para discutir, propor e avaliar políticas educacionais para a diversidade sexual e
relações de gênero, compostos por representantes do poder público e da
sociedade civil.
Apreciações sobre o dito e sobre o silenciado
Considerando o reduzido número de gestoras entrevistadas no
contexto da pesquisa e em especial o fato de que apenas dez são vinculadas a
órgãos especializados na área de educação, queremos destacar que a breve
análise apresentada a seguir não tem pretensões de caráter generalizante, mas
pode oferecer sinalizações sobre prioridades, desafios e problemas
enfrentados.
Ao passarmos em revista os documentos de domínio público relativos
à população GBLT na política educacional, podemos nos apropriar melhor do
panorama que se oferece a quem procura entender a relação entre as
demandas dessa população e as políticas públicas na área de educação. Em
primeiro lugar, destaca-se a evidência da preocupação tardia com a questão.
Observando que a homossexualidade se colocou como problema social para o
poder público no Brasil desde antes da década de 1930 (TREVISAN, 2000) e
considerando também que o Estado brasileiro, desde essa mesma época, inicia
seu projeto de modernização da educação (SHIROMA; MORAES;
EVANGELISTA, 2007), é de se lamentar que as medidas higienistas de
combate aos homossexuais, empreendidas desde antes do integralismo de
Getúlio Vargas, chegando à modernização de Juscelino Kubitscheck
(LACERDA, 2005), tenham sido as únicas respostas oficiais do Estado para
essa questão social por muitas décadas. A perspectiva de inclusão dessa
população como público de políticas educacionais é um evento dos primeiros
anos deste século 21, ainda em vias iniciais de implementação.
Com a breve caracterização de ordem geral que fizemos de
documentos que mais ou menos explicitamente apresentam parâmetros,
princípios, diretrizes, eixos, estratégias e ações para lidar com questões
relativas à educação, combate à TLGBfobia e promoção de uma cultura de
respeito à diversidade sexual, objetivamos provocar a reflexão sobre como
essas temáticas vêm sendo tratadas pelo Governo Federal ao longo dos últimos
25 anos, ao menos no “papel”. Aqui, vale a pena insistir, porém, na tese de que
na prática a teoria é outra, já que, como diz Junqueira (2009b), muitas são as
estratégias adotadas por gestoras para desviar-nos (ou se desviarem) da
abordagem da questão da diversidade sexual na educação, entre as quais se
destacam: a “concordância infrutífera”, que interrompe a conversação, mas
“não desdobra nenhuma medida efetiva”; a “hierarquização”, que estabelece
que todas as outras demandas – tais como analfabetismo, evasão escolar,
racismo – devem ser resolvidas primeiro, antes de se tratar do assunto; e
(talvez) a estratégia mais conhecida por nós: a “negação”, que invisibiliza a
existência da TBGLfobia e/ou de pessoas gays/lésbicas/travestis/transexuais
nos espaços escolares. Ao longo das entrevistas realizadas no contexto da
pesquisa, encontramos os mais diversos discursos por parte das gestoras – dos
mais bem-intencionados, mas que não contam com apoio e dotação
orçamentária, aos que acreditam que devem atender toda a população
(políticas universalistas) e não criar políticas “específicas”.
Também não se deve esquecer que as gestoras envolvidas com a
formulação de políticas públicas, geralmente atuantes na esfera do Governo
Federal, nem sempre estão em contato direto com as responsáveis por sua
execução, nos âmbitos dos estados e dos municípios. Muitas vezes não se sabe,
portanto, como as diretrizes propostas são materializadas no contato direto
com alunas, pais-mães, professoras e outras profissionais da educação. No
caso específico do Ministério da Educação, algo que se observa é a ausência de
informações relativas à efetividade das políticas propostas, dado que a maior
parte de sua atuação restringe-se à esfera da formulação. Nas palavras de uma
gestora entrevistada:
A agenda LGBT e a agenda de promoção do
reconhecimento da diversidade sexual exigem um
comprometimento das diferentes instâncias de formulação
de política educacional. Quando a gente pensa no
Ministério da Educação, você tem essa atribuição, é, de
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coordenação, de indução, de estabelecimento de
incentivos, de diretrizes.
Um olhar mais detido sobre o fenômeno recente da multiplicação de
iniciativas estaduais e municipais voltadas para o combate à evasão escolar de
travestis e transexuais talvez seja ilustrativo dessa falta de articulação entre as
ações implementadas nas distintas esferas de governo.
Do ponto de vista dos projetos de capacitação de professoras e
publicações acima apresentadas, vale registrar que eles foram recorrentemente
mencionados pelas gestoras entrevistadas, tanto no âmbito estadual quanto no
federal, como iniciativas que estavam sendo implementadas e por meio das
quais os debates sobre gênero e sexualidade começaram a chegar às escolas.
Nas palavras de uma gestora federal e outra estadual, respectivamente:
Por exemplo, no ano passado, no “Gênero e Diversidade na
Escola”, que é a formação que a gente faz com esses temas,
nós tivemos cerca de 13 mil professores envolvidos, só
nessa formação, e esse ano a gente tem muito mais.
[...] a gente tem já há alguns, há uns cinco anos,
participado do “Saúde e Prevenção nas Escolas”, em
parceria com a Secretaria da Saúde. [...] É um projeto que
faz parte de um programa, é... Federal, né, que tá voltado
para uma política, a implantação de uma política de saúde
de adolescentes, né?
O fato de esses projetos serem citados no âmbito da atuação nos
estados nos faz pensar que eles, ainda que embrionariamente, saíram da esfera
restrita de formulação do Governo Federal e começaram a alcançar as
populações-alvo. Se as secretarias de educação, em alguns casos, em parceria
com as de saúde, estão conseguindo iniciar um processo de capacitação de
suas profissionais, isso aumenta as chances de que estas reflitam sobre sua
prática profissional e tentem redefini-la numa perspectiva menos machista e
BGTLfóbica, contribuindo para que as escolas se tornem um ambiente menos
discriminatório e preconceituoso para todas aquelas que vivenciam outras
formas de sexualidades e identidades de gênero, não restritas ao universo da
norma heterossexual. Não há dúvida, porém, de que dois desafios são centrais
nesse processo: a desvinculação das abordagens sobre gênero e sexualidade do
âmbito da saúde reprodutiva e o enfrentamento do próprio preconceito e
machismo/BLTGfobia das profissionais de educação.
A respeito das ações do governo mais destacadas pelas entrevistadas,
chamam nossa atenção aquelas relacionadas a temas como promoção de
seminários e cursos de capacitação e combate a práticas discriminatórias e
preconceituosas no ambiente escolar. Um olhar sobre as ações que mais estão
sendo realizadas pelas secretarias/ministérios nos permitiu notar que a maioria
delas parece incidir principalmente sobre as representações sociais em torno da
população LGBT. Ações como seminário, debates e capacitações costumam ter
um caráter menos interventivo e mais preventivo, contribuindo para a
modelagem de novas formas de entender ou conceituar um problema – isso
talvez seja menos óbvio no caso da ação “Celebração de acordos de cooperação
técnica para implementação de ações de promoção de direitos…”. No conjunto,
porém, mantém-se o viés preventivista, muitas vezes com poucos resultados
imediatos, quando muito, influenciando apenas a dimensão intelectual do
problema, sem promover grandes mudanças nas práticas e nos afetos.
Além disso, esse tipo de ação se caracteriza, sobretudo, por seu
caráter pontual: “Realização de debates, seminários e cursos”, “Realização de
cursos de capacitação e formação”, “Realização de cursos de qualificação”,
atividades que não pressupõem uma continuidade, são de curto prazo, não
conseguem mudar a estrutura e a LBTGfobia institucional que caracterizam em
nível profundo o sistema educacional brasileiro. Para a maioria dessas ações,
não há planejamento, monitoramento e avaliação, encerrando-se em si
mesmas e renovando-se com uma frequência que depende mais da boa
vontade das gestoras, da pressão da sociedade civil e do repasse eventual de
recursos para os níveis estadual e municipal por parte do Ministério da
Educação. Note-se como ações que pressuporiam um trabalho de
planejamento e execução mais de médio-longo prazo, atingindo o núcleo duro
da TBGLfobia escolar, não são sinalizadas como prioritárias no âmbito dos
órgãos das gestoras entrevistadas, a exemplo de “Reformulação dos currículos
escolares visando à atualização de conteúdos que trabalhem as questões de
gênero e sexualidade nos diferentes níveis da formação escolar”,
“Monitoramento e revisão dos livros didáticos, manuais escolares e programas
educativos, visando eliminar estereótipos, preconceitos e discriminações de
gênero, orientação sexual, raciais nas escolas” e “Compra e distribuição de
material didático-pedagógico sobre a temática LGBT para a rede
municipal/estadual de ensino”.
Um terceiro aspecto dessas ações pode ser inferido com alguma
margem de segurança a partir das entrevistas com gestoras e ativistas. A
maioria das ações é realizada a partir da iniciativa de “indivíduos”
pessoalmente compromissados com o combate à BLGTfobia, vinculadas ao
governo, às universidades e ao próprio movimento LGBT, e não enquanto uma
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política de Estado, o qual muitas vezes reduz sua atuação à esfera do
financiamento de iniciativas isoladas. Sobre esse tema, vejamos o relato de
uma ativista entrevistada:
[...] em relação à educação, eu diria que as ações e
programas são quase zero, tanto em nível federal, como
estadual, como municipal. O que existe são ações de ONGs
que incidem, sobre, tanto o MEC, como a Secretaria
Estadual e Municipal de Educação e que pontualmente
realizaram algumas ações, né? Mas nenhuma dessas ações
são, têm sido suficientes pra mudar, é... ou pelo menos
tentar mudar, né, a percepção de preconceito, discriminação
nesse país e tampouco mudar a incidência sobre, né,
incidência não, mas mudar o perfil homofóbico desse país,
né? Eu acho que a educação ainda deixa muito a desejar.
A preocupação com a sensibilização de profissionais da educação para
o combate à TGBLfobia no ambiente escolar é um dos temas mais recorrentes
nos planos, programas e demais documentos que indicam diretrizes, objetivos
e ações relativos a esses segmentos, seja os de caráter geral, como o Plano
Nacional LGBT e o Programa Nacional de Direitos Humanos 2 e 3, seja os
documentos específicos do âmbito da educação, como os referentes à
Conferência Nacional de Educação Básica e à Conferência Nacional de
Educação. Todavia, quando se observa o número de ações de qualificação de
professoras efetivamente mencionadas pelas gestoras que responderam
questionários da pesquisa, o que se verifica é que ainda há muito por fazer, já
que o total de iniciativas e o público alcançado ainda são muito pouco
significativos.
Essa falta de sensibilização das profissionais de educação e das
próprias gestoras para lidar com o combate à discriminação e ao preconceito,
que atingem estudantes que não se conformam aos parâmetros da
heterossexualidade compulsória, está entre os desafios apontados tanto por
gestoras quanto por ativistas para a implementação de políticas públicas para
TLGB na área de educação. A discussão de questões relativas a esse tema
muitas vezes é considerada secundária. Nem todas as pessoas julgam o tema
relevante, frequentemente o evitam e, portanto, continuam a se calar, sendo
não raro protagonistas ou cúmplices na reprodução do preconceito. Mesmo
num nível mais institucional, essa resistência também se faz presente, como
afirma uma ativista entrevistada, e não apenas no âmbito da educação:
A maioria dos ministérios foi muito difícil de trabalhar. A
educação até hoje, a educação [Ministério da] é uma porta
fechada. O Itamaraty é uma porta fechada, sabe? Você vê
que a gente fala da dotação orçamentária, mas o
planejamento [Ministério do] é uma porta fechada, sabe?
Outro aspecto destacado por entrevistadas, sejam do governo, sejam
da sociedade civil, é o fundamentalismo religioso, que dificulta a
implementação de projetos, obstaculiza a realização de debates e evita que
essas discussões saiam do papel, como afirma uma gestora entrevistada:
Embora a Constituição diga que o Estado é laico, o servidor
não é laico. Então, quando a gente fala assim “Ah, mas nada
caminha na educação?”. Caminha, só que se de repente
você pega uma diretora de ensino que quer fazer caminhar e
ela pega uma diretora de escola que é de alguma religião
mais conservadora aquela escola não anda.
Uma dificuldade frequentemente citada tanto por gestoras quanto por
ativistas é sobre como fazer essas políticas saírem do papel. Primeiro se luta
muito para ter leis, portarias, resoluções, decretos, programas, planos e projeto
que proponham estratégias de punição da discriminação, que assegurem a
travestis e transexuais o uso de nome social nas escolas, que garantam o
respeito à diversidade, que se comprometam com as demandas da população
LGBT. O outro passo então é fazer com que essas propostas e políticas cheguem
até as pessoas, fazer com que cheguem aos estados e municípios, pois na
verdade já existem muitos “papéis”, que contraditoriamente também podem
ser usados para silenciar as demandas da sociedade civil, embora produzam
mudanças de pequeno alcance nas vidas concretas das pessoas reais, vítimas
de discriminação e preconceito, como afirma uma ativista:
O Brasil Sem Homofobia virou nada e o Plano de Direitos
Humanos, então, vai virar nada. [...] Um é o cala a boca do
outro, é uma tentativa de que a sociedade civil não cobrasse
que o outro não foi feito. Essa é a relação dos dois. O Plano
Nacional de, o Programa Nacional LGBT foi uma estratégia
do governo para calar a nossa boca, pra parar de cobrar o
Brasil Sem Homofobia. É isso.
Entre as conquistas específicas na área de educação apontadas pelas
entrevistadas, destacam-se as portarias e resoluções que tratam da inclusão do
direito ao uso de nome social por travestis e transexuais na escola e alguns
pareceres e diretrizes que dão um indicativo nessa mesma direção. Foram
também reconhecidas como importantes, embora incipientes, as capacitações
já realizadas com profissionais de educação e os editais que o MEC divulgou
destinados à promoção de ações educacionais de combate à LTBGfobia. Por
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fim, há uma tendência geral de se dizer que o diálogo entre governo e sociedade
civil tem se ampliado, embora as gestoras sejam mais otimistas que as ativistas
quando se reportam aos limites e às possibilidades dessa interlocução.
De qualquer maneira, consideramos significativa a realização das
Conferências Nacionais de diversos setores, precedidas por conferências
estaduais, compostas por representantes de amplos setores do governo e da
sociedade civil. Mesmo que as propostas aprovadas nessas conferências nem
sempre se tornem norma legal e, principalmente, nem sempre sejam
concretizadas, ainda assim são espaços importantes para o debate do tema e
para a negociação de propostas na direção do enfrentamento ou pelo menos na
caracterização dos problemas.
Nesse sentido, outro aspecto a destacarmos diz respeito à
importância da perspectiva dos Direitos Humanos para a inclusão da pauta
LGBT no âmbito educacional. A maioria das ações identificadas nesta pesquisa
é derivada de interlocução entre a área de Direitos Humanos e a de educação, a
qual se constrói em decorrência da pressão social exercida por ativistas BTLG e
gestoras da educação pessoalmente identificadas com o combate à BTGLfobia.
Esse aspecto sugere que o campo da educação, ainda que seja permeável à
inserção dos debates sobre direitos humanos, tem sido pouco acolhedor das
demandas da população GTLB, quando se pensa numa escala que atinja a
maior parte do sistema educacional do país. Ressaltamos daí, mais uma vez, a
importância das conferências municipais, estaduais e nacional LGBT e de
educação para o fortalecimento de uma interlocução mais direta com o Estado,
para além da tutela dos órgãos de Direitos Humanos.
Além da efetivação de leis, decretos e portarias que garantam o
respeito e a não discriminação no âmbito escolar (e em todos os espaços) de
alunas TLBG, somente podemos desejar e exigir que existam cada vez mais
editais de fomento a pesquisas sobre relações de gênero e sexualidades, mais
cursos de capacitação para profissionais de educação, saúde, segurança etc.,
maior produção de materiais didáticos que tenham a inclusão das diversidades
(e a visibilidade das diversas conjugalidades, parentalidades, afetos, desejos,
carinhos) como pautas e esperar que, com as mudanças que o movimento
LBGT fomenta, o espaço escolar seja cada vez mais democrático, divertido,
acolhedor e educativo, ensinando sobre diversidade e respeito em vez de
continuar sendo um espaço opressivo, humilhante e degradante para as alunas
que afrontam a heteronormatividade dominante.
Entretanto, não há dúvida de que o desafio é grande. Recentemente,
por exemplo, ganhou a cena nacional a notícia de que o Ministério da Educação
começaria a distribuir, para seis mil escolas de ensino médio da rede pública,
material educativo conhecido como “kits educativos anti-homofobia”,
integrante do Projeto Escola sem Homofobia, composto de um caderno, uma
série de seis boletins, três audiovisuais com seus respectivos guias, um cartaz e
uma carta de apresentação para gestoras e educadoras. Esse material foi
financiado pelo MEC e executado em parceria com as ONGs Pathfinder do
Brasil; Reprolatina – Soluções Inovadoras em Saúde Sexual e Reprodutiva; e
ECOS – Centro de Estudos e Comunicação em Sexualidade e Reprodução
Humana (São Paulo); bem como com o apoio da Associação Brasileira de
Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT) e da Global
Aliance for LGBT Education (GALE).
Tal proposta encontrou forte resistência de parlamentares vinculados
a grupos GTBLfóbicos e de fundamentalistas religiosos, que tentaram por
meios diversos impedir a distribuição nas escolas do referido material, sob o
argumento de que ele seria uma “apologia ao homossexualismo entre jovens” e
estimularia a pedofilia. Por outro lado, várias organizações manifestaram-se
favoravelmente ao reconhecimento da adequação da proposta pedagógica do
Projeto Escola sem Homofobia, tendo em vista a relevância do enfrentamento
da BLTGfobia no espaço escolar e a adequação do material proposto às faixas
etárias e de desenvolvimento afetivo-cognitivo a que se destina. Entre essas
organizações, destacam-se o Conselho Federal de Psicologia, o Programa
Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS) e a representação da
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
(UNESCO) no Brasil. Tal conflito de interesses e disputas ideológicas somente
mostra como a falta de um arcabouço legal de proibição explícita da
discriminação por orientação sexual e identidade de gênero bem como a
garantia de cidadania plena e direitos humanos da população TLGB ainda fere
de morte muitas das ações, projetos e programas que integram políticas
públicas propostas pelo Governo Federal, no sentido da promoção de uma
sociedade que não trate os que não se enquadram nos limites da norma 4heterossexual como párias e escória em seu próprio país .
4 A reação da Presidenta Dilma Rousseff foi particularmente preocupante, já que determinou, em maio de 2011, a suspensão da distribuição do kit anti-homofobia, mesmo antes de consultar Fernando Haddad, seu Ministro da Educação, quanto à pertinência e adequação do material ao objetivo de combater a homofobia no ambiente escolar no Brasil. Como divulgado amplamente nos meios de comunicação de massa, a decisão da Presidenta teria sido motivada pela ameaça de parlamentares da bancada evangélica de apoiar a convocação do então Ministro da Casa Civil, Antonio Palocci, braço forte do Governo Dilma, para explicar sua “evolução patrimonial” suspeita, caso não fosse tomada uma medida decisiva contra a divulgação do kit. A distribuição foi suspensa, mas mesmo assim Palocci caiu.
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122
7
Rayani Mariano dos SantosPesquisadora do Núcleo de Identidade de Gênero e Subjetividades – NIGS
Estudante do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSCrayanimar@hotmail.com
Patrícia Rosalba Salvador Moura CostaProfessora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Sergipe – IFS
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas – PPGICH/UFSCPesquisadora do NIGS
patriciarosalba@gmail.com
Giovanna Lícia Rocha TriñanesPesquisadora do NIGS
Estudante do curso de Ciências Sociais da UFSCgiovanna_licia@hotmail.com
Miriam Pillar GrossiProfessora do Departamento de Antropologia da UFSC
Coordenadora do NIGSDoutora em Antropologia Social
miriamgrossi@gmail.com
O caso Geisy Arruda: representações midiáticas brasileiras sobre violências contra mulheres
The Geisy Arruda case: Brazilian media representations of violence against women
124
Resumo
Este trabalho tem como objetivo analisar a cobertura midiática divulgada em
portais da internet sobre o caso da estudante Geisy Arruda, agredida pelos
colegas dentro do campus da Universidade Bandeirante em São Paulo, sob a
alegação de que estava usando um vestido muito curto. Foram pesquisadas
171 matérias de quatro portais (Folha de S. Paulo, R7 da Record, G1 da Globo
e revista Época). Observa-se que o evento de agressão atraiu grande interesse
da mídia e da população e promoveu um intenso debate entre jornalistas,
antropólogos, psicólogos, intelectuais, políticos e ativistas de movimentos
sociais, principalmente do feminista. Porém, apesar da grande discussão e do
espaço ilimitado da internet, a violência de gênero não foi muito discutida,
tendo algumas matérias, inclusive, ratificado essas agressões como “culpa da
estudante”.
Palavras-chave: Gênero. Mídia. Violência.
Abstract
This paper analyzes the media broadcasting coverage on web portals about the
case of the student Geisy Arruda, harassed by colleagues within the
Bandeirante University campus in Sao Paulo, under the claiming that she was
wearing an “unappropriated” very-short dress. 171 reports from four web
portals (Folha de S. Paulo, R7 Record, G1 and Época magazine) were
investigated. It has been noticed that the aggression event gathered a lot of
perspectives and a huge media and population interest, which promoted an
intense debate among journalists, anthropologists, psychologists, intellectuals,
politicians and activists from social movements, especially the feminist one. In
despite of all the extended real and virtual discussions, little reflection on
violence against women was made present, though. And in some particular
media cases, the aggression was ratified as “her blame”.
Key-words: Gender. Media. Violence.
Introdução
Importantes estudos acadêmicos em torno das violências praticadas
contra mulheres têm sido produzidos desde o final da década de 1970 por 1estudiosas da temática . Pesquisadoras como Mariza Corrêa (1983) Miriam
Pillar Grossi (1998, 2006), Maria Filomena Gregori (1993), Heleieth Saffioti
(1995, 2004), Lia Zanotta Machado (2010), entre outras, têm contribuído
para a diversificação teórica em relação ao debate em torno desse campo de
estudo. Além disso, essa produção de conhecimento tem proporcionado um
diálogo bastante particular entre pesquisadoras, militantes e instituições
públicas, as quais passaram a atuar diretamente no atendimento às mulheres
vítimas de violência.
O reconhecimento social das violências contra as mulheres, como um
fator de ordem pública, começou a ser caracterizado efetivamente mediante
denúncias junto às delegacias a partir da década de 1980, fruto de pressões do
movimento feminista que mobilizava a sociedade com o objetivo de prevenir e
criminalizar as violências. De acordo com diferentes autoras (GROSSI, 1998;
CORRÊA, 1983; MACHADO, 2010), antes da emergência dos movimentos
feministas, havia pouca visibilidade dos casos de violências praticados contra
as mulheres, sendo situados e resolvidos na ordem do domínio privado.
Após o surgimento dos SOS Mulher (GROSSI, 1998), primeiros grupos
feministas que lutavam contra as violências praticadas contra as mulheres nos
anos 1980, estabeleceu-se um diálogo dos movimentos feministas com o
Estado, sendo uma das primeiras políticas públicas efetivas em relação à
temática das violências a criação da primeira delegacia da mulher, que
aconteceu no estado de São Paulo no ano de 1985.
As lutas contra as violências e a busca pela criminalização
continuaram marcando a agenda do movimento feminista durante a década de
1990, obtendo sucessos e também alguns retrocessos. Autoras como Debert
(2006) explicam os retrocessos principalmente a partir da instauração da Lei
9.099/95, que criou os Juizados Especiais Criminais, cujo principal objetivo
era a ampliação do acesso da população à justiça. Os mecanismos aplicados
contribuíam para a celeridade processual e a aplicação de penas alternativas
em lugar das penas de restrição da liberdade. Esse fato colocou as violências
contra a mulher no patamar de “menor potencial ofensivo”.
1 Para conhecimento das várias pesquisadoras que têm contribuído com o debate sobre violências contra a mulher, ver os livros Grossi; Minella; Porto (2006) e Grossi; Losso; Minella (2006).
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Rayani M. dos Santos | Patrícia Rosalba S. M. CostaGiovanna Lícia R. Triñanes | Miriam Pillar Grossi
Em 2006, foi aprovada a Lei 11.340, denominada de Lei Maria da
Penha. A denominação da Lei 11.340 de 2006 foi uma homenagem a Maria
da Penha, farmacêutica paraense, vítima de tentativa de assassinato pelo
marido por duas vezes e como consequência ficou paraplégica. Segundo dados
do primeiro relatório sobre a Lei Maria da Penha publicado em 2010, em 2005
já existiam 398 delegacias especiais para mulheres espalhadas por todo o país.
De acordo com Wania Pasinato e Cecília MacDowell Santos, o número total de
delegacias passou no ano de 2008 para 403. Machado (2010) aponta que o
total de delegacias especializadas de atendimento à mulher, somando-se aos
postos de atendimento especializado às mulheres, chega a 404, segundo
dados apresentados pela Secretaria de Políticas para Mulheres em 2008.
A importância do surgimento de legislações específicas que tratam de
violências contra as mulheres aponta para o fato de que existe um número
alarmante de mulheres que sofrem violências no Brasil, tanto no espaço
privado do lar como no âmbito da vida publica, isto é, em variadas instituições,
ambientes de trabalhos, ruas, igrejas, serviços de saúde, redes de
telecomunicações, escolas e universidades. Notícias de violências contra
mulheres têm ocupado espaço na mídia brasileira com bastante frequência.
A forma, muitas vezes, arbitrária e condenatória com que as mulheres
vítimas de violência são apresentadas e representadas pelos meios midiáticos é
o objeto de nossa reflexão aqui, tomando como exemplo um episódio de grande
repercussão na mídia brasileira – o caso da estudante de Turismo Geisy Arruda,
que foi agredida por colegas da faculdade por estar usando um vestido curto,
cor-de-rosa. É a respeito da imensa repercussão desse fato na mídia,
acontecido em 2009, que nos debruçamos. Esse acontecimento foi muito
divulgado na mídia brasileira, ganhando espaço também no cenário
internacional. No dia 10 de novembro de 2009, por exemplo, o site do New
York Times noticiou que a expulsão de Geisy havia sido revogada. Além disso,
os jornais Guardian, Daily Telegraph e Pakistan News deram também destaque
ao acontecimento, sendo o caso noticiado até na televisão portuguesa.
Para a análise pretendida, utilizamos como fontes de pesquisa o banco
de dados que construímos com matérias jornalísticas publicadas nos portais da
Folha de S. Paulo, R7 da rede Record, G1 da rede Globo e revista Época, bem
como por meio do programa semanal Fantástico, exibido aos domingos pela
emissora Globo de televisão. Esses jornais são representativos do conjunto dos
meios de comunicação no Brasil, alcançando milhares de leitores e expectadores
e atuando, também, no intenso processo de formação de opinião pública da
126
sociedade brasileira. Também utilizaremos como instrumento teórico de análise 2o conceito de gênero, com enfoque nas violências contra as mulheres .
Apoiando-nos metodologicamente em estudos de Grossi et al. (2010)
sobre mídia, optamos por delimitar um recorte temporal do material recolhido.
Selecionamos as matérias que foram expostas entre os dias 28 de outubro de
2009 (primeiro dia em que alguma matéria desses sites consultados fez
referência ao assunto) e 12 de novembro de 2009. Subsidiaram nossa análise
aspectos que constam em cada matéria publicada como: título da matéria,
setor do site, lugar que o site ocupa e o tipo de emissor. Para analisarmos a
cobertura midiática do caso de Geisy Arruda, baseamo-nos na metodologia que
se utiliza da análise de discurso. De acordo com Rial (2004) e Hamburger
(2007), além de textos, discursos são práticas sociais. Nesse sentido, a mídia
tem o poder de originar fenômenos sociais e estabelecer ou alterar estereótipos.
Ao analisarmos os portais da Folha de S. Paulo, G1 e R7, percebemos
que a maioria das matérias são notícias, havendo poucos artigos e notas. Já no
site da revista semanal Época, encontramos artigos, sendo a maior parte
publicada em blogs dos/as colunistas. Ao discutirmos as diferenças entre o artigo
e a notícia, remeteremo-nos à classificação dos gêneros jornalísticos no Brasil,
seguindo as orientações de Melo (2003), quando sugere que o “jornalismo
articula-se [...] em função de dois núcleos de interesse: a informação (saber o
que passa) e a opinião (saber o que se pensa sobre o que passa). Daí o relato
jornalístico haver assumido duas modalidades: a descrição e a versão dos fatos”
(MELO, 2003, p.63), modalidades classificadas pelo autor como jornalismo
informativo e jornalismo opinativo. No primeiro grupo, entrariam notas, notícias,
reportagens e entrevistas. No segundo, constariam editoriais, comentários,
artigos, resenhas, colunas, crônicas, caricaturas e cartas.
No período analisado, foram registradas nos sites pesquisados 171
matérias sobre o caso Geisy Arruda. Observamos que o site que mais emitiu
informações sobre o assunto foi o G1 – da rede Globo, com 79 matérias
publicadas, seguido do R7 – Record, com 40 matérias. Os sites da Folha de S.
Paulo e da revista Época publicaram 44 e 8 notícias, respectivamente. Esse
número de matérias significou praticamente notícias diárias durante duas
semanas sobre o caso aqui analisado.
2 O gênero pode ser compreendido como uma maneira de “problematizar a polaridade entre feminino e masculino estabelecida pelo conceito biológico de 'sexo'” (FUNK, 2009, p. 103). Procuramos entender as violências de gênero como uma construção social presente nas diversas relações sociais e culturais (GROSSI, 1998, p. 293), denunciando as desigualdades existentes entre homens e mulheres. As violências contra a mulher podem ser definidas como física, sexual, psicológica, mas não podemos esquecer de mencionar as violências institucionais, que contribuem muito para um cenário de humilhação e submissão da condição de ser mulher.
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As matérias jornalísticas na tela: conhecendo o caso Geisy Arruda
Graças à postagem de um vídeo no site YouTube, ficou conhecido o caso
da jovem aluna matriculada no curso noturno de Turismo da Universidade
Bandeirante (Uniban), localizada na Grande São Paulo, em São Bernardo do
Campo, na região do grande ABC paulista. No dia 22 de outubro de 2009, Geisy
Arruda foi à aula com um minivestido cor-de-rosa choque e foi agredida e
hostilizada por seus colegas, que “enfurecidos' e “surtados” se dirigiram à moça
com ofensas morais, além de tentativa de linchamento. O vídeo mostra que a
moça, ao passar pelos corredores da universidade em direção à sala de aula, foi
acompanhada por uma multidão de estudantes que gritavam palavras como
“gostosa”, “puta”, “vagabunda”, “vamos te estuprar”. Geisy somente conseguiu
chegar à sala com a ajuda de uma colega. Ela permaneceu trancada com a turma
e o professor, enquanto os alunos gritavam em frente à sua sala, tentando adentrar
esse espaço. A saída da sala de aula e da universidade na noite do episódio
somente foi possível após a chegada da polícia. Vestida com o jaleco emprestado
por seu professor, Geisy foi escoltada por policiais até a sua residência. Os próprios
estudantes que a agrediram filmaram a cena com seus celulares e colocaram na
internet. A partir daí, o caso se espalhou pela grande imprensa. Os alunos
utilizaram como justificativa para a prática de tal episódio o desejo de
“resguardar” a “moralidade” do ambiente universitário que frequentavam. Em
torno do discurso da defesa dos valores e da moral da instituição de ensino, a
Uniban decidiu expulsar a aluna. Essa atitude, além de contribuir para maior
exposição do caso na mídia, foi a gota d'água que mobilizou efetivamente ativistas
dos movimentos feministas, membros do governo, intelectuais e pesquisadores/as
em torno da agressão, que se tornou um símbolo dos casos de violências contra
mulheres no Brasil. Passaremos a analisar, a seguir, a forma como o caso foi
apresentado em cada uma das mídias analisadas.
O caso Geisy Arruda apresentado pelo programa Fantástico da rede Globo
A história de Geisy Arruda foi extensamente noticiada, principalmente
no período entre a postagem do vídeo da agressão no YouTube e a sua expulsão
da Uniban, com posterior readmissão da estudante. A rede Globo, no seu
principal programa informativo semanal, o Fantástico, abordou a manifestação
contra a aluna do curso de Turismo da Uniban nos dois domingos após o caso
ter acontecido (1º e 8 de novembro de 2009), mas em nenhuma das ocasiões
discutiu os motivos que levaram os/as estudantes a agredirem Geisy.
Na primeira matéria, restringiu-se a ouvir a consultora de moda Gloria
Kalil e o vice-reitor da universidade, Ellis Wayne Brown. Esse último disse que o
128
ato cometido pelos estudantes não tinha sido tão grave a ponto de gerar a
expulsão deles. Já Gloria Kalil, nos menos de 25 segundos que falou, esforçou-
se para explicar para as “desinformadas” (como Geisy) que “a moda é uma
linguagem” e que a menina errou ao ignorar isso: “ela se vestiu de modo
inadequado ao ambiente em que estava” e foi “lida” de uma maneira que não
gostaria. Após a explicação, a consultora completou que, mesmo com a roupa
inadequada, nada justificaria a agressão. A abordagem dada ao acontecimento
Geisy Arruda pelo Fantástico se preocupou em tratar de uma questão que é
frequentemente associada às mulheres, a moda.
Na segunda reportagem do Fantástico, do dia 8 de novembro, o
assunto foi a expulsão da estudante. Foram mostradas algumas passagens da
nota publicada pela Uniban com os “motivos” da expulsão, como trajes
inadequados e postura “incompatível” com o ambiente escolar. As pessoas
ouvidas na reportagem foram: Geisy Arruda e o seu advogado, o advogado da
Uniban, um advogado constitucionalista, um educador e um estudante. Foram
destacados também trechos da carta escrita pela União Nacional dos
Estudantes (UNE), condenando a agressão. Das seis pessoas ouvidas nessa
reportagem, apenas uma era mulher. Novamente, não foi discutido o tema das
violências contra as mulheres, atendo-se o programa a questões superficiais,
que já tinham sido manchetes em sites e jornais de todo o país.
Esse fato nos provocou uma reflexão sobre as formas como as
violências contra as mulheres são apresentadas nos meios midiáticos
brasileiros, em especial nos programas televisivos. A maneira banal como o
caso foi apresentado num dos programas televisivos de maior audiência no país
fica bem expressa na fala da articulista de moda quando se referiu à falta de
“adequação” da roupa que Geisy usava no dia do episódio. Outra questão
refere-se à presença constante de pessoas entrevistadas que falavam,
exclusivamente, de questões morais. Além disso, percebemos a falta de
iniciativa por parte dos/as jornalistas de tentarem construir matérias mais
densas que fomentassem o surgimento do debate, evidenciando que atitudes e
preconceitos de gênero são comuns e fazem parte do dia a dia das mulheres
brasileiras.
Geisy Arruda: analisando a cobertura jornalística do portal G1
No site G1, entre os dias 29 de outubro e 12 de novembro de 2009,
foram publicadas 79 matérias sobre o fato. A diferença entre a apresentação de
matérias escritas em portais, em relação à fonte televisiva, está,
fundamentalmente, na maior extensão quantitativa dos textos escritos, com
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Rayani M. dos Santos | Patrícia Rosalba S. M. CostaGiovanna Lícia R. Triñanes | Miriam Pillar Grossi
constantes repetições dos fatos vividos pelos personagens durante
determinado período de tempo. Outro fator diz respeito à possibilidade de
participação do/a leitor/a por meio de comentários das notícias divulgadas nos
sites e nos blogs.
A primeira notícia do site G1 sobre o caso foi publicada no dia 29 de
outubro. A matéria era curta e dizia no título: “Aluna com roupa curta provoca
tumulto em universidade e vídeo cai na web”. A utilização do verbo “provocar”
indica a culpabilização de Geisy pela agressão. Nas matérias publicadas nos dias
seguintes, houve mudança de abordagem, com a substituição do verbo provocar.
Nas outras notícias, a exposição da aluna se estabelece a partir do xingamento
que sofreu, explorando sua condição de vítima, como nesta frase retirada de uma
matéria: “uma jovem foi xingada em faculdade por usar roupa curta”.
Nos dias seguintes, diversas matérias foram publicadas com títulos
sugestivos e variados como: “Para universitárias de SP, minissaia não combina
com sala de aula”. O texto mostra que há um julgamento moral em relação ao
uso de saia curta, prática vestimentária bastante presente em universidades,
tanto em São Paulo como em diversas cidades brasileiras. Outras notícias
também dão destaque às roupas. Uma delas foca no fato de que Geisy voltaria
às aulas na Uniban, “mas de calça comprida”. Nessa notícia, é novamente
citado que a estudante de Turismo “provocou alvoroço ao aparecer na
faculdade com um minivestido rosa”. Quando o jornal opta por uma das
expressões: “estudante provocou alvoroço” ou “estudante que foi agredida”,
subtende-se a culpabilização de Geisy pela roupa usada, podendo essa escolha
influenciar na interpretação dos leitores. Além das formas variadas de contar o
mesmo fato, como argumenta Almeida (2007), há variações e formas de
interpretar diferentes, que demonstram como a heterogeneidade dos
espectadores, em termos de suas posições sociais, afeta e permite leituras
distintas de um mesmo texto.
Outras notícias foram publicadas dando voz à UNE, entidade que
classificou o fato como “violência sexista”. Apesar de a editoria do site não ter se
preocupado em discutir a questão com esse enfoque, abriu espaço para que a
UNE expusesse seus argumentos. Outro texto que chama a atenção é o seguinte:
“Opinião: Tumulto na Uniban mostra que alunos devem amadurecer como
pessoas”. O texto que vem logo abaixo do título diz: “Faltou bom senso para usar
traje apropriado à faculdade. Nada, porém, justifica a hostilização sofrida pela
jovem”. A linha de argumentação do/a autor/a do artigo era de que há regras na
sociedade que são guiadas pelo bom senso das pessoas, sendo a escolha da
roupa que se usa uma delas, ou seja, que Geisy ao se vestir com uma saia curta
para ir à faculdade estava agindo fora das regras sociais de vestimenta.
130
A primeira matéria que estava focada nas reações do movimento
feminista foi publicada no dia 9 de novembro, após a expulsão da estudante da
universidade. O texto era curto e falava da organização de protesto na frente da
universidade. Outro texto publicado comentava sobre uma pichação no muro
da Uniban onde estava escrito “faculdade preconceito”. Os outros sites
analisados não publicaram notas ou notícias sobre a pichação.
Também foram publicadas matérias com excessiva vitimização de
Geisy, como, por exemplo, “Tudo o que eu mais queria era voltar a estudar, diz
aluna expulsa pela Uniban”. No olho dessa matéria, há duas frases, uma delas
diz que “Geisy Arruda disse estar muito abalada por não poder voltar à
faculdade”. No mesmo dia dessa publicação, foi apresentada uma matéria que
expressava a opinião do Governo e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). O
importante dessa matéria é que ela deu voz a pessoas e entidades como o
presidente da OAB e a ministra, à época, da Secretaria Especial de Políticas
para Mulheres, Nilcéia Freire, que criticaram a expulsão. A maior parte das
fontes ouvidas é oficial. Percebe-se que em várias ocasiões as falas das fontes
oficiais são o fato principal da notícia. As fontes oficiais são aquelas que estão
ligadas a uma instituição e autorizadas a falarem em nome dela. De acordo com
Lage (2006), elas são mantidas pelo Estado, empresas e organizações, as
quais possuem algum poder de Estado e são consideradas as mais confiáveis.
Após a revogação da expulsão de Geisy pela Uniban, uma matéria saiu
com o seguinte título: “Alunos da Uniban vaiam manifestantes durante ato
contra expulsão de aluna”. O texto relata uma batalha com dois lados (UNE e
entidades de defesa da mulher versus estudantes da Uniban), e no meio uma
celebridade de televisão com um minivestido rosa, a qual, segundo a notícia, é
rodeada e filmada pelos estudantes, mas essa mulher, diferentemente do que
aconteceu com Geisy, não foi agredida. Apesar de ser uma matéria com o
intuito de cobrir o protesto realizado pelos movimentos sociais, o foco é na
celebridade que está presente e nas vaias que os manifestantes receberam. As
reivindicações dos movimentos presentes não são discutidas.
Vale ressaltar duas notícias publicadas a respeito do protesto
organizado pelos estudantes na UnB e um artigo cujo título era “Opinião: Caso
da Uniban mostra que falta avançar na igualdade entre gêneros”. A psicóloga e
psicopedagoga Ana Cássia Maturano diz que o que o fato expôs é que “temos
muito ainda que avançar na igualdade entre os gêneros”. O texto se propôs a
discutir a questão da violência contra a mulher, do papel dela na sociedade, do
preconceito que ainda sofre, debatendo questões que foram ignoradas pela
maioria das notícias publicadas tanto pelo site G1 quanto por outros
pesquisados.
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Rayani M. dos Santos | Patrícia Rosalba S. M. CostaGiovanna Lícia R. Triñanes | Miriam Pillar Grossi
Geisy Arruda: analisando a cobertura jornalística do portal Folha de S. Paulo
Foram publicadas no site da Folha de S. Paulo 44 reportagens. As
matérias oscilaram entre acusação e defesa da vítima. Uma das notícias
publicadas no dia 30 diz: “Alunos se dividem em defesa e ataque a estudante
que causou tumulto por 'pouca roupa'”. Além da culpabilização da estudante,
outro aspecto que merece destaque é a forma como foi escrita, como se fosse a
narrativa de um filme. Há personagens, drama, ação, herói e vítima: “O
professor Rubens [...] teve de sair da sala em operação de resgate”. A jornalista
continuou com o sensacionalismo: “A essa altura, Michele [Geisy] chorava,
desmanchando a maquiagem. Um chute na porta, a maçaneta voou.
Machucou o professor”. Toda a matéria veio ilustrada com as frases gritadas
pelos alunos da Uniban que agrediram Geisy Arruda.
Devido à escolha da repórter pela dramatização, a notícia não
conseguiu demonstrar a seriedade do fato. Ao escolher dar voz aos agressores,
colocando as frases violentas e maldosas ditas por eles, como “deixou cair uma
carteira, de propósito, só para ter de se agachar”, sem se preocupar em discutir
todo o preconceito e violência de gênero que estavam por trás delas, a repórter,
de certa forma, legitimou a ação deles. Além disso, a matéria é finalizada com
uma fala da estudante de Turismo dizendo que agora “Só se veste de calça e
camiseta e a maquiagem fica guardada”. A partir dessa frase, subtende-se que
a matéria apelou para o moralismo e ratificou o erro cometido por Geisy de usar
indumentárias inadmissíveis para o ambiente escolar, ou seja, a aluna
aprendeu a lição, ela não vai mais usar roupas que os outros consideram
inadequadas.
Quando analisamos produtos jornalísticos, devemos refletir sobre
alguns conceitos que permeiam o campo, já que, ao entendê-los, é possível
compreender melhor como é a rotina de produção de notícias e como esta
interfere no produto final. Um desses conceitos, como aponta Tuchman
(1999), é a objetividade. A autora explica que os jornalistas “podem mitigar
pressões contínuas como os possíveis processos de difamação e as repressões
antecipadas dos superiores, com a argumentação de que o seu trabalho é
'objetivo'” (TUCHMAN, 1999, p. 74). De acordo com ela, o jornalista poderia
afirmar, por exemplo, que, em vez de dar sua opinião, ele citou outras pessoas.
Esse recurso é encontrado em todos os sites analisados e em grande parte das
matérias. “Ao inserir a opinião de alguém, eles acham que deixam de participar
na notícia e deixam os 'fatos falar'” (TUCHMAN, 1999, p. 81). Porém, ao
selecionar as fontes com as quais irá conversar e depois escolher o que irá
aproveitar daquilo que foi dito, o jornalista já está utilizando-se de sua
subjetividade, fato que se repetiu em vários casos aqui analisados.
132
Nos dias que se seguiram, várias matérias foram publicadas no site da
Folha de S. Paulo. Nota-se que após a expulsão o fato ganhou maior
importância na mídia. Várias informações que ainda não haviam sido dadas
foram temas de matérias. Em uma delas, expuseram uma manchete que fala
sobre a readmissão da estudante. A notícia está focada no fato de que o vice-
reitor da Uniban, Ellis Brown, afirmou que a repercussão negativa do caso
influenciou na readmissão de Geisy. Toda a notícia é delineada com frases e
opiniões de Ellis Brown, a única fonte citada. Além de classificar o Conselho de
corajoso por seguir o processo regimental e expulsar Geisy, “negou que o
conselho universitário tenha se precipitado ao expulsar a estudante”. É
importante destacar que a mídia, mesmo tratando o caso de forma superficial e
preconceituosa, em muitos momentos, também contribuiu positivamente,
ajudando na decisão da universidade de readmitir Geisy Arruda.
Após a análise das reportagens publicadas no período selecionado, é
possível indicar que a cobertura realizada pelo site da Folha de S. Paulo foi
bastante superficial. Em nenhum momento, a editoria proporcionou uma
discussão mais profunda em relação ao caso. É fato que todas as matérias
analisadas pertenciam ao gênero jornalístico notícia, que normalmente possui
um lead no qual são respondidas seis perguntas básicas relacionadas ao fato
noticiado (quem, o quê, quando, onde, como e por que). Nota-se que em
inúmeras matérias sobre o caso quase todas essas perguntas eram
respondidas, quem, o quê, quando, onde e como são respondidas em todas,
porém por que não. O porquê foi exaustivamente explicado pelo vestido curto,
ocultando o preconceito e o machismo que estavam por trás da agressão.
Geisy Arruda: analisando a cobertura jornalística do portal R7
No site de notícias da Record, o R7, foram encontradas 40 matérias,
publicadas do dia 30 de outubro a 12 de novembro de 2009. Uma entrevista
com a estudante agredida tem como título uma frase de Geisy dizendo que se
sentiu “um bicho, uma criminosa”. Essa citação foi escolhida com o objetivo de
atrair a atenção do leitor. Já no texto introdutório da entrevista nota-se que o
jornalista condena a atitude dos estudantes da Uniban. Ele diz que Geisy foi
“vítima de um dos mais insanos atos coletivos de que se tem notícia nos últimos
tempos”. Além disso, destaca que “inclusive mulheres” atacaram a estudante.
Essa participação de mulheres na agressão é observada também em outras
matérias.
Várias notícias saíram, mas destacamos o artigo no blog de Eduardo
Marini, que fala de uma questão relevante. O jornalista utiliza uma linguagem
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Rayani M. dos Santos | Patrícia Rosalba S. M. CostaGiovanna Lícia R. Triñanes | Miriam Pillar Grossi
informal para dizer o quão é absurdo algumas pessoas que vão comentar o
episódio gastarem 90% do tempo falando da roupa “inadequada” que Geisy
usou, para no final dizerem que “nada justifica”. Essa crítica foi direcionada ao
programa Fantástico, especialmente à fala de Gloria Kalil.
Matérias com enfoque político também foram publicadas, como
“Presidente do PT chama universidade que expulsou aluna de 'fascista'”. Outras
deram vozes à UNE e à Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres.
Ambas as entidades criticaram enfaticamente a expulsão de Geisy, porém
nenhum dos dois títulos conseguiu expor claramente as opiniões. Nesse portal,
a fala da ministra Nilcéa Freire, por exemplo, classificou a expulsão de
“absoluta intolerância e discriminação”, informação que apareceu apenas no
olho da matéria.
Outro artigo publicado no blog Querido Leitor destaca de forma direta e
irônica como é absurdo a Uniban apresentar em seu comunicado como
justificativa para a expulsão o fato de Geisy ter feito um percurso maior, posar
para fotos, ter se recusado a complementar suas vestimentas, como se esses
atos fossem crimes.
O protesto liderado por movimentos sociais feministas e pela UNE
também ganhou destaque no portal do R7. Mais uma vez, o foco da notícia
recaiu nas vaias dos estudantes da Uniban. No olho da matéria, há frases
gritadas pelos estudantes para as manifestantes, como “vai lavar panela”, “vai
lavar roupa” e “vai cozinhar”, fato que demonstra nesses ditos o local que ainda
é designado à mulher na sociedade brasileira. Ao longo da matéria, foram
ouvidos apenas estudantes da Uniban que criticam Geisy, dizendo que ela pediu
para ser agredida, que usou um “vestido muito obsceno”. Um dos estudantes
ouvidos pelo R7 falou: “Agora, vão achar que só prostituta estuda aqui”.
A escolha da abordagem e as fontes ouvidas pelo site mostram que a
cobertura do protesto foi extremamente parcial. Além disso, apenas no fim da
matéria o evento foi retratado, com informações sobre quais movimentos
participaram e o que eles reivindicavam.
Outro protesto noticiado pelo site R7 foi o realizado pelos estudantes
da UnB em defesa de Geisy. A manifestação ganhou destaque pelo fato de os/as
alunos/as terem tirado a roupa e se dirigido ao prédio da reitoria, em protesto
contra a atitude considerada machista por eles/as. O fato aconteceu logo após a
grande repercussão que o caso ganhou na mídia nacional e internacional. Em
nenhum dos casos, foi discutido de forma mais clara e menos superficial o
motivo dos protestos, que não eram apenas a favor de Geisy, mas para
reivindicar que cesse todo tipo de violência contra a mulher. Os estudantes da
134
UnB, por exemplo, reivindicavam que as estudantes dessa universidade
tivessem mais segurança no campus, fato que não foi citado na matéria do site
R7, mas foi noticiado na rede Globo, por meio do jornal nacional.
Geisy Arruda: analisando a cobertura jornalística do portal da revista semanal
Época
Ao se escolher como objeto de pesquisa matérias publicadas em uma
revista, deve-se levar em consideração o fato de que há um intervalo diferente
de tempo entre as publicações das revistas semanais e dos jornais diários. Por
isso, normalmente, as notícias publicadas pela revista já foram apresentadas
por outros meios como televisão, rádio e diários. Os periódicos semanais então
precisam ter um diferencial: trazer informações novas e analisar o fato de forma
mais profunda. Devido a essas peculiaridades, é mais comum encontrar
opiniões e discussões mais densas em revistas do que em jornais.
Se nas revistas impressas a opinião se apresenta de forma mais
contundente, nos portais das revistas, ela se mostra ainda mais presente, já
que na internet não há o problema da falta de espaço para a formatação do
texto. Além disso, os colunistas têm blogs onde dispõem de maior liberdade
para falar o que pensam e escrever com uma linguagem mais informal.
A primeira matéria que saiu no site da Época sobre o caso de Geisy
Arruda foi publicada no blog Bombou na Web, no dia 28 de outubro. Nela, o
jornalista falava do episódio e classificava o vídeo como “muito triste”. Em outro
momento, diz que o evento “ocorreu numa universidade e não num ritual
bárbaro qualquer”. Esses dois exemplos ilustram o caráter mais livre e informal
das matérias analisadas nesse veículo, além de sugerir que a linha editorial se
posicionou de forma mais crítica e direta em relação a outras linhas editorias
estudadas neste artigo.
No blog 7x7, a jornalista classificou a história de “simples, vergonhosa
e sádica”, criticou os “rapazes” que disseram que a moça pediu para ser
xingada por ter ido com roupa curta e disse que esses são os “mesmos que
estupram por se sentirem 'atiçados' por coxas à vista e decotes mais sensuais”.
Outras matérias do site trazem dois aspectos que chamam a atenção:
um refere-se à citação recorrente da cor do cabelo de Geisy (loira) e outro faz
referência ao vestido, que por ser tão curto era possível “entrever sua calcinha”.
Nesse sentido, apesar de as matérias do site da Época serem mais cautelosas
em relação ao episódio, pode-se perceber uma grande preocupação com a
aparência, a cor do cabelo e os trajes usados pela estudante agredida.
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Um artigo que merece destaque é “Geisy foi expulsa pelos filhos da
revolução sexual?”, também publicado no blog 7x7, escrito a convite das
editoras do blog por Gabriela Leite, socióloga, fundadora da ONG Davida e da
grife Daspu e autora do livro Filha, mãe, avó e puta – no qual conta sua
experiência como universitária e garota de programa. Convidar uma pessoa que
já sofreu preconceito por ser prostituta foi uma iniciativa interessante da
editoria do site, pois houve um enfoque diferente que conseguiu expor as
semelhanças entre as agressões que várias mulheres sofrem cotidianamente e
que não são discutidas, além de explorar criticamente várias situações que
pontuam os preconceitos de gênero sofridos por mulheres.
Em uma coluna que saiu no dia 8 de novembro, o colunista justificou a
atitude de expulsar Geisy como uma questão meramente “mercantil”, já que
era mais fácil “criminalizar uma minissaia do que enfrentar uma massa de
centenas de estudantes que, acima de tudo, pagam pelas mensalidades que
sustentam o estabelecimento”. Vemos que o argumento econômico utilizado
apaga também o preconceito que esteve por trás da decisão da expulsão.
Geisy Arruda: um debate entre pares
Por fim, analisamos aqui quatro artigos de opinião publicados em
diferentes veículos após a exibição exaustiva do caso na mídia: da socióloga e
líder do movimento de prostitutas Gabriela Leite, do psicanalista Contardo
Calligaris, do filósofo Renato Janine Ribeiro e da antropóloga Sônia Correa.
Gabriela Leite escreve no blog Mulher 7x7, no dia 9 de novembro
2009, um artigo intitulado “Mulheres são vagabundas ou certinhas? Boas ou
más? Da vida ou de família?”. Nele, a autora defende o movimento pela
legalização da prostituição, tomando como mote o caso Geisy Arruda. Gabriela
escreve sobre uma dupla moral que vigoraria na sociedade brasileira, que
“procura prostitutas para satisfazer suas fantasias e esconde-se atrás de bons
costumes”. Para ela, essa seria a raiz da luta política pelos direitos das
prostitutas “em nome de uma sociedade menos hipócrita e moralista”. Ela
defende que Geisy Arruda não deve se calar frente às agressões que sofreu e
deve lutar em nome de um equilíbrio maior na civilidade, onde “todos seriam
livres para exercerem sua autonomia”.
Já o psicanalista Contardo Calligaris escreve no site da Folha de S.
Paulo, no dia 5 de novembro de 2009, um artigo intitulado “A turba da
UNIBAN”. Para ele, após 40 anos de luta feminista, a sociedade brasileira
ainda não reconheceu que mulheres são sujeitos sociais e como tal “também
têm desejos”. O insulto usado pela “turba” de universitários contra Geisy – puta
– mostraria a rejeição social à possibilidade de uma mulher ter desejo próprio.
Dessa forma, a agressão representa a opinião social de que ela “deveria ser
punida” por mostrar seu desejo. Calligaris traz também argumentos feministas
sobre como os papéis de atividade e passividade sexual associam-se no Brasil à
figura do “veado” e aos papéis femininos e que portanto a “turba” da Uniban
estava também obrigada a mostrar-se “ativa” sob risco da estigmatização do
passivo sexual, que é o lugar ocupado simbolicamente pelos homossexuais em
nosso sistema de gênero (FRY, 1982).
O terceiro artigo destacado aqui é o do filósofo e professor da USP,
Renato Janine Ribeiro, publicado pela Folha de S. Paulo no dia 15 de
novembro de 2009: “Tensão e direitos humanos”. O argumento central de seu
texto se refere ao desejo, a uma sexualidade provocante que mexeu com os
estudantes da Uniban e fez com que o caso merecesse destaque na mídia. Para
o autor, tratar esse assunto a partir dos parâmetros de cidadania ou
discriminação contra a mulher deixaria as reflexões empobrecidas e com um
viés apenas legalista. O que está em pauta e deve ser refletido, segundo Janine,
é a negociação entre o id e o ego representados a partir dos estudos de Freud.
Expresso na proposição de que, após a mulher ter conquistado o direito de se
vestir como bem queira expondo seu corpo publicamente, a consequência é a
exigência de maior autocontrole por parte dos homens, ao que Janine chamou
de “confronto hipermoderno”, posto que estes não sabem ainda como lidar com
a liberdade feminina, ou seja, não sabem controlar seus impulsos sexuais.
Em contrapartida e em resposta a Renato Janine Ribeiro, Sônia
Correa, antropóloga e autora do quarto artigo, “A persistente naturalização do
sexo: um breve comentário sobre o artigo de Renato Janine Ribeiro”, publicado
no portal Universidade Livre, argumenta que a concepção apresentada por
Ribeiro é fortemente embasada por um viés heterossexual e sexista, dizendo: “é
instigante a observação feita pelo autor de que o 'sexo' tem um poder brutal de
deflagrar emoções públicas e midiáticas”. Ela lembra que no dia em que Geisy
foi atacada pelos alunos da Uniban, certamente, aconteceram no país centenas
de episódios de violência, desrespeito à liberdade de expressão e inclusive
violação da integridade física de outras mulheres, mas também de homens,
meninos, meninas e pessoas idosas, em muitos casos perpetrados por
particulares ou agentes do Estado. Porém, segundo ela, a maioria desses
episódios não chegou às páginas de jornal ou telas de televisão e os que
chegaram não causaram maior escândalo. Correa critica a visão essencialista
sobre a sexualidade defendida por Janine através do uso de noções de sexo
como algo “meramente fisicalista e naturalista”. Criticando a visão de desejo
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exposta pelo filósofo, ela argumenta que numa sociedade nacional e numa
cultura global em que muitos outros corpos, inclusive masculinos, estão
expostos na publicidade, na televisão e na internet, não faz nenhum sentido
tratar o corpo feminino como fonte única e principal da incitação ao desejo.
Os dois textos trazem uma noção mais contundente e profunda do que
as matérias dos outros veículos estudados, pois refletem as diferentes situações
de violência às quais as mulheres estão sujeitas e das quais lutam para se
libertarem, representadas pelas lutas sociais, e, sobretudo, pelo movimento
feminista. O caso de Geisy, portanto, é inserido nos dois artigos, nesse quadro
mundial de luta por equidade entre os gêneros. As reflexões desenvolvidas por
Calligaris nos possibilitam ir além e pensar que dentro desse mesmo quadro
mundial político se inserem também os movimentos LGBTTT.
Caminhos trilhados por Geisy Arruda após o episódio da Uniban
De outubro de 2009 até o início de 2011, fizemos um monitoramento
dos sites G1, R7, Folha de S. Paulo e Época, usando como pesquisa o nome de
Geisy Arruda, a fim de explorar os desdobramentos do acontecimento em sua
biografia. Não faremos distinção entre eles, pois todos os portais mencionam os
mesmos fatos, variando somente o número de notícias. Observamos que após a
divulgação do episódio a estudante se tornou muito conhecida no Brasil e
passou a ter um status de celebridade, tendo sua vida noticiada
cotidianamente em sites de notícias, revistas de fofocas e em outros meios. Em
dezembro de 2009, Geisy ganhou 32 mil reais em cirurgia plástica como
presente de seis empresárias amigas do cabeleireiro de Geisy. Após cirurgia
modeladora e implante de silicone, Geisy, atualmente apresentada como “ex-
estudante”, “empresária”, “modelo” e/ou “celebridade”, apareceu
“recauchutada” no programa Fantástico da rede Globo.
No início de 2010, ela é homenageada e convidada para desfilar como
destaque de uma escola de samba do Rio de Janeiro, cujo tema do desfile era
“Com que roupa... eu vou?” Ela representou a rainha Elizabeth I vestida com
uma releitura de seu vestido rosa. No mês seguinte, março de 2010, Geisy
lança nas ruas do comércio popular de São Paulo uma coleção de vestidos na
cor rosa, que leva o nome Rosa Divino: “Minha inspiração é a dona de casa”,
disse a estudante ao site G1. Durante esse mesmo ano, Geisy apareceu em
diferentes programas de emissoras de televisão como MTV, Globo, Record e
SBT. Além disso, assinou um contrato com a TV Cidade, afiliada da Record em
Fortaleza, na qual iria apresentar um programa. Porém, o contrato foi
cancelado.
Ela apareceu também em clipes musicais e foi cogitada para ser garota
propaganda da cerveja Devassa. Geisy foi convidada para participar de um
reality show da emissora de televisão Record, do mesmo grupo do portal R7. O
reality show se chama A Fazenda, no qual pessoas famosas são convidadas
para ficarem confinadas durante alguns meses em uma fazenda. A terceira
edição, que contou com a participação de Geisy, começou no dia 28 de
setembro. A estudante foi a segunda a ser eliminada, no dia 15 de outubro.
Apesar do pouco tempo em que permaneceu no reality show, durante o
período, várias notícias sobre ela foram publicadas no portal R7. Enquanto
estava na casa, os companheiros de confinamento cogitaram repetir o episódio
violento que aconteceu na Uniban. A ideia era que Geisy colocasse o mesmo
vestido rosa usado no dia em que foi agredida para que os colegas da casa
encenassem o papel dos universitários que protagonizaram a agressão, no
entanto os colegas do confinamento sugeriram se dirigir à estudante apenas por
gestos, enquanto ela poderia responder o que quisesse. A ideia não foi
realizada, pois Geisy afirmou que não gostaria de relembrar o episódio vivido.
Após sua saída, foi cogitada para sair na capa de revistas masculinas,
optando por estampar a capa da revista Sexy com ensaio sensual em Punta del
Este, no Uruguai. Essa edição publicada no mês de novembro de 2010 foi a
mais vendida dos três anos anteriores da revista.
No mês seguinte, o jornalista Fabiano Rampazzo, atual colunista de
revistas e sites de comportamento, lança, pela Matrix Editora, marca da Editora
Urbana Ltda, cinco mil exemplares do livro biográfico de Geisy – Geisy Arruda:
Vestida para causar. O livro é resultado das sessões de entrevistas realizadas
com Geisy ao longo de 2010. É escrito em primeira pessoa, como uma espécie
de livro de confidências, com alguns trechos nos quais o autor acrescenta
informações relevantes. Merecem destaque a longa descrição detalhada da
noite do massacre na Uniban e o início de suas aparições na mídia nacional e
internacional. No prefácio, a psicanalista e colunista da revista da Folha,
Luciana Saddi, apresenta Geisy como responsável, livre sexualmente,
trabalhadora, e sensível para as causas em defesa da liberdade das mulheres
(RAMPAZZO, 2010). Em maio de 2011, a ex-estudante participou da 2ª
Marcha Nacional Contra a Homofobia, em Brasília. Segundo a revista Época,
uma das conclusões do autor é que Geisy virou “símbolo do feminismo”. Vale
refletir sobre qual feminismo se está falando, a partir do que Otto (2004)
caracteriza como um contexto de diversas identidades e de um feminismo
difuso na sociedade. Nele, a imagem de Geisy pode ser entendida com base na
expressão de uma sexualidade exacerbada como indicação de uma espécie de
poder obtido, sinônimo de “ter controle” de sua sexualidade (CRANE, 2006),
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lançando mão de concepções do feminismo vinculadas à submissão e
centralidade da figura masculina. Para Crane (2006), é também segundo essa
imagem que podemos entender clipes musicais de mulheres como Madonna,
Britney Spears, Christina Aguilera e outras.
No portal R7, o editor Paulo Tadeu falou que o livro busca atingir novos
brasileiros emergentes da classe C: “Ela exerce um fascínio sobre essa classe.
Ela enfrentou uma entidade poderosa, com dinheiro. É uma história que fala
muito para a classe C”. Na mesma matéria, Geisy menciona que está
considerando fazer um filme do livro e, ainda, candidatar-se a vereadora em
Diadema, sua cidade natal no ABC Paulista.
