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Grupo de Pesquisa do CNPq – www.lappis.org.br
Laboratório de Pesquisas sobre Práticas de Integralidade em Saúde
ESTUDOS INTEGRADORES SOBRE TECNOLOGIAS
AVALIATIVAS DE INTEGRALIDADE E SAÚDE
SUPLEMENTAR
ATIVIDADE PESQUISA – DIMENSÃO 3
RELATÓRIO TÉCNICO
MÍDIA E DIREITO
JULHO, 2007
EQUIPE
Coordenadora Roseni Pinheiro
Bolsistas Alexandre Miguel França
Ana Carolina Landi Ariadne Mara
Elir Ferrari Felipe Dutra Asensi
Marina Bispo do Nascimento Mônica Carvalho Valeria Marinho
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO............................................................................................................4
1 CAMPO JURÍDICO E CAMPO JORNALÍSTICO...................................................25 1.1 Campo jurídico e saúde suplementar ..................................................... 25 1.2 Relações entre campo jurídico e campo jornalístico............................... 27
2 TRAÇADORES ......................................................................................................38 2.1 Direito: bem de serviço (SUS) e direito do consumidor (SS) .................. 38
2.1.1 Concepções de direito associadas à saúde suplementar ................ 38 2.1.2 Articulações e conflitos entre direito do consumidor e direito à saúde sob a ótica do usuário ............................................................................... 45 2.1.3 Formas de o usuário interferir no serviço e no cuidado através de canais de comunicação............................................................................. 52 2.1.4 Participação X contratos por adesão................................................ 56
2.2 Relação entre mídia e direito .................................................................. 64 2.2.1 Concepções da influência da mídia no cotidiano do serviço e do cuidado...................................................................................................... 65 2.2.2 Representações que têm como fundamento notícias ...................... 68
2.2.2.1 Direito do cidadão e direito do consumidor................................ 68 2.2.2.2 Prejuízo e medo......................................................................... 71 2.2.2.3 Informação e desconhecimento................................................. 73 2.2.2.4 Confiança e desconfiança ......................................................... 76
2.2.3 Discursos sobre a influência da mídia na ida ao MP e ao Judiciário 80 2.3 Relação entre usuários e justiça............................................................. 83
2.3.1 Tipo de demanda ............................................................................. 83 2.3.2 Fundamentos da demanda .............................................................. 84 2.3.3 Justificativas para levar ao MP e judiciário....................................... 88 2.3.4 Forma como o MP e o judiciário lidam com a demanda................... 89 2.3.5 Ações e outros instrumentos legais.................................................. 94 2.3.6 Acesso à justiça ............................................................................... 95 2.3.7 Ações coletivas ................................................................................ 98
3 ESTUDO DE RECEPÇÃO ...................................................................................103 3.1 Metodologia do estudo de recepção..................................................... 103 3.2 Processo de recepção não é linear ...................................................... 106 3.3 Interesse por informar-se e acesso às informações através da mídia.. 109 3.4 Ambivalência acerca da mídia .............................................................. 110 3.5 Mídia pode afetar o cotidiano do serviço ou do acesso ao direito e à saúde, mas não necessariamente conduz à ação jurídica ......................... 112 3.6 Confiança no “sistema” ......................................................................... 115
4 ITINERÁRIO TERAPEUTICO – LC ONCOLOGIA .............................................119
5 ITINERARIOS TERAPEUTICOS - SAÚDE DA MULHER ...................................123
6 CONCLUSÕES ....................................................................................................128
REFERÊNCIAS.......................................................................................................135
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APÊNDICE A: LISTA GERAL DO MATERIAL DE CAMPO ..................................139
APENDICE B: LISTA DOS PROCESSOS ANALISADOS.....................................139
APÊNDICE C: LISTA DOS VÍDEOS UTILIZADOS NO ESTUDO DE RECEPÇÃO............................................................................................................146
APÊNDICE D: TRANSCRIÇÕES DOS VÍDEOS UTILIZADOS..............................148 1- Defesa do consumidor............................................................................ 148 2- Problemas com planos ........................................................................... 149 3- Vitória do consumidor ............................................................................. 151 4- Queixas sem fim..................................................................................... 154 5- Novidades prometem acabar com a dor nos consultórios dentários ...... 156 6- Vida Nova para Vanessa ........................................................................ 157 7- Medo incontrolável ................................................................................. 158 8- Esperança para mulheres com câncer ................................................... 159
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INTRODUÇÃO
Esta dimensão busca apresentar os nexos constituintes entre os campos
jurídico e jornalístico na construção do direito à saúde, os quais afetam os
itinerários terapêuticos dos beneficiários dos planos de saúde, influenciando
sua capacidade de análise e avaliação dos cuidados/serviços prestados.
Compartilhamos da idéia de que a identificação e análise desses nexos
podem ajudar a construir desenhos interdisciplinares avaliativos de tecnologias
de atenção e do cuidado na saúde suplementar, contribuindo para estudos
avaliativos sobre a política de qualificação da ANS, no que concerne à melhoria
da qualidade institucional. Nesse sentido, propomos algumas definições e
noções para compreender essa dimensão, quais sejam: as noções de direito à
saúde, campo jurídico e campo jornalístico, e itinerários terapêuticos.
O tema do direito associado à saúde remete às próprias bandeiras do
movimento sanitário, cuja concretização encontra-se na Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988. Na Constituição a saúde emerge como
um serviço de relevância pública, dotado de eficácia imediata e, por isso, com
caráter fortemente social.
Essa Constituição, no sentido de materializar o direito à saúde, firmou
alguns princípios que servem como norte de sua atuação e garantia de
efetividade do texto, que ocorre por meio de um Sistema Único de Saúde
(SUS) que englobe as três esferas de governo em todos os níveis de
complexidade.
Na esteira dos processos operativos para sua materialização, é possível
observamos o crescimento do interesse por estudos sobre princípios
constitucionais no país, convergindo para uma tendência acerca da práxis do
direito, sendo abordada em diferentes países no mundo. No campo do Direito
como área de conhecimento, podemos verificar que esse crescimento vem
sendo uma decorrência do período pós-positivista (BONAVIDES, 1999, p. 237),
através do qual se abandonam, ou se relativizam, o excessivo rigorismo formal
e a necessidade de codificação plena do direito, passando a se aceitar a
4
existência de conceitos indeterminados, apenas indicativos de caminhos ou de
valores a serem observados.
Com a derrocada da crença absoluta no direito natural, que, de acordo
com Barroso, (1999) podia ser definida como a “existência de valores e de
pretensões humanas legítimas que não decorrem de uma norma emanada do
Estado” (BARROSO & BARCELOS, 1993, p. 30), através da codificação das
Constituições, surge no cenário mundial o chamado positivismo jurídico.
Entretanto, com o final da Segunda Guerra Mundial e a queda dos
regimes autoritários, o positivismo teve também sua decadência, passando ao
período que pode ser denominado de pós-positivismo, que, conforme assevera
o autor, pode ser sintetizado como sendo “a designação provisória e genérica
de um ideário difuso, no qual se incluem o resgate dos valores, a distinção
qualitativa entre princípios e regras, a centralidade dos direitos fundamentais e
a reaproximação entre Direito e Ética” (BARROSO & BARCELOS, 1993, p. 64).
É exatamente neste cenário político que os princípios começam a ser
analisados com maior profundidade, sendo reconhecido seu caráter normativo,
afastando-se da idéia de que não possuíam eficácia jurídica ou aplicabilidade
direta e imediata. Com isso podemos observar que foi superada, então, uma
visão notadamente formalista, com ênfase nas regras e textos codificados e
que dedicava aos princípios um papel apenas supletivo de regras em casos de
lacunas.
De acordo com o defendido por Bonavides (1999, p. 237), os princípios
são “convertidos em pedestal normativo sobre o qual assenta todo o edifício
jurídico dos novos sistemas constitucionais”. Dessa maneira, as normas
jurídicas passariam a ser encaradas sob dois prismas diversos, podendo ser
classificadas em regras ou princípios, dependendo de seu grau de certeza ou
de abstração.
Quanto à diferenciação entre as regras e os princípios, Sarmento (2003,
p. 42) ressalta:
Os princípios representam as traves-mestras do sistema jurídico, irradiando seus efeitos sobre diferentes normas e servindo de balizamento para a interpretação e integração de todo o setor do ordenamento em que radicam.
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Reveste-se de um grau de generalidade e de abstração superior ao das regras, sendo, por conseqüência menor a determinabilidade do seu grau de aplicação. Ademais, os princípios possuem um colorido axiológico mais acentuado do que as regras, desvelando mais nitidamente os valores jurídicos e políticos que condensam.
Ainda conforme esse autor, tal generalidade é imprescindível para que a
pretensão de permanência das Constituições possa ser alcançada. Isto porque,
apenas com este grau de abstração e caráter principiológico é que as
Constituições poderão evoluir e atualizar seus preceitos de acordo com as
constantes mudanças que ocorrem na sociedade.
Dessa maneira, encarando os princípios como normas jurídicas abertas,
permeadas de valores e diretrizes, e que permitem a adequação do sistema
constitucional à realidade social sem necessidade de constantes alterações
legislativas, passam os princípios, dentre os quais destacamos o princípio da
integralidade, a orientar toda a política de Estado na área da saúde.
No que tange à saúde suplementar, segundo o art. 199 da Constituição,
a “assistência à saúde é livre à iniciativa privada”. Neste sentido, para além da
saúde no âmbito público, é possível que também haja uma saúde privada,
chamada de saúde suplementar. Como o próprio nome sugere, a saúde
suplementar traz a idéia de complementaridade, e não de sobreposição, o que
demonstra que a prática de saúde suplementar deve estar, de certo modo, em
consonância com o que é preconizado no SUS.
Ainda neste artigo, o § 1º traz em seu texto que “as instituições privadas
poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde,
segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio,
tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos”. Observa-
se que as instituições privadas devem atuar de forma complementar ao SUS,
segundo as suas próprias diretrizes. Diante desse pressuposto, o princípio da
integralidade assume características universais na implementação da política
de saúde para o Estado brasileiro, cuja “complementaridade” conferida aos
serviços providos pela iniciativa privada não significa o desrespeito aos valores
e diretrizes que a regem.
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Esta afirmação é consubstanciada não somente em razão da previsão
constitucional expressa de que a saúde suplementar deve seguir as diretrizes
do SUS, mas também em razão da eficácia conferida aos princípios também no
âmbito das relações privadas (SARMENTO, 2003). Assim, mesmo dentro de
uma concepção de mercado e de livre contratação, é possível – e mais do que
isso, imperativo – que os princípios gerais sejam observados. Principalmente
na área de saúde, única área em que o constituinte expressamente considerou
como serviços de relevância pública.
Com efeito, conforme observamos, a relevância pública e a previsão
constitucional de complementaridade desse segmento nos remetem a uma
noção de unidade de serviços públicos e privados, uma noção de integralidade
presente na organização e articulação dos serviços, além da integralidade em
sua prestação.
Tendo em mente essa noção de integralidade, torna-se necessária a
participação do Poder Público e da própria sociedade organizada no controle e
regulação desses serviços. Utilizando a definição de Santos e Merhy (2006),
que diferencia regulação de regulamentação, não bastaria a mera
normatização de atividades e controle do Estado através de leis, sendo de
fundamental importância o exercício da regulação, caracterizada como a
intervenção de um terceiro entre a demanda do usuário e a prestação do
serviço. Tal controle, ainda segundo o autor, não pode se restringir aos
aspectos quantitativos, devendo abranger também aspectos qualitativos de
avaliação.
Um dos protagonistas dessa atividade de regulação do mercado privado
é a Agência Nacional de Saúde Suplementar. Criada pela Lei nº 9.961/00, após
a regulamentação dos planos por meio da Lei nº 9.656/98, a ANS foi instituída
como órgão de regulação, normatização, controle e fiscalização das atividades
na área de saúde suplementar. Sua criação foi parte de um processo de
despolitização da intervenção estatal em determinados segmentos, através do
surgimento de agências reguladoras independentes e autônomas.
Em que pesem as dificuldades encontradas pela agência na tarefa
regulatória, principalmente nos planos de saúde anteriores à regulamentação
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feita em 1998, a ANS, ao lado de outros atores sociais, representa importante
avanço na área de controle do mercado e garantia dos direitos dos usuários.
Ainda neste sentido, através da utilização de princípios também nas
relações contratuais, o Poder Judiciário também vem exercendo importante
função, atuando de forma a ampliar as bases contratuais a garantir a prestação
do cuidado, elevando a vida e a dignidade a valores fundamentais e superiores
aos contratos e a letra da lei, de forma a garantir a efetividade do direito à
saúde previsto na Constituição, evitando que este sofra do que Neves (1994)
define como constitucionalização simbólica, em que existiria a mera previsão
de direitos constitucionais mas sem garantia de efetividade.
Desta maneira, direitos que ganharam força sob a ótica liberal, como
autonomia da vontade e dos contratos, que seriam lei entre as partes, perdem
força em termos absolutos, para serem relativizados à luz de princípios como a
função social dos contratos e a chamada boa-fé objetiva.
Por função social dos contratos entende-se a ligação destes a uma
funcionalização, ao respeito a interesses maiores da sociedade (tais como
meio ambiente, liberdade, dignidade humana). No que tange à boa-fé objetiva,
esta tem, conforme Tepedino (2004), três funções básicas no sentido de
funcionar como um princípio interpretativo (buscando a finalidade, natureza e
objeto dos contratos), prescritivo de novos deveres das partes (implícitos ao
contrato como lealdade, transparência e colaboração, por exemplo) e limitador
do exercício de determinados direitos (vedação do abuso de direito).
Outra referência importante aos contratos nos planos de saúde se
concentra no fato de estes serem muitas vezes considerados, numa ótica de
proteção ao consumidor, como contratos de adesão, que seriam contratos em
que apenas uma das partes redige o contrato e não existe discussão sobre
suas cláusulas. Nesses contratos, por previsão expressa do Código de Defesa
do Consumidor (Lei nº 8.078/90), existiria a possibilidade de uma intervenção
mais direta do próprio Poder Judiciário, de forma a garantir maior igualdade
entre as partes contratantes.
Certamente, seria pouco eficaz pensar esse princípio sem levar em
conta outras diretrizes que também compõem o SUS, como a participação. No
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caso da saúde suplementar, integralidade e participação devem atuar de forma
conjugada, de modo que o fornecimento de um serviço de saúde privado seja,
ao mesmo tempo, uma afirmação à cidadania. Como no âmbito privado
predominam a livre concorrência e as normas de direito civil, as operadoras de
planos de saúde, ressalvadas as cooperativas e as autogestões, são antes de
tudo empresas que visam à obtenção de clientes para auferir lucros. Deste
modo, a recorrência à mídia como ferramenta de captação de clientes tem sido
uma “tecnologia” amplamente utilizada na manutenção da relação entre
demanda e oferta na saúde suplementar.
Considerando a aplicação dos princípios e a relevância pública dos
serviços de saúde, sob a ótica da integralidade, optamos neste projeto, como
temática inerente ao objeto da pesquisa, as relações entre os usuários e os
planos de saúde suplementar, cuja noção de campo jurídico presente em
Bourdieu (1989) confere os elementos teóricos conceituais necessários a sua
compreensão1.
Nesse sentido, analisar e avaliar as práticas de integralidade à luz do
direito à saúde não se reduz às questões relacionadas ao formalismo, que
afirma a autonomia absoluta do direito em relação ao social, e nem cai na visão
oposta, do instrumentalismo do direito, que apenas serviria aos interesses
dominantes (BOURDIEU, 1989).