No carnaval de 2011, em março, ela desfilou novamente pela mesma
escola de samba do Rio de Janeiro que a convidara em 2010. Dessa vez sob o
tema “O sonho sempre vem pra quem sonhar”, em homenagem à autora
infantil Maria Clara Machado, vestida com uma fantasia chamada “Delícia”.
Em novembro de 2010, mesmo mês de lançamento da Sexy, a revista Época,
na edição de 653, entrevista o reitor da Uniban. Na entrevista, o reitor em
nenhum momento admite que a Uniban ou os estudantes agrediram Geisy. Em
sua fala, deixa claro: “O motivo pelo qual revogamos a expulsão foi para atender
a um apelo do ministro da Educação, Fernando Haddad, que mostrou
preocupação com o caso, e também pela grande pressão da mídia e dos
movimentos sociais que agiram de forma muito agressiva”.
Além da fama, consequências judiciais surgiram do fato que
aconteceu com Geisy. No dia 22 de abril de 2010, o Ministério Público Federal
instaurou uma ação civil pública contra a Uniban, extensiva ao MEC e à União,
acusando a universidade de não respeitar o devido processo legal durante a
sindicância que resultou na expulsão da estudante Geisy Arruda, em novembro
de 2009.
A estudante também moveu uma ação contra a Uniban. Geisy queria
um milhão de reais de indenização. Durante a audiência, que aconteceu em
setembro de 2010, não se chegou a um acordo com a universidade, pois esta
não aceitou qualquer negociação, pois acredita que não houve nenhuma
omissão da instituição de ensino. Em outubro do mesmo ano, a Uniban foi
condenada a pagar 40 mil reais à estudante. Porém, ambas as partes não
ficaram satisfeitas e recorreram.
Observando-se os fatos que foram noticiados sobre Geisy Arruda,
nota-se que a ex-estudante se tornou uma nova celebridade. O fato associado à
agressão não foi mais tratado, com raras exceções, como às relacionadas às
consequências judiciais.
É importante perceber que, apesar disso, o nome Geisy Arruda é
marcado por uma trajetória de rápida ascensão social acompanhada por
grandes transformações estéticas. Ou seja, seu nome está carregado pela
classe social específica da qual a aluna Geisy Arruda pertencia no momento da
agressão e da grande visibilidade. Esse aspecto determina, enquanto uma
celebridade e empresária nacional, quem são seus fãs, o público com quem
dialoga e para o qual vende seus produtos, os programas dos quais participa
etc., mesmo que a própria agressão e o fato ocorrido na Uniban – o motivo pelo
qual a ex-estudante se tornou conhecida – sejam já periféricos ou inexistentes
na mídia e em seu público. Do mesmo modo, são ignoradas as atitudes da
universidade e a reação dos movimentos sociais, do movimento feminista, dos
estudantes, da mídia, dos intelectuais e da população civil contra o preconceito
dos alunos que agrediram Geisy.
Conclusão
O presente artigo buscou retratar as formas como as violências sofridas
por Geisy Arruda foram apresentadas na mídia brasileira. Observamos que a
aluna foi exposta de maneira preconceituosa em muitas matérias analisadas,
tendo como destaque, quase sempre, o “mau” uso do vestido rosa, além da
apresentação de Geisy como um “objeto” que despertou o desejo dos
estudantes da Uniban.
As diversas mídias, como informantes e formadoras de opinião,
também contribuem para que atitudes, como o caso dos estudantes da Uniban,
sejam consideradas “naturais”, pois “afinal de contas a Geisy provocou o
episódio”, na medida em que “usou roupas inadequadas para a ocasião”, como
afirmaram a editora da moda Gloria Kalil e o filósofo Renato Janine Ribeiro.
Nesse aspecto, o artigo remete-se à análise magistral de Peter Gay (Da Rainha
Vitória a Freud) sobre o pânico que se instalou entre os homens, no fin de siécle
europeu dos novecentos, quando o papel da mulher quanto à sexualidade
feminina estava em franco processo de transformação.
É perceptível o pouco interesse da mídia em discutir o problema das
violências de gênero, em especial aquelas cometidas contra as mulheres, de
forma mais clara, precisa e neutra. Na maioria das vezes, encontramos
resistência na abordagem da violência como um problema social, ficando esta
no âmbito da moralidade e ainda consagrando a mulher, quase sempre, como a
responsável pelos atos de violência que a acometem (GROSSI, 2006).
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Por outro lado, observamos também que algumas matérias e artigos
dialogaram com o/a leitor/a de maneira mais crítica, apresentando argumentos
que problematizam a questão social vivenciada pela mulher na atualidade e
dando espaço para que intelectuais e movimentos sociais se posicionassem
sobre o assunto, pontuando as diversas formas de violência que atingem
mulheres.
A participação dos movimentos sociais, sobretudo do movimento
feminista e de instituições como a Secretaria de Políticas para Mulheres e o
Ministério da Educação, foi fundamental para que as diversas mídias
começassem a tratar esse caso de forma menos sensacionalista, contribuindo
para que o episódio que acometeu Geisy Arruda fosse foco de maior reflexão,
principalmente após a expulsão da aluna, divulgada em nota pela Uniban.
Portanto, não houve uma posição única e apenas negativa na representação da
mídia sobre o caso Geisy Arruda. Nesse sentido, podemos destacar que,
embora pouco representativa, em relação à quantidade de matérias
publicadas, a mídia também demonstrou ter grande interesse na questão das
violências contra as mulheres.
A diferença entre a apresentação de matérias escritas em portais,
comparando-se à fonte televisiva, está, fundamentalmente, na maior extensão
quantitativa dos textos escritos, com constantes repetições dos fatos vividos
pelos personagens durante determinado período de tempo. Outro fator diz
respeito à possibilidade de participação do leitor por meio de comentários das
notícias divulgadas nos sites e nos blogs. Portais de revistas têm mais liberdade
para escreverem e se posicionarem sobre o assunto. Além disso, as matérias e
artigos publicados em sites tinham um teor mais crítico e, algumas vezes,
tentavam mostrar o lado perverso da violência sofrida por Geisy, com
entrevistas que abordavam temáticas como violência e prostituição. Tais
abordagens podem ser compreendidas a partir das análises de Melo (2003)
sobre as distinções entre os gêneros jornalísticos.
O programa Fantástico, exibido pela rede Globo, apresentou o caso
Geisy a partir de parâmetros mais superficiais e, sobretudo, com aspectos
moralistas pautados em apresentações de como as mulheres devem se
comportar, bem como dicas sobre boas maneiras, com destaque para a cultura
da moda e da estética, representada pela colunista Gloria Kalil.
Por fim, os atos praticados pelos/as estudantes da Uniban se
apresentam como relevantes para discutirmos as violências que as mulheres
sofrem diariamente, independentemente da condição social que ocupam, da
idade, etnia, cor, mas apenas pelo fato de ser mulher. Por que o caso de Geisy foi
tão divulgado? Poderíamos destacar especialmente o ineditismo e a intensidade
sobre a forma como a estudante foi agredida – tendo em vista que milhares de
estudantes brasileiras vão à universidade de minissaia, mas não sofrem agressão
– bem como, e sobretudo, o uso das redes sociais e as mídias eletrônicas, uma
vez que eventos pontuais como esses são rapidamente divulgados na internet,
tendo efeitos inesperados e colocando na pauta, mesmo que de maneira não
adequada, o debate sobre as violências contra as mulheres, possibilitando,
principalmente, a proliferação de opiniões de pessoas que se manifestam dos
mais diferentes lugares sociais. Além disso, a projeção nacional e internacional
que Geisy Arruda ganhou e o status de celebridade que lhe é conferido
atualmente podem ser compreendidos também como fruto desse contexto social
e do uso intensivo das tecnologias e redes sociais.
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Para se pensar sobre a experiência transexual na escola: algumas cenas
To think about the transsexual experience in education: some scenes
Dayana Brunetto Carlin dos SantosCoordenadora de Gênero e Diversidade Sexual da SEED
Pesquisadora associada do LABIN – CGS Laboratório de Investigação sobre Corpo, Gênero e Subjetividades – UFPR
Mestre em Educação – UFPRAtivista da Liga Brasileira de Lésbicas – PR
ms.sex.dayana@gmail.com
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Resumo
Este texto propõe a discussão sobre a experiência transexual na escola com base em
alguns conceitos de Michel Foucault, como biopoder, disciplina, biopolítica e
governamentalidade. A partir dessa reflexão sobre a escola como um empreendimento
biopolítico de controle dos corpos e das narrativas de transexuais sobre suas
experiências escolares, o que se pode entender como corpos transexuais, ainda, escapa
ao empreendimento biopolítico da educação. Essas narrativas, organizadas por meio de
atos performativos da memória, evidenciam que ao se analisar experiências transexuais
na escola toda a generalização pode ser perigosa. Os atos performativos da memória
foram aqui emblematicamente organizados em cenas.
Palavras-chave: Escola. Transexualidade. Atos performativos da memória. Narrativas.
Abstract
This paper proposes the discussion of the transsexual experience in school based on
some concepts of Michel Foucault, bio-power, discipline, governmentality and
biopolitics. From this reflection on the school as a new development for bio-political
control of bodies, and from transgenders' narratives about their school experiences, what
can be understood as bodies transsexuals still ventures beyond the bio-political
education. These narratives, organized through performative acts of memory, show that
when analyzing transsexuals experiences in the school all kinds of generalization may be
dangerous. The performative acts of memory are organized into scenes here
symbolically.
Key-words: School. Transsexuality. Performative acts of memory. Narratives.
Contexto
As discussões aqui propostas são parte da dissertação intitulada
Cartografias da Transexualidade: a experiência escolar e outras tramas,
elaborada sob orientação da professora Dra. Maria Rita de Assis César e
defendida pela Universidade Federal do Paraná, em 2010.
Nesta pesquisa, o trabalho se deu a partir da análise de narrativas de
transexuais sobre seus processos de escolarização formal. A produção de
narrativas foi realizada em dois momentos: por meio de entrevistas individuais
com seis mulheres e um homem transexual bem como de um grupo de
discussão com representatividade de lideranças do movimento social de
travestis e transexuais dos estados do Paraná, Rio Grande do Sul e Santa
Catarina. Com o intuito de explicitar qual sujeito está falando e de que
momento participou, a letra E foi acrescentada logo após o nome e sobrenome
das/do entrevistadas/o. Para as participantes do grupo de discussão, logo em
seguida ao primeiro nome constam as letras GD.
As categorias de análise foram denominadas de atos perfomativos e as
subcategorias de cenas, considerando uma reflexão sobre a perfomatividade das memórias, bem como a atuação de cada uma/um dos sujeitos envolvidos
nesta pesquisa. Neste texto, constam algumas das análises realizadas.
A ideia de performance foi aqui utilizada em dois sentidos. Em
primeiro lugar, porque a performance está presente na produção de si em todas
as narrativas utilizadas para esta pesquisa. Transexuais, mulheres e homens
hétero, homo e bissexuais, conforme se descrevem, sempre realizarão
performances de gênero e da identidade desejada e/ou construída nos
processos de transformação. O conceito de performance também é
fundamental para este trabalho, considerando que para Butler (2000) as
identidades de gênero e sexuais serão sempre performativas. No caso de uma
reflexão sobre a memória das experiências transexuais, poderá se pensar em
algo como uma “performatividade da memória”. E por que não pensar que para
todas/os nós seja assim?
Uma leitura do mapa estático da transexualidade, construído por redes
de poder-saber singulares, demonstra as condições de possibilidade para a
invenção do sujeito “transexual”, na segunda metade do século XIX. Nessa
perspectiva, pode-se afirmar que a transexualidade não é um dado natural e a-
histórico, mas sim uma invenção engendrada nas redes de saber-poder. Como
outros objetos e sujeitos, o sujeito transexual é uma produção histórica e
datada, construída a partir da articulação de mecanismos singulares de
controle dos corpos e desejos.
149Dayana Brunetto Carlin dos Santosn. 07 | 2012 | p. 147-171
Bento (2008), ao abordar a transexualidade, define-a como uma
experiência e não como uma identidade única, fixa, sedimentada, isto é, a
realização de um processo de produção de si, que implicará um conjunto de
transformações corporais e sociais que, por sua vez, constituirão experiências
de produção de corpos e subjetividades. Segundo a autora:
Prefiro referir-me à “experiência transexual”, pois a
transexualidade não é a pessoa. Quem vive esta experiência
tem outras identidades que povoam suas subjetividades:
trabalha, namora, pode ter religião, é membro de
comunidades sociais múltiplas (família, grupos de
interesse), como todo ser social (BENTO, 2008, p. 145).
Partiu-se do pressuposto de que as narrativas produzidas pelos
sujeitos não representam a verdade do que aconteceu no passado, mas sim a
construção de uma realidade. A apresentação do passado pressupõe uma
concepção de trabalho conjunto entre memória e historiografia, em que
interessa compreender que o passado que se está recriando é distinto da sua
forma primeira. Nesse sentido, Márcio Seligmann-Silva (2003, p. 73-74,
grifos do autor) problematiza:
Uma tal representação não é mais do que uma ilusão dessa
representação total. Respeitar esses limites [...] implica, na
verdade, respeitar a diferença entre o passado e sua
atualização; implica perceber que a historiografia é apenas
uma (re)inscrição do passado e não seu texto “original”.
O autor argumenta ainda sobre a utilização da expressão apresentação
em detrimento de representação: “Graças ao conceito de memória, eles
[Benjamin e Halbwachs] trabalham não no campo da re-presentação, mas sim
da apresentação enquanto construção a partir do presente” (SELIGMANN-
SILVA, 2003, p. 70, grifo do autor).
Assim, essas narrativas são construídas de forma imbricada com
outros enunciados também construídos na cultura por meio da utilização da
linguagem. Segundo Leonor Arfuch (1995, p. 52-53, grifo da autora):
Aun cuando aparezca como un recorrido azaroso, librado a
la iniciativa mutua, todo diálogo está atravesado por
múltiples determinaciones, no sólo las inherentes al uso del
lenguaje y a las posiciones de los enunciadores [...] sino
también las que imponen las instituciones involucradas en
cada caso [...]. [...] Esta “ajenidad” de la palabra (por
cuanto se está obligado a decir o no decir, a “hablar por boca
de otros”), compartida por los interlocutores, participa de
150
un fenómeno mayor, [...] y que tiene que ver con la
pluralidad de voces que hablan, sin que nos demos cuenta,
en los enunciados que consideramos “propios”: vejos
saberes, creencias, dichos del sentido común, verdades que
no necesitan demonstración, opiniones fijadas por el
estereotipo. Así, cada enunciado no solamente interactúa,
[...] con un Otro que instituye frente a si (dialogismo) sino
también con la otredad de lo ya dicho, con el antiguo
sustrato de una lengua y una cultura. En ese sentido nunca
es un primero, por más que responda a nuestra iniciativa
personal, al mundo de nuestra experiência.
Conforme a autora, o sujeito deixa de ser fonte de sua palavra e dos
sentidos que produz e passa a ser “falado” em meio à trama sociocultural na
qual está inserido. Nessa perspectiva, importou compreender os sujeitos da
pesquisa como personagens, operando um distanciamento entre autoras/r e
narradoras/r. Transexuais foram as/o narradoras/r de suas memórias utilizadas
nesta pesquisa. Essas/e narradoras/r são/é entendidas/o nesse contexto como
figuras discursivas que constroem suas falas e se constroem para o momento
do diálogo, isto é, a sua exibição pública (ARFUCH, 1995). Dessa forma,
poder-se-ia pensar que nos atos performativos da memória são agregados
pensamentos e elaborações antes feitas, os quais por si só não eram a imagem
do passado. Poder-se-ia perguntar, diante dessas colocações, se aí não estaria
um possível enunciado para a performatividade das memórias.
Cena um: a escola e a transexualidade
O conceito de disciplina de Michel Foucault é fundamental para se
pensar a invenção da escola moderna, em meados do século XVIII, como
instituição disciplinar. As disciplinas consistem em técnicas de poder que
incidem sobre os corpos visando ao seu domínio detalhado para produzir
subjetividades específicas. Conforme Foucault (2007, p. 118),
[e]sses métodos que permitem o controle minucioso das
operações do corpo, que realizam a sujeição constante de
suas forças e lhe impõem uma relação de docilidade-
utilidade, são o que podemos chamar de “disciplinas”.
A descoberta do corpo como alvo de poder se constitui em elemento
essencial para o exercício da disciplina (FOUCAULT, 2007). Em sua obra Vigiar
e Punir, publicada em 1975, ao analisar historicamente o funcionamento das
prisões, Foucault (2007) elaborou uma importante teorização sobre as
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instituições, explicitando que as atividades e os procedimentos de tais
instituições têm no corpo-organismo, isto é, no corpo individual, seu alvo
privilegiado.
Importa compreender a disciplina em termos produtivos, ou seja, a
disciplina que produz efeitos sobre os corpos de forma ampla, permanente e
contínua (Alfredo VEIGA-NETO, 2007b).
O investimento do poder sobre os corpos se deu de forma a atingir
todos os corpos simultaneamente, da maneira mais detalhada possível, sem
que se anulasse a ação sobre cada corpo. Dessa forma, a arquitetura e a
organização espacial dos corpos tornaram-se fundamentais. Para Veiga-Neto
(2000, p. 13-15, grifo do autor):
[...] isso implica que os corpos não estejam dispersos, mas
de preferência submetidos a algum tipo de cerceamento ou
confinamento que os torne acessíveis às ações do poder. A
clausura – em tantos aspectos copiada pela escola – é o
exemplo limite desse confinamento. [...] dentro desse
confinamento, a distribuição dos corpos deve ser o menos
caótica, difusa e informe possível, pois é preciso que o
poder atinja igualmente a todos. [...] O quadriculamento é a
melhor imagem para uma distribuição em que a lógica é:
“um lugar para cada corpo e um corpo em cada lugar”. [...]
A função de uma quadrícula é, em última instância,
desempenhada pelo corpo que a ocupa. [...] o que mais
importa não é tanto o território nem o local – em termos
físicos – ocupados por um corpo, mas, antes, a sua posição
em relação aos demais. E desses demais entre si e assim
por diante. [...] Assim, o espaço não se reduz a um simples
cenário onde se inscreve e atua um corpo. Muito mais do
que isso, é o próprio corpo que institui e organiza o espaço,
enquanto o espaço dá um “sentido” ao corpo.
No processo de constituição da escola moderna disciplinar, não
somente os corpos foram disciplinados. A disciplina atingiu também os
saberes, produzindo os saberes escolares ou a pedagogização do conhecimento
(VEIGA-NETO, 2000). A partir desse processo, deflagra-se um enfrentamento
no campo do saber relacionado ao exercício de poderes, determinando o
rearranjo dos próprios saberes. Para Julia Varela (1994, p. 89-90):
A partir de finais do século XVIII, e em conexão com esse
processo de pedagogização do conhecimento, produziu-se
uma nova transformação, que Michel Foucault denominou
152
de “disciplinamento interno dos saberes”. [...] [Para
Foucault, importava] analisar o múltiplo e imenso combate
que então se travou no campo do saber, em relação com a
formação e o exercício de determinados poderes, o que
implicou uma reorganização dos próprios saberes.
O processo de disciplinarização dos saberes foi orientado por meio de
procedimentos como organização, classificação, depuração e censura dos
conhecimentos, constituindo-se em uma operação moralizadora. Assim, a
distinção entre corpo e conhecimento na escola disciplinar anulou-se, uma vez
que ambos foram disciplinados e moralizados com o intuito de produzir um
determinado tipo de sujeito. Esse conjunto de corpos e conhecimentos
disciplinarizados engendrou a produção de um sujeito específico, ou seja, o
sujeito anormal (Maria Rita de Assis CÉSAR, 2004, p. 54). Esse deslocamento
é importante na medida em que articula uma relação imprescindível para a
compreensão da problemática proposta por esse texto, isto é, a dicotomia entre
normalidade e anormalidade. Nesse sentido, a autora (2004, p. 54)
argumenta:
De conhecimentos verdadeiros, tal como eram entendidos
no século XVII, os conhecimentos passaram a ser
separados entre morais e amorais, em uma operação que
classificou, hierarquizou e excluiu conhecimentos em nome
da produção de uma subjetividade normalizada.
No projeto disciplinar, o exame ocupa lugar central. Esse
procedimento se constitui, segundo Foucault (2007), por meio de uma espécie
de comparação e de um desejo relacionado a uma média idealizada no que se
refere a comportamentos e condutas. No interior do regime de saber-poder, por
meio do qual se articulam saberes produzidos e práticas regulatórias, o exame é
a culminação do processo, pois articula “as técnicas de hierarquia que vigia e as
da sanção que normaliza” (FOUCAULT, 2007, p. 154). Na forma de técnicas,
esses saberes e práticas intentam o controle dos corpos por meio dos exames.
Esse regime pressupõe também a punição aos indivíduos desviantes das regras
estabelecidas. Segundo Foucault (2007, p. 152-153, grifo do autor):
Em suma, a arte de punir, no regime do poder disciplinar,
não visa nem a expiação, nem mesmo exatamente a
repressão. Põe em funcionamento cinco operações bem
distintas: relacionar os atos, os desempenhos, os
comportamentos singulares a um conjunto, que é ao
mesmo tempo campo de comparação, espaço de
diferenciação e princípio de uma regra a seguir. Diferenciar
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os indivíduos em relação uns aos outros e em função dessa
regra de conjunto – que se deve fazer funcionar como base
mínima, como média a respeitar ou como o ótimo de que se
deve chegar perto. [...] A penalidade perpétua que
atravessa todos os pontos e controla todos os instantes das
instituições disciplinares compara, diferencia, hierarquiza,
homogeneiza, exclui. Em uma palavra, ela normaliza.
Desse modo, estabelece-se uma diferenciação entre os sujeitos e sua
segregação, entre duas dimensões bem distintas e caracterizadas, isto é, o
normal e o anormal. A diferença passa a ser pertinente como subsídio para a
diferenciação e a classificação. Produz-se, dessa forma, uma hierarquia entre
os sujeitos fundamentada em uma aproximação ou distanciamento da norma
(FOUCAULT, 2007). Instaura-se, com isso, a dicotomia entre normalidade e
patologia, que sustenta o funcionamento das instituições disciplinares,
propiciando o cumprimento da sua função de disciplinar e normalizar os
sujeitos (CÉSAR, 2004).
O Estado moderno nasce e cresce em meio às transformações na
dinâmica do poder, articulando soberania, disciplina e gestão governamental,
sendo essa última, segundo Veiga-Neto (2007b, p. 72), compreendida como
“uma nova arte de governamento exercida minuciosamente, ao nível do detalhe
individual e, ao mesmo tempo, sobre o todo social”. O conceito foucaultiano de
governamentalidade é fundamental para se pensar sobre esses
deslocamentos.
As análises de Foucault, ao tomarem as formas de governar como um
objeto de investigação definiram um domínio de governo em que tais práticas
têm a população como seu objeto, a economia política como forma central e os
dispositivos de segurança como seu instrumento técnico essencial (Edgardo
CASTRO, 2009). Nessa perspectiva analítica, “[...] o poder político acabava de
assumir a tarefa de gerir a vida” (FOUCAULT, 1988, p. 151). Assim, de acordo
com Foucault (1988, p. 152), instalou-se uma tecnologia de dupla face sobre a
vida: enquanto o poder disciplinar centrou-se no adestramento do corpo,
cerrado nas instituições, a biopolítica focalizou-se na regulação da população.
Essa tecnologia o autor denominou de “biopoder”.
A educação assim como a saúde e a habitação, por exemplo, passam,
a partir da metade do século XVIII, a ser uma preocupação do Estado (Inês
DUSSEL; Marcelo CARUSO, 2003, p. 158). Em artigo sobre o tema, Ernesto
Pimentel Filho e Edson Vasconcelos (2007) descrevem as formas de atuação
da biopolítica, a partir das teorizações de Michel Foucault:
154
Essa nova tecnologia não se resume ao homem como corpo,
ela se dirige aos fenômenos mais globais, mais gerais. Vai
afetar os processos ligados à vida, como o nascimento, a
morte, a doença, a produção, o casamento. Nesse sentido,
não será a individualização que se coloca, mas a
massificação; não o homem-corpo, mas o homem-ser vivo.
Processos como os de natalidade, mortalidade e de
longevidade se articulam a uma série de outros de ordem
política e econômica, eles serão os principais campos de
saber e alvos dessa biopolítica. É então que se lança mão de
incrementos para a melhor captação destes processos
(PIMENTEL FILHO; VASCONCELOS, 2007, p. 18-19).
A biopolítica transforma os fenômenos de população em um problema
político e científico (André DUARTE, 2006). A fabricação da vida como
fenômeno político é o objetivo de uma tecnologia cujo alvo central é a
população. As várias possibilidades de intervenções no biológico criam
mecanismos e efeitos até então impensáveis (Fabrício PONTIN, 2007, p. 69).
Com isso, pode-se compreender a escola como um empreendimento biopolítico
por excelência. Considera-se que os novos saberes criados a serviço do poder
tiveram como objetivo principal o controle do corpo como espécie. Assim, a
população constitui-se em um corpo com múltiplas cabeças que, para ser
compreendido, é descrito, numerado, quantificado, analisado, além de ser
comparado em relação àquilo que se instituiu como norma. Disso, resultam
dois efeitos: o controle das populações e a previsão dos seus riscos (VEIGA-
NETO, 2007b; DUSSEL; CARUSO, 2003).
Deslocamentos
Nas últimas décadas, entretanto, uma nova ordenação social tem se
feito sentir. Essa nova ordem social está sendo implementada, ainda que sua
análise e compreensão passem, muitas vezes, despercebidas sob a forma da
naturalização de discursos e práticas sociais. Nesse sentido, Gilles Deleuze
(1992, p. 216) argumenta que “[o] que está sendo implantado, às cegas, são
novos tipos de sanções, de educação, de tratamento”.
O pressuposto foucaultiano sobre o exercício das disciplinas em que
cada corpo ocupava o seu lugar, o mais visível possível, para facilitar o
controle e a produção de corpos dóceis e úteis não foi extinto, apenas se
deslocou. A ideia de crise ocupa na nova ordem social um lugar central na
produção de relações de poder diferenciadas das engendradas pela disciplina
155Dayana Brunetto Carlin dos Santosn. 07 | 2012 | p. 147-171
na modernidade. Deleuze, em um ensaio de 1992, em que reflete acerca das
transformações sociais, políticas e econômicas a partir da segunda metade
do século XIX e com base em suas análises sobre a contemporaneidade,
refere-se a uma crise generalizada nas instituições disciplinares modernas de
confinamento, dentre as quais se encontra a escola. A compreensão dessa
crise escolar, como meio de confinamento e exercício do poder disciplinar,
implica a apreensão da escola como objeto historicamente construído com
data de nascimento e, por ser histórica, suscetível ao desaparecimento
(Pablo PINEAU, 2005).
O provável desaparecimento do modelo disciplinar moderno já havia
sido notado e anunciado pelo próprio Foucault, na análise da modernidade e da
invenção das instituições disciplinares. Conforme Deleuze (1992, p. 219-220,
grifo do autor),
Foucault situou as sociedades disciplinares nos séculos
XVIII e XIX; atingem seu apogeu no início do século XX. [...]
Mas, o que Foucault também sabia era a brevidade deste
modelo [...]. As disciplinas, por sua vez, também
conheceriam uma crise, em favor de novas forças que se
instalavam lentamente e que se precipitaram depois da
Segunda Guerra mundial: sociedades disciplinares é o que
já não éramos mais, o que deixávamos de ser. Encontramo-
nos numa crise generalizada de todos os meios de
confinamento, prisão, hospital, fábrica, escola, família.
Dessa forma, para Deleuze, Foucault demonstrou a brevidade das
sociedades disciplinares e a crise que engendrou as relações sociais a partir da
Segunda Guerra Mundial, considerando as atrocidades empreendidas nos
campos de extermínio, como os assassinatos em massa de judias/eus,
ciganas/os e homossexuais, entre outros (CÉSAR, 2004; DUSSEL; CARUSO,
2003). Nesse importante ensaio, Deleuze desenvolveu o conceito de
“sociedade de controle”, que consiste em uma ferramenta fundamental para a
elaboração das problematizações sobre essa nova ordenação social, além de
ser essencial para a discussão aqui apresentada, que toma a escola
contemporânea como o lugar sobre o qual os sujeitos da pesquisa se inscrevem.
A busca pela qualidade total na educação, o empreendedorismo, a
motivação, a competitividade, a metodologia de projetos, ações pontuais sobre
os temas sociais desarticuladas do currículo, a recuperação paralela, a
promoção automática das/os estudantes, a frequente presença de organizações
não governamentais, além da presença de policiais nas escolas realizando
156
atividades para as quais as/os professoras/es, descrentes de sua própria
formação, não se sentem preparadas/os, marcam esse contexto (DUSSEL;
CARUSO, 2003).
O importante conceito de pedagogia do controle, elaborado por Maria
Rita de Assis César (2004), consiste em uma ferramenta fundamental para
pensar a construção da escola contemporânea. Nessa perspectiva, a própria
ideia de conhecimento se altera, uma vez que o importante na nova ordem social
é a informação. Os investimentos em educação e na escola visam a transmissão,
o fluxo e o movimento da informação, com velocidade. Essa transformação
produz efeitos no que se refere ao discurso e às práticas pedagógicas, alterando,
assim, o funcionamento das escolas. Na elaboração da autora:
Partindo da tese da passagem de um mundo a outro, a
educação disciplinar está deixando de existir, ainda que
seus fantasmas ainda se façam presentes, e no seu lugar
está surgindo a pedagogia do controle. Na medida em que
isso implica a transformação radical do conceito de
conhecimento, que agora dá lugar à noção de informação
como o verdadeiro “objeto” a ser transmitido segundo
algumas regras metodológicas específicas, a educação
strito sensu fica reduzida a uma mera reelaboração moral.
[...] Na “pedagogia do controle” não só as normas e valores
morais são pedagogizados e escolarizados, mas também
todo e qualquer aspecto da vida (CÉSAR, 2004, p. 150-
153, grifo do autor).
A escola é aqui pensada como empreendimento biopolítico, que
implica uma potencialização do governo dos corpos e das mentes. Com isso, os
agenciamentos biopolíticos da escola deslocam-se para uma
governamentalidade neoliberal, isto é, se a sociedade passa do seu modelo
disciplinar para o controle, a escola passa a ser pautada pela
governamentalidade. A escola contemporânea situa-se nas relações entre a
biopolítica e essa nova forma de governamentalidade neoliberal. É agenciada
pelas biopolíticas e, com isso, tomada como um campo de investimento que
pode potencializar a produção e o consumo. Nessa perspectiva, a escola como
empreendimento biopolítico contemporâneo objetiva capturar os corpos para
torná-los viáveis para a produção e para o consumo (CÉSAR, 2010). Esse
consumo se orienta para a satisfação imediata dos desejos, que cedem espaço
a outros, tão logo sejam satisfeitos. Os produtos procurados são “leves,
voláteis, descartáveis” (Karla SARAIVA; Alfredo VEIGA-NETO, 2009, p. 193).
157Dayana Brunetto Carlin dos Santosn. 07 | 2012 | p. 147-171
1Berenice Bento (2008), ao analisar os documentos que produziram o
discurso oficial da patologização da experiência transexual, encontrou uma
articulação na qual um desses documentos enreda a escola, a família e a
medicina/psicologia para a produção dos diagnósticos e das normas de gênero.
Nessa articulação, o papel da escola consiste em alertar mães, pais ou
responsáveis sobre o comportamento “anormal” da criança em relação à
sexualidade. A preocupação com esse comportamento desviante consiste no
medo de que a criança “seja”, ou “se torne”, lésbica ou gay (BENTO, 2008, p.
129). Em geral, a intervenção se dá por meio de um movimento de recondução
à heterossexualidade. Com isso, a correção do desvio transforma-se em uma
espécie de meta a ser cumprida a qualquer custo (Deborah BRITZMAN, 1996).
Em se tratando de travestis e transexuais, a pedagogia do controle tem
produzido práticas fora das instituições escolares, uma vez que se constituem
em corpos e identidades que escapam (CÉSAR, 2009). São corpos cuja
esperança de retorno à norma regulatória é praticamente nula, considerando
que a maioria dos processos e intervenções empreendidas para a fabricação de
si é irreversível, diferentemente dos corpos de lésbicas e gays.
Nesse sentido, as relações entre a escola e essas experiências
estabelecem-se no campo do estranhamento e, em geral, da tensão. Segundo a
narrativa oficial do Movimento Social LGBT, a escola contemporânea tem sido
eficiente em apagar as diferenças e em propagar a exclusão e a violência, pois 2objetiva que todas/os sejam iguais na diversidade . Entretanto, por meio de
uma reflexão sobre a diferença, a presença dessas experiências na escola
contemporânea poderá ser tomada como um acontecimento. Para Carlos Skliar
(2008, p. 21-22),
[...] é a partir de uma incapacidade, a partir de um não
conhecimento, a partir da impossibilidade para responder a
essa pergunta, que alguma coisa acontece ali, no lugar
onde não há lugar, faz-se acontecimento. Alguma coisa
158
1 Normas de Tratamento (State of Care ou SOC), texto publicado pela Harry Benjamin Internacional Gender Dysphoria Association (HBIGDA) – esse documento está em sua sexta versão; Manual de Diagnóstico e Estatísticas de Distúrbios Mentais (DSM), publicado pela Associação Psiquiátrica Americana (APA), atualmente na quarta versão; Código Internacional de Doenças (CID), da Organização Mundial da Saúde (OMS), em sua décima versão (BENTO, 2008, p. 76-77).2 Para mais sobre essa narrativa oficial, acessar os seguintes sites: da Articulação Nacional de Travestis, Transexuais e Transgêneros: <http://pessoal.atarde.com.br/marccelus2/antra/plantao.html>. Acesso em: 15 out. 2011; da Associação em defesa dos Direitos Homossexuais da grande Florianópolis ADEH – Nostro Mundo: <http://adeh-nostromundo.blogspot.com/>. Acesso em: 15 out. 2011; da Liga Brasileira de Lésbicas Paraná <ligabrasileiradelesbicaspr.blogspot.com>. Acesso em: 15 out. 2011; da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais – ABGLT: <http://www.abglt.org.br/port/index.php>. Acesso em: 15 out. 2011.
torna-se acontecimento, pois o impossível se torna
possível.
O que se percebe é que a simples presença desses sujeitos perturba e
desestabiliza o empreendimento biopolítico da escola, uma vez que
diferentemente da saúde, a qual engendrou o processo transexualizador, a
escola não encontrou ainda meios de capturar esses corpos e torná-los viáveis
para o consumo e a produção. Dentro do imperativo da inclusão escolar, a
presença trans na escola deflagraria um processo de reorganização da
instituição sobre modulações até então impensadas. Entretanto, isso não
ocorre, produzindo, ao contrário, os processos de exclusão (CÉSAR, 2010).
Corpos e identidades transexuais operam uma desconstrução no
sistema corpo-sexo-gênero por meio de estratégias que, possibilitadas pela
própria produção regulatória, desestabilizam a escola e perturbam a nova
ordem das coisas. Esses efeitos determinam, muitas vezes, a rejeição e a
exclusão desses sujeitos, justamente porque se produzem fora da norma e
fogem ao controle (CÉSAR, 2009).
A produção do sujeito pela pedagogia do controle obedece a um novo
conjunto de normas, fundamentado por saberes e discursos que por sua vez se
articulam por meio de poderes produtores de subjetividades viáveis ao
consumo e à produção. A função desse conjunto consiste em manter a nova
ordem estabelecida pela sociedade de controle. Nesse contexto, a escola se
produz como o lugar da informação, da inclusão, da tolerância, da democracia,
da participação, além de promotora da igualdade. Entretanto, nesse discurso
atuam novos jogos de poder que irão aniquilar as diferenças em razão de uma
igualdade moralizante e de uma pedagogia da tolerância e do consenso que,
por sua vez, produzem mais exclusão e violência.
Um desafio para educação e para a escola consiste em procurar
alternativas para se pensar a partir da diferença e da multiplicidade, como uma
expressão da alteridade (Hannah ARENDT, 1987; VEIGA-NETO, 2007a).
Talvez assim se possa traçar meios para resistir e escapar aos tentáculos do
“monstro do controle”. Com isso, talvez, a educação se constitua em uma
possibilidade, como um ato político de resistência e liberdade, em meio às
incertezas e à fluidez, produzindo um enfrentamento à pedagogia da tolerância.
Cena dois: a relação com as/os professoras/es e funcionárias/os
As experiências vividas e (re)vividas pela arte de contar expressam as
transformações na vida dessas pessoas. Com isso, os sujeitos transexuais que
159Dayana Brunetto Carlin dos Santosn. 07 | 2012 | p. 147-171
160
participaram e colaboraram com esta pesquisa proporcionaram possibilidades
de se pensar sobre o funcionamento das redes de poder-saber constituintes dos
processos de exclusão empreendidos na e pela escola. Essas redes
estabelecem como alvo seus corpos e identidades fabricadas.
Foram analisadas aqui as narrativas sobre as relações estabelecidas
com professoras/es e funcionárias/os da escola. As narrativas nesse aspecto
evidenciam singularidades das experiências transexuais na escola. Alguns dos
sujeitos entrevistados expressam recordações agradáveis desse contato. Para
Rafaelly (E): “[a]té os dez anos não tive problemas com preconceito na escola.
Sempre fui muito estudiosa e popular. Os professores me adoravam porque eu
era a melhor da sala”. Entretanto, ao rememorar o seu processo de
escolarização, Rafaelly narra também momentos em que a relação com as/os
professoras/es foi difícil e dolorosa.
Nossa, parece que passa um filme na cabeça... Faltava um
mês para concluir a 7ª e eu parei. Lembro que alguns
professores falavam: “olha a mariquinha!; Corta esse
cabelo!; Cria jeito de homem!”. Nessa época, meu cabelo
era chanel. O diretor dessa escola na época, que
permanece até hoje, também não achava certo eu ser, na
época, gay. Abandonei os estudos por causa disso. Não
aguentei a pressão (Rafaelly Wiest, E).
As relações entre Maitê e suas/seus professoras/es são definidas por
ela como complicadas e difíceis. Ela atribui isso à ignorância das/os
professoras/es sobre a sua experiência. Narra algumas situações por que
passou na escola, nas quais as professoras privilegiavam outras/os alunas/os
em detrimento dela.
Naquela época não existia pedagoga na minha escola.
Essas coisas de acompanhamento foram posteriores. Tinha
uma psicóloga que raramente estava lá e que não entendia
direito e não se aprofundava muito no “problema”. Por
ignorância mesmo. Mas nem eu sabia. Quando acontecia
alguma coisa de chacota na sala de aula, mesmo eu não
sendo a culpada de nada, era eu que tiravam da sala porque
eu era a maçãzinha diferente. Era eu que saía, mesmo
quando eu não tinha culpa nenhuma. Para a professora, era
melhor tirar eu do que tirar os outros 39 alunos. Tira a Maitê
e tenta resolver isso. Eu não tive nenhum acompanhamento
ou encaminhamento da escola. Sempre me culpabilizaram
e, ao mesmo tempo, não podiam falar muito porque eu era
uma ótima aluna. E não sei se mudou muito, agora que tem
as pedagogas. Pelo que eu escuto do Richard, aquele amigo
da minha sobrinha, que é trans e estuda aqui no Bom Jesus,
parece que o entendimento continua bem complicado
(Maitê Schneider Caldas de Miranda, E).
Guerreiro, que vive sua transexualidade no ensino superior, conta que
estabeleceu relações difíceis tanto com suas/seus professoras/es quanto com
as/os funcionárias/os da universidade. Segundo ele, em nenhum momento
sentiu-se amparado na sua experiência transexual.
[...] Já começa com o coordenador usando a bacia de
Pilatos e lavando as mãozinhas dele. Já começa com isso,
então é difícil. A maioria dos professores é desligada. [...] A
equipe técnica de psicólogos e assistentes sociais não está
sensibilizada. Então, hoje eu vejo que a Pró-reitoria fez mais
por obrigação e não compreendeu que deveria encampar
essa luta. E o Núcleo de Gênero, nem se fala, porque eu
cheguei a pedir e não houve nenhum encaminhamento.
Tanto que as pessoas sempre me questionam: “ninguém
pode ajudar?” Não, não pode, porque não quer. Então, foi
uma decepção muito grande. [...] É tanto que uma das
professoras do Núcleo de Gênero foi minha professora e
também não fez nada (Guerreiro, E).
Ao construir suas lembranças do período escolar em relação às/aos
professoras/es, Guerreiro relata:
Eu sempre vou me lembrar de bons professores. Daqueles
que me influenciaram, que me fizeram inclusive acreditar
na educação como os óculos da transformação, que me
fizeram querer estar dentro da educação. E que me trataram
como “gente”, me elogiando quando mereci (Guerreiro, E).
Essa narrativa de Guerreiro explicita uma complexidade em relação à
escola, pois embora tenha lembranças de professoras/es que lhe mostraram
outras possibilidades de entendimento da educação, a meritocracia também
parece ter feito parte dessas interações.
Em relação à sua interação com as/os professoras/es e funcionárias/os
da escola, Carla conta que na terceira série as professoras chamaram sua mãe à
escola para dizer que ela tinha “problemas”, porque apresentava um
comportamento fora do padrão esperado para um menino. Além disso,
tentaram convencer sua mãe sobre a necessidade de tratamento para o seu
“caso”. Assim, nas suas lembranças, Carla expressa sentimentos de
ressentimento e mágoa em relação à escola:
161Dayana Brunetto Carlin dos Santosn. 07 | 2012 | p. 147-171
162
As professoras diziam à minha mãe que eu tinha
“problemas”, que ela precisava me levar num médico, num
psicólogo, porque não era normal esse meu
comportamento, de querer estar só no meio das meninas e
brincar só com meninas. Mas esse meu comportamento
incomodava somente às professoras, pois nem as meninas
e nem os meninos se incomodavam com a minha presença
só nos grupos de meninas. E a mim incomodava menos
ainda, porque era nesse grupo que eu me sentia bem. Uma
vez cheguei a apanhar da minha mãe devido a essa situação
e fui proibida de me aproximar das meninas. Então, obedeci
e me isolei, pois se eu não podia falar com as meninas, com
os meninos é que eu não ia falar. Aí eu ficava na sala de aula
nos intervalos. E isso me deixa triste, pois nenhuma
professora chamou minha mãe para relatar que eu estava,
agora sim, com problemas, pois não tinha mais contato
com as amigas e passava os intervalos isolada dentro da
sala de aula (Carla Amaral, E).
A narrativa de Thaís evidencia uma lembrança de apoio em relação à
sua experiência transexual na escola. Ela relata que uma única vez se sentiu
amparada na escola por uma professora-pedagoga. No entanto, segundo ela,
essa relação foi pontual no seu processo de escolarização.
Na sétima série, tinha uma orientadora no colégio e ela viu
minha situação. Eu cheguei a reclamar com ela que não
dava mais e ela conseguiu que eu fosse ao banheiro dos
professores, mas foi só na sétima porque no outro ano ela
saiu da escola e daí voltou tudo ao “normal”. O segundo
grau eu fui fazer em outro colégio e tive que passar por tudo
de novo (Thaís Prada, E).
Nessa narrativa de Thaís, é importante notar também uma espécie de
banalização das situações de constrangimento, humilhação e violência, pois
voltar ao “normal” significa estar submetida a essas práticas na escola. Entre as
participantes do grupo de discussão, apenas Jennifer relata lembrar-se de ter
estabelecido uma relação com um professor, segundo ela, de afeto e carinho,
prolongando-se por dois anos. Ela lembra:
Tinha só um professor que quando eu comecei a tomar
hormônio, tarde já, com quinze anos, ele passou pela
minha carteira um dia e colocou a mão no meu pescoço
perguntando se eu estava bem. Daí em diante ficamos
juntos. E a gente saiu por dois anos (Jennifer, GD).
A costura coletiva das memórias das outras participantes é feita no
território do silenciamento. Elas afirmaram lembrar-se de ter tido uma relação
nem afetuosa nem difícil com suas/seus professoras/es e com as/os
funcionárias/os da escola. Joyce relata: “[a] relação com os professores era
mecânica. Eles mandavam e a gente fazia, porque tinha que passar de ano.
Ninguém se aproximava muito. A gente se isolava. Era o patinho feio” (GD).
Importa pensar por que as memórias dos sujeitos transexuais sobre o
relacionamento com professoras/es e funcionárias/os da escola invisibilizam
as/os profissionais da educação. Isso se evidencia nas narrativas da maioria dos
sujeitos que dizem não se lembrar de ter tido uma relação próxima com
suas/seus professoras/es. Poder-se-ia pensar no apagamento dessas
memórias.
Cena três: a relação com a instituição
As narrativas sobre a instituição escolar explicitam sentimentos de
desamparo, evidenciando uma sensação de não pertencimento a esse espaço
institucional. A montagem das memórias que importam para elas/e parece
estabelecer uma relação causal entre a sua experiência e as situações
vexatórias, promovidas pela própria instituição. Para Guerreiro:
Eu penso que eu fui hostilizado e humilhado, tanto na
escola como na universidade, porque eu era diferente, por
eu estar fora das normas de gênero, porque a sociedade é
dicotômica. É sempre aquela maldita ideia maniqueísta de
bem e mal. Então, a norma é o bem e fora da norma é o mal.
Então, se você está fora da norma, a sociedade te lê como o
mal. Então, portanto, se você é o mal, a sociedade pode te
hostilizar, pode fazer o que quiser com você. Acho que uma
explicação é essa (Guerreiro, E).
Entretanto, outras construções narrativas, como uma do mesmo
Guerreiro, explicitam a escola como uma instituição importante, de alguma
forma, na sua experiência:
Até o reconhecimento, porque eu fui diversas vezes o
melhor aluno da escola. Então tinha aquela coisa de
hastear a bandeira e isso te dá certo status. Então isso era
legal, porque eu sempre me defini como uma pessoa muito
carente. Porque para mim sempre foi muito difícil conseguir
carinho. Então, quando você tem certa admiração, mesmo
que comprada, mesmo que engolida, “goela abaixo das
163Dayana Brunetto Carlin dos Santosn. 07 | 2012 | p. 147-171
164
pessoas”, para quem está muito carente, é legal. As
lembranças boas são nesse sentido (Guerreiro, E).
Nessa narrativa de Guerreiro, aparece tanto o mérito acadêmico
quanto as negociações. Maitê narra que estabeleceu uma relação utilitarista
com a escola. Segundo ela, como o ensino praticado na escola onde ela
estudava era confessional católico, ela sentia que estava pecando sempre.
Assim, resolveu ignorar o que era discutido pela escola em relação às
experiências fora da norma heterossexual, transformando a instituição em um
meio para alcançar um fim.
Escola para mim sempre foi um caminho para chegar num
fim, entende? Era bem seco assim, não tinha nada de
segunda família, não tinha nada de nada, não tinha
nenhum vínculo afetivo com a escola. Era um caminho que
eu tinha que trilhar para chegar no fim que eu queria, da
melhor maneira possível, mesmo com todas essas
impossibilidades. A escola nunca teve um vínculo do tipo
lugar de saber e nada disso... (Maitê Schneider Caldas de
Miranda, E).
Thaís, ao montar suas memórias sobre a instituição escolar, pensa,
silencia, reconhecendo a instituição escolar como promotora do preconceito e
da discriminação, juntamente com outras instituições da sociedade. Segundo
ela, as/os transexuais e as travestis são os sujeitos que mais sofrem na escola,
por influência dos ensinamentos religiosos presentes na estrutura escolar.
Nesse sentido, relata:
Hoje a coisa já se modificou um pouco mais, embora não
exista lei nenhuma que defenda a gente, não é verdade?
Tem que criminalizar a homofobia, porque os negros têm,
não é verdade? As mulheres têm a Lei Maria da Penha, por
que a gente não pode ter? Essa raça de evangélicos que vive
pegando no pé da gente achando que a gente é uma
criatura que sei lá, subdesenvolvida, que não é desse
mundo, que é filho do capeta, só isso que eles imaginam a
respeito da gente. É complicado... E nós sofremos muito
mais exposição do que os gays e do que as lésbicas na
escola, por exemplo, não é verdade? Eu penso que a
maioria das meninas, tanto de pensionato quanto de rua,
sofrem o preconceito, não aguentam e saem do colégio.
Porque tem travestis que não dá para conversar, sabe,
assim? Que são realmente ignorantes. E não é por falta de
que elas não quisessem aprender, é porque meio que isso
foi negado para elas, não é verdade? (Thaís Prada, E).
Embora a maioria das narrativas dos sujeitos da pesquisa expresse
sentimentos que se aproximam dos revelados na fala de Thaís, importa
considerar que as narrativas são desestabilizadas. Essa desestabilização se dá
por meio daquelas que conseguem produzir algum significado para a
instituição escolar em relação à experiência da transexualidade, como se pode
perceber na segunda fala de Guerreiro. Contudo, mesmo com as
desestabilizações produzidas nas falas que ora tomam a instituição escolar
como produtora da exclusão e do preconceito, ora atribuem algum valor para a
experiência escolar, as narrativas demonstram o descompasso entre a escola e
a experiência da transexualidade.
Cena quatro: as negociações necessárias
Na construção de suas narrativas, Maitê, Guerreiro, Dorothea e Thaís
expressaram as negociações que realizavam no período em que estavam
inseridas/os na escola. Maitê narra:
Teve as chacotas, desde cedo, o que me dificultou muito o
contato com os outros na escola. Então, sempre foi muito
difícil, porque me chamaram uma vez de mariquinha no
recreio e fizeram uma roda para mim e eu achei o máximo.
Eu estava com cinco anos, terminando o pré e não sabia
nem o que era. Depois que meu pai me explicou o que era eu
fiquei muito triste, porque a partir desse momento, eu
soube que as pessoas me tratavam como alguém diferente e
isso me magoou muito. E era tanto de um lado quanto de
outro [entre as meninas e os meninos]. Então eu ficava na
linha do meio. E a partir desse momento eu comecei a
minha vida escolar e no meu segundo ano eu percebi que
quanto mais estudiosa eu fosse, mais eu teria alguma
qualificação que faria com que as pessoas vissem uma
coisa boa, onde as pessoas não viam qualificação
nenhuma. Então, foi muito transparente, desde cedo, que
eu tinha que ser a melhor da minha turma. Não porque eu
queria ser, não porque estivesse dentro de mim, mas,
porque seria um jeito de negociar uma posição que eu não
tinha. Eu tinha sido colocada lá embaixo e esse era um jeito
de negociar uma ascensão na escola. Comecei a ser a
melhor da minha turma e as pessoas começaram a
depender de mim. Querem cola? Querem copiar o que tem
no meu caderno porque tem toda a matéria? Então vocês
têm que me convidar para a festa. E comecei a negociar
165Dayana Brunetto Carlin dos Santosn. 07 | 2012 | p. 147-171
166
esse tipo de coisa na escola. Eu aprendi a ser super
dissimulada com relação a isso. Não acho que seja uma
qualidade também, mas foi uma defesa. Não é uma coisa
que eu me orgulhe muito (Maitê Schneider Caldas de
Miranda, E).
Para Dorothea, as estratégias de negociação tiveram um sentido
diferente. Segundo ela, não havia negociação, mas coação por parte das outras
crianças.
Minhas lembranças do período escolar são que eu não me
identificava nem com os meninos nem com as meninas e
descontava estudando um monte e sendo a CDF da turma,
sempre. E eu não negociava com as crianças. Eu me
isolava mesmo. Mas era muito comum as pessoas me
obrigarem, me forçarem a passar cola. Elas diziam para
mim: “ou você me passa cola ou eu te espanco na saída”. Aí
eu pensava: já que ele pediu com tanta educação, não é?
Eu passava. Mas não era por amizade. Eu me isolava
mesmo nos livros, nos cadernos e nos materiais. Meus
amigos da sala de aula eram meus materiais, mesmo
(Dorothea Lavigne, E).
Guerreiro também conta:
Em contrapartida, assim também, eu encontrei na escola
talvez o único espaço onde eu pudesse de alguma forma
comprar o meu respeito justamente pela dedicação muito
grande aos estudos. É realmente comprar o respeito. Hoje
eu não sei se eu sou uma pessoa que gosta de estudar ou eu
passei a gostar de estudar para poder ter boas notas e poder
aliviar um pouco o preconceito assim, eu não sei definir
(Guerreiro, E).
Sobre as negociações que estabeleceu na escola, Thaís relata:
O segundo grau foi muito barra pesada por causa do
preconceito, porque você está mais sexuada, chegamos
transexualizadas no colégio... Porque até então a gente ia
levando, tranquilinha, na “maciota”. Eu sempre fui uma
aluna inteligente e às vezes tinha alguns alunos que não
gostavam de mim, então eu conquistava e colocava o
nominho deles no trabalho para evitar que eles pegassem
tanto no meu pé, tá entendendo? (Thaís Prada, E).
Embora de maneira diferente, Luisa e Josiane, participantes do grupo
de discussão, também constroem essas narrativas comuns, as quais também
expressam memórias do trauma, sendo articuladas pelos sujeitos como uma
forma de barganhar a sua presença na escola. Com efeito, essa presença
perturba porque desloca a inteligibilidade dos gêneros e desarticula os
pensamentos binários entre o que se constituiu historicamente como feminino
e masculino.
Cena cinco: o abandono da escola
Pensando nas costuras das memórias como narrativas traumáticas,
nesse momento, importa analisar as narrativas em relação ao distanciamento
da instituição escolar. O primeiro posicionamento diz respeito à percepção do
sujeito em relação ao seu afastamento da instituição por preconceito e
discriminação. Quanto ao grupo, dentre as dez participantes, Bruna, Joyce e
Christiani dizem ter sido expulsas da escola por essa razão. Guerreiro narra
processos excludentes, articulados na universidade, que colaboraram para que
não frequentasse as aulas, o que para ele, de alguma forma, significou uma
desistência parcial do curso.
Fiz a minha transição na UFPR. Entrei como lésbica em
2007 e, em meados de 2008, já era o Guerreiro. Não
deixei de estudar formalmente, mas quando eu não tinha
minimamente meu nome social respeitado, eu não
frequentava as aulas porque era muito sofrimento. Então,
dá para dizer que eu desisti também, não é? Porque eu
realmente não fiz. Eu fazia somente as matérias com os
professores que me aceitavam plenamente assim... Eu
fazia uma ou outra matéria com os professores que haviam
compreendido de alguma forma a minha situação e me
apoiado (Guerreiro, E).
Já Andreia Cristina, Thaís, Rafaelly, Sabrina e Carla produzem uma
narrativa comum, articulando a expulsão da escola à prostituição como
destino. Além disso, segundo elas, as transexuais que possuem graduação ou
uma profissão diferenciada formaram-se antes da transformação. Nesse
sentido, Thaís afirma:
Eu acho que, do meu ponto de vista, a prostituição nos é
imposta porque não dão para a gente o direito de estudar e
nos tornarmos profissionais de outra área. Porque é muito
difícil você conhecer alguma transexual que não esteja na
prostituição, que esteja atuando em outra área assim, que
seja formada em medicina, que seja formada em uma outra
coisa assim, sabe? Uma coisa que dê para ela o status quo.
167Dayana Brunetto Carlin dos Santosn. 07 | 2012 | p. 147-171
Uma transexual advogada... Ah, existe, existe sim. Mas eu
penso que durante um bom tempo da vida delas elas já se
especializaram nisso, se mantêm e depois que elas estão
formadas é que elas se transformam (Thaís Prada, E).
Outro deslocamento se dá em relação às narrativas que os sujeitos
constroem no sentido de negar o abandono da escola por preconceito.
Entretanto, como as falas se articulam por meio dos atos performativos da
memória, pode-se perceber a contradição, muitas vezes, em um mesmo
depoimento. Nesse sentido, Maitê relata: “[e]u não larguei a escola em
momento nenhum” (Maitê Schneider Caldas de Miranda, E). Contudo, na sua
trajetória escolar, percebem-se descontinuidades a partir do término do ensino
médio. Segundo ela, chegou a pensar que por estar tomando muitos hormônios
estaria com um problema neurológico, pois queria cursar Odontologia e não
passava nos vestibulares. Passou no vestibular do curso de Direito e cursou por
cinco períodos, mesmo não gostando.
Aí eu peguei uma turma super boa, super gostei e fiquei lá
cinco períodos, mesmo não querendo, detestando Direito.
Eu nunca gostei porque é uma área super formal, que não
tem nada a ver comigo. Mas, por conta da minha turma e
porque estava naquela base, no início eu acabei indo. Mas
no 5° período começaram as práticas. Com isso as
exigências também vieram, visitar presídio e ter que os
rapazes usarem terno e gravata e as mulheres sempre de
“terninho” e eu não queria isso para mim. Eu falei assim:
“olha, não é o que eu quero”. E tranquei. Fiz vestibular,
passei em Letras na Federal. Fiz um ano de Letras –
Português e Alemão e falei: “ai, também não é isso que eu
quero”. Tranquei e comecei a trabalhar com a militância,
nessa época. O site começou em 1997 e começaram todas
essas coisas na minha vida, que tomou outro sentido e eu
não terminei a faculdade. Eu estava com 25 anos na época
(Maitê Schneider Caldas de Miranda, E).
Dorothea (E), assim como Cléo (GD), relata que não abandonou a
escola por preconceito e discriminação, mas sim por dificuldades financeiras.
Nesse sentido, Dorothea afirma:
Eu fiquei na escola direto até terminar o 2° grau, que foi em
1999. Aí eu parei de estudar até 2005 porque eu precisava
trabalhar. Eu precisava de dinheiro. Nunca parei por
preconceito. Nesse ínterim, comecei a me enxergar como
trans, porque até então eu não senti tanto o preconceito
168
porque eu não me enxergava. Algumas pessoas
enxergavam alguma coisa diferente, mas eu não me
enxergava (Dorothea Lavigne, E).
A narrativa de Carla evidencia um posicionamento singular em que a
transformação foi priorizada em detrimento da formação e dos estudos, isto é,
para Carla foi mais importante transformar o corpo e construir sua identidade
feminina do que a formação escolar. Ela narra que desistiu várias vezes de
estudar, reprovou e até faltou aulas para fazer leituras sobre transexualidade.
Faltava às aulas também devido ao preconceito e à discriminação que sofria e,
então, quando precisava fazer as provas, não alcançava a nota mínima exigida.
Para ela:
Isso, somado às lembranças do que passei na escola, fui
adiando o retorno à escola e relutando. Eu via minha
evolução como pessoa e como mulher e pensava: “como eu
vou voltar para a escola”? A escola não vai me aceitar. As
pessoas vão me odiar. Elas vão me chicotear. E eu não abro
mão de ser o que eu sou por causa da escola. E aí, tem
aquela fala de que quem não aprende na escola aprende
com a vida. Eu fui tentar aprender com a vida, fazer o quê?
Se na escola eu não consigo, pensei. E passaram-se 20
anos (Carla Amaral, E).
A análise das narrativas, tanto das entrevistas quanto do grupo de
discussão, suscitou uma reflexão sobre o abandono da escola por preconceito e
discriminação. Essa análise sugere que essa relação não pode ser tomada como
causal. Importa considerar os diversos elementos que articulam esse
afastamento da instituição. Assim, o abandono da escola por preconceito e
discriminação constitui-se em uma possibilidade muito evidente, tendo em
vista a interferência que essas situações produziram no rendimento escolar
desses sujeitos. Outras experiências expressas, como a resistência ao processo
de escolarização, também apareceram. Vale salientar também que, na análise
dessas narrativas, a idade em que transexuais e travestis empreenderam a
transformação de seus corpos e identidades ocupa um lugar central, assim
como os procedimentos adotados e os efeitos produzidos. Talvez seja produtivo
pensar que não são transexuais e travestis que abandonam a escola, mas a
escola é que as/os abandona.
169Dayana Brunetto Carlin dos Santosn. 07 | 2012 | p. 147-171
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171Dayana Brunetto Carlin dos Santosn. 07 | 2012 | p. 147-171
172
From the deceased to the "Europeans":experiences of being, not continuing, and
temporarily becoming a transvestite in adolescence.
9
Da finada à europeia: experiências de ser, não permanecer e
estar travesti na adolescência
Tiago DuqueDoutorando em Ciências Sociais – UNICAMP
Mestre em Sociologia – UFSCarGraduado e Licenciado em Ciências Sociais – PUC Campinas
duque_hua@yahoo.com.br
174
Resumo
Esta pesquisa expõe e analisa experiências de travestilidades na adolescência a partir de
uma rede social da cidade de Campinas/SP. Por meio do referencial teórico da teoria
queer e de pesquisa etnográfica que envolveu observação, entrevistas face a face e on-
line, foca nos novos processos de travestilidades que têm sido construídos a partir de
referenciais identitários diferentes da geração anterior. Por meio das montagens e
desmontagens do que se compreende socialmente como feminino e masculino, essas
jovens têm buscado manipular identidades sociais. Sob uma perspectiva que historiciza
e contextualiza esses sujeitos do desejo em relação à sexualidade e ao gênero, a
investigação aponta como suas experiências, marcadas pela vergonha e pelo estigma,
vêm encontrando na montagem uma nova forma de relação com o dispositivo do
“armário”.
Palavras-chave: Adolescências. Teoria Queer. Desejo. Vergonha. Estigma.
Abstract
This research analyses some teenager transvestilities in a social net at the city of
Campinas, State of São Paulo, Brazil. The thesis follows a queer theoretical approach
with an ethnographic research covered with observation, face-to-face and online
interviews. It focus on new transvestilities identity processes that have been built with
different references in comparison to older generations of Brazilian transvestites. Theses
teenagers have tried to manipulate their social identities through a process of building
the feminine with the use of clothes, wigs and other accessories (montagem) and taking
them off to present themselves in a masculine performance (desmontagem). We adopt a
historical and contextual perspective to understand how these teenager experiences,
marked by stigma and shame, express ways of dealing with the “closet” apparatus.
Keywords: Adolescences. Queer Teory. Desire. Shame. Stigma.
Atualmente, as mudanças na esfera da sexualidade se associam às
novas tecnologias corporais e a uma ampliação do debate para além das
heterossexualidades. Entre as travestis, as possibilidades de construção do
feminino têm trazido novas implicações identitárias e tornado os corpos ainda
mais plásticos na construção e desconstrução do que se deseja para si. Essas
novidades não se dão de forma desconectada de padrões e práticas já
legitimadas por esse grupo, o que contribui para a problematização do que é ser
travesti nos dias atuais. Assim, este artigo foca na construção e desconstrução
dos corpos, das identidades e de suas relações com as experiências subjetivas
dos processos de travestilidades vivenciados por adolescentes na cidade de 1Campinas/SP .
O conceito de travestilidades, segundo Peres (2005), refere-se à
variedade de processos identitários pelos quais os sujeitos travestis passam
para se constituírem enquanto “femininos”. Pelúcio (2007) também afirma
que esse termo indica a multiplicidade das experiências ligadas à construção e
à desconstrução dos corpos, a despeito da rigidez na gramática de gênero
desses sujeitos.
Essa rigidez existe devido às suas experiências constituírem-se dentro
da heteronormatividade. Conforme Miskolci e Pelúcio (2008, p. 7),
hoje, o conceito de heteronormatividade sintetiza o
conjunto de normas prescritas, mesmo que não
explicitadas, que marcam toda a ordem social e não apenas
no que concerne à escolha de parceiro amoroso; alude,
também, ao conjunto de instituições, estruturas de
compreensão e orientação prática que se apoiam na
heterossexualidade. É toda esta ordem social que mostra
como no par heterossexualidade/homossexualidade não há
simetria, pois ele engloba díades como norma/desvio,
regra/exceção, centro/margem. A heterossexualidade só
pode existir fixando o periférico e, a partir dele, se definindo
como central.
A adolescência, por sua vez, não é tomada neste estudo somente como
um referencial etário fixo e rígido como o do Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA), que aponta: pessoa entre doze e dezoito anos em condição
175Tiago Duquen. 07 | 2012 | p. 173-198
1 A análise presente neste texto é resultado da dissertação de mestrado defendida no curso de pós-graduação em Sociologia da UFSCar, em 2009, orientada pelo prof. dr. Richard Miskolci, cujo título é “Montagens e Desmontagens: vergonha, estigma e desejo na construção das travestilidades na adolescência”.
2peculiar de desenvolvimento (MUNICÍPIO DE CAMPINAS, 2003) . Afinal, a
adolescência em nossa sociedade “vem se tornando um período cada vez mais
longo e mais complexo” (BECKER, 1986, p. 12), revelando o quão socialmente
construída é essa categoria. Nessa perspectiva, procurei não focar aspectos
biologicistas da experiência do “ser adolescente”, que marcam outros estudos e
legislações, entendendo que, de fato, tais aspectos funcionam como
obstáculos, posto que consistem em produtos de uma subjetividade projetada
no instrumento do pensamento objetivo, que é o conceito (REIS; ZIONI, 1993).
Em outras palavras,
tais características passam a ser percebidas como uma
essência, em que “qualidades” e “defeitos” como rebeldia,
d e s i n t e r e s s e , c r i s e , i n s t ab i l i d ade a f e t i v a ,
descontentamento, melancol ia, agressividade,
impulsividade, entusiasmo, timidez e introspecção passam
a ser sinônimos do ser adolescente, constituindo uma
“identidade adolescente” (COIMBRA; BOCCO;
NASCIMENTO, 2005, p. 5).
Tomo o “ser adolescente” também como um conceito autodefinidor
desses sujeitos, atentando-me para a categoria “adolescente”, especialmente
quando ela era utilizada pelos sujeitos entrevistados para se autorreferirem,
independentemente dos registros legais oficiais, como documentos pessoais ou 3“fichas” institucionais daqueles que passaram por instituições de “proteção” .
Mesmo porque o que é foco deste estudo é o início da experiência travesti na
vida dessas adolescentes, a qual não segue uma faixa etária rígida, antes a
experiência diversificada entre infância e vida adulta.
Assim, esta investigação buscou fugir a preconcepções socialmente
arraigadas sobre a adolescência como período etário em que “naturalmente”
predominariam as mudanças e as dúvidas, a ousadia nas decisões ou uma
rebeldia particular. Em outras palavras, mais do que apontar contradições
próprias daquilo que temos comumente chamado de adolescência, é
necessário compreendermos que essas múltiplas experiências corporais
176
2 Contudo, entendo, como outros autores (COIMBRA; BOCCO; NASCIMENTO, 2005), que, apesar de criticarmos o ECA por pautar a noção de adolescência como período universal, essa legislação é, ainda hoje, um importante instrumento de garantia de inúmeros direitos e de contraposição às campanhas conservadoras que pregam, entre outras reivindicações, o endurecimento de penas, a redução da idade penal e a implantação de uma política de tolerância zero àqueles sujeitos vistos como “menores infratores”.3 Essas instituições compõem a “rede de proteção à criança e ao adolescente” da cidade de Campinas. São abrigos onde eles são encaminhados e passam a morar até que atinjam a “maioridade” (18 anos) ou sejam reencaminhados a suas famílias de origem. Comumente, vão para essas instituições adolescentes vítimas de violência doméstica, envolvimento com o tráfico de drogas ou que tenham sido retirados das ruas da cidade.
confusas no binarismo de gênero e o peso do descumprimento das normas, das
disciplinas e dos controles de uma sociedade que é hieraquizada pelo que
temos de sexual estão postos para todos os sujeitos, independentemente de
suas idades, atingindo, portanto, a sociedade contemporânea como um todo.
Evidentemente, existem especificidades históricas e culturais que
permitem aos adolescentes viverem experiências de uma maneira que outros
não viverão, mas não há nada capaz de ser visto como essencial ou natural
quando tratamos de sexualidade, gênero e subjetividade.
4A etnografia para esta pesquisa foi realizada no período entre março
de 2007 e março de 2009. No entanto, antes desse período, já eram 5estabelecidos contatos frequentes com a maior parte das entrevistadas .
Portanto, considerando o histórico deste pesquisador junto a esses
sujeitos, o contato com as travestis adolescentes para as entrevistas se deu via 6o pertencimento delas a determinadas redes sociais , para que se garantisse o
acesso a um material que pudesse minimizar ou, pelo menos, manter
relativamente sob controle e reflexão o viés de escolha das entrevistadas
(HEILBORN, 2004).
As entrevistas foram feitas face a face em diferentes locais (shopping
center, casa, parque público) e também por Messenger (MSN), que é um
programa de computador que possibilita, depois das trocas de endereços
eletrônicos, a conversa em tempo real, favorecendo assim a sociabilidade
virtual. Todas as entrevistadas aceitaram dar entrevistas, respondendo-me,
através das mensagens on-line, que concordavam em ter seus depoimentos
usados neste estudo. Além disso, foi utilizado também o Orkut para trocar
4 Tomo a etnografia, nos termos de Löic J. D. Wacquant (2002, p. 12), como sendo a metodologia que exige que o sociólogo faça a imersão iniciática e exercite a “conversão moral e sensual ao cosmo considerado como técnica de observação e de análise que, com a condição expressa de que ela seja teoricamente instrumentada, deve permitir ao sociólogo apropriar-se na e pela prática dos esquemas cognitivos, éticos, estéticos e conativos que põem em operação cotidiana aqueles que o habitam”.5 Os contatos com parte desses sujeitos se deram em ações do Identidade – grupo de luta pela diversidade sexual (desde 2003); enquanto fui educador social de rua do Programa de Enfrentamento a Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescentes (de julho de 2005 a fevereiro de 2006 e de junho de 2006 a março de 2007); e durante atividades que dirigi (2007 a 2010) como assessor do Núcleo de Educação e Comunicação Social do Programa Municipal de DST/Aids de Campinas.6 Considero rede social o “conjunto de relações interpessoais concretas que vinculam indivíduos a outros indivíduos” (BARNES, 1987, p. 167) e que podem se caracterizar, segundo John. A. Barnes, como rede social total ou parcial. A rede social total “é uma abstração de primeiro grau da realidade, e contém a maior parte possível da informação sobre a totalidade da vida social da comunidade à qual corresponde”. Já a rede social parcial é entendida como “qualquer extensão de uma rede total, com base em algum critério que seja aplicável à rede social” (BARNES, 1987, p. 166). Nesses termos, trabalhei com redes parciais, por ter “isolado” apenas as relações entre travestis adolescentes de suas redes totais, considerando que esse método se caracteriza com a primeira entrevistada indicando as próximas e assim por diante.
177Tiago Duquen. 07 | 2012 | p. 173-198
mensagens, conhecer comunidades temáticas, assistir a vídeos e ver as fotos
postadas. Orkut é uma plataforma de sociabilidade virtual em que as pessoas
postam e recebem mensagens, imagens e vídeos.
7O referencial teórico é o da teoria queer , que, no universo acadêmico,
desde sua origem no contexto norte-americano de fins da década de 1980,
altera o foco de uma exclusiva preocupação com a opressão e libertação dos
sujeitos homossexuais para a análise das práticas institucionais, da produção
dos conhecimentos sobre a sexualidade e do modo como eles organizam a vida
social. A teoria queer atenta, em particular, para o modo como esses
conhecimentos e práticas sociais oprimem diferenças (SEIDMAN, 1996).
Segundo Miskolci e Pelúcio (2006), a teoria queer busca apontar e
compreender o conflito entre os sujeitos e a ordem de gênero vigente. Para
esses autores, o seu
compromisso político é o de evidenciar a produção de
diferentes identidades não categorizáveis e a necessidade de
mudar o repertório existente para que os indivíduos
qualificados como menos-humanos, perseguidos, até mesmo
assassinados, possam encontrar um mundo habitável e mais
acolhedor (MISKOLCI; PELÚCIO, 2006, p. 265).
Portanto, a teoria queer volta-se para a compreensão dos processos de
categorização sexual e sua desconstrução (GAMSON, 2006, p. 347), focando
nas maneiras como a distinção homossexual/heterossexual serviu de base para
a classificação, o controle e até a discriminação de sujeitos contemporâneos.
Além disso, o queer visibiliza o caráter compulsório da heterossexualidade, a
forma como ela embasa saberes e práticas sociais e, sobretudo, como a
humanidade é prescritiva e somente é reconhecida dentro de normas
socialmente compulsórias, mas que, por serem históricas e culturais, são
passíveis de crítica e transformação.
Permanências e descontinuidades no processo de construção do feminino travesti
Segundo diferentes autores (KULICK, 2008; PELÚCIO, 2007; PERES,
2005; BENEDETTI, 2000; SILVA, 1993; entre outros), algumas características
178
7 Queer é uma categoria local estadunidense, em inglês, que pode significar excêntrico, esquisito, diferente bem como o pervertido sexual, marginal, estigmatizado ou anormal (ESCOFFIER, 1998). Segundo Ochoa (2004, p. 254), não devemos buscar traduções, mas atentarmos aos nossos xingamentos e seus próprios escândalos. Assim, no universo acadêmico, o queer tem o compromisso de entender os processos daqueles que estão fora dos marcos normativos – pensar os sujeitos teóricos que não possuem qualquer trajetória reprodutiva, moral ou economicamente fixa.
comuns formam o universo das experiências das travestis brasileiras. Porém,
algumas dessas características têm sido transformadas pela experiência de uma
nova geração de sujeitos travestis, assim como outras têm sido mantidas e
reforçadas.
Por exemplo, a nova montagem dos corpos, isto é, a construção do
feminino travesti (BENEDETTI, 2000), tem contribuído para essa mudança.
Essas adolescentes têm adiado para um futuro próximo a construção dos
peitos, aceitando bombar (injetar silicone líquido) apenas nas pernas e nos
glúteos. Essa nova geração de travestis, quando vislumbra um peito para a
composição do seu feminino, sonha com as próteses de silicone, o que já
ocorria nas gerações anteriores, mas hoje essa tecnologia está mais acessível. A
conquista da prótese de silicone na cidade de Campinas ocorre por intermédio 8das cafetinas , que possuem seus próprios cirurgiões para indicar àquelas que
“podem pagar”.
Devido a essa realidade de espera das travestis pela prótese de
silicone, é comum encontrarmos travestis bastante jovens sem peitos voltando
a usar enchimentos, técnica abandonada pela maioria das travestis de
gerações anteriores. Este é um dos reflexos das novas tecnologias utilizadas
para a construção corporal do “feminino travesti” (BENEDETTI, 2000), que já
foi associado aos peitos imensos de silicone líquido injetado do estilo travecão –
“ancas fartas, muito seio, boca carnuda, coxas volumosas” (PELÚCIO, 2007,
p. 107) –, mas que hoje tem perdido espaço entre as travestis em favor do estilo
ninfeta, que corresponde às novinhas com “poucas curvas e carnes com o
'frescor' de quem acaba de entrar na 'noite'; muitas vezes, não têm marca de
barba; são ousadas em suas performances junto aos clientes” (PELÚCIO,
2007, p. 52)
Outro fator a considerar é que os próprios argumentos da redução de
danos para usuários de silicone líquido e hormonioterapia têm estado presentes
nos discursos dessas adolescentes, quando justificam a espera pela prótese de 9silicone para os peitos . Percebo com isso que a chamada “dor da beleza”, que
justificava a montagem dos corpos (BENEDETTI, 2000; PERES, 2005;
8 Cafetinas são comumente travestis que, entre outras coisas, alugam os quartos de suas casas para que outras travestis possam morar, cobrando um valor relativamente alto, intitulado de “diária”. Elas exercem uma espécie de poder e controle sobre o trabalho sexual das travestis, mesmo daquelas que não estão sob o seu teto. Nesse caso, chegam a cobrar uma espécie de “pedágio” para que as travestis possam se prostituir na rua em que controlam o mercado sexual. O espaço de sociabilidade que as cafetinas proporcionam em suas casas é um espaço importante de experimentação e construção do feminino, no qual as travestis trocam informações e aprendem valores da montagem (PELÚCIO, 2007).9 A Prefeitura Municipal de Campinas é pioneira, junto de profissionais das áreas médicas e do movimento social de travestis, na criação de um protocolo para o atendimento a usuárias de hormonioterapia e silicone líquido no Brasil.
179Tiago Duquen. 07 | 2012 | p. 173-198
PELÚCIO 2007), não tem sido mais a mesma. As agulhadas de silicone são
substituídas gradativamente pela cirurgia plástica. O uso dos hormônios
femininos também vem sendo relativizado, afinal algumas adolescentes se
sentem femininas mesmo sem aderir à hormonioterapia.
Tais mudanças e permanências reforçam a noção de “feminino
travesti” como sendo sempre negociado, reconstruído, ressignificado e fluído.
“Um feminino que se quer evidente, mas também confuso e borrado, às vezes
apenas esboçado” (BENEDETTI, 2000, p. 148).
Diante dessa realidade, o papel das bombadeiras (de quem aplica o
silicone líquido no corpo das travestis) ao longo do tempo pode até deixar de
existir, considerando os avanços das tecnologias de constituição dos corpos,
ainda que esses sujeitos somente tenham acesso a elas em ambientes e 10práticas tidas como clandestinas . Em Campinas, o papel das bombadeiras se
mistura ao das cafetinas, pois muitas destas são as responsáveis pelas
aplicações de silicone nas travestis. Esse serviço é vendido às travestis,
tornando-as ainda mais dependentes delas e fortalecendo uma relação
hierarquizada mediada por dívidas e violência. Por exemplo, Gisele, uma das
adolescentes desta pesquisa, segundo informações colhidas em campo, foi
assassinada a mando de sua cafetina, porque não pagava mais a rua por ter ido
morar em um apartamento com as amigas e começar a receber os clientes lá,
por meio de anúncio de jornal.
No entanto, apesar do histórico de violência de muitas cafetinas,
Pelúcio (2007) descreve o envolvimento das travestis com elas também como
uma relação de “cuidado” e “proteção”, o que permite a algumas travestis
chamarem determinadas cafetinas de “mãe”.
Ainda em relação às cafetinas que bombam travestis, sem o uso
intenso das aplicações de silicone pelas novas gerações, há, por exemplo, o
resgate da dedicação em facilitar outras formas de construção do feminino,
muitas vezes deixada de lado nos últimos anos em Campinas. Segundo o que
apontaram outros autores (BENEDETTI, 2000; PERES, 2005; PELÚCIO,
2007), penso que voltou a ser comum, via cafetinagem, conseguir-se, ainda
que a preços muito altos, roupas, jóias, bolsas, sapatos e peças íntimas.
180
10 A clandestinidade das técnicas de mudanças corporais junto às travestis se dá, principalmente, pelo fato de, diferentemente das transexuais, elas não serem consideradas, pelo discurso médico oficial, portadoras de uma patologia. Sem serem vistas oficialmente como doentes, não possuem, por exemplo, respaldo legal e médico para que profissionais promovam em seus corpos as mudanças desejadas. Não acredito que incluí-las nos códigos de doenças ou nos manuais médicos seja a solução, antes, é fundamental questionarmos a via da legitimidade das ciências médicas e psi que autoriza e desautoriza os sujeitos a alterarem seus corpos.
Em meio a essas ofertas das cafetinas, o que me parece um
diferenciador são os apliques para cabelos. Há na cultura da geração anterior
certo desprestígio, por parte das travestis, daquelas que não possuem cabelos
longos naturais, sem apliques. Porém, percebo mudanças nesses valores, seja
pela facilitação da montagem e da desmontagem do feminino, seja porque
favorece e agrega novo valor a um material que pode ser consumido sem
discriminação entre elas. Também há um maior uso das mulheres em relação
ao aplique, o que o torna, na visão das travestis, “muito feminino”.
Várias travestis jovens com as quais convivi em campo tinham o hábito
de trocar de cabelos, de tempos em tempos, mas muitas somente conseguiam
isso por meio da interferência das cafetinas. Assim como os cirurgiões, elas têm
as “amigas” para indicar para as travestis poderem colocar os cabelos e pagar
em parcelas para elas. Às vezes, as cafetinas possuem os próprios cabelos, que
alugam ou vendem para as travestis, com o direito de reivindicar de volta a
qualquer momento. Foi o que ocorreu com uma das entrevistadas, que teve os
cabelos retirados à força durante uma briga com uma de suas cafetinas.
Assim, ainda que a montagem com menos dor tenha ganhado espaço
entre as travestis mais novas, a cafetinagem tem buscado novas formas de se
manter em suas relações de poder com as travestis. A dor, seja antes pelas
agulhadas, seja agora em algumas situações pela retirada dos cabelos, parece
manter-se presente como parte mediadora dessas relações.
Essa configuração do montar-se possibilita um desmontar-se com
maior plasticidade e dinamismo, afinal, não é à toa que a máxima desse grupo
tem sido relativizada pelas mais jovens. O “estar como mulher 24 horas por dia”
já não é mais uma exigência para se autodenominar travesti entre as
adolescentes de Campinas. Ainda que, como nos mostra Kulick (2008) em seu
estudo, fazer a linha homem, isto é, tirar acessórios femininos para ir à rua
durante o dia e tentar não chamar a atenção ou ser vítima de violência fosse
comum entre as travestis de Salvador há 10 anos, o que tenho percebido é que,
entre algumas com as quais tenho convivido em Campinas, fazer a linha homem
vai além do medo da violência, motivo pelo qual algumas têm estado mais
comumente como homens, fazendo a linha mulher em determinados contextos.
Trânsitos trans
Este estudo mostra que esses sujeitos montam-se e desmontam-se,
não da forma como querem, mas fazendo frente a demandas e normas sociais.
Por exemplo, têm ocorrido montagens estratégicas que os favorecem a não
181Tiago Duquen. 07 | 2012 | p. 173-198
somente deslizarem na escala de violência, mas também a encontrarem
parceiros sexuais. Foi observado em campo que é comum montar-se para ir a
espaços que não são ameaçadores às travestis, mesmo que estes sejam
reconhecidos como de héteros. Em outras situações, têm se desmontado para
frequentar lugares de pegação gay (paquera e sexo furtivo entre homens), a fim
de encontrar parceiros sexuais.
A desmontagem garante, por exemplo, na visão de Gabriela e Rodrigo, o
aumento das chances de encontrar relacionamentos duradouros com outros
meninos adolescentes. Eles têm agido de forma diferente da geração anterior de
sujeitos que viviam os processos de travestilidades, em que o que se queria com a
montagem era a garantia de conquistar “namorados” e “maridos” que em nada
demonstrassem sentir desejo por homens (KULICK, 2008; PELÚCIO, 2007).
Assim, a montagem estratégica tem um limite de racionalidade, não
sendo operada simplesmente por uma decisão calculada, mas motivada
também por fluxos de desejos envolventes, muitas vezes não ditos e não
perceptíveis conscientemente pelos sujeitos. Em outras palavras, “não são os
indivíduos – essa afirmação é dura – os que decidem ou optam a partir de um
ego autoconsciente, os que constroem, por apelar a um clichê, suas
identidades e suas representações” (PERLONGHER, 2005, p. 279-280).
Com isso, a “escolha” na hora de encontrar os parceiros sexuais revela o
quanto a masculinidade (ainda que seja construída forçadamente por um
adolescente efeminado) é valorizada entre as bichas e os homens à procura de 11boys nos espaços de pegação, comparada com o desprestígio da montagem. O
mesmo podemos pensar sobre o valor da montagem (que faz com que muitos
digam “passar-se por mulher”), comparada com a desqualificação da
masculinidade efeminada desses adolescentes desmontados, não apenas nos
ambientes das boates gays e nas salas de bate-papo da internet, mas também nos
locais tidos como de héteros, como, por exemplo, boates de frequência não gay.
O que Miskolci (2008), em sua incursão etnográfica nas salas de bate-
papo gay voltadas ao público masculino de São Paulo, afirmou sobre o espaço
on-line de socialização homoerótica também pode ser utilizado para pensar os
trânsitos desses adolescentes e as suas buscas por parceiros amorosos:
182
11 Os boys aqui são aqueles “homens de verdade” muito jovens, alguns adolescentes, que frequentemente mantêm relacionamentos com homens, às vezes até mesmo exclusivamente com homens, mas “não parecem gays”, isto é, não são efeminados. Esses boys a que me refiro são comumente de classes menos privilegiadas economicamente. “Homens de verdade” também são aqueles que a maior parte das travestis assume como namorados ou maridos. Os “homens de verdade” perseguem um ideal de masculinidade do ativo sexualmente, isto é, aquele que penetra o ânus do parceiro. No entanto, há um contraste entre as práticas reais e esse ideal, afinal, é comum os relatos das travestis de que parte desses homens prefere ser penetrados por elas (SILVA, 1993; BENEDETTI, 2000; PERES, 2005; PELÚCIO, 2007).
O desejo que os guia está na masculinidade padrão
corporificada na imagem de um homem plenamente
ajustado à ordem heteronormativa. Curioso paradoxo em
que o desejo é homoerótico, mas se dirige ao homem
“heterossexual”, ou seja, aos valores e práticas
historicamente construídos como típicos daquele que
mantém a dominação masculina (misoginia) e a recusa das
relações amorosas ou sexuais entre homens (homofobia)
(MISKOLCI, 2008, p. 7-8).
Os trânsitos possíveis diante da ordem heteronormativa são múltiplos
e diversos. Ainda que o desejo comumente seja visibilizado como sendo
homoerótico, em campo, encontramos adolescentes engajados em processos
de travestilidades que sentiam desejo afetivo e sexual por mulheres, o que
reforça a afirmação de que o que talvez tenha realmente marcado a
singularidade da configuração brasileira de sexo e gênero seja menos a ênfase
em binarismos hierárquicos e mais a recusa em operar com dualismos e
identidades essencializadas, incomensuráveis e intransitivas (CARRARA;
SIMÕES, 2007, p. 95).
Tomamos como exemplo a experiência de Rodrigo. Durante o trabalho
de campo, é perceptível que ele vai, com facilidade, de uma feminilidade 12travesti a uma masculinidade do “tipo michê” . Tanto nas ruas, onde os
profissionais do sexo masculino atuam, como nos espaços de prostituição
travesti, Rodrigo, antes do abrigamento em uma instituição que acolhia
crianças e adolescentes tidos como vítimas da prostituição, conseguia clientes
e era muito elogiado pela sua aparência, segundo suas próprias palavras, às
vezes “muito masculina”, às vezes “muito feminina”.
Esse trânsito entre ser michê e ser travesti coloca em cheque a “fase de
transição” apontada por Benedetti em seus estudos. Para o referido autor, esse
período diz respeito à fase que o sujeito passa no seu processo de construção do
corpo, “entre o menino e a travesti, quando ele vai experimentando pequenas
alterações no corpo, normalmente modificações mais facilmente reversíveis,
mas que sirvam para identificação com os atributos do feminino” (BENEDETTI,
2000, p. 44). Segundo o trabalho de campo desse autor, o sujeito alocado
nessa fase seria caracterizado pelas travestis como bicha-boy.
Em alguns casos, essa fase é real e ainda prevalece, mas há novas
travestilidades que são exatamente essa fase, não vão além dela, permanecem
12 Michê designa aqui aqueles sujeitos que se prostituem sem abdicar de propósitos gestuais e discursivos da masculinidade viril em sua apresentação junto aos clientes, comumente também masculinos.
183Tiago Duquen. 07 | 2012 | p. 173-198
ali e dali se constituem. É algo mais do que a afirmação de Pelúcio (2007, p.
59) de que “o michê de hoje pode vir a ser a ninfetinha de amanhã, deslocando-
se no espaço porque o corpo marcado assim o pede”, pois não é um
deslocamento linear de um lado a outro, mas um constante ir e vir, nesse caso 13campineiro, em um espaço físico muito bem delimitado .
De acordo com Vencato (2003, p. 212-213), referindo-se aos sujeitos
travestis, transexuais e drags, “é com a construção plural e não estática do
corpo, da identidade e do gênero que essas pessoas brincam todo o tempo. Faz
parte do universo trans permanecer em mudança. E nunca se sabe realmente
onde elas estão”. Em relação às travestis, Silva (1993, p. 91) afirma o mesmo
sobre a sua “transcondição”: “não se trataria de uma incompatibilidade entre
uma biologia específica e uma particular personalidade (materializada no
truísmo 'alma de mulher em corpo de homem'), mas de uma tendência ao
próprio trans, à condição trans”.
Assim, a partir da montagem e da desmontagem, essas novas
travestilidades correspondem àquilo que Perlongher (1987, p. 152) escreveu
sobre territorialidade e identidade, considerando que é possível ocorrer o
deslocamento dos sujeitos mais ou menos intermitentemente pelas várias
casinhas classificatórias, mudando de classificação conforme o local e a
situação: “Frequentemente, é um mesmo sujeito que vai assumindo e
recebendo várias nomenclaturas classificatórias em diferentes momentos do
seu deslocamento”.
Esse trânsito em diferentes territórios não é característica exclusiva da
cidade de Campinas, como aponta a etnografia na cidade de São Paulo de Júlio
Assis Simões e Isadora Lins França (2005). Para esses autores, mesmo nos
“espaços gays” tidos como “chiques e dourados”, a presença de travestis aponta
para uma relação ambígua de mútua atração e estigmatização entre os seus
frequentadores e esses sujeitos. Perlongher (2005, p. 279) afirma, em relação a
esse trânsito visto em um sentido mais amplo, que há uma “capacidade,
exacerbada nos circuitos marginais, de o mesmo indivíduo participar, alternativa
ou erraticamente, de diversas redes, algumas delas 'normais'”.
Compreendo as redes chamadas de “normais” por Perlongher (2005)
como sendo aquelas que não fluem das margens noturnas da sociedade, que
correspondem a uma temporalidade em acordo com o tempo da família e não
184
13 As ruas de prostituição no centro da cidade de Campinas, onde encontrei parte das adolescentes, são separadamente ocupadas por mulheres, michês e travestis. Não há convívio intenso entre esses diferentes sujeitos no mercado sexual, sendo bastante contextual o encontro desses profissionais na noite da cidade.
exercem atividades consideradas ilegais/imorais (MISKOLCI; PELÚCIO,
2008). Nesse sentido, Halberstam (2005) afirma que há usos queer de espaço
e tempo que se desenvolvem em oposição à família, à heterossexualidade e à
reprodução, apontando para experiências fora de marcadores sociais
naturalizados como a sucessão (verdadeiro script incentivado socialmente) de
nascimento, casamento, reprodução e morte.
É evidente que esse, digamos, script queer aloca parte dessas
experiências em contextos de vulnerabilidade para diferentes tipos de
violências, a ponto de levá-las à morte. Não é à toa que o termo finada chama a
atenção nos discursos desses sujeitos. As amigas de Giselle, uma das
adolescentes desta pesquisa, que foi assassinada durante o período em que
realizávamos o trabalho de campo, poucas semanas após o enterro, já
agregavam o adjetivo “finada” ao seu nome. As travestis com que convivi
comumente usam esse termo para se referirem às suas amigas que já
morreram, o qual, pelos contextos do seu uso, é empregado com respeito e forte
saudosismo. “A finada” parece ser usado em um primeiro momento para
descriminar de quem se fala, a quem se refere, considerando que o sobrenome
das travestis pouco é pronunciado entre elas. Então, em uma conversa, referir-
se “à finada Carla” ou a “Valéria, a finada” já contextualiza os ouvintes sobre
quem se fala. Entretanto, “a finada” também alude de forma indireta aos
processos dolorosos pelos quais essas travestis passaram na situação de suas
mortes. “A finada” subsistiu, por exemplo, à causa da morte, não sendo usuais
as expressões “Carla, a assassinada”, “Valéria, a desaparecida”, “Tina, a que
morreu de aids”.
O assassinato de Giselle foi justificado, segundo as informações que
colhemos entre as travestis, porque ela devia para uma das cafetinas de
Campinas. Afinal, mesmo morando e fazendo seus programas em um
apartamento alugado por amigas, a partir de contatos telefônicos e da internet,
deveria pagar diárias a uma cafetina da cidade.
A despeito de toda violência a que esses adolescentes estão expostos,
tanto na rua como em suas próprias casas desde a infância (BENEDETTI,
2000), o que esses processos de travestilidades têm me mostrado é que parte
dos entrevistados não tem rompido os laços com seus familiares, com suas
“redes normais”. Diferente do que ocorria frequentemente com a geração
anterior, muitas travestis adolescentes não têm sido expulsas de casa por seus
pais, apresentando uma realidade bastante distinta daquela descrita por
Pelúcio (2007), em que as travestis, quando se “assumiam”, tinham o espaço
doméstico da família transformado, via de regra, em insustentável.
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Por exemplo, o convívio com Rafaela, como também com outras
adolescentes, possibilitou-nos, ao longo da pesquisa, compreender que a
permanência delas em casa se justifica por, pelo menos, três diferentes formas:
1) Rafaela, via prostituição, contribui financeiramente com as
despesas da casa, o que a valoriza bastante diante da mãe. O mesmo
aconteceu com Vivian, que, por “ajudar em casa”, teve a sua feminilidade
tolerada por sua família até pouco antes do início da montagem ser feita
cotidianamente.
Kulick (2008, p. 196), em outro contexto e período, via o dinheiro
como o que levava as travestis para a prostituição, na medida em que “elas
precisam dele para viver, comer, pagar o aluguel, mas também para sustentar
as relações afetivas com os namorados e com a família”. Portanto, “a
incapacidade de ganhar dinheiro é um golpe devastador para a travesti, tanto
no aspecto material quanto no emocional”. Ainda que essa afirmação não
possa ser generalizada, é inegável a importância do fator econômico para as
experiências desses sujeitos.
2) Rafaela teve um parente, com forte liderança na família, que
incentivou o início do processo de sua feminização, propiciando um ambiente
não tão hostil à sua expressão identitária. Daniele também teve apoio de
alguém da família, mas, nesse caso, esse apoio não fez com que os demais
familiares aceitassem a sua condição travesti por um longo tempo. Tanto na
família de Daniele como na de Rafaela esse apoio veio das avós.
A relação de Rafaela com a família era tão acolhedora que contribuiu
para que um tio (irmão da mãe) resolvesse “assumir” a sua travestilidade. A
diferença de idade desse tio em relação à de Rafaela é de mais de quinze anos.
Rafaela contou-me essa situação com entusiasmo e alegria, sentindo-se
responsável pela “libertação da tia”.
3) Gabriela, por sua vez, fez-nos compreender que a permanência em
casa também pode ser associada ao que já chamamos analiticamente de
montagem estratégica. Gabriela, por exemplo, tem, estrategicamente, usado
roupas e acessórios femininos fora de casa, segundo ela, para não colocar a sua
permanência junto dos pais em risco, mesmo eles sabendo que ela gosta de se
vestir como mulher e a respeitando a ponto de ela assumir: “Minha mãe
experimenta minhas roupas de mulher”. Quando perguntei para ela sobre o seu
pai, ela disse: “Nem liga [risos], mas ele não experimenta”.
Outro espaço de “redes normais” mantido por parte dessa nova
geração de travestis é a escola. Mesmo sendo o local onde a rejeição à
homossexualidade tem sido consentida e ensinada, a partir do desprezo, do
afastamento e da exposição ao ridículo daqueles que não se apresentam com
comportamentos reconhecidos como heterossexuais (LOURO, 2004), já se
encontram relatos de adolescentes travestis que frequentam as aulas.
Os dados mostram que essas adolescentes estão em cursos chamados
“supletivos”, em que a sala tende a ter menos alunos e um perfil etário misto.
Além disso, há casos de adolescentes com diferentes perfis de montagem,
desde as com silicone no corpo e nome social feminino respeitado pelos
professores, como é o caso de Rafaela, até aquelas que ainda são alocadas pela
turma como gays, mas se sentem “mais travestis” e investem na maquiagem e
em algumas peças de roupas “mais femininas”. Nesse segundo caso,
encaixam-se, em determinando momento da pesquisa, Vivian e Rodrigo.
14Rafaela diz: “aquela escola é tudo de bom. A amapô que dirige me
trata no feminino, como todos os professores”. Vivian, além de dar relatos
parecidos sobre os profissionais da escola onde estuda, afirma que não se sente
discriminada pelos amigos da turma. Inclusive, em seu Orkut, há fotos desses
amigos, que, como disse, “são bofes de bem”. No entanto, durante as conversas
com essas adolescentes, percebemos que o mesmo clima de ambiente
acolhedor não pode ser generalizado para a escola inteira. Nos intervalos, por
exemplo, há comentários que, segundo elas, são preconceituosos, mas que, em
suas palavras, “é só não dar confiança que eles param”.
Mesmo com a inserção dessas adolescentes nos espaços familiares e
da educação formal, mantém-se a importância dos locais de prostituição na
experiência de muitas delas. Isso ocorre, principalmente, porque esses espaços
ainda são provedores de um simbolismo para a compreensão/identificação do
ser travesti, “simbolismo este que delimita um espaço social/sexual diferente
do mundo da normalidade heterossexual, um espaço que é marcado tanto pelo
perigo como pelo prazer, e pela constante inversão do que seriam as
14 Amapô, em bajubá, é o mesmo que mulher. Segundo Pelúcio (2007), as travestis adotam uma série de termos vindos do ioruba-nagô, compondo uma espécie de gíria conhecida como bajubá, pajubá ou bate-bate. O bajubá, como é chamado em Campinas, é definido pelas travestis como sendo um dialeto oriundo dos espaços sagrados das religiões afrodescendentes. Esse vocabulário tem sido transmitido nos vários ambientes que as travestis frequentam, como boates, bares, Organizações Não Governamentais (ONGs) voltadas para a diversidade sexual, encontros nacionais ou regionais de militantes travestis. Ele também já é empregado em programas humorísticos e usado por diversos personagens em novelas brasileiras. O uso do bajubá parece se voltar ao clima do contexto da sua origem entre algumas das adolescentes com as quais convivi, especialmente aquelas que foram abrigadas em instituições de “proteção” a crianças e adolescentes nesse município. Como as gerações anteriores, as mais jovens de hoje usam esse linguajar próprio para se comunicar nas instituições com outros adolescentes que o conhecem sem serem compreendidos pelos demais. O teor da conversa é quase sempre a respeito de práticas ou desejo sexuais, visto que não podem declarar ou deixar transparecer suas práticas sexuais ou desejos pelos seus pares, afinal, no abrigo, é proibido manter relações sexuais.
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convenções aceitas” (PARKER, 2002, p. 114-115). Dentre todas as
expectativas construídas no universo do sexo pago, ainda destaca-se como 15central a possibilidade de ir para a Europa .
No entanto, ter uma experiência internacional não está ao alcance de
todas. Existe um perfil no mercado do sexo em Campinas que garante as
chances de viajar para se prostituir fora do Brasil. Daniele, por exemplo, que no
início da pesquisa vivia em Campinas, mas ao término deste estudo morava na
Espanha, tinha disciplina para pagar as contas em dia com a cafetina, ao não
se colocar (não usar drogas) na rua, e parecia ter axé, aos olhos de suas amigas,
isto é, sorte na noite com os clientes.
Essas características fazem com que as adolescentes e jovens travestis
não simplesmente escolham ir para a Europa. Na verdade, a cafetina é quem
identifica esse perfil disciplinado de quem “pode pagar” a viagem e o custo da
permanência, convidando-as, para a alegria de poucas, a realizarem esse
sonho e a prepará-las durante alguns anos para a viagem.
Depois de Daniele ter saído de Campinas e ido para a Europa,
comunicamo-nos com ela por meio da plataforma virtual de relacionamento
Orkut e também pelo MSN. Durante nossas conversas pelo MSN, a frase que
ela definiu para que os seus contatos a visualizassem, numa espécie de
apresentação pessoal após o seu nome, diz muito a seu respeito: “Quem sou eu
é o que muita gente queria saber ou talvez conhecer, mas, o que fiz da minha
imagem (risos) não está no gibi”.
A mudança que percebemos em seu perfil do Orkut ao longo do trabalho
de campo é, principalmente, referente às suas fotografias, as quais, tiradas em
uma noite escura, em um posto de gasolina frequentado principalmente por
caminhoneiros, dão espaço a imagens de praias ensolaradas e paradisíacas. Há
também a visível diferença, quando comparamos as fotografias anteriores com
as atuais, em relação à cor de sua pele. Ela aparece com a pele mais clara, pois,
segundo ela, além da maquiagem, as fotos foram “trabalhadas” para torná-la
ainda mais bonita. Nesse processo de embranquecimento, os cabelos foram
alisados, fazendo com que ela não use mais as tranças étnicas, como muitas
meninas negras brasileiras.
No entanto, os textos das mensagens que não são apagadas do
histórico da sua página no Orkut também não são os mesmos. Hoje, misturam-
15 Esse fluxo migratório se acentuou nos anos 1980 e, até o momento, mantém-se como sonho de ascensão social dentro do grupo pesquisado, dado o acesso a bens materiais e simbólicos que o dinheiro aferido nessas viagens pode proporcionar (PELÚCIO, 2007, p. 227).
se os textos em português e em espanhol de admiradores e clientes
internacionais com aqueles dos antigos bofes saudosistas no Brasil, bem como
os de várias travestis que também se prostituem na Europa. Algumas poucas
amigas mulheres e travestis do Brasil pedem notícias e elogiam as fotos. Antes,
liam-se mensagens em português mal escrito de jovens admiradores e raros
clientes do período em que morava no Brasil.
As imagens, legendas e mensagens que não foram apagadas de seu Orkut
dizem muito sobre o processo de construção identitária em que Daniele está
empenhada em legitimar diante das outras travestis que a visitam nesse espaço on-
line. Essa construção identitária é a de uma verdadeira europeia, ou seja, a
categoria êmica mais valorizada no meio travesti, por denotar sucesso,
enriquecimento e sofisticação, tanto na construção de um corpo feminino como nos
gestos, vocabulário e aprendizado de uma língua estrangeira (PELÚCIO, 2007).
Portanto, o sonho de ir para a Europa se justifica porque comumente a
Europa significa um ponto de virada, promovendo-as no mercado sexual
brasileiro e dando-lhes oportunidades de transformações radicais no corpo,
para torná-lo o mais discreto possível, isto é, fazendo-as passar por mulher.
Assim, essas manipulações das identidades, seja no clássico processo de
construção de uma top, seja naqueles de montagens e desmontagens nos
termos mais atuais, têm diminuído as possibilidades de escândalo e favorecido
o trânsito desses sujeitos, sem passarem ou estarem expostas a situações de
violência ou vexatórias.
Sobre a vergonha e o escândalo
Segundo Goffman (1988), há uma fase da socialização quando se 16aprende que se possui um estigma particular assim como as consequências
de possuí-lo. Sobre essa fase, focaremos no início deste item.
Em sua reflexão acerca das experiências de desrespeito social, Axel
Honneth (2003) considera que a luta por reconhecimento nasce dos conflitos
surgidos pelo desrespeito. Assim, ele toma o conflito como a base de toda e qualquer
interação social, afirmando que as consequências de ser possuidor de um estigma
são percebidas pelo fato de o processo de socialização, em geral, ser efetuado
16 O estigma é pensado neste estudo mais como uma linguagem de relações do que como um atributo depreciativo em si, podendo, nos termos de Goffman (1988), ser manipulável. Em outras palavras, entendo estigma mais como uma linguagem de relações do que como um atributo depreciativo em si, sendo ele um tipo especial de relação entre atributo e estereótipo, relação esta que deve ser contextualizada e localizada historicamente. Por isso, “um atributo que estigmatiza alguém pode confirmar a normalidade de outrem, portanto ele não é, em si mesmo, nem honroso nem desonroso” (GOFFMAN, 1988, p. 13).
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na forma de uma interiorização de normas de ação,
provenientes da generalização das expectativas de
comportamento de todos os membros da sociedade. Ao
aprender a generalizar em si mesmo as expectativas
normativas de um número cada vez maior de parceiros de
interação, a ponto de chegar à representação das normas
sociais de ação, o sujeito adquire a capacidade abstrata de
poder participar nas interações normativamente reguladas
de seu meio; pois aquelas normas interiorizadas lhe dizem
quais são as expectativas que pode dirigir legitimamente
todos os outros, assim como quais são as obrigações que
ele tem de cumprir justificadamente em relação a eles
(HONNETH, 2003, p. 135).
Esta leitura sobre “interações normativas” defende que “na medida em
que a criança em desenvolvimento reconhece seus parceiros de interação pela
via da interiorização de suas atitudes normativas, ela própria pode saber-se
reconhecida como um membro de seu contexto social de cooperação”
(HONNETH, 2003, p. 136).
Kulick e Klein (2003) problematizam o olhar de Honneth sobre
experiências vergonhosas a partir das reflexões de Eve Kosofsky Sedgwick. Eles
afirmam que, como Honneth (2003), essa autora argumenta que a noção de se
ver envergonhado é atribuída por outros e que a experiência da vergonha é
constitutiva da pessoa. Porém, diferentemente de Honneth (2003), Sedgwick
(1993 apud Kulick; Klein (2003)) não compreende que esse sentimento possa
ser eliminado a partir de um aumento de consciência ou via esforços de
reconhecimento.
Honneth (2003) acredita que, desenvolvido o autorrespeito a partir
das interações, os sujeitos podem deixar de se sentirem envergonhados,
enquanto Sedgwick afirma que a vergonha é constitutiva de toda formação
identitária, mesmo daqueles que não são tidos como desrespeitados
socialmente. Assim, todas as nossas experiências de socialização, nas quais
nossos comportamentos e expressões foram/são controlados por afiadas
repressões, tais como “tem gente olhando para você”, são importantes nexos
na construção de nossas identidades (KULICK; KLEIN, 2003, p. 7).
Nessa lógica, a extinção da vergonha pode significar a própria extinção
da noção da identidade do eu. Portanto, Sedgwick assim como Kulick e Klein
(2003), afirma que, em vez de fantasiar sobre o fim da vergonha, ela deve ser
reconhecida, abraçada e posta em curso como uso político transformador.
Porém, no nível das práticas sociais cotidianas, especialmente entre os jovens
com quem convivemos, não há interesse, tampouco parece possível a eles
transformar a condição da vergonha em algo positivo ou político.
Vagner, por exemplo, depois de muitas dúvidas, optou por ser “só
drag”, e não mais travesti. Contudo, ele não queria ser uma “drag qualquer”.
Escolheu um nome duplo, agregando assim mais status à sua escolha. O
primeiro nome é de uma cantora negra americana, famosa e elogiada por sua
beleza na mídia internacional. O sobrenome é de uma drag brasileira, também
famosa, magra, branca, tida como feminina e rica devido aos seus shows
“luxuosíssimos”. A escolha do segundo nome foi alvo de várias críticas dos
amigos de Vagner, afinal, segundo eles, ele parece mais com uma outra drag
brasileira, negra, que se passa por pobre e que é famosa pelos shows, nos quais
se apresenta sem qualquer produção, mas sempre com tom de deboche, com
um discurso escandaloso.
Vagner e outras adolescentes disseram em campo que se montam e
gostam de “causar”. Elas são unânimes em dizer que desmontadas não
chamam a atenção, pois, segundo Gabriela, “desmontada perde o glamour”.
“O legal é causar”, disse em certa ocasião. “Causar” é chamar a atenção, não
passar despercebida, ser reconhecida, notada. De uma forma mais ampla, o
“causar”, para essas adolescentes, é no sentido afirmativo de suas capacidades
de se tornarem femininas, de serem elogiadas por sua estética.
O “causar” também pode ser usado no sentido de “bafão”, de
escândalo. No entanto, para elas, esta parece não ser uma boa proposta, algo
que mereça investimento. As travestis com as quais convivemos prezam por um
comportamento não escandaloso e procuram chamar a atenção sem passar
vergonha, por meio de características que as levam, sob sua lógica, a serem
respeitadas como pessoas educadas, “finas”.
Porém, sabemos que a vergonha marca a experiência de meninos que
se interessam afetiva e sexualmente por outros meninos. Esta se forja porque,
primordialmente, eles buscam atender aos comportamentos normativos
esperados, e o não cumprimento das expectativas sociais os vexa e relega seus
desejos ao reino do segredo. As adolescentes entrevistadas foram unânimes em
afirmar que suas primeiras experiências afetivo-sexuais com outros garotos se
deram em segredo e que, mesmo sem serem descobertas, sabiam desde muito
pequenas que havia algo de “errado” ou vergonhoso naquilo que faziam.
A descoberta dessas experiências era comumente recebida com
violência por alguns membros das famílias das entrevistadas. Daniele,
inclusive, sofreu várias agressões físicas por parte de sua mãe, antes de sair de
casa. Todas as travestis desta pesquisa são oriundas de famílias tidas como
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heterossexuais. Exceto a família dessa adolescente, na qual a mãe se assumia
enquanto lésbica e convivia com sua companheira há alguns anos. No entanto,
Daniele não é aceita por sua mãe, que, segundo suas palavras, “até a tolerava
como gay, mas jamais a aceitava enquanto travesti”.
A negação do filho que, “além de ser viado, ainda se veste de mulher”
por parte da mãe de Daniele justifica-se, segundo seu relato, pelo fato de sua
mãe relacionar travesti à imagem dominante que a associa ao extremo do
efeminamento e da passividade sexual; em suma, ao rompimento radical das
expectativas sociais sobre como deve se apresentar e se comportar um homem.
As travestis são relegadas ao campo desvalorizado do feminino e, entre
outros fatores, por se tratarem de homens que abdicaram do privilégio da
masculinidade, têm sua identidade associada a um desvio de caráter que
excede o vergonhoso e se aproxima do estigmatizável, motivo de escárnio e
objeto de reações violentas. Assim, o interesse por pessoas do mesmo sexo cria
a vergonha que se sofre, geralmente, em segredo, ao se sentir um estranho em
um mundo apresentado como heterossexual. Porém, o rompimento das
normas de gênero, por sua expressão pública, torna as travestis sujeitas a
reações mais violentas e, no limite, estigmatizadoras do que as vivenciadas por
outros homo-orientados como gays ou lésbicas.
Historicamente, segundo Bento (2008), o discurso da diferença
sexual, isto é, de que existem dois sexos “biológicos” hierarquicamente
diferentes e separados, um para o homem e outro para a mulher, deu suporte ao
julgamento das condutas, naturalizando e essencializando o que se entendia
por comportamentos masculino e feminino. Segundo a autora, nessa lógica
dicotômica, não é possível haver deslocamentos. Além disso, nesses termos, “o
masculino e o feminino só conseguem encontrar sua inteligibilidade quando 17referenciados à diferença sexual” (BENTO, 2008, p. 25) .
Em uma perspectiva informada pelos estudos de gênero, passamos a
conhecer a masculinidade e a feminilidade não como algo direta e
“naturalmente” associado aos genitais, antes como signos ou processos que
são acionados por meio de práticas culturais. Isso se faz imprescindível para
refletir sobre a subjetividade travesti (KULICK, 2008, p. 242). Como essa
reflexão ainda está longe da realidade do senso comum, em alguns casos, até
17 Não é à toa que a imposição da normalidade dos gêneros inteligíveis ligados à diferença sexual é o que leva algumas dessas travestis a desejarem a cirurgia de “mudança de sexo”, afinal, esta seria uma “tentativa de transcender os domínios do irrelevante e do risível” (SILVA, 1993, p. 159). Não foi constatado, porém, esse desejo entre as entrevistadas, com a exceção pontual de Vivian, que, em suas palavras, “chegou a pensar nisso”, tendo até uma comunidade no Orkut com o título “Quero trocar de corpo” (115 membros), mas desistiu, pois “está bem assim”.
mesmo dos ambientes acadêmicos, os maus tratos que Daniele e outras
travestis adolescentes também sofreram são frequentes. Maus tratos têm
efeitos subjetivos profundos, pois consistem em
um tipo de desrespeito que fere duradouramente a
confiança, aprendida através do amor, na capacidade de
coordenação autônoma do próprio corpo; daí a
consequência de ser também, com efeito, uma perda de
confiança em si e no mundo, que se estende até as camadas
corporais de relacionamento prático com outros sujeitos,
emparelhada com uma espécie de vergonha social
(HONNETH, 2003, p. 215).
No entanto, não é somente através de experiências de violência física
que a vergonha emerge mesclada ao estigma. O surgimento da vergonha, e a
possibilidade de esse sentimento se tornar central na experiência dos sujeitos,
dá-se quando o indivíduo percebe que um de seus próprios atributos é impuro,
podendo imaginar-se como não portador dele (GOFFMAN, 1988, p. 17).
Por exemplo, nas experiências de Vivian e Rodrigo, eles se perceberam
portadores de atributos impuros durante processos institucionais tidos como
“acolhedores” e de “proteção”. Isso ocorreu durante suas permanências nos 18abrigos por onde passaram. Inclusive, nos aconselhamentos presentes no
discurso moralista cristão dessas instituições, que os pediam para “voltar a ser
menino”, pautaram as suas experiências em diferentes níveis, até os últimos
contatos com eles, quando já viviam fora das instituições. Porém, isso não 19significa que a desmontagem institucional tenha atingido o seu objetivo
plenamente. Afinal, hoje, procuram ser “úteis” para a sociedade, nas palavras
de Vivian, “fazer alguma coisa de bom”, mas parecem estar distantes do
modelo de masculinidade heteronormativo defendido pelas instituições.
No entanto, segundo Warner (1999, p. 7), há uma política da
vergonha que vai além do sentimento declarado e deliberado por esse
moralismo. “Ela envolve também desigualdades silenciadas, desinteresses,
efeitos de isolamento e a falta de acessos públicos”. Então, em se tratando de
sexualidades subalternas, podemos afirmar que “o efeito da vergonha é a
dominação heterossexual” (WARNER, 1999, p. 6).
Parker e Angglenton (2001) afirmam que o estigma tem sempre uma
história, a qual faz com que, pela estigmatização, os sujeitos sejam inseridos de
diferentes formas nos sistemas ou estruturas de poder.
18 “Os conselhos ao estigmatizado frequentemente se referem com bastante singeleza à parte de sua vida que o mais envergonha e que considera a mais privada” (GOFFMAN, 1988, p. 122).19 Sobre os processos de desmontagem institucional, ler Duque (2007).
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De fato, é possível ver a estigmatização desempenhando
um papel chave na transformação da diferença em
desigualdade, e pode funcionar, a princípio, em relação a
qualquer um dos eixos principais da desigualdade
estrutural interculturalmente presente: classe, gênero,
idade, raça ou etnia, sexualidade ou orientação sexual, e
assim por diante (PARKER; ANGGLENTON, 2001, p. 14).
Nesse contexto, podemos pensar como se dá a questão do uso político
do escândalo por essa nova geração que, conforme Kulick e Klein (2003),
amplia o espaço da abjeção. Para eles, “o escândalo é toda situação que
evidência (ou visibiliza) uma diferença das realidades hegemônicas ou das
socialmente desejadas” (KULICK; KLEIN, 2003, p. 2). A maior parte das
travestis de gerações anteriores, diferentemente das estudadas neste texto,
abusava cotidianamente da sua condição vergonhosa, de forma a se impor nas
mais várias situações. Parece-nos que as mais jovens têm buscado esconder ou
evitar o que pode lhes causar vergonha.
Considerações finais
A experiência de ser travesti dessa rede de adolescentes de Campinas
revela o quanto o aprendizado de “como se tornar travesti” e as possibilidades
de concretizar a montagem têm mantido permanências e rupturas com as
experiências identitárias de outras gerações de travestis. Destaca-se
estrategicamente a flexibilização do ideal êmico de “estar como mulher 24
horas por dia”, o qual tem perdido força entre as mais jovens, possibilitando-
lhes trânsitos mais fluídos do que os de outrora, chamando a atenção para si de
maneiras menos vexatórias.
Talvez isso seja possível, devido a uma das características que revela
certa continuidade no ser travesti ao longo dos últimos anos, o fato de as
travestis adolescentes com as quais convivemos perseguirem, como a geração
anterior, uma condição de feminilidade que as faça “passar por mulher”. Os
processos de construção do feminino, mesmo com tecnologias empregadas de
formas diferentes das de outras gerações (como a diminuição dos hormônios
femininos, das aplicações de silicone líquido e a maior adesão às próteses de
silicone utilizadas com mais frequência entre as mulheres), ainda legitimam
uma feminilidade vista como “natural”, reproduzindo assim normas e padrões
de gênero já reconhecidos e classificados hierarquicamente em seu meio.
A criação do já conhecido “feminino travesti” revela-se uma
intersecção em que o gênero é apenas o principal meio para “superar” ou
transmutar outras categorias, como a negritude e a origem socioeconômica. O
194
ideal de beleza travesti segue o padrão hegemônico disseminado pela mídia,
portanto, é branco, rico e sexualizado. Seja na escolha do sobrenome de uma
drag famosa, seja no cuidado com a maquiagem e as fotos que se postam no
Orkut de uma europeia, é perceptível que a construção do feminino equivale
também a um branqueamento e a uma busca de ascensão social por meios
estético-comportamentais.
O enfoque nesse processo de montagem e desmontagem também
revelou o quanto os espaços de sociabilidade de diferentes jovens têm
permitido, via desejo, um trânsito de montadas e desmontadas que as fazem
deslizar na escala de violência que travestis têm enfrentado socialmente. A
manipulação do estigma parece ser uma característica marcante dessa
geração, que busca maior aceitabilidade e respeito, o que, talvez, substituía, ao
menos em parte, as estratégias cotidianas de escândalo que marcaram as
gerações anteriores, nas quais muitas travestis eram destituídas até mesmo da
aspiração ao respeito social.
É perceptível também que o agenciamento desejante desses sujeitos,
via montagem sem hormonioterapia e silicone líquido, tende a criar corpos
plásticos mais afeitos aos interesses biopolíticos do presente do que os corpos
transformados das travestis de gerações passadas. Afinal, monta-se e
desmonta-se, não da forma como querem, mas fazendo frente a demandas e
normas sociais. Em outras palavras, o agenciamento desejante desses sujeitos
parece colocar seus corpos abertos a interesses hegemônicos. Assim, essas
experiências são um misto de resistência e inserção em códigos valorizados de
sexualidade, gênero e desejo.
Essas maneiras de vivenciar identidades sexuais de forma fluída,
transitória e reversível colocam em questão a capacidade de o conceito de
travestilidade abarcá-las sem as reduzir a um tipo já existente cujas mudanças
aqui apresentadas sugerem transformar-se em algo diverso, mesmo que ainda
não consolidado (se é que um dia virá a ser). O cenário cambiante das culturas
sexuais de nossos dias insinua que as experiências que aqui se buscou
reconstituir e analisar deverão marcar, por algum tempo, a vida das
adolescentes, mas, como quaisquer outros processos identitários, estão
restritas aos limites de um contexto social e histórico específico.
Por fim, as identificações são menos escolhas conscientes do que
posicionamentos contextuais em que se articulam os interesses de cada um
diante de normas e convenções sociais. No caso das adolescentes com quem
convivemos, identificamos esse posicionamento como resultado do modo
como, guiadas por seus desejos, encontram formas de lidar com a vergonha da
homossexualidade e o estigma de romper padrões de gênero.
195Tiago Duquen. 07 | 2012 | p. 173-198
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10
Murilo Peixoto da MotaSociólogo,
Doutor em Serviço Social,Membro do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas
em Direitos Humanos da UFRJ.murilomota@nepp-dh.ufrj.br
A construção da homossexualidade no curso da vida a partir da lembrança
1de gays velhos
The construction of homosexuality during life time before recollections of old gay men
200
Resumo
Este artigo analisa as dimensões sociossexuais relacionadas à homossexualidade e ao
envelhecimento de homens com mais de sessenta anos, de camadas médias e
moradores da cidade do Rio de Janeiro. A partir de quinze entrevistas, são analisadas as
trajetórias da vida desses sujeitos, enfocando-se as expressões de ser gay e a experiência
de envelhecer. Com base no aporte teórico da perspectiva da construção social para a
reflexão sobre a sexualidade e o envelhecimento no espaço social, esta pesquisa reflete
sobre a agência desses indivíduos, a carreira homossexual, as lembranças que
demarcam essa geração, os vínculos afetivos, as atividades cotidianas, as
sociabilidades e as práticas sexuais que revelam um circuito gay caracterizado pela
valorização da vida jovem e pelo individualismo. Diante do estigma de ser gay e velho,
examina-se como são as experiências relacionais e quais estilos de vida são
construídos e experimentados por esses homens.
Palavra-chave: Homossexualidade. Envelhecimento. Masculinidade.
Abstract
This article examines the social and sexual dimensions related to homosexuality and
men aging over the sixty years, middle class and residents of Rio de Janeiro city. From
fifteen interviews, the lives trajectories of these subjects are analyzed focusing on the
expressions of being gay and the experience of getting older. Based on the theoretical
contribution of authors who reflect on sexuality and aging in the social space, from the
perspective of social construction, this research reflects on agency of individuals, the
homosexual career, memories that mark their generation, affective ties, the everyday
activities, sexual practices and the sociability that reveal a gay circuit characterized by
the appreciation of the young life and individualism. Due to the stigma of being gay and
old, we have to answer how these relational experiences are and what lifestyles are
constructed and experienced by these men.
Key-words: Homosexuality. Ageing. Masculinity.
1 Este artigo é parte de minha tese de doutorado – “Homossexualidades masculinas e a experiência de envelhecer” – defendida em outubro de 2011 pelo Programa de Pós-Graduação da Escola de Serviço Social da UFRJ.
Introdução
Este artigo busca sintetizar as narrativas que circunscreveram uma
pesquisa realizada ente os anos de 2009 e outubro de 2011 com quinze
homens gays, com sessenta anos ou mais, de camadas médias e moradores da
cidade do Rio de Janeiro. As análises sobre as relações homossexuais no
contexto do envelhecimento são dimensões ainda pouco estudadas pelas
ciências sociais. Neste sentido, as contribuições dessa discussão possibilitam
ampliar o debate acerca da carreira homossexual no âmbito da perspectiva
geracional e das relações de gênero, fomentando a luta contra a homofobia e
pela diversidade sexual
Inicialmente, vale mencionar apenas que o fenômeno idade, como
responsável por um conjunto de imagens e representações, revela noções de
valor ao longo do curso da vida que ganham complexidade no âmbito do debate
sobre o envelhecimento. A idade está envolvida em mitos, na ideia de
representação cronológica de um indivíduo e sua biografia, numa referência
biológica para o que simboliza ser velho. Há toda uma discussão que abarca
amplo processo de análise a respeito da idade como uma alusão demarcadora
das circunstâncias históricas e culturais para o indivíduo moderno. O próprio
sentido do que hoje se denomina terceira idade vem a reboque do princípio que
requer a compreensão da velhice dentro de um leque de possibilidades que
buscam valorizar e integrar as mesmas oportunidades ofertadas à juventude,
mas levando-se em conta as limitações e necessidades do idoso como agente
no espaço social (ALVES, 2004; DEBERT, 2004).
Todavia, saliento que ter sessenta anos ou mais é um marcador
importante que explicita a urgência da implementação de uma série de
políticas públicas de direitos sociais para os idosos como obrigação do Estado,
das quais o Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741, de 1º de outubro de 2003) é
exemplo. Porém, nem por isso se pode pensar essa fase da vida unicamente
atribuindo-lhe uma homogeneização e unificação de condutas que
caracterizam o indivíduo como velho (DEBERT, 2004). A idade expressa uma
representação social e deve ser contextualizada para a análise do processo de
envelhecimento como um todo. Assim, devo afirmar que a idade fundamenta
ordenamentos e costumes a partir de uma necessidade lógica de classificação.
Como escreve Bourdieu (1987, p. 19), os sujeitos não se distinguem “visando
encobrir ou justificar as relações que mantêm entre si; mas por uma
necessidade lógica que também os leva a pensar em sua existência em termos
de grupamentos e divisões”.
201Murilo Peixoto da Motan. 07 | 2012 | p. 199-222
Acrescento o fato de os sujeitos em referência serem de camadas
médias como delimitação dos indivíduos envolvidos neste estudo. A partir das
considerações de Barros (1987), levo em conta que tais camadas demarcam
um meio de vida heterogêneo, espelham impessoalidade, relações hierárquicas
e estilos de vida. Os entrevistados foram ocupantes de cargos comissionados
em grandes empresas, ex-funcionários públicos e profissionais liberais. Trata-
se, assim, de perfis caracterizados pela alta escolaridade. Essa referência a
camadas médias não se restringe ao debate sobre classe social como expressão
sintética. A ideia de camada acentua a referência simbólica no contexto de
estilos de vida dos indivíduos, que podem partilhar com o grupo certas
características sociais e culturais, mas não somente como correlações de forças
econômicas (BOURDIEU, 1983). Essa reflexão permite ampliar a análise sobre
a sociedade brasileira devido à grande heterogeneidade social e às
consequências da forte hierarquização das relações existentes, fato que
explicita o quanto os valores implicados pelos modos de vida passaram a ser
mais importantes do que a situação de classe (PEIXOTO, 2000).
Há que se levar em conta o fato de que a demarcação entre juventude e
velhice tornou-se ícone simbólico da sociedade moderna, na qual, segundo
Elias (2001), os velhos não são aqueles que suscitam o desejo de identificação.
Nessa perspectiva, esse autor ressalta que os anos de decadência acentuados
pela velhice são penosos. De todo modo, é no contexto da velhice que a
fragilidade dos indivíduos expõe a dificuldade para lidar com as dimensões que
articulam a degeneração do corpo e as experiências da vida. No entanto, a
velhice apresenta demarcações diferenciadas ao longo da história e deve levar
em conta os estilos de vida. Como apontado por esse autor, um homem de
quarenta anos do século XIX era visto como um velho, enquanto nas sociedades
industriais do século XX encontra-se recém-saído da fase de juventude,
considerando-se as diferenças no estilo de vida.
Ser velho nas sociedades modernas passa a ter a representação muito
associada à incapacidade para o trabalho. Contudo, e apesar das tentativas de
positivação com mudança de linguagem, por exemplo, adotando os termos
“terceira idade” ou “melhor idade” no lugar de “velho” ou “idoso”, o termo
“velho” é reivindicado por especialistas por apresentar maior precisão e
identificação, mesmo que seja menos respeitoso (BARROS, 2007).
Os homens aos quais faço referência neste artigo são oriundos de uma
geração que acompanhou o processo de transformação discursiva das
experiências sexuais. No aspecto geracional, destacam-se os momentos: o
período que vai da ditadura até a abertura política, e o impacto da pandemia do
202
2HIV/Aids ; a transição da perspectiva patologizante para uma de direitos no
âmbito dos novos movimentos sociais; o processo de construção de um circuito
de entretenimento gay nas cidades brasileiras; a evidência do evento da Parada
Gay, que passa a dar visibilidade à sociabilidade, à homossexualidade; a luta
por reconhecimento social e civil do emergente movimento de pessoas
Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais (LGBT). Em consequência, essa
geração encontra-se no auge das mudanças sociais espelhadas em novos
estilos de vida gay, com o crescimento do mercado de consumo, dos espaços de
entretenimento homoerótico, das formas de lazer, das manifestações públicas e
da reafirmação política de direitos sociais e civis. Assim, novas questões
surgem para os indivíduos velhos e envolvem aspectos que se delineiam ao
longo da carreira do homossexual, como a luta por afirmar a homossexualidade 3na trajetória de vida e sair de “dentro do armário” .