Com esse pressuposto, torna-se possível apreender as disputas internas
dentro do campo jurídico pelo monopólio de dizer o direito, de modo a
compreender o mercado simbólico do direito e suas interações com o campo
jornalístico, através do estudo das concepções dos usuários e dos próprios
profissionais sobre o direito à saúde, bem como os mecanismos e a abertura
das instituições jurídicas às demandas, numa análise que envolve também o
acesso à justiça, indispensável na garantia de direitos (CAPPELLETTI &
GARTH, 1998). 1.Uma das características mais representativas do campo é o mesmo funcionar como microcosmo. Isso significa que o campo se estruturaria como um pequeno universo constituído por regras, lei ou nomos e lógica interna de funcionamento, expressadas explícita ou implicitamente, sendo muitas delas dificilmente percebidas pelos que não têm posição específica no campo. Quando se define campo como microcosmo, pressupõe-se uma ordem interna e uma autonomia. Porém, essa autonomia é relativa – pois há sempre relações de um campo com outros – e pode ser “medida” a partir de uma maior ou menor dependência de um campo em relação a outro(s) campo(s).
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A importância de tal análise justifica-se pela existência de uma espécie
de criação ou invenção do direito pelos juízes. O veredicto, então, para
Bourdieu (1989), seria um compromisso político firmado no processo com o
jurista atuando como uma espécie de terceiro mediador entre as partes
demandantes. No entanto, tal compromisso político reflete as lutas internas do
próprio campo jurídico, onde profissionais manipulam de maneira desigual os
recursos jurídicos disponíveis, com a decisão baseando-se mais em atitudes e
no capital simbólico dos profissionais do que em normas puras do direito.
Essas disputas envolvem a manutenção do poder dentro do campo,
opondo, de um lado, os profissionais do direito que pretendem manter seu
poder, buscando para isso maior normalização, segurança jurídica e pretensa
universalidade das decisões, numa lógica de conservação em que “o porvir
será a imagem do passado” (BOURDIEU, 1989, p. 245) e, de outro,
profissionais que pregam uma mudança nos padrões, defendendo maior papel
criativo da jurisprudência, por exemplo, buscando também a dominação do
campo.
Neste sentido, a própria configuração do direito e sua defesa como
instrumento de transformação social podem servir de instrumento para a
dominação do campo, normatizando as idéias de determinado grupo e
universalizando-as através do direito, o que acaba por impor certo padrão de
normalidade social.
Além disso, ainda dentro desta lógica interna de disputa pelo campo, o
direito acaba, nas palavras de Bourdieu, por se reforçar circularmente, no
sentido de que, na divisão entre os chamados profissionais e os profanos2,
cabe aos primeiros o poder de revelar os direitos, inacessíveis aos profanos e,
conseqüentemente, as injustiças. Assim, o direito cria suas próprias demandas
e aumenta seu próprio mercado. Com isso, os profissionais determinam o que
2 Esta distinção entre profissionais e profanos é feita por BOURDIEU (2005) quando este fala da concorrência dentro do campo jurídico pelo monopólio de dizer o direito. Nesta concorrência, agentes investidos de competência técnica e social (profissionais) têm reconhecida a sua capacidade em interpretar de forma legítima as normas jurídicas. Entre estes, na luta pelo domínio do campo, existe um contínuo trabalho de racionalização do discurso jurídico, o que contribui para aumentar ainda mais a distância entre o veredicto jurídico e o que o autor define como as ingênuas intuições de equidade, que caracterizariam os chamados profanos, ou seja, aqueles que não são membros do campo.
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pode ser dito e o que deve entrar no campo jurídico, de acordo com os
interesses dominantes no campo.
A análise desta lógica de criação das demandas é de fundamental
importância no sentido de se tentar verificar de que forma as concepções sobre
o direito à saúde são criadas e produzidas dentro do próprio campo e também
a partir da influência de outros campos, notadamente o jornalístico.
Isto porque, a despeito desta disputa interna, Bourdieu (1989) fala ainda
em uma pequena autonomia do campo jurídico, dependente sobretudo do
campo político, em conseqüência do papel determinante que desempenha na
reprodução social. Assim, os interesses dominantes do campo seriam reflexos
dos interesses dominantes na sociedade, numa influência do campo político e
dos demais campos da sociedade.
Já no universo da comunicação encontram-se desde as formas de
intercâmbio humano direto presencial até as mediadas, que podem utilizar
aparatos técnicos ou suportes diversos para a difusão de informação,
interpessoais ou não. A tais suportes dá-se o nome de mídias3. No contexto
das mídias, há os veículos de comunicação, que são os formatos que tais
mídias podem adquirir, de modo a promover a difusão da informação. É
justamente através dos veículos de comunicação que as práticas jornalísticas
são realizadas, práticas estas que se destacam pela periodicidade, atualidade
e difusão coletiva, características básicas do que se define como sendo o
jornalismo. Contudo, é preciso estabelecer outros critérios, de modo a perceber
as diferenças entre o que pode ser da ordem do jornalístico ou não, sobretudo
através de sua linguagem. Assim, não se trata o jornalismo como um gênero
literário a mais. Ele “se propõe processar informação em escala industrial e
para o consumo imediato. As variáveis formais devem ser reduzidas, portanto,
mais radicalmente do que na literatura [destaque nosso]” (LAGE, 2001, p. 35).
Para além das características básicas citadas acima, evidencia-se o
aspecto do consumo, essencial para que se compreendam as múltiplas
linguagens pertinentes aos diversos veículos de comunicação utilizados no 3 Dentre o que caracterizamos como mídias, podemos incluir: o rádio; o cinema; a televisão; a escrita impressa (outrora manuscrita) em livros, revistas, boletins, jornais etc.; o computador; o videocassete; os satélites de comunicações e, de modo amplo, os meios eletrônicos e telemáticos de comunicação em que se incluem as diversas telefonias.
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jornalismo. Logo, mais do que informar periodicamente sobre temas atuais e
para muitos, a maneira como isto é feito se dá a partir do pressuposto de que a
notícia é um produto, o qual propicia a circulação ou consumo de outros
produtos, tanto no conteúdo da própria notícia como através de anunciantes.
São estes e outros aspectos que entram em jogo quando utilizamos o conceito
de campo jornalístico (BOURDIEU, 1997). E o campo jornalístico, como
podemos entendê-lo? Quais seriam suas especificidades e distinções se o
compararmos com outros campos? (CARVALHO, 2006).
Bourdieu conceitua campo jornalístico como um “microcosmo que tem
leis próprias e que é definido por sua posição no mundo global e pelas atrações
e repulsões que sofre da parte de outros microcosmos” (BOURDIEU, 1997, p.
55). Porém, a partir da noção de que o campo teria autonomia relativa,
podemos perceber as nuanças do conceito de campo jornalístico, que residem
no fato de que o campo jornalístico tem a particularidade de ser um campo
muito mais dependente das forças externas exercidas por outros campos do
que os campos de produção cultural de modo geral, o campo científico, o
campo jurídico etc. Sua maior dependência se daria, particularmente, em
relação ao campo econômico, mais até do que ao campo político, já que as
ações no campo jornalístico se encontram extremamente vinculadas às
sanções e oscilações do mercado. Contudo, deve-se ressaltar que o campo
jornalístico não se restringe a aspectos derivados da influência das forças
exercidas pelo campo econômico. Isto acontece porque o campo jornalístico
tem uma série de forças internas ao próprio campo, explícitas ou implícitas,
evidentes ou não até mesmo para muitos participantes do campo, que também
determinam de modo importante seu funcionamento.
Portanto, para compreender o que acontece num veículo jornalístico,
deve-se considerar primeiramente a posição desse veículo em relação aos
outros a ele semelhantes e que lhe são concorrentes, de modo a perceber as
relações de força objetivas que se estabelecem entre eles. Para apreender
essas relações, é importante observar aspectos como: indicadores de “fatias de
mercado, peso aos olhos dos anunciantes, o capital coletivo de jornalistas
prestigiosos etc.”, uma vez que entre os veículos jornalísticos há “interações,
pessoas que se falam ou não, pessoas que se influenciam, que se lêem [...],
12
mas também relações de força completamente invisíveis que fazem com que
[...] seja preciso levar em conta o conjunto das relações de força objetivas que
constituem a estrutura do campo” (BOURDIEU, 1997, p. 56).
O lugar do veículo é medido não só por seu peso econômico, mas
também por seu peso simbólico, mensurável em parte por aspectos históricos;
posição entre os media nacionais e mundiais; paradigmas de produção da
notícia segundo a linguagem do meio de comunicação em análise; nível de
conservadorismo, amadorismo, pioneirismo etc.; influência de outros meios de
comunicação (por exemplo, influência da televisão ou da internet em
determinado contexto) e assim por diante (BOURDIEU, 1997, p. 56-9).
Outro aspecto importante que não se pode omitir é o poder de influência
do campo jornalístico sobre outros campos. Isto porque não se deve perder de
vista que o campo jornalístico tem o monopólio da informação considerada
legítima (fontes oficiais) (BOURDIEU, 1997, p. 103), o “monopólio real sobre os
instrumentos de produção e difusão em grande escala da informação e [...]
sobre o acesso dos simples cidadãos, mas também dos outros produtores [...]
ao que se chama por vezes de ‘espaço público’, isto é, à grande difusão”
(BOURDIEU, 1997, p. 65).
Por este motivo, e por ser um universo que se encontra cada vez mais
determinado pela lógica comercial, o campo jornalístico também impõe suas
próprias limitações internamente e aos outros campos, não raro influenciando
ações e tomadas de decisões em outros espaços. Isto porque fica muito
evidente quando os veículos noticiosos tratam exaustivamente de alguns
assuntos jurídicos de destaque e mesmo de temas políticos considerados
importantes, dando veredictos ou se valendo de um lugar de porta-voz de uma
suposta opinião pública, muitas vezes exercendo a função de “bombeiro
incendiário”, no dizer de Bourdieu (1997, p. 82-92), ou quando mesmo se
apoiando numa suposta função de juiz ou de justiceiro, dando cabo de
situações há muito pendentes juridicamente. Outro dado relevante é que “as
desgraças e as reivindicações devem exprimir-se midiaticamente para vir a ter
uma existência publicamente reconhecida e ser, de uma maneira ou de outra,
13
‘levada em conta’ pelo poder político” (CHAMPAGNE, 1998, p. 75) e por outros
poderes aos quais os temas se relacionem, tal como o jurídico, por exemplo4.
Além das características gerais relacionadas com o campo jornalístico, é
preciso considerar também uma abordagem do ponto de vista das mídias, já
que estas podem ser vistas como “dispositivos instituidores do espaço público,
na medida em que, por sua ação ritualística e cotidiana, anunciam a noção de
realidade, mas convertem-se, elas mesmas, em lugar onde a realidade passa
por eles e se faz neles” (FAUSTO NETO, 1999, p. 16).
Diante do exposto, destacam-se alguns aspectos importantes que
devem ser considerados ao se analisarem seus conteúdos, tais como: (a)
mídias estruturam espaço público e nele se estruturam; (b) mídias atuam no
espaço público a partir de competências próprias, tal como a de aceitar as falas
que nele são produzidas, conferindo-lhes visibilidade pública; (c) visibilidade
que mídias dão às diferentes falas que o espaço público produz se efetiva
segundo um conjunto de “leis” e condições internas de produção das próprias
mídias; (d) experiências cotidianas e institucionais são progressivamente
midiatizadas pelos meios de comunicação, permitindo o alargamento e a
visibilidade de outros campos; (e) com interação entre o campo das mídias,
constitui-se o espaço público, seus modos de funcionamento, seus atores e
discursos, mas também destacam o campo das mídias como sendo o operador
fundamental responsável por essa articulação, daí sua função midiatizadora; (f)
mediação não é “passiva”, ao contrário; (g) as mídias, pelo estabelecimento de
condições próprias de produção de mensagens, produzem enquadramentos ou
contratos de leituras: problemática da concorrência interna das mídias e da
condição de recepção que se estabelece no jogo de oferta/consumo (FAUSTO
NETO, 1999, p. 16-8)5.
4 No caso da política, temos o exemplo dos eventos estudantis de Vaulx-em-Velin, no subúrbio da cidade de Lyon, que culminou com a criação do Ministério da Cidade (CHAMPAGNE, 1998). Em relação ao aspecto jurídico, podemos citar o caso de programas mos quais se pretende “fazer justiça”, tal como o “Linha Direta”, da TV Globo, e programas de auditório, em que o apresentador é capaz de colocar, por exemplo, um marido traído diante da mulher e de seu amante e julgá-los com o apoio de uma platéia que reage à emoção e ao cenário-tribunal representado diante das câmeras. 5 Cabe destacar que tais contratos de leituras se dão de acordo com os índices de consumo dos veículos ou programas, cujo objetivo é chegar aos seus públicos alvos e têm características econômicas, educacionais etc. utilizadas também para a venda de espaço publicitário.
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Dessa maneira, quando partimos da abordagem de campo e de campo
jornalístico nesta pesquisa, não podemos deixar de considerar as
características gerais das mídias, a partir da análise de seus conteúdos.
Porém, as mídias devem ser inseridas no contexto da produção jornalística, já
que não se vão considerar aqui outros modelos de produção e linguagem
mediadas que não sejam informativos, constituídos naquilo que se define como
a unidade fundamental ou matéria-prima do jornalismo: a notícia.
É justamente desta matéria prima, a notícia, que constituiremos o
principal material para a análise sobre os nexos constituintes do direito à saúde
e suas repercussões, efeitos e influências no modo de produção de cuidado na
saúde suplementar que mapearemos as trajetórias e usos pelos usuários
beneficiários nas suas buscas por saúde na área da saúde suplementar. Nosso
estudo de recepção é baseado na abordagem latino-americana sobre
recepção, a qual será detalhada no item referente à estratégia metodológica, a
ser apresentada a seguir.
Por fim, para melhor delimitação dos nexos constituintes entre os
campos jurídico e jornalístico na área da saúde suplementar, sobretudo no que
concerne ao jogo que se estabelece entre oferta e consumo de bens de saúde,
que os estudos sobre itinerários terapêuticos (IT) podem contribuir para
análises específicas sobre as linhas de cuidados disparadas pelos profissionais
e gestores implicados na relação “demanda e oferta em saúde”. De acordo com
as afirmações de FASIN apud Gerhardt sobre diversos estudos sobre IT,
“os caminhos percorridos pelo doente à procura de diagnóstico e tratamento surge como resultado de múltiplas lógicas, de causas estruturais (sistemas de representações da doença, posição do indivíduo na sociedade) e de causas conjunturais (modificação da situação financeira, conselho de um vizinho) que torna em vão toda tentativa de estrita formalização. (...) Portanto, da necessidade de resituar a seqüência de eventos contextuais da procura de cuidados em relação à complexidade dos fatores sociais que ela implica”
Ainda de acordo com Gerhardt, “é necessário que os estudos sobre
itinerário terapêutico possam ‘descer’ ao nível dos procedimentos usados pelos
autores na interpretação de suas experiências e delineamento de suas ações
sem, contudo, perder o domínio dos macroprocessos sócio-culturais” (p. 132).
15
Alves & Souza, baseando-se em Rabelo, propõem que não existe um
padrão único e pré-definido no processo de busca terapêutica e que o itinerário
é um processo complexo não podendo ser reduzido
“a generalidades que procedem pela descoberta de leis que ordenam o social. A recorrência simultânea a vários tratamentos e a existência de visões discordantes – e até mesmo contraditórias – sobre a questão terapêutica evidenciam que tanto a doença como a cura são experiências intersubjetivamente construídas, em que o paciente, sua família e aqueles que vivem próximos estão continuamente negociando significados” (p. 136).
Tais considerações teóricas são fundamentais para a realização de
estudo sobre o itinerário terapêutico, permitindo-nos pôr em relevância dois
aspectos essenciais e interligados: as definições de situação e a natureza das
relações intersubjetivas no processo de tomada de decisão, neste caso sobre
as práticas de integralidade na atenção e cuidado em saúde.
O estudo das práticas em nossas pesquisas não se destina a fazer
uma arqueologia acerca da integralidade, mas traçar uma genealogia no
sentido foucaulltiano – ou seja, genealogia como “o acoplamento dos
conhecimentos eruditos e das memórias locais, que permite a constituição
de um saber histórico de lutas e a utilização desse saber em táticas atuais”
(FOUCAULT, 2000, p. 63). Esse traçado é quase um mapa de diferentes
críticas permanentes aos saberes instituídos no campo da saúde, sobretudo
do saber biomédico. Críticas que se forjavam em táticas em diferentes
espaços e os lugares que percorremos nos campos de nossas pesquisas.
Espaços (corredores, consultórios, hospitais, praças, ruas, quintais) e
pessoas (médicos, enfermeiros, agentes comunitário, pacientes, famílias)
que, em seus movimentos diários revelavam-se em espaço-cotidiano –
entendido, na concepção de Milton Santos,
“como uma reunião recíproca de fixos e fluxos, o espaço como conjunto contraditório formado por uma configuração territorial e por relações de produção, relações sociais; e finalmente o que vai presidir a reflexão de hoje, o espaço formado por um sistema de objetos e sistema de ações” (SANTOS, 1997, p. 110).
Nessa trajetória, não tratamos de descrever as convergências e
divergências entre os saberes a partir da positividade de seus discursos,
16
mas identificar o surgimento de outros saberes, instituintes e críticos.
Saberes que assumiam caráter estratégico de transformação dos sujeitos,
de concepções de mundo, atuando como dispositivo político – e, por que
não, de poder? Poderíamos denominá-lo de “saberes das pessoas”, saberes
locais, descontínuos e não legitimados, que são saberes sem senso comum
(FOUCAULT, 2002), que não encontram “guarida na ordem racionalizadora”
de nossa sociedade organizada pelo regime capitalista, como afirmou Madel
Luz em um dos seus artigos (LUZ, 2004). Ou seja, são saberes que não se
justificam por analises econômicas, mas por análises políticas, sociais e
culturais.
Chamamos a atenção para o necessário exame crítico acerca da matriz
hegemônica de produção do conhecimento, que, fundada na modernidade,
tende constantemente a nos afastar das possibilidades de realizar novas
reflexões sobre a diversidade e pluralidade de objetos e estratégias de
investigação em saúde, sobretudo aqueles centrados nas práticas. Ou seja, o
que está implícito nessa discussão é um dito popular de uso cotidiano de que
na “prática a teoria é outra”. Nesse sentido, há de se ter clara a urgência de
ultrapassarmos os limites das análises teóricas hegemônicas, que vêm sendo
produzidas e são utilizadas para o planejamento e a ação governamental, a fim
de darmos espaço “ao conhecimento empírico acumulado no desencontro
entre uma ou outra dessas condições’” (FERLA et al., 2003, p. 62), como fonte
de novos conhecimento e fundamentos de uma práxis em saúde.
NOTAS METODOLÓGICAS – TRABALHO DE CAMPO E MANEJO DAS CATEGORIAS
A pesquisa de campo, iniciada em setembro de 2006, buscou, delimitar uma
dimensão que circunscreve o direito à saúde – entendida como uma das
dimensões da integralidade em saúde, mapear as influências e relações entre
os campos jornalístico e jurídico de forma a analisar as características dos
usuários dos planos, dos profissionais de saúde e dos profissionais da justiça,
assim como suas percepções sobre a efetivação do direito à saúde, no setor da
saúde suplementar.
17
Desse modo, tornou-se possível observar como tais influências e relações
disparam processos que funcionam como espelho do mercado do setor da
saúde suplementar, refletindo práticas e discursos e, ao mesmo tempo em que,
podem constituir um tipo de prática avaliativa externa à organização deste
setor. Além disso, foi possível perceber como este processo funciona e como,
através das práticas avaliativas presentes nesses campos, influenciam
diretamente os atores e o funcionamento do mercado de saúde suplementar na
medida em que emitem juízos de valor sobre seu funcionamento.
Neste movimento de mútuas influências e de construção social do direito, foi
possível reparar como o campo jurídico se estrutura em torno do capital
simbólico de seus profissionais, de forma a criar suas próprias demandas e
“revelar” direitos aos atores sociais. Assim, com os profissionais deste campo
atuando de forma a criar direitos, verificou-se como estes direitos contém
julgamentos avaliativos e como influenciam as práticas dentro do mercado da
saúde suplementar.
Perpassando por este movimento, identificaram-se as influências do campo
político e do campo econômico nesta produção e avaliação. Desta maneira, as
entrevistas, aliadas aos documentos coletados, estudos de recepção e
percepções dos pesquisadores sobre o campo, todos são relacionados com o
objetivo de identificar esse movimento, essas mútuas influências, e como isto
influi na construção social do direito à saúde e reverbera sobre a dimensão da
gestão e do conhecimento e práticas dos trabalhadores na saúde e até que
ponto esta construção se estrutura como forma avaliativa das práticas na
saúde suplementar.
Como primeiro passo, foram mapeados os caminhos disponíveis aos usuários
dentro do campo jurídico, de forma a verificar como se dava o acesso à justiça,
instrumento fundamental na construção e efetivação de direitos. Dentre os
caminhos, judiciais e não judiciais, identificamos as seguintes possibilidades:
(a) Não-judiciais – call centers das operadoras, disque ANS, Procon e
associações de defesa de direitos;
(b) Judiciais – Juizados Especiais, Defensoria Pública, Advogados e
Ministério Público.
18
Para a realização da pesquisa, optamos por excluir os Juizados Especiais, uma
vez que, dada sua estrutura de funcionamento (que impede a realização de
perícias), estes concentram, na grande maioria, questões relativas aos
reajustes de mensalidades dos planos de saúde.
Em relação aos caminhos não-judiciais, encontramos dificuldades em relação
aos call centers das operadoras. Em primeiro lugar, pela sua falta de
disposição para fornecer dados sobre as reclamações. Em segundo, pela falta
de sistematização destes dados pelas operadoras, que não mantém um
controle sobre o conteúdo das reclamações. Assim, como necessitaríamos de
uma intervenção da ANS para viabilizar a pesquisa, consideramos a
possibilidade de distorção das informações e optamos por não realizar este tipo
de investigação junto aos call centers.
No que tange às ações coletivas, foi observada uma fraca participação de
setores da sociedade civil dentro da saúde suplementar, caracterizada
principalmente por lutas individuais em defesa dos direitos. Isto reforça uma
postura notadamente individualista na procura pela saúde via consumo,
afastada de uma busca política por uma saúde pública.
Ademais, até mesmo por parte do Ministério Público, tão presente e atuante em
questões da saúde pública, pode ser verificada uma atuação bastante reduzida
neste setor. Não por opção de seus promotores, mas principalmente pela
estrutura da instituição, que permite apenas que esta atue em processos em
que exista uma lesão coletiva, fato este que, aliado às inúmeras dificuldades de
processamento de ações coletivas pelo poder judiciário, apenas corrobora com
a predominância de demandas individuais neste setor. Tal fato é significativo e
revela a grande fragmentação existente no setor da saúde suplementar e o
baixo nível de participação dos usuários.
Dessa maneira, a pesquisa se concentrou nos demais canais disponíveis, nos
quais se realizaram entrevistas com defensores públicos, juízes, promotores e
usuários, além de profissionais de saúde, gestores das operadoras e
funcionários do Procon.
Durante a realização do campo, houve diversas dificuldades que, muitas vezes,
inviabilizaram a realização de algumas entrevistas. Neste sentido, além da já
19
citada dificuldade com as operadoras de viabilizar o acesso, foi encontrada
uma grande resistência por parte dos beneficiários dos planos, especialmente
os que ingressaram com processos judiciais contra operadoras. Esta
dificuldade pode ser interpretada em razão de um grande receio por parte
destes usuários em relação à atuação do poder judiciário, bem como pelo
medo de sofrer retaliações das empresas, o que já caracteriza uma falta de
confiança. Além disso, preocupações individualistas também motivaram
algumas recusas, chegando um usuário a indagar “o que ganharia” com a
concessão da entrevista.
Por parte dos profissionais do campo jurídico, encontramos bastante
receptividade, especialmente entre os promotores e defensores, apesar de
algumas negativas. Quanto aos juízes, encontramos dificuldades em razão de
uma postura de excessivo distanciamento do tema abordado que dificultava,
inclusive, um contato inicial.
No contexto da dimensão mídia e direito, esta pesquisa teve como objetivo
investigar as relações entre mídias, saúde suplementar e campo jurídico, a
partir da possível influência mútua que o campo jornalístico e o campo jurídico
se exercem, de modo a intervir nas demandas ligadas à saúde suplementar.
Considerou-se, inicialmente que esta mútua influência talvez fosse desigual, na
medida em que se percebia que parte das demandas existentes parecia
motivada pelas mídias. Assim, levou-se em conta a possibilidade de os meios
de comunicação “pautarem” o judiciário, exercendo, desta maneira, uma força
sobre o funcionamento do campo jurídico, conseqüentemente dando certo
destino ou encaminhamento às demandas que ocorriam no âmbito da saúde
privada e, até mesmo, produzindo tais demandas.
No que se referia aos objetos de nossa pesquisa relacionados com estes
campos podemos dizer que: do campo jornalístico, consideraram-se aspectos
de produção e discursos informativos e noticiosos televisionados; do campo
jurídico, tomou-se como objeto os processos e os profissionais vinculados a
instâncias jurídicas tais como juízes e promotores do Ministério Público (MP),
que direta ou indiretamente lidam com as demandas em saúde suplementar.
Cabe, ainda, ressaltar os critérios utilizados para operacionalizar a etapa da
pesquisa de campo, com a seleção de usuários qualificados 1 e 2 (UQ1 e
20
UQ2). O UQ1 é o usuário do plano de saúde com demanda para o Ministério
Público (MP). A seleção deste usuário se deu a partir dos processos coletivos
do MP que acionaram os serviços de saúde suplementar aqui analisados. Tais
processos deveriam estar vinculados às linhas de cuidado relacionadas à
saúde mental, à saúde da mulher e à oncologia. Com este usuário foram
realizadas entrevistas individuais.
O UQ2 é a pessoa atendida no serviço de saúde suplementar, que pode ter
feito reclamação ou não junto aos Procons, Ouvidorias, MP, entre outros. Sua
seleção ocorreu a partir de prontuários e entrevistas nos locais de atendimento,
para que participasse da oficina, técnica que foi utilizada para nosso estudo de
recepção. Assim, como o UQ1, o UQ2 também foi selecionado a partir de
serviços restritos a saúde mental, saúde da mulher e oncologia. Para ambos os
tipos de usuários, foram selecionados apenas aqueles que queriam e se
consideravam dispostos física e emocionalmente para participar tanto das
entrevistas como das oficinas.
O critério para seleção das notícias e fontes encontra-se descrito no item
“Metodologia do estudo de recepção”. Acrescente-se a isso que no site do
Globo Media Center, a partir do sistema deles de busca, foram localizados
programas de acordo com as linhas de cuidado e com o tema da saúde
suplementar, dos quais se destacam os seguintes critérios de seleção:
• Planos de Saúde Novas acusações - 25.01.2006 http://jornalnacional.globo.com/Jornalismo/JN/0,,AA1117216-3586,00.html ANS avalia planos de saúde - 05.09.2006 http://jornalnacional.globo.com/Jornalismo/JN/0,,AA1262914-3586,00.html Direito do Cidadão - Defesa do consumidor - Quarta-Feira , 27 de Abril de 2005 http://rjtv.globo.com/RJTV/0,19125,VRV0-3119-90531-20050427-606,00.html
21
Direito do Cidadão - Problemas com planos - Quarta-Feira , 23 de Novembro de 2005 http://rjtv.globo.com/RJTV/0,19125,VRV0-3119-123608-20051123-606,00.html Entrevistas - Direitos dos associados - Quarta-Feira , 23 de Novembro de 2005 http://rjtv.globo.com/RJTV/0,19125,VRV0-3119-123617-20051123-529,00.html Direito do Cidadão - Vitória do consumidor - Quarta-Feira , 15 de Março de 2006 http://rjtv.globo.com/RJTV/0,19125,VRV0-3119-155469-20060315-606,00.html Direito do Cidadão - Queixas sem fim - Quarta-Feira , 02 de Agosto de 2006 http://rjtv.globo.com/RJTV/0,19125,VRV0-3119-180338-20060802-606,00.html Entrevistas - Regras na saúde - Quarta-Feira , 02 de Agosto de 2006 http://rjtv.globo.com/RJTV/0,19125,VRV0-3119-180342-20060802-529,00.html
Destes optou-se pelas 6 peças do RJTV, mais extensas e, portanto, mais ricas
em detalhes, com declarações de fontes autorizadas e de usuários de planos
de saúde.
• Saúde Mental
Nova terapia para traumas - Exibido em 24/8/2006 http://globoreporter.globo.com/Globoreporter/0,19125,VGC0-2703-14904-3-239449,00.html Pressão e estresse - Exibido em 17/6/2005 http://globoreporter.globo.com/Globoreporter/0,19125,VGC0-2703-5949-4-98656,00.html Malhando a depressão - Exibido em 13/8/2004
22
http://globoreporter.globo.com/Globoreporter/0,19125,VGC0-2703-3751-3-59006,00.html
Destes a escolha foi pela segunda: a mais recente que abordava temas atuais
de depressão e síndrome do pânico.
• Saúde da Mulher
Começa uma vida (fertilização) - Exibido em 8/7/2005 http://globoreporter.globo.com/Globoreporter/0,19125,VGC0-2703-6102-3-101663,00.html Aborto e laqueadura - 09.12.2004 http://jornalnacional.globo.com/Jornalismo/JN/0,,AA875775-3586,00.html
Destes a escolha foi pela mais recente e que por ser do Globo repórter também
apresentava mais detalhes sobre o tema, uma técnica de fertilização.
• Câncer Vida nova para Vanessa (leucemia) - ceulas do cordão umbilical - Exibido em 14/1/2005 http://globoreporter.globo.com/Globoreporter/0,19125,VGC0-2703-4724-3-75161,00.html Esperança para mulheres com câncer (+nova técnica associada à materinidade) - Exibido em 8/7/2005 http://globoreporter.globo.com/Globoreporter/0,19125,VGC0-2703-6102-3-101661,00.html
Destes a escolha foi pelo primeiro pois o segundo já tinha sido escolhido para
saúde da mulher.
• Saúde Bucal
A saúde bucal do brasileiro - 22.10.2006 http://fantastico.globo.com/Jornalismo/Fantastico/0,,AA1320897-4005-0-0-22102006,00.html
23
Novidades prometem acabar com a dor nos consultórios dentários - 26.01.2004 http://jornalnacional.globo.com/Jornalismo/JN/0,,AA781223-3586,00.html
Destes, escolheu-se o segundo por tratar-se de uma técnica para o tratamento
dentário, enquanto o primeiro falava de forma genérica sobre a saúde bucal do
brasileiro.
Logo, no presente relatório dos resultados referentes a esta dimensão da
pesquisa, partiu-se do seguinte material: entrevistas e oficinas de recepção
com usuários de planos de saúde (UQ2) e membros do campo jurídico (UQ1);
entrevistas com médicos; entrevistas com usuários dos planos que entraram na
justiça contra as operadoras (UQ1); reportagens da mídia utilizadas nas
oficinas e diversos documentos judiciais, tais como processos e ações6.
Não foi possível, contudo, a realização de um mapa de comunicação, previsto
no projeto, em função da intensa fragmentação e modos de articular diferentes
mídias e sua circulação de acordo com o público alvo proposto.