Os entrevistados apresentam uma gama de fatos em que as
lembranças de suas trajetórias de vida formam um conjunto de referências que
caracterizam a sua geração. A ideia de geração se opõe à noção de um tempo
linear, padronizado e fixado em etapas (MANHEIN, 1982). Essa perspectiva
permite uma análise das narrativas sem deixar de levar em conta as reflexões
sobre o curso da vida que focaliza o indivíduo como um agente no presente. A
categoria geração nesse sentido permite, portanto, a compreensão de como os
entrevistados reagem, engendram e adquirem valores, visões de mundo e
estilos de vida, adaptada ou renovada, de que são produtos e produtores.
4Nesse sentido, a criação da Turma OK como espaço de 5homossociabilidade , por exemplo, formada a partir da amizade de um grupo
2 O surgimento dos primeiros casos no Brasil, em 1982, da Síndrome da Imunodeficiência Humana (Aids) originou um verdadeiro pânico pelo nível de desconhecimento sobre a doença na qual um resultado positivo eliminaria qualquer sentido de alongamento da vida. O cantor e compositor Cazuza, acometido pela Aids, chegou a dizer em uma de suas músicas que “o meu prazer agora é risco de vida”, como referência a ser um portador do Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV). Do ponto de vista gramatical, ainda que se trate de uma sigla, a palavra “aids” passou a ser equivalente a outros substantivos comuns referentes a doenças (sífilis, conjuntivite). Contudo, ainda encontramos variação da sua escrita inclusive em textos do Ministério da Saúde. Por uma questão de padronização, neste texto, será utilizada para a sigla conjunta a forma HIV/Aids e Aids quando a palavra ocorrer isoladamente.3 A expressão “dentro do armário” refere-se ao momento em que o indivíduo não assumiu a homossexualidade e, mantendo-se isolado na sua posição, vez por outra, sai para vivenciá-la clandestinamente como uma prática sublimada. Assim, até o momento de aceitar a sua condição de homossexual, o “sair do armário” ou coming out, o indivíduo passa pelo duplo processo de integração: na comunidade gay e de afirmação pública, seja no âmbito da aprendizagem, seja como busca de estilo de vida (WEEKS, 1977; HART; RICHARDSON, 1981; POLLAK, 1985; VIEIRA, 2010; ALMEIDA, 2010).4 Na cidade do Rio de Janeiro, a Turma OK faz referência a um espaço cultural de encontros de indivíduos gays,
lésbicas e simpatizantes e caracteriza-se por sua homossociabilidade ocupada por homens gays maduros. Além disso, a boate La Cueva também entra no rol de entretenimento desse perfil de homens, por mais que não se trate de uma unanimidade apresentá-los como espaços que correspondam às necessidades de suprir a carência de sociabilidade desses indivíduos e que não seja uma propriedade definida identificar esses espaços como destinados ou construídos para gays velhos.5 O termo homossociabilidade se refere ao sentimento de pertença a um lugar, a um grupo ou a uma coletividade, como fundamento para as experiências de sociabilidade homossexuais (MAFFESOLI, 2007). Ao utilizar os termos homossociabilidade e sociabilidade, refiro-me às distinções existentes entre o contexto das relações sociais entre gays e heterossexuais.
203Murilo Peixoto da Motan. 07 | 2012 | p. 199-222
de homens, é lembrada como um fato importante, pois se trata de um ambiente
que possibilitou vínculos sociais entre os membros e os visitantes, que
passaram a compartilhar ideias, gostos e estilos até hoje experimentados.
Ademais, a boate La Cueva também se acentua como um demarcador de
experiências homossexuais para toda uma geração, assim como o calçadão da
Cinelândia, como espaço de encontros de sedução entre homens de toda uma
geração no Rio de Janeiro. A delimitação desses espaços na cidade, que
permitiram encontros para investidas sexuais e realização de redes de amigos,
também se evidencia como referência para a experimentação do lazer e
diversão da homossexualidade na velhice de maneira menos rígida e livre de
preconceitos. O que se explicita ao analisar essas narrativas é o contexto
histórico, social e cultural em que os entrevistados assinalaram as mudanças
experimentadas no âmbito do curso de suas vidas que possibilita alinhavar o fio
condutor entre sociabilidade e os modos como a sexualidade vai se construindo
como uma maneira de ser.
Contudo, mesmo aqueles que atualmente não elegem a
homossociabilidade como questão importante, a experiência de envelhecer é
apontada como um acontecimento que não se percebe, uma vez que o
sentimento de juventude permanece vivo, sendo a aparência e a degeneração
do corpo, como assinalado por Beauvoir (1990), os marcadores que objetivam
esse momento. Nesse sentido, envelhecer é traçado a partir de histórias sobre
experiências que influenciaram os seus atuais estilos de vida. As poucas opções
de sociabilidade atuais parecem demarcar a nostalgia do “bom tempo
passado”, que refletia certa sedução mesmo em meio à clandestinidade, pois
hoje a segregação da velhice se reflete, entre outras dificuldades, na obtenção
de parceiros e na tentativa de se dar continuidade a novas relações.
Neste artigo, busco alinhavar as questões relativas às rupturas,
construções e desconstruções que aparecem nas narrativas dos entrevistados e
que marcam a lembrança da infância, a trajetória da homossexualidade, além
de algumas questões mais existenciais apontadas pelo processo de
envelhecimento.
Marcas geracionais e as lembranças do passado
As narrativas sobre as lembranças da infância registram a rígida
construção das noções das representações de gênero transmitidas pela família,
as quais informam o que um homem pode ou não fazer. Apontar determinado
ato como pecado é também uma das maneiras encontradas pela sociedade
204
para exercer disciplinamento baseado na heteronormatividade e na
assertividade masculina nos primeiros passos da educação dos meninos. Trata-
se da socialização da diferença entre os gêneros, simbolicamente controlados
dentro de um sistema que define o que é o masculino, o que “ele” tem que ser e 6fazer, aspecto ressaltado na infância de Francisco .
Eu me lembro também de que, depois que nós viemos para
o interior, fui morar com a minha avó. Ela era muito religiosa
e dizia que menino não brinca de boneca, pois era pecado
(Francisco, 72 anos).
Francisco também relata seu desejo de participar do ritual religioso de
Nossa Senhora, prática legada às meninas. Tal aspecto revela o quanto a
divisão sexual e a representação de gênero impõem o seu rigor no cotidiano,
determinando aquilo que se pode ou não desejar, ainda que a regra possa ser
transgredida.
Na minha infância, tinha as meninas que iam coroar Nossa
Senhora, e só as meninas faziam isso, e eu cismei com o
fato de não poder coroar Nossa Senhora vestido de anjo.
Minha avó, que fazia a roupa de anjo, era muito habilidosa.
Na época, eu tinha um cabelo cacheado igual a um anjo, e
eu dizia: Eu quero, eu quero, eu quero! Aí, minha avó
enganou o padre, entendeu? E eu fui e coroei Nossa
Senhora como se fosse uma menina. Esse fato marcou
minha infância. Essa minha avó teve uma influência muito
grande na minha vida, ela não batia muito bem da cabeça,
mas eu gostava disso (Francisco, 72 anos).
O fato de as meninas, como anjos, serem as que coroam Nossa
Senhora registra como as diferenças de gênero são naturalizadas a partir de
efeitos simbólicos, sobretudo, nos traços distintivos dos corpos. A coroa deve
ser levada pelos anjos representados pelas meninas, simbolicamente puras. Tal
reconhecimento e legitimação fundamentam a concordância entre as
estruturas cognitivas e sociais das diferenças de gênero.
Outro aspecto advindo de algumas lembranças narradas toma o corpo
sexuado como sendo depositário de princípios que implicam a divisão de
tarefas, trabalhos e cerimônias, sendo objeto de controle, no qual aqueles que
se sentem com uma “sensibilidade diferenciada” são observados com mais
atenção para que se direcionem maiores disciplinas. A diferença entre os sexos
está na base dessa distinção da divisão social. Alguns entrevistados
6 Os nomes dos entrevistados são fictícios.
205Murilo Peixoto da Motan. 07 | 2012 | p. 199-222
evidenciam, em suas lembranças sobre a infância, o quanto os valores morais
recaem sobre a divisão do trabalho (o que é próprio de homens e o que é próprio
de mulheres; o que é para pessoas de bem e o que deve ser evitado),
determinando quais atividades profissionais não são toleradas para os homens,
questões acentuadas por Ricardo e Eduardo.
Na minha infância, eu tinha uma sensibilidade diferenciada
e inclusive acho que foi muita maldade da minha família,
pois eu deveria ter tido outro desabrochar profissional. Eu
era muito ligado à dança, passava um tempo dançando,
parecia balé. E meu pai chegou a me perguntar: – você está
ficando louco? Eu sempre vivi essa ambiguidade. Dança era
uma coisa de gay e, por isso, não se verbalizou. Eu era
muito novinho e nem percebi isso na época, fui perceber na
geração posterior. Na época, eu só consegui sentir um
estranhamento (Ricardo, 60 anos).
Eu queria uma formação que mexesse com o corpo, tipo
dança ou Educação Física, e muito com a arte. Na minha
fase da escolha, eu queria isso. Mas a dança tinha aquela
coisa de parecer com o homossexualismo, e a minha
orientação foi praticamente cem por cento reprimida [...]. Eu
fiz curso de teatro, meu pai era contra, aí eu fazia faculdade
e fazia teatro ao mesmo tempo. Ele ficou doente e falei tudo
o que eu achava do nosso relacionamento, antes dele
morrer. Para mim foi maravilhoso! (Eduardo, 60 anos).
A masculinidade se delineia no processo que se impõe pela diferença e
contraste com o feminino, ou de qualquer outro comportamento e atitude que se
distingue com o que foi delegado simbolicamente a representação de ser mulher
no universo da norma heterossexual, aspecto já amplamente debatido a partir da
literatura feminista. As dificuldades daí advindas são inúmeras para aqueles que
subvertem essa norma. Segundo Fraser (2001), todo homossexual vive a crise do
heterossexismo, o que é corroborado por José (63 anos), quando afirma:
A homossexualidade me incomoda, incomodou, porque eu
acho que a vida heterossexual é de certa forma mais fácil
(José, 63 anos).
Evidencia-se o quanto a norma heterossexual é um peso para aqueles
que ousam subvertê-la. Esse indivíduo é levado a tomar posições para se impor
e se sobressair, buscando garantir um olhar mais positivo de si, numa luta
contra o estigma impingido aos homossexuais em seu meio. Na análise de
Goffman (1982, p. 25), “o indivíduo estigmatizado pode descobrir que se sente
inseguro em relação à maneira como os normais o identificarão e o receberão”.
206
Então, a tentativa de se sobrepor à consciência de sua inferioridade será buscar
se definir como alguém que expresse aceitabilidade, pois nunca sabe como os
outros vão percebê-lo ou aceitá-lo em termos do estigma que lhe é imposto. Os
entrevistados, por exemplo, relatam as dificuldades no espaço do trabalho, em
meio à construção de sua carreira homossexual.
Ser o melhor no meu trabalho foi uma estratégia para eu me
impor. Na minha época você como homossexual tinha que
ser o melhor em qualquer situação. Se você é cabeleireiro,
você tem que ser o melhor cabeleireiro, se você é sociólogo,
você tem que ser o melhor sociólogo, tem que ser sim, é a
maneira das pessoas te respeitarem, porque ainda existe
muito preconceito e pouco acolhimento (Marco, 60 anos).
Há momentos lembrados que foram vividos na juventude e narrados
como marcantes historicamente. O que se delimitam são as experiências de
toda uma geração, exemplificadas nas narrativas dos entrevistados que
circunscrevem seus momentos, citados aqui por Antônio e Álvares sobre a
morte de Getúlio Vargas.
A morte do Getúlio me marcou. Eu acho que deveria ter dez
ou onze anos e me lembro que foi uma coisa que me
marcou. Foi, assim, muito forte dentro da minha cabeça,
depois fui entendendo politicamente o porquê. E, hoje, aos
sessenta e cinco anos, eu vejo claramente a situação
política da época e entendo melhor. Agora o movimento
hippie me encantou e foi o que me despertou para muita
coisa, aproveitei muito, pois aconteceu no auge da minha
juventude. Essas foram as lembranças que mais me
marcaram dentro da minha história (Antônio, 65 anos).
O registro do tempo relacionado aos acontecimentos históricos
restaura a lembrança, em que cada fato interliga e estabelece conexões, muitas
vezes esquecidas, mas reveladas no momento da entrevista, desenhando,
desse modo, a trajetória da vida. Gagnebin (2009) assinala que essa análise
sobre o fenômeno histórico é como ponto isolado salvo, formando uma
“constelação” (tomando como metáfora as estrelas no céu, que recebem um
nome quando um traço comum as reúne em forma de uma imagem).
A perseguição dos militares, as informações sobre as
torturas na ditadura me marcaram muito. Na época, eu
tinha um amigo homossexual que era comunista.
Conversava muito com ele, era uma pessoa muito culta. Eu
lembro que comprei pra ele um livro chamado Nosso
homem em Havana. E ele foi preso, foram na casa dele e
recolheram tudo o que ele tinha, cartas, livros e tudo. E eu
207Murilo Peixoto da Motan. 07 | 2012 | p. 199-222
fiquei com medo se eles pegassem aquele livro e vissem a
minha dedicatória e me pegassem. Nessa época, eu
morava no interior, e vinha frequentar lugares gay aqui no
Rio, isso foi em 1970 (Francisco, 72 anos).
Eu me lembro que a gente tinha o toque de recolher dos
militares e foi nessa época que fui morar com meu
companheiro. Isso me marcou muito, e a gente sabia pela
televisão, e obedecia, e ninguém andava sozinho na rua. E,
por isso, era muito marcante a reunião na casa das famílias.
Todo gay que tinha um companheiro proporcionava essas
reuniões. E quem era solteiro participava, era tipo um sarau
(Antônio, 65 anos).
Quando eu tinha uns vinte anos, esse foi um momento forte
da ditadura militar, mas eu passei ao largo disso. Depois,
com o tempo, eles invadiam boates gay e essas coisas
todas, mas eu só vim a saber pela TV, porque eu não
frequentava esses lugares. Mas isso me oprimiu muito
(Eduardo, 60 anos).
Em algumas narrativas, é possível analisar o quanto determinados
acontecimentos proporcionaram sentidos simbólicos que influenciaram na
formação de novas experiências. As perspectivas políticas criam adequações
comportamentais que geram estilos de vida. Ao citarem o movimento hippie,
demarcam a experiência de uma geração cujos gostos e comportamentos
foram influenciados por esse acontecimento, aspecto lembrado por Ricardo,
Marco e José.
Tinha o movimento hippie, aquele negócio todo, a
permissividade que existia na época. Foi a coisa que mais
marcou a minha geração, pois tinha a amizade colorida,
que desapareceu, infelizmente, e aquilo era tão bonito. Era
uma forma grandiosa de amar, e eu estou me referindo a um
outro homem. Você não era obrigado a ter uma relação ou
uma ligação direta com a pessoa. Eu tive um grande amor
assim (Ricardo, 60 anos).
Eu vivi essa coisa hippie, os Beatles. Eu me lembro e isso
me marcou, pois comecei a perder cabelo com vinte anos,
na época dos Beatles, isso era horrível para aquela época
(Marco, 69 anos).
Lembro-me que eu sempre sentia atração por homens
cabeludos. Tinha essa fantasia, mas nunca transei com
esses “caras” de cabelos grandes. Eu não peguei
inteiramente a geração hippie, senti que a minha geração é
mais dos Beatles (José, 63 anos).
208
A trajetória de vida é dotada de lembranças que registram situações
coletivas comuns na dimensão histórica, as quais formam a experiência. Essas
narrativas destacam as vivências nas quais, para cada indivíduo, a ação social
oferta posições e descobertas, inserindo-se em movimentos mais amplos de
mudanças coletivas, dos quais é parte e para os quais contribui na construção
de estilos de vida. Nesse contexto, constroem suas carreiras homossexuais,
aprendendo que seu ato desviante possui muitos sentidos cada vez mais
apropriados, adaptados, expressando a maneira de viver. Para esses
indivíduos, segundo Becker (2008, p. 41), a carreira organiza a identidade em
torno de um padrão de comportamento desviante, mas somente “para aquele
que segue um padrão de atividade homossexual durante toda a sua vida
adulta”. É suficiente dizer que viver a homossexualidade provém de motivos
socialmente aprendidos em que se interage com outros no âmbito de uma
subcultura com mesma atividade.
Assim, acontecimentos históricos, que foram decisivos na constituição
das subjetividades coletivas, repercutiram na vida dos entrevistados como um
fenômeno geracional. As lembranças da infância, por outro lado, sublinham os
sentidos dados à formação de sua homossexualidade no âmbito do que se
busca e motiva socialmente. Além disso as experiências, em meio à repressão,
ao controle, à vigilância, associados a um sistema de representações do
masculino, deram o tom dos relatos e expuseram o dispositivo que se instala
sobre a orientação sexual, vivenciada como um desvio. Nesse sentido, o
despertar homossexual explicita questões que envolvem ritos, brincadeiras na
infância, vínculos de amizade e o projeto de sair de casa, entre outros aspectos
que envolvem a dificuldade de ser aquilo que se deseja.
A trajetória da construção da homossexualidade no curso da vida
Os entrevistados revelam o impacto do processo de liberação sexual 7norte-americano no início dos anos 1970 , embora, no Brasil, estivesse no
auge da ditadura militar. O enfrentamento dessa situação leva a adaptações
7 Refiro-me ao movimento hippie, à insurgência de lideranças gays, principalmente em São Francisco, EUA, que invocam o ambiente até então relegado do “gueto” como espaço legítimo de manifestação política e homoerótica. Às revoltas gay, em 1969, desencadeadas por uma batida policial no bar Stonewall, na cidade de Nova York, tornam-se um símbolo de luta. Stonewall passa a ser considerado o nascimento do movimento contemporâneo do Orgulho Gay. Além disso, o impacto da descoberta da pílula anticoncepcional, uma década antes, um divisor de águas nas relações conjugais com o maior controle sobre a gestação e, consequentemente, maior abertura para as práticas sexuais. Some-se a tudo isso o surgimento, nessa década, dos encontros gays, das manifestações culturais, das expressões artísticas e da imprensa alternativa, que revelavam conteúdo reflexivo sobre a homossexualidade. Foi uma década marcada pela liberação dos costumes e pelo reconhecimento de estilos de vida homossexual, como uma prefiguração do avanço nos comportamentos e nas relações humanas. Assim, os anos 1970 marcam todo um conjunto experiências, nas quais o homossexual prova sua capacidade e seu poder de se fazer respeitar, explicitando uma nova arte de viver (POLLAK, 1990).
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relacionais em meio ao aparato de controle e repressão política, exigindo
estratégias de convivência no âmbito da vida pública e privada em diversos
contextos da sociedade. A relação homossexual inclina-se sobre perdas sociais.
Assim, a vida amorosa com mulheres passou a ter novos significados, como
encobrir ou amenizar o sentimento de vergonha sofrido pelo desejo sexual
direcionado a homens. Essa dimensão tem seus efeitos, como assinalado por
Eduardo e Álvares.
Tive uma mulher que ficou muito tempo na minha vida [...]
e foi ela que ficou tapando o sol com a peneira. [...] Então
namorava mulheres e tinha relacionamento homossexual
ao mesmo tempo. Era clandestino [como homossexual].
Mas eu inseria o cara no meio dos meus amigos. Era
clandestino na minha cabeça, não era clandestino esconder
de ninguém. Eu dizia para as pessoas: esse é meu amigo!
Isso era difícil, pois ele [o parceiro] tinha ciúmes [...]. Mas,
naquela época, a repressão era muito grande, e as mulheres
também se preservavam. Com as namoradas, eu não fazia
sexo com elas, ficava só nos carinhos, aquela coisa toda,
não chegava aos finalmente (Eduardo, 60 anos).
Eu me casei com uma colega da faculdade de Letras, colega
de turma, só que eu já tinha tido experiências
homossexuais... (Álvares, 75 anos).
Tratando-se de uma geração que se relacionou com o mesmo sexo em
um contexto de autoritarismo político e de intolerância no qual a
homossexualidade se associava à condição de crime e à doença, os
entrevistados viveram as relações heterossexuais para atender às expectativas
sociais e familiares construídas sobre a ideia de masculinidade fundada em
estereótipos de gênero. Assim, a carreira homossexual se apresenta permeada
por realidades contraditórias, através das quais se aprende a não se revelar, e,
aos poucos, através da sexualidade, a entender “quem se é”, aspecto lembrado
por Ricardo e José.
O que marcou a minha vida foi a percepção de duas coisas:
primeiro, que eu precisava não só de aventuras
homossexuais, eu precisava enveredar por um amor
homossexual, e, em relação a ela [mulher com quem se
casou], eu não tinha esse amor, amor mesmo. A questão
sexual era menor, mas tinha importância, porque eu
também gostava de transar com ela (Ricardo, 60 anos).
Na minha rua, naquela época [da adolescência], era quase
proibido ser homossexual. Então, a pessoa sabia que a
outra era homossexual e já via com outros olhos, já achava
210
que era um marginal. Eu acho que eles tinham mais medo
de um homossexual do que de um bandido. Era como eles
falavam: homossexualidade é uma doença que pode
contagiar alguém da minha família. (Manoel, 65 anos)
O constrangimento com a própria homossexualidade, muitas vezes,
suscita as dúvidas em relação a si mesmo e a obrigação de justificar a
diferença. A consequência é o enfrentamento das muitas crises existenciais que
aparecem na gestão da vida individual, porém não sem gerar situações
paradoxais, entre as quais, o cumprimento social do casamento heterossexual
se verifica como uma realidade para os homens dessa geração.
Eu fazia Direito nessa época, me formei e me casei. E me
casei com uma mulher, mas minha mulher sabia que eu era
homossexual, mas isso não era problema, ela me amava,
gostava de mim e eu, naquela época, acreditava que isso
era possível (Ricardo, 60 anos).
Tive uma namorada em São Paulo, uma coisa muito
passageira e não era uma coisa verdadeira. Com ela,
descobri que a relação heterossexual não era a minha
praia. Mas isso eu sempre achei desde criança, que sentia
atração por meninos (Roberto, 78 anos).
A violência simbólica contra a homossexualidade ancora-se muitas
vezes nessa dimensão de poder do heterossexual sobre o homossexual. Nesse
sentido, o indivíduo trava uma luta contra si mesmo a fim de se situar em um
espaço social preconceituoso, que gera sentimentos de vergonha, sensação de
permissividade, sujeira e transgressão.
Eu comecei tarde [a ter relações homossexuais], porque eu
era muito reprimido. A primeira relação [com homem] foi
com uns vinte e poucos anos, vinte e três anos. Foi com um
ator de teatro, falecido hoje em dia. Um ator até conhecido
na época. Eu o conheci num ensaio em que eu estava
presente, aí ele se aproximou de mim e ficamos amigos, ele
era uma pessoa muito inteligente, e fui a casa dele. Essa
relação foi muito chocante para mim, porque eu voltei para
casa me achando sujo, fui logo tomar banho, e fiquei horas
no banho. Nunca mais quis ver a pessoa na minha vida,
engraçado isso!! (Eduardo, 60 anos).
Com dezoito anos, comecei a ter relação com homens, mas
com muito receio. Eu mesmo tinha o preconceito. E aí a
minha primeira experiência [sexual com homem] foi ainda
aqui no Brasil, foi de repente. Tomei coragem, o cara me
olhou e eu fui. Foi uma experiência sem afeto nenhum,
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totalmente sexual, sem beijo, sem nada. Cheguei em casa,
toquei a companhia e a minha mãe abriu a porta e eu morri
de vergonha (José, 63 anos).
Algumas narrativas demonstram as formas como eles são
confrontados pela experiência heterossexual, cuja prática se reduz à ação em
torno da penetração. No contexto em que as relações sexuais com as mulheres
são experimentadas, o desejo parece se revestir da necessidade de provas de
masculinidade que venham encobrir o desejo homossexual e o sentimento de
estar em desvio.
Eu tive experiências com mulher, porque tinha a
necessidade de gozar em alguém, mas não tinha coragem
com um homem, pois na minha cabeça eu era o único
homossexual de toda a geração dos meus colegas. Tinha
uma coisa na minha cabeça imatura que a
homossexualidade era uma coisa de travesti. Eu sabia de
meu desejo, mas não expressava. Na época, tinha o
preconceito do meu pai, tinha medo de ser rejeitado. E eu
tinha os meus amigos, e eu não era um menino, digamos,
feminino, praticava esportes, não tinha nada gestual de um
gay... (José, 63 anos).
Eu já tinha clareza de que tinha tesão por homem, mas
guardava uma dúvida entre a parceria dos meninos de rua e
tentar uma namorada. Então, tinha uma namorada, transei
com a namorada e vi que não era o que eu queria, mas,
mesmo saindo com os garotos, tive uma namorada, porque
achava que ser gay era o mesmo que ser mulherzinha
(Antônio, 65 anos).
Está posto para esses indivíduos que ser homossexual gera o
sentimento de inferioridade e, muitas vezes, leva ao desprezo para com outros
gays, com os quais não conseguem identificar-se. Mas a percepção de se poder
viver um estilo de vida gay satisfatório adaptado às normas sociais torna-se, aos
poucos, aceitável, como demonstram as narrativas de Luis:
Tenho um amigo que é jornalista, formado, é bem
badalado, é conhecido e ele é uma pessoa totalmente
insegura na questão da homossexualidade dele, na mentira
do grupo dele, em todos os sentidos. Isso me irrita! Agora eu
acho que não tem necessidade de ir aos quatro ventos e
escrever na testa: eu sou homossexual! Eu acho que não há
necessidade disso! Entendeu? Eu acho que a minha
homossexualidade estava comigo desde garoto, mas pela
criação tentei não ter uma vida homossexual, até por causa
da família, então, os conflitos vieram até eu me encontrar
na homossexualidade, que foi após a crise dos meus três
relacionamentos, relacionamentos mesmo e não aventuras.
Então, eu sou uma pessoa tranquila, por ter me encontrado
(Luís, 68 anos).
A elaboração da identidade gay, a partir de um atributo que é
desaprovado, ou seja, a associação com o aspecto feminino, passa a exigir
respostas para as maneiras como se posicionam e são aceitos em seu meio
social. A recusa em se identificar com a representação gay/mulher/feminino
leva, inclusive, à vida secreta, que sinaliza certa proteção do verdadeiro desejo
sexual. Segundo Fernando:
Muitos acham que assumir é sair pela rua gritando, “dando
pinta”, miando. Eu acho que não! A homossexualidade, o
sexo, não tem nada com o caráter feminino, mas com a
postura de cada um. E você pode ser conforme quiser e
pagar o preço [...]. Nós temos uma opção sexual e, no
entanto, temos que nos respeitar diante a sociedade. Não é
você sair por aí gritando, rebolando, dando pulinhos, não!
Eu também não faço, veja só, eu não recrimino, de repente
vai dar a impressão de que eu estou com preconceito,
preconceituosamente contra essa gama de pessoas, não é
isso, eu acho que você, para ter uma opção sexual, não é ter
determinadas maneiras de ficar demonstrando aquilo que
não tem nada a ver, vou ficar levantando bandeira. Eu, por
exemplo, não levanto bandeira de nada, eu ajo
normalmente e vejo o que é viável (Fernando, 65 anos).
Esses homens, ao se aceitarem como homossexuais, descobrem que
são alguém de quem se dizem muitas coisas, o que acentua a postura do que
deve ser um “homem” e o que significa sua distinção. Os entrevistados se veem
como objetos dos olhares de censura e curiosidade dos outros e, também, como
alvo dos discursos que demarcam o estigma com base na classificação e na
polaridade heterossexual/homossexual, masculino/feminino. A associação do
gay ao travesti, lembrada pelo entrevistado, aciona a percepção dos
homossexuais masculinos aprisionados pela dicotomia estereotipada entre
masculino e feminino, sendo o feminino sua representação estigmatizante.
Para Bourdieu (2008), trata-se de se perceber como é imposto um sistema de
classificação dominante a partir de um traço estigmatizado, que por sua vez
fornece a esse sistema o conteúdo mais adequado para isolar e definir o que se
afirma, o que ele tem e é. Na fala de Luís abaixo, é salientado o aspecto que ele
despreza sobre a visibilidade homossexual, ou seja, o jeito estigmatizado do
homem feminino.
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Mas eu acho que você tem que defender a
homossexualidade pra você respeitar os outros, pra você ser
respeitado. O que vejo hoje em dia, como eu via
antigamente, um viadinho quá-quá, fazendo coisas, uma
dondoca, um travesti e tudo mais, mas eu acho que isso só
agride, não tem necessidade disso! Qual a necessidade de
eu estar declarando aos quatro ventos o que eu sou? (Luís,
68 anos).
A necessidade de aprender com quem se pode relacionar sexualmente
e em que espaços é permitido deixar transparecer afeição e desejo por outro
homem é um dos traços comuns nas trajetórias narradas. Na análise de Eribon
(2008), o homossexual constrói certa conduta adaptada por ser percebido
socialmente pela marca da diferença, o que muitas vezes o obriga a confrontar-
se com o seu próprio desejo em manter suas relações. Segundo Goffman
(1982), trata-se de um aspecto daquele que se sente, de alguma forma, com
um estigma e reage buscando estratégias para se posicionar no espaço social,
aliando-se a outros que sofrem da mesma marca. Assim, a busca dos meios
possíveis para fugir da violência faz com que muitos indivíduos com desejos
homossexuais migrem para outras cidades e meios urbanos fora do seio da
família. O deslocamento espacial e geográfico tem amplo significado simbólico
e prático, pois permanecer no lugar de origem é estar sujeito aos controles
morais heterossexistas. Francisco relatou a respeito de quando morava em uma
pequena cidade do interior:
Tinha medo de frequentar a noite lá. Só comecei a
frequentar lugares gays aqui no Rio, em 1970. Eu vinha
aqui nos finais de semana, foi nessa época que eu me
assumi (Francisco, 72 anos).
Sair para se aventurar em outro território permitiu a Francisco alcançar
a almejada individualidade, o anonimato e a liberdade longe dos controles
disciplinadores da sexualidade manifesta dentro da norma heterossexual. Por
outro lado, a mudança requer a construção de novas redes de sociabilidade,
mais identitárias, que possibilitem a interação com outros sujeitos e o
alargamento dessas identificações. Em outras palavras, ir para a cidade grande
é um caminho que possibilita a construção de uma subjetividade junto a outros
com os quais se possa relacionar em torno de valores e gostos similares. Esse
dado, acentuado por Pollak (1990), demonstra que os grandes centros
urbanos, com sua diversidade e modos de vida, asseguram o anonimato, a
individualidade, e oferecem autonomia para que sejam experimentados novos
estilos de vida. Os relatos de José e Márcio ilustram as possibilidades advindas
da vida nas grandes metrópoles.
Fiquei quase um ano na França, aí quando eu voltei para o
Brasil passei a andar em ambiente gay. Saí fora dos meus
amigos de infância, adolescência e passei a frequentar
pessoas, bares e boates gays, realmente até então isso não
era tão confortável, depois até conheci um cara e tive uma
relação (José, 63 anos).
Eu fiz uma faculdade na Austrália, uma faculdade de
Inglês. Morei dez anos e meio na Austrália, foi lá que eu
me deslumbrei [...]. Vi que aqui [no Brasil] é muito
engraçado essa coisa de ser gay, lá fora é tudo diferente
(Márcio, 65 anos).
Os entrevistados afirmam o quanto esse deslocamento pode significar
a busca por uma homossociabilidade possível e a própria aceitação do desejo
homossexual, sem ter de dissimulá-lo permanentemente (ERIBON, 2008).
Portanto, não se trata de uma mera migração ou percurso geográfico em busca
de parceiros sexuais, mas a tentativa de afirmar uma nova existência e
afirmação da identidade sociossexual, como demonstram as narrativas de
Eduardo, Ricardo e Luís.
No final da década de 70, em que eu fui trabalhar em São
Paulo [...], morei com parentes em São Paulo e depois fui
morar sozinho. Foi a minha libertação, me senti dono da
minha vida. Quando voltei, fui morar com a família de novo,
e não deu certo mais. Eu saía e a minha mãe estava na
janela me esperando voltar e não estava mais acostumado
com isso. Fui morar sozinho, comprei um apartamento, a
partir daí, voltei a me aproximar da minha família, porque
me tornei visita (Eduardo, 60 anos).
Eu era uma pessoa, depois da minha estada na França fui
outro, tomei um banho de cultura. Quem me libertou foi a
França, entendeu? Eu tive múltiplas experiências. Lá vivi
uma época em que a gente aprontava tudo, se aprontava
tudo, tudo se fazia, inclusive orgias e de tudo aquilo eu
participei, porque era comum na época (Ricardo, 60 anos).
Mas eu me descobri [homossexual] aos dezessete para
dezoito anos, porque entrei como comissário de uma
companhia aérea com dezoito anos e eu entrei casualmente
[...]. Aproveitei para viajar e era um ótimo salário na época
e eu me descobri foi exatamente nesse período, em que eu
conheci uma pessoa. Ele era pessoa muito calma, muito
bonita até e a gente teve uma transação, aí, depois disso, eu
tive vários relacionamentos, e realmente foi uma transação,
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não um relacionamento. Como comissário, conheci outras
pessoas e eu vim a ter muitos casos [homossexuais] mesmo
(Luís, 68 anos).
As experiências relacionais com os homens aparecem, nas narrativas
dos entrevistados, marcadas pelo deslocamento espacial e pelo princípio da
rede de amizade com outros homossexuais, com os quais se estabelecem novas
relações. O percurso da migração e a descoberta de novas redes identitárias
demonstram a possibilidade de uma saída para a socialização com quem são
compartilhadas experiências no contexto do mesmo desejo e manifestação
sexual. O que há são maiores possibilidades de aprendizagem individual e
coletiva sobre a homossexualidade, até que o indivíduo venha a identificar-se
como gay; nesse processo, a identidade aos poucos vai se construindo como
fonte criadora de estilo de vida (FOUCAULT, 1981).
Tecendo algumas considerações
A homossexualidade e a velhice abordam situações geracionais cujos
atores desta pesquisa ousaram subverter, buscando aos poucos maior
aceitação social na cena pública da sociedade brasileira. Tal aspecto desperta
um conjunto de complexas questões, por expor novos prismas de antigas
discussões que merecem ser relativizadas conceitualmente, tais como: o
moderno e o tradicional, o público e o privado, a masculinidade e a
feminilidade, o novo e o velho, a juventude e o envelhecimento, o corpo e a
idade. Ricardo (60 anos) destaca:
O mundo é heterossexual e o idoso tem uma necessidade
física, uma carência física que não permite que o gay velho
se rebele. Quando ele era jovem ele se rebelou porque ele
tinha tudo em cima músculos, mobilidade, dinheiro e
outras coisas. Aí tem outra questão, que é a questão
financeira, se ele é pobre [...], e tem a questão racial, pois
se ele é negro aumenta o preconceito.
Para esses atores, o desejo homossexual na trajetória da vida expressa
na experiência de envelhecer novas maneiras de identificação e atribuição
social. As questões apresentadas na pesquisa apontam para as conquistas
políticas por reconhecimento da diversidade, sem que se vislumbrem novos
atores sociais, como, por exemplo, os gays velhos. Consequentemente, isso,
numa ponta, inclui os espaços de homossociabilidade, mantendo o preconceito
em torno desses indivíduos, e, em outra, faz realçar no espaço social certa
“velhofobia”, palavra que acrescento ironicamente para esse contexto, mesmo
que o sufixo “fobia” apresente uma carga de sentido essencialista.
Os sujeitos pesquisados em suas narrativas demonstraram o quanto
ainda lutam para exercer a sexualidade, para reinventá-la, sem que suas
performances públicas sejam alvo de chacota, injúria, objeto de riso frente à
estética do corpo, cuja ideologia invisibiliza o velho e nega a velhice. Nesse
contexto, afirma Márcio (65 anos): “Fui flor do campo, agora que sou tiririca do
brejo, vão ficar rindo para mim, porque agora que já não estou mais com os
meus vinte aninhos olham para minha cara e riem”.
Pude perceber que os amores homossexuais clandestinos frente à
norma heterossexual formaram a marca dessa geração. Os entrevistados foram
fortemente socializados a partir de mecanismos que naturalizam a sexualidade,
tornando-a um princípio biológico e a heterossexualidade o único modo aceito
para as relações sexuais humanas. Tal aspecto esteve associado ao sentido de
que a sexualidade e a reprodução são como destino para os roteiros sexuais,
que tiveram como suporte a ideologia patriarcal. Expressa-se com isso o quanto
o discurso e as práticas sociais refletem o poder da representação do que é ser
homem, tomando a norma heterossexual como um princípio. Esse contexto da
construção do gênero masculino, que se generalizou nos afetos e nas
percepções individuais, influenciou seus estilos de vida. Como homens, o
enfrentamento e a transgressão a essa lógica heterossexista levou-os a
apostarem na autonomia, nas práticas sexuais fugazes, na individualidade e a
manterem suas experiências afetivas de modo clandestino, longe do recinto
familiar.
Para esses homens, a velhice não trouxe a desistência de projetos e
parecem guardar para si o tempo perdido por não terem se assumido como gays
há mais tempo e gozarem da possibilidade de amar outro homem sem que
fosse preciso se esconder. Alguns entrevistados ressentem-se justamente dessa
falta de suporte comunitário e político para vivenciar sua sexualidade em outros
domínios além do privado. José (63 anos) é taxativo ao afirmar que se pudesse
voltar no tempo botaria a boca no megafone, ia assumir-se, viver os desejos
mais abertamente, reforçando a percepção de que o segredo e a invisibilidade
da experiência homossexual impõem maneiras de expressar a opressão sentida
vivida por essa geração no espaço público; hoje, percebe-se a sociedade mais
aberta às possibilidades de aceitação do estilo de vida gay. Mas o que traz de
tão importante essa necessidade de revelar-se, essa recusa em resistir ao
confinamento sexual, esse sufocamento pela ocultação quase permanente do
desejo homossexual por parte de dos entrevistados? De fato, essa geração
complexificou esse paradigma do “sair do armário”. Mas que “armário”? Para
esses indivíduos, nem havia esse sentido de “dentro do armário” como
metáfora para se esconder a homossexualidade, pois, como lembra Marco (69
anos), “naquela época não se usava isso de se assumir, mas eu não sou tão
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218
ingênuo de imaginar que as pessoas não soubessem”. Nesse contexto, também
afirma Raphael (68 anos): “Nunca entrei no armário, nunca saí do armário, não
converso sobre isso, essa é a primeira vez”.
Através desse desejo de revelar a homossexualidade publicamente,
pode-se perceber o caráter contraditório das mudanças ocorridas ao longo das
gerações, em que as experiências sexuais passaram a ser um ícone para se
pensar a diferença entre a norma e o desvio (MOTA, 2007). Essa necessidade
de revelar e se assumir parece emblemática, pois demonstra o quanto a
conquista de aceitação no espaço social tem possibilitado pensar as mudanças
em torno do reconhecimento cultural de que nos fala Fraser (2001). Através
dos relatos dos entrevistados, observa-se que há evidentes mudanças ocorridas
ao longo das gerações que marcaram a experiência da homossexualidade hoje,
nas quais, no entanto, a homofobia ainda se evidencia como um traço em um
cotidiano marcado pelo heterossexismo e pelo preconceito, acrescido de suas
várias roupagens distintivas, entre elas, o crivo da idade avançada. Mas o jogo
do “assumir” ou “sair do armário” ainda implica ritos, registros e espaços
diferenciados, já que a dificuldade nesse processo está em aceitar inicialmente
esse “eu” homossexual, afastando o sentimento de ser uma pessoa em
condição de desvio (VIEIRA, 2010). Contudo, trata-se de um debate em que as
atuais gerações gozam dos avanços da micropolítica exercida por esses
entrevistados, mas que agora eles mesmos passam, de novo, por uma situação
de exceção ao enfrentar o sentido pejorativo que lhes reserva a identidade
social de ser gay velho.
Esses homens não se percebem velhos, não aceitam a velhice como
sendo o fim dos projetos de vida. Nesse sentido, para muitos, a alusão à idade é
um insulto por identificá-los como idosos, pois “uma vez que em nós é o outro
que é velho, que a revelação de nossa idade venha dos outros, e assim não
consentimos nisso com boa vontade” (BEAUVOIR, 1990, p. 353). Portanto,
não se trata de uma questão explícita do gay que envelhece. Mas o que é
próprio do gay que envelhece? Novas dominações são sentidas e expressadas
pela linguagem, que reabre para segregações equacionadas no espaço social
pela idade madura. Esse outro de que fala Beauvoir (1990) também confere o
sentido de decadência e desengajamento social em razão da condição gay.
O olhar dos sujeitos desta pesquisa sobre o espaço social revela as
contradições para gozarem das lições aprendidas ao longo da vida. O
envelhecimento para esses homens explicita o quanto são violentas as
segregações distintivas representadas pelo crivo da idade e pela norma
heterocêntrica das relações sociais que inviabilizam o reconhecimento social
da diferença.
Essa geração mostra, além disso, como foi pioneira em suas escolhas,
principalmente, quando se optou por firmar contratos de bens patrimoniais
como garantia de suas uniões estáveis, em um momento que nem se aventava
discutir a união civil como um direito dos homossexuais, aspecto lembrado por
Antônio e Francisco. Mas além de viverem a experiência do movimento hippie,
dos embates do movimento feminista, do afrouxamento das práticas sexuais
convencionais, do efeito aterrorizador do HIV/Aids em seus primórdios tempos
de “peste gay”, atualmente os sujeitos desta pesquisa revelam a experiência da
ditadura da felicidade com registro no corpo e baseada no ideal de juventude.
Através destas trajetórias observamos mais do que indivíduos que aceitam
complacentemente a velhice como sendo um estado de vida em que baixam as
exigências e os projetos, é a vivência da velhice como parte de um exercício
para chegar a novas experiências relacionais, valendo-se dos recursos
materiais que possuem.
Tal dimensão conduz a novos debates nos quais os entrevistados
explicitam intensas negociações entre o sexual e o sentimental, o desejo e a
prática para o exercício da sexualidade e homossociabilidade. Esta análise não
implica perceber essas dimensões como separadas entre si, mas que, apesar
de integradas, possuem certa autonomia no âmbito da experiência desses
homens, por confrontá-los com os estigmas de ser gay e velho. Essas
dimensões apresentam-se como importantes questões para se pensar o ser
humano em geral na alta modernidade. Esses sujeitos expressam seus
interesses afetivos no âmbito da ideologia do amor romântico, mas acabam por
ter dificuldades em efetivar novos encontros por causa da aparência de idade
avançada. Esses homens demonstram que não querem ser percebidos como
um corpo desfeito, deteriorado, como se estivessem próximo do fim, mas sim
sujeitos de experiências que podem contribuir efetivamente contra a
homofobia, pela diversidade sexual e pela luta por cidadania. Querem seu lugar
no campo da comunicação e mostrar o quanto podem reinventar as relações
com o mundo.
É preciso destacar que a memória desses indivíduos conta a história
da opressão, da violência familiar, do medo da transgressão do gênero
masculino, da injúria direcionada à expressão da homossexualidade de que nos
fala Eribon (2008). Tais questões se evidenciam quando se focalizam certos
fatos na trajetória dos entrevistados e que marcaram toda uma geração: oito
assinalaram ter pai autoritário, energético e disciplinador; quatro sofreram
pressão/rejeição familiar; cinco somente viveram ou revelaram a
homossexualidade para a família após a morte do pai; dez saíram de casa ou
migraram para outras cidades para viverem suas relações homossexuais. Esses
219Murilo Peixoto da Motan. 07 | 2012 | p. 199-222
sujeitos viveram no período da ditadura militar, em que, como no nazismo,
muitos foram perseguidos e torturados sob a alegação de “subversivos”. Tais
aspectos foram marcantes e desencadearam inúmeras lutas para a construção
da carreira homossexual na trajetória da vida. Hoje, poucos usufruem, no
âmbito da aceitação e do reconhecimento, de espaços sociais por causa de sua
velhice. Levando-se em conta que em muitas sociedades modernas tem se
desencadeado uma luta contra o preconceito aos velhos, pode-se destacar a
falta de relacionamento familiar, a redução de círculos de amigos e a raridade
de espaços de permanência para a homossociabilidade.
Há de se aprofundar muitas questões em novos estudos que acionem
as sutilezas das influências de classe, gênero e etnicidade, levando-se em
consideração as exigências da performance corporal gay na velhice. Agrega-se
a isso o fato de não ter encontrado, nos espaços onde busquei os sujeitos desta
pesquisa, indivíduos negros-gays-velhos. Além disso, o tema da violência
aponta também para a necessidade de novas problematizações. Enfim, trata-
se de ver junto a sujeitos pertencentes a outros extratos sociais o potencial de
transformação que a homossexualidade e o envelhecimento facultam à
sociedade. Notadamente, o projeto de vida reflexivo e crítico da experiência
homossexual narrado pelos entrevistados mostrou as possibilidades de
mudança de vida através de gerações como sendo uma força de subversão
frente às necessidades de adaptação e construção de estilos influenciados pela
norma e pelo desvio, pelo tradicional e pelo moderno, pelo público e pelo
privado, possibilitando novas concepções e representações para as
homossexualidades masculinas e as experiências de envelhecer.
220
Referências
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222
11
Sexualidade e política: uma abordagem a 1partir do mercado e do consumo
Isadora Lins FrançaPesquisadora de pós-doutorado do Núcleo de
Estudos de Gênero Pagu – UnicampDoutora em Ciências Sociais pelo Programa de Doutorado
em Ciências Sociais – IFCH/UnicampMestre em Antropologia Social pelo PPGAS – FFLCH/USP
isa.linsf@gmail.com
Sexuality and politics: an approach related to
market and consumption
224
Resumo
Neste artigo, procuro traçar uma abordagem retrospectiva para questões referentes a
política, homossexualidade, consumo e mercado, trazendo resultados de pesquisa de
campo realizada em São Paulo no âmbito do meu mestrado e doutorado. Busco me
aproximar da proposta central do trabalho por meio: 1) dos discursos de empresários
envolvidos com o mercado segmentado; 2) dos significados atribuídos a lugares de lazer
noturno por seus frequentadores; 3) das ações organizadas por frequentadores do
mercado segmentado de lazer noturno, as quais produzem uma interface entre consumo
e política. Tento operar uma mudança de perspectiva na análise sobre a ação política,
comumente focada nos movimentos sociais e na implementação de políticas públicas.
Não há aqui qualquer pretensão descabida de elevar o mercado e o consumo a esferas
privilegiadas de atuação política, mas sim o recurso ao desenho de tensões saudáveis a
partir de práticas sociais e à análise de sua rentabilidade teórica e metodológica.
Palavras-chave: Sexualidade. Consumo. Movimento social. LGBT. Mercado.
Homossexualidade.
Abstract
This article aims to draw a retrospective approach to issues related to politics,
homosexuality, consumption and market. It brings results from fieldwork which was
done in the city of Sao Paulo for my master and PhD degrees. The central purpose of this
work is organized considering results related to: 1) discourses from owners of business
directed to gays and lesbians; 2) meanings about homosexuality constructed by men
who use to go to venues directed to gays and lesbians; 3) political actions articulating
consumption and politics. I try also to make a shift in the analysis about political action,
usually focused on social movements and public politics. There is no place here for an
approach which understands consumption and market as privileged fields for political
action. Instead of this, I intend to make an approach which could be able to bring
tensions related to both market and social movement, in order to think how these
tensions could be theoretically and methodologically productive.
Key words: Sexuality. Consumption. Social movements. LGBT. Market. Homosexuality.
1 Parte deste texto foi apresentada no GT Gênero e Sexualidade, no 34º Encontro Anual da ANPOCS, em 2010. Agradeço a Adriana Vianna, pela leitura e pelas sugestões naquela ocasião, bem como aos demais participantes e coordenadores do GT. Agradeço também a Regina Facchini pela sua leitura e seus comentários.
2Neste artigo , procuro realizar uma reflexão sobre consumo, mercado,
política e homossexualidade, conectando alguns pontos de minhas pesquisas
de mestrado (FRANÇA, 2006a), que abordavam as relações entre “movimento 3LGBT” e “mercado GLS”, e de doutorado (FRANÇA, 2010) , em que explorei
relações entre consumo e produção de subjetividades de homens que se
relacionam afetiva e sexualmente com outros homens, ambas realizadas no
contexto da cidade de São Paulo. Não tenho a pretensão de preencher lacunas
ou oferecer explicações capazes de dar conta de fenômenos tão complexos a
partir dos dados das duas pesquisas. Meu objetivo, antes, é o de delinear
questões que sejam produtivas no sentido de compreender melhor as relações
aqui mencionadas e que possam estar ancoradas em dados empíricos.
Busco me aproximar da proposta central do trabalho por meio: 1) dos
discursos de empresários envolvidos com o mercado segmentado; 2) dos
significados atribuídos a lugares de lazer noturno por seus frequentadores, que
em certa medida questionam “consensos” relacionados à homossexualidade; e
3) de ações que se dão em conexão com o mercado segmentado de lazer
noturno – e articuladas também via internet –, que produzem uma interface
entre consumo e política. Esses tópicos para análise têm em comum o fato de
que se dão no âmbito do mercado e ao mesmo tempo reverberam politicamente,
ou seja, pretendem ser – ou são – um tipo de resposta a diferenças na sua forma
da desigualdade, mas não são iniciativas políticas de um ponto de vista mais
tradicional, do movimento social ou da formulação de políticas públicas.
Um dos fios condutores que possibilitam esboçar uma análise do
encontro entre política – ou, mais estritamente, entre movimento LGBT – e o
mercado voltado para gays e lésbicas acompanha o processo de construção de
identidades pelo qual determinados atores sociais emergem na condição de
sujeitos políticos. Identidades, aqui, são pensadas através de uma perspectiva
processual, estando em permanente fabricação. A própria emergência de novos
atores reivindicando-se como constituintes do sujeito político do movimento
LGBT – como atesta a organização de travestis, transexuais e bissexuais –
evidencia a fragilidade de abordagens teóricas que lidam com as identidades
225Isadora Lins Françan. 07 | 2012 | p. 223-252
2 Dedico este trabalho à memória de Pâmela Anderson, que integrava a Secretaria de Travestis e Transexuais à época em que eu realizava minha pesquisa de campo do mestrado e que me possibilitou resgatar parte da história das Blitz Trans.3 Ambas as pesquisas foram realizadas com apoio financeiro do CNPq.4 Hall (2000) também ressalta a crítica a que o conceito de identidade tem sido submetido em diversas áreas do conhecimento, chamando a atenção para o fato de que tais críticas não advogam a substituição do conceito por outro mais “eficiente”, mas buscam deslocar o paradigma no qual a ideia de identidade foi criada. Dessa forma, tal conceito deve ser colocado “sob rasura”: “uma ideia que não pode ser pensada da forma antiga, mas sem a qual certas questões-chave não podem sequer ser pensadas” (HALL, 2000, p. 104).
4coletivas como elementos estáveis e internamente homogêneos . Nos estudos
de gênero, a crítica à ideia de um sujeito pré-discursivo e de identidades
estáveis e descritivas desses sujeitos se desenrolou em constante diálogo com o
movimento feminista, resultando no questionamento de um sujeito político
universal do feminismo, de base biológica e marcado por uma semelhança
transcultural que se traduzia na categoria “a mulher” (HARAWAY, 2004; 5BUTLER, 2003a) .
Uma leitura equivocada da crítica a uma suposta coerência anterior à
constituição dos sujeitos políticos tende a identificar tal posição com a
inviabilidade de qualquer ação política, uma vez que eliminaria a possibilidade de
se reconhecer o sujeito como ponto de partida dessa ação. Não se trata, contudo,
de dispensar categorias como “mulheres” ou “homossexuais”, já que estas
definem um campo social inteligível do qual a ação política não pode prescindir,
mas de tomá-las como designadoras de um campo inesgotável de diferenças,
permanentemente aberto à ressignificação – e não como categorias descritivas
dos sujeitos aos quais se referem (BUTLER, 2003b). Ocorre, portanto, que para
essa perspectiva teórica determinado sujeito político “não é base, nem produto,
mas a possibilidade permanente de um certo processo de ressignificação, que é
desviado e bloqueado mediante outro mecanismo de poder, mas que é a
possibilidade de retrabalhar o poder” (BUTLER, 1998, p. 31).
Tal leitura nos ajuda não somente a pensar os processos de
constituição de sujeitos políticos e de identidades relacionadas a gênero e
sexualidade no âmbito do movimento LGBT, como também no âmbito do
mercado voltado para gays e lésbicas, tido aqui não apenas como cenário, mas
também como produtor de subjetividades e categorias de identidade. Fry
(2002), em seu trabalho sobre o mercado de produtos de beleza direcionados a
“pessoas de pele mais escura e cabelo mais crespo”, defende, concordando 6com Sahlins (2000) , que, ao contrário do que se acredita, esse mercado não
se constitui em resposta às demandas de uma classe média negra, mas integra
um processo de constituição mesmo dessa classe média. Como afirma Fry
(2002, p. 315), os “bens e serviços não apenas suprem uma necessidade; na
226
5 Tal questionamento já vinha se desenhando como resultado da articulação de mulheres negras e lésbicas no movimento e na teoria feminista, que se posicionavam de forma a expor a fragilidade de um uso e compreensão universais da categoria “mulher” e o entrecruzamento de pertencimentos específicos (raça, classe social, sexualidade, entre outros) na produção de diferentes subjetividades (HARAWAY, 2004).6 Para Sahlins (2000), a produção e o consumo seriam mediados por uma “lógica significativa do concreto”, que permitiria a exploração de “possíveis diferenciações sociais através de uma motivada diferenciação de bens”. Assim, “o produto que chega ao seu mercado de destino constitui uma objetificação de uma categoria social, e assim ajuda a constituir esta última na sociedade; em contrapartida, a diferenciação da categoria aprofunda os recortes sociais do sistema de bens” (SAHLINS, 2000, p. 185).
verdade, criam uma necessidade e, ao fazê-lo, disseminam sub-repticiamente
uma 'identidade negra' em todo o Brasil”. Miller (1995), por sua vez, ressalta a
importância de processos relacionados às “políticas de identidade” e aos
“estilos de vida”, a partir da década de 1960, na produção de mercadorias.
Na mesma direção de Fry e Miller, acredito que o mercado voltado para
gays não responde a demandas de um “grupo social preexistente ”, mas
contribui para a produção mesma de sujeitos, categorias de identidade e
estilos. Assim, o mercado segmentado produz diferentes categorias em torno
da homossexualidade e faz circular referências e imagens identitárias acerca
dos possíveis estilos de vida ligados à homossexualidade, colaborando para
construir e reforçar identidades coletivas que servem de referência para a
atuação do movimento social e vice-versa. Temos, então, um campo comum
entre movimento e mercado.
Levando em consideração tais premissas, realizo neste trabalho o
exercício de deslocar um pouco uma perspectiva tradicional dos estudos no
âmbito da política em intersecção com a sexualidade, mais voltada à análise do
Estado e dos movimentos sociais. Interessa, aqui, menos o esgotamento das
questões abordadas e mais uma reflexão a partir de notas e insights
etnográficos. Acredito que o deslocamento proposto, ainda que um tanto
exploratório, pode resultar no apontamento de discussões frutíferas em torno
das estratégias de enfrentamento do preconceito e da luta pelo reconhecimento
de direitos em diversos âmbitos.
Embora tenha percorrido alguns apontamentos teóricos em relação ao
modo como identidade e consumo são encarados neste trabalho, não pretendo
distinguir a priori campos claros e bem delimitados entre mercado e movimento
social por meio das teorias sobre movimento social ou sobre mercado, mesmo
porque tais fronteiras apresentam-se móveis no campo sobre o qual me
debrucei, sendo definidas contextual e cotidianamente, no desenrolar de
diferentes estratégias e ações políticas.
Mercado e movimento: a aproximação entre atores
O primeiro ponto a ser explorado é a aproximação recente entre atores
do mercado e do movimento. Nesse sentido, vale a pena realizar uma breve
incursão retrospectiva a respeito das relações entre movimento e mercado,
contrastando dois momentos: o relativo à década de 1970, quando o
movimento LGBT começa a se organizar no Brasil, e o que se inicia em meados
da década de 1990, quando se verifica um reflorescimento do movimento
227Isadora Lins Françan. 07 | 2012 | p. 223-252
após certo refluxo registrado na década de 1980 (FACCHINI, 2005). Talvez
não coincidentemente sejam períodos que registram também uma
efervescência do mercado relacionado à homossexualidade. Além da análise
da literatura sobre homossexualidade no Brasil que se debruçou sobre o final
da década de 1970, a abordagem aqui desenvolvida também é fruto dos
estudos produzidos na década de 1990 e no início de 2000, além de trazer
dados de pesquisa de campo realizada nos anos de 2004 a 2006, no âmbito 7de minha pesquisa de mestrado .
No contexto brasileiro de finais da década de 1970, em que os efeitos
da abertura política começavam a ser sentidos juntamente com o clima de
“desbunde”, registra-se também uma ampliação do “gueto” gay paulistano,
com a abertura de novas boates e bares, tendo como epicentro a região central
da cidade de São Paulo, especificamente o Largo do Arouche (PERLONGHER,
1987, p. 86). Como salienta MacRae (1990), cada novo estabelecimento que
surgia era visto como “vitória para a causa” por boa parcela dos frequentadores
do “gueto”. A efervescência geral tinha paralelo no incipiente “movimento 8homossexual”, que passava a se organizar com a criação do Grupo Somos .
Entretanto, havia uma rejeição do movimento ao “gueto”, com
constantes críticas dos militantes do Somos a respeito da “integração dos
homossexuais à sociedade de consumo” (MACRAE, 1990, p. 300). A própria
constituição do grupo definia-se em oposição ao “gueto”, com o
questionamento dos militantes ao que entendiam como “papéis sexuais
hierárquicos” que imperavam no “gueto”, entre outros modelos vistos como
opressores. Havia também a perspectiva de que o movimento pudesse
propiciar espaços de sociabilidade diferentes dos proporcionados pelo “gueto”:
as reuniões de “identificação”, comuns no Somos, por exemplo, deveriam ser
um espaço no qual se poderia refletir a respeito da homossexualidade e
construir laços decorrentes de uma experiência compartilhada coletivamente.
Não obstante as críticas dos militantes de “primeira onda” a respeito
do “gueto”, as relações com o circuito noturno de lazer simbolicamente
228
7 No mestrado, realizei minha pesquisa de campo a partir da Associação da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo, com o intuito de observar as relações entre movimento social e mercado “GLS”, lançando mão de observação etnográfica da organização de duas Paradas do Orgulho e das mais diversas atividades relacionadas ao mercado e ao movimento nesse período, além da realização de entrevistas semiestruturadas com empresários importantes do setor “GLS” e com ativistas e ex ativistas da Associação da Parada. Os trechos de entrevista que trago neste artigo resultam desse trabalho e podem ser encontrados em análises mais abrangentes em França (2006).8 A respeito do surgimento do movimento LGBT no Brasil, ver MacRae (1990), Green (1999) e Facchini (2005). Utilizo neste artigo a periodização de Facchini (2005), que vê três momentos distintos no movimento: o que vai do seu início, em finais de 1970, ao fim do grupo Somos-SP, em 1983; o período que vai do fim do grupo Somos ao início da década de 1990; e o período a partir da década de 1990.
marcado pela homossexualidade não deixavam de existir, pois era lá que se
poderia encontrar a “base” do movimento. Embora os primeiros militantes do
Somos não tivessem o “gueto” como referência para sua atividade política,
muitos que posteriormente acessaram o grupo costumavam frequentar as
casas noturnas e traziam novos integrantes por meio das redes sociais
desenvolvidas nesses espaços. Dessa forma, mais do que uma oposição
distanciada do “gueto”, procurava-se desempenhar um papel na tarefa de
“conscientizar” os “homossexuais”: “de uma forma muito real, aprendia-se a
ser homossexual, ou melhor, militante homossexual. Embora muitas das ideias
correntes no gueto fossem aproveitadas, grande número delas passava por uma
reciclagem sofrendo consideráveis transformações” (MACRAE, 1990, p. 132).
Essas são as referências a respeito da relação entre movimento e
“gueto” num primeiro momento do movimento, em boa parte derivadas do
trabalho de Edward MacRae sobre o grupo Somos. Parece correto afirmar que 9essa postura atravessou a década de 1980 , com um grande ponto de inflexão
nessas relações na década de 1990, quando a estratégia de visibilizar os então
“GLT” (Gays, Lésbicas e Travestis) e de propor manifestações massivas se faz
presente no movimento, diferenciando-se claramente de propostas anteriores.
Ao passo que essa postura crescia no âmbito do movimento, também se
verificava, especialmente no movimento paulista, a tendência a combinar
reuniões dos grupos com atividades de sociabilidade e lazer. Essas duas
tendências influenciariam sobremaneira na adesão à proposta das Paradas,
que se tornaram, no Brasil, ocasiões de maior visibilidade do movimento LGBT
e também, em muitas cidades, de maior interação com o mercado segmentado.
Diferente das outras manifestações, as Paradas, inspiradas em
eventos semelhantes de outros países, pressupunham uma periodicidade
anual e se destinavam especialmente à celebração do “orgulho” e à
visibilização de demandas do movimento, inaugurando um estilo diferenciado
de atuação política, pautado também por atividades de caráter lúdico. O
sucesso das Paradas também remete a uma mudança do discurso
característico do movimento: a ênfase na vitimização de LGBT, bastante
característica do movimento na década de 1980, passou a dividir espaço com
um discurso e ações que procuravam afirmar uma identidade qualificada como
“positiva”, na maior parte das vezes personificada na ideia de “orgulho”.
9 Salvo engano, não há referências de como se constituiu essa relação na década de 1980, quando o “gueto” – e também o movimento – sofreu o impacto da aids. De toda forma, registra-se nesse período uma considerável redução dos grupos militantes em São Paulo e há uma guinada do movimento como um todo em direção a um discurso mais específico de reivindicação de direitos civis, com menos ênfase no antiautoritarismo e no comunitarismo verificados num primeiro momento (FACCHINI, 2005). Imagino que esses fatores possam ter contribuído, de certa forma, para o enfraquecimento da visão que contrapunha o “gueto” a alternativas “revolucionárias”. Porém, dada a escassez de referências a esse respeito, tais considerações não passam de especulações.
229Isadora Lins Françan. 07 | 2012 | p. 223-252
Nesse período, ao mesmo tempo em que o movimento volta a florescer
em São Paulo, o antigo “gueto” sofre transformações consideráveis, como já
relatadas, diversificando e expandindo suas atividades em direção à
constituição de um mercado mais amplo, conhecido então como “GLS” 10(voltado para Gays, Lésbicas e Simpatizantes ), que se instalava não somente
na região central, mas também em uma das áreas mais ricas da cidade. Além
das mudanças estruturais em relação ao mercado, há também uma
transformação considerável na forma como ele se constitui e se apresenta: os
espaços de consumo e sociabilidade passam a incorporar, em certa medida,
elementos do discurso ativista do orgulho e da visibilidade, explicitando o seu
direcionamento a um público de orientação sexual determinada e
compartilhando alguns símbolos com o movimento LGBT, como é o caso da
bandeira do arco-íris, que passa a ser comum em lugares “GLS” e em muitas
atividades do movimento.
É importante considerar que, nesse período, as fronteiras entre
mercado e movimento social são questionadas com força por uma parcela do
empresariado que, inclusive, passa a se organizar por meio de associações de
empresários, embora com atuação ainda tímida. Esses atores incorporam, em
certa medida, elementos do discurso ativista do orgulho e da visibilidade,
explicitando o direcionamento dos seus negócios ao público de gays e lésbicas.
Empresários começam a se ver, e a serem vistos, como articuladores de uma
ação política, no sentido de que estimulam a “autoestima de gays e lésbicas” e
a formação de uma “identidade positiva” – através de iniciativas como festivais
de cinema, editoras e mesmo espaços de lazer e sociabilidade – e fazem
circular informações por esse público – por meio de sites e revistas
especializadas.
Nesse sentido, o compartilhamento de identidades sexuais e o
trabalho com um público que é alvo de preconceitos aproximam militância e
mercado, fazendo com que iniciativas do mercado ganhem teor político de
combate ao preconceito, como expõem Antônio e Marcelo, empresários do
setor de turismo e de mídia. Ambos exerciam, à época das entrevistas, papel
importante em dois setores diferentes do mercado, galvanizando em torno de
seus projetos diferentes iniciativas e dialogando com diversos atores sociais:
230
10 A sigla foi criada na primeira metade dos anos de 1990, no contexto do Festival MixBrasil de Diversidade Sexual, e passou a indicar uma variedade de iniciativas relacionadas à homossexualidade, mas que se pretendiam abertas e capazes de incorporar também pessoas que não se identificassem como gays e lésbicas. Com o passar do tempo, a sigla passou a ser simplesmente sinônimo de gays, pouco se observando o caráter inicial de se distanciar do “gueto” em direção a uma atitude tida como capaz de abarcar uma maior pluralidade.
Eu decidi trabalhar com esse segmento por causa da
minha identidade. Pra você dar certo em qualquer
segmento, tem que gostar dele, respeitar o segmento... Não
adianta você trabalhar com velhinho, terceira idade, melhor
idade, se você não tem nenhum afeto, não tem nenhuma
identidade com isso. Claro que não precisa ser velhinho, ou
não precisa ser gay pra trabalhar, mas eu acho que pelo fato
de você ser, você cria um vínculo maior. [...] Tem que
desmistificar um pouco essa coisa entre mercado e
militante, porque eu acho que não existe essa coisa. A partir
do momento em que você assume trabalhar com o
segmento, ainda mais em uma sociedade que tem
preconceito, você já está fazendo militância, é isso que eu
acredito. Quem está no segmento ali cavando o buraco que
pastou, não deixa de ser militante, porque não são grandes
empresas. As grandes empresas vão entrar agora, agora elas
vêm. É sempre assim. Mas eu não vejo nenhuma diferença
entre a militância e as pessoas que... Dá a cara pra bater, há 10 anos, como eu fiz, é como eu falo: as pessoas do
setor não chegavam perto de mim, como se eu tivesse uma
doença contagiosa. E isso, outras pessoas passaram. Todo
mundo passou por isso. Você não deixa de estar fazendo
movimento, você trabalha com uma coisa segmentada, pra
uma minoria. Durante muitos anos a gente passou muita
dificuldade pra sustentar a empresa, de estar fazendo algo
diferente e novo, e a comunidade muito receosa (Entrevista
com Antônio, em dezembro 2005).
O que acontece é que quem é gay, você tem isso quase como
uma missão. Tudo tem um peso social na hora de você fazer,
que um hétero, quando está entrando dentro do mercado,
não tem. Não tem. Não tem. Eu acho que essa é a diferença.
Acho que negócio gay tocado por hétero é fadado ao fracasso,
porque ele lida com outro tipo de realidade, você não tem
muito anunciante. [...] No exterior é impensável um negócio
gay que não seja gerido... Como é o termo? Gay owned, Gay
runned, uma coisa assim. Gerido e de propriedade de gays.
Esse é o princípio lá fora. Esse é o princípio lá fora. Aqui não
tem muito isso, mas mesmo assim, você pega o Sergio Kalil,
ele vai gastar um dinheiro fazendo show de drag que um
empresário hétero jamais gastaria, mas é porque ele é gay,
porque é da cultura dele, porque ele acha o máximo. Acho
que se você não está imbuído na coisa... É a mesma coisa:
231Isadora Lins Françan. 07 | 2012 | p. 223-252
você vai fazer a Revista Raça sendo branco? O que eu tenho
com aquilo? Eu sou branco, não sou negro. Não tenho o que
escrever ali. Não é verdadeiro (Entrevista com Marcelo, em
dezembro de 2005).
Embora o discurso presente acima, que indiferencia atores do
mercado de ativistas pela via da identidade e do enfrentamento ao preconceito,
não seja um ponto de vista majoritário entre atores do mercado, é por essa via
que se estruturou grande parte da aproximação das relações entre mercado e
movimento, justamente nos pontos de intersecção entre os discursos comuns a 11ambos os atores . A questão da identificação com o público fica bastante clara
quando os entrevistados enfatizam que as dificuldades financeiras encontradas
para gerir seus negócios, advindas do preconceito e da estigmatização de que
são alvo, são ultrapassadas pela identificação que têm com aquele público e
por um sentimento que transcende a racionalidade do mercado.
Nesse sentido, os empresários que não se identificam como gays e que
têm procurado cada vez mais adentrar o setor são vistos como fadados ao
fracasso, pela dificuldade de entender as dinâmicas desse público consumidor
e pela falta de “afeto”, como sublinhou algumas vezes o empresário da
entrevista transcrita acima. Aqui, o compartilhamento de uma mesma
identidade surge como um pressuposto da atuação no mercado. Isso também
justifica o trânsito de pessoas entre atividades relacionadas ao mercado e ao
movimento LGBT, sendo comum que profissionais que atuam em setores do
mercado, na mídia, na noite, no turismo ou no setor editorial, tenham em algum
momento de sua trajetória participado de atividades do movimento e vice-versa
(FACCHINI, 2005; FRANÇA, 2006a). Dessa perspectiva, mercado e
movimento surgem ora como indiferenciados, ora como alinhados, sem se 12confundir, a depender da situação .
232
11 Se é possível afirmar que movimento e mercado estão muito mais próximos do que jamais estiveram a partir de meados da década de 1990 até atualmente, não podemos também desconsiderar os inúmeros pontos de conflito entre os diferentes atores, seja pela exclusão de determinadas identidades abraçadas pelo movimento no âmbito do mercado, seja pela crítica à falta de solidariedade por parte dos empresários diante das necessidades do movimento, seja pelo ímpeto de participação de atores do mercado em espaços tidos como de exclusividade de ativistas. Entretanto, o foco neste trabalho são menos as críticas e mais o movimento de aproximação, que se configura como traço que diferencia o período mais recente da trajetória do movimento social em relação às décadas de 1970 e 1980. Para uma discussão mais aprofundada, ver França (2006).12 Na entrevista de um ativista de São Paulo, também aparece uma visão que tende a não fixar diferenças entre atores do mercado e do movimento, já rebatendo de antemão a ideia de que teriam éticas e interesses antagônicos: “Não existe uma verdade sobre o que são os militantes, e não existe uma verdade sobre o que são os empresários. Não existe uma cristalização dessas duas coisas. Então, tem gente no mercado que é super safada, assim como tem gente que é super bem-intencionada. Na militância tem gente que é super bem-intencionada e tem gente que não está nem aí com as coisas. Então, não existe uma verdade pra mim: 'os militantes são bons e o mercado é ruim'. Eu não gosto desse antagonismo” (entrevista com Pedro, em janeiro 2006).
Fry (2002) registra, em artigo abordando as relações entre raça,
publicidade e produção da beleza no Brasil, a ênfase recente do mercado que se
dirige a negros num discurso de “ação positiva da construção da autoestima”
em oposição a uma retórica do “lamento” em relação ao preconceito,
chamando a atenção para o potencial de transformação social que iniciativas
do âmbito do mercado carregam consigo. Acredito que sejam processos
bastante semelhantes aos que analiso neste trabalho, cabendo destacar aqui
que esse direcionamento encontra um paralelo no movimento LGBT da década
de 1990, pela presença muito incisiva de um discurso em que se opõe
“afirmação positiva” e “vitimização”.
Apesar das semelhanças entre um caso e outro, porém, Fry (2002)
contrapõe o potencial de transformação social decorrente das iniciativas do
mercado às estratégias de menor impacto político de um movimento negro
tradicional, que inclusive desvaloriza as iniciativas do mercado. No caso do
movimento LGBT, é necessário deslocar essa oposição, já que as estratégias
relacionadas à parte do movimento surgido na década de 1990, especialmente
se considerarmos as Paradas do Orgulho, ao contrário de se oporem
frontalmente aos discursos e iniciativas do mercado segmentado, aproximam-
se deles, denotando uma relação marcada por processos de estabelecimento
de fronteiras e continuidades.
Por outro lado, não somente uma parcela de empresários se reconhece
como próxima do ativismo político em seus ramos de atuação pela identificação
com determinado segmento do público consumidor, sobre o qual pesa certo
preconceito, mas também, a exemplo dos frequentadores do antigo “gueto” que
viam um sentido político na expansão dos lugares de lazer e sociabilidade, os
frequentadores de lugares de lazer noturno voltados para determinado
segmento também percebem e constroem esses locais como espaços de
agência para os seus consumidores.
Mercado de lazer noturno: consensos e deslocamentos
Apesar da aproximação entre atores do movimento e do mercado, para
alguns setores do movimento atual – e para alguns estudiosos –, o mercado de
lazer noturno é especialmente visto como o lugar da produção de
normatividades, visão à qual se agregam significados relacionados a uma
suposta frivolidade atribuída aos consumidores gays. Meu segundo argumento
segue, então, na direção de problematizar concepções exclusivamente
negativas e que veem no mercado de lazer noturno forças apenas
233Isadora Lins Françan. 07 | 2012 | p. 223-252
conservadoras. Considero que, apesar da segmentação no mercado de lazer
noturno e das hierarquias ali expressas, esse cenário também oferece espaço
para deslocamentos em relação às normatividades que acompanham a
formação de identidades relacionadas à homossexualidade. Abordagens mais
próximas dos consumidores desses lugares permitem revelar a produção não
apenas de normatividades, como também de transgressões, marcadas pela
criatividade com que os sujeitos lidam com seus diversos pertencimentos.
Assim como o movimento, o âmbito do mercado também está pleno de tensões
e disputas, conforme argumento a seguir.
Um ponto importante a se considerar, quando pensamos em como os
diferentes lugares estão imersos em relações de poder, diz respeito aos fluxos de
informações que os atravessam e à capacidade de seus frequentadores e
proprietários de manejar e fazer circular informações sobre o lugar e sobre si
mesmos, bem como de produzir espaços que sejam vistos como
“representativos” de ideias relacionadas à “homossexualidade”.
Há um intenso fluxo de informações que passa por cidades como Nova
York, Londres, Berlim, Barcelona, entre outras, que produz significados – em
grande parte positivos – associados aos gays e que é acionado na atribuição de
sentido relacionado aos lugares de lazer noturno. Essas informações chegam
primeiro às pessoas que poderíamos qualificar como “intermediários culturais”
(FEATHERSTONE, 1995), as quais são conectadas às tecnologias e redes de
informação e responsáveis por antecipar tendências em termos de consumo e
estilo, muitas vezes, posteriormente, popularizadas. Assim, produzem-se
aparentes “consensos” em torno dos estilos associados aos gays e que se
materializam nos espaços de lazer noturno – incluindo desde o consumo de
determinadas roupas até os tipos de psicoativos –, articulando também
conteúdos relacionados a marcadores de classe social, idade, cor/raça, gênero
e sexualidade.
13Entre os lugares observados em minha pesquisa de doutorado
(FRANÇA, 2010), a The Week aparece como a realização desses “consensos”:
ali, haveria uma maior sintonia com as modas associadas aos gays e à
234
13 No doutorado, centrei minha pesquisa de campo em três lugares de sociabilidade voltados para homens que se relacionam afetivo-sexualmente com outros homens. Além da boate The Week e das festas voltadas para ursos, especialmente a Ursound, mencionadas neste artigo, também realizei parte da pesquisa de campo num “samba GLS”, frequentado majoritariamente por homens negros e de classes populares. Além de observação etnográfica, realizei entrevistas em profundidade com frequentadores e organizadores das iniciativas citadas. Neste artigo, os trechos de entrevistas não são analisados de maneira tão densa e a etnografia é apresentada de modo bastante rápido, já que a proposta de apresentar uma reflexão mais abrangente a partir de resultados de diferentes pesquisas não permite um detalhamento maior dos resultados de campo. Análises mais detidas sobre os contextos de sociabilidade mencionados podem ser encontradas em França (2009, 2010).
reprodução de imagens que reforçam certos padrões de consumo. Um fator
fundamental é a visibilidade adquirida pelo estabelecimento: é quase
obrigatória a sua presença nos principais guias e roteiros de lazer da cidade, da
mídia segmentada ou não. Na internet, a boate é visibilizada por muitos sites e
blogs como a mais importante boate gay do país, além de ser a maior delas.
Parte do seu público assíduo caracteriza-se pelo acesso e uso de tecnologias de
informação, com grande poder de difusão, publicando conteúdos na internet
que alcançam um número de leitores considerável e atuando como
colaboradores de revistas e sites da mídia segmentada e grande mídia. A
visibilidade da boate é aumentada, ainda, pelas filiais no Rio de Janeiro, pela
The Week Floripa e pelos projetos internacionais, em que sua marca é
responsável pela promoção de festas na Europa.
Tanta exposição faz com que a boate tenha sido a mais citada em todas
as entrevistas, como se houvesse selado um padrão ao qual fosse necessário
remeter quando se trata de lugares relacionados à homossexualidade, seja para
criticar, seja para afirmar esse padrão. Assim, os significados associados à The
Week estavam sempre relacionados a um padrão de excelência no setor de
serviços voltados para o público gay bem como à melhor realização do formato
de boate de que se tem notícia, por um lado, e à produção de normatividades
que geram adesão ou recusa, por outro.
As falas abaixo, de dois frequentadores da The Week – ambos
profissionais liberais, brancos, gays e residentes em bairros de classe média
alta de São Paulo –, resumem bem o modo como a boate é identificada com
determinado tipo de público ou com certo padrão de qualidade, tornando-se
objeto de desejo para muitos:
A The Week é uma referência. Existe um sentimento
inconsciente de que existe um Olimpo, existem os
melhores, o grupo ou das bonitas, ou das inteligentes ou do
bom gosto, uma elite de sucesso. A referência, os
formadores de opinião, o paradigma a ser seguido. A The
Week é a boate dessas pessoas. Tem muita gente que não
se importa realmente. E tem uma geração que vive em torno
do que eles acham que é o mais legal (Entrevista com Igor,
em dezembro de 2008).
A The Week é a maior boate gay da América Latina, das
maiores do mundo. Eu estive agora na Europa, entrei em
boate em Paris, em Londres, em Amsterdam, em Lisboa,
nada se parece com a The Week. Eu nunca fui a Ibiza, mas
imagino que tenha, mas com o tamanho e qualidade da The
235Isadora Lins Françan. 07 | 2012 | p. 223-252
236
Week é difícil. Então, virou meio que o objeto de desejo de
todo mundo. Uma vez, atrás da revista DOM, veio um
ingresso VIP pra The Week encartado. Era um tumulto na
porta. Um monte de gente. Aí você via essa demanda
reprimida. Essa garotada que não tem dinheiro, porque a
The Week é cara, morre de vontade de ir à The Week
(Entrevista com Pedro, em novembro de 2008).
Na The Week, rapazes de classe média e de alto poder aquisitivo – ou
aspirantes – viviam a possibilidade de elaborar versões de si a partir da
interação com outros rapazes gays de mesma classe social e de experimentar o
que consideravam um estilo gay bem-sucedido. O compartilhamento de
códigos sinalizados por meio de objetos constantemente visibilizados – como a
barra da cueca, em que se expõe sua marca – era capaz de estabelecer
afinidades e barreiras num ambiente em que processos de distinção social
pareciam ser muito evidentes. Simbolicamente, a TW, numa impressão
intensificada por todo o aparato tecnológico da sua infraestrutura e pela própria
grandiosidade do empreendimento – que recebe cerca de três mil pessoas em
suas festas semanais – assumia para seus frequentadores o lugar do moderno,
do up-to-date, do que havia de melhor e mais sofisticado no mundo gay.
A boate aparece, assim, como se houvesse selado um padrão de
excelência no setor de serviços voltados para o público gay, selando também
uma espécie de padrão de excelência a ser alcançado pelos próprios gays, que
inclui ser branco, musculoso, jovem, de alto poder aquisitivo, sintonizado com
as últimas modas e de comportamento hedonista. Esse padrão corresponderia
à boa parte do que é visibilizado pela mídia segmentada e por versões positivas
da homossexualidade masculina presentes na mídia em geral. Seria possível
situar as críticas no âmbito do mercado ao que é compreendido como um
determinado “padrão” referente aos gays a partir das iniciativas trazidas por
lugares que buscam se firmar como alternativas e que dão espaço para o
surgimento e a afirmação de diferentes subjetividades e sociabilidades
relacionadas à homossexualidade masculina.
As festas dos ursos – grosso modo, homens gays, gordos, peludos e
masculinos – são bons exemplos dos potenciais de o próprio mercado de lazer
noturno produzir normatizações e transgressões. Durante a pesquisa de
doutorado, pude acompanhar como se constituem em oposição ao que seus
frequentadores consideram um padrão valorizado entre homens gays: a cena
dos ursos desenvolve-se em posição crítica em relação ao que veem como a
imposição de corpos malhados e jovens e a um consumismo superficial que
marcariam a sociabilidade entre homens gays. Além de constituírem espaços
alternativos de sociabilidade, os ursos têm inclusive uma bandeira própria,
inspirada na bandeira do arco-íris, que costuma aparecer nos sites de
relacionamento e nas revistas virtuais voltadas para esse público. Também
fazem questão de aparecer em grupo nos eventos que cercam a Parada do
Orgulho LGBT. Nesse sentido, os ursos e suas iniciativas ganhariam alguma
visibilidade por desafiar determinados “consensos” de forma mais ou menos
organizada e para além do lazer noturno.
A cena ursina define-se, dessa maneira, num movimento que ao
mesmo tempo é de contraste com outra cena, tida como padrão, e de afirmação
de significados particulares. Esse jogo é evidente nas falas dos frequentadores
da Ursound, que sublinham as diferenças em relação a outros lugares e
marcam ao mesmo tempo os atrativos da festa, relacionada também a um
despojamento nas interações e no vestir que se contrapõe ao que seriam
padrões de interação e de consumo mais artificiais:
A The Week, por exemplo, é linda, é maravilhosa, tem uma
piscina lá dentro, tem ambientes, é enorme, mas ela é para
um público, primeiro de classe média, ou as pessoas que
conhecem como ganhar vip, e a indústria corporal mesmo,
você vê pessoas bombadinhas, de academia. [...] Eu
descrevo a Ursound como eu, porque me vejo gordinho, eu
sou gordinho, um estilo não muito pop. Eu não sou um
estilo pop e lá as pessoas tendem a não gostar de um estilo
pop também. Eu posso ir de bermuda, sou eu! E é eu,
gordinho, um cara que gosta de usar barba, gosta de usar
bermuda, de vez em quando gosta de ir ao teatro ou de
futebol, mas às vezes não quer falar com ninguém. Eu vejo
isso na Ursound, pessoas mais elas, mais do jeito que elas
são (Entrevista com Tadeu, 32 anos, em março de 2008).
A alegada diferença trazida pelas festas dos ursos, como a Ursound,
lembrada pelo entrevistado, articula-se à constituição da festa como um espaço
que recebe bem os homens mais gordos, mais velhos, peludos, com um
vestuário menos sintonizado à moda e que, em tese, seria mais aberto à
diversidade de corpos e estilos de modo geral. O estranhamento ao ver um
público de faixa etária tão elástica nas festas ursinas completa-se com a
observação do tipo físico das pessoas: embora nem todos sejam homens
necessariamente muito gordos, há uma profusão de barrigas salientes. Os
magros também estão lá, mas em menor número e com menos destaque: os
primeiros a tirar a camisa no espaço da pista não são os musculosos, mas os
gordinhos, que dançam com desenvoltura.
237Isadora Lins Françan. 07 | 2012 | p. 223-252
238
A incorporação e afirmação positiva, por parte dos ursos, de perfis
menos valorizados pelo mercado – e aqui a polissemia do termo cai bem, pois
estamos falando de mercado de consumo e do mercado afetivo-sexual – e que
destoam da figura do gay jovem, “em forma” e bem vestido, não raro visibilizada
como a imagem do gay socialmente aceitável em novelas (BELELI, 2009) e em
outros produtos midiáticos, conferem às suas iniciativas certo tom político. Não
é à toa que, em 2010, os ursos foram convidados pela associação que organiza a
Parada do Orgulho LGBT em São Paulo para comandar um dos trios elétricos,
com o que se desejava enfatizar a diversidade de corpos e estilos associados à
homossexualidade e prover um lugar para os mais velhos e mais gordos.
Apesar do potencial de deslocamento que a cena dos ursos carrega,
vale lembrar que, mesmo entre os ursos, produzem-se novas normatividades.
Por outro lado, as boates nos moldes da The Week também não são a
incorporação exata de normas e padrões. Concordo com as observações de
Gregori (2008) a respeito dos constantes movimentos de normatização e
transgressão que se dão no âmbito do mercado. Segundo a autora, explorar as
práticas que envolvem o erotismo em contexto de mercado é também se
debruçar sobre “experiências e práticas que alternam, de modo complexo,
esforços de normatização e também de transgressão” (GREGORI, 2008, p.
589). É preciso, portanto, levar em conta o quanto relações de poder no interior
do mercado e mesmo no que consideramos como uma face mais pública da
homossexualidade são contextuais.
Dessa forma, não tenho como objetivo delinear oposições entre
transgressão e normatização ao comparar as duas cenas, mas produzir um
contraponto que permita ao leitor observar movimentações capazes de adquirir
um tom político no interior do mercado, na medida em que deslocam hierarquias
e relações de poder que se exercem nos domínios da boate ou da festa e que,
contudo, referem-se a disputas que estão para além de seus limites físicos.
Embora reconheça que não esteja tratando de ações políticas num
sentido mais estreito, se consideramos a arena do “político” de forma
abrangente, de modo a incorporar disputas a respeito das possíveis imagens
sociais e de processos normativos relacionados à homossexualidade, pode-se
dizer que mesmo no âmbito do mercado de lazer noturno também se dão
deslocamentos capazes de serem tomados como políticos. Ao mesmo tempo,
os âmbitos do mercado e do lazer noturno, em conjunto com as redes sociais e
outros fóruns de comunicação na internet, são também espaços que
possibilitam a articulação dos que os frequentam, inclusive em torno de
questões mais tradicionalmente encaradas como da arena da política. No
próximo item, percorreremos alguns exemplos etnográficos relacionados à
construção da solidariedade e à reivindicação de direitos em redes costuradas
pelo mercado e de ações que se dão em articulação com espaços de consumo
frequentados por LGBT e nesses próprios espaços.
Direitos e consumo
Miller (1995) observa a crescente tendência de transformação do
consumo em uma arena permeável à ação política, considerando que as
demandas dos consumidores nem sempre se igualam à atuação dos
empresários, ou seja, não há qualquer conexão direta entre anseios do
consumidor e atuação dos empresários. Assim, tem surgido uma série de ações
que cobram “responsabilidade social” do mercado, enfatizando um controle
social dos consumidores em relação às esferas de produção e circulação de
mercadorias. No entanto, o autor ressalva que “não há nenhuma razão
particular para otimismo”, já que “existe uma distância considerável entre o
encontro de interesses entre sociedades consumidoras e negócios, de um lado,
e a formação de uma cidadania responsável e moral, preocupada com as
consequências de suas demandas” (MILLER, 1995, p. 45). O contraste e a
distância sublinhados por Miller (1995) aparecem nos conflitos aos quais me
reporto a seguir.
O primeiro caso diz respeito ao posicionamento de consumidores
quando entendem que seus direitos estão sendo desrespeitados em razão de
sua sexualidade ou expressão de gênero, exigindo igualdade por meio de ações
relacionadas a espaços de consumo e que se caracterizam pela demanda de
usufruto pleno desses espaços. Há uma diferença, porém, em como essas
demandas aparecem: no caso de gays, lésbicas e bissexuais, têm surgido no
que tange às demonstrações de afeto entre pessoas do mesmo sexo; quanto a
travestis e transexuais, muitas vezes, reivindica-se apenas a possibilidade de
ingressar em determinado estabelecimento, sem ter sua entrada impedida ou
sobretaxada.
14Os “beijaços” em bares e restaurantes não explicitamente
direcionados a gays e lésbicas, mas frequentados por esse público, podem ser
interpretados na direção das reivindicações por usufruto pleno de espaços de
lazer e consumo e têm se tornado cada vez mais comuns desde meados da
14 O “beijaço” é um tipo de protesto que vem se tornando comum no movimento LGBT desde o início de 2000. Nos mesmos moldes do kiss-in, tática política do movimento nos Estados Unidos e Europa, o “beijaço” consiste numa demonstração pública de afeto entre homossexuais em locais em que essa prática é coibida, buscando visibilidade para esse público.
239Isadora Lins Françan. 07 | 2012 | p. 223-252
240
década de 1990, sinalizando uma atitude em direção à visibilidade e à
exigência de igualdade de tratamento em espaços públicos. Muito
constantemente, tais manifestações, mesmo que encampadas pelo movimento
LGBT, derivam da organização dos próprios frequentadores dos lugares, que se
utilizam de mensagens de denúncia na internet ou mesmo da mídia
segmentada. Em 2001, presenciei o primeiro “beijaço” de que tomei
conhecimento no Brasil, ocorrido num bar de frequência de gays e lésbicas –
embora não explicitamente dirigido a esse público – que havia expulsado duas
mulheres que ali se beijavam.
O protesto, ainda referido como kiss-in, foi organizado pelas
frequentadoras do bar e seus amigos, em articulação com grupos
anticapitalistas atuantes na cidade. Em 2003, o termo “beijaço” se popularizou
por ocasião da manifestação ocorrida no Shopping Frei Caneca, centro de
compras e espaço de sociabilidade tão frequentado por gays e lésbicas na
cidade de São Paulo e tão simbolicamente marcado por esse traço que recebia a
alcunha de Shopping Gay Caneca. Convocados por uma ONG, em conjunto
com dois rapazes que haviam sido impedidos de se beijar no shopping, a
manifestação atraiu cerca de duas mil pessoas e obteve ampla cobertura da
imprensa (FRANÇA, 2006a).
O “beijaço” foi acompanhado, na Justiça, de uma ação reparatória de
dano moral, movida pelos rapazes contra o shopping, a qual se pautou na Lei
Estadual 10.948/01, aprovada no ano de 2001 no estado de São Paulo,
versando sobre a discriminação em razão de orientação sexual e identidade de
gênero nos espaços públicos da cidade. Em 2005, a 3ª Vara Cível de São Paulo
julgou a ação procedente, obrigando o shopping a pagar a indenização de 50
salários mínimos a cada um dos autores e proferindo parecer, do qual vale a pena
citar ao menos um trecho, em tempos de desrespeito à laicidade do Estado:
Em nosso ordenamento são livres a orientação sexual e, por
consequência, as manifestações de afeto entre as pessoas.
Vivemos num Estado Democrático de Direito, laico, fundado
na dignidade da pessoa humana, e com o objetivo de
promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça,
sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação 15(Constituição da República, arts. 1º, inc. III e 3º, inc. IV) .
Apesar de muitas das leis antidiscriminação que vêm sendo aprovadas
em âmbito local abrangerem estabelecimentos não comerciais e outras formas
de discriminação não relacionadas a espaços públicos, tais dispositivos legais
15 Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2005-abr-22/shopping_reparar_casal_ gays_ discriminacao>. Acesso em: 20 dez. 2011.
têm sido bastante utilizados em relação a estabelecimentos comerciais.
Segundo a ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais,
Travestis e Transexuais), 11 estados da federação e 18 municípios já contam
com leis antidiscriminação por orientação sexual.
Em outra ocasião, abordei (FRANÇA, 2006b) as demandas de
travestis em relação a estabelecimentos comerciais da cidade de São Paulo,
também se fazendo valer da Lei Estadual 10.948/01. Em 2003, a Secretaria
de Travestis e Transexuais da Associação da Parada do Orgulho GLBT deu início
a uma série de visitas a estabelecimentos da cidade de São Paulo – o que foi
denominado de Blitz Trans. As visitas eram sempre compostas pelas travestis, a
maioria na Secretaria de Travestis e Transexuais, e por um militante da
Associação da Parada que atuava como advogado. A ideia do nome adotado
para as visitas faz parte de um jogo de palavras que, de algum modo, inverte a
ideia de vítimas das blitzes policiais que as travestis costumam sofrer na rua.
Esse raciocínio fica claro na entrevista realizada com uma das principais
articuladoras do protesto, quando conta como surgiu a ideia da Blitz Trans:
Um dia a Vanessa falou: “eu queria fazer uma blitz, sair
prendendo todo mundo que discrimina a gente”. [...] Ela só
não sabe passar isso pra gente de uma forma séria, ela
passa brincando, mas é super válido o que ela fala. [...] E a
Carla: “opa! Mas dá pra gente sair, a gente pode sair
visitando estabelecimentos, e tal”. E aí, nós pegamos a lei
10.94816 que protegia a gente e fomos visitando
estabelecimentos por aí (Entrevista com Diana, em
dezembro de 2004).
O que conferia um caráter irônico à “brincadeira” de Vanessa era
justamente a disparidade entre o sujeito que é vítima de uma ação e a suposta
impossibilidade de que se coloque como autor da ação, gerando um contraste
de significados que provoca o riso. Levar essa ideia a sério provocou um efeito
de inversão que tirava as travestis da qualidade de vítimas, para apresentá-las
como agentes contra o próprio preconceito que sofriam.
Dois estabelecimentos se mostraram mais resistentes às
reivindicações das travestis: uma boate voltada para gays – cuja proprietária
teve de acompanhar os integrantes da blitz a uma delegacia próxima e acabou
cedendo às suas demandas – e uma sauna destinada ao público homossexual
masculino e frequentada por michês, que gerou grande mobilização em torno
do assunto, já que a legitimidade da reivindicação das travestis foi
imediatamente colocada em questão por uma parcela do movimento LGBT, de
empresários e de frequentadores da referida sauna. Recorro brevemente aos
241Isadora Lins Françan. 07 | 2012 | p. 223-252
242
argumentos nos quais se apoiaram as demandas das travestis, publicados no
site da Secretaria de Travestis e Transexuais:
[...] estamos lutando pelo direito de ir e vir que nos está
sendo tirado. [...] Reflita sobre a Lei 10.948 mais
especificamente no Artigo 2º que diz: “Consideram-se atos
atentatórios e discriminatórios dos direitos individuais e
coletivos dos cidadãos homossexuais, bissexuais ou
transgêneros, para os efeitos desta lei: proibir o ingresso ou
permanência em qualquer ambiente ou estabelecimento 16público ou privado, aberto ao público” .
Pode-se depreender dessa passagem que as ações das ativistas
pleiteavam direitos de cidadãs plenas, como o direito de ir e vir. Ao argumento de
que a sauna era dirigida a homens e que as travestis querem ser vistas como
pessoas de identidade feminina, as ativistas redarguiam com a ideia de que sua
identidade feminina não era reconhecida pelo Estado e seu Registro Civil
continuava com o nome e sexo masculinos. Sendo assim, sentiam-se no direito de
frequentar os referidos estabelecimentos restritos aos homens, já que a oscilação
entre o reconhecimento legal e social de sua identidade apenas surgia quando o
efeito era o de cercear seus direitos, e nunca o contrário. Parte da polêmica se
fundava no fato de que as travestis reivindicavam o direito ao lazer e ao sexo e
operavam um deslocamento na maneira como eram frequentemente percebidas.
Não se colocavam a partir da posição de prestadoras de serviços sexuais a serem
consumidos por outros, mas a partir da posição de clientes, de consumidoras de
serviços. Bradavam seus direitos de consumidoras e de cidadãs travestis.
Para uma parcela do movimento, era incompreensível que travestis se
mobilizassem por motivos tão “banais” e que “invadissem” espaços de trocas
sexuais direcionados a gays: seria melhor que se concentrassem em não serem
assassinadas, reivindicando o direito de viver. Essas militantes se contrapunham
a uma parcela do movimento que atuava no sentido de estreitar o que se
considerava passível de reivindicação por determinado segmento. Para as
travestis, o âmbito do mercado e do lazer noturno funcionava perfeitamente como
uma arena em que exigiam reconhecimento pleno de suas potencialidades e em
que discutiam a diferença de status em relação aos gays companheiros de
ativismo. Em certo momento, tratava-se menos de uma demanda por participar
da sauna e mais por uma disputa a respeito de quem pode reivindicar o quê.
Além dessas iniciativas, relacionadas ao usufruto de espaços de lazer,
outras compõem um universo de atuação política em meio a práticas de
16 Disponível em: <http://www.transgeneros.blogger.com.br>. Acesso em: 15 jul. 2004.
consumo. É curioso que, durante a minha pesquisa de doutorado, tenha visto a
maior parte de ações relativas ao mercado e ao consumo surgir justamente
entre meus interlocutores que mais frequentemente são associados à imagem
do gay consumista e politicamente desinteressado: entre os homens de classe
alta frequentadores da já citada The Week, a profusão de marcas e referências
no que tange a práticas de consumo e o entusiasmo gerado pelo assunto
demonstravam um pouco do papel que o consumo desempenhava no seu
cotidiano. Ao mesmo tempo, em diversos momentos, a avaliação da própria
atitude como consumista ou materialista – ou mesmo o receio de que fosse
avaliada dessa maneira por outros – trazia à tona preocupações morais em
torno do consumo, refletindo valores sociais correntes em relação à aquisição
de bens (MILLER, 1995).
Continuo o argumento da terceira parte deste trabalho narrando
rapidamente dois episódios da minha pesquisa de doutorado envolvendo
exatamente tais interlocutores, em situações em que o consumo se associa à
ação política, em articulação com demandas dirigidas à justiça ou a entidades
de regulamentação do próprio mercado e da publicidade. Procuro justamente
relativizar leituras que veem numa relação estreita com o consumo um
hedonismo ou individualismo puro, considerando que, por meio de estratégias
muito próprias articuladas ao universo do consumo, os rapazes pesquisados
também estabeleciam redes de solidariedade e de reivindicação e esboçavam
disputas em torno dos significados associados à homossexualidade.
Tratamos de um contexto de sociabilidade e lazer noturno em que o
consumo de bens está muito presente e é constantemente tematizado, nas
conversas, no conteúdo de blogs, sites e revistas e em ações diversas. A partir
da observação dos blogs de alguns dos meus interlocutores frequentadores da
boate The Week e da rede de blogs com que se comunicavam, os quais têm
hoje perdido espaço para outros canais de comunicação na internet – redes
sociais como o facebook ou tumblr, por exemplo –, foi possível observar um
pouco do cotidiano de seus autores e de suas referências. Os blogueiros
escreviam sobre as boates mais valorizadas, as festas e os DJs mais
promissores da semana, as novidades referentes a consumo e tecnologia, moda
(especialmente underwear), cinema e programas da TV a cabo, cuidados
corporais e atividades físicas (principalmente musculação), homens atraentes
e comportamentos e estilos referentes à homossexualidade. Criavam um
conjunto de referências que ajudava a estabelecer padrões de valorização de
determinados estilos e subjetividades associados ao consumo de objetos e de
lugares, em consonância com os expressos nas revistas voltadas para gays e
nos clubes, como a já citada boate The Week. Parte importante das ações que
243Isadora Lins Françan. 07 | 2012 | p. 223-252
traziam alguma dimensão política no contexto dos blogs se dava próxima ao 17âmbito do consumo .
Em 2009, por exemplo, acompanhei uma campanha na internet de
boicote a uma marca de “salgadinhos” que havia veiculado uma propaganda em
que um grupo de amigos está num carro comendo o “salgadinho” e, assim que
toca uma música considerada um “hino” gay, um dos rapazes começa a dançar
de modo espalhafatoso, fazendo com que os outros dirijam um olhar desconfiado.
Nesse momento, a cena congela e, no lugar do rosto do rapaz, aparece a marca
de “salgadinhos” com a narração do locutor: “Quer dividir alguma coisa com os
amigos? Divide um Doritos”. A conclusão mais imediata é a de que não se deve
compartilhar a homossexualidade com os amigos. Logo, o comercial surgiu em
um blog gay e foi se espalhando para outros, propondo o boicote ao produto, até
que foi criada uma imagem em que o salgadinho aparecia com uma marca de
proibido e os dizeres “cuidado: produto homofóbico”. Um outro blogueiro, por sua
vez, lembrou que não era apenas o “salgadinho” que deveria ser boicotado, mas a
Pepsico, empresa que o produzia, o que gerou uma nova imagem, com o sinal de
proibido acima de diversos produtos da empresa.
17 As ações aqui mencionadas acontecem de forma quase espontânea: a partir de uma publicação nos blogs, há a adesão e o tema passa a ser publicado em outros blogs e redes sociais. Em 2010, parece surgir uma proposta de aproveitar o potencial de comunicação dos blogs no que se refere a causas políticas de modo mais organizado, com a criação de uma rede de blogueiros gays. A ideia é encabeçada pelo site mixbrasil e o grupo se reuniu algumas vezes em estabelecimentos comerciais frequentados pelo público gay. Sua primeira iniciativa é a tentativa de deflagrar uma campanha pela igualdade de direitos, inspirada na aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo na Argentina. Foi criado um logotipo para a campanha baseado na imagem utilizada pela Human Rights Campaign – uma organização norte-americana com foco na defesa dos direitos de “LGBT” –, mas com as cores da bandeira brasileira.
Imagem 1 – Imagem que foi incorporada aos blogs durante a campanha de boicote à marca
Fonte: http://www.uomini.blogger.com.br/DORITOS%201.jpg acesso em 09 jun 2009
244
Simultaneamente, surgiam propostas e modelos de carta que
deveriam ser dirigidas ao CONAR (Conselho Nacional de Autorregulamentação 18Publicitária) bem como propostas de que todas as casas noturnas voltadas
para gays e lésbicas boicotassem os produtos da Pepsico. Ao mesmo tempo, a
ABGLT redigiu um ofício ao CONAR solicitando a retirada da propaganda. Com
mais de 100 reclamações, o conselho de ética do CONAR votou por 7 a 5 pela
proibição da peça comercial. A estratégia de utilização da contradição entre ser
bem visto como consumidor e sofrer preconceito como cidadão utilizada pelos
blogueiros era resumida na frase de um dos articuladores do boicote: “Por que 19nossa grana é tão bem-vinda, mas a gente mesmo não?” .
No início de 2008, o mesmo grupo de blogueiros gays iniciou uma
campanha pelo reconhecimento do direito à herança de um rapaz cujo parceiro
de longa data havia morrido repentinamente. A campanha logo se espalhou por
muitos blogs, ganhando também os sites da mídia segmentada. Consistia na
divulgação de um abaixo-assinado que atestava a relação duradoura do casal
em questão e que podia ser assinado nas lojas de cuecas Foch, localizadas em
São Paulo na região dos Jardins e no já mencionado Shopping Frei Caneca, com
filiais no Rio de Janeiro e em Curitiba. A fotografia do casal mostrava dois
homens em torno dos 35-40 anos, brancos, musculosos e depilados, posando 20em meio a outros homens sem camisa numa festa indefinida . Ambos
participavam da mesma rede e ambientes referidos pelos blogueiros, o que fez
a iniciativa ser batizada de “ação entre amigos”.
18 O CONAR é uma ONG fundada em 1978 e composta por um colegiado de representantes da sociedade civil e de setores ligados ao mercado e à publicidade. Embora suas decisões não tenham poder legal, é incomum que delas se recorra na justiça, sendo entidade bastante reconhecida no meio publicitário. Pelo site do CONAR, podemos observar o crescimento das queixas vindas de consumidores. Boa parte dessas queixas estão relacionadas à infração de “respeitabilidade”, definida pelo CONAR a partir dos seguintes artigos: “Artigo 19 – Toda atividade publicitária deve caracterizar-se pelo respeito à dignidade da pessoa humana, à intimidade, ao interesse social, às instituições e símbolos nacionais, às autoridades constituídas e ao núcleo familiar. Artigo 20 – Nenhum anúncio deve favorecer ou estimular qualquer espécie de ofensa ou discriminação racial, social, política, religiosa ou de nacionalidade. Artigo 21 – Os anúncios não devem conter nada que possa induzir a atividades criminosas ou ilegais – ou que pareça favorecer, enaltecer ou estimular tais atividades”. Disponível em: <http://www.conar.org.br>. Acesso em: 15 out. 2010.19 Disponível em: <http://celsodossi.blogspot.com/2009/03/doritos-x-gayss.html>. Acesso em: 15 out. 2010.20 Embora não possa afirmar com absoluta certeza qual o perfil em relação à classe social envolvendo o casal, imagino que se trate de um casal de classe média alta/alta, o que posso deduzir um pouco pelo perfil de consumo e pela rede social em que estão envolvidos. Oliveira (2009) afirma em sua tese de doutorado que ações referentes a inventário, na pesquisa que realizou a partir das ações envolvendo conjugalidade e homossexualidade, são na sua maior parte movidas por homens gays de classe alta, já que a existência de um patrimônio considerável justifica a procura pelos meios legais de defesa desse patrimônio. Curiosamente, essa informação combina com a fala de um blogueiro que considera que os gays mais ricos não costumam se envolver em causas políticas e sociais, por estarem menos expostos à homofobia no seu cotidiano, mas a questão do reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo é algo que os afeta a ponto de gerar mobilização. Com o cruzamento dessas informações, ainda frágeis, posto que são apenas alguns apontamentos, sugiro que talvez a questão da classe social atue como um marcador importante no modo como pode se dar a mobilização social em torno de direitos relacionados à sexualidade.
245Isadora Lins Françan. 07 | 2012 | p. 223-252
Nos posts divulgando a ação, os blogueiros se contrapunham a
iniciativas como as das Paradas do Orgulho LGBT de São Paulo, pois
enxergavam nelas um evento pautado pela festa, cujo sentido se esvaziava logo
após a sua realização, diferentemente do abaixo-assinado que organizavam,
tido como uma ação concreta de combate ao preconceito e à discriminação,
que poderia efetivamente ajudar alguém. Em um post intitulado “Nossa Luta”,
um dos blogueiros define, citando um colega de blogosfera:
Bom, amigos, chegou a hora de mostrar mais uma vez o
real sentido deste blog. O sentido de poder ajudar quem
quer que seja: de um pai que sofre com o filho deficiente
físico, no post 'sob o olhar do observador' aos muitos djs que
hoje estão empregados e ou visitam este país graças a este
blog, e tantas outras benfeitorias que consegui para muitos
amigos ao longo dos anos. [...] 'Acho que as vésperas da
Parada Gay as pessoas tem que se conscientizar que não é
uma parada que muda o mundo e sim a participação de
cada um, ao seu modo, formando uma corrente do bem. E
esta luta do X é luta de todos nós, porque aos poucos vamos
mudando pensamentos e abrindo precedentes para outros
casos futuros, e espero que sejam cada vez menos os casos 21como este'. Frase bem correta do Y .
A ação se mistura à ajuda a DJs desempregados e a outros amigos, em
contraposição a outros modelos de ação política, personificados pela Parada do
Orgulho LGBT no texto transcrito. Assim, reitera o pensamento de outro
blogueiro de que não é uma parada que muda o mundo e sim a participação de
cada um, ao seu modo.
Embora possa causar surpresa a alguns, não é de se estranhar que o
post da “ação entre amigos” apareça em meio a imagens de anúncios das
cuecas favoritas, fotos de festas e DJs, dicas de complexos protéicos para
serem consumidos depois do treino de musculação. Não esqueçamos também
que essas referências circulam em lugares específicos, como os clubes dos
quais os blogueiros são frequentadores e que propiciam o encontro entre os
integrantes dessa rede, fazendo circular referências e gostos. Esse episódio
talvez pudesse ter uma leitura simplista, apontando para um suposto
individualismo dos blogueiros e dessa rede, mas isso seria deixar de lado a
compreensão do por que o combate ao preconceito é articulado dessa forma.
21 Optei por substituir os nomes citados no trecho por “X” e “Y”, com o intuito de preservar as identidades dos citados, já que o post não se encontra disponível atualmente na internet.
246
Não é mera coincidência que o abaixo-assinado tenha sido colocado
numa loja de cuecas ou que seja denominado “ação entre amigos”. O consumo,
para esses rapazes, desempenha um papel muito importante: a marca da
cueca é capaz de definir quem são os “amigos”, de quem se deve aproximar ou
não numa festa e quem são os potenciais parceiros. Por meio do consumo,
esses homens expressam fronteiras que os definem em relação a outros,
articulando significados referentes à homossexualidade e a diferentes estilos de
masculinidade, definindo também os “de fora”. De acordo com as formulações
de Douglas e Isherwood (2004) sobre o uso dos bens, poderia dizer que esses
rapazes ajudam a erigir barreiras e afinidades de forma ágil e veloz a partir
desses usos, bem como um “conjunto de princípios justificadores para reunir
apoio e solidariedade e um conjunto de sinais de 'entrada proibida'”
(DOUGLAS; ISHERWOOD, 2004, p. 44). Nada mais natural que articulem
suas ações em torno do reconhecimento de direitos de modo muito próximo a
esse universo que sabem manejar como ninguém.
Perspectivas e tensões: movimento e mercado, política e consumo
À luz dos argumentos e exemplos colocados aqui, concluo trazendo
alguns pontos para reflexão. Apesar de ter privilegiado o mercado e o consumo
como esferas em que também se dá a atuação política, quero concluir forjando
um diálogo entre movimento social e mercado, com vistas a contribuir com
debates no campo da política, mais do que a manter a elegância e a coerência
textual.
Acredito que uma perspectiva antropológica a respeito da política
possibilitou uma análise mais próxima de práticas que ocorrem no âmbito do
cotidiano e que desafiam fronteiras estanques entre movimento e mercado,
política e consumo, tornando viável essa última reflexão. Para além de definir
campos de atuação, minha preocupação aqui se deu, portanto, sobre o “modo
como as relações de poder se entrelaçam, suas ramificações e as práticas a que
dão lugar” e sobre os “modos como atores sociais diversificadamente situados
exercem o poder, respondendo às exigências e expectativas sociais e culturais
tanto quanto às demandas mais obviamente políticas” (HERZFELD, 2001, p. 3).
Embora o Estado e os movimentos sociais sejam as esferas a partir das
quais tradicionalmente pensamos o fazer político, é preciso lembrar que as
esferas do mercado e do consumo também constituem cenários públicos em
que nossa capacidade de agência e ação política é exercida,
independentemente de aderirmos ou não a noções como “sociedade do
247Isadora Lins Françan. 07 | 2012 | p. 223-252
consumo”. Nessas esferas, também se negociam direitos, disputam-se
significados, perpetuam-se ou reforçam-se desigualdades. Uma das propostas
deste exercício foi tentar compreender algumas das maneiras pelas quais o
mercado e o consumo revelam-se mais do que o terreno do puro comercialismo
desprovido de sentido, no caso das questões relacionadas à sexualidade.
Assim, meu primeiro argumento se deu no sentido de questionar
fronteiras muitas vezes encaradas como fixas entre mercado e movimento, pela
atribuição de lógicas totalmente distintas de atuação entre essas duas esferas,
evocando discursos pelos quais se guia parte das ações de empresários que se
reconhecem como responsáveis por uma atuação política. Meu segundo
argumento caminhou na direção de compreender como, mesmo na esfera do
lazer noturno, há espaço para movimentos de contestação, deslocamento de
normatividades e afirmação da diversidade. Na terceira seção do texto, abordo
demandas relacionadas ao usufruto pleno de espaços de consumo e lazer.
Também exploro as maneiras pelas quais os meus interlocutores, que talvez
mais facilmente recebessem a alcunha de “consumistas”, encontravam meios
de formular demandas e reivindicar igualdade e respeito, justamente a partir de
um cenário em que o consumo e o mercado se encontravam fortemente
presentes.
Não há aqui qualquer pretensão descabida de elevar o mercado e o
consumo a esferas privilegiadas de atuação política, em detrimento de esferas
em que essa atuação tem se dado mais tradicionalmente, mas de enfatizar que
nem por isso o âmbito do mercado deve ser ignorado e de reconhecer que,
como parte importante da vida social, deve ser também objeto de investigação.
Considerando, ainda, que há conexões ativas entre mercado e movimento e que 12ambos operam a partir do recurso a uma “comunidade imaginada” e atuam
na construção de identidades e subjetividades, vale perguntar que reflexões
podem ser apontadas quando se observa o movimento a partir do mercado e
vice-versa. Uma questão é se mercado e movimento podem funcionar como
espelho crítico um do outro.
Não pretendo apaziguar tensões ou nublar as diferenças entre atores
sociais de ambos os lados, mas pensar o quanto as diferenças que envolvem as
ações de movimento e mercado podem ser produtivas para calibrar nosso olhar
de um lado e de outro. Iniciativas próximas ao mercado, por exemplo, podem
gerar adesão e estabelecer pautas nem sempre interessantes para o
movimento, trazendo para o âmbito da política demandas por lazer, pela
22 Utilizo o termo de Anderson (2008), seguindo o uso que dele faz Facchini (2008).
248
transformação de discursos e práticas na mídia e publicidade, por igualdade e
respeito à diversidade sexual em aspectos da vida cotidiana.
Além disso, se no âmbito do mercado normatividades são produzidas,
também ali se aponta para desigualdades sutis, muitas vezes nubladas nos
processos de reivindicação do movimento, pelas próprias características
desses processos: por exemplo, nas reivindicações por direitos coletivos,
muitas vezes os “LGBT” aparecem como entidade, um coletivo carente de
direitos que se mostra de forma um tanto homogênea. No âmbito do mercado e
do consumo, a diversidade interna que compõe as letrinhas do movimento,
mesmo que carregada de hierarquias, surge com força suficiente para iluminar
nossa perspectiva a seu respeito.
Por outro lado, se observarmos o mercado pela lente do movimento
social, também pode oferecer linhas de fuga interessantes. O aspecto mais
flagrante aqui é a disparidade entre um movimento formado por um sujeito
político múltiplo e que congrega orientação sexual e identidade de gênero e um
mercado direcionado quase que exclusivamente a gays – em muito maior
proporção – e lésbicas. O caráter excludente desse mercado aparece de modo
inequívoco quando nos voltamos para travestis e transexuais, embora sua
distribuição de espaços e sua correlação de forças já evidenciem a
desvalorização dos mais pobres, mais escuros, mais velhos, mais gordos, mais
“femininos” ou mais “masculinos”. Não é à toa que estratégias políticas mais
numerosas e constantes no âmbito do mercado são as propostas por gays.
Além disso, no âmbito do mercado, não há ainda espaços coletivos em
que se podem confrontar posições e construir um debate político, papel que
cumprem as conferências e os encontros do movimento. As iniciativas no
âmbito do mercado e consumo, na maioria das vezes, pouco dialogam com
outras instâncias, o que também tem resposta no funcionamento da própria
lógica do mercado, que tende a segmentar e reforçar diferenças (SAHLINS,
2000; FRANÇA, 2010). Assim, é importante enfatizar o movimento social
como um espaço em que parece mais possível essa construção de
solidariedade considerando um sujeito político múltiplo, como é o LGBT.
Podemos dizer que o âmbito do mercado eventualmente responde a
questões diferentes das usualmente colocadas pelo movimento, enfatizando
aspectos relacionados ao prazer, ao lazer, a subjetividades mais ou menos
desvalorizadas, questões que aparecem mais como individuais, mas que são
também políticas. O movimento eventualmente dá respostas que o mercado
não pode dar, quando se dirige mais aos direitos coletivos e atuações mais
amplas, prioriza a questão da violência como ponto aglutinador de demandas,
249Isadora Lins Françan. 07 | 2012 | p. 223-252
oferece um espaço para a construção de sujeitos políticos por afinidade, e não
por identidade específica.
Evidentemente, essas respostas não são exclusivas de uma ou outra
esfera e há muitas nuances envolvendo práticas no âmbito do movimento e do
mercado: recorri ao esboço de algumas diferenças mais gritantes de maneira
bastante tentativa nesses últimos parágrafos, com o objetivo de dar conta das
vantagens de se olhar para o movimento pela lente do mercado e para o
mercado pelas lentes do movimento. Trata-se de traçar conexões, mas também
de forjar pontos de vista e fomentar tensões saudáveis a partir de práticas
sociais, procurando formular uma reflexão crítica sobre o modo como
compreendemos o fazer político associado à sexualidade.
250
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252
12
Adailson MoreiraProfessor Assistente do Departamento de Ciências Sociais
da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS)Graduado em Direito e Psicologia
adailsonsm@hotmail.com
Homosexuality in the Nineteenth Century
A homossexualidade no Brasil no século XIX
254
Resumo
O século XIX marcou de forma profunda a sociedade brasileira ao promover mudanças
estruturais de grande envergadura. As práticas e os hábitos sociais foram objetos de
atenção das ciências, que se voltaram com o propósito de compreendê-los, estudá-los e
controlá-los, fazendo emergir as categorias de normalidade/anormalidade,
especialmente no campo sexual. Neste, o tema da homossexualidade ganhou destaque
quando surgiram pesquisas médico-científicas procurando nomear e classificar as
variações sexuais, logo marcadas e rotuladas como desvios ou patologias.
Palavras-chave: Homossexualidade. República. Teorias Higienistas.
Heteronormatividade.
Abstract
The nineteenth century marked profoundly the Brazilian society by promoting major
structural changes. The practices and social habits were pointed as subject of attention
of Sciences, who turned in order to understand them, study them and control them,
making the categories of normality/abnormality come out, especially in the sexual field,
and from this on, the theme homosexuality has gained prominence, when they began
looking for medical-scientific names and classifications for sexual variations, then
marked and labeled as deviations or pathologies.
Key-words: Homosexuality. Republic. Hygienists Theories. Heteronormativity.
Introdução
O século XIX marcou profundamente os destinos e costumes do povo
brasileiro. Num mesmo século, o país deixou de ser colônia (1822), passou por
dois reinados e um período regencial e ingressou na República (1889). Além
disso, sofreu grandes e importantes transformações ao abandonar seu passado
escravocrata, por meio das várias leis, tais como a Lei do Ventre Livre (1871), a
Lei dos Sexagenários (1885) e, finalmente, a Lei Áurea (1888).
Ao proclamar sua independência de Portugal em 1822, o
Brasil herdou uma tradição cívica pouco encorajadora. Em
três séculos de colonização (1500-1822), os portugueses
tinham construído um enorme país dotado de unidade
territorial, linguística, cultural e religiosa. Mas tinham
também deixado uma população analfabeta, uma
sociedade escravocrata, uma economia monocultora e
latifundiária, um Estado absolutista (CARVALHO, 2008a,
p. 17-18).
O pensamento social republicano é herdeiro da sociedade imperial,
que contribuiu para uma República formada por uma massa analfabeta e
miserável (MISKOLCI, 2004, p. 189).
A elite imperial era um poderoso grupo responsável pela unificação
ideológica do país por meio da educação superior, que se concentrava
basicamente na formação jurídica (Universidade de Coimbra), e, em
consequência, formava um núcleo relativamente homogêneo de
conhecimentos e habilidades à semelhança de uma ilha de letrados num mar
de miseráveis e analfabetos (CARVALHO, 2008b, p. 65), que não se
interessavam, ou estavam impedidos de acesso ao universo da política.
Com a República, a situação não mudou muito. A política adotada pelo
governo português nunca permitiu a instalação de estabelecimentos de ensino
superior nas colônias (CARVALHO, 2008b, p. 69). Assim procedendo, a Coroa
portuguesa visava à manutenção da hegemonia política da elite, já que todos os
que tinham condições financeiras estudavam em universidades europeias. Essa
situação somente se alterou com a chegada da Corte em 1808, quando foram
criadas várias escolas de ensino superior. Contudo, as escolas dedicadas
explicitamente à formação das elites políticas (Direito, Medicina e Engenharias)
apenas surgiram após a Independência (CARVALHO, 2008b, p. 74).
Se no Império vigorava uma forma de lidar com a população
baseada na pura e simples brutalidade, o que a instituição da
escravidão corroborava, na República, e sob o regime do
255Adailson Moreiran. 07 | 2012 | p. 253-279
trabalho assalariado, as elites intelectuais depararam-se com
um paradoxo maior: como incorporar ao novo regime político
essa massa de desvalidos? (MISKOLCI, 2004, p. 189).
Essa massa de desvalidos, de analfabetos, era alheia a qualquer ato ou
acontecimento político. Um exemplo marcante dessa passividade foi o episódio
da proclamação da República, no qual não houve participação popular,
contrariando o ideário republicano do povo como protagonista dos
acontecimentos (CARVALHO, 2005, p. 9).
A indiferença do povo impressionou diversos intelectuais, na época. A
carta de Aristides Lobo, publicada no Diário Popular de São Paulo, em 18 de
novembro de 1889, ilustra essa impressão: “o povo assistiu àquilo bestializado
[...], sem conhecer o que significava. Muitos acreditavam sinceramente estar
vendo uma parada” (NUNES; MENDES, 2008, p. 92).
O povo jamais exerceu seu papel de protagonista. Assistia aos fatos
políticos entre surpreendido e indiferente. “Os acontecimentos políticos eram
representações em que o povo comum aparecia como espectador ou, no
máximo, como figurante” (CARVALHO, 2005, p. 163).
Trata-se de um período de crise generalizada na sociedade brasileira, de
“mudanças estruturais profundas nas políticas de domínio sobre os
trabalhadores” (CHALHOUB, 1994, p. 16). Era um momento em que todas as
estruturas e camadas sociais estavam se organizando, se estruturando para a
existência republicana. “O momento histórico, portanto, é propício ao surgimento
de novos e alternativos modos de vida” (NUNES; MENDES, 2008, p. 87).
Esses novos modos alternativos de vida não se fizeram esperar. De
novo, contudo, somente as designações científicas. Os hábitos e as práticas
eram os mesmos desde sempre, mas os olhares atentos das ciências se
voltavam para eles na intenção de compreendê-los, estudá-los e controlá-los. O
que antes era apenas uma faceta do comportamento humano, passou a ser
enquadrado nas categorias de normalidade/anormalidade, como valores em
oposição, tornando-se, no século XIX, uma espécie de dogma cientificamente
garantido (CANGUILHEM, 2010, p. 13).
As práticas sexuais passaram dos domínios da religião para os da
ciência, com sua postura higienista. Dentre estas, as práticas entre pessoas do
mesmo sexo deixaram de ser meras práticas e foram designadas de
homossexualismo. Essas pessoas se transformaram em uma espécie
(FOUCAULT, 1984a) e passaram à tutela da ciência médica, para curar, e da
jurídica, para punir, em caso de resistência e reincidência.
256
Ilustrando esse processo de mudança social, a literatura produziu
obras segundo essas concepções, já que “os estudos literários sempre se
enriqueceram com o intercâmbio disciplinar” (BULHÕES, 2003, p. 13).
O tema da homossexualidade é bastante antigo, até a narrativa bíblica
traz relatos desse comportamento. “No entanto, a preocupação com essa
identidade sexual somente ganha realce no final do século XIX, quando surgiram
pesquisas médico-científicas procurando nomear e classificar as variantes
sexuais, logo rotuladas como desvios ou patologias” (OLIVA, 2002, p. 15).
Nesse período, a literatura desenvolveu pretensões de ser uma forma
de conhecimento. Assim, surgiu, por exemplo, o romance Bom-Crioulo,
publicado em 1895, que traz todos esses elementos ao narrar, de forma
detalhada, a ligação entre dois oficiais da marinha brasileira, numa narrativa
naturalista, privilegiando a ciência, o progresso e a verdade, segundo os
preceitos da época. “Nervosos e agitados, os personagens naturalistas,
exagerados ou não, revelam aos leitores e à sociedade do final do século 19 os
perigos e mistérios da sexualidade” (MENDES, 2000, p. 23).
Sociedade e Literatura
Foi no cenário social em convulsão que se deu a chegada das teorias
científicas, dentre elas, as teorias evolucionistas e positivistas. Segundo Lara
(2008, p. 88), “[...] sua retórica foi empregada tanto por críticos sociais
reformistas, como por elaboradores da ideologia oficial ao longo da Primeira
República”, provocando mudanças sociais significativas.
Conforme essas teorias, o homem chegou ao progresso ao atingir uma
escala superior da evolução, conseguindo dominar, dentro de certos limites, o
conjunto de forças que rege o seu corpo (física, intelectual, sexual etc.) e a
sociedade (MORANDO, 2002, p. 132-133).
As concepções surgidas nesse período abrangem toda uma ideologia
médico-higienista produzida pelos avanços tecnológicos, na maioria das vezes,
corroborando preconceitos ou simpatias sociais. “Expoente do
desenvolvimento e progresso desejados pela burguesia, a medicina avançou e
penetrou tanto em sentido vertical quanto em sentido horizontal no espectro
social” (QUEIROZ, 1992, p. 18).
No âmbito das ciências médicas, a sexualidade teve especial
destaque, acompanhada de preconceitos, medos, crenças e dogmas do
passado. Do universo da sexualidade, emerge uma série de práticas
257Adailson Moreiran. 07 | 2012 | p. 253-279
consideradas antinaturais, aberrações “as mais extravagantes, que afetam não
somente a vida, a honra e a liberdade de suas infelizes vítimas, como também
comprometem a segurança social” (CASTRO, 1943, p. 5).
Desse universo de aberrações, podem-se destacar os exibicionistas, os
necrófilos, os sátiros, os sádicos, as prostitutas, os pederastas etc. Esse elenco
de personagens que mantêm condutas e práticas consideradas desviantes da
normalidade é encontrado no livro do Dr. Viveiros de Castro, professor de direito
criminal e Desembargador da Corte de Apelação do Distrito Federal, intitulado
Atentados ao pudor: estudos sobre as aberrações do instinto sexual. Trata-se
do primeiro estudo jurídico publicado no Brasil abordando essa temática, em
consonância com as pesquisas e os estudos surgidos no mesmo período na
Europa. Na área médica, o primeiro estudo foi publicado em 1872, pelo Dr.
Francisco Ferraz de Macedo, intitulado Da prostituição em geral e em
particular em relação à cidade do Rio de Janeiro: profilaxia da sífilis.
Foi essa mentalidade que destacou personagens como: prostitutas,
loucos, mundanos, celibatários, histéricos, negros, homossexuais, libertinos e
adúlteros. Sobressaindo desse espectro social, os homossexuais ganharam
notoriedade. A homossexualidade passou a ser pesquisada por estudiosos, o
que se transformou no primeiro passo para a composição do cenário de
condenação e exclusão. Estuda-se para saber, e esse saber é usado para
controlar, curar e punir (FOUCAULT, 1984a).