6 A lista completa se encontra nos apêndices A e B.
24
1 CAMPO JURÍDICO E CAMPO JORNALÍSTICO 1.1 Campo jurídico e saúde suplementar
A pesquisa sobre a dimensão do direito à saúde foi realizada tendo em vista a
noção de campo jurídico e campo político a partir de Bourdieu. Nosso objetivo
consistiu em ultrapassar a tradicional forma de investigação que concentra
suas analises nas questões relacionadas ao formalismo jurídico, que afirma a
autonomia absoluta do direito em relação ao social, e nem cair na visão oposta,
do instrumentalismo do direito, que apenas serviria aos interesses dominantes
(BOURDIEU, 2005). Além disso, de forma a não cair em uma visão puramente
estruturalista, a pesquisa buscou também agregar e identificar dentro da
análise sistemas de crença, valores culturais, símbolos, mitos e normas
(VIEIRA & VILARINO, 2004) de forma a completar a idéia de campo.
Com este objetivo, e levando em consideração as disputas internas dentro do
campo jurídico pelo monopólio de dizer o direito, a pesquisa investigou o
mercado simbólico do direito e suas interações com o campo jornalístico e
político. Isto se deu através do estudo das concepções dos usuários e dos
próprios profissionais sobre o direito à saúde, bem como os mecanismos
utilizados pela justiça e a abertura das instituições jurídicas às demandas,
numa análise que envolve também o acesso à justiça, indispensável na
garantia de direitos (CAPPELLETTI & GARTH, 1998).
A importância desta análise justifica-se pela existência de uma espécie de
criação ou invenção do direito pelos juízes. Segundo Bourdieu (op. cit.), o
veredicto seria um compromisso político firmado no processo com o jurista, que
atua como uma espécie de terceiro mediador entre as partes demandantes. No
entanto, tal compromisso político reflete as lutas internas do próprio campo
jurídico, onde profissionais manipulam de maneira desigual os recursos
jurídicos disponíveis, com a decisão baseando-se mais em atitudes e no capital
simbólico dos profissionais do que em normas puras do direito.
Estas disputas destinam-se à manutenção do poder dentro do campo. Elas
opõem os profissionais do direito que pretendem manter o seu poder aos
profissionais que pregam uma mudança nos padrões. Os primeiros buscam
25
uma maior normalização, segurança jurídica e uma pretensa universalidade
das decisões, numa lógica de conservação em que “o porvir será a imagem do
passado” (op. cit., p. 245). Os últimos, embora também pretendam dominar o
campo, defendem um maior papel criativo da jurisprudência por exemplo.
Nesse sentido, a própria configuração do direito e sua defesa como
instrumento de transformação social podem servir de instrumento para a
dominação no campo, normatizando as idéias de determinado grupo e
universalizando-as através do direito, o que acaba por impor certo padrão de
normalidade social.
Além disso, ainda dentro desta lógica interna de disputa pelo campo, o direito
acaba por se reforçar circularmente, no sentido de que, na divisão entre os
chamados profissionais e os profanos, cabe aos primeiros o poder de revelar
os direitos, inacessíveis aos profanos, e, conseqüentemente, as injustiças.
Assim, o direito cria suas próprias demandas e aumenta seu próprio mercado.
Com isso, os profissionais determinam o que pode ser dito e o que deve entrar
no campo jurídico de acordo com os interesses dominantes do campo (op. cit.).
A análise desta lógica de criação das demandas foi de fundamental importância
no sentido de se mapear de que forma as concepções sobre o direito à saúde
são criadas e produzidas dentro do próprio campo e também a partir da
influência de outros campos, notadamente o jornalístico e o político. Isto
porque, a despeito desta disputa interna, Bourdieu fala ainda em uma pequena
autonomia do campo jurídico, dependente principalmente do campo político,
em conseqüência do papel determinante que desempenha na reprodução
social. Assim, os interesses dominantes do campo seriam reflexos dos
interesses dominantes na sociedade, numa influência do campo político e dos
demais campos da sociedade.
Portanto, levando em consideração as influências sofridas pelo campo, bem
como sua dinâmica própria, na pesquisa procurou-se mapear os caminhos à
disposição dos usuários, na busca pelo direito à saúde, além de ter investigado
como este direito é encarado pelo campo jurídico – se numa lógica de consumo
ou de cidadania, por exemplo.
Em relação à saúde, em particular, o tema do direito associado à saúde remete
às próprias bandeiras do movimento sanitário, cuja concretização encontra-se
26
na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Nesta Constituição,
a saúde emerge como um serviço de relevância pública, dotado de eficácia
imediata e, por isso, com um caráter fortemente social (PINHEIRO, 2005). No
sentido de materializar o direito à saúde, esta Constituição firmou alguns
princípios que norteavam sua atuação e garantiam a efetividade de seu texto.
Isso ocorreria com a instauração de um Sistema Único de Saúde (SUS), que
englobasse as três esferas de poder (executivo, legislativo e judiciário) em
todos os níveis de complexidade. Dessa maneira, os princípios passam a ser
vistos como normas jurídicas abertas, permeadas de valores e diretrizes
(BARROSO, 2005), que permitem a adequação do sistema constitucional à
realidade social sem necessidade de constantes alterações legislativas
(SARMENTO, 2003). Os princípios, dentre os quais destacamos o princípio da
integralidade, passam a orientar toda a política de Estado na área da saúde.
No que tange à saúde suplementar, segundo o art. 199 da Constituição, a
“assistência à saúde é livre à iniciativa privada”. Logo, para além da saúde no
âmbito público, é possível que também haja uma saúde privada chamada de
saúde suplementar. Como o próprio nome sugere, a saúde suplementar
apresenta a idéia de complementaridade e não de sobreposição, o que
demonstra que a prática de saúde suplementar deve estar em consonância
com o que é preconizado no SUS.
No contexto da saúde suplementar, de acordo com Selznick (apud VIEIRA &
VILARINO, 2004, p. 3) também é possível falar de campo da saúde
suplementar
pela tendência das organizações que o integram a se
institucionalizarem, na medida que adotam regras, desenvolvem
competências e assumem padrões de comportamento similares e
próprios do campo.
Ainda segundo os autores, este campo engloba a Agência Nacional de Saúde
Suplementar, as operadoras de planos de saúde, os prestadores de serviços
médicos e os consumidores.
Como dito anteriormente, a ANS foi criada pela Lei nº 9.961/00, após a
regulamentação dos planos privados de saúde por meio da Lei nº 9.656/98,
27
sendo instituída como órgão de regulação, normatização, controle e
fiscalização das atividades na área de saúde suplementar. Dentre as principais
atribuições desta agência destaca-se a sua busca pela integralidade na
regulação do setor privado de saúde. Isto se justifica em razão da própria
constituição federal que, ao permitir a atuação do setor privado na saúde,
dispõe que este deve observar os princípios e diretrizes do Sistema Único de
Saúde (SUS). Desta maneira, assim como no âmbito do SUS, também no setor
privado, a atuação das operadoras deve ser pautada pela busca do cuidado no
sentido da promoção de saúde, prevenção de doenças, cura e reabilitação, por
exemplo.
Ainda neste sentido, a Lei Orgânica de Saúde, Lei nº 8.080 , em seu capítulo II
, art.7º, prevê que a integralidade de assistência deve ser entendida como um
conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos,
individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de
complexidade do sistema. Complementando este sentido, mas dentro da
iniciativa privada, temos a Lei9.961/2000 que, ao criar a ANS prevê que esta
terá por finalidade institucional promover a defesa do interesse público na
assistência suplementar à saúde, regulando as operadoras setoriais, inclusive
quanto às suas relações com prestadores e consumidores. Dentre estas
formas de regulamentação, temos como importante exemplo a instituição do
chamado contrato de referência, termo mínimo que deve ser observado pelas
operadoras no sentido de garantir a saúde dos usuários.
Assim, verifica-se, dentro da saúde privada a presença da legislação e a
própria atuação da ANS tencionando o mercado no sentido de uma expansão
dos contratos e as próprias operadoras no sentido de uma atenção mais
integral à saúde dos usuários. Como exemplo desta atuação é possível citar os
diversos Termos de Compromisso e Ajuste de Conduta – TCAC, celebrados
pela ANS com as operadoras. Nestes termos, verifica-se uma crescente
participação da ANS no sentido de buscar uma maior efetividade do direito à
saúde dos usuários.
Entretanto, embora a pesquisa sobre a saúde suplementar tenha
obrigatoriamente que fazer esta referência a ANS, agência estatal reguladora
do mercado da saúde privada, principalmente em razão do seu protagonismo
28
na atividade regulatória, algumas observações sobre este fato precisam ser
destacadas.
Assim, a despeito de uma legislação que prevê formalmente este protagonismo
e a busca da integralidade, a pesquisa buscou, antes de analisar um direito
formalmente garantido em códigos e leis, explorar e avaliar como e qual tipo de
direito estava sendo construído e reformulado constantemente na prática dos
atores do campo jurídico, médicos, gestores e também dos usuários da saúde
suplementar. Com este intuito, e buscando explorar as concepções dos
usuários sobre o direito e como o campo jurídico e também o campo político
influenciavam nestas concepções, a pesquisa sobre a dimensão do direito foi
realizada a partir de processos judiciais em que as operadoras e usuários
figuravam como parte.
Entretanto, a despeito de conclusões apressadas que possam sinalizar para
uma suposta ineficiência da agência em seu papel regulatório, é de
fundamental importância que algumas explicações metodológicas sejam
retomadas. Desta maneira, como a pesquisa centralizou sua investigação em
processos da poder judiciário estadual, bem como no Ministério Público
Estadual (principalmente pelo fato de existirem poucos processos de usuários
contra operadoras tramitando na Justiça Federal) a referência à ANS não era
corrente e nem poderia ser. Isto porque, como a ANS é constituída como uma
autarquia federal, apenas a justiça federal tem competência para julgar
processos em que a ANS seja chamada a prestar algum tipo de esclarecimento
ou mesmo figure como parte. Assim, como a maioria dos usuários buscava
seus direitos na justiça estadual, a participação direta da agência nestes
processos bem como referências a ela feitas pelos usuários ou mesmo pelos
membros do campo jurídico não eram correntes, razão pela qual tal
protagonismo legal não se refletiu no cotidiano das instituições jurídicas
estaduais.
Além disso, as investigações foram centradas nas relações que se davam no
poder judiciário e suas repercussões no campo do direito, não sendo
analisadas, nesta dimensão da pesquisa, as relações administrativas que eram
29
travadas entre as operadoras e a ANS, relações estas que se situavam no
terreno da regulamentação administrativa.
1.2 Relações entre campo jurídico e campo jornalístico
Como já afirmamos, o objetivo desta pesquisa foi investigar alguns dos
processos pertinentes ao exercício do direito à saúde no âmbito da saúde
suplementar. Dessa maneira, destacam-se os aspectos que se referem à
relação entre o campo jurídico e o campo jornalístico, já que, em princípio, eles
afetariam os itinerários terapêuticos dos beneficiários em saúde, influenciando
sua capacidade de análise e avaliação dos cuidados e serviços prestados.
Logo:
De que modo a relação entre o campo jurídico e o campo jornalístico pode
intervir nas demandas ligadas à saúde suplementar, no itinerário terapêutico e
na questão da integralidade em saúde?
Quando nos referimos a campo jornalístico e a campo jurídico partiu-se da
concepção de campo de Bourdieu e de seus estudos estes campos (1997,
2001, 2005). Embora este autor defina campo como um microcosmo,
pressupondo uma ordem interna e certa autonomia, é preciso observar que há
forças externas aos campos que levam a mudanças no seu funcionamento, por
mais autônomo que um campo possa parecer. Este pode ser o caso do campo
jurídico, mas não seria, por exemplo, a situação no campo jornalístico.
O campo jornalístico tem a particularidade de ser um campo muito mais
dependente das forças externas exercidas por outros campos do que os
campos de produção cultural de modo geral, o campo científico, o campo
jurídico etc. Sua maior dependência se daria, particularmente, em relação ao
campo econômico, mais até do que ao campo político, já que as ações no
campo jornalístico se encontram extremamente vinculadas às sanções e
oscilações do mercado. Contudo, o campo jornalístico não se restringe a
aspectos derivados da influência das forças exercidas pelo campo econômico.
Isto acontece porque o campo jornalístico tem uma série de forças internas ao
próprio campo, explícitas ou implícitas, evidentes ou não até mesmo para
30
muitos participantes do campo, que também determinam de modo importante o
seu funcionamento.
De outro modo, o campo jurídico possui mais autonomia que o campo
jornalístico. Essa autonomia se consolida, como já afirmado, a partir da
possibilidade de criação ou invenção do direito pelos juízes, numa espécie de
veredicto político que refletiria as disputas de poder no campo.
Dentro desta lógica interna de disputa no campo, segundo Bourdieu, o direito
cria um mecanismo de retroalimentação. Ou seja: na divisão entre os
chamados profissionais e os profanos, cabe aos primeiros o poder de revelar
os direitos e, consequentemente, as injustiças, inacessíveis aos últimos. Assim,
o direito estabelece suas próprias demandas e aumenta seu próprio mercado.
Com isso, os profissionais determinam o que pode ser dito e o que deve entrar
no campo jurídico de acordo com os interesses dominantes no campo. Além
disso, como diz Boaventura de Sousa Santos (2005, p. 84):
A elevada codificação linguística e semântica da informação em
circulação fez com que ela se tornasse incomunicável para além
do circuito institucional-profissional. Foi assim que os tribunais e a
atividade judicial se transformaram na mais esotérica das
instituições e atividades estatais da modernidade.
Ressaltem-se também algumas características do campo jurídico que são
comuns ao campo jornalístico, para além da influência que ambos podem se
exercer mutuamente. Tais características estão presentes, sobretudo, nos
efeitos da linguagem e nos discursos produzidos nestes dois campos. Assim,
Bourdieu destaca o efeito de neutralização e o efeito de universalização. No
primeiro caso, os discursos se apresentam como neutros e impessoais e no
segundo trata-se do uso de recursos que levam à generalização,
onitemporalidade e de certo consenso acerca das questões debatidas (2005, p.
215-6).
No entanto, se de um lado o campo jurídico utiliza retórica menos acessível ao
vulgo de modo a se constituir como uma instância separada e independente e,
portanto, com condição e legitimidade para decidir sobre a questão do direito,
de outro, no campo jornalístico o movimento retórico se mostra diferente, pois a
31
partir de sua linguagem, tenta-se promover uma identificação do vulgo pelo
modo como se constrói o discurso, inclusive sobre o próprio direito. Contudo,
em ambos, os efeitos de neutralização e de universalização parecem ter como
função: provocar certo efeito de verdade; ratificar e legitimar sua função social
e levar à adesão dos profanos. Um exemplo que deixa esta questão mais nítida
é quando se tornam públicos alguns julgamentos nos tribunais através da
televisão. Nestes casos, é possível perceber de que modo os dois campos
podem utilizar os recursos e linguagens um do outro, de modo a conduzir a
este efeito de verdade.
Outro aspecto importante é o conceito de fato no campo jurídico e no campo
jornalístico. No campo jurídico, o fato seria um produto da construção jurídica,
já que é necessária “uma verdadeira retradução de todos os aspectos do
‘caso’’’ (op. cit., p. 230). Em relação ao campo jornalístico, por mais que seja
fruto de uma tradução realizada pelo jornalista, o fato é expresso como se fora
um dado, como se o jornalista o tivesse apenas tornado público, com se tivesse
uma existência própria, um em si independente de quem o traduz como notícia.
Daí haver no jornalismo, em especial no jornalismo brasileiro, uma noção de
neutralidade que acaba se refletindo numa aparente inexistência de posição
política por parte dos veículos de comunicação. No Brasil, isto fica mais
evidente em época de eleições, pois são raros os veículos que apóiam
abertamente algum candidato.
Antes de tratarmos da relação entre mídia e campo jurídico em nosso trabalho,
devem-se observar alguns estudos desenvolvidos neste setor. Logo, de modo
amplo, como podemos nos referir a esta relação?
A partir de depoimentos e textos fornecidos por juízes e juristas, Rocha (2003)
afirma que, para eles, a mídia transmite “informações superficiais, falseadas e
mesmo errôneas, algumas vezes por desconhecimento da lei e da organização
interna dos tribunais, e outras vezes por terem seus agentes em mente outros
interesses, de natureza inconfessável” (op. cit., p. 6). Acrescenta que no
judiciário haveria um descontentamento em relação à mídia e alguns chegam a
vê-la como ameaçadora. Esta ameaça, segundo ele, pode se justificar através
do modo como os cidadãos vêem a justiça no Brasil. Assim, ele cita uma
pesquisa realizada em 1998 em São Paulo, na qual em uma amostra de 200
32
entrevistados das classes A, B, C, D e E, “respondendo à pergunta ‘quem mais
ajuda a fazer justiça para a maioria dos brasileiros?’ 84% dos entrevistados
indicaram a mídia, restando ao Judiciário 10%, às Associações 4% e ao
Governo 2% das indicações” (GROTTERA apud ROCHA op. cit.).
Ao citar a mesma pesquisa, Abreu (2003) também destaca que entre a
população pobre “os jornalistas são identificados [...] como protetores e como
mais confiáveis do que a polícia e o Judiciário”. A autora complementa:
Alguns estudos já indicam que os jornalistas, como profissionais
da informação, se comportam como cidadãos acima de todos os
outros, acima da justiça e das leis. Eles denunciam as injustiças e
o não-funcionamento das instituições, conduzem investigações
que dão visibilidade a comportamentos não-aceitos socialmente e,
ao lado disso, comportam-se como justiceiros. A função justiceira
que a imprensa vem assumindo é concedida pela própria
sociedade e, segundo Falcão (1995: 6), ela é fruto de um pacto
“entre o leitor carente por justiça, o Judiciário incapaz de atender
às demandas e a imprensa vitoriosa na sua maior reportagem
investigatória: o caso Collor”. (Op. cit., p. 10)
No âmbito de nosso trabalho, esta concessão também pode ser observada na
fala de membros do próprio campo jurídico. Isto foi visto em uma das oficinas
de recepção com um promotor do MP.
Então eu acho que o trabalho da mídia é fundamental, um
trabalho muito importante. Eu falo que se não fosse a mídia nosso
trabalho não se transformaria em realidade. Primeiro que o MP
não é o titular do direito, não é dono do direito. A gente vai à
justiça defender o direito da coletividade. Então, se a coletividade
não souber do resultado, como é que ela vai poder exercer aquele
direito? Como é que ela vai poder denunciar que a decisão, que o
direito tá sendo violado? Então a mídia cumpre esse papel de
divulgar a conquista. (recepção UQ1, promotor de justiça 02)
No entanto, neste caso, é preciso dizer que se trata de um agente do campo
jurídico que utiliza a mídia também em benefício próprio, de modo a divulgar o
33
que é por ele realizado. Sua adesão ao campo jornalístico, em especial à
grande mídia, é explicitada durante a oficina, quando diz colocar-se disponível
a todos os jornalistas que o procuram e ao reclamar da atuação da assessoria
de imprensa do MP.
Na verdade, o MP deveria fazer isso [trabalhar com a mídia]
independente de qualquer coisa. Deveria ter, como tem, uma
assessoria de imprensa pra tomar conta dessa parte, da relação
dos promotores com a mídia. Mas o órgão de assessoria de
imprensa aqui se tornou um órgão muito político, no sentido de
divulgar as iniciativas do procurador geral ou das coisas que ele
entende importante. Então apesar da minha ser uma das
promotorias mais atuantes de todo o MP, nenhuma ação,
conquista, (...), você vai achar divulgado oficialmente, ou seja,
pela assessoria de imprensa. (recepção UQ1, promotor de justiça
02)
Todavia, para além de sua adesão ao campo jornalístico, na fala deste
promotor se encontram noções interessantes, que podem nortear nossa
compreensão sobre as disputas entre esses dois campos.
A relação de poder entre justiça e media é feito de interesses
materiais e mercantis ideológicos, institucionais, profissionais,
bem como de convicções e de valores. De fato, no jogo de
espelhos entre a justiça e os media, a justiça não existe por si só,
ela é “uma realidade socialmente construída”. Este trabalho de
construção social é, assim, favorecido pelas funções sociais
atribuídas às duas partes: escrever ou mostrar as epopéias da
sociedade no seu quotidiano pelos media; cumprir os rituais
necessários, gerir o simbolismo indispensável para a coesão do
grupo social e a sua perpetuação para a justiça. (COMAILLE apud
SANTOS, 2005, p. 102)
Acerca da ameaça que a mídia representa, segundo os juízes e juristas
entrevistados por Rocha (op. cit.), podemos destacar também no contexto de
nosso trabalho a fala de um juiz que participou do estudo de recepção. Ao ser
34
perguntado se considerava haver participação da mídia na construção do
direito, ele responde:
Existe porque a informação é sempre bem vinda. O que não pode
é informação direcionada [politicamente], mas é impossível ter
informação que não seja direcionada. Os maiores meios de
comunicação, todos eles direcionam. Mas o que acontece?
Quanto mais a gente lê, menos está suscetível a ser direcionado.
Quer dizer: determinado jornal só vai, abre aspas, fazer minha
cabeça, fecha aspas, se eu não tiver uma gama de conhecimento
suficiente e que me deixe ser conduzido. Por isso que a mídia, ela
é muito perigosa pra quem tem pouco conhecimento. Quem tem
somente determinado jornal televisivo como fonte de informação,
somente ele, ta mais suscetível a ser conduzido. Isso se dá no
plano não perceptivo. No jornalismo, fiz dois anos de jornalismo, a
gente aprende isso. (recepção UQ1, juiz 01)
Outro aspecto que pudemos observar nas oficinas foi sobre a superficialidade
das informações divulgadas através dos veículos, em particular o veículo de
onde se extraíram as notícias. Isso confirma uma tendência observada também
por Rocha (op. cit.). Mas parece haver uma idéia de que, embora superficial,
ainda assim “é melhor que nada”, pois a visibilidade que se dá aos temas
relacionados com o exercício do direito pode ser vista como um estímulo às
pessoas confiarem e até acionarem a justiça.
A rede de televisão da qual se colheu os vídeos é sempre muito
superficial, sempre muito superficial. [pausa] Então é interessante
porque abre ao usuário uma expectativa que ele não tinha. Então
aquela pessoa que ta em casa e vê uma reportagem dessas se
sente estimulada a ir a um PROCON, defensoria pública, a
procurar um advogado, enfim. Então nesse aspecto é muito
interessante, mas ela não vai no âmago da questão. (recepção
UQ1, juiz 01)
Durante uma das oficinas, realizada com um juiz, foi possível tomar
conhecimento de que, nas relações que se estabelecem no interior do próprio
campo jurídico, existe um grupo de discussão dos magistrados onde, entre
35
outros assuntos, discutem-se assuntos publicados nos meios de comunicação
que afetam direta ou indiretamente a justiça, além de questões relacionadas
com o modo como o campo jurídico se encontra presente ou ganha visibilidade
através dos meios de comunicação.
Hoje nós temos um correio internet, como o Orkut, só que interno
dos magistrados. E o presidente da associação mostrando, teve
um determinado jornalista que eu esqueci o nome, senão eu
falaria. (...) dias atrás [o jornalista] sentou o sarrafo no judiciário. E
logo em seguida ele foi, a ex-esposa dele foi viajar com as duas
filhas e o padrasto, atual marido. Não levaram documento das
meninas, não levaram autorização do pai pra embarcar. (...) Ele
(...) foi até o fórum (...), foi atendido prontamente, apresentou lá a
justificativa, mostrou o que tinha. O juiz deu uma decisão e ele
conseguiu embarcar. Esse mesmo jornalista que malhou o
judiciário não escreveu uma linha “ó, funciona o judiciário”.
(recepção UQ1, juiz 01)
Isto pode significar que, independentemente de haver verbalização por parte de
membros do campo jurídico que afirme sobre as possíveis influências do
campo jornalístico, pode-se verificar que o campo jurídico é afetado pelo
campo jornalístico, pelo modo como este é mostrado através da mídia. No caso
deste sujeito, em particular, observou-se forte resistência em admitir que a
mídia o afete de alguma forma em seu processo de tomada de decisão, no
exercício de sua função.
Isto nos indica que, embora, segundo Bourdieu, possamos dizer que o campo
jurídico é mais autônomo que o campo jornalístico, este ainda detêm o domínio
das técnicas, aparatos e linguagem necessários a tornar efetivamente públicos
os discursos pertencentes a outros campos, inclusive o campo jurídico. Assim,
vê-se que o papel das mídias é dos mais estratégicos, não apenas por sua
competência de anunciabilidade e visibilidade da relação direito e mídias, “mas
também, ao mesmo tempo, pelo fato de os processos de construção de
inteligibilidade sobre esta relação dependerem gradativamente das práticas das
mídias e de seus respectivos efeitos de sentido” (FAUSTO NETO, 1999, p. 21).
36
Na relação entre os dois campos, portanto, pode-se estabelecer certo nível de
stress comunicacional (SANTOS, p. 86). Ou seja: um stress específico ligado
às diferenças de critérios sobre o que é informação relevante e informação
irrelevante nos campos jurídico e jornalístico, e que pode levar à sujeição de
indivíduos do primeiro a critérios e linguagens do segundo.
O dilema neste stress comunicacional é que, mesmo quando os
operadores do direito contestam os critérios dos media, acabam
por se render a eles, quanto mais não seja porque a linguagem da
contestação tem de ser a linguagem comum com que os meios de
comunicação social os confrontam. (op. cit.)
37
2 TRAÇADORES
2.1 Direito: bem de serviço (SUS) e direito do consumidor (SS)7
2.1.1 Concepções de direito associadas à saúde suplementar
O objetivo da utilização deste traçador foi o de identificar as concepções acerca
do direito na saúde suplementar nos discursos dos atores que compõem os
campos em análise. Dentro dessas concepções, constatou-se que este direito
é predominantemente concebido como um direito do consumidor. Isto porque,
numa primeira análise, no contexto da saúde suplementar a saúde é
considerada um serviço prestado mediante pagamento. Entretanto, no decorrer
das entrevistas, os usuários pareciam pouco à vontade ou desconfortáveis em
tratar a saúde segundo uma ótica meramente do consumo. Assim, o que a
princípio poderia ser apenas da ordem do consumo, mostra-se com um algo a
mais, dada a seriedade e a fundamentalidade da vida.
Este desconforto ficou evidente nas entrevistas nos momentos em que foram
expressas preocupações maiores com questões como vínculo, atendimento
integral e cuidado. Dessa maneira, o direito à saúde é associado com os
termos prioridade, atendimento gratuito, bem da vida, Estado, ao mesmo tempo
em que o direito do consumidor é caracterizado como algo que deveria ser
mais fácil de se exercer, como lugar em que existiria certa paridade nas
relações, prestações equivalentes, mutualidade.
Bom, o serviço privado de saúde é prestado num contexto de
relação de consumo, que é definida, eu creio, como uma relação
em que se presta um serviço mediante remuneração (...).
(entrevista promotor de justiça 02)
Eu entendo a saúde suplementar, na verdade, como uma forma
do poder público resolver as deficiências dele na prestação do
serviço de saúde. Agora, volto a repetir, pra mim é um direito
fundamental e deve ser interpretado dessa maneira (...) pelo viés
7 Para esta dimensão foram utilizadas apenas entrevistas.
38
hermenêutico constitucional (...) máxima efetividade do direito à
saúde. (entrevista promotor de justiça 01) [destaque nosso]
Vê-se que, embora o direito do consumidor seja associado à saúde de forma
direta, no sentido de se conseguir uma maior efetividade deste direito ou de
forma a deduzir pretensões no poder judiciário, esta associação parece criar
certo desconforto nos entrevistados, principalmente pelo fato de ser a saúde
considerada um direito fundamental na Constituição. Assim, o tratamento
prioritário dado à saúde, segundo interpretação da Constituição, fica explícito
na noção de “viés hermenêutico constitucional”, presente na fala do segundo
promotor. Isto porque, este viés significa, segundo o promotor, que a
interpretação do direito à saúde na saúde suplementar, mesmo podendo se
falar em direito do consumidor, deve ser feita à luz do disposto nas normas
constitucionais, seguido, portanto, os princípios e normas orientadoras dos
direitos fundamentais e da saúde pública.
É possível identificar esta questão na análise de uma decisão judicial em ação
movida por um beneficiário, no sentido de obrigar a operadora a autorizar a
realização de determinado exame. Na decisão proferida pelo juiz, é possível
observar como a saúde é tratada como direito fundamental e mais tarde, por
uma estratégia jurídica, é interpretada como direito do consumidor de forma a
legitimar uma decisão favorável ao usuário.
De se ressaltar que o contrato firmado entre as partes é dotado de
características especiais, porque visa [a] proteger a saúde, sendo
que, diante da realidade brasileira assume especial relevância,
haja vista à falência estatal no tocante à prestação de assistência
médica pública satisfatória.
Além disso, a recusa (fls. 20) na concessão da autorização
fundada na existência de cláusula contratual limitativa da
quantidade do exame já mencionado não pode ser admitida, uma
vez que a limitação ou restrição como a destes autos a
tratamentos hospitalares necessários a recuperação da saúde do
paciente contraria legítima expectativa do consumidor ao
39
contratar, restringindo o direito fundamental inerente à própria
natureza do contrato de proteção à saúde, rompe o equilíbrio da
relação contratual e cria desvantagem exagerada para o
consumidor. (processo de oncologia)
Logo, pelo lado dos usuários do campo, bem como dos beneficiários verifica-se
uma constante associação do direito à saúde ao direito Social e constitucional.
Por outro lado, através das peças processuais analisadas, é possível
identificar, pelo lado das operadoras, um forte apelo ao direito liberal, positivo,
com forte ênfase em questões como liberdade contratual e respeito à letra da
lei e dos contratos (formalismo).
De acordo com Sarmento (2003), o direito de características liberais seria um
direito que nasce com as idéias fundamentais da burguesia valorizando
questões como igualdade formal, liberdade individual e contenção ao poder
estatal. Assim, a autonomia privada seria muito valorizada, o que faria com que
se respeitasse ao máximo a liberdade contratual das partes, sendo
considerada desnecessária e prejudicial qualquer intervenção estatal nos
contratos. Ainda segundo o autor, o direito social seria desenvolvido a partir de
críticas ao modelo liberal, em especial a idéia de igualdade formal. Neste
sentido, relativiza-se a liberdade contratual a partir de uma intervenção mais
acentuada do Estado nesses contratos de forma a garantir a aplicação e
efetividade dos direitos fundamentais.
Com o intuito de exemplificar essas críticas ao modelo liberal e a idéia de
igualdade formal garantida pela lei, Sarmento (2003) cita, ainda, frase
importante de Anatole France que preceitua que: “A lei, na sua majestosa
igualdade, proíbe igualmente o rico e o pobre de mendigarem, furtarem o pão e
dormirem de baixo da ponte” (apud SARMENTO, 2003, p. 53).
Outro aspecto importante pode ser ilustrado com a questão da contratualização
existente entre operadoras e beneficiários com referência à produção do
cuidado. Neste caso, a integralidade muitas vezes está ligada ao cumprimento
de todas as cláusulas e obrigações previstas no contrato. Como exemplo desta
visão destacam-se algumas petições de operadoras que deixam bastante clara
a redução da integralidade ao cumprimento do contrato, deixando as questões
não previstas para serem tratadas pelo Estado.
40
A obrigação resultante do contrato, e que deve nortear a conduta
das partes, é pautada exclusivamente pelas disposições
pactuadas, uma vez que esta agravante presta serviço de “saúde
complementar”, regulada pela Agência Nacional de Saúde
Suplementar – ANS (grifamos), e deve eficiência, qualidade com
menor custo.