Mais precisamente em 1869, surgem os termos homossexual e
homossexualismo, criados pelo médico húngaro Karoly Maria Benkert. Com isso,
essa parcela da população entrou para a história “na precisa medida em que foram
detectados, estudados e controlados pelos grupos heterossexuais, dominantes
desde sempre no conjunto social” (GREEN; POLITO, 2006, p. 17-18).
Seguindo a tendência científica médico-higienista, a literatura do
período espelhou esse conhecimento. A principal corrente literária produzida
no período foi a naturalista, que expressava uma concepção positivista da
própria sociedade e, consequentemente, da literatura, caminhando em direção
a uma “migração do interesse estético para os de outra ordem, sociológicos,
antropológicos, psicanalíticos, filosóficos” (BULHÕES, 2003, p. 13).
A literatura, de uma maneira geral, procurou seguir as
tendências realistas e abandonar a subjetividade
introspectiva, voltando-se para aspectos do contexto em
que a obra de arte estava sendo produzida, abordando
temas menos idealizados e mais próximos da realidade e
dos problemas da época. A negação dos valores e
258
convenções românticas, centrados na imaginação criadora
do artista e na idealização do amor, da mulher e da
sociedade, aliada à forte influência dos filósofos franceses
naturalistas e do positivismo de Comte, possibilitou à
literatura a representação de assuntos pouco
convencionais, como o adultério, o casamento por
interesse, a hipocrisia da sociedade burguesa e os males da
religiosidade mercantilista. Além desses, outros temas
aparecem, mas tratados quase sempre de forma sutil, como
o lesbianismo e a homossexualidade masculina (OLIVA,
2002, p. 24).
Nem tão sutil assim, Adolfo Caminha publicou o romance Bom-
Crioulo, em que abordou a homossexualidade abertamente, sem nenhuma
preocupação em disfarçar a natureza da relação existente entre as
personagens. O próprio autor, em artigo publicado na época, assim descreveu
sua obra:
Um marinheiro rudo, de origem escrava, sem educação,
nem princípio algum de sociabilidade, num momento fatal
obedece ás tendencias homosexuaes do seu organismo e
pratica uma acção torpe: é um degenerado nato, um
irresponsável pelas baixezas que commette até assassinar o
amigo, a victima dos seus instintos. Em torno d'elle se
espraia o romance, logicamente encadeado, de accôrdo
com as observações da sciencia e com a analyse provável
do autor, que, no caracter de official de marinha, viu os
episódios accidentaes que descreve a bordo (CAMINHA,
1896, p. 41).
Apesar de ser reconhecida como a obra mais importante a abordar o
tema, Bom-Crioulo não foi a primeira. Antes dela surgiu Um homem gasto, em
1885, de autoria do médico Lourenço Ferreira da Silva Leal, mas assinada
apenas pelas iniciais L. L.
Pela primeira vez na literatura brasileira surgiram as vozes de
“personagens cujas sexualidades se opõem às tradições do casamento, da
reprodução da espécie e da heterossexualidade” (MENDES, 2000, p. 14),
ainda que circundadas pelo discurso de uma ciência eugênica, que evidencia
vozes anormais como forma de cerceá-las, acuá-las, desnudá-las e
marginalizá-las (QUEIROZ, 1992, p. 41).
Entender como esse processo se deu implica analisar a construção
dessa nova ordem médica e higienista.
259Adailson Moreiran. 07 | 2012 | p. 253-279
A nova ordem médica e higienista
A sociedade brasileira, organizada segundo o modelo patriarcal desde
os seus primórdios, sofreu grande abalo em suas estruturas em meados do
século XIX, provocado pelo projeto médico e higienista. “Neste período
predominava uma visão biológica da sociedade e de seus problemas”
(MISKOLCI, 2010a, p. 2).
Até então, a medicina era pouco desenvolvida e os recursos, escassos.
Durante todo o período colonial, Portugal não permitiu a instalação de escolas.
“Foi política sistemática do governo português nunca permitir a instalação de
estabelecimentos de ensino superior nas colônias” (CARVALHO, 2008b, p. 69).
A prática da medicina consistia na observação de sintomas e sinais,
não havendo preocupação com as causas das doenças. Além disso, a medicina
sofria grande concorrência dos conhecimentos de medicina natural indígena,
das superstições e do curandeirismo (QUEIROZ, 1992, p. 19).
Com a vinda da Corte portuguesa para o Brasil, em 1808, a situação
começou a mudar; iniciou-se uma nova fase, embora a regra fosse a escassez de
profissionais da área médica e a população estivesse em franco crescimento, o
que fez aumentar os problemas higiênicos e sanitários (QUEIROZ, 1992, p. 19).
Muitas foram as iniciativas, por parte das autoridades, de remodelar o
Rio de Janeiro, atacando seus pontos críticos e insalubres. “A intenção de dar
uma face de civilidade ao Rio, na tentativa de apresentar à comunidade
europeia uma cidade ordenada e regulada, que esteve presente desde as
primeiras medidas do Príncipe Regente e percorreu todo o século XIX”
(QUEIROZ, 1992, p. 21).
A situação das cidades brasileiras era periclitante. Cidades mal
planejadas e insalubres, ruas estreitas, íngremes e sem calçamento, lixo atirado
às ruas, que eram povoadas por animais soltos (cachorros, porcos, cavalos,
vacas etc.), isso sem contar a grande população das cidades maiores, o que só
agravava a situação (ARAÚJO, 1993).
As péssimas condições sanitárias das cidades foram pano de fundo
para a propagação de surtos epidêmicos que somente foram debelados com
grande dificuldade (ARAÚJO, 1993, p. 64).
Os dados revelam não apenas que o Rio de Janeiro era uma
cidade ciclicamente visitada por diversas moléstias, como
também que outros núcleos urbanos em processo de rápido
crescimento passavam por idêntica experiência. O
adensamento populacional, a aglomeração humana geravam
260
como subproduto as enfermidades de massa, as epidemias
[...] (PECHMAN; FRITSCH, 1984/1985, p. 141).
A partir do segundo quartel do século XIX, tomava-se consciência do
alto índice de mortalidade infantil e das péssimas condições sanitárias do lar
patriarcal (TREVISAN, 2004).
A insalubridade imperante nos sobrados de início do século
XIX era resultado da arquitetura e engenharia dos ricos
senhores que decidiam por si como erigir a casa, sem
atender a requisitos básicos de higiene. Habitações
quentes, escuras, mal ventiladas e desconfortáveis
abrigavam pessoas com aspecto doentio e físico
abrutalhado. O espaço era dividido com o lixo acumulado,
águas usadas e estagnadas e animais transmissores de
doenças, como ratos, baratas, pulgas e percevejos
(QUEIROZ, 1992, p. 26).
As personagens do romance de Caminha, o negro Amaro e Aleixo, ao
desembarcarem no Rio de Janeiro, vão morar no sobrado de D. Carolina, “que
alugava quartos na Rua da Misericórdia [...] não fazia questão de cor e
tampouco se importava com a classe ou profissão do sujeito” (CAMINHA,
1999, p. 44). Ao descrever o quarto, o autor informa que “o quarto era
independente, com janela para os fundos da casa, espécie de sótão roído pelo
cupim e tresandando a ácido fênico” (CAMINHA, 1999, p. 47).
A descrição dessa moradia deixa evidente as condições insalubres dos
moradores, pelo menos de uma boa parte deles, das grandes cidades
brasileiras do período, mais especificamente os da capital.
Em função de todos esses problemas, “impôs-se a convicção de que a
velha família patriarcal era incapaz de proteger a vida dos seus membros”
(TREVISAN, 2004, p. 171). Com essa certeza, iniciou-se o processo de
mudanças sociais, modernizando o lar, reduto íntimo dominado pelo poder
patriarcal e pelo rápido avanço das ideias e dos valores burgueses (CARVALHO,
2005, p. 42).
A situação crescente de ameaças de epidemias, a necessidade de
mostrar-se à comunidade internacional e o ideal modernizador e progressista
criaram “as condições básicas para que médicos, engenheiros sanitários,
políticos e autoridades governamentais se debruçassem na busca de soluções
[...]” (PECHMAN; FRITSH, 1984/1985, p. 142).
Esse período foi propício a grandes transformações das mentalidades e
solo fértil para as ciências e para o progresso (OLIVA, 2002), numa sociedade
261Adailson Moreiran. 07 | 2012 | p. 253-279
cheia de entraves morais e sociais, “com seus ritos conservadores, dominada
por uma religiosidade que, se não é exatamente claustrofóbica, não deixa de ser
punitiva e centralizada na ideia da culpa, que estabelece privações e
prescrições à vivência sexual” (BULHÕES, 2003, p. 37).
A partir do ideal higienista, a cidade foi se transformando, tendo Paris
como modelo. “Quando as finanças da República foram recuperadas pela
política deflacionista de Campos Sales, sobraram recursos para as obras há
muito planejadas de saneamento e embelezamento da cidade” (CARVALHO,
2005, p. 40).
A cidade começou a ser submetida a uma série de medidas de
transformação urbana, objetivando melhorias no nível de vida, diminuição do
índice de doenças que afetavam a população e melhor conformação urbana
(QUEIROZ, 1992, p. 20).
À medida que o Estado foi se organizando e a Revolução Industrial se
consolidando, as classes menos favorecidas iam sendo paulatinamente
higienizadas por meio de campanhas de moralização e higiene coletiva. “Além
do corpo, também as emoções e a sexualidade dos cidadãos passaram a sofrer
interferência [...]” (TREVISAN, 2004, p. 172).
Na segunda metade do século XIX, aumentaram substancialmente os
estudos sobre sexualidade, prostituição e homossexualidade, segundo a
tendência das teorias europeias. “A vida intelectual do país começou a mudar
significativamente no início da década de 1870, com a introdução de outras
correntes europeias de pensamento, sobretudo o positivismo e o
evolucionismo” (CARVALHO, 2008b, p. 86).
As transformações pelas quais a sociedade passou nesse período,
predominando a visão biológica, deram-se “pelo fortalecimento do processo de
higienização da família, configurado pela atuação direta do médico [...] pelo
remanejamento dos papéis familiares e pela nova política sexual baseada na relação
heterossexual, monogâmica, de caráter reprodutivo” (QUEIROZ, 1992, p. 35).
A nova sociedade burguesa capitalista tinha no processo de
normalização o cerne do seu desenvolvimento (MISKOLCI, 2003, p. 93-94).
Normalidade e desvio social
Nesse período de efervescência intelectual, científica e social,
surgiram questionamentos acerca do que se pode ser considerado normal e do
que é o seu oposto, a anormalidade. Essa discussão se deu no contexto das
262
teorias médico-higienistas sobre a degeneração, tendo como referência a teoria
da evolução de Charles Darwin, considerada padrão epistemológico que se
tornou fonte explicativa até para as ciências humanas, como corrente do
darwinismo social, buscando o desenvolvimento dessas teorias para estender
suas consequências à esfera social (MISKOLCI, 2010a).
O processo de normalização se iniciou pela linguagem, ao criar a
palavra e o seu ideário, culminando com o estabelecimento de
comportamentos. Auguste Comte atribuiu à palavra uma conotação médica, ao
comparar o estado normal do organismo com o estado patológico. O significado
atual surgiu da interseção do conhecimento médico com o sociológico,
imbuídos do interesse em medir, classificar e disciplinar os indivíduos de modo
que estes se conformem aos padrões de normalidade (MISKOLCI,
2002/2003).
1A palavra normal deriva do termo latino norma , que designa o “que
não pende nem para a direita nem para a esquerda”, mantendo-se, portanto,
“num justo meio”. Ou seja, essa designação privilegia a noção de equilíbrio,
ressaltando que “é normal [...] aquilo que se encontra na maioria dos casos
[...]”, passando a ser até mesmo sinônimo de natural (LALANDE, 1993, p.
737-738).
Em lugar de pretender determinar de saída as relações do
estado normal de seu contrário com as forças vitais,
procuremos simplesmente algum sinal exterior,
imediatamente perceptível, mas objetivo, que nos permita
distinguir uma de outra essas duas ordens de fatos
(DURKHEIM, 1971, p. 47).
O surgimento da noção de normal ou normalidade engendra
naturalmente seu oposto, o anormal, o desviante. A “consolidação da ordem
social assentada numa tecnologia de poder que estabeleceu normas, as
naturalizou e fez com que todos os que não se enquadrassem nelas passassem
a ser classificados como desviantes” (MISKOLCI, 2010a, p. 3). Com isso “a
preocupação inevitável com os problemas criados pelo comportamento
anormal foi exacerbada ao ponto de criar uma divisão artificial entre o
funcionamento aberrante e o normal” (GLASSER, 1960, p. 15). Ou seja,
aqueles que se afastavam dos modelos preconizados pelos higienistas eram
criticados pela sociedade e identificados como portadores de doenças ou
problemas de saúde. “Todos os 'desvios' do modelo economicamente produtivo
e biologicamente reprodutivo da família burguesa eram classificados como
aberrações” (MISKOLCI, 2003, p. 94).
1 Etimologicamente, significa esquadria formada por duas peças perpendiculares (LALANDE, 1993).
263Adailson Moreiran. 07 | 2012 | p. 253-279
Nesse passo, a homossexualidade passou a ser vista como distúrbio,
anomalia, carecendo de cura, correção. “A sodomia [...] era um tipo de ato
interdito e o autor não passava de seu sujeito jurídico. O homossexual do século
XIX torna-se uma personagem: um passado, uma história, uma infância, um
caráter, uma forma de vida” (FOUCAULT, 1984a, p. 43). O indivíduo ganha
notoriedade a partir de sua sexualidade. “O sodomita era um reincidente, agora
o homossexual é uma espécie” (FOUCAULT, 1984a, p. 44).
A identidade real dos fenômenos vitais normais e
patológicos, aparentemente tão diferentes e aos quais a
experiência humana atribuiu valores opostos, tornou-se,
durante o século XIX, uma espécie de dogma,
cientificamente garantido, cuja extensão no campo da
filosofia e da psicologia parecia determinada pela
autoridade que os biólogos e os médicos lhe reconheciam
(CANGUILHEM, 2010, p. 13).
Dessa autoridade científica, sucedeu o poder disciplinar, meio de
intervenção e normalização social responsável pela criação do desvio. Surgiu
“um saber, técnicas, discursos 'científicos' se formam e se entrelaçam com a
prática do poder de punir” (FOUCAULT, 1987, p. 23). Em outras palavras, a
norma passou a existir como meio de disciplinamento dos comportamentos,
dos corpos, da sociedade. “A norma traz consigo ao mesmo tempo um princípio
de qualificação e um princípio de correção” (FOUCAULT, 2001, p. 62).
Qualifica porque descreve, nomeia, identifica e destaca o indivíduo no seio da
sociedade. Correção porque não tem a função de excluir, mas de corrigir, alterar
o que é desviante. A norma “está sempre ligada a uma técnica positiva de
intervenção e de transformação” (FOUCAULT, 2001, p. 62).
Durkheim (1971), estudando a distinção entre o normal e o
patológico, fruto desse dispositivo de poder disciplinador, chamou de “normais
os fatos que apresentam as formas mais gerais” e se referiu aos outros
fenômenos como mórbidos ou patológicos. A anormalidade emerge como
patologia.
Normalidade e patologia
No plano das ciências da mente (psicologia e psiquiatria), é bastante
complexa a distinção entre o normal e o patológico (FOUCAULT, 1984b). “No
decorrer da história, sempre foi motivo de controvérsia a definição do
funcionamento humano normal, sendo provavelmente até mais difícil que a
definição das grandes variações do comportamento anormal” (GLASSER,
1960, p. 15).
264
No âmbito da medicina, a normalidade se mostrou por oposição ao
anormal, que se confundiu com anômalo. A partir desse ponto, o estado normal
acabou por significar ausência de anomalia (LALANDE, 1993). É pelo normal
que se chega ao anormal. “A natureza (physis), tanto no homem como fora
dele, é harmonia e equilíbrio. A perturbação desse equilíbrio, dessa harmonia, é
a doença” (CANGUILHEM, 2010, p. 10). A doença é parte do anormal, é a
característica da anormalidade. “A doença difere da saúde, o patológico, do
normal, como uma qualidade difere de outra, quer pela presença ou ausência
de um princípio definido, quer pela reestruturação da totalidade orgânica”
(CANGUILHEM, 2010, p. 11).
Segundo essa linha de pensamento, “o tipo normal se confunde com o
tipo médio e [...] todo desvio com relação a este padrão de saúde é um
fenômeno mórbido” (DURKHEIM, 1971, p. 48). Melhor dizendo, “o ser
humano normal é aquele que funciona de forma eficiente, possui um certo grau
de felicidade e realiza algo de valor para si próprio, dentro das regras impostas
pela sociedade em que vive” (GLASSER, 1960, p. 15).
Assim, “o anormal emerge como desviante e a explicação de seu
desvio se assentará crescentemente em uma hipotética natureza corrompida, a
qual, na segunda metade do século XIX, será denominada degeneração”
(MISKOLCI, 2010a, p. 4).
Exposto dessa forma, entende-se que “a doença não está em alguma
parte do homem. Está em todo o homem e é toda ele” (CANGUILHEM, 2010,
p. 10). Isso implica dizer que não é possível definir que parte está em
desarmonia com o todo, já que o todo está comprometido.
O estudo das diferentes sociedades evidencia uma grande variação na
noção de normalidade, não existindo modelo que seja adequado a todos os
meios e épocas. “Até certo ponto, o que estabelece os limites do normal é o nível
de tolerância de uma sociedade – e estes limites são flutuantes” (CLOUTIER,
1967, p. 15) –, revelando a eleição de valores, ou seja, “fenômenos históricos e
socialmente criados passaram a ser encarados de forma naturalizada”
(MISKOLCI, 2010a, p. 3).
Com isso, surgiu uma tecnologia de poder social, o poder disciplinar,
que é aplicado aos desviantes (FOUCAULT, 1987, p. 150), já que “[...] a vida é,
de fato, uma atividade normativa” (CANGUILHEM, 2010, p. 86).
Esse mesmo poder disciplinador, tão empenhado em estabelecer as
nuances do anormal, irá definir os contornos da normalidade em todas as
esferas sociais, especialmente os papéis de gênero e sexualidade.
265Adailson Moreiran. 07 | 2012 | p. 253-279
266
Gênero e sexualidade no período entre o Império e a República
O final do século XIX viu emergir uma nova ordem da sexualidade na
sociedade brasileira, momento de profunda transformação nas relações de
poder e hierarquias de cunho não econômico (MISKOLCI, 2009).
O movimento higienista atribuiu à sexualidade papel relevante, ao
disciplinar comportamentos individuais e coletivos. Foucault (1984) observa
que, na Europa, a partir do século XVIII, várias áreas e disciplinas passaram a
tratar a sexualidade de modo diferente daquele adotado pela Igreja. A Medicina
se preocupava com a sexualidade feminina, a Pedagogia passou a estudar a
sexualidade das crianças e a Economia levou em conta a demografia,
ocupando-se com o planejamento da natalidade etc.
A sociedade imperial era organizada pelo modelo patriarcal, “em que o
pai exercia total poder sobre a família, controlando todas as suas atividades,
desde a esposa e filhos até os criados e agregados” (OLIVA, 2002, p. 31).
Gradativamente, esse modelo foi sendo substituído pela família burguesa, com
uma crescente interferência do discurso médico, que
buscou reduzir o poder do velho pater famílias e sublinhar o
papel da mãe como responsável pela prole e pelos cuidados
privados da unidade doméstica. Não se tratava de
incentivar a emancipação feminina, antes de reduzir o
poder do patriarca ao mesmo tempo que se estabelecia, em
outros termos, a submissão da mulher e dos filhos a uma
estrutura familiar diversa da que prevalecera desde a
colonização. Nessa perspectiva, concluiu-se que nossa
sociedade teria passado por um processo de
aburguesamento consolidado na família nuclear
monogâmica (MISKOLCI, 2009, p. 551).
Foi nesse contexto que se deu a emergência do dispositivo da
sexualidade (FOUCAULT, 1984a), ou seja, do dispositivo histórico de poder,
característico da nova ordem social. Sobre a sexualidade, Foucault (1984a, p.
100) aponta:
Não se deve concebê-la como uma espécie de dado da
natureza que o poder é tentado a pôr em xeque, ou como
um domínio obscuro que o saber tentaria, pouco a pouco,
desvelar. A sexualidade é o nome que se pode dar a um
dispositivo histórico: não à realidade subterrânea que se
apreende com dificuldade, mas à grande rede da superfície
em que a estimulação dos corpos, a intensificação dos
prazeres, a incitação ao discurso, a formação dos
conhecimentos, o reforço dos controles e das resistências,
encadeiam-se uns aos outros, segundo algumas grandes
estratégias de saber e de poder.
Contudo, essas mudanças que se operaram no século XIX não se referiam
a todas as práticas sexuais. Atendendo às imposições do dispositivo da sexualidade,
vários segmentos sociais foram arrolados como pervertidos, degenerados e
desviantes, já que ameaçavam o projeto de normalização médica e higienista. Da
imensa gama de práticas sexuais, “salvou-se apenas a heterossexualidade como
única prática normal e funcional” (QUEIROZ, 1992, p. 39).
A homossexualidade passou a ser encarada como sinal de
degenerescência, surgindo um julgamento moral, fruto de discursos religiosos,
jurídicos e médicos. Todos esses discursos serviram para criar o estereótipo
homossexual, como a “figura da antinorma ou do desvio do ideal, representada
pelos que não podem, não sabem ou não querem seguir as injunções ideais”
(COSTA, 1992, p. 19).
Arrogados sobre esse poder, normatizado pelos padrões médico-
higienistas, “outorga-se o poder de atacar ou destruir física ou moralmente os
que dela divergem ou simplesmente se diferenciam” (COSTA, 1992, p. 19).
Doutrinas e teorias dessa ordem produziram “um movimento centrífugo
em relação à monogamia heterossexual” (FOUCAULT, 1984a, p. 39),
resultando no casal legítimo, que pratica uma sexualidade regular. Os demais,
aqueles que praticam a sexualidade irregular, inscrevem-se no universo da
ilegalidade e da perversão (QUEIROZ, 1992, p. 41). “É extensa a aproximação
entre médicos e aparato jurídico-policial, cabendo à polícia capturar
homossexuais considerados delinquentes e entregá-los a pesquisadores do
campo da medicina para 'estudos” (GREEN; POLITO, 2006, p. 21).
Mas quando para estes desgraçados se levantam
implacavelmente a severidade da justiça e a censura da
opinião, é que a ciência aparece, austera, calma, fria,
examinando se há realmente uma alma estragada e
corrompida, um perverso a punir, ou se este ato por ele
praticado é uma manifestação da degenerescência mental
ou nervosa, um impulso irresistível de vontade sem energia,
sem ter mais centros inibitórios (CASTRO, 1943, p. 6).
Essa fala do Dr. Viveiros de Castro é o reflexo do pensamento científico
do período, eivado de preconceito e ainda longe das concepções atuais.
Toda essa ideologia, permeada pelo dispositivo sexual de poder
disciplinador que nega legitimidade, é encontrada no texto de Adolfo Caminha,
267Adailson Moreiran. 07 | 2012 | p. 253-279
268
quando ele induz seu personagem principal a dramas de consciência
carregados de culpa: “como é que se compreendia o amor, o desejo da posse
animal entre duas pessoas do mesmo sexo, entre dois homens?” (CAMINHA,
1999, p. 29), ou ainda quando narra a primeira relação sexual entre Amaro e
Aleixo: “e consumou-se o delito contra a natureza” (CAMINHA, 1999, p. 38).
Embora o discurso seja rude e pouco encorajador, face às reações e
consequências sociais e legais, a prática homossexual era algo amplamente
difundido nesse período como ações marginalizadas, já que o que não é aceito é
reservado ao silêncio, à obscuridade, ao anonimato.
Em vários lugares públicos, como parques e praças, os homens que
apreciavam relações sexuais com outros homens encontravam-se (GREEN,
2000). “O largo do Rocio foi antigamente célebre por ser o lugar onde à noite
reuniam-se os pederastas passivos à espera de quem os desejasse” (CASTRO,
1943, p. 221-222).
Existiam lugares que eram bastante frequentados por homossexuais,
tais como portas e porões dos teatros, em dias de espetáculos, cafés,
restaurantes, bilhares, botequins, portarias de conventos, escadarias de
igrejas, casas de banho, além dos já citados parques e praças (SOARES,
1992), o que dá uma ideia da ampla rede de relações homossexuais que existia
nesse período.
A situação ficou tão comum, e isso causava estranheza e aversão às
classes médica, jurídica e religiosa, que foi necessário importar prostitutas da
Europa, na intenção de conter as práticas homossexuais, como um mal menor
(SOARES, 1992).
Igualmente difundidas eram as práticas homossexuais na Marinha
brasileira, como relata Adolfo Caminha em sua obra, por experiência, já que ele
próprio serviu na Marinha, de 1885 a 1889: “[...] alguma coisa dentro de si
revoltava-se contra semelhante imoralidade que outros de categoria superior
praticavam quase todas as noites ali mesmo sobre o convés [...]” (CAMINHA,
1999, p. 30).As relações homossexuais na Marinha eram generalizadas e
chamadas de amor de marinheiro. Essa relação “não se dava entre iguais,
envolvia relação de hierarquia funcional, hierarquia de idade, hierarquia de
experiência”, apesar de serem consideradas falta grave e punidas com
chibatadas (CARVALHO, 1995, p. 79-80).
Além da Marinha, no Exército as práticas homossexuais também eram
muito difundidas (SOARES, 1992). Embora tais práticas acontecessem mais
frequentemente em comunidades fechadas, como Exército, Marinha,
conventos e colégios internos, em função do distanciamento social e da
reclusão de pessoas do mesmo sexo, sua ocorrência não está circunscrita a
esses ambientes. “[...] a prática da sodomia, ou do 'uranismo', também era
desenvolvida em ambientes refinados e intelectuais, como o corpo diplomático,
o magistério, o alto funcionalismo e o meio dos literatos e poetas [...]”
(SOARES, 1992, p. 76).
De qualquer forma, independentemente de sua origem e
circunstância, a homossexualidade era sempre vista com horror e entendida
como patologia e desvio, o que conforma com a visão heteronormativa da
sociedade, não havendo espaço para outra forma de vida.
A ordem heteronormativa da sociedade brasileira
As sociedades de todos os tempos foram organizadas a partir das
instituições familiares. É na família que a sociedade se perpetua. “A família é
entidade sociológica que independe do tempo e do espaço” (VENOSA, 2003,
p. 37). A família é o elemento que faz a mediação entre o indivíduo e sociedade,
comprometendo-se com a manutenção da ordem social (MELLO, 2005). A
família, entendida com instituição, “é o entrelaçamento de práticas sociais
articuladas em duradouro complexo de relações, costumes, sentimentos e
através do qual se exercem controles sociais e se satisfazem necessidades e
desejos das pessoas conviventes [...] Ela não se forma de repente. É antes
resultado de longo processo de acumulação de experiências e materiais”
(LIMA, 1983, p. 15).
Na antiguidade, a família se unia por vínculos mais poderosos que os
de nascimento, sendo muito mais um núcleo religioso do que uma
associação natural entre pessoas com o intuito comum de convivência
(COULANGES, 1999).
Durante a maior parte da história humana, a família não se constituiu
por vínculos de afeto. Esses vínculos diziam respeito à religião, às leis e à
propriedade econômica (VENOSA, 2003). É dessa forma que se instituiu,
desde tempos imemoriais, o casamento. “Sociologicamente falando,
casamento é o ato pelo qual homem e mulher se associam para fundar a
família, segundo o costume e a lei” (LIMA, 1983, p. 17). A instituição do
casamento assenta sua legitimidade no plano jurídico ao disciplinar os ritos
necessários para a sua validação social.
A partir do século XV até o XVIII, desenvolveu-se uma nova forma de
sociabilidade familiar, dando origem ao sentimento de família (ARIÈS, 1981),
269Adailson Moreiran. 07 | 2012 | p. 253-279
270
que formou a família nuclear burguesa. Foi nesse momento histórico que se deu
a construção da homossexualidade como categoria sociopsicológica e do
homossexual como identidade médico-psiquiátrica (MELLO, 2005, p. 42-43).
Interessada na reprodução crescente da força de trabalho e
no aumento do lucro, a ordem burguesa procurou organizar
seu sistema sobre a aliança monogâmica e heterossexual,
sobre as grandes famílias e sobre as relações de dependência
entre as figuras familiares (QUEIROZ, 1992, p. 39).
Com esse intuito, foram se instaurando papéis sexuais bem
delimitados: masculinidade e feminilidade, com suas respectivas funções e
identificações em paternidade e maternidade. Nessa sociedade, não havia
lugar para os que dessa norma se desviassem. A heterossexualidade se instalou
como norma, como padrão de comportamento e de julgamento.
Assim, “a heteronormatividade expressa as expectativas, as
demandas e as obrigações sociais que derivam do pressuposto da
heterossexualidade como natural, portanto, fundamento da sociedade”
(MISKOLCI, 2010b, p. 5). É a naturalização de uma face do comportamento
humano, como se somente ela existisse. Elimina ou, pelo menos, cerceia,
persegue e sufoca todas as demais.
Por heteronormatividade entendemos aquelas instituições,
estruturas de compreensão e orientações práticas que não
apenas fazem com que a heterossexualidade pareça
coerente – ou seja, organizada como sexualidade – mas
também que seja privilegiada. Sua ocorrência é sempre
provisional e seu privilégio pode adotar várias formas (que
às vezes são contraditórias): passa desapercebida como
linguagem básica. Sobre aspectos sociais e pessoais; é
percebida como um estado natural; também se projeta
como um objetivo ideal ou moral (BERLANT; WARNER
apud MISKOLCI, 2010b, p. 5).
Isso equivale a dizer que a sociedade se organizou a partir da
heterossexualidade como postura moralmente correta, mais próxima das
manifestações da natureza. Essa naturalidade privilegia os desse grupo em
detrimento dos demais grupos, que são percebidos como anomalias ou
degenerados, desviantes e perversos.
Com isso, a materialidade do corpo determina o papel social que
aquele indivíduo deve desempenhar. Do menino, espera-se que desenvolva
hábitos e comportamentos masculinos e, da menina, hábitos e
comportamentos femininos. Qualquer desvio desse padrão é logo entendido
como patologia, pela simples oposição ou contraposição, já que “toda doença
tem uma função normal correspondente da qual ela é apenas a expressão
perturbada, exagerada, diminuída ou anulada” (CANGUILHEM, 2010, p. 35).
O resultado desse posicionamento social é a compreensão dos padrões
de comportamento sexual a partir de uma heterossexualidade compulsória. “A
heterossexualidade compulsória é instalada no gênero através da produção de
tabus contra a homossexualidade, resultando numa falsa coerência de gêneros
aparentemente estáveis vinculados aos sexos biológicos apropriados”
(SPARGO, 2006, p. 50). Ou seja, tem por objetivo “formar a todos para serem
heterossexuais ou organizarem suas vidas a partir do modelo supostamente
coerente, superior e 'natural' da heterossexualidade” (MISKOLCI, 2010b, p. 6).
É nesse contexto que a homossexualidade assume papel marginal no
universo das sexualidades. Como tal, será representada em todos os segmentos
da atividade humana, especialmente na literatura, que sempre retratou os
dramas humanos por óptica privilegiada.
A literatura como fonte histórica
A literatura pode ser entendida como uma espécie de consciência
social, mantendo estreitas ligações entre obra, autor e sociedade da qual se
origina (CORONEL, 2008), tendo como função, além de entreter, divertir e
informar, ser porta-voz daqueles segmentos que nem sempre são lembrados
pelos meios oficiais.
Ezra Pound (1977, p. 32) define literatura como “linguagem
carregada de significado”. Esse significado se expõe quando as personagens
ganham espaço e voz para expressar sentimentos, os quais de outra forma
estariam mudos aos ouvidos sociais. É assim que Amaro pode expressar seus
sentimentos em alguns trechos da obra, como: quando, após o sexo com
Aleixo, pensa que só “agora compreendia nitidamente que só no homem, no
próprio homem, ele podia encontrar aquilo que debalde procurou nas
mulheres” (CAMINHA, 1999, p. 40); ao contemplar seu amado “[...] rugiam
desejos de touro ao pressentir a fêmea [...] todo ele vibrava, demorando-se na
idolatria pagã daquela nudez sensual como um fetiche diante de um símbolo de
ouro ou como um artista diante duma obra-prima. Ignorante e grosseiro, sentia-
se, contudo, abalado até os nervos mais recônditos [...]” (CAMINHA, 1999, p.
49); ao refletir sobre seu sentimento: “sua amizade ao grumete já não era
lúbrica e ardente: mudara-se num sentimento calmo, numa afeição comum,
271Adailson Moreiran. 07 | 2012 | p. 253-279
272
sem estas febris nem zelos de amante apaixonado” (CAMINHA, 1999, p. 51).
É o humano se fazendo presente por meio da literatura.
Várias são as concepções e interpretações desse vasto universo da
ficção. “É próprio da literatura a capacidade de atingir territórios inconfessáveis
e sombrios da experiência humana, representando-os e recriando-os na
matéria palpável da linguagem” (BULHÕES, 2003, p. 11), criando e recriando
imaginariamente a realidade palpável da sociedade.
A literatura é um campo privilegiado para se acessar um verdadeiro
arquivo sobre questões polêmicas, especialmente as referentes ao universo da
vida privada (MISKOLCI, 2009, p. 548). “É exatamente por dar forma de uma
maneira muito peculiar a questões que provêm da conjuntura maior na qual se
insere, que a obra literária finca suas raízes no solo da História” (CORONEL,
2008, p. 2).
Com isso, os Estudos Culturais, enquanto afeitos às “formas históricas
da consciência ou da subjetividade” (JOHNSON, 1999, p. 25), valorizaram a
pesquisa histórica em literatura, entendendo que é possível reconhecer e
construir um arquivo internamente estruturado a partir da literatura, que retrata
e é parte de certas experiências históricas. A partir desse universo privilegiado,
é possível a reconstituição de histórias silenciadas (ou história dos oprimidos),
como as de mulheres, negros, homossexuais etc. (MISKOLCI, 2009).
Joan W. Scott (1998, p. 297-298) faz uma critica à história dos
oprimidos ao mudar a perspectiva para privilegiar as experiências que criaram
os sujeitos silenciados/oprimidos, construindo a história da diferença,
entendida como “a história da designação do outro, da atribuição de
características que distinguem categorias de pessoas a partir de uma norma
presumida”, ou seja, pela heteronormatividade, excluindo todos aqueles
considerados desviantes.
Respondendo a esse padrão social da época, a literatura de orientação
naturalista cumpriu a função de dissecar cirurgicamente hábitos, costumes e
práticas sociais consideradas desviantes, reforçando as diferenças enquanto
patologias sociais.
O naturalismo foi uma escola literária, de cunho científico e
racionalista, que se preocupava em difundir as teorias deterministas e
evolucionistas.
As teorias deterministas – formuladas a partir da obra de Hippolyte
Taine – preocuparam-se em estudar as causas que orientavam os fatos, físicos
ou morais, entendendo como causas: a raça, o meio e o momento (QUEIROZ,
1992). “Para os naturalistas (e Adolfo Caminha foi um deles), o homem é um
animal cujo destino é determinado pela hereditariedade, pelo efeito de seu
ambiente e pelas pressões do momento” (CAMPEDELLI, 1999, p. 3).
As teorias evolucionistas tiveram como seu principal divulgador
Herbert Spencer, que defendia a livre concorrência e a competição como forma
de contribuir para a evolução e o aperfeiçoamento da ordem social (QUEIROZ,
1992, p. 63).
A partir dessa formulação, as “patologias sociais” foram
assimiladas aos discursos médico, jurídico e literário,
arrebanhando os vários segmentos tidos como “desviantes”
(prostitutas, neuróticos, libertinos, homossexuais,
histéricas, loucos etc.) e tentando enquadrá-los em
modelos passíveis de manipulação e controle (QUEIROZ,
1992, p. 64).
Retratados pela ótica naturalista, que possui como característica
básica expor objetivamente a realidade social tal qual ela se apresenta, os
escritos naturalistas buscaram vínculo entre as práticas médicas e seu enredo,
filtrando a realidade por seu ponto de vista higienista (QUEIROZ, 1992).
A obra Bom-Crioulo (CAMINHA, 1999) veio à luz em 1895,
retratando de forma bastante realista a relação entre dois marinheiros.
O romance aborda a vida de Amaro, a personagem que dá título à obra,
escravo fugitivo que busca refúgio na Marinha brasileira, quando conhece
Aleixo, jovem e delicado grumete, de pele clara e olhos azuis, por quem se
apaixona.
Ao desembarcarem, passam a viver juntos, num relacionamento
sexual livre e desinibido. Porém, a história termina em tragédia, com Amaro
matando seu amante num acesso de ódio passional, após intensa tortura
psicológica, fruto de ciúme doentio e descontrolado que evidencia a desmedida
humana.
Trata-se de uma das primeiras obras a tratar explicitamente da
homossexualidade. “Além disso, é notável como Caminha descreve o
homoerotismo com uma ousada franqueza” (GREEN, 2000, p. 73).
O romance não é uma obra simples; envolve uma complexidade de
elementos, tais como raça, sexualidade, concepções sociais, organização e
concepções políticas no período de transição entre o Império e a República,
273Adailson Moreiran. 07 | 2012 | p. 253-279
momento de grandes transformações sociais. “Quando Caminha escreveu Bom-
Crioulo, haviam transcorrido apenas sete anos desde que fora abolida a
escravidão no Brasil, em 1888, e seis desde que os líderes militares depuseram a
monarquia e estabeleceram um governo republicano” (GREEN, 2000, p. 73-74).
Com tantas mudanças sociais acontecendo, a própria sociedade se
torna palco para a emergência de novas formas de vida e sexualidades, para
que vozes silenciadas se façam presentes, ainda que contrariando os cânones.
Desde o seu surgimento, “houve quem enxergasse em Bom-Crioulo
um libelo a favor da causa homossexual. Houve quem visse o contrário”. Os
entendimentos variam, porque as análises sempre partem de pressupostos
pessoais e diferenciados. “Ora, o narrador nem defende nem condena. Antes,
mantém-se naquela posição de frieza tão característica da estética naturalista
[...]” (CAMPEDELLI, 1999, p. 5).
A obra dá voz a personagens que, de outro modo, somente
apareceriam nas crônicas policial, jurídica e médica. Apesar de se evidenciar
essas vozes, ainda é a voz do oprimido, do indivíduo que é sacrificado e
condenado a uma vida de renúncia e marginalidade, de ausência de liberdade,
que “deriva da circunscrição da homossexualidade a espaços físicos de
decadência, ruína e mistério” (MENDES, 2010, p. 59).
Fica evidente, na obra, que “é pela anomalia que o ser humano se
destaca do todo formado pelos homens e pela vida. É ela que nos revela o sentido
de uma maneira de ser inteiramente 'singular'” (CANGUILHEM, 2010, p. 79).
Como evidenciou Leonardo Mendes, a narrativa gótica da obra é uma
estratégia de ataque à homossexualidade: “é justamente o gótico que, ao
desestabilizar o naturalismo, o cientificismo e o positivismo típicos da literatura
do período, permite que se leia o romance como uma narrativa fundadora da
literatura gay brasileira” (MENDES, 2010, p. 68).
É uma voz que surge, em meio a tantas dissonâncias, para dizer que
existe, mesmo quando essa existência é incômoda e marginalizada.
Conclusão
Bom-Crioulo chocou a sociedade da época pela temática
(homossexualidade) e pela forma crua como as cenas são retratadas.
As relações afetivas e sexuais das duas personagens principais são
apresentadas sem meias-palavras. Nada fica subentendido ou velado, o que,
pelo visto, era a intenção do autor.
274
Os tempos são outros, já é possível dar voz a personagens gays,
fazendo-os falar de suas dores, angústias e confusões, mostrando seu lado
humano. Contudo, a sociedade ainda não está preparada para a aceitação de
uma igualdade que será pleiteada no futuro por outras gerações de
homossexuais, pautado pela premissa dos direitos humanos.
No tempo do romance, “a literatura médica se encarregava de associar
a homossexualidade à loucura e ao crime” (MENDES, 2000, p. 171), sendo
esse o destino reservado às personagens.
275Adailson Moreiran. 07 | 2012 | p. 253-279
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279Adailson Moreiran. 07 | 2012 | p. 253-279
280
13
De vigilias y sueños: los dibujos eróticos de Helga Montalván
Vigils and dreams: the erotic drawings of Helga Montalván
Francisco Zaragoza ZaldívarProfessor de Literatura Espanhola e Hispano-americana da UFRN
franciscozar@gmail.com
282
Resumen
Este ensayo analiza los dibujos eróticos de la serie El sueño de la artista plástica
cubana Helga Montalván Díaz y relaciona su práctica como creadora con su
labor como curadora y como crítica de arte en el contexto nacional cubano.
Palabras clave: Helga Montalván Díaz. Dibujos eróticos. Artes plásticas. Cuba
Abstract
The erotic drawings of the Cuban painter Helga Montalván Díaz are analyzed in
this essay in order to establish their relationship with her work as critic.
Keywords: Helga Montalván Díaz. Erotic drawings. Cuban arts.
La obra plástica de Helga Montalván causa una sorpresa parecida a la
que nos ocasionan aquellas hijas tímidas que se demoran en hablar y un buen
día nos dejan atónitos por la inesperada elocuencia y complejidad de sus frases.
Más conocida en el medio artístico cubano por su labor como curadora
y como crítica, Helga Montalván aporta con su trabajo como dibujante una
nueva evidencia en contra de la inveterada suspicacia de los creadores contra
los críticos. Huelga decir que siempre ha sido discutible el desdén de los
primeros por aquellos a quienes consideran los benjamines de la familia,
dedicados a esa supuesta labor secundaria que sería la valoración del trabajo
ajeno. Los cuadernos de Leonardo da Vinci, tanto como los postulados teóricos
de Kandinsky o de Gropius, revelan que en muchos artistas de primera talla se
unieron desde el comienzo el esteta, el crítico y el creador. El sensible Oscar
Wilde, a un tiempo crítico y cuentista, llegó a hacer de esto una tesis en El
crítico como artista.
Lo cierto, al menos en el caso de la Montalván, es que la calidad y la
complejidad de su proyecto artístico emula con, y hasta aventaja, a la de varios
de los artistas sobre los que ella misma se ocupa en sus ensayos, palabras de
catálogos, reseñas de exposiciones y artículos.
Que conste que la producción plástica de Helga Montalván es todavía
escasa: pero la escasez es compensada con creces por la agudeza y la
singularidad de las problemáticas que moviliza y de las técnicas a las que acude.
Los dibujos de la serie El sueño ilustran de forma diáfana tales
problemáticas. Se trata de varias piezas de formato pequeño, realizadas con
lápiz de acuarela sobre cartulina. Algunas aluden directamente al conocido
cuadro El sueño del pintor francés Gustave Courbet. Otras se inscriben en la ya
larga tradición del desnudo femenino y de la figura de la mujer yacente.
Como en la obra de Courbet, en todas estas piezas de Helga está
presente el tema del sueño erótico vivido por personajes femeninos. También
comparten con el cuadro del francés el tratamiento de subtemas de carácter
relativamente prohibido, como el homoerotismo y la masturbación en la mujer,
así como la ambigüedad en el abordaje de la situación representada.
Sin embargo, por la angulosidad y la dureza de ciertos trazos, el
peculiar tratamiento del color y de las luces, por los volúmenes con los que se
conforman los cuerpos, así como por la presencia de ciertos motivos formales
recurrentes en toda la serie – por ejemplo, la profusión de círculos concéntricos
sobre un fondo azul o dorado – los dibujos de Helga se inscriben en la estética
de las vanguardias artísticas del siglo XX.
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Es evidente en varios el homenaje a Gustav Klimt, a través de la
referencia a la lluvia dorada en el cuadro en que Danae realiza la cópula con
Zeus. Sabemos que más que el mito clásico, esa lluvia de oro refiere la
experiencia del orgasmo. Es evidente también la cita, acaso con intención
irónica, de los modos de trabajar los colores acuñados por el Expresionismo.
Mario Vargas Llosa, a propósito de Flaubert, dijo alguna vez que la
novela era un género de carácter amoral. En realidad podríamos decir lo mismo
de una parte esencial del acervo de obras hoy consideradas canónicas en las
más variadas manifestaciones artísticas de la cultura judeocristiana. En su
trabajo como crítica y curadora, así como en los dibujos de la serie El sueño,
Helga Montalván revela un interés sostenido por ciertas propuestas artísticas
que versan sobre temas de dudosa moralidad.
Algo lógico, dada su condición de graduada de la carrera de Historia
del Arte, es el diálogo que establece con la tradición plástica universal en todo lo
que concierne al tratamiento de estos temas. Pero, para no desdecir de la
importancia que Raymond Williams atribuye en Cultura y sociedad a los grupos
y formaciones intelectuales en la configuración de la obra de los creadores
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Helga Montalván, De la serie Sueños obra 2, Serie Sueños, (2009)
artísticos, Helga Montalván dialoga al mismo tiempo con la producción de los
artistas de Matanzas y de la isla, sus coterráneos.
Es así, por ejemplo, que con frecuencia se detiene en el examen de
obras de artistas del ámbito nacional que postulan la transgresión de los
cánones políticos vigentes en el contexto en el que Helga se desempeña.
También, aunque con menos frecuencia, repara en la transgresión de los
cánones que orientan el comportamiento sexual. De ello dan fe algunos de sus
ensayos sobre la producción de Rolando Estévez, de Abigaíl González, de
Sheyla Castellanos y de Carlos José García reunidos en el libro Las apariencias
y el límite.
Su labor como crítica, sin embargo, no se restringe tan solo a una
indagación y a una caracterización del quehacer ajeno. También le permite
posicionar, de modo más o menos subrepticio, su propio proyecto creador. Cada
uno de los artistas antes mencionados representa tomas de posición en el
campo artístico cubano y matancero con las que Helga se identifica en parte, y
de las que disiente también en parte, inventándose una posición propia que
capitaliza lo mejor de las asunciones de sus pares y al mismo tiempo supera
algunas de sus deficiencias conceptuales o formales.
Conviene detenernos sobre este asunto.
Rolando Estévez, “el aro es color violeta, el balde es color de fuego...”
La emblemática contemporánea nos habituó tanto a los códigos de
colores que ya no somos capaces de ver la estricta convencionalidad de las
banderas y de otras enseñas. Que el rojo de la bandera cubana represente la
sangre derramada en las luchas independentistas no es menos arbitrario que
proclamar que es también síntoma de la irascibilidad del temperamento
nacional como consecuencia del clima tórrido o de la prolongada escasez.
Rolando Estévez parece haber descubierto el placer del fundador de
naciones al instituir un código emancipador basado en el color morado. Como
un Miguel Teúrbe Tolón de la liberación sexual, postula que el morado, color
formado por la mezcla del azul y el rojo, es tan válido como los dos anteriores.
Un color surgido de la alteridad, de colores otros: un sexo alternativo.
(Honestamente, estoy convencido de que una teoría del rosadito sería
comprendida con mucha más rapidez por su público, esté su público de
acuerdo o no con él).
Lo curioso de Estévez, sin embargo, es el empaque y la gravedad del
tono de su proclama. Nunca he entendido que algo tan divertido como la
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libertad haya sido tan poco asociado en la tradición intelectual cubana con lo
cómico y lo festivo (no nos llamemos a engaño, la libertad podrá ser gratificante
y divertida, pero conquistarla, como nos recuerda Maceo, cuesta caro y exige
abrumadoras responsabilidades).
En un reciente performance, el artista oficia como maestro de
ceremonias decimonónico. Con gestos lentos y parsimoniosos, como en un
ritual iniciático, cubre los cuerpos desnudos de dos modelos – de sexo
masculino y femenino respectivamente – de tinta azul y roja. Luego los conduce
hacia una pared forrada de un material al que la tinta puede adherirse. Como
tipos móviles vivientes, nuestro Estévez Gutenberg proyecta a los modelos
contra el soporte elegido, y acuña, imprime, la tercera posibilidad: alegorías
moradas o violetas que remedan la forma humana, que recuerdan vagamente
al hermafrodita platónico o al más terrenal hermafrodita del Satiricón de Fellini.
Por si la sucesión de acciones no fuera suficientemente explícita, el
autor/actor enuncia un texto de tipo ilustrativo en el que intenta orientar la
interpretación que de lo visto hagan sus receptores.
Con la devoción de una amiga, Helga Montalván justifica, en un ensayo
dedicado a Estévez, esta disonancia entre fines y medios, entre intención
discursiva y materiales artísticos. Estévez, nos dice, sin dejar de ser
contemporáneo, es a un tiempo renacentista y barroco: procede de la escuela
del diseño y del teatro, de la cultura gremial.
Inferimos que en Estévez se prolonga esa mentalidad, esa forma del
imaginario medieval, que reproduce las jerarquías feudales en las relaciones
entre aprendiz y maestro; una mentalidad que aún no conoce la total autonomía
del campo artístico con base en las anónimas sanciones del mercado de arte;
que tiene que vérselas con el gusto y los intereses de poderosos mecenas, pues
su propia existencia solo es posible a través de sus encargos, por lo que acaba
reproduciendo sus puntos de vista monológicos y sus expectativas señoriales.
No culpemos a Estévez por ostentar atributos que no le son exclusivos.
En la cultura cubana, José Lezama Lima encarna mejor que nadie esta actitud a
un tiempo irreverente y señorial. Lezama hizo lo imposible por conciliar
catolicismo y homosexualidad, y aún hoy su tentativa escandalizaría a la Iglesia
Católica. Creo que ningún homosexual contemporáneo acudiría al
neoplatonismo de las tesis lezamianas en Paradiso para reivindicar el derecho a
vivir su sexualidad como le dé la gana: se ha ido aprendiendo que no es
necesario justificarse para ser lo que se es.
Sin embargo, el neoplatonismo de Lezama, y de hecho todo su sistema
poético, es coherente con las formas artística por las que optó. Paradiso y
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Oppiano Licario reproducen la estructura tradicional de las novelas de
aprendizaje y de tesis, y entre otras cosas, ambas asimilan de la novela
contemporánea ciertos procedimientos propios de los géneros poéticos
vanguardistas importados a la prosa, con el fin de acentuar la expresividad del
texto, así como una ingente propensión a la autorreferencia, a la autotelia.
En cualquier caso, lo que representa Oppiano Licario en cuanto
personaje para José Cemí, es en lo que Lezama se ha acabado convirtiendo
para muchos intelectuales de nuestra patria: un maestro. (Parece que a Lezama
le gustaba ese rol. Un maestro cubano menos ingenuo, ya da igual si más o
menos culpable que Lezama, se cuidaría de anunciar por ahí su profesión. Pues
donde hay maestros, llueven trompetillas).
A nivel local, en la ciudad de Matanzas, no hay dudas de que el maestro
es Estévez. El maestro de ceremonias...
En efecto, toda una zona de la obra plástica de Estévez está investida
de ese halo ritual, del aura, propia de los graves ceremoniales, sean estos
ceremoniales asambleas partidistas u oficios religiosos.
Helga Montalván, una vez más con la condescendencia que solo se
reserva a los amigos, insiste en que Estévez amaga un gesto contemporáneo al
realizar sus obras usando materiales perecederos como papel, cartulina,
vegetales, cabellos, fibras. Algo que suena a arte matérico, a material art (no sé
por qué, pero pienso en Madonna). Omite decir, sin embargo, que la inmensa
mayoría de estas obras peca de un trascendentalismo majadero. Todo en
Estévez recuerda a una madre que nos instruye y amonesta... regaños
dulzones, reproches que toleramos sonrientes. Estévez sabrá que los
materiales que usa pronto serán polvo. No importa: “polvo serán, mas polvo
enamorado”.
No alimenta menos nuestras reservas la visible recurrencia de ciertos
motivos patriarcales en la obra plástica del consagrado artista local. El yarey de
los sombreros, el humo del tabaco, el mimbre de los sillones... No es para
menos. La raíz de la cultura renacentista y barroca de la que Estévez se nutre
está en la antigüedad clásica, en el pasado griego. Pueblos patriarcales, donde
los roles femeninos se dividían en los de esposa y de esclava, y donde solo las
hetairas llegaban a jugar un papel similar al del amigo, único par real. El
gineceo para las mujeres, y ya está bien... En el fondo, un puñado de pueblitos
misóginos, como cualquiera de nuestros pueblos de campo.
Si queremos comprender el por qué de la persistencia, en pleno siglo
XXI, de esa tan peculiar vocación de maestro, de esa proyección
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cuasipedagógica en un artista plástico, tenemos que considerar el asunto
dentro del marco teórico de la historia de las mentalidades. Larga duración...
En Estévez, tanto como antaño en Lezama, un graduado de la carrera de
Derecho, vemos otro representante de esa figura peculiar de la cultura
latinoamericana que Ángel Rama describe en La ciudad letrada: el letrado.
Este tipo social, que en los albores de la sociedad moderna nace en el
seno de la nobleza de Estado, sigue vivo en nuestras coordenadas culturales.
Fueron secretarios y consejeros de Reyes, como Quevedo; juristas y abogados;
científicos, maestros y preceptores; pintores académicos, músicos, poetas
cortesanos como Sor Juana Inés de la Cruz. Sin ser necesariamente miembros
legítimos ni prominentes del campo del poder, se diferenciaban de las grandes
masas dominadas de indios evangelizados, de negros esclavos y de criollos
pobres de ciudades y campos, por dedicarse en buena medida o exclusivamente
a actividades intelectuales. El trabajo manual, el sudor, la vida servil, para los
otros. El ocio, el crear y el pensar, es cosa de patricios y nobles. (No se infiera de
lo que digo que el autor de estas líneas siente alguna preferencia particular por el
nada bucólico marabú o por la grácil caña de azúcar).
Sea como sea, el arte contemporáneo encontró otras formas y medios
para expresar las mismas ideas de emancipación y de aceptación de la
diversidad de preferencias sexuales que defiende Estévez en parte de su obra
actual. Estas formas más bien subvierten las figuras de autoridad patriarcal y
sus graves ceremoniales, sea mediante su negación, sea mediante su parodia,
cuando no se dan, simplemente, el derecho a representar sin patetismo lo que
hasta no hace mucho estaba relegado a los márgenes del discurso artístico y de
la vida social.
Basta recordar dos películas para entender lo que digo. Una es una 1producción de los años setenta, The Rocky Horror Picture Show , que aún nos
fascina por todo su humor glam, su música y la maquillada perversión de sus
personajes, entre los que sobresale, joven y bella, la actriz Susan Sarandon. Otra 2es Las aventuras de Priscilla, reina del desierto . Varias metáforas zoológicas en
las que insólitos reptiles australianos se yuxtaponen a las alegres drag queens
protagónicas, refuerzan la tesis esencial de la película: hay de todo en la viña del
señor, y hasta las más raras especies tienen derecho a la existencia.
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1 Título de la película: The Rocky Horror Picture Show. Año: 1975. Dirección: Jim Sharman. País: Reino Unido/Estados Unidos. Duración: 100 minutos. Género: Comedia musical.2 Título de la película: Las aventuras de Priscilla, reina del desierto. Año: 1994. Dirección: Stephan Elliott. País: Australia. Duración: 104 minutos. Género: Comedia.
Carlos José García: el arte de ser Loscar Cejo o por una cultura de los
anagramas visuales
En el contexto abordado, que es en el que Helga Montalván se
proyecta, es precisamente Carlos José García quien lleva a cabo una inversión
similar a la que practican las películas arriba citadas.
Dada su formación como diseñador gráfico, y su obvia familiaridad con
el discurso visual de los media – revistas, historietas, carteles, sitios web,
vallas, embalajes, video y cine – Carlos maneja con eficacia incomparable los
motivos de los que el pop art se apropió hace ya medio siglo.
Los colores de sus trabajos son llamativos, estridentes, como los de las
portadas de las revistas de masas. Los tipos y la organización de los tipos en el
espacio visual de sus obras remiten directamente al uso del texto con fines
expresivos en los vehículos impresos de amplia circulación. Vehículos que
pretenden agradar, complacer a públicos amplios, que tienen como misión
promover la venta y estimular el consumo.
Susan Sontag sostiene que lo camp, claramente relacionado con el
pop, es estridencia y mal gusto deliberado, en otras palabras, que tiene una
vocación anticlásica, pero no añade que se explica fundamentalmente en un
contexto urbano, sobre todo en las grandes urbes donde conviven heterogéneas
multitudes: inmigrantes internos y externos, gente de los más variados estratos
socioeconómicos, razas y preferencias sexuales. Umberto Eco la completa en
su indagación sobre el kitsch, y señala la relación entre lo camp y la cultura de
masas, que gana carta de existencia en el marco de la sociedad urbana
contemporánea. El fácil efecto emocional del kitsch tiene para Eco una
correlación más o menos clara con la vocación comercial de los medios, que,
como sabemos, solo se explica en el contexto de la industria publicitaria. (Eco,
la verdad, no hace más que invertir el signo de las aversiones de Adorno con
respecto a la industria cultural).
Algunas obras de Carlos José García consisten en autorretratos
sonrientes en carátulas de Playboys imposibles. Carátulas que lo subvierten
todo. Subvierten el discurso de la pornografía de masas, que resalta la belleza
femenina y relega a los márgenes a transexuales y travestís; carátulas que
parodian de paso, como deformación y caricatura, lo que ya era en sí
hiperbólica imitación: la hipóstasis de los atributos de la femineidad que
caracteriza a las drag queens.
Nada más lejos de la intención de Carlos, por supuesto, que reivindicar
a olvidadas Priscillas. (Que lo hagan ellas, qué diablos. Sabemos
perfectamente que Carlos se encuadra en lo que solemos llamar de macho
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cubano). Helga nos revela que el propósito de Carlos José García es otro:
sencillamente, jugar.
Con la devoción de una novia, la crítica reconoce, y pone en las alturas,
tal intención discursiva, así como los procedimientos mediante los cuales el
artista cardenense realiza sus objetivos. Se trata, una vez más, del arte en su
dimensión lúdica.
Helga la crítica echa mano a Umberto Eco para legitimar las prácticas
de Carlos, en particular al Umberto Eco de El péndulo de Foucault, aunque creo
que igual habría podido acudir al Henri Bergson de La risa o al Johan Huizinga
de Homo ludens. En mi modesta opinión, el Umberto Eco de El nombre de la
rosa hubiera sido más pertinente, y convincente, por todo lo que presupone en
la novela el segundo volumen aristotélico de La poética, dedicado al estudio de
la comedia, volumen que echa al fuego el áspero personaje de Jorge de Burgos.
(No sé qué opinan ustedes, pero yo sospecho ya que a Helga Montalván le
encanta el jueguito).
En honor a la verdad, creo que no hace falta ir tan lejos
(concretamente, a Italia) para comprender a Carlos José. Apuesto a que él
mismo aceptaría que no se dedica a otra cosa que a reiterar el viejo arte cubano
del choteo. Y nada de remitirnos ahora a Mañach o a Fernando Ortiz para
entender el concepto. Cualquier cubano de a pie sabe a qué nos referimos.
Sin temor a exagerar (él, no yo; sé que no exagero), Carlos José García
eleva la trompetilla a método artístico. Lanza tizas contra la pizarra profesoral,
convencido (con razón) de que alguna niñita abúlica o insegura acabará por
reírle la gracia. Después de todo, tenemos que reconocer que no hay demasiada
distancia entre el medio artístico cubano y una escuelita municipal. Y mucho
menos cuando ese medio es la municipalidad matancera.
En Las reglas del arte, Pierre Bourdieu insinúa que la especularidad, la
intertextualidad y la autorreflexividad propias del arte contemporáneo son en
buena medida el resultado de la emergencia y de la formación de un campo
artístico e intelectual autónomo. Campo social con leyes propias, con reglas
tácitas que conforman una compleja doxa. Solo el que sea capaz de recordar
sus comienzos en la farándula, podrá evocar el tiempo, los sobresaltos y el
esfuerzo que le toma a un individuo asimilarse a este campo, reconocer los
santos y señas de cualquiera de sus múltiples grupos.
En la escuelita primaria municipal sucede más o menos lo mismo. Y
algunos descubren que conviene hacerse el chistoso para ganarse la aceptación
de los niños malos, de los pilluelos del aula. Para ser uno más entre ellos. Carlos
José parece recordarlo y ahora lo extrapola al mundo de la farándula: es el niño
290
malo de las artes plásticas en Cuba, el chistoso supremo. Les tira trompetillas a
las figuras maestras del medio, a los teóricos y artistas consagrados. Se mete
con todo el mundo y no deja títeres con cabeza. Él sabe que no se molestarán: a
fin de cuentas, son sus compañeritos de escuela (de la Escuela Vocacional o de
la Escuela de Diseño). Esos compañeritos que hoy encuentra en galerías y cines
como antes nos encontrábamos frente al terreno de pelota o en el parque del
barrio. Nos prestamos o nos robamos los libros, hacemos copias piratas de
discos que luego nos regalamos, nos intercambiamos las novias. (Nada que
objetar: las poblaciones pequeñas son inevitablemente endogámicas).
Cada día que pasa, Carlos José depura más su método, el de la
trompetilla: cada vez más, sus implicaturas discursivas las comparten menos
personas, unos pocos privilegiados de su ámbito, sus allegados (gente de muy
sonoros nombres, como Loscar Cejo, Annod Narak y Obi Wan). En un camino
que nada teme al solipsismo ni al tedio anagramático, intuyo que Carlos se
inventará una posición única en el campo intelectual y artístico cubano. Él es y
será el único y último representante de tal posición: sus obras, y el sentido de
estas, partirán todas de sí y concluirán en sí mismo. Ole con ole con ole, déjenlo
que baile solo...
Sin embargo, mientras no llegue esa hora, y Carlos nos siga
sometiendo a sus trabajos, tendremos que vérnoslas con un problema: de tanto
jugar, se acaba identificando al objeto artístico, y por carambola a sus
receptores, con un juguete. Creo que a nadie le gusta sentir que lo tratan como a
un juguete. Me atrevería a afirmar que ni siquiera Carlos.
Al final de su Homo ludens, Huizinga se interroga sobre el sentido del
juego, sobre cómo puede librarse el hombre del círculo vicioso del juego, ya que en
la cultura humana todo es susceptible de ser entendido como tal. El notable
erudito se responde de modo religioso, orientándose hacia lo supremo. Yo no le
sugeriría a Carlos una meta tan alta: no debe de ser fácil alcanzar con las tizas una
pizarra colgada en el Paraíso. Quizás Carlos José pueda mirar hacia otra parte: al
frente, a su alrededor, en torno suyo. Va y hasta a su propio interior. ¿Será que no
quiere, o no puede, comunicar lo que ve y siente? ¿Será que no siente?
Yo no le doy vueltas: quizás Carlos José no tenga nada que decir.
Abigaíl González, el sadismo a escala de crepúsculo
Abigaíl González Piña, en cambio, sí parece querer comunicarnos algo.
En varios de sus ensayos sobre este fotógrafo, y con la cuidada
discreción que nos merece alguien con quien hemos tenido un affaire, Helga
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Montalván insiste en separar a este artista de la adscripción efectuada por la
crítica de la obra del mismo al discurso de género y a la problemática de la
violencia contra la mujer. Según ella, las claves para entender una parte de la
obra de Abigaíl habría que buscarlas en la pornografía. Más específicamente, en
su intención de provocar y de escandalizar al público con temas pornográficos, o
de hacerlo cómplice apelando al voyeurismo de todo espectador.
En realidad, la violencia contra la mujer y la pornografía no se excluyen
por fuerza. Solo que la pornografía no suele denunciar esta violencia, sino más
bien refrendarla. Basta con leer a Sade para comprobarlo. De Abigaíl,
precisamente, lo que nos interesa es su inconsciente e inconsistente coqueteo
con el sadismo.
Se recuerda demasiado del Marqués de Sade lo que hoy podríamos
reducir a pornografía o a mero inventario de parafilias – de ellas está llena
Justine – y se olvida aún más la abundancia de parrafadas ético-filosóficas en
sus libros. Dos centurias antes de que se considerara un hecho legítimo, Sade
anticipa el relativismo moral y la anomía que caracterizan al mundo
contemporáneo. Sus curas corruptos y corruptores no se contentan nunca con
saciar sus deseos, sea cual sea el grado de perversión de estos. También
necesitan legitimarlos. Para justificar el placer que les produce el daño que
infligen a sus víctimas, se comparan a las fieras de la Naturaleza. Si Dios le dio
al lobo los instintos asesinos que lo llevan a cazar a los mansos corderos, y
aceptamos con naturalidad este hecho, por qué horrorizarnos entonces ante la
naturaleza de nuestros propios instintos, preguntan – retóricamente – sus
personajes, al tiempo que violan a una adolescente o ponen en práctica el
pecado de la sodomía. No podía esperarse otra cosa de la extensión del
racionalismo ilustrado al campo de la moral.
Ya estamos tan habituados a la sociedad secular que hemos perdido
de vista que el verdadero destinatario de los ataques ideológicos de Sade fue la
Iglesia, y en particular, la moral sexual del Catolicismo. Después de todo, una
institución que demonizó el placer sexual y que proscribió, por ejemplo, el sexo
dorsal, reduciendo las múltiples posibilidades físicas a unas contadas
posiciones, bien que se merecía la virulencia de un Sade. Pero reducir la obra de
Sade al componente pornográfico es cuando menos un anacronismo; el que
cometen deliberadamente muchas de las adaptaciones de su obra a los gustos
del lector contemporáneo. Sade también fue un maestro de la blasfemia, en la
acepción original de esta palabra. Sus páginas están pobladas de iglesias que
se destinan a la celebración de orgías; de esperma de candelabros que se
confunde con el esperma de los frailes; de crucifijos que exploran la cavidad
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anal de trémulas muchachitas. Sus violadores no juegan exclusivamente al lobo
y a caperucita: insisten muy a menudo en oficiar misas negras.
Varias de las series fotográficas de Abigaíl, como, por ejemplo,
Hormonalmente tuyo, proclaman de forma errática dos tesis contrarias y al
mismo tiempo complementarias: la orgullosa dominación masculina,
manifiesta como sadismo y como donjuanismo; el terror de Ulises a dejarse
seducir por Circe.
Como el Marqués de Sade, Abigaíl parece combatir la moral sexual
predominante de un país a través de la representación artística de sus prácticas
sexuales, de diversas parafilias, del homoerotismo, etc. Era de esperarse que
algo así pasara en Cuba, si consideramos que somos una nación que ha
politizado dos veces la sexualidad en menos de cincuenta años. Primero como
mecanismo de censura o de bloqueo intelectual, en los años setenta; después
como simulación de libertad, en los últimos quince años.
De cualquier modo, el esfuerzo del fotógrafo entraña mucha futilidad.
En un país donde la cultura portuaria de burdeles y de prostitutas, y la
promiscua cultura del barracón de las plantaciones de caña, siguen vivas y se
aúnan en nuestras ciudades en las palabras bayú y singar, palabras más
frecuentes que nunca en nuestra variante insular del idioma, este era tal vez el
último tema al que debíamos dedicarnos.
Contra todos los pronósticos, las armas de Abigaíl son también
bastante similares a las del Marqués. Digo contra todos los pronósticos, porque
incurrir en los recursos del sadismo como tesis moral en pleno siglo XXI, es
como mínimo un contrasentido. Es pasar por alto que la prolífica industria
pornográfica ha explotado hasta la náusea todas las variantes posibles de la
sexualidad, reduciéndolas a objetos de consumo. Sea lo que sea, nada ofende
ya los valores establecidos, si es que queda aún algún valor establecido, con tal
de que se pueda comprar y vender en una tienda o un quiosco.
Sade apela a la ofensa, al atentado al pudor, mediante la representación
y la exposición de la desnudez femenina y de diversas prácticas sexuales, entre
ellas las homoeróticas, en una época en la que la Iglesia aún dictaba normas de
comportamiento moral y estaba entrelazada al Estado. El mundo de los instintos
que refrenda el Marqués es al mismo tiempo y más bien el mundo del logos, el
ámbito de la razón dominadora de la Ilustración, que hace tabla rasa, a través de
la crítica, de tabúes y prejuicios de todo tipo. Hoy ya nos da lo mismo saber si
estos prejuicios son la virginidad y la castidad femeninas o el temor inmemorial a
los gatos negros y a los vanos de las escaleras.
293Francisco Zaragoza Zaldívarn. 07 | 2012 | p. 281-308
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Al usar los motivos del sadismo, Abigaíl se queda, tal vez sin saberlo a
ciencia cierta, prácticamente con lo más puro del gesto racional del Marqués: el
gesto dominador.
En la serie Hormonalmente tuyo, una de las modelos se masturba. El
punto de vista del fotógrafo se impone en la foto. Es evidente que la foto es pura
pose. Más que darse placer a sí misma, la modelo parece protegerse de la
mirada fotográfica. Como si intuyera que la voluntad artística del creador podría
o habrá de jugarle alguna vez una mala pasada. La figura femenina se ve
incrustada contra la cama y contra la parte inferior del marco. La mirada voyeur
parece pasarle por arriba, indetenible, como si de hecho ni siquiera le interesara
ese cuerpo desnudo, como si lo único que de verdad le interesara fuera el acto
mismo de someterlo, de tenerlo tendido, rendido, en ese lecho. El derecho a
mirar, el mero desnudarse ajeno, constituyen ya su victoria.
Los muslos alzados como columnas de la modelo, rígidos,
antinaturales – la verdad es que nunca he visto a ninguna masturbarse así –
delatan una tensión entre dos seres, la modelo y su fotógrafo. La figura
femenina todavía se resiste, como esas mujeres indecisas que te dicen que no
quieren, pero en realidad, más temprano que tarde, sí. Para la mirada
fotográfica, sin embargo, los muslos ya no son ni siquiera un obstáculo que
trasponer. Ahora no pasan de un estorbo visual.
De lo que se trata, para el voyeur, es de llegar cuanto antes al final, a la
pared, sin excesivos rodeos. Parece como si la mirada fotográfica quisiera
reducir ese cuerpo a la misma naturaleza objetual de todo lo que le rodea.
Igualarlo a ventiladores, ventanas, mesas de noches, adornos... Le hace una
cama, después la hace cama... La mirada le impone al cuerpo vivo la
deprimente precariedad de su entorno, intenta aniquilarlo. (La verdad es que es
imposible lograrlo: tenemos ante los ojos un cuerpo demasiado bello).
Todo lo que pretende el voyeur es concretar cuanto antes las cosas,
darlas por hechas, finalizarlas: desnudar el cuerpo, acostarlo, abrirle las
piernas, captar el toque de los genitales por la mano. Nos hace ver; nos
restriega en la cara su victoria. Para él, capturar este instante ya equivale a la
posesión, al acto sexual y al propio orgasmo (no importa de quién ni en qué
orden). Reduce todo un proceso a un único acto. Reduce el acto a lo que
constituiría su fin. El fin del acto como fin en sí. Sutilmente, la mirada
fotográfica le está anunciando a la modelo: “ya está, ya terminé contigo, ahora
pasemos a la próxima”.
De hecho, es así como se contempla la serie: vamos a ver la próxima.
Es una sucesión de victorias, el álbum de un Casanova. Si el autor hubiera sido
más honesto y a la vez más cínico, hubiera podido cambiar el título de la serie a
“hormonalmente tuya”. Porque la figura masculina, el sujeto, no pertenece a
ninguna. Es a él, aparentemente, a quien todas pertenecen. Bellas modelos que
el personaje/fotógrafo nos dice poseer sobre la mesa, en el sofá, en el baño, en
la cama, en la meseta de la cocina, entre los platos sucios del fregadero, sobre
los restos de comida, en toda la vasta geografía de una casa. Una parte de sus
fotos parece hacerse eco de aquel comportamiento, tan propio de los
adolescentes masculinos, en que el orgullo viril se manifiesta como divulgación
de lo que fuera en su momento un evento privado, un acontecimiento íntimo.
Sin embargo, el personaje masculino de la serie nunca nos parece
seguro. Se ve rígido en las fotos, casi hierático, demasiado a la defensiva. Sus
ropas son como una coraza, como si para él desvestirse representara un peligro.
Sabemos que todo seductor le teme a la impredecible y siempre
sospechosa inocencia de caperucita. Teme a terminar como el lobo del cuento.
Es un terror que asimila a Don Juan, a Casanova y a la pobre fiera del relato
infantil. Y después de todo, está más que justificado. El mito de Don Juan, tanto
como el de Casanova, surge en un contexto de relaciones sociales y entre los
sexos sumamente tensas: el contexto de las cortes europeas. Por cada
victorioso Don Juan, hay cientos de pobres diablos convertidos en juguetes de
la veleidad y de la voluntad de las cortesanas. Estos nunca estarán
completamente seguros de poseerlas, no llegarán a saber si en lugar de seducir
fueron en realidad seducidos por ellas en pro de indescifrables propósitos:
ascenso social, protagonismo, compensación psicológica, la satisfacción de un
fugaz deseo, los caprichos de la vanidad de una mujer (nadie es perfecto,
tampoco las mujeres).
En la foto, por ejemplo, en la que una linda modelo (la misma que fingía
masturbarse) está tendida en un sofá y el personaje masculino posa sentado a su
lado, la mirada fotográfica trata de divulgar, por el encuadre, la organización de
los planos y la composición de las figuras –el cuerpo femenino en posición
horizontal, el masculino en la vertical– la hegemonía masculina. Pero pese a
todo el significado de dominio masculino que de modo tan teatral el creador le
impone a la escena, esta (la modelo, también la escena) se le va de las manos.
La vitalidad y la belleza del cuerpo de la mujer, así como el gesto coqueto y la leve
sonrisa, más insinuada que perfilada, remiten inmediatamente a la figura de las
coquetas, de las cortesanas juguetonas, que tan bien representaron Boucher y
Fragonard, y que tanto deben haber aterrorizado a un Casanova. El desenlace
trágico de la novela epistolar de Chordelos de Laclos nos recuerda siempre que ni
un cínico o depravado como Valmont está totalmente a salvo de las malas artes
de una Marquesa de Merteuil.
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Acaso sin proponérselo (pero y eso qué importa), el fotógrafo Abigaíl
González alude y actualiza en esta foto uno de los más remotos terrores
masculinos: el temor de Ulises a que la bella Circe lo convierta en cerdo, como
hizo con tantos hombres. Algo de este terror mítico asoma en la sin dudas más
bella foto de la serie: aquella en la que una modelo femenina expira el humo de
un cigarro, y el aire nebuloso de sus pulmones invade la atmósfera escasamente
iluminada de la habitación. Indiferente a la mirada fotográfica, dueña de su
propio ámbito, esta figura femenina, con una gran trenza que le corre por la
espalda, nos obliga a enfrentarnos a varias imágenes primordiales de la mujer:
la mujer como bruja, con poderes y artes sobrenaturales que escapan al ámbito
y al dominio de la razón; la mujer como pitonisa, lectora de los secretos del
destino; la mujer como sirena, canto arrebatador, encanto, llamado que
destruye a los hombres; la mujer como madre, como tierra fecunda, cuerpo de
toda creación.
No le pidamos peras al olmo. Ni siquiera Abigaíl podría resistirse a
tantos poderes juntos.
Sheyla Castellanos: del encausto a la sangre, yo, la célibe, o por qué (ya) no
quiero quitarme las faldas de la seducción
La pintora Sheyla Castellanos parece estar perfectamente consciente
de las fisuras del discurso artístico de Abigaíl. De sus (ingenuas) perversiones
tanto como de sus terrores.
Helga Montalván, la crítica, con una objetividad que solemos reservar
al trato con nuestros enemigos, nos muestra que en la otra artista matancera la
representación de la mujer como sexo débil, como animal doméstico, no es más
que una sutil y divertida ejercitación del arte de la ironía. Es como si Helga
supiera que Sheyla sabe cuáles son los dones de diosas que a ambas, como
bellas mujeres, les corresponde (...yo sé que tú sabes que yo sé/qué se yo, qué
sé cuanto...)
Sobre el presupuesto de este conocimiento compartido por la pintora y
por su crítica, tácito arsenal nuclear, Helga Montalván señala lo que nadie, a no
ser ella misma, podría ver. Que Sheyla se está mofando en sus dibujos, en
apariencia los más complacientes, del discurso de la dominación masculina.
La burla es perfecta, incluso en aquellos casos escandalosos en que se
realiza una feminización de la figura del hombre abusando de motivos clásicos
ampliamente reconocidos, como sucede en el dibujo de El ángel de Alied. Es
como cuando te burlas de alguien sin que se dé cuenta, pero dos o tres
cómplices, tus verdaderos destinatarios, sí captan el chiste.
Sheyla – Helga más, mucho más – nos recuerda a Sor Juana. A la Sor
Juana Inés del famoso autorretrato: “este que ves, engaño colorido...” Por
supuesto, recuerdan a Sor Juana no por el contenido del soneto. La monja
jamás habría podido, ni se habría atrevido, y probablemente no habría querido,
exponer su desnudez en público. La recuerdan por la terrible inteligencia; por el
modo sutil en que invierten y desmontan un género. Sor Juana se divirtió con
uno que tenía cierta tradición en su época, el soneto de retrato y de elogio a una
dama. La poetisa mexicana cambió la perspectiva de la voz autoral. Ahora
hablaba una mujer, desmintiendo los halagos masculinos. Se vio a sí misma en
sus versos como polvo, hueso, como nada... cristalinos tópicos barrocos.
Sheyla hace algo similar en El ángel de Alied: sigue la tradición
pictórica del desnudo de la mujer yacente, solo que sustituye el cuerpo
femenino por el cuerpo de un hombre, sin renunciar a la inmensa mayoría de los
motivos de siempre, desde la postura sensual de abandono, entrega o reposo,
hasta los gestos de las manos o la expresión del rostro.
Analizando otro notable dibujo de Sheyla en un ensayo, dibujo titulado
El lecho infinito, Helga señala el parentesco de la figura femenina con la
Madame Recamier de David, aunque haciéndonos notar un detalle
importantísimo: en el dibujo de Sheyla, la mirada, carente de ternura, se desvía
del espectador, se retrae, como si la mujer de salón empezara finalmente a
sentirse fatigada, de vuelta ya de tantas cosas...
Otro de los dibujos de Sheyla, de hecho, hace mucho más explícito
este paulatino cansancio, que deriva en aislamiento: representa una figura
femenina sentada en un sofá, de espaldas, contemplando un cuadro. Helga nos
dice, acertadamente, que el bodegón del cuadro es la pura apariencia
superpuesta a lo que ya es de por sí apariencia. Superficie de significantes
carente ya de sentido: mera decoración. Géneros vacíos, conjuntos de
convenciones sociales y pictóricas que aún ejercen su poder, que acaso
ofuscan, pero que no gozan ya de legitimidad alguna entre los que las
obedecen. Se les hace caso como a un viejo gobierno o a una película tonta de
domingo. En este dibujo, la figura femenina representada por Sheyla es como la
Venus de Velázquez, pero ya sin vocación narcisista. No le hace falta el espejo.
Tal vez sea mejor ver una naturaleza muerta que una naturaleza cansada o
moribunda.
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298
Helga Montalván, libido y teofanía
Lo que la mirada fotográfica de Abigaíl solo puede captar con
fascinación horrorizada, sorpresa en la que convergen por igual la atracción
sexual y la aversión, Helga Montalván lo recrea con el sosiego y la familiaridad
con que se lleva un lunar junto al ombligo o se prepara el café de todas las
mañanas. Es lógico, pues ella misma es una de esas diosas que las modelos de
Abigaíl refieren.
Si Abigaíl contempla a la mujer como exterioridad, como naturaleza
que la razón sádica debe someter, pugnando por igualarla a los utensilios de la
vida doméstica, Helga instituye en sus dibujos una representación de la mujer
que parte de otra perspectiva: esencialmente, su propia experiencia. No solo su
experiencia personal, aunque hay mucho de confesionalismo en su obra. Me
refiero también a su experiencia como crítica, como estudiosa de la Historia del
Arte y como profesora.
Su exposición de la desnudez femenina y del deseo sexual, manifiesto
tanto en los motivos homoeróticos como en la masturbación, es mucho más
que pornográfica y no tiene nada de sádica. La pornografía se circunscribe al
área de lo sexual, de los instintos, de la mera reiteración mecánica y de la
concreción: su meta es excitarnos y hacernos eyacular... cuanto antes.
Un análisis iconográfico de los dibujos de Helga, sin embargo, revela
inmediatamente muchos más motivos que los estrictamente pornográficos.
Algunos vienen de la tradición clásica y renacentista de la representación del
cuerpo como teofanía. Otros de la pintura erótica del Rococó o de los
movimientos artísticos de fines del XIX e inicios del XX, refuncionalizados por
ella. Otros de la expresión de la experiencia onírica en la pintura de las
vanguardias históricas del siglo XX, en particular del Expresionismo.
El artista Abigaíl, en las fotos de Hormonalmente tuyo, tiende a
inmovilizar a sus modelos, como un violador judoka que juega a reducir a la
víctima a la obediencia; les aplica una llave. Nos fuerza a mirar cómo las
derriba contra el suelo o la cama, las aprieta contra el fregadero, las encierra en
el baño, les pasa victoriosamente por arriba, aplastándolas. El ángulo, el punto
de vista, casi nunca se pone a la altura de las retratadas. Predomina una mirada
de superioridad. La composición de sus interiores abusa de líneas de
estabilidad y de fuerza: las líneas de la cama, las líneas de las mesitas y los
sofás, las líneas arquitectónicas de las paredes. Lo más inestable en sus fotos
suelen ser los cuerpos femeninos: si no están inmovilizados, son cuerpos
desequilibrados; cuerpos ladeados, cuerpos bocabajo, cuerpos acuclillados o
en caída. Como el cuerpo de la modelo (otra vez la que fingía masturbarse) que
tiene que apoyarse con las dos manos en el piso para no caerse de la cama.
Todo lo que persigue la mirada de Abigaíl con estos desequilibrios es
poner a sus venus púdicas en situaciones en las que peligre el pudor: en la foto
en la que la modelo pende en el borde de la cama, por ejemplo, sin la defensa de
sus manos, las nalgas de la muchachita quedan expuestas al aire, vulnerables.
(Por suerte, como ya vimos, a veces sus modelos triunfan, logran ser algo más
que el objeto de un capricho fotográfico. Es el caso de esa diosa sedente y
fumadora que asume una posición de parto y al mismo tiempo prenatal:
equilibro primitivo y completo, planeta que se pare a sí mismo).
En los dibujos de Helga Montalván, en cambio, todo tiende al
movimiento y a la liberación del cuerpo aprisionado y a la vez prisión. Y más
bien se ignora el concepto de pudor. No se ofende ni se transgrede:
sencillamente, no hay de qué avergonzarse. Ni impudicia ni vergüenza púdica.
En efecto, las curvas de la anatomía, las sábanas ondulantes, las
relaciones de composición que establecen entre sí las figuras femeninas, los
motivos alegóricos o decorativos, los contrastes cromáticos, sugieren
significados de movilidad, nos hacen pensar en el oleaje, las mareas, las
corrientes submarinas, en un vasto mar sin control.
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300
Helga Montalván, De la serie Sueños obra 3, Serie Sueños, (2009)
Y en lugar del placer sádico, en el que el gozo deriva del sometimiento
del cuerpo ajeno, Helga Montalván proclama la emancipación del cuerpo
propio, la satisfacción del deseo a través de la masturbación. No es el placer
como dominio, sino el placer como grito – ¿gemido? – de independencia.
Varios motivos en todas las figuras de la serie refieren claramente este
placer erótico. Las cejas arqueadas, la barbilla inclinada hacia arriba, los ojos
cerrados, los muslos abiertos, la mano cercana al pubis, la exposición del sexo.
Más que los desnudos femeninos de Cranach, Tiziano o Rubens, en los que el
pudor obliga a velar o cubrir la genitalia de la mujer, los dibujos de la Montalván
recuerdan las imágenes patiabiertas de las mujeres de Boucher y Fragonard.
Pero curiosamente, la boca se mantiene cerrada, distanciándose de las
representaciones del éxtasis en la tradición mística en las Artes Plásticas. Es
como si hubiera una voluntad de atenuar la expresión del gozo de los
personajes, de no llevar la representación a los extremos del paroxismo, de
mediar o revestir esa experiencia con los signos de una realidad diferente,
desgajándola de la contingencia del instante, de las vicisitudes de la carne, de
la desesperada agitación y lo efímero.
Uno de esos signos es el dedo índice extendido. Hay una resonancia en
este del gesto de bendición del Cristo Pantocrátor, figura mayestática recurrente
en la iconografía cristiana. Al mismo tiempo, este signo refuncionaliza el motivo
del índice de Dios en La creación de Adán de Miguel Ángel. El dedo capaz de
infundir vida, de dar origen a la especie humana.
La apropiación de dichos motivos por parte de Helga, obviamente, se
aparta de la representación cristiana del cuerpo de la mujer como lugar de
pecado, presente en Miguel Ángel tanto como en los pintores cortesanos del
Rococó francés. En su lugar, sus dibujos proponen el carácter divino del deseo
femenino, su majestad y su triunfo.
Helga diviniza – le da categoría cósmica y religiosa – a la libido y a la
masturbación.
Noli me tangere
Tal intención discursiva se potencia mediante el uso coherente y
conveniente del resto de los elementos pictóricos en las piezas.
En la mayoría de los dibujos, por ejemplo, la composición se basa en el
cruce de líneas diagonales. Los cuerpos yacentes se abren. Codos y rodillas se
prolongan de forma simétrica, como las aspas de un molino.
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Considerando el conocimiento que la Montalván tiene como
historiadora del arte de la tradición clásica del desnudo, y del predominio en
esta de las posturas corporales casi plenamente horizontales o verticales
(pienso en Giorgione y en Botticelli), así como de la hegemonía del uso de la
perspectiva frontal paralela, llama la atención que en esta serie la composición
se inscriba en una práctica muy socorrida en la pintura religiosa que recrea el
pasaje bíblico de la Resurrección, y en particular del noli me tangere.
Si observamos algunos de los cuadros más destacados de dicha
tradición, como los de Andrea del Sarto y de Correggio, podremos comprobar la
presencia en buena parte de ellos de la composición en diagonal creada por el
conjunto de los cuerpos de María Magdalena y de Cristo.
“No me retengas, no me toques, no me demores”, le dice Cristo a
Magdalena arrodillada. Sintiéndose llamado al cielo, junto al Creador, rumbo a
un destino más alto y trascendente, las palabras y el toque de la mujer en este
instante son una distracción imperdonable.
Cristo encarna aquí el principio masculino de la seriedad, la
responsabilidad, la atención a los asuntos de interés público, aquello que Freud
define como principio de realidad. Nada expresa mejor este principio que la
exaltación del sacrificio, de la vida como calvario y dolor, y que el lugar de
sufrimiento por excelencia: la cruz. La verticalidad de la cruz, su ostentosa
estabilidad, invocando el martirio de la carne.
María Magdalena encarna el principio contrario, el del placer. Es la
pulsión, la emotividad descontrolada; despilfarro de energías, de recursos, de
tiempo. La que retiene y demora, la que distrae. Es la que está más cerca de la
tierra, a ras del suelo, a nivel del horizonte. Es la que convida a acostarse, la que
impide ascender.
Helga parece incorporar, apropiarse con orgullo de esta idea
desestabilizadora; la hace el centro de sus dibujos. Sus personajes femeninos
están echados en la cama, tumbados, entregados al reposo, al sueño, al placer.
Tienen los brazos y las piernas abiertas, o sensualmente cruzadas. Son mujeres
que arden de amor: cruces caídas ellas mismas.
La actitud, sin embargo, no resulta hostil o desafiante, como si los
personajes de la serie no quisieran enmarañarse en las amarguras de una lid.
No sentimos la rudeza de quien agrede por sentirse ofendida. Más bien se nota
un alegre abandono, un cuidar de sí misma que no es totalmente desdeñoso
con el otro, a pesar de la dulce negligencia.
302
Es como si su personaje nos dijera: “¿que no te toque?... muy bien,
pues entonces me toco a mí misma”.
Las apariencias y el límite (de la representación)
Helga Montalván – la crítica – es devota confesa de la obra de Jorge
Luis Borges. De cuentos como “Las ruinas circulares” y “Funes el memorioso”.
No es en lo absoluto casual que algo de las técnicas de representación
borgianas esté presente en sus dibujos.
Borges problematiza la percepción y la representación de la realidad
en relatos como “Las ruinas circulares” y “El sur”, provocando dudas en sus
lectores con respecto al carácter real o imaginario, vivido o soñado, de la
historia que cuenta. Información de gran verosimilitud histórica, estrategias de
caracterización de los personajes que entrecruzan el género ensayístico, la
biografía y el testimonio, y el punto de vista narrativo que se identifica con la
experiencia del protagonista del cuento, etc., estimulan la interpretación de los
textos en clave realista. Sin embargo, algunos datos puntuales, como el
soñador que se descubre soñado en “Las ruinas circulares”, o el imposible
reconocimiento del protagonista Juan Dahlmann poco antes de la riña en el
cuento “El sur”, introducen una contradicción lógica, una suspensión
extraordinaria de las leyes naturales, que está en la raíz del efecto fantástico de
algunas de las obras más elogiadas del escritor argentino.
Si observamos los dibujos de la serie El sueño en su condición de serie
de obras, comprobaremos que también aquí los modos de representación o
mímesis oscilan entre dos extremos: uno que podríamos considerar realista,
clásico, tradicional, y otro de valor opuesto: subjetivo, onírico, idiosincrático.
El punto de vista en el primero de estos dos modos tiende a asimilarse
al de un observador o testigo que tiene la posibilidad de contemplar de modo
objetivo la escena. Es fácil reconocer en los dibujos los elementos propios de la
habitación privada, de la alcoba, en la cultura occidental. Cama, ropa de cama,
almohadones, paredes, persiana. El cuerpo femenino es el protagonista en
todos los casos. Preside la habitación, es su centro, y las múltiples líneas de
fuga que crean la ilusión de profundidad, cuando las hay, se subordinan a la
anatomía humana.
En el segundo modo de representación, al contrario, los motivos
figurativos asociados a la alcoba prácticamente se confunden con elementos
decorativos abstractos, como espirales, círculos concéntricos y rectángulos.
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Estos crean una alternancia de masas y de formas con la que se intenta
equilibrar los contrastes de temperatura dados por los colores.
De cualquier modo, en ambos modos de representación el uso de los
colores es subjetivo e intenso, una cita deliberada de las técnicas del
Expresionismo, como si la dibujante no hubiera querido hacer concesiones ante
los credos clásicos o academicistas relativos al color. Vemos azules y morados
que contrastan con naranjas, rojos y sepias. Amarillos que sirven de base a
manchas doradas y marrón. Tan solo la iluminación y los colores de la piel
humana se rigen por los principios o ideales de verosimilitud típicos de la
pintura clásica.
En dos de los dibujos, por otra parte, el punto de vista está situado
arriba, como si se tratase de una representación en planta, desplazándose de
las formas de encuadre tradicional de la escena en retratos y paisajes, hacia
posiciones que solo el cine y la fotografía contemporáneos han sabido explotar
al máximo.
Esta ambivalencia u oscilación de los modos de representación entre
un extremo realista y otro subjetivo, así como la peculiar preferencia cromática
y el uso de ornamentos o motivos decorativos, dan pie a una profunda
ambigüedad en la interpretación de las obras de la artista matancera.
Es cierto que el propio cuadro de Courbet que inspira las piezas de la
Montalván es de por sí muy ambiguo. Pero en este la ambigüedad deriva de la
incertidumbre con relación al estado de los personajes. ¿Están dormidas estas
mujeres? ¿Sueñan? ¿O están despiertas y fingen dormir? La respuesta que les
demos a estas preguntas incide en el nivel de voluntariedad o de
involuntariedad, de conciencia o inconsciencia, que les podemos atribuir a los
sujetos en la situación representada. Courbet, sin renunciar a las técnicas de la
pintura realista, en particular la perspectiva, el cuidado con el detalle en las
texturas, los colores y la iluminación, puebla el espacio pictórico de elementos
que refuerzan una interpretación hedonista. Joyas dispersas en el lecho, un
florero de perfumadas flores, un frasco de vidrio que acaso contenga un
agradable elíxir. El pintor francés desafía subrepticiamente las convenciones
morales de su tiempo al representar una escena de probable homosexualismo
femenino. Aunque más que mostrar, la insinúe.
En las piezas de Helga Montalván, sin embargo, la ambigüedad es de
otro orden, y es mucho más compleja, porque no se restringe al nivel de las
intenciones tras los actos.
304
Por lo pronto, resulta difícil decidir, al contemplar algunas de las piezas
en las que hay dos figuras femeninas, si se trata de un único personaje que se
desdobla, o si se trata realmente de dos sujetos distintos.
A ratos parece lo más obvio: dos mujeres desnudas que comparten la
cama. Las manos que se ocultan bajo la almohada en una de las piezas nos dan
la clave para descifrar una experiencia amorosa soterrada, dulce, prohibida.
Experiencia que los personajes quisieran mantener confinada al inocente
territorio del sueño. No hay señales explícitas o visibles de complicidad, de
compartida consciencia: los ojos están cerrados, los cuerpos reposan.
Aparentemente, estas mujeres duermen.
En otra de las piezas, sin embargo, más bien nos parece que Helga
acude a la técnica de la pintura renacentista de representar en el mismo espacio
pictórico diferentes situaciones espaciotemporales. Este recurso, muy utilizado
en la pintura religiosa para relatar pasajes bíblicos, resulta adecuado para referir
la complejidad de la experiencia onírica del deseo. Es como si la dibujante se
resistiera a reducir lo que es efluvio, ondulación, flujo y espasmo, a la fijeza
bidimensional de la cartulina. Como si le fuera imprescindible dar cuenta de los
múltiples estados del deseo, de sus grandes momentos y de sus progresos.
¿Cuál podría ser la intención discursiva que se manifiesta en este
peculiar tratamiento del material artístico? A nuestro entender, se trata
esencialmente de la voluntad de relativizar el carácter sublime de la experiencia
erótica. De, al mismo tiempo que se defiende y se refrenda, poner en solfa esa
retórica del amor como teofanía o epifanía de la que los dibujos se hacen eco, en
una suerte de ejercicio autoirónico. Expresar, dar testimonio del deseo amoroso
y de sus poderes cosmogónicos; pero también ponerlo risueñamente en
cuestión. Un canto lírico que se ve atravesado por las salidas de tono de la
comedia y la rechifla. (Este gesto de Helga niega el principio de gratuidad que
anima la obra de Carlos José García. Para ella, jugar tiene sentido, y el sentido
jamás se limita al mero acto de jugar.)
“¿Con qué puedo retenerte?”
Sin dudas, los cuerpos representados en los dibujos de Helga son muy
hermosos y atractivos; su sola vista despierta el deseo. Estas mujeres nos
invitan a que las admiremos, a que las toquemos con la mirada, a que las
gocemos. Son sublimes, casi dolorosamente. Grado extremo de la belleza,
expresan un nivel de perfección corporal que desata los instintos más
duramente domesticados por la sociedad civilizada. Son cuerpos que
305Francisco Zaragoza Zaldívarn. 07 | 2012 | p. 281-308
arrebatan. Deseo irles arriba a estas mujeres, raptarlas o violarlas como el 3Centauro Neso quiso hacerle a Deyanira .
Sin embargo, el otro que desea, el sujeto por antonomasia de la
dominación masculina, está excluido de la representación. Las mujeres de
estos dibujos se resisten a su imperio; cierran los ojos a su fastidiosa
omnipresencia. En su lugar, prefieren replegarse dentro sí mismas, bucear en su
interioridad, buscar refugio en el mar sin fronteras de la propia libido.
Ahora bien, esta renuncia no se traduce en orgullosa declaración de
autonomía. Parece que Helga Montalván creyera que de todos los excesos, el
exceso de soledad es el menos deseable. Así, aunque se experimente sin
dramatismo, sin aspavientos autocompasivos o histéricos (angustia y drama sí
asoman en ciertos dibujos de Sheyla), la soledad esencial de las mujeres de sus
dibujos parece acusar una pérdida, denota un despilfarro de posibilidades. Uno
tiende a exclamar al verlas: ¡qué desperdicio!
Lógicamente, a una seguidora del Expresionismo no le ha de resultar
extraña la tesis de que la experiencia predominante del individuo
contemporáneo es la de la vida dañada, trunca; la biografía personal como
rompecabezas en el que se juntan despropósitos, desaciertos y pérdidas. En el
horizonte promisorio y resplandeciente del sentimiento amoroso y de la libido,
siempre existe la posibilidad de que surjan los oscuros nubarrones del
desencuentro, el fracaso, la frustración. Quizás ese saber nutra la autoironía del
discurso amatorio de los dibujos de Helga; perfecto equivalente pictórico de la
irónica teoría amorosa que Jorge Luis Borges expone en su cuento “El Aleph”.
Sospechamos que para nuestra crítica y artista plástica, no es que el
amor y el deseo remitan a una realidad inefable que no pueden captar los signos
humanos. La ambigüedad de su modo de representación no deriva de la
imposibilidad gnoseológica de referir una experiencia absoluta. Es más bien
como si la artista estuviera tomada por una melancolía ontológica (pero que no
se pelea con la carne ni se acaba de resignar al celibato). Como si la rondara la
certidumbre de que el brillo de lo divino, de lo cósmico, la terrible perfección de
los ángeles a la que apunta el sentimiento amoroso, se habrán de ver
prontamente velados por las contingencias del vivir, por el avance inexorable
hacia la muerte, la catástrofe y la ruina. Helga se hace depositaria de este
conocimiento con una sonrisa tranquila, en un benévolo carpe diem. (He aquí
precisamente tres de sus grandes signos: conocimiento, transitoriedad
veleidosa, pérdida. La libertad, desde luego, le es el más caro de todos.)
3 Referencia a la tercera esposa de Heracles en la mitología griega, a la cual el centauro Neso quiso violar al ayudarla a cruzar un río.
306
¿Adónde pueden conducir estos ejes temáticos que ocupan a la
dibujante? Intuyo dos caminos: el solipsismo, acaso el infeliz solipsismo del
Borges de la vejez; la alegre aceptación de la existencia del otro y sus múltiples
vicisitudes. Ya veremos...
Mientras tanto, las mujeres de sus piezas continuarán describiendo
círculos en los dulces remansos de sus sueños – oasis y treguas en la cruenta
guerra entre los géneros – tejiendo y destejiendo las imágenes del devaneo
amoroso, hechas calor y luz, rasgadas de placer, aunque transidas por la
angustia de dos horizontes imposibles: la inmanencia absoluta y el móvil
perpetuo.
Para no disipar su energía en el vacío, para no sucumbir a la entropía,
estas mujeres de Helga te llaman, te piden que estés con ellas, te dejan que las
cubras.
Yo acudo sin pensarlo.
307Francisco Zaragoza Zaldívarn. 07 | 2012 | p. 281-308
Referencias
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308
14
Thiago Barcelos SolivaMestre em sociologia pelo Programa de Pós-graduação em
Sociologia e Antropologia da UFRJ. Doutorando em Ciências Humanas (antropologia cultural)
do PPGSA-IFCS-UFRJ.thiago104@yahoo.com.br
Uma cultura dos contatos: sexualidades e erotismo em duas
obras de Gilberto Freyre
A culture of contacts: sexualities and eroticism in two works of Gilberto Freyre
310
Resumo
Com base nas obras Casa Grande & Senzala e Sobrados & Mocambos, escritas por
Gilberto Freyre, pretendemos pensar o campo da sexualidade no processo de
constituição da sociedade brasileira. Ambos escritos na década de 1930, esses livros se
mantêm como referências fundamentais para a compreensão da formação da sociedade
brasileira em períodos distintos. Trata-se de um fabuloso esforço intelectual de
compreensão de nosso “processo civilizador”. Igualmente importantes são as suas
contribuições para a compreensão da vida sexual do brasileiro. Temas como erotismo,
vida íntima, relações de gênero, infidelidade e prostituição aparecem frequentemente e
de forma pioneira nessas obras, mostrando-nos peculiaridades do processo de
construção de uma sexualidade à brasileira. Interessa-nos aqui esmiuçar esses achados
pioneiros, na tentativa de problematizar a importância desse legado para as novas
gerações de estudiosos das sexualidades.
Palavras-chave: Casa Grande & Senzala. Sobrados & Mocambos. Pensamento social
brasileiro. Sexualidade. Gilberto Freyre.
Abstract
From the works Casa Grande & Senzala and Sobrados & Mocambos, written by Gilberto
Freyre, we want to think about the field of sexuality in the process of formation of
Brazilian society. Both written in the 1930s, these books remain as fundamental
references for understanding the formation of Brazilian society in different periods. This
is a fabulous intellectual effort to understand our “civilizing process”. Equally important
are their contributions to the understanding of the Brazilian sexual life. Themes such as
eroticism, sexual life, gender relationships, infidelity and prostitution and often appear
as pioneers in these works, showing us the peculiarities of the construction of sexuality
to a Brazilian. What interests us here scrutinize these findings pioneers in trying to
discuss the importance of this legacy for future generations of scholars of sexuality.
Key-words: Casa Grande & Senzala. Sobrados & Mocambos. Brazilian social thinking.
Sexuality. Gilberto Freyre.
Apresentação
Poucos autores brasileiros conseguiram tanto destaque nacional e
internacional como Gilberto Freyre. Escritor de vasta e densa obra, Freyre foi
um dos mais destacados intérpretes da cultura brasileira entre os estudiosos do
seu tempo. De formação heterogênea e, sobretudo, cosmopolita, característica
que mais nos interessa, Freyre esteve em contato com respeitados intelectuais
quando ainda em formação em renomados centros de produção e circulação de
conhecimento nos Estados Unidos.
Sua experiência acadêmica nesse país lhe rendeu uma formação
solidamente erudita, não obstante sua vocação literária e ensaísta estar sempre
presente no conjunto de seus escritos. Tanto na Universidade de Baylor (Texas)
quanto em Colúmbia (Nova Iorque), principalmente nessa última, o jovem
Freyre desfrutou de um momento histórico muito propício para as Ciências
Sociais nos Estados Unidos no período pós-Primeira Guerra Mundial. Na
ocasião, a academia norte-americana encontrava-se sensível à coexistência de
diferentes tradições intelectuais, principalmente aquelas vindas da Europa,
que se reuniram em solo norte-americano para a construção de um edifício
intelectual marcado pela heterogeneidade. Para Velho (2008), Gilberto Freyre
refletiu em sua obra todo esse combinado de tradições que contribuíram para a
formação de um pensamento singular:
Seja sob o ponto de vista da interação social, seja sob o
ponto de vista de cultura e personalidade, produzia-se um
volume de trabalhos e ideias que constituíram-se em
importantes subsídios para a obra de Gilberto Freyre, que
soube digeri-los e elaborá-los no decorrer de sua carreira,
contribuindo, decisivamente, por sua vez, para esse campo
de debates. Como intelectual universalista, bebeu em
várias fontes, na história e na antropologia britânicas, na
história e na escola sociológica francesas e no pensamento
social e filosófico alemão, além da ciência social norte-
americana, produzindo, assim, um perfil singular (VELHO,
2008, p. 12).
Um dos temas principais nesse período, particularmente quando da
sua permanência em Colúmbia, era a relação indivíduo e sociedade. A partir
dessa discussão, Freyre passa a uma particular interpretação da sociedade
brasileira, reconstruindo aspectos pouco explorados pelos estudos que, até
então, encabeçavam as análises sobre o Brasil. Um desses temas diz respeito à
sexualidade, que assume no autor pernambucano uma dimensão excepcional.
311Thiago Barcelos Solivan. 07 | 2012 | p. 309-329
Viajante incansável, Freyre não se apropriou apenas do capital
acadêmico atribuído à intelligentsia norte-americana do final do século XIX e
início do século XX, mas também pôde entrar em contato com toda a
diversidade cultural de uma outra sociedade complexa. A propósito dessa
interação, pôde desenvolver uma sensibilidade analítica muito própria que lhe
facultou desenvolver uma compreensão original do Brasil em termos de sua
constituição histórico-cultural (VELHO, 2008).
O exemplo mais bem-acabado da genialidade desse autor refere-se à
sua obra monumental, cujos trabalhos mais destacados são, indubitavelmente,
Casa Grande & Senzala e Sobrados & Mocambos. Ambos publicados na
década de 1930, esses textos inauguram um novo momento do pensamento
social brasileiro, ainda dominado pelas concepções racistas em evidência
nesse período. Trata-se de monografias precursoras interessadas em interpretar
nossa sociedade e nossa gente a partir de uma perspectiva multifacetada, cujas
influências disciplinares (história, antropologia, geografia, sociologia etc.)
encontram-se dissolvidas pelo gigantismo de uma análise extremamente rica
em detalhes.
Simultaneamente, essas obras carregam a marca de uma nova postura
acadêmica, a exemplo das influências de Boas, contrárias ao arianismo
intelectual. Essa postura apresenta-se no esforço de valorização da
miscigenação, bem como da defesa de um luso-tropicalismo (VELHO, 2008),
sobretudo em Casa Grande & Senzala. Essa preocupação se expressa,
principalmente, no interesse que desenvolveu pelas contribuições das 1diferentes etnias, em particular dos negros vindos da África para a formação do
povo brasileiro.
Inovador ainda é o material com o qual Freyre trabalha. Utilizando-se
fartamente dos documentos do período da inquisição, tais com as confissões e
denúncias ao Santo Ofício, bem como de narrativas de viajantes que aqui
estiveram nos tempos da colonização, fontes pouco recorridas pela
historiografia da época (BOCAYUVA, 2001), Freyre reconstrói episódios da
vida privada de nossos antepassados mais remotos.
Em muitos aspectos, Freyre se aproxima das análises de Norbert Elias,
ainda que os dois autores não tenham sido apresentados um ao outro. Essa
relação pode ser percebida na forma como o autor pernambucano desenvolve
seu argumento, baseando-se no processo pelo qual teria se dado a emergência
312
1 Freyre não esconde a “predileção”, ainda que fale das contribuições de outras etnias, pelos negros na construção do povo brasileiro. Essa “predileção” pode ser sentida, sobretudo, nos dois últimos capítulos dedicados à discussão das influências da cultura africana na nossa cultura.
da sociedade brasileira. A propósito desse argumento, Freyre expressa uma
forte preocupação com o que Elias define como “processo civilizador”, ou seja,
um processo histórico de longue durée que implica uma mudança na vida
psíquica dos indivíduos, modelando comportamentos, controlando os
instintos, incidindo tanto na esfera privada quanto na pública (ELIAS, 1994).
Esse interesse é ainda mais manifesto em Sobrados & Mocambos, em que se
dedica a estudar a “reeuropeização” do Brasil com a chegada da Corte
Portuguesa, evento que inaugurou novos padrões de conduta entre os
brasileiros, desenvolvendo o autocontrole entre eles.
Nas páginas que seguem, privilegiamos conhecer alguns aspectos
dessa imensa obra, gigante em tamanho e importância, sobretudo aqueles que
se relacionam com a sexualidade. Na primeira parte, dedicaremos atenção às
contribuições de Casa Grande & Senzala no tocante à formação da cultura
sexual brasileira, essa sexualidade baseada nos excessos. Na segunda parte,
procuramos entender o processo que o autor chama de “reeuropeização”,
privilegiando conhecer seus reflexos na mudança de postura do brasileiro em
relação ao campo da sexualidade. Não pretendendo esgotar aqui esse tema,
sabemos que ele é por demais complexo para as ambições deste trabalho.
Interessa-nos, contudo, esmiuçar esses achados pioneiros, na tentativa de
problematizar a importância dessa obra para as novas gerações de estudiosos
das sexualidades.
Sexualidade e erotismo na “Casa Grande” e na “Senzala”
Vimos que alguns dos traços mais marcantes da obra de Gilberto
Freyre dizem respeito à heterogeneidade e à complexidade com que constrói
sua singular interpretação do Brasil. Um dos aspectos mais importantes para
compor essa interpretação é a sua análise da sexualidade. Temas como
erotismo, vida íntima, infidelidade, relações de gênero e prostituição aparecem
frequentemente e de forma pioneira nessa obra, mostrando-nos peculiaridades
do processo de construção de uma sexualidade à brasileira. Poderíamos
mesmo afirmar que Freyre empreende uma história social da sexualidade
baseando-se no conjunto das relações sociais que conferem contornos à vida
íntima no Brasil Colonial.
Tema recorrente entre os estudiosos das Ciências Sociais, a
sexualidade em Gilberto Freyre assume uma importância capital, já que se
relaciona aos arranjos pelos quais as diferentes etnias se misturaram para a
formação de uma nova cultura. Nesses termos, podemos compreender nossa
313Thiago Barcelos Solivan. 07 | 2012 | p. 309-329
formação histórico-social como dotada de um forte componente hedonista, de
uma atração irresistível entre os corpos, que motivou a miscigenação entre as
diferentes culturas responsáveis pela nossa constituição como povo.
Sendo assim, amores, afetos, desejos e ódios são preocupações
recorrentes do autor para interpretar nossa existência social. Para Freyre, foi a
miscibilidade sexual-racial o elemento mais importante para a colonização
brasileira, se comparado à mobilidade dos homens no Brasil do descobrimento.
Por meio dessa mistura, nossos ancestrais deram conta do processo de
povoamento de tão vastas e longínquas terras, o Brasil, como defende
obstinadamente em várias passagens do livro:
Foi misturando-se gostosamente com mulheres de cor logo
ao primeiro contato e multiplicando-se em filhos mestiços
que uns milhares apenas de machos atrevidos conseguiram
firmar-se na posse de terras vastíssimas e competir com
povos grandes e numerosos na extensão do domínio
colonial e na eficácia da ação colonizadora (FREYRE,
1950, p. 103).
Esse intercurso de corpos, como afirma o autor, obedeceu aos
criteriosos gostos do colonizador branco. De acordo com Freyre, o colonizador
desenvolveu logo que aqui desembarcou um gosto pelas mulheres não
europeias, cujos atributos estéticos atendiam aos seus mais diferentes
instintos. Foi assim que a mulata apareceu nos escritos de Freyre como
predileta para aplacar os prazeres do corpo do macho-branco. A construção
social da mulata como genuína marca da mulher brasileira, sensual,
voluptuosa teve no conjunto dos trabalhos de Freyre o seu maior defensor.
Estudos como os de Giacomini (1994) vão problematizar as
concepções acerca da constituição da mulata como signo da identidade
nacional. De acordo com essa autora, a mulher mulata aparece em
contraposição à mulher negra, sendo essa última um elemento representativo
da África, ao passo que a outra surge como um resultado positivo da
miscigenação, uma verdadeira “síntese da brasilidade” (GIACOMINI, 1994).
Elemento agregador entre diferentes povos, a mulata estreita os contatos entre
opostos, favorecendo laços com o “outro”. Esses atributos a isentam de
qualquer controle em relação à esfera familiar, visto que supostamente possui
uma libido exagerada. Essas características são criticadas por Giacomini
(1994), porque teriam estimulado imagens estereotipadas da mulata, ao
mesmo tempo que reforçariam a noção de um multiculturalismo harmonioso
em detrimento das agruras de nosso passado escravista.
314
Entretanto, Freyre afirma que o gosto português pelas mulatas
somente se expressou em um outro momento da colonização. Quando aqui
chegaram, os portugueses se depararam com outro tipo de mulher: a indígena.
O contato com essas mulheres fez operar entre os homens brancos todo um
conjunto de representações associadas à “mulher dos trópicos”. Para Rago
(2006), essas representações foram etnocentricamente construídas quando do
contato dos europeus com uma outra sociedade entendida como inferior, as
sociedades indígenas. Esse contato teria mobilizado representações em torno
da mulher não europeia, entendida como dotada de uma sexualidade fora de
controle, portanto, algo animal.
Aliás, para Freyre, as representações acerca da figura da “mulher dos
trópicos” encontravam correspondência na predisposição do português pela
mistura com diferentes povos, um traço do cosmopolitismo português. Essa
singular predisposição pela mistura, sobretudo com os povos de origem africana,
teria tornado os portugueses mais “plásticos” em função das sucessivas
mestiçagens que ocorreram ao longo dos séculos na Península Ibérica.
Para tal processo preparara-os a íntima convivência, o
intercurso social e sexual com raças de cor, invasoras ou
vizinhas da Península, uma delas, a de fé maometana, em
condições superiores, técnicas e de cultura intelectual e
artística, à dos cristãos louros (FREYRE, 1950, p. 221).
De acordo com Freyre, a moral sexual indígena em muito favoreceu ao
povoamento empreendido pelo homem branco, uma vez que sancionava a
poligamia, duramente combatida pelos jesuítas, cujos padres trataram de
repreendê-la arduamente nos anos que sucederam ao período do
descobrimento. Para Freyre, as mulheres indígenas foram as primeiras a
servirem à empresa colonizadora, ajudando a povoar essa parte do mundo. A
suposta voluptuosidade das mulheres indígenas encontrava terreno fértil no
tipo de homem europeu que aqui chegou, homens degredados pelos excessos
que cometiam, homens sexualmente superexcitados, argumenta Freyre.
Nesses termos, esses homens encontravam aqui o ambiente perfeito para
exercitar seus exageros, como podemos ver na passagem que segue:
O europeu saltava em terra escorregando em índia nua; os
próprios padres da companhia precisavam descer com
cuidado, senão atolavam o pé em carne. [...] As mulheres
eram as primeiras a se entregarem aos brancos, as mais
ardentes indo esfregar-se nas pernas desses que supunham
deuses. Davam-se ao europeu por um pente ou um caco de
espelho (FREYRE, 1950, p. 219).
315Thiago Barcelos Solivan. 07 | 2012 | p. 309-329
A imagem corriqueira defendida pelos viajantes do período do
descobrimento, de que entre os nativos brasileiros predominava a
licenciosidade sexual, não encontrava correspondência na moral sexual das
populações indígenas que, como avalia Freyre, estava fortemente submetida a
um conjunto de interdições que controlavam e prescreviam tabus acerca de sua
atividade sexual. Concomitantemente, essas imagens não satisfaziam a
realidade das populações negras, cuja sexualidade, de acordo com o autor, não
se rendia aos excessos, já que se compunha de uma moral sexual cingida de
prescrições rituais que antecediam o enlace sexual. Como sugere o autor:
Passa por ser defeito da raça africana, comunicado ao
brasileiro, o erotismo, a luxúria e a depravação sexual. Mas
o que se tem apurado entre os povos negros da África, como
entre os primitivos em geral, é maior moderação do apetite
sexual que entre os europeus. É uma sexualidade, a dos
negros africanos, que para excitar-se necessita de
estímulos picantes. Danças afrodisíacas. Culto fálico.
Orgias. Enquanto que no civilizado o apetite sexual de
ordinário se excita sem grandes provocações [...]
demonstrando a necessidade entre eles de excitação
artificial (FREYRE, 1950, p. 412).
O apetite sexual aguçado foi um componente tão mais presente entre
os portugueses (colonizadores, dominadores) do que entre os outros grupos
étnicos que compunham a sociedade brasileira. Dessa forma, as
representações associadas à pretensa “sexualidade selvagem” do negro e do
indígena não encontram paralelo nos traços culturais constitutivos das outras
culturas responsáveis pela colonização. A luxúria das terras brasileiras foi antes
uma consequência do tipo de organização social escravista que aqui se
estabeleceu. Essa organização franqueou o apreço por uma cultura hedonista,
baseada na assimetria modelada pelas relações sadomasoquistas.
Para Gilberto Freyre, a mulher indígena desfrutava de uma liberalidade
maior que a assistida pelos homens da mesma etnia. Essas mulheres se
encontravam supostamente mais liberadas para a sexualidade. Entre os
homens indígenas, Freyre surpreendeu uma verdadeira “comunidade de
homens” contrastando em grau de importância interna com a das mulheres. As
sociedades secretas viabilizavam uma alta aproximação entre homens de
diferentes idades. A entrada dos jovens não iniciados nessas sociedades era
marcada por dramáticos “ritos de passagem”, responsáveis pela transmutação
do iniciando em um homem. Essa homossociabilidade baseava-se na
solidariedade e reciprocidade entre eles. Segundo o autor, as relações sexuais
316
entre iguais biológicos era prática comum entre os homens de diferentes tribos 2brasileiras . Sobre essa prática, falavam horrorizados os viajantes que aqui
estiveram ao longo dos séculos. Para Freyre:
As sociedades secretas de homens, possível expressão, ou
antes, afirmação – na fase sexual e social de cultura
atravessada por muitas das tribos ameríndias ao verificar-
se a descoberta do continente do prestígio do macho contra
o da fêmea, do regime patronímico contra o matronímico,
talvez fossem melhor estímulo que a vida de guerra à
prática da pederastia (FREYRE, 1950, p. 257).
A propósito da homossexualidade e da bissexualidade nas populações
ameríndias, Freyre ressalta a considerável importância conferida aos homens
efeminados ou “invertidos”, cuja presença nesse tipo de sociedade é uma
constante. Esses homens gozavam de grande prestígio nesses grupos, servindo
para papéis que se relacionavam com a prática da magia e com a feitiçaria,
instituições centrais para a cosmologia indígena. Em trabalho sobre os Guaiaki,
Clastres (1988) revela aspectos dessa cultura que se aproximam das
observações de Freyre sobre os indígenas brasileiros do período do
descobrimento. No capítulo “O arco e o cesto”, Clastres (1988) chama a
atenção para a rígida divisão sexual dessa sociedade, ressaltando a
importância dos papéis de gênero como estruturantes, principalmente no plano
simbólico, para a vida social. Em sociedades onde esses papéis são tão
austeramente determinados, o lugar ocupado pelos homens quando se
distanciam dos símbolos imputados ao universo masculino é, geralmente, a
magia. Eles são totalmente incorporados à estrutura da sociedade,
transformando-se em uma figura feminina. Para Clastres, esses homens
dotados de aptidões sobrenaturais são lugar-comum entre esses grupos. Em
função da farta ocorrência registrada na documentação encontrada pelo autor,
Freyre destaca o quão comum era, entre os viajantes no período do
descobrimento, associar os indígenas à pederastia (FREYRE, 1950, p. 258).
Foi também na moral sexual indígena que os homens brancos
puderam consumar seus apetites pelo amor entre iguais. Freyre destaca como a
prática de sexo entre homens encontrou no período colonial momento propício
para desenvolver-se. É importante destacar que Freyre não atribuía à
homossexualidade um traço peculiar de nenhuma etnia que contribuiu na
2 A homossexualidade é prática sancionada entre diferentes culturas ao redor do mundo. Em muitas dessas tribos, essa prática se relacionaria com a construção social da masculinidade, sendo recorrente em uma dada faixa de idade como rito de passagem, marcando a entrada do neófito na “sociedade dos homens”, através de um conjunto de práticas que envolvem uma interação, inclusive sexual, com outros homens.
317Thiago Barcelos Solivan. 07 | 2012 | p. 309-329
formação do Brasil, o que faz é afirmar que essa prática esteve presente em
todas as etnias (brancos, negros e indígenas), reforçando o seu caráter regular
em diferentes sociedades.
É conveniente perceber ainda todo o notável interesse de Freyre pela
vida sexual do negro brasileiro. Esse interesse é revelado nos capítulos que
seguem às discussões acerca das contribuições indígena e branca na formação
social brasileira. Nesses capítulos, Freyre parece mesmo fazer derivar do negro
todo o erotismo da vida sexual brasileira, ressaltando, sobretudo, elementos
comumente associados ao imaginário social acerca de nossas preferências
sexuais.
Outro tema inovador tratado por Freyre é o da prostituição. De acordo
com o autor, a prostituição das “negrinhas” teria sido uma forma inaugural de
comercialização dos corpos no Brasil Colonial. Esse comércio dos desejos era
facilitado, em algumas situações, por suas donas brancas, verdadeiras
proxenetas, que afiançavam suas escravas aos marinheiros nos portos
coloniais. O rígido controle em relação à sexualidade das moças brancas
contrastava com a lubricidade das mulheres negras, que deveriam sempre
estar disponíveis à fornicação (FREYRE, 1950, p. 629). Essa necessidade de
evitar as mulheres brancas dos contatos com os homens alimentou-se da
prostituição. Ademais, toda a vida pública da mulher branca era negada em
função do enclausuramento nas “Casas Grandes”. Essas eram fortemente
submetidas aos olhares dos mais velhos, em um esforço premente de
preservação da castidade.
A literatura especializada sobre o tema tem revelado que essa lógica
ajudou a produzir representações negativas associadas à personagem da negra
e da mulata no imaginário social brasileiro. Aliás, essa discussão tem rendido a
Freyre as mais equivocadas críticas atribuídas aos supostos traços racista e
misógino presentes em sua obra. Percebemos que a prostituição em Freyre
assume um tom de algo crítico, que se relaciona com a dinâmica das relações
raciais brasileiras, fortemente influenciadas por nossa tradição escravista. O
corpo negro como mercadoria, investido de notáveis atributos sexuais, aparece
como corolário de uma relação baseada na desigualdade entre brancos e
negros. Esse corpo expressa uma forma de consagrar o “outro” como objeto em
uma sociedade onde o poder encontra-se em mãos brancas.
Casa Grande & Senzala inaugura ainda a discussão acerca das
relações sexuais intergeracionais. Freyre destaca a incidência das trocas
afetivo-sexuais entre mulheres mais novas, incluindo aqui a faixa etária que
hoje classificaríamos como crianças, e homens bem mais velhos. Essas uniões
318
eram sancionadas pela opinião popular. As diferenças raciais não se
apresentavam como dados relevantes para entendermos a dinâmica dessas
uniões, afinal mulheres brancas e negras eram igualmente objetos de desejo
desses “rapagões”. Nota-se, contudo, uma diferença de status, já que as
mulheres brancas eram procuradas para casamento, enquanto as negras
ficavam relegadas aos prazeres da alcova.
A prematuridade com que as mulheres entravam na vida sexual
aparece como dado significativo para avaliar a mortalidade infantil, bem como
a farta disseminação de doenças venéreas entre pré-púberes e púberes. O
número de meninas brancas que sofreram as consequências de sucessivos
abortos em função da pouca idade era extremamente alto, como observa Freyre
(1950). Elas também morriam constantemente na hora do parto, em função do
corpo ainda mal preparado ou mesmo em função da má alimentação das
“Casas Grandes”. Entre os indígenas, a mortalidade infantil era tão alta que,
quando percebida pela Companhia de Jesus, seus membros trataram de
construir mitos em torno da criança natimorta. Esses mitos reforçavam a ideia
de que as crianças eram anjos, que quando mortos voltavam aos braços do
senhor, confortando pais e filhos diante da iminência da morte.
A ocorrência de doenças venéreas é outro dado que despertou grande
interesse de Gilberto Freyre. De acordo com o autor, a recorrência da sífilis entre
os brasileiros afiançou a civilização dos trópicos. Os valores positivos
associados à miscigenação pelos excessos sexuais entre as etnias tiveram seu
contraponto negativo na rápida disseminação dessas “doenças do mundo”.
Como afirma Freyre (1950, p. 161):
À vantagem da miscigenação correspondeu no Brasil a
desvantagem tremenda da sifilização. Começaram juntas,
uma a formar o brasileiro – talvez o tipo ideal do homem
moderno para os trópicos, europeu com sangue negro ou
índio a avivar-lhe a energia, outra a deformá-lo. [...] Sua
ação começou ao mesmo tempo que a da miscigenação;
vem, segundo parece, das primeiras uniões de europeus,
desgarrados à-toa pelas nossas praias, com as índias que
iam elas próprias oferecer-se ao amplexo sexual dos
brancos. [...] Costuma dizer-se que a civilização e a
sifilização andam juntas: o Brasil, entretanto, parecer ter-se
sifilizado antes de se haver civilizado.
A importante contribuição de Freyre para a história da sífilis no Brasil,
assim como de seu entendimento, está na desvinculação dessa doença com a
miscigenação ocorrida no país. Gilberto Freyre opera uma mudança
319Thiago Barcelos Solivan. 07 | 2012 | p. 309-329
significativa na forma de pensar a doença, tirando-a do campo da degeneração
racial que a associava aos efeitos da miscigenação, para a esfera da patologia
social (TEIXEIRA, 1997).
A correspondência entre vida íntima e vida pública é outro marco
importante da obra de Gilberto Freyre. A respeito desse assunto, Rago (2006)
escreve que Freyre identifica a sexualidade com um poderoso modelador das
relações sociais, postulando-a como fator fundante para uma possível
interpretação do Brasil. As relações travadas na esfera pública brasileira
refletem a vocação do brasileiro em apreciar relações marcadas pelo
sadomasoquismo, característica tomada de empréstimo da vida privada
(RAGO, 2006). As analogias entre vida sexual, portanto íntima, e vida pública
são estruturantes para a construção desse modelo de se relacionar como o
“outro” em nossa sociedade. Em Freyre (1950, p. 167):
Esse sadismo de senhor e o correspondente masoquismo de
escravo, excedendo a esfera da vida sexual e doméstica,
tem-se feito sentir, através da nossa formação, em campo
mais largo: social e político. Cremos surpreendê-los em
nossa vida política, onde o mandonismo tem sempre
encontrado vítimas em quem exercer-se com requintes às
vezes sádicos; certas vezes deixando até nostalgias logo
transformadas em cultos cívicos, como do chamado
“marechal de ferro”.
Daí a facilidade em se encontrar relações fundadas em um forte
antagonismo entre seus elementos. O sadismo brasileiro se expressaria, em
larga medida, “no gosto em dar surra, de mandar arrancar dente de negro
ladrão de cana, de mandar brigar, na sua presença, capoeiras, galos e canários”
(FREYRE, 1950, p. 166). Vítima predileta do sadismo do menino branco, os
negros tiveram seus corpos constantemente submetidos à ferocidade desses
pequenos (mais tarde homens feitos), mesmo sexualmente. Era com esse
escravo que os primeiros contatos sexuais ocorriam, ainda que sem o
consentimento do negro, feito de passivo na relação sexual. A submissão sexual
do homem negro pelo branco é um dado significativo para compreendermos a
relação de poder e dominação travada entre essas duas etnias. Nessa relação, o
lugar assumido no coito é um ponto de fundamental importância para entender
a dinâmica que engendra os papéis sexuais, bem como a distribuição do poder
e do prestígio na nossa sociedade.
O lugar do homem como elemento penetrador oferece o modelo de macho
a ser produzido pela lógica dos gêneros à brasileira. Em suas pesquisas sobre a
homossexualidade no Brasil, o antropólogo Peter Fry (1982) observou que a
320
sociedade brasileira encontra-se dividida por uma rígida hierarquia de gêneros.