O dever geral e irrestrito de prestar assistência aos cidadãos, fora
dos limites que são impostos a cooperativa é do Estado, “ex vi” do
artigo 196, da Carta Magna, adiante transcrito [...]. (Processo
oncologia)
Em que pese o fato de que, dentro de uma ótica de consumo a ligação entre a
integralidade e o cumprimento do contrato possa ser considerada legítima, já
que uma das interpretações possíveis seria a de que cumprimento integral das
obrigações contratuais seria manifestação da integralidade, alguns problemas
decorrem desta confusão. O princípio da integralidade guarda diferentes
sentidos para o direito por ser polissêmico, uma “imagem objetivo”, prenhe de
significados e possibilidades (MATTOS, 2001, p.42).
Dito de outra forma, toda imagem objetivo é polissêmica, ou seja,
tem vários sentidos. Sentidos correlatos, sem dúvida, posto que
forjados num mesmo contexto de luta e articulados entre si. Mas
sentidos distintos, que possibilitam que vários atores, cada qual
com suas indignações e críticas ao que existe, comunguem estas
críticas e, pelo menos por um instante, pareçam comungar os
mesmo ideais. Mais importante do que isso, uma imagem objetivo
não diz de uma vez por todas como a realidade deve ser. Ela traz
consigo um grande número de possibilidades de realidades
futuras, a serem criadas através de nossas lutas, que têm em
comum a superação daqueles aspectos que se criticam na
realidade atual (que almejamos transformar). (op. cit.)
Pinheiro (2005) ressalta que o princípio da integralidade se materializa quando
ocorre interações democráticas entre os atores envolvidos na prestação da
41
atenção e do cuidado em saúde, o que dinamiza o direito e possibilita a sua
adequação às necessidades da sociedade em determinado momento.
Entretanto, tais possibilidades se desfazem na saúde suplementar, pois a
integralidade passa a ter seu significado limitado ao contrato. Na saúde
suplementar os contratos são sempre celebrados por adesão, não existe
discussão ou participação do contratante e posterior integração das suas
cláusulas, ao contrário, há imposição unilateral por parte das operadoras, que
detém poder econômico maior que os usuários. Aos usuários, resta-lhes a
possibilidade de escolha de que tipo de contrato eles pretendem assinar – com
diferentes tipos de cobertura, por exemplo – e com qual operadora. Esta
inexistência de discussão, aliada a um alto desconhecimento de direitos por
parte dos beneficiários, faz com que, muitas vezes, estes manifestem um
grande receio em não serem atendidos pelas operadoras. Tal receio reflete
uma desconfiança nos planos de saúde causada.
Por que se realmente eu for precisar o único jeito vai ter que ser
usar o convênio, aí nisso até eu tenho medo, né, de não aceitar
porque tem lugares assim que de última hora você precisa e tem
mesmo medo, assim, de não aceitarem e ter que ficar correndo
atrás de hospital, de clínicas, isso eu acho que é ruim. (entrevista
usuária saúde da mulher 03)
(...) agora eu tenho medo, assim, deles quererem aumentar muito
a taxa e quer dizer, isso prejudicar o funcionário, entendeu, então
quer dizer ele ter que usar o dinheiro dele com outras
necessidades e não ter como recorrer ao plano. (entrevista
usuária saúde da mulher 03)
Neste mesmo sentido, Vieira & Vilarino (2004, p. 10) afirmam que uma
estratégia freqüente das operadoras é a associação dos beneficiários à idéia
de desperdício e de falta de critério na utilização dos serviços como forma de
redução de custos.
Uma das estratégias desenvolvidas contra os consumidores é o
de restringi-los quanto à freqüência de exames diagnóstico-
42
terapêuticos, com argumentação calcada em simbolismos, como
é o caso da sua vinculação à imagem do desperdício propiciado
por pessoas hipocondríacas que ocupam suas vidas,
principalmente após a aposentadoria, com sucessivas visitas aos
médicos, alimentando um ciclo periódico de gastos, posto que
plano de saúde é obrigado a encampar todas suas despesas, não
percebendo que encarecem o sistema como um todo e que, em
última instância, são os responsáveis pelos sucessivos aumentos
dos preços dos planos de saúde. (Pág. 10)
No entanto, para além do que dizem os autores, apenas é possível encarar a
possibilidade de sucesso de tais investidas em um cenário de amplo
desconhecimento de direitos, que leva a disputas de poder desiguais dentro do
campo. Ademais, outra forma muito usual de transferência de
responsabilidades pode ser identificada nos contratos em que existe a co-
participação. Nestes contratos, apesar de não existir uma limitação direta de
acesso e transferência de uma culpa aos usuários, existe a transferência direta
de custos, com os usuários pagando uma participação pelo que utilizam.
Abaixo, a transcrição de trecho de uma petição de uma operadora corrobora
esta idéia.
Quando a autora manifesta o pleito de lhe ser deferida a utilização
de um direito, embora previsto, mas capaz de trazer prejuízos em
caso de ter que se reparar danos causados pela ineficiência dos
serviços, evidencia que os demais associados venham a custear
e suportar a diferença e déficit do mesmo. (processo oncologia)
Neste caso, porém, algumas questões merecem ser destacadas: o processo
versava sobre autorização para tratamento emergencial de oncologia em que
estava em risco a vida da paciente; a operadora desejava impor um outro tipo
de medicamento; a justificativa era a melhor qualidade deste último, além da
possibilidade de fazer com que os demais segurados tivessem prejuízo. Ou
seja: a operadora se negava a fornecer o medicamento emergencial na forma
43
prescrita pelo médico e, além disso, tentava culpar a usuária por esta tentar
fazer valer na justiça um direito que a própria operadora reconhecia ser
previsto.
A despeito das influências das operadoras na definição do direito, observa-se
uma atuação do poder judiciário no sentido contrário a esta tentativa de reduzir
custos através da responsabilização dos usuários por uma eventual insolvência
do sistema. Este posicionamento pode ser ilustrado com um trecho de uma
decisão proferida em processo em que a operadora havia negado a realização
de um segundo exame pelo usuário em razão do curto espaço de tempo.
Além disso, a realização de exame médico, seja ele qual for, não
representa ato voluntário e de deleite por parte de ninguém.
É óbvio que o Autor solicitou a realização do exame em tela por
absoluta necessidade e imprescindibilidade.
Se tal exame foi necessário em seguida a exame anterior idêntico
realizado, paciência. Faz parte do seguro oferecido pela Ré.
Aliás, repita-se, para o Autor a realização freqüente de exames se
afigura muito mais penoso do que o gasto econômico a ser
suportado pela Cooperativa Ré. (processo oncologia)
Entretanto, a despeito de conclusões maniqueístas que possam associar
médicos e usuários com o “bem” e operadoras com o “mal” é importante tecer
alguns comentários sobre esta perspectiva. Isto porque, existe também uma
forte indução ao consumo de tecnologias feita muitas vezes pelos próprios
médicos e financiadas pelos grandes laboratórios, o que significa dizer que,
muitas vezes, as operadoras podem estar corretas em sua postura. Além disso,
é necessário destacar que existem vários tipos de operadoras, algumas sem
finalidade lucrativa, o que também pode relativizar muito esta conclusão.
Outro ponto importante foi identificado dentro da linha de cuidado saúde da
mulher. Em entrevista, uma UQ2 associou o direito à saúde a vínculo e a
cuidado na prestação dos serviços de saúde, quando afirmou que direito à
saúde é “tratar bem”.
44
Quando o médico é atencioso, trata o cliente com cuidado, com
carinho. Tem muito médico que é muito barra pesada, muito
estúpido. Só tive uma durante esse tempo todo na (Medicina de
Grupo). Ignorância, não. Direito a saúde é tratar bem. (entrevista
usuária saúde da mulher 04)
Já em relação à linha de cuidado oncologia, talvez devido à gravidade das
questões que envolvem o câncer, é importante fazer referência à dificuldade
encontrada pelos membros do campo jurídico e do campo da saúde
suplementar em tratar as questões desta linha de cuidado como questões de
consumo.
São coisas distintas, né? A gente falar em saúde suplementar, a
gente tá falando em relação de consumo. Quando a gente fala em
oncologia a gente tá falando de saúde pública, né? Tá falando em
direito a tratamento, tá falando em medicamento (...) Você tá
falando em postura estatal, que é totalmente diferente da relação
de consumo. (entrevista promotor de justiça 04)
2.1.2 Articulações e conflitos entre direito do consumidor e direito à
saúde sob a ótica do usuário
Como já observado, a articulação entre direito do consumidor e direito à saúde
existe no ponto em que o direito do consumidor, para o campo jurídico, confere
maior proteção ao usuário e garante maior efetividade da cobertura, o que, de
certa forma, garante também o direito à saúde através da expansão dos
contratos e das coberturas inicialmente contratadas. Com este intuito, o campo
jurídico utiliza princípios do direito civil como “boa-fé objetiva” e “função social
dos contratos”. Da mesma forma, também utiliza princípios específicos
conferidos aos consumidores em contratos de adesão tais como: interpretação
das cláusulas de maneira mais favorável ao consumidor (considerado a parte
mais fraca da relação) e imposição de necessidade de referência expressa nas
cláusulas que excluem coberturas, por exemplo. Tais princípios são
amplamente aceitos dentro do campo e aplicados pelos juristas que
45
consideram o direito do consumidor uma das categorias de direitos do cidadão,
constitucionalmente amparado.
Já em relação aos conflitos, deve ser feita uma importante ressalva: o direito do
consumidor pressupõe o consumidor e o fornecedor e, por esta razão, um certo
equilíbrio entre as obrigações de ambos, o que é chamado pelo campo jurídico
de mutualidade entre as prestações. No entanto, quando se aumenta
excessivamente o preço das coberturas contratuais ou se impõem algumas
condenações às operadoras, observa-se um desequilíbrio entre o bem
econômico e o bem da vida, visto que a vida é fundamento principal a ser
protegido pelo sistema jurídico de acordo com a própria constituição. Logo, a
divergência entre mutualidade e saúde apenas reforça a delicada questão de
se olhar para saúde a partir do ponto de vista do consumo.
A visão mercantil da saúde também é reforçada pelas operadoras quando elas
se preocupam mais com cifras, lucro e prejuízo em detrimento de um
atendimento que privilegie a promoção da saúde no tratamento dado a seus
clientes, o que é possível observar na própria fala de uma UQ2 entrevistada.
Ela ressalta que a maior preocupação dos profissionais parece ser mais o
pagamento do que a qualidade de atendimento ao paciente.
Falou que era uma operação boba. Queriam mesmo o dinheiro.
Ela chegou lá, na mesma hora veio a maca correndo, levou ela
pra operar. Foi uma coisa assim, tão rápida. Você não tinha nem
noção, sabe? Foi... foi dia 2 de janeiro que ela se internou. Tá? O
médico tava com tanta ganância em pegar o meu dinheiro... que
só foi levando. Parecia assim que tava levan... levando um
cadáver assim pra dentro, sabe? Queria o meu dinheiro. Tá?
(entrevista usuária saúde da mulher 01)
Walzer (2003) critica essa visão da saúde que se dá pela ótica do consumo, e
que fundamenta esta realidade política e jurídica que transforma a saúde em
mercadoria. A partir de sua teoria sobre a igualdade complexa, ele considera a
saúde como um bem importante demais para ser distribuído de acordo com a
capacidade de pagamento daqueles que dela necessitam.
46
No mercado da saúde privada predomina a renda do indivíduo em detrimento
de sua condição de cidadão, possuindo planos de saúde 70,6% dos que
recebem 20 salários mínimos, percentual que cai para 2,6% dentre os que
ganham valor inferior a um salário mínimo. Além disso, é possível constatar
uma relação direta entre acesso ao médico e o poder aquisitivo, pois apenas
49,7% das pessoas de renda inferior a um salário mínimo procuraram médicos
nos últimos doze meses, percentual que sobe para 67,2% quando se eleva a
renda para a faixa de 20 salários mínimos. (Fonte: IBGE, apud “Duas faces da
mesma moeda”). Num país que segundo o PNAD 2004, tinha em 2004 33,2%
de pobres e 8% de indigentes, totalizando 71,6 milhões de pessoas, esses
dados revelam a importância de se investigar que tipo de direito à saúde toma
forma no contexto desta lógica de mercado. Ainda segundo esta mesma lógica
de mercado, importa ressaltar as fortes pressões do mercado para ampliar o
consumo de bens e serviços de saúde, o que geraria falsas necessidades de
saúde e, conseqüentemente, um também falso direito à saúde (PINHEIRO,
2005).
Como forma de exemplificar a dificuldade de tratar a saúde segundo uma ótica
do consumo num país com altos índices de pobreza, é muito representativo o
trecho a seguir, extraído da entrevista dada por um promotor, quando este
falava sobre os desafios dentro da saúde suplementar:
Eu acho que o maior desafio na saúde suplementar é mostrar pro
prestador de serviço, pra essas empresas, planos de saúde, que
aquilo ali, eu sei que eles pensam da ótica do empresariado, eu
não sou alienado para não entender a ótica deles, mas eles tem
que ter uma sensibilidade, porque, na verdade, eles estão
exercendo uma função que é pública, né, e que isso é um direito
fundamental das pessoas e que não pode ser visto apenas como
uma fonte de lucro. (entrevista promotor de justiça 01)
[...] que fique claro que eles também têm deveres e os deveres
deles estão lastreados na Constituição da República. Se não tem
condição de prestar dessa maneira, então não explore a
atividade. (entrevista promotor de justiça 01)
47
Assim, verifica-se a grande tensão que se estabelece quando se trata saúde e
equilíbrio econômico das empresas como se fossem questões comparáveis ou
mesmo que pudessem ser sopesadas. Em muitos casos, essa comparação
gera visões mercantis acerca do direito à saúde. Quando o direito à saúde é
confundido com o pagamento, a saúde deixa de ser direito universal e torna-se
direito acessível apenas aos que têm possibilidade de consumo. A fala de uma
UQ2 fornece um bom exemplo da redução do direito à saúde a um direito do
consumidor.
Direito à saúde? É complicado. Eu tô respondendo por mim. É no
caso ter direito àquilo que você paga. Eu pago plano de saúde
que não cobre internação. Eu tenho direito só aquilo, não tenho
direito a internação. (entrevista usuária saúde mental)
Ainda neste ponto, é também ilustrativa a fala de um promotor de justiça ao se
referir à questão da suplementariedade da saúde privada:
Na conjuntura de hoje, pelo menos para que se tenha um bom
atendimento médico, não é suplementar, não é uma opção da
pessoa ter um plano de saúde. (entrevista promotor de justiça 03)
Corroborando com estas dificuldades encontradas no tratamento mercantil
dado à saúde, observa-se uma posição das operadoras que está também
muito preocupada com a parte financeira, sendo possível identificar em
algumas falas referências a autorizações de exames e procedimentos dadas
facilmente desde que os beneficiários estejam em dia com suas mensalidades.
Tal concepção representa uma visão bastante reducionista da saúde e do
serviço que estão prestando, sem um foco centrado no usuário e na promoção
de sua saúde.
O trecho de entrevista fornecida por um gestor de operadora indica esta
redução do enfoque às questões financeiras quando este afirma ser defensor
de uma saúde inteligente, na qual o beneficiário apenas pagará por aquilo que
for efetivamente usar, não pagando pelo que não vai precisar.
48
Ainda dentre os beneficiários não pertencentes ao campo jurídico referências
ao Estado e as expressões “receber tratamento”, “ter remédios” e “ser cuidado”
são muito associadas à saúde. A análise dessas expressões demonstra a
importância de que a integralidade seja observada segundo dois critérios:
integralidade na atenção à saúde (promoção e prevenção) e no tratamento
dado à saúde. Ou seja: que ela deve ser estudada e encarada de forma una,
sem separação em relação ao âmbito privado (suplementar) ou público. Isto
porque, se os usuários constantemente associam saúde com o público, tal
associação indica o forte caráter público8 deste serviço, razão pela qual seu
estudo, mesmo no âmbito privado, não pode ser desvinculado dos princípios
que são preconizados para a saúde no âmbito do SUS, fundado sobre o
princípio da integralidade.