Para o autor, a posição ocupada na relação sexual (ativo/passivo) expressaria a
posição dos indivíduos dentro da estrutura social. Assim, os papéis de gênero
estariam submetidos à oposição masculinidade/atividade e
feminilidade/passividade, não oferecendo possibilidades para manifestações não
ortodoxas de outras identidades sexuais senão aquelas forjadas pela matriz
heterossexual (FRY, 1982). Nesses termos, ao penetrar sexualmente o homem
negro, o homem branco estaria subtraindo-o de sua masculinidade, colocando-o
em um lugar de menor prestígio, menor ainda do que aquele ocupado pela mulher.
Contudo, os negros não foram as únicas vítimas desse desequilíbrio de
forças concernentes às relações à brasileira, as mulheres sofreram, talvez na
mesma intensidade que seus opostos negros, desse traço peculiar atribuído ao
nosso processo civilizador. Sua existência foi sumamente silenciada à sombra
do pai e do marido, a quem deveria respeitar e servir. Porém, foi na dinâmica
das relações sexuais que esse gosto pelo sadismo se manifestou em sua forma
mais acabada, sobretudo no tocante à iniciação sexual do homem branco. A
esse fim, serviram tanto as mulheres negras quanto os “moleques de
pancadas”, como visto anteriormente, como também animais e frutas. Em
Freyre, essa problemática articula-se diretamente com o tipo de organização
social e econômica que se instaurou aqui nos idos tempos da colonização.
Dessa forma, podemos perceber que foi pelos excessos sexuais, ou mesmo pelo
uso do corpo passivo, que se pôde exercitar o poder em relação ao “outro”,
subjugado.
Nas condições econômicas e sociais favoráveis ao
masoquismo e ao sadismo criadas pela colonização
portuguesa – colonização, a princípio, de homens quase
sem mulher – e no sistema escravocrata de organização
agrária do Brasil; na divisão da sociedade em senhores
todo-poderosos e em escravos passivos é que se devem
procurar as causas principais do abuso de negros por
brancos, através de formas sadistas de amor que tanto se
acentuavam entre nós; e em geral atribuídas à luxúria
africana (FREYRE, 1950, p. 448).
Esse sadismo não era um atributo exclusivo dos homens brancos. Às
mulheres brancas, ao contrário das mulheres indígenas e negras, era reservado
um lugar mais destacado no conjunto da sociedade patriarcal. Ainda que
tenham sido silenciadas pelos maridos, elas encontraram outras formas pelas
quais puderam exercitar seu poder. O sadismo da sinhá branca em quase nada
se diferenciava do senhor em termos de crueldade. Eram muitas as atrocidades
321Thiago Barcelos Solivan. 07 | 2012 | p. 309-329
322
praticadas por essas senhoras, geralmente motivadas pelos ciúmes de seus
maridos. Para Freyre, essas moças enclausuradas nas “Casas Grandes” e
depois nos “Sobrados”, tendo como companhia um séquito de escravas
passivas, puderam construir um mundo à parte (privado), cujo poder de punir
era uma forma de extravasar sua total subserviência ao modelo patriarcal de
organização familiar. A submissão da mulher encontrava explicação na
proeminência do sexo “nobre” (o homem), um dos eixos principais do
patriarcalismo, que Freyre qualifica de monossexual, em função da
centralidade no homem.
Outros exemplos da predominância desse modelo são encontrados
quando da relação do menino com seus mestres nos colégios coloniais. Como
afirma Freyre (1950, p. 584), “houve verdadeira volúpia em humilhar a
criança: em dar bolo em menino. Reflexo da tendência geral para o sadismo
criado no Brasil pela escravidão e pelo abuso do negro”. Os colégios foram
ainda observados como espaços de forte repressão em função dos possíveis
males que poderiam contextualizar. Os “excessos sexuais” praticados pelos
meninos levaram ao recrudescimento das preocupações com esses espaços.
Não somente os medos de uma possível contaminação por diferentes
doenças em função das péssimas condições de higiene estavam em jogo,
práticas como a pederastia e o onanismo eram perseguidas pelos higienistas
coloniais como perniciosas à regularidade social. Essas preocupações
possuíam uma dimensão antes moral que epidemiológica, já que doenças
como a sífilis apareceram como fortes signos de masculinidade entre os
homens daquela época, tal como um ritual de passagem à vida sexual.
Freyre revela como essas doenças, sobretudo a sífilis (doença que
deixa marcas no corpo), apareciam, aos olhos da sociedade brasileira, como
capital simbólico que distinguia os machos dos não machos. Daí a facilidade
em se encontrarem nas ruas do Brasil Colonial homens que exibiam as sequelas
da doença e que faziam isso com profundo orgulho. O problema, tal como
colocado pelos higienistas, era com as formas não ortodoxas de transmissão da
doença, que ocorriam em função das relações sexuais entre esses meninos
enclausurados nos colégios. Se antes a prática homossexual era pouco vigiada,
talvez em função da escassez de mulheres na colônia, a Igreja Católica já
começara a operar um verdadeiro controle sobre essa prática, principalmente
por meio da institucionalização dos colégios jesuítas.
A lassidão sexual das terras além-mar não isentava nem mesmo os
clérigos que aqui se colocaram à disposição da empresa civilizadora. A ideia
corrente defendida por Gasper Von Barleus (1660) de que “não existe pecado
ao sul do Equador” era perseguida com impiedosa obstinação pelos padres e
outros membros do clero que aqui se fixaram. A união desses homens da
religião com suas amancebadas (negras) acabou por criar em nossas terras
uma verdadeira instituição, cujos filhos foram seus principais representantes.
Esses moços puderam ter acesso a uma educação que muito se assemelhava a
dos senhores brancos, fazendo-nos supor que essas uniões apresentavam
grandes oportunidades de mobilidade social em uma sociedade fortemente
hierarquizada.
Nem mesmo o plano religioso estava isento do erotismo brasileiro nos
tempos da colônia. Freyre destaca como a comunicação com o sagrado
expressava-se por meio de uma forte dimensão sensual. A devoção dedicada
aos inúmeros santos, vindos da herança portuguesa, estava profundamente
marcada por esse erotismo, fortemente amparado pela materialidade das
imagens sagradas. As mulheres eram as principais devotas desses santos,
muitas das vezes os procuravam para solicitar-lhes casamentos. Santos como
São João e São Gonçalo do Amarante eram os preferidos e mais indicados para
esse fim. Aos olhos de alguns viajantes, as festas religiosas no Brasil mais
pareciam rituais apaixonados e grosseiros nos quais mulheres em estado de
transe cantavam e punham seu corpo em contato direto com a imagem do
santo de devoção.
A intimidade com o santo de devoção era outra característica marcante
entre esses santos e seus devotos, traço cultural já presente entre nossos mais
antigos ascendentes em Portugal. Essa intimidade se expressava nos contatos
carnais com a imagem sagrada. O corpo ocupava um espaço importante nas
interações entre os fiéis e a figura santificada no culto religioso. Quantas
mulheres esfregaram acaloradamente suas coxas nas imagens de São Gonçalo
do Amarante na esperança de terem suas súplicas alcançadas, casamento e
filhos, diz Freyre. Outras tinham em São João seu santo de intimidade, a quem
se entregavam em confidências amorosas. Como avalia Freyre, foi assim que
“os grandes santos nacionais tornaram-se aqueles a quem a imaginação do
povo achou de atribuir milagrosa intervenção em aproximar os sexos, em
fecundar as mulheres, em proteger a maternidade” (FREYRE, 1950, p. 441).
Outra instituição abundantemente utilizada por esse mercado
amoroso foi a magia. A prática da magia relacionou-se diretamente com a
religião no trato das coisas sexuais no Brasil Colonial. Era comum lançar mão
da magia para tratar de pedidos associados à fecundidade, à gravidez, bem
como ao mercado amoroso. Santos eram requisitados, mas também não se
dispensava a bruxaria (magia simpática) como um componente eficaz para se
323Thiago Barcelos Solivan. 07 | 2012 | p. 309-329
324
obterem favores das forças sobrenaturais. A exemplo das nossas antepassadas,
ainda recorremos a esses recursos quando diante do amor. São vários os
episódios de magia sexual, destacando-se entre eles os “trabalhos para trazer a
pessoa amada” para a convivência do suplicante apaixonado, em nossa
sociedade.
Assim como na religião e na magia, a sexualidade se colocou
constantemente à mesa do brasileiro. O autor destaca a associação entre
diferentes tipos de comida, sobretudo doces, e a prática sexual. Esse
simbolismo sexual, como sugere Freyre, foi observado nos inúmeros pratos
com nomes fazendo referência explícita à atividade sexual. Para Freyre, as
freiras foram as principais protagonistas desses “doces erógenos”. Saíam dos
conventos “babas de moça”, “beijinhos”, “desmamados”, “casadinhos”, para
citarmos apenas alguns daqueles doces que enfeitam as mesas brasileiras. Daí
as analogias, tão comuns na sociedade brasileira, nas formas de se denominar
o sexo, tais como “comer”, correspondendo a transar, que cruzam
semanticamente esses dois campos em uma mesma categoria verbal.
Enfim, Freyre mostra como diferentes instituições incorporaram esse
elemento sexualizante que esteve constantemente presente no nosso processo
de formação. A empresa colonizadora não se estruturou como um projeto de
europeização dos costumes (SOUZA, 2008), mas sim por meio dos excessos e
desequilíbrios entre diferentes etnias. Ainda que estivessem investidos pelos
encargos previstos pela tarefa colonizadora europeia, os portugueses não se
furtaram da “vida desregrada” e impregnada de luxúria. Teriam essas
características moldado nossos costumes profundamente estruturados em um
desequilíbrio de conduta entre os gêneros e as formas com as quais exercem a
sexualidade. Era um desequilíbrio desvantajoso para as mulheres, quando
comparadas aos homens, cujos excessos eram historicamente permitidos.
Novos padrões de sociabilidade: os “Sobrados” e os “Mocambos”
Publicada em 1936, Sobrados & Mocambos trata do processo de
constituição da vida urbana brasileira, a partir da decadência da aristocracia
monocultora no século XIX. Diferentemente de Casa Grande & Senzala, que se
dedica a analisar a formação do Brasil no período colonial, essa obra vai
estudar a transição de um modelo marcado pela égide da aristocracia rural para
outro baseado no desenvolvimento urbano, destacando as mudanças ocorridas
na vida social dos brasileiros nesse ínterim.
O livro se inicia com a chegada de Dom João VI, de sua mãe, Dona
Maria, e de sua corte e tesouros em 1808, quando deixam a Europa sob as
ameaças de Napoleão e passam a morar no Brasil. Segundo Freyre (1961, p.
15), esse êxodo da Corte Portuguesa marca a decadência dos tempos áureos
vividos pelo patriarcado rural, bem como do “amor que o rei nutria pelos
senhores rurais”. A vinda da Família Real modificou profundamente a forma
pela qual a sociedade brasileira se organizava. O Brasil passa a incorporar
elementos característicos de uma sociedade urbana e moderna. As atitudes de
Dom João VI para a nova sede do reino passam a incrementar a vida social
brasileira, tornando-a mais cosmopolita e atraente para entrada de outros
povos, dentre os quais estão alemães, franceses, italianos etc.
A herança colonizadora portuguesa marcada pela miscibilidade sexual
entre diferentes etnias deixou, segundo Freyre, uma estrutura societária híbrida
em terras brasileiras. Essa estrutura teria laçado o Brasil em
Condições de vida tão exóticas – do ponto de vista europeu
– que o século XIX, renovando o contato do Brasil com a
Europa – que agora já era outra: industrial, comercial,
mecânica, a burguesia triunfante – teve para o nosso país o
caráter de uma reeuropeização (FREYRE, 1961, p. 309).
O que Gilberto Freyre chama de “reeuropeização” implicava extinguir
toda marca do feudalismo e dos traços não europeus deixados pelo tipo de
colonização empreendida pelos portugueses do descobrimento. Esse processo
envolvia a disciplina dos corpos, domesticados conforme as novas tendências
valorizadas por esses “outros europeus”. O europeu do norte emergiria como
modelo de civilidade, contrapondo-se ao europeu ibérico, que teria sido
responsável pela colonização nos séculos anteriores. Os modos de vestir, os
comportamentos, a educação agora seguiam os modelos adotados por países
como a França e a Inglaterra.
O aportuguesamento cederia lugar ao afrancesamento e ao
inglesamento dos modos como os brasileiros se relacionavam entre si. Esse tipo
de iniciativa incidiu diretamente nas formas como os brasileiros se vestiam, nos
hábitos à mesa, bem como na educação científica. A frouxidão sexual das
“Casas Grandes”, baseada na relação do senhor aristocrata e seus escravos da
“Senzala”, seria substituída pelos modos refinados e comedidos dos
“Sobrados” burgueses e seus opostos, os “Mocambos”, povoados por mestiços
que procuravam imitar os modos aburguesados para obterem prestígio junto à
sociedade.
325Thiago Barcelos Solivan. 07 | 2012 | p. 309-329
326
A “reeuropeização” dos costumes, como sugere Freyre, alterou ainda
as relações familiares, destituindo dos brasileiros a promiscuidade sexual, a
falta de etiqueta, a ausência de preocupação com a higiene pessoal, bem como
com o personalismo, características que orientavam a vida social na colônia
portuguesa. Aos homens dos “Sobrados”, não era mais permitida a poligamia
como o era no período colonial. A monogamia passou a ser vista como um valor
a ser perseguido, uma forma de controle em relação à sexualidade. A exibição
dos corpos, observada com certa naturalidade nas “Casas Grandes” de outrora,
especialmente os corpos das escravas, que deixavam ser vistas com roupas
leves que mostravam pernas e ombros com facilidade, passou a ser entendida
como ameaça à vida familiar, portanto associada à indecência e à falta de
compostura.
Esse rígido empenho em controlar as relações sociais via introdução de
normas de refinamento dos costumes reconfigurou as relações domésticas,
introduzindo interdições e regras em prol de uma rígida moral burguesa. Essa
moral se expressou, principalmente, na valorização do individualismo, do
abrandamento dos excessos e de uma percepção diferenciada dos movimentos
do corpo (SOUZA, 2008). A intimidade passou a ser um atributo a ser
observado de forma mais intensa, já que esse aspecto da vida tornou-se um
sinônimo de civilidade.
Ainda que essas mudanças tenham imprimido no Brasil ares de uma
modernidade compartilhada pelos modernos centros europeus, elas não foram
capazes de desconstruir a estrutura social pela qual o Estado brasileiro havia se
moldado. Em sua análise da obra de Gilberto Freyre, Bastos (2006) identifica
uma continuidade no que se relaciona ao século XIX e ao período colonial.
Segundo a autora, as figuras responsáveis pela construção do Estado brasileiro
ainda são aquelas advindas do sistema patriarcal. O processo de fortalecimento
do Estado, bem como dos interesses públicos, não foi intensamente vivido a
ponto de remodelar a relação público/privado. Diante disso, a autora afirma
existir uma continuidade entre família e Estado, ou seja, uma política
fortemente pautada pelo personalismo. Nesses termos, a política de
“ocidentalização” levada a cabo a partir do século XIX parece não ter sido bem-
sucedida, visto que o Brasil teria mantido uma existência simultânea de
elementos considerados “modernos”, com os resquícios de uma sociedade
fortemente marcada pelos excessos.
Considerações finais
Este trabalho analisou algumas das contribuições da obra de Gilberto
Freyre para o campo das sexualidades. Vimos que raça e sexualidade foram
componentes que se cruzaram para constituição histórico-social do povo
brasileiro. O tema da sexualidade ocupa no conjunto da obra freyriana um
espaço privilegiado na análise que empreende sobre a sociedade brasileira.
Percebemos que foi das relações sexuais, da dinâmica erótica, que os
brasileiros retiraram os modelos de comportamentos vivenciados nas relações
sociais mais amplas.
Contudo, são poucos os indícios deixados pelo autor a respeito de uma
sexualidade liberada, como sugere o senso comum, principalmente no homem
negro. Em detrimento da mulher negra, que recebe uma importância capital
para a empresa civilizadora e mesmo para a construção da identidade nacional,
o homem negro é invisibilizado e a sua sexualidade relegada, quando muito, à
violência sexual infligida pelo senhor branco. Da mesma forma, foi retratado o
homem indígena, improdutivo, seco, infecundo, quando comparado à
vivacidade do seu oposto sexual, a mulher indígena, a qual, segundo Freyre, foi
a verdadeira promotora da colonização. Sua importância como capital humano
extravasou os atributos físicos responsáveis pela sedução do homem branco,
sendo uma das principais responsáveis pela transmissão de bens culturais de
valores inestimáveis para a formação do povo brasileiro.
Outra preocupação profundamente presente no autor é de ordem
epidemiológica. A disseminação de doenças relacionadas ao desregramento
sexual no período colonial foi fartamente documentada pelo autor. Uma dessas
doenças, a sífilis, foi a que mereceu um dispendioso esforço analítico, posto
que se relacionava abertamente com o processo civilizador brasileiro. Dessa
forma, o autor tratou de desconstruir a tese vigente de que essa doença seria
uma causa imediata da miscibilidade das raças, deslocando a discussão para
uma perspectiva antirracista.
A frouxidão dos costumes foi, certamente, a marca mais bem-acabada
da colonização nessa parte do mundo. O excesso sexual foi um componente
essencial que, conforme Freyre, teria possibilitado a empresa colonizadora.
Entretanto, esse mundo dos excessos teria trazido ao Brasil traços por demais
exóticos aos olhares dos europeus do norte. Muito longe de ter se constituído
como uma sociedade civilizada, pautada no controle em relação aos diferentes
aspectos de sua vida, o Brasil colonial antes se aproximava ao grotesco, à festa,
ao rústico – características execradas pelos europeus não ibéricos. Diante
327Thiago Barcelos Solivan. 07 | 2012 | p. 309-329
328
dessa realidade, chega ao Brasil a Corte Portuguesa, que modificou
profundamente as formas de sociabilidade pelas quais os brasileiros
organizavam sua vida.
As transformações atribuídas à sociedade brasileira a partir da
chegada da Corte Portuguesa, bem como pela entrada de povos europeus não
ibéricos, modificaram profundamente as formas de sociabilidade entre os
brasileiros do período. O rígido controle sobre a vida social, principalmente em
relação aos instintos sexuais, como forma de acompanhar os rebuscados
costumes advindos de França e Inglaterra levou os brasileiros a uma verdadeira
preocupação com as aparências. Essas preocupações remodelaram por
completo as relações, incluindo as domésticas, que passaram a valorizar o
comedimento em detrimento do excesso, sobretudo sexual.
Esperamos que este trabalho tenha cumprido a tarefa que se propôs no
início, qual seja: conhecer um pouco mais das contribuições de Gilberto Freyre
para o estudo das sexualidades brasileiras. Acreditamos também que essa
incursão na sexualidade freyriana tenha possibilitado desconstruir alguns
equívocos atribuídos ao conjunto de sua obra, especialmente aqueles que
qualificam esse autor como racista e misógino.
Referências
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sociedade brasileira. São Paulo: Global, 2006.
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329Thiago Barcelos Solivan. 07 | 2012 | p. 309-329
330
15
Rompendo com a binaridade masculino/feminino nas canções
buarquianas: um estudo de “Folhetim” e “Tango de Nancy”
Roberto Gabriel Guilherme de LimaProfessor da rede pública do estado do Rio Grande do Norte
Mestre em Literatura Comparada pela UFRNmsrobertogabriel@yahoo.com.br
Breaking with the binarism masculine/feminine in the Chico Buarque's songs:
a study of the “Folhetim” and “Tango de Nancy”
332
Resumo
Este artigo aborda a questão do gênero como veículo de identidade no discurso
contemporâneo, tentando (des)construir o discurso hegemônico masculino, rompendo
com a binaridade masculino/feminino e consagrando as premissas da teoria queer, que
pressupõe discursos pós-modernos no que tange à ideia da identificação do gênero.
Nesse contexto, apresentam-se os discursos presentes nas canções femininas de Chico
Buarque, que se contrapõem às canções de compositores anteriores a ele, buscando-se
compreender a ruptura da dicotomia masculino/feminino. Por meio da política da
pós-modernidade, a noção de Estudos do Gênero, nos corpos sexuados, ganha mais
visibilidade, vislumbrada pela teoria queer, que dá margens aos estudos da fronteira da
identidade, mais precisamente entre os gêneros masculino/feminino.
Palavras-chave: Identidade. Gênero. Canção. Discurso. Pós-modernidade.
Abstract
This article approaches the question of gender as a vehicle of identity in contemporary
discourse. It attempts to (de)construct the hegemonic masculine discourse, breaking
with the binarism masculine/feminine and uses premises of the queer theory, which
proposes post-modern literary discourses in relation to the notion of gender identity. In
this context, we focus the discourses present in Chico Buarque's songs taken as feminine
representations – they contrast with songs of former songwriters – trying to understand
the break of the dichotomy masculine/feminine. It's through of identy's politc of post-
modern that the notion of the Gender' studies, in the sexual bodies, get very visibility,
descrying by queer theory that give margin at the studies of frontier of identity more
needy between the gender masculine/feminine.
Key-words: Identity. Gender. Songwriting. Post-modernity.
Introdução
O gênero é algo histórica e socialmente constituído, mas essa ideia vem
se tornando cada vez mais fluida, passando o homem a assumir de forma
recorrente o dito comportamento feminino, apresentando a fluidez que o estudo
de gênero denota. Chico Buarque é o compositor brasileiro que desde a década
de 1970 vem (des)conectando a binaridade homem/mulher em suas canções.
Ele empresta suas canções para dar voz às mulheres, ao mesmo tempo que
potencializa e vitaliza suas narrativas de vida. Assim, “na obra musical de Chico
Buarque, o poeta sentimental tem menos espaço que o poeta objetivo, aquele
que encontra sua poética ao dar a voz para personagens pinçados na vida
brasileira” (MELLO, 2003, p. 49), já que essas mulheres passam a ser vistas por
outro ângulo: como mulheres revestidas de pleno poder de fala.
Chico Buarque relata apenas o prazer corporal exercido pelas
prostitutas por ele constituídas, deixando perceber que essa prática sempre
ocorreu aos olhos da sociedade brasileira. A partir disso, ironicamente, ele
apresenta a sua proposta de denúncia de cunho social: a venda corporal da
mulher pela falta de oportunidade de exercer cargos de posição em destaque
social, já que os ditadores eram homens. Não cabia à mulher exercer tais
cargos, o que acarretava a falta de algum salário que as fizesse viver
razoavelmente para se manter com alguma dignidade humana. Elas mesmas,
as mulheres prostitutas de Chico, relatam seus prazeres corporais em canções
consagradas pelo público buarquiano.
Como um dos pontos fundamentais desta pesquisa é a análise de
algumas canções populares vistas pelo prisma buarquiano, considera-se relevante
discorrer algumas linhas a respeito da concepção de gênero, tentando
desconectar a binaridade masculino/feminino. Em subtópico, também será dada
outra abordagem às canções buarquianas de cunho feminista, pelo viés da teoria
queer, o que evidencia um ponto de diferença entre esta pesquisa e trabalhos já
realizados a respeito do já referido tema, como o de Adélia Bezerra de Menezes e o
de Maria Helena Sansão Fontes, que abordam o feminino nas composições de
Chico Buarque sem fazer qualquer menção à teoria aqui abordada.
As canções buarquianas serão ponderadas pelo prisma da teoria queer,
a qual se propõe a estabelecer uma concepção de vida que vai além das normas
veiculadas e preestabelecidas socialmente. Ser homem ou mulher é conceber
uma simples identidade, ser queer é romper com as binaridades e consagrar
uma indeterminação textual. Os sujeitos queer surgem da reflexão, da análise
crítica e da desconstrução de autores pós-estruturalistas, os quais discutem e
desmistificam a hegemonia do masculino em relação ao feminino, que sempre
333Roberto Gabriel Guilherme de Liman. 07 | 2012 | p. 331-348
se baseou em preceitos oriundos de uma visão patriarcal de uma corrente
másculo-centrada na relação de produção e reprodução, uma vez que tais
princípios insistem em manter a noção de sujeito criada por meio de discursos da
linguagem e da cultura. Nesse sentido, o ponto-chave dos ativistas queer está
em virar ao avesso as práticas de normalização dos sujeitos em questão.
A teoria queer deseja questionar os processos ditos “[...] institucionais
e discursivos, as estruturas de significação que definem, antes de mais nada, o
que é correto e o que é incorreto, o que é moral e o que é imoral, o que é normal
e o que é anormal” (SILVA, 2002, p. 108).
Baseada nas premissas desses teóricos denominados pós-
estruturalistas, norteia-se toda a teoria que iremos abordar nesta pesquisa, em
que se analisam as ideias de gênero apresentadas por Butler (2003, p. 24),
que afirma:
Quando o status construído do gênero é teorizado como
radicalmente independente do sexo, o próprio gênero se
torna um artifício flutuante, com a consequência de que
homem e masculino podem, com igual facilidade, significar
tanto um corpo feminino como um masculino e mulher e
feminino, tanto um corpo masculino como feminino.
Sendo assim, o comportamento atribuído às mulheres, em particular
às prostitutas constituídas nessas canções, dá margens para se perceber que a
mulher conseguiu, em plena década de 1970, nas canções e concepções
buarquianas, falar de sexo e de prazer sem ser vista como leviana, passando,
dessa forma, a exercer comportamentos ditos e consagrados como masculinos.
Essas canções apresentam uma ambiguidade textual que é a proposta
apresentada pela teoria queer, afinal, as mulheres em Chico Buarque exercem
comportamentos masculinos e femininos, expondo tal ambiguidade e
apontando a fluidez da concepção de gênero.
Masculino e feminino: uma convenção social
Quando se trata de estudos a respeito de uma “minoria” – sexual,
étnica ou cultural –, estes se revestem de discussões nos âmbitos social,
político e teórico-crítico, estabelecendo uma articulação a fim de que esses
grupos sejam ouvidos como sujeitos de práticas políticas e discursivas
plenamente ativas, sendo visto previamente em Chico Buarque o discurso da
mulher revolucionando sexualmente na década de 1970. É no âmbito social
que esses grupos tentam delimitar espaços para as diferenças e para suas
334
especificidades, contando com o amparo da mídia e de algumas ONGs, mas é
no campo acadêmico que questões relativas às identidades e às diferenças vêm
sendo mais discutidas.
A denominada política da identidade teve seu início nos anos 1970
na Europa e nos Estados Unidos, caracterizada pela ênfase relativa às questões
de igualdade e universalidade, em que se dava destaque às questões referentes
à diferença, tendo como reflexo a lógica da dominação que hegemoniza uma
identidade procurando recuperar o polo desvalorizado da dicotomia
homem/mulher. O termo identidade filosoficamente diz respeito àquilo que dá
a alguém sua natureza essencial e sua continuidade bem como ao que faz duas
pessoas ou grupo de pessoas terem características comuns. Ao se falar em
política da identidade, o termo já rege negação e diferença: algo é alguma
coisa, e não outra. É desse ponto que brota a filosofia da diferença em que
qualquer ser humano tem o direito de expressar livremente o seu pensamento e
ser o que quer ser como sujeito.
A política da identidade ganhou notoriedade ao longo do século XX,
adquirindo inúmeras expressões, sempre conectadas à crítica marxista e à
crítica psicanalista. A crítica marxista defendia que o ser humano era
universalizado e socialmente dividido por classes; já a crítica psicanalista
relutava em refletir o indivíduo separado das determinações sociais, postulando
a existência de um ser subjacente dentro de todos os indivíduos, o que
caracterizava uma identidade inconsciente.
As ideias freudianas da estrutura do inconsciente faziam a distinção
entre homens e mulheres, caracterizando a concepção de cada sexo, e sua
distinção estruturava-se no desenho morfológico, sempre definindo o feminino
relacionado ao masculino, em razão da falta, no caso da mulher, do órgão viril. O
modelo edipiano da formação das diferenças entre os sexos se desenvolveu
inicialmente na própria área da psicanálise, refletindo a ideia de que as diferenças
de gênero estavam intrinsecamente ligadas aos aspectos socioculturais. Quanto à
questão da sexualidade, Foucault (1998, p. 10-11) afirma:
Falar da “sexualidade” como uma experiência
historicamente singular suporia [...] os três eixos que a
constituem: a formação dos saberes que a ela se referem, os
sistemas de poder que regulam sua prática e as formas
pelas quais os indivíduos podem e devem se reconhecer
como sujeitos da sexualidade. [...] Parecia agora que seria
preciso empreender um terceiro deslocamento a fim de
analisar o que é designado como “sujeito”; convinha
335Roberto Gabriel Guilherme de Liman. 07 | 2012 | p. 331-348
pesquisar quais são as formas e as modalidades da relação
consigo através das quais o indivíduo se constitui e se
reconhece como sujeito.
Ainda, segundo Butler (2003, p. 24),
se o gênero são os significados culturais assumidos pelo
corpo sexuado, não se pode dizer que ele decorra de um
sexo desta ou daquela maneira. Levada a seu limite lógico,
a distinção sexo/gênero sugere uma descontinuidade
radical entre corpos sexuados e gêneros culturalmente
construídos.
Inúmeros estudiosos, a respeito dos estudos de gênero, passaram a
definir o segundo sexo como uma construção social, uma metáfora da alteridade.
O conceito de mulher, ao longo do tempo, sempre foi visto e constituído histórica
e socialmente como o outro, baseando-se em paradigmas da identidade
masculina. Já o masculino sempre foi encarado como algo revestido de certo
poder em relação ao seu oposto. Segundo Scott (1995, p. 75),
[...] precisamos pensá-lo [o poder] muito mais como uma
ação que é exercida constantemente entre os sujeitos e que
se supõem intrinsecamente, formas de resistência e
contestação, do que como algo que possui apenas um polo
e que está ausente no outro.
A partir desse pensamento de Scott (1995), busca-se compreender o
poder ora constituído e convencionado entre os polos da relação binária
homem/mulher, o qual remete às ideias de que certos comportamentos
psicológicos e papéis sociais são completamente impostos aos polos homem e
mulher. Muitas vezes, os cânones sociais elaboram ideias dicotômicas
produzidas pela cultura e pela linguagem.
Segundo Louro (1997, p. 25), “sexo se refere à identidade biológica de
cada um, gênero está ligado à sua construção social como sujeitos masculinos
e femininos”. Albuquerque Júnior (2003, p. 24) complementa: “[...] deixando
o gênero de ser um mero atributo corporal, para ser um produto social”. Sob a
perspectiva de Silva (2002, p. 105), “o conceito de gênero foi criado
precisamente para enfatizar o fato de que as identidades, a masculina e
feminina, são historicamente e socialmente produzidas”, já que é a cultura que
elabora a ideia de identidade e inspira a concepção de gênero, produzida
intelectual e socialmente. Nela, cada ser humano possui uma individualidade
que, consequentemente, realiza a produção do seu imaginário subjetivo, uma
vez que a própria cultura por ele produzida não pode reprimir essa aproximação
336
da subjetividade humana e a respectiva concepção cultural à qual esse ser
humano está atrelado. Nesse sentido, Geertz (1989, p. 48-49) aponta: “[...] a
humanidade é tão variada em sua essência como em sua expressão”.
Os seres humanos, tidos como principais agentes de cultura,
esquematizam seus juízos de valores a partir do seu contexto histórico,
ideológico e cultural bem como das concepções dessas construções
identitárias, modelando-as, remodelando-as e interagindo na relação tempo-
espaço devido à sua diversidade cultural.
Vê-se aqui a pluralidade da identidade do ser humano, em que cada
um luta pelo seu ideal, seu modo de pensar e de agir, porque, ao se tentar
(des)construir as dicotomias homem/mulher, masculino/feminino, é que se
percebe o quanto um polo possui o outro de forma desviada ou negada, já que
cada um carrega partes desse outro para adquirir sentido. As regras que
regulam o sexo têm o caráter de produzir aquilo que elas nomeiam, repetem e
adéquam à norma dos gêneros numa perspectiva heterossexual.
Essa discussão tem como ponto de partida as ideias de como é
constituído o mito da masculinidade, uma vez que o estereótipo do macho
exclui diferentes dinâmicas subjetivas, fato compreendido como normal, mas
que se pode conceber como algo linguística e culturalmente produzido ao longo
do tempo. Sendo assim, busca-se analisar esses estereótipos por um ângulo
que não venha induzir o leitor a uma dicotomia.
A identidade passa a ser algo que precisa de uma definição, portanto é
necessário que se atribua a ela uma abordagem que a induza a uma
significação, já que ela é cada vez mais multiplamente construída ao longo de
discursos, produzindo assim os estereótipos que reafirmam a identificação dos
seres humanos. Conforme Foucault (2003, p. 39-44),
os discursos religiosos, judiciários, terapêuticos e, em parte
também, políticos não podem ser dissociados dessa prática
de um ritual que determina para os sujeitos que falam, ao
mesmo tempo, propriedades singulares e papéis
preestabelecidos. [...] Todo sistema de educação é uma
maneira política de manter ou de modificar a apropriação
dos discursos, com seus saberes e os poderes que eles
trazem consigo.
Dessa forma, não há de se pensar que exista algo que seja
exclusivamente masculino ou feminino. Partindo desse pressuposto, percebe-
se que o polo masculino pode veicular o polo feminino, ou vice-versa. Esse
337Roberto Gabriel Guilherme de Liman. 07 | 2012 | p. 331-348
poder quem estabelece são as pessoas que se apossam do poder convencional;
a partir daí, geram-se as possibilidades de quem pode ou não cumprir tais
papéis sociais estabelecidos culturalmente, percebendo-se que ambos,
homem e mulher, podem exercer quaisquer papéis ou funções sociais.
Os estereótipos masculino e feminino regulam e policiam a
sexualidade, mas nem sempre os seres humanos definem com exatidão a sua
sexualidade, na medida em que, para Hall (apud MERCER, 2002, p. 9), “a
identidade somente se torna uma questão quando está em crise, quando algo
que se supõe como fixo, coerente e estável é deslocado pela experiência da
dúvida e da incerteza”. Já Nolasco (1995, p. 50) afirma:
O estereótipo do macho exclui estas diferentes dinâmicas
subjetivas, fazendo crer ao indivíduo que um homem se faz
sob sucessivos absolutos: nunca chora; tem que ser o
melhor; competir sempre; ser forte; jamais se envolver
afetivamente e nunca renunciar. É a este último modelo que
os homens estão procurando renunciar.
Portanto, o homem que não se enquadra dentro de um contexto
masculino hegemônico consequentemente será visto como o outro que sofrerá
a experiência da discriminação, por não ser aceito dentro dos padrões
determinados para o macho e para a fêmea, sentindo-se um ser humano
submisso, identificado pela antinorma e subjugado à categoria da
marginalidade. Daí, sabe-se que certos comportamentos e preceitos ditos
masculinos e/ou femininos, mantidos como verdades absolutas, reafirmam
que o macho não deve aferir-se pela ótica de condutas ditas femininas e vice-
versa, porque ambos não serão aceitos como normais dentro de uma sociedade
ocidental, em que o currículo aborda características de tendências branca,
machista e cristã.
Ninguém nasce macho ou fêmea, mas se torna linguística e
socialmente elaborado, enquadrando-se neste ou naquele gênero, tentando
entender as narrativas que criam opostamente o outro, em que muitas vezes
não são permissíveis determinados comportamentos dentro de um contexto
social. Para Louro (1997, p. 65), “[...] a linguagem não apenas expressa
relações, poderes, lugares, ela os institui; ela não apenas veicula, mas produz e
pretende fixar diferenças”.
Antes de sermos determinados pelo gênero, lembremos que somos
seres humanos de ideias conflitantes. Mesmo assim, devemos aceitar com
certo preceito o oposto, já que a diferença é vista como um tanto
discursivamente produzida, e não como se a concretização dessa ideia fosse
338
natural. Isso ocorre porque esse poder diferencial aflora, suplantando a lógica
dessa dualidade, percebendo que o oposto existe e se faz presente ao buscar no
tempo o seu espaço de aceitabilidade.
Nesse sentido, o ser diferente não existe em absoluto, pois sempre
haverá uma relatividade entre o outro não diferente para se constituir
inversamente o diferente. A identidade e a diferença pertencem à mesma
categoria das construções sociais de identificação, que implicam a exclusão e a
concepção do outro. De acordo com Silva (2002, p. 87),
para a concepção pós-estruturalista, a diferença é
essencialmente um processo linguístico e discursivo. A
diferença não pode ser concebida fora dos processos
linguístico e discursivo. A diferença não é uma
característica natural: ela é discursivamente produzida.
A teoria queer surge como uma nova possibilidade, uma nova
perspectiva, um novo horizonte para se questionar a respeito de como
redimensionar as ideias sobre gênero e identidade, tornadas fixas, prontas e
modeladas socialmente. A partir dela, é possível desvendar intelectualmente
aquilo que ainda teoricamente está intacto e inexplorado. A teoria queer é aqui
abordada porque suas temáticas servirão como ponto primordial para se
repensar e se (des)construir as ideias dicotômicas e estereotipadas de
masculino/feminino. Para Louro (2004, p. 45): “Segundo os teóricos e teóricas
queer, é necessário empreender uma mudança epistimológica que efetivamente
rompa com a lógica binária e com seus efeitos: a hierarquia,a classificação, a
dominação e a exclusão”. Ainda, de acordo com Silva (2000, p. 108),
[...] as identidades não são nunca unificadas, que elas são
na modernidade tardia cada vez mais fragmentadas e
fraturadas, que elas não são, nunca, singulares, mas
multiplamente construídas ao longo de discursos, práticas
e posições que podem se cruzar ou ser antagônicos. As
identidades estão sujeitas a uma historização radical,
estando constantemente em processo de mudança e
transformação.
Conforme Hall (2002, p. 71), “[...] a modelagem e a remodelagem de
relações espaço-tempo no interior de diferentes sistemas de representação têm
efeitos profundos sobre as formas como as identidades são localizadas e
representadas”.
Em face de sua devida sexualidade, o ser humano será direcionado por
padrões canônicos durante seu percurso de vida, no qual há provas, confrontos
339Roberto Gabriel Guilherme de Liman. 07 | 2012 | p. 331-348
e conflitos que ele terá de se submeter, em razão do que já está predeterminado
e prescrito nos cânones para cada um.
Não existe um sujeito unificado preexistente, há sujeitos modelados
pelos padrões regulamentadores da sua existência. Louro (2004, p. 13)
entende que “não há lugar de chegar, não há destino pré-fixado, o que interessa
é o movimento e as mudanças que se dão ao longo do trajeto”.
Experimentar o proibido é o que cabe àqueles que transgridem as
regras preestabelecidas que delimitam o seu rumo ou direcionamento, em que
as características físicas são vistas como diferencial, atribuindo uma gama
significativa de cultura. Segundo Louro (2004, p. 15), “tal lógica implica que
esse 'dado' sexo vai determinar o gênero e induzir a única forma de desejo.
Supostamente, não há outra probabilidade senão seguir a ordem prevista”. O
compromisso com a masculinização e a feminilização do ser é uma convenção
do sujeito; o viver no perigo cabe aos transgressores do percurso, não havendo
como impedir aqueles que atravessam e subvertem as normas, os quais são
certamente os primeiros a serem localizados e escolhidos pelas entidades
corretivas e de recuperação, uma vez que para eles são prescritas exclusões e
penalidades.
De acordo com Louro (2004, p. 20), “a drag escancara a
construtividade dos gêneros. Perambulando por um território inabitável,
confundindo e tumultuando, sua figura passa a indicar que a fronteira está
muito perto e que pode ser visitada a qualquer momento”.
Ao se perceber que o polo masculino pode possuir o oposto, analisa-se
como a fronteira está tão próxima que pode ser considerada e revista como algo
adjacente ao modo de como cada ser a concebe. Se um sujeito se pronuncia
como a representação da feminilidade, sempre terá seus limites, suas
possibilidades e suas restrições.
No conjunto da sociedade, muitas mulheres lutam para serem
reconhecidas e ao mesmo tempo incluídas em termos de igualdade e
legitimação, embora muitas outras desafiem as fronteiras tradicionais de
gênero, preocupando-se apenas em pôr em questão as dicotomias
masculino/feminino, homem/mulher. Já outros grupos de mulheres não estão
satisfeitos em atravessar as divisões e permanecem vivendo a ambiguidade da
própria fronteira.
Quando se aborda o que promulga a teoria queer, os termos
homem/mulher passam a ser analisados de forma mais eficaz, colocando em
xeque a naturalização da heterossexualidade e a diversidade de identidades
340
em jogo bem como questionando as estreitas relações do eu com o outro. A
diferença não estaria ausente, mas sempre presente e fazendo sentido,
desestabilizando o sujeito e problematizando as estratégias normalizadoras
que sempre pretenderam ditar e restringir as formas do ser e do viver. A
temática queer não impõe, não é canônica, e sim coloca em questão as
discussões amplas das identidades que são múltiplas, não é dualista, foge ao
enquadramento e não propõe ações corretivas àqueles que a hostilizam.
Segundo Louro (2004, p. 59),
polêmicas e debates são frequentes entre esse grupo de
intelectuais que mantém, contudo, alguns pontos em
comum, já que a maioria se apoia na teoria pós-
estruturalista francesa e apela para estratégias
descentradoras e desconstrutivas em suas análises. Sua
produção tem pretensões de ruptura epistemológica;
portanto, esses teóricos e teóricas querem provocar um
jeito novo de conhecer e também pretendem apontar outros
alvos do conhecimento.
Uma política de nova informação cultural é o que pretendem os
teóricos/as queer. Dessa forma, pode-se chegar a um ponto que estimule outro
modo de conceber e de se pensar outros interesses aos educadores. Nessa
questão, está implícito procurar conceber uma mudança epistemológica que
rompa com as binaridades e seus efeitos: de rotulação e de exclusão, já que o
alvo da política queer está em fazer uma crítica à oposição homem/mulher,
compreendida como uma dicotomia que sempre organiza as práticas sociais e
não propriamente o destino desses sujeitos.
Os questionamentos que podem ser feitos relativos à teoria queer são
inúmeros, sendo importante lembrar que não existe uma origem ou um começo
para essa teoria. O óbvio é que sua formação discursiva permite seu surgimento
em um dado contexto, porque, para o ativista queer, o importante é atravessar,
desconfiar do que está posto, sempre colocando toda a situação em
questionamento para que possa haver novas discussões, das quais possam
brotar outros pensamentos e consequentemente novas possibilidades de
redirecionamento.
Com essas abordagens amplamente discutidas, e verificando um
lirismo feminino presente em algumas composições musicais de Chico Buarque,
faz-se valer a possibilidade de (des)construção do que se pensa como masculino
e feminino, ao se perceber que determinadas composições buarquianas trazem
visões de características comportamentais ditas femininas, uma vez que o
compositor assume em suas canções uma voz lírica feminina.
341Roberto Gabriel Guilherme de Liman. 07 | 2012 | p. 331-348
Quando se constata o teor de tais canções, nota-se a ideia de como um
homem pode relatar o mundo dito feminino com tanta presteza sem perder
suas características ditas masculinas. A partir desse pressuposto, chega-se à
conclusão de que o homem pode compreender o comportamento psicológico
dito feminino, já que as próprias composições buarquianas, aqui
mencionadas, denotam essa pluralidade da concepção de gênero. Sendo
assim, tenta-se (des)construir a lógica suplantada do pensamento
historicamente constituído nas relações binárias homem/mulher e
masculino/feminino, lembrando que no estudo de gênero não se deve reforçar
tais binaridades identitárias.
O feminino nas canções buarquianas
Ao se analisar a obra buarquiana, é perceptível, em algumas canções
aqui selecionadas, um lirismo feminino que o próprio Chico Buarque se
encarregou de descrever eloquentemente, falando da alma feminina de uma
forma que lhe é bem peculiar. Nesse sentido, Meneses (2006, p. 103) aponta:
“No entanto, o poeta não fala apenas da mulher, ou à mulher. Assumindo o eu
lírico feminino, ele fala como mulher. E de um ponto de vista, por vezes,
espantosamente feminino”. As imagens de mulher assim como os papéis e
identidades que emergem dessas canções compõem as representações sociais
do que se convencionou chamar de comportamentos ditos femininos; essa
constelação de imagens alude às várias concepções desse mesmo feminino.
Segundo Butler (2003, p. 47), “se é possível falar de um 'homem' com um
atributo masculino e compreender esse atributo como um traço feliz, mas
acidental desse homem, também é possível falar de um 'homem' com um
atributo feminino, qualquer que seja, mas continuar a preservar a integridade
do gênero”. Fontes (2003, p. 10) reflete a respeito de Chico Buarque dizendo:
Como poeta do seu tempo, ele é consciente da condição da
mulher na sociedade, da operação oriunda de situações
econômicas e culturais, refletindo nas relações conjugais e
também do fascínio, encanto e atração feminina que
redundam em prazeres físicos e espirituais na relação
homem/mulher.
Ramos (2006, p. 147) ressalta:
Na música popular de Chico Buarque de Holanda,
encontram-se muitas vozes que constituem a sociedade
brasileira. Vozes daqueles que, em princípio, não têm voz,
que são calados pela repressão emocional, social,
342
econômica e política. Vozes daqueles que não conseguem
dizer, dos que são marginalizados no sistema. A obra de
Chico é plural pelos diversos enfoques que ela acolhe e
revela e também pelas visões assumidas tanto da condição
feminina como da masculina.
Em suas canções aqui estudadas, inúmeras temáticas são notórias e
sempre relacionadas ao comportamento dito feminino. Nelas, o
comportamento das prostitutas desvia-se dos padrões que a sociedade sempre
concebeu para a mulher, pois buscam o prazer sexual e falam a respeito dele
com seus parceiros.
Nesse sentido, percebem-se mudanças no comportamento feminino
na materialidade linguística dessas canções, no momento em que essas
mulheres relatam “segredos” encobertos pelo discurso hegemônico masculino
ao longo dos tempos. Dessa forma, as mulheres passam a assumir
comportamentos antes consagrados como masculinos. São as mulheres
aventureiras do sexo, expondo seu desejo sexual desmedido em “Folhetim” e
em “Tango de Nancy”.
Enfim, é a mulher revolucionando sexualmente em plena década de
1970, uma vez que a mulher buarquiana é concebida e revestida de pleno
poder de fala e discurso, quando ela fala por si mesma, refletindo esses
comportamentos sociais, antes somente concebidos para o homem. A respeito
desse poder discursivo da mulher em Chico Buarque, Foucault (2004, p. 10)
afirma: “Não existe algo unitário e global chamado poder, mas unicamente
formas díspares, heterogêneas, em constante transformação. O poder não é um
objeto natural, uma coisa; é uma prática social e, como tal, constituída
historicamente”.
Folhetim
Se acaso me quiseres
Sou dessas mulheres
Que só dizem sim
Por uma coisa boa
Uma noitada boa
Um cinema, um botequim
E, se tiveres renda
Aceito uma prenda
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344
Qualquer coisa assim
Como uma pedra falsa
Um sonho de valsa
Ou um corte de cetim
E eu te farei as vontades
Direi meias verdades
Sempre à meia luz
E te farei vaidoso, supor
Que és o maior e que me possuis
Mas na manhã seguinte
Não conte até vinte
Te afasta de mim
Pois já não vales nada
És página virada
Descartada do meu folhetim.
(CHICO BUARQUE, 1978).
A prostituta descrita por Chico Buarque nessa canção vem afirmar sua
personalidade de mulher que usa o homem de forma a seduzi-lo com palavras,
como em: “Direi meias verdades sempre à meia luz”; “E te farei vaidoso supor”.
Ela é a mulher que exerce certo poder na relação amorosa, nesse caso, em
correspondência ao sujeito masculino, no momento em que ele está sendo o
objeto do desejo: “Que és o maior e que me possuis”.
Ao amanhecer, essa prostituta descarta o “amado”, já que ela
está disponível para outros homens. Como se vê em “Sou dessas mulheres que
só dizem sim”, ela não rejeita a possibilidade de ser amada por outros: “Te
afastas de mim”, “És página virada”, “Pois já não vales nada”. Revestida de
certo discurso feminino, a mulher buarquiana vem reafirmar comportamentos
sociais antes apenas concebidos para o homem, porque falar de vida amorosa,
de prazeres sexuais e de vida a dois com tanta presteza sempre foi
comportamento concedido aos homens.
Tango de Nancy
Quem sou eu para falar de amor
Se o amor me consumiu até a espinha
Dos meus beijos que falar
Dos desejos de queimar
E dos beijos que apagaram os desejos que eu tinha
Quem sou eu para falar de amor
Se de tanto me entregar nunca fui minha
O amor jamais foi meu
O amor me conheceu
Se esfregou na minha vida
E me deixou assim
Homens, eu nem fiz a soma
De quantos rolaram no meu camarim
Bocas chegavam a Roma passando por mim
Ela de braços abertos
Fazendo promessas
Meus deuses, enfim!
Eles gozando depressa
E cheirando a gim
Eles querendo na hora
Por dentro, por fora
Por cima e por trás
Juro por deus de pés juntos
Que nunca mais.
(CHICO BUARQUE; EDU LOBO, 1985).
Mais uma canção que reflete o submundo da prostituição. O primeiro
verso já alude a um questionamento da própria prostituta, que não vive um
momento prazeroso por amor: “Quem sou eu para falar de amor”. Assim, o
tema amor não é reservado às prostitutas, pois elas não devem amar. É comum
ouvir tal afirmação em relação às prostitutas, como é o caso de “Ana de
Amsterdã”, que cruzou o mar na esperança de casar. Sabe-se que sentimentos
relacionados a amor, família e filhos não são reservados às prostitutas.
345Roberto Gabriel Guilherme de Liman. 07 | 2012 | p. 331-348
346
Os versos “Se de tanto me entregar nunca fui minha” e “Homens eu não
fiz a soma de quantos rolaram no meu camarim” vêm reafirmar a vida fugaz da
prostituição, são marcas registradas nessa canção, que traduz o mundo sem
sentimentos formais, vivenciado por aquelas que estão na prostituição.
Esses comportamentos discursivos em que se expõe o prazer sexual
sempre foram constituídos para os homens. Sendo assim, as mulheres
passam, nas canções de Chico Buarque, a exercer comportamentos antes
concebidos para os homens, apresentando uma pluralidade de
comportamentos e apontando a indeterminação textual proposta pela teoria
queer. Sobre a politização do corpo, Foucault (2002, p. 25-26) afirma:
Mas o corpo também está diretamente mergulhado num
campo político; as relações de poder têm alcance imediato
sobre ele; elas o investem, o marcam, o dirigem, o
suplicam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a
cerimônias, exigem-lhe sinais. [...] Trata-se de alguma
maneira de uma microfísica do poder posta em jogo pelos
aparelhos e instituições, mas cujo campo de validade se
coloca de algum modo entre esses grandes funcionamentos
e os próprios corpos com sua materialidade e suas forças.
O homem sempre foi o personagem dominante nas relações sociais,
mas, em plena década de 1970, surgem figuras emblemáticas na sociedade
carioca e brasileira que se destacaram por causar certo impacto
comportamental devido às suas performances, que fugiam aos padrões
denominados e consagrados como femininos. Dentre essas figuras, destacou-
se Leila Diniz.
A busca pela emoção e a exposição sem constrangimentos do seu
prazer sexual caracterizaram uma mulher que assume uma postura ativa de
viver seu oposto, incorporando aspectos do viver masculino, sem, contudo,
masculinizar-se. É a mulher que se situa além do sistema de dominação
masculina, sempre numa posição de paridade, evitando buscar seu exercício
da dominação sobre o homem.
Assim são as prostitutas descritas por Chico Buarque, as quais se
expõem nessas canções ao falarem de sexo, de vida conjugal e de afetividade
com seu parceiro, sem receios de se mostrarem publicamente ao relatarem sua
vida sexual de forma tão explícita. As canções buarquianas se constituem de
um eu lírico feminino, o que aponta Chico Buarque como um compositor
brasileiro que consegue explicitamente (des)montar a binaridade
masculino/feminino.
Conclusão
Este trabalho baseou-se na questão das binaridades consagradas
social e culturalmente entre os polos masculino/feminino, privilegiando o
discurso buarquiano, em que o teor feminino se faz plenamente visualizado,
identificando uma mulher revolucionária na década de 1970, ao expor
publicamente seus desejos sexuais e seus anseios por aventuras amorosas. Ao
tomar essas canções buarquianas como corpus deste trabalho, foi possível
compreender que o homem também pode veicular o denominado
comportamento feminino independentemente do seu sexo. Com isso, não se
quer reforçar os estereótipos, nem consagrar as dicotomias, mas investir
politicamente, tentando desestabilizar verdades hegemônicas a respeito do
masculino/feminino consagradas pela rigidez da lógica das binaridades ao se
enfatizar aquilo que se convencionou como normal.
Numa perspectiva permeada pela pós-modernidade, passa-se a
redefinir o estudo do gênero, em que a binaridade masculino/feminino torna-se
um alvo, não necessitando reforçar tal dicotomia estereotipada, consagrada ao
longo do tempo como natural. Isso se mostra possível quando se institui uma
realidade permissível, abrangendo as condições do sujeito como um ser não
contraditório em relação à sua sexualidade. Butler (2003, p. 52) afirma:
O “sujeito” masculino é uma construção fictícia, produzida
pela lei que proíbe o incesto e impõe um deslocamento
infinito do desejo heterossexualizante. O feminino nunca é a
marca do sujeito; o feminino não pode ser o “atributo” de um
gênero. Ao invés disso, o feminino é a significação da falta,
significada pelo Simbólico, um conjunto de regras linguísticas
diferenciais que efetivamente cria a diferença sexual.
Aos poucos, verificou-se a importância do discurso feminino
buarquiano para a desestabilização da dicotomia masculino/feminino,
consagrada pelo estereótipo masculino ao longo do tempo. Chico Buarque é o
compositor brasileiro que rompe a fronteira do gênero, apontando um horizonte
de possibilidades ao expor seu lirismo feminino e consagrar a ruptura da
fronteira do gênero, assinalando o que afirma Butler (2003, p. 24): “[...] com a
consequência de que homem e masculino podem, com igual facilidade,
significar tanto um corpo feminino como um masculino e mulher e feminino,
tanto um corpo masculino como feminino”.
347Roberto Gabriel Guilherme de Liman. 07 | 2012 | p. 331-348
Referências
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2000.
348
Resenha
Na busca de atribuição de sentido para as alterações das práticas
socialmente compartilhadas e empreendidas pelos indivíduos na vida urbana,
podem-se apontar, em linhas gerais, a orientação pela via do risco e do medo,
que vem se formando desde a derrocada do Estado de bem-estar social, e a
emergência do Estado mínimo e de aspectos sociais, econômicos e culturais
que valorizam as práticas que se voltam para a busca objetiva por proteção, que
é direcionada contra um inimigo amorfo. Essas mudanças geram resultados
ambivalentes de uniformização do espaço urbano, cindindo ainda mais
firmemente ricos e pobres, como também trazem a possibilidade de aproximar
ainda mais as pessoas, já que as cidades contemporâneas juntam, aglomeram
e aproximam aqueles que querem se separar.
Essa é a questão fundamental que anima a análise realizada pelo
sociólogo polonês Zygmunt Bauman, em Confiança e Medo na Cidade. O
sociólogo, ao produzir um trabalho ensaístico sobre a nova configuração urbana
que vem se delineando nas grandes cidades, procura compreender as
alterações sociais e psicológicas dessa mudança. Apesar de não ser referência
do seu trabalho, Bauman parece querer compreender as características sociais
constitutivas do novo fenômeno urbano, tal como fez o sociólogo e filósofo
alemão Georg Simmel (1979) há mais ou menos um século.
Para dar conta da tarefa a que se propõe, a obra está organizada em
três capítulos, nos quais são discutidos os impactos engendrados pela
emergência das mudanças urbanas acarretadas, especialmente, na fase
líquido-moderna da sociedade ocidental.
Na estruturação da obra, percebe-se claramente um nexo entre os
capítulos, permitindo dividi-la em três partes. De início, o autor apresenta uma
351Daniel Gonçalves de Menezesn. 07 | 2012 | p. 351-355
CONFIANÇA E MEDO NA CIDADE
ZYGMUNT BAUMAN
Por Daniel Gonçalves de MenezesGraduado, Mestre e Doutorando em Ciências Sociais pela UFRN
danielgmenezes@hotmail.com
pormenorizada análise sobre as questões que dizem respeito à confiança e ao
medo na cidade, demonstrando que esse medo e o desejo de um “porto
seguro”, que praticamente nunca é encontrado, em grande medida,
relacionam-se com a construção de um processo sociourbanístico, que cria e
generaliza uma nova sensação de insegurança. Posteriormente, ele expõe os
efeitos perversos e as possibilidades positivas desse processo. No último
capítulo, reflete sobre aquele que, talvez, seja o maior inimigo
fenomenologicamente construído do homem urbano: o “estrangeiro”.
O primeiro capítulo traz a perspectiva crítica de apresentação e análise
dos fatores constitutivos da cultura do medo, a qual vem se consolidando nos
espaços urbanos. A cidade, reflete Bauman (2009), que emergiu como um
espaço para proteger as pessoas dos “outros”, que não faziam parte do “nós”,
agora parece perder sua função, sendo dominada por uma cultura do medo.
Essa cultura do medo, reproduzida principalmente – mas não apenas
– pela classe média, avaliza políticas de controle e repressão com a
esperança de que seu problema seja dissipado. O problema é que, dominados
pelo individualismo moderno e pela integração pela via do afastamento, os
agentes promovem o fim dos antigos e sólidos laços sociais em prol de uma
tentativa desenfreada, ao mesmo tempo incerta, de superar a insegurança
em que imaginam viver. As cidades social-democratas, que tinham uma
relativa organização do “medo”, cedem espaço às novas aglomerações
urbanas proporcionadas pela desregulamentação do Estado mínimo e do
capitalismo flexível.
O capitalismo, que se organiza de modo cada vez mais global, forma
uma agenda urbanística que acompanha esse crescimento. Porém, essa nova
configuração sociourbana deixa pouca brecha para as intervenções da política,
que, em certo sentido, agem em âmbito local. Incapazes de resolver os seus
“problemas”, os cidadãos passam a procurar supri-los nas promessas
mercadologicamente montadas para isso, criando o que Bauman (2009) chama
de uma verdadeira “mixofobia” – o desejo de segurança, que se confunde com o
isolamento e com a suspeita crescente com relação ao “outro” e ao “diferente”.
Nada de mistura nem de aproximações. Somente os muros e os condomínios
fechados podem, nessa perspectiva, resolver o problema das pessoas.
Bauman (2009), apesar do pessimismo inicial, tenta vislumbrar
alternativas para essa jaula de ferro em que se transformaram os lares das
pessoas. Deve-se perseguir aquilo que ele denominou de “mixofilia”, que é a
tentativa de criar um ambiente propício para uma fusão de horizontes onde a
352
diferença é não apenas respeitada, mas também valorizada. Se por um lado há
uma desintegração do antigo “nós” sólido-urbano, a cidade, em suas novas
manifestações urbanas, cria condições para que os indivíduos,
inevitavelmente, aproximem-se e passem a experimentar novas sensações de
convívio e respeito com relação ao outro, já que os muros apresentam limites e
as pessoas se veem obrigadas a interagir com o “outro”. Daí pode surgir a
composição de um novo “nós”, baseado na “mixofilia”.
No segundo capítulo, Bauman (2009) disseca as implicações sociais
da arquitetura que nasce com a cultura do medo, da incerteza e do risco. A
arquitetura do medo tende a uniformizar. Os espaços modernos planejados
pelos arquitetos e administradores públicos modernos, que privilegiavam o
acesso e o convívio público, são reconstruídos em prol da uniformização das
casas dos residenciais vigiados pelas câmeras de seguranças, atravessadas por
muros e cercas eletrificadas. As praças e os espaços urbanos de convívio social
perdem a sua significação e são fortemente contestados pelas novas gerações,
aquelas que, justamente, mais sofrem com esse próprio esvaziamento urbano.
As consequências não intencionais das ações dos agentes
preocupados com a segurança e que compram suas casas nesse novo ambiente
uniforme são a de gerar, ao contrário do que eles desejam, ainda mais medo e
incerteza. Nunca é possível estar totalmente seguro. Somente a convivência
diversa e democrática pode produzir o aprendizado social necessário para que
os atores consigam conviver e, quem sabe, superar os riscos por eles mesmos
construídos.
Diz Bauman (2009, p. 74) já no terceiro capítulo: “[é preciso] ver,
reconhecer e resolver os problemas da convivência”. Somos sempre os
estrangeiros do outro, já que nos caracterizamos como vizinhos de pessoas
que, em muitos momentos, mal nos conhecem, mas que também não
conhecemos.
Essa diferença vem sendo encarada nas novas agregações urbanas,
através do estabelecimento de fronteiras com o “estrangeiro”, tentando,
sobretudo, construir moradias “vedadas”, em que não há brecha para qualquer
ente externo. Seria o nosso “aconchego”. Um lugarzinho só nosso, longe de
toda a “loucura” e “parafernália” da cidade.
O fato é que as cidades, na visão de Bauman (2009), transformaram-
se em depósitos de “lixo humanos” – pessoas totalmente supérfluas. Não se
trata mais do antigo “desempregado”, que, mesmo que isso em regra não
acontecesse, tinha a possibilidade de ser novamente “inserido”. Era um
353Daniel Gonçalves de Menezesn. 07 | 2012 | p. 351-355
horizonte, em certa medida, possível. Agora há o simples descarte das pessoas.
Essas pessoas não apresentam qualquer possibilidade de serem “absorvidas”
pelo sistema. Perderam a condição de serem chamadas de “gente”. Os espaços
públicos cuidam, nas novas cidades, de expulsá-los e impedir que eles durmam
num banco de uma praça ou façam um alojamento na grama de um parque.
Bancos desconfortáveis para dormir e até sensores de água e de barulhos vêm
sendo instalados nas principais cidades da Europa com o intuito de promover
essa política de “limpeza humana”.
Além disso, a mesma cidade que abriga os condomínios de luxo
produz os guetos da underclass, horroroso conceito americano, diz Bauman
(2009), cunhado para enquadrar acriticamente os membros de uma suposta
“classe inferior”.
Os cidadãos ditos de “bem”, quando procuram um lugar seguro,
querem, de fato, esquecer que isso existe e se livrar dos membros da
underclass. O “estrangeiro” precisa ser extirpado. O paradoxal é que, ao
tentarem criar maior segurança e conforto para si próprios, os membros dos
condomínios fechados perdem a capacidade de convívio com o outro
estrangeiro, o que aguça ainda mais o medo de qualquer tipo de contato com
outras pessoas, incapacitando-as.
A questão é que essa separação nunca será total. As cidades se
formam e a maior parte do gênero humano mundial já vive nelas e a tendência é
só crescer. É nesse sentido que Bauman (2009) afirma que, em vez de um
choque de civilizações, deve existir um encontro de vizinhos, pois, para o bem
da própria humanidade, a ideia de espaços urbanos vedados não é real. São
respostas construídas para os medos também construídos. Nesse panorama, o
homem tem a tarefa de tornar a comunidade dos homens direcionada para a
compaixão e para a plena compreensão e convívio com o outro.
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Referências
BAUMAN, Zygmunt. Confiança e medo na cidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental. In: PEREIRA, Luiz (Org.). O fenômeno
urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
355Daniel Gonçalves de Menezesn. 07 | 2012 | p. 351-355
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