Neste ponto, ainda fazendo referência a uma visão reducionista e mercantil da
saúde privada, reproduzimos trecho de entrevista de um gestor acerca da
integralidade.
“Porque também a gente acredita na integralidade, mas quem é que suporta a integralidade? Do ponto de vista econômico-financeiro?”(gestor)
A questão a ser colocada aqui, além da mercantilização, além da dificuldade
gerada pelo fato de se estar mais preocupado com cifras do que com a saúde,
é no sentido de indagar até que ponto este controle rígido de custos está
efetivamente sendo produtivo e lucrativo. Isto porque, investindo em atenção
integral se está investindo também em políticas de promoção da saúde e
prevenção, o que pode, perfeitamente ser adequado para reduzir custos
operacionais, por exemplo.
Esse próprio gestor acaba se contrariando quando, mais a frente, fala em um
princípio de financiamento de justiça social que existiria em seu plano, através
do qual pagaria mais quem ganha mais. Pensando assim, seria facilmente
respondida sua indagação sobre quem pode suportar a integralidade. 8 Esse caráter público é afirmado em razão do caráter coletivo e de interesse público presente na saúde, o que exige uma regulação estatal mesmo na iniciativa privada. Tal afirmação é feita a partir da combinação e interpretação de artigos da constituição que preconizam que: “a saúde é direito de todos e dever do Estado” (artigo 196); “São de relevância pública as ações e serviços de saúde” (artigo 197); e “As instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público” (artigo 199, parágrafo 1).
49
Entretanto, quando a preocupação é somente reduzir custos operacionais
ficam muito complicado ampliar os horizontes deste financiamento de justiça
social fazendo com que este possa ser efetivo também do lado de fora, na
relação entre saúde pública e privada, na complementariedade existente entre
as duas esferas.
Entretanto, o entendimento acerca do que significa integralidade pareceu-nos
bastante restrito e sem “tradução” no cotidiano, já que é muito difícil de ser
encontrado nos discursos dos entrevistados. De modo geral, eles têm uma
idéia fragmentada de atenção à saúde. Além disso, identifica-se um modelo
bastante centrado no médico, na doença e em seu tratamento, sem uma maior
preocupação ou mesmo conhecimento em relação à promoção ou prevenção
da saúde.
São representativas as definições de alguns UQ2 sobre “atenção integral”, que
tendem a conceituá-la mais como uma reação a determinado problema,
emergência ou necessidade, e raramente como algo prospectivo, no sentido da
promoção da saúde.
Nada que eu precisei até hoje foi negado.
[...] Eu só queria o remédio, só isso. (entrevista usuária oncologia
01)
Esta tendência também se reflete no direito e também na relação da saúde
com o direito do consumidor. Isto porque, apesar do desconforto já citado – dos
entrevistados em relação à idéia de saúde como bem de consumo –, a noção
de uma saúde suplementar fundada na dinâmica entre necessidade e
atendimento muito se assemelha à dinâmica entre pagamento e recebimento
de serviços, tão característicos do direito do consumidor. É exatamente este
impasse que não somente dificulta a construção do direito à saúde, assim
como o estabelecimento de práticas de integralidade na saúde suplementar.
A associação do direito à saúde como um direito do consumidor é
característico de uma visão liberal sobre o direito. Esta visão é marcada por
uma distância e descrédito em relação aos direitos emanados do Estado, talvez
por ausência da presença estatal (TELLES, 1999). Tal distância e descrédito se
contrapõem às fortes noções de paridade nas prestações e de conhecimento
50
sobre direitos quando a questão envolve o consumo. Como exemplo desta
visão, seguem trechos das falas dos usuários:
Entrevistador: o que você entende por direito a saúde?
Entrevistado: direito à saúde... Não sei.
Entrevistador: direito do consumidor?
Entrevistado: direito de ser bem atendido, direito de você ter, por
exemplo, uma coisa, direito de ser bem atendido, uma coisa
assim... (entrevista usuária saúde da mulher 02).
Uma das explicações para este fenômeno pode ser a forte presença de
características do individualismo nos depoimentos, que apresenta a
possibilidade de acesso aos planos de saúde como forma de distinção dos que
não têm acesso, como saída individual para um problema coletivo de garantia
de direitos pelo Estado.
O atendimento deveria ser, como é plano de saúde deveria ser
mais rápido. tipo diferenciado, né? quem é do SUS... quem é
plano de saúde... vai agilizando as coisas e você espera da
mesma forma... (entrevista usuária saúde da mulher 06)
Neste mesmo sentido, Vieira & Vilarino (2004, p. 17) asseveram sobre o
individualismo presente na escolha e no uso dos planos de saúde privada:
Presentemente, com o alastramento do sistema de planos de
saúde, cujos altos custos e preços têm afastado amplos
segmentos da classe média do seu acesso e reduzido qualidade
dos serviços prestados, assiste-se ao retorno do modelo elitista,
de privilégios, voltados às restritas pessoas que dispõem de
elevados recursos próprios ou pertencem a níveis hierárquicos
elevados em organizações que financiem planos individuais que
atendam aos custos da moderna tecnologia e sofisticação dos
exames diagnóstico-terapêuticos. A proliferação de planos
coletivos evidencia a escassez de recursos da população nos
planos individuais e familiares, fazendo com que seja postergado
um problema social de elevadas proporções, posto que os planos
51
coletivos existem na medida em que as pessoas encontram-se
empregadas.
2.1.3 Formas de o usuário interferir no serviço e no cuidado através de
canais de comunicação
Dentro deste traçador, tivemos o objetivo de identificar a porosidade das
operadoras ao contato e participação dos usuários na construção conjunta do
campo da saúde suplementar. Entendemos como canais de comunicação os
instrumentos postos à disposição do usuário para que este possa manter
contato com sua operadora, como através dos call centers por exemplo, bem
como as possibilidades de diálogo existentes entre os beneficiários e os
profissionais médicos. Neste ponto, viu-se que existe apenas uma certa
possibilidade de diálogo com profissionais médicos para discussão sobre as
formas de tratamento e cuidado. Entretanto, tal discussão fica extremamente
limitada pelo domínio do saber pelo profissional e pelas diversas questões
técnicas e científicas que recobrem de mistério a questão.
Dessa maneira, apenas o médico, ou seja, quem detém o saber, é identificado
como aquele que pode definir e determinar o melhor tratamento, influenciando
diretamente no itinerário terapêutico do paciente. O grande problema ocorre
quando, ao lado deste poder, inexiste uma responsabilidade, um vínculo com o
usuário, que, quando não consegue autorização para determinado tratamento
prescrito como eficaz, fica totalmente desprotegido. Este fato pode ser ilustrado
com a entrevista de uma usuária para quem foi prescrito o remédio Temodal
para o tratamento de seu câncer. Nesta entrevista, foi repetida pela filha da
paciente a frase dita pelo médico após a negativa da operadora em custear
este determinado remédio.
O oncologista disse que se ela não tomasse essa medicação, que
seria melhor pra ela, não precisava tomar mais nada. (entrevista
usuária oncologia 01)
Essa frase, que parece ter ficado bastante marcada na usuária e em sua filha,
demonstra ausência de acolhimento e vínculo por parte do profissional e, em
seguida, também da operadora. Como conseqüência, dentro da tentativa de
52
contato com a operadora através de meio formal de comunicação, a resposta
fornecida pela auditora do plano de saúde levava a usuária a falar com o
médico para “prescrever qualquer outra quimioterapia venosa”. Sem vislumbrar
uma solução, o médico, a pedido da usuária, receitou outro medicamento, de
custo mais baixo, para o tratamento do câncer. Como esperado, essa
alternativa não deu resultados, funcionando “razoavelmente bem, mas não o
suficiente” (conforme dito pela filha da usuária oncologia 01).
O que mais impressionou neste caso foi que, com a recusa de cobertura pela
operadora, a usuária precisou se submeter a três cirurgias para retirada de
tumores, todas cobertas integralmente pela operadora. Indaga-se, aqui, se os
gastos com três cirurgias não cobririam o custo do medicamento negado. Neste
caso, para além da falta de planejamento no âmbito financeiro, destaca-se a
extrema fragmentação dos procedimentos médicos. Isto parece dificultar a
integralidade, já que se observa uma preocupação bastante imediatista com
resolver o “problema”, sem uma visão ampliada sobre o paciente, sua vida e
sobre como evitar a volta do tumor e melhorar a qualidade de vida da usuária.
Outro exemplo desta visão fragmentada pode ser encontrado num caso da
linha de cuidado Saúde da mulher. Neste caso, a prestação do serviço foi feita
de maneira totalmente despreocupada não só com a questão do vínculo, como
também sem uma perspectiva que integrasse o tratamento de urgência a um
envolvimento maior com o usuário, no sentido de evitar que o problema de
saúde se tornasse ainda mais sério em razão de problemas psicológicos da
usuária e de sua família. Deve-se ressaltar que, tais problemas só vieram a
surgir em razão da conduta desastrada do profissional de saúde.
Ela precisava também de..., de nós duas precisávamos na época
de uma ajuda até de psicólogo. Até de psicólogo, sabe? Porque
chegar em você e falar assim: _ “Ah! Você vai morrer! Não sei o
quê! Não sei o quê!” (entrevista usuária saúde da mulher 01)
Outro exemplo relevante de influência das operadoras no tratamento pode ser
verificado na entrevista com um promotor de justiça ao falar dos resultados
práticos dos baixos valores pagos pelas operadoras aos profissionais de
saúde:
53
[...] por causa dessa política desastrada, os diagnósticos estavam
sendo prejudicados, o tempo de consulta tinha sido drasticamente
reduzido, pra que eles pudessem ganhar em número e em
quantidade, em sacrifício da qualidade, tudo isso acabando por
repercutir na esfera jurídica do segurado, que acabou não tendo
mais o serviço minimamente qualificado e também ficou com a
possibilidade de ver esse serviço ser simplesmente paralisado.
(entrevista promotor de justiça 02).
Assim, em relação aos canais de comunicação das operadoras, muitas vezes
verifica-se que estes canais se estabelecem no sentido de confirmar posições
anteriores e influenciar decisivamente nas condutas médicas, até mesmo
modificando de modo significativo no tratamento. Como exemplo, foi percebido
de forma recorrente no campo de pesquisa a referência dos beneficiários a
essa dificuldade e ineficiência dos canais de comunicação. Assim,
independente da operadora, o resultado prático de reclamações e tentativas de
autorização para a realização de exames ou cobertura de tratamentos era
sempre a confirmação da negativa anterior.
Outra questão importante a ser destacada diz respeito a inadequação de
canais utilizados pelas operadoras. Em uma das operadoras da amostra
analisada, a despeito de ser categoricamente definida como tendo um perfil de
clientes majoritariamente localizado nas faixas C e D de consumo, o principal
meio de comunicação com os beneficiários é o site da empresa na internet. De
acordo com seu gestor
“Através do site nós recebemos as reclamações e prontamente respondemos, tanto é que nosso índice reclamação é muito pequeno.” (Gestor)
Assim, é possível afirmar que o fato do índice de reclamações ser baixo pode
não refletir a qualidade da operadora. Isto porque, tendo em vista que a faixa
econômica dos beneficiários na qual esta tem majoritariamente seus clientes
sabidamente tem um acesso restrito à internet e a computadores. Desta
maneira, a inadequação dos instrumentos de diálogo além de prejudicar o
beneficiário diretamente pode dificultar à própria operadora uma avaliação de
sua atuação.
54
Neste ponto, então, existe também uma grande interferência e influência do
campo político no campo jurídico. Conforme se verifica através da fala do
promotor de justiça, as operadoras freqüentemente intervém na conduta dos
profissionais da saúde e do direito, modificando ou condicionando sua atuação.
Este aspecto pode ser interpretado como uma influência política no direito de
alterar aquilo a que o usuário tem direito ou aquilo que é prescrito pelos
profissionais de saúde. A fala de uma defensora pública também é bastante
ilustrativa quanto a esta questão:
Então eles têm que aceitar o plano de saúde. E os planos de
saúde, acho... acho que com isso acabam virando o dono da
situação porque tanto o médico depende, né? De... de aceitar o
plano, porque sabe que a maioria das pessoas tem o plano vão
querer procurar um médico, né? Quem tem plano vai querer
procurar um médico que tenha o plano. Não vai querer pagando
médico particular. Então, os médicos também têm que se
submeter aos planos, as regras dos planos, os planos, pelo que
me contam, pagam muito pouco aos médicos pelas consultas,
mas ao têm jeito, né? Eles têm que se submeter. Então acho que
essa questão também é complicada pros próprios médicos em
relação aos planos. (defensor público 02)
Por parte das operadoras, é possível observar suas estratégias de defesa
contra esta suposta interferência em algumas petições, que contestam ações
movidas por usuários. Na grande maioria, as operadoras esquivam-se da
acusação de manipulação através da afirmação de que o tratamento que
autorizam seria o “melhor” para o usuário, um julgamento que não somente
desrespeita a autonomia dos médicos, bem como a relação entre médico e
paciente na definição do cuidado. A fala a seguir evidencia elementos nesta
direção. Ela foi extraída de um processo judicial cujo objetivo era o
restabelecimento de tratamento suspenso por determinação da operadora:
Não se trata de gastar menos ou mais dinheiro como entende o
pleito, nem de interrupção abrupta, colocando em risco a vida da
autora, sob alegação injustificável, como quer a decisão
55
antecipatória da tutela, mas sim de uma medida mais adequada e
eficiente para a saúde da agravada, como a peça de impulso
saliente, às fls. 06 (...) “A ré informou que autorizará a
quimioterapia com as medicações Taxol e Carbo”. (processo
oncologia)
Contrariando esta tendência é importante citar o precedente judicial
recentemente proferido pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Nesta decisão,
em julgamento do Recurso Especial 668216, o STJ afirmou categoricamente
que aos planos de saúde cabe apenas, no contrato celebrado com o usuário, o
poder de definir quais doenças serão ou não cobertas, não podendo,
entretanto, definir a forma de tratamento, cuja decisão deve caber ao médico.
2.1.4 Participação X contratos por adesão
Como se afirmou anteriormente, a saúde suplementar é regida exclusivamente
pelos chamados contratos por adesão. Ou seja: são contratos que, dado o
grande volume de contratantes, existem num formato único, restando ao
usuário apenas as opções de aderir ou não, sem qualquer discussão acerca
das cláusulas contratuais, o que inviabiliza qualquer tipo de participação por
parte do beneficiário.
Por previsão expressa no Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90),
neste tipo de contrato existe a possibilidade de uma intervenção mais direta do
poder judiciário de forma a garantir maior igualdade entre as partes
contratantes. Entretanto, a construção social da integralidade é totalmente
esvaziada, sem que exista a possibilidade de participação dos usuários
também neste processo. Quando muito, essa interpretação e integração dos
contratos é feita apenas a posteriori pelo poder judiciário. Para tal, este leva em
consideração princípios como a “boa-fé objetiva” e a função social dos
contratos. Porém, a integração é feita já no interior do campo jurídico, através
de participação dos profissionais que têm o monopólio de “dizer o direito” e da
exclusão dos “profanos”. Tal integração acaba por determinar e reduzir a
questão do direito à saúde ao campo do direito, excluindo a participação de
outras camadas da sociedade na construção social do direito.
56
Conseqüentemente, em razão desta ausência de discussão e de certa restrição
da liberdade contratual amparada pelos já citados princípios como boa-fé
objetiva e função social dos contratos, o tratamento dado aos consumidores é
mais benéfico9. Isto porque, observa-se que, ao mesmo tempo em que inexiste
discussão contratual, praticamente inexiste também qualquer tipo de leitura
destes contratos. Em primeiro lugar, pelo fato de que a impossibilidade de
contrastar alguma cláusula faz com que o interesse na leitura diminua. Em
segundo, porque tais contratos são formulados de forma bastante extensa (o
que também dificulta a leitura) e com inúmeros termos técnicos. Ademais, os
termos técnicos são duplamente difíceis de compreensão por pertencerem, ao
mesmo tempo, aos campos médico e jurídico.
Esses aspectos acabam por criar um círculo vicioso: ao mesmo tempo em que
os contratos parecem feitos para que ninguém os leia, o judiciário se mostra
bastante ativo no sentido de interpretar cláusulas de forma mais favorável aos
usuários e de considerar como não escritas as cláusulas abusivas. Logo, a
leitura e qualquer forma de participação ficam cada vez mais esvaziadas.
Essa ausência de participação acaba por conferir a médicos e a profissionais
do campo jurídico a quase que exclusividade em dizer o direito. Considerando
que o conhecimento de direitos é requisito fundamental para a sua defesa, a
construção social do direito fica cada vez mais restrita a pequenos grupos,
dado o não domínio do saber autorizado, o que impossibilita a participação.
A transferência da discussão do usuário para o campo jurídico, dentro do poder
judiciário é bastante representativa de como a participação do campo jurídico
afeta diretamente o itinerário terapêutico e a avaliação dos usuários. Estes
últimos passam a precisar do campo para que lhes seja “revelado” o que fazer,
como fazer e o que é passível de crítica.
A seguir, alguns trechos representativos desta relação:
(...) experiência mostra que ninguém lê cláusula de contrato
nenhum. (entrevista juiz 01) 9 Esse tratamento mais benéfico é dado em razão do próprio Código de Defesa do Consumidor reconhecer expressamente a “vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo” (artigo 4, inciso I, Lei 8.078), que exige uma participação estatal no mercado, sendo prevista, inclusive, a “modificação de cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais” (artigo 6, inciso V) prejudicando o consumidor. Ainda neste sentido, o artigo 47 preceitua que “as cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor”.
57
Infelizmente... Existem coisas até que a gente nem sabe os
direitos que a gente tem, é ou não é? (...) E os poucos que tem e
procura, dificilmente é atendido. (entrevista usuária oncologia 04)
(...) na verdade o contrato é um formulário, é a produção em
escala que não permite a discussão, é de clausula por clausula,
então eles fazem um contrato geral pra todo mundo. (entrevista
promotor de justiça 02)
Quando precisa é que a gente vê. (entrevista usuária oncologia
01)
Como se observa, a participação e a discussão de cláusulas é negada aos
usuários no momento da contratação e, apenas em alguns casos, é transferida
e postergada para os médicos e para o próprio poder judiciário. Esta
dependência do cidadão – em face não somente do poder econômico das
operadoras que impõem contratos sem possibilidade de discussão, mas
também em relação aos saberes médico e jurídico – contribui muito para uma
redução da cidadania ao consumo. Assim, parece restar ao usuário apenas a
opção de, diante de uma imensa variedade de operadoras, escolher, sem
conhecimento suficiente, a que aparentemente melhor lhe possibilita a
obtenção assistência a sua saúde.
Portanto, nos parece de fundamental importância que se discuta, de forma
ampla na sociedade, essa participação, pois, no setor privado, participar
significaria democratizar e, ao mesmo tempo, estabelecer uma correlação de
forças entre consumidor e cidadão de forma concreta. A partir do momento em
que o cidadão perde este poder de participação, de discussão e deliberação
política sobre questões que influenciam diretamente em seus direitos, ele fica
reduzido a condição de simples consumidor, alijado de suas concepções
políticas.
Para exemplificar esta “transformação” segue trecho da entrevista com o
promotor de justiça no momento em que falava acerca da relação entre saúde
pública e privada:
Então, o cidadão se transforma em consumidor, ele passa a ter
uma relação com o prestador desse serviço, uma relação privada,
58
contratual, e não uma relação de contribuinte, pagador de
impostos que precisa, enfim, ver o retorno desses impostos em
serviços prestados pelo estado em seu beneficio, (...) (entrevista
promotor de justiça 02).
O grande problema acerca do consumo surge exatamente no contexto de uma
sociedade extremamente desigual, onde a cidadania é efetiva apenas no papel
e o acesso diferenciado ao consumo surge como mais uma forma de exclusão
social. O consumo, então, longe de se tornar uma forma de expressão ou
construção simbólica, fica, assim como os outros direitos historicamente
estruturantes da cidadania, restrito aos mais ricos. Assim, a possível inclusão
social e melhoria da qualidade de vida que a expansão do consumo poderia
gerar ficam obstadas pela desigualdade social, que funciona como barreira
para estas possibilidades.
Neste sentido, acerca da expansão da cultura do consumo em um contexto
socialmente desigual Canclini (2006, p. 41) ressalta:
Esta reestruturação das práticas econômicas e culturais leva a
uma concentração hermética das decisões em elites tecnológico-
econômicas e gera um novo regime de exclusão das maiorias
incorporadas como clientes. A perda da eficácia das formas
tradicionais e ilustradas de participação cidadã (partidos,
sindicatos, associações de base) não é compensada pela
incorporação das massas como consumidoras ou participantes
ocasionais dos espetáculos que os poderes políticos, tecnológicos
e econômicos oferecem através dos meios de comunicação em
massa.
Ocorre que, quando não são assegurados direitos civis, políticos e sociais para
a maioria da população, os possíveis elementos positivos do consumo também
não são extendidos aos mais pobres. O consumo, por si só, não é capaz de
melhorar significativamente a qualidade de vida da população mais pobre, uma
vez que para consumir é necessário ter recursos. Resta à maioria, e aí se
encontra um dos aspectos negativos do consumo, a ilusão da inclusão social
pelo consumo. Resta, como recurso último, a ilusão de que a simples posse de
bens é suficiente para torná-los cidadãos.
59
Neste ponto sim, a cidadania perversamente se confunde com o consumo, os
direitos básicos de participação cidadã se confundem com a participação
enquanto consumidores. Nas palavras de Fátima Portilho (2006, p.8) “o
consumo assume uma conotação de dever e obrigação cívica, em que a
cidadania passa a ser exercida através dele”. Existiria aqui, ainda em suas
palavras, uma “responsabilidade social de consumir”.
Como conseqüência, o consumo, um dos elementos constitutivos da cidadania,
transforma-se e se confunde com ela própria, desvirtuando o sistema como um
todo. Quando a cidadania, a propriedade de direitos e deveres, se confunde
com consumir produtos; quando a inclusão social se confunde com compra
numa sociedade desigual como a brasileira, essa inclusão nada mais é do que
ilusória. Numa população com 41,2% de pobres e indigentes o consumo jamais
pode ser tido como saída civilizatória.
Ademais, não existiria aqui um consumo sem o cidadão, mas uma tentativa de
ser cidadão através do consumo. Tenta-se comprar uma cidadania que não
está à venda, que não pode se confundir com um produto. A cidadania, como
anteriormente foi dito, é formada pelo conjunto de direitos e tradições culturais,
podendo passar pelo consumo, mas não pode se restringir a uma espécie de
cidadania de mercado, posta à venda e passível de compra por quem tem
dinheiro.
Neste sentido, concordando com Canclini (2006), se rechaçam os argumentos
que poderiam desembocar em uma visão equivocada de uma espécie de auto-
sabotagem10 dos mais pobres ao se endividarem para consumir, por exemplo,
negando uma visão de que seu consumo é irrefletido. Assim, ultrapassando o
autor, é possível afirmar que esse consumo é totalmente refletido e racional, é
a sua tentativa de inclusão, a sua tentativa de ser cidadãos pelo meio de que
dispõem ou pensam dispor. Não se trata de aceitar ou resistir às pressões
como diz Campbell11, mas antes de tentar ser cidadão. Interpretando essa
posição e construindo a partir do que dizem os autores, é possível concluir que
o maior problema é que neste caso, a propaganda da cidadania como produto
do mercado é enganosa porque vende sonhos e realiza frustrações.
10 Canclini, 2006, p. 45 11 Campbell, 2004, p. 49.
60
Sobre esse fenômeno, é de muita propriedade invocar novamente a precisa
análise de José Murilo de Carvalho (2005, p. 228) que, também sobre o
desenvolvimento da cultura do consumo, alerta para as suas conseqüências:
Mas há também sintomas perturbadores oriundos das mudanças
trazidas pelo renascimento liberal. Não me refiro à defesa da
redução do papel do Estado, mas ao desenvolvimento da cultura
do consumo entre a população, inclusive a mais excluída.
Exemplo do fenômeno foi a invasão de um shopping center de
classe média no Rio de Janeiro por um grupo de sem-teto. A
invasão teve o mérito de denunciar de maneira dramática os dois
brasis, o dos ricos e o dos pobres. Os ricos se misturavam com os
turistas estrangeiros mas estavam a léguas de distância de seus
patrícios pobres. Mas ela também revelou a perversidade do
consumismo. Os sem-teto reivindicavam o direito de consumir.
Não queriam ser cidadãos mas consumidores. Ou melhor, a
cidadania que reivindicavam era a do direito ao consumo, era a
cidadania pregada pelos novos liberais. Se o direito de comprar
um telefone celular, um tênis, um relógio da moda consegue
silenciar ou prevenir entre os excluídos a militância política, o
tradicional direito político, as perspectivas de avanço democrático
se vêem diminuídas.
Complementando sua análise, no contexto desta cultura de consumo o direito
que surge, direito do consumidor, mostra-se, mais uma vez, elitista e restrito a
uma parcela da população. Entretanto, sem pretender negar a sua importância,
este ramo do direito, quando se desenvolve sozinho e sem estar acompanhado
dos demais direitos fundamentais, acaba por reforçar a característica de
consumidor do cidadão. São esclarecedoras as palavras de Bernardo Sorj
(2001, p. 61) acerca desta questão:
A importância da luta pelos direitos do consumidor relaciona-se ao
déficit de aplicação efetiva dos direitos da cidadania pelo sistema
jurídico brasileiro. A defesa do consumidor não pode ser nem um
substituto para as carências de outros setores do sistema jurídico
nem a solução para os problemas fundamentais da sociedade
61
brasileira em termos de distribuição de renda e apropriação do
Estado pelos grupos dominantes. É, porém, um elemento
importante na defesa da cidadania e tem no contexto brasileiro, e
em geral em todas as sociedades capitalistas, um importante
papel na luta contra a colonização do Estado pelo sistema
empresarial.
Talvez resida aqui uma das possíveis explicações para o desenvolvimento do
direito do consumidor, que, segundo Canclini (op. cit., p. 47), culmina por gerar
uma realidade constituída por consumidores do século XXI e cidadãos do
século XVIII, situação que seria comum à maioria da população.
O esvaziamento da participação política dos usuários na negociação de seus
contratos com as prestadoras, além das conseqüências para a definição e
construção da integralidade, em caso de conflito, vai se refletir no poder
judiciário. Nesse sentido, ocorre o que Santos (2001) define como
judicialização da política. Isto porque, mesmo não se tratando de questões que
envolvem a saúde pública – em razão do caráter complementar de que se
reveste a saúde privada e com a vida elevada a bem fundamental pela
Constituição –, também existe um forte caráter público na saúde suplementar,
razão pela qual a participação política de diversos segmentos da sociedade se
revela de extrema importância.
Desta maneira, neste cenário em que existe um crescente processo de
judicialização das questões políticas, existe também uma politização das
questões judiciais (op.cit.). Assim, num contexto em que a política é fraca,
existe uma transferência das questões para os tribunais e, ao mesmo tempo,
estes tribunais passam a decidir questões de forma cada vez mais política. O
problema é que, apesar de continuar a existir a discussão política, esta fica
esvaziada e restrita a alguns “esclarecidos”, justamente os profissionais do
campo jurídico.
Além disso, num contexto em que a democracia é confinada a um campo
político cada vez mais estreito, onde políticas de consenso são transformadas
em políticas de resignação, em que também o direito passa por inúmeras
transformações (SANTOS, 2006), o esvaziamento dos espaços públicos de
discussão e participação, aliado a um incremento exacerbado do individualismo
62
e do consumo, leva a um esvaziamento da saúde pública em detrimento de um
mercado de saúde cada vez mais aquecido e excludente.
Este movimento de esvaziamento de espaços públicos de discussão em
detrimento de uma perspectiva individualista de consumo pode ser
demonstrado através da narrativa fornecida por uma beneficiária acerca dos
motivos que a levaram a contratação do plano privado. Dentre estes, o principal
argumento aventado dava conta de que a usuária tinha ouvido falar que o
sistema público estava um caos. Assim, dentro de uma perspectiva de
consumo, preferiu a usuária uma saída individualista que acabou por silenciar
uma eventual militância política por melhorias na rede pública.
Outra questão importante em sua narrativa é o fato desta usuária reconhecer a
importância da mídia na saúde suplementar por esta fornecer informações
fundamentais sobre o cenário da saúde privada que precisam, no entanto, ser
verificadas. Desta maneira, a mídia apenas instigaria o leitor a buscar a
veracidade das informações. O ponto controvertido e que chama atenção neste
discurso é o fato de que informações que a beneficiária ouviu sobre o caos no
setor público não precisam ser comprovadas, ao passo que as informações
sobre o setor privado sim. Verifica-se aqui que a constante articulação do
público ao caos chega ao ponto de fazer com que qualquer crítica ao setor
ganhe contornos de autoridade, sem necessidade de eventual verificação. Esta
autoridade apenas serve para contribuir com o enfraquecimento de uma cultura
e militância pública e fortalecer o consumo e as saídas individualistas.
Em relação à participação de grupos da sociedade civil, foi constatada pouca
participação de associações diretamente ligadas à saúde, prevalecendo as
entidades que atuam na defesa dos consumidores. Tais associações são
acusadas pelos profissionais que atuam no campo jurídico de serem
extremamente desorganizadas e com baixa qualidade técnica quando propõem
ações coletivas, por exemplo. Neste mesmo sentido, Vieira & Vilarino (2004, p.
6) afirmam que:
(...) os consumidores de planos de saúde, que contratam e
utilizam os serviços de saúde, os quais, na defesa dos seus
63
interesses, ainda não se estruturaram em sociedades civis para
enfrentamento de questões lesivas aos seus direitos, mas que
contam com recursos de poder advindos de entidades externas,
como o Poder Judiciário, o Poder Executivo – na figura dos
PROCON - e sociedades civis, de caráter privado, como o IDEC,
que atuam, cada qual na sua esfera de competência, no sentido
de salvaguardar direitos prescritos o Código de Defesa do
Consumidor e na Lei nº 9.656, que dispõe sobre os planos
privados de saúde.
Além disso, existe também muita desconfiança dos profissionais do meio
jurídico em relação à idoneidade de algumas destas associações. Entretanto,
tais críticas podem ser interpretadas à luz de Bourdieu (2005), quando fala
sobre as disputas internas dentro do campo jurídico. Segundo ele, existiria uma
grande disputa pelo domínio do campo, o que poderia justificar essa
desconfiança através de um outro olhar que, ampliando o campo de análise,
considerasse, por exemplo, a possibilidade dessa rejeição ser motivada pelo
desejo dos profissionais de vedar o campo à entrada destas associações de
caráter coletivo.
Por fim, contrariando toda esta tendência de redução de cidadãos a simples
consumidores é preciso ressaltar a importância dos planos coletivos,
especialmente aqueles vinculados a empresas e firmados pelos sindicatos de
trabalhadores. Nestes, em razão da grande força que tem os acordos coletivos
de trabalho na gestão do próprio plano de saúde (muito em parte em razão da
influência das movimentações sindicais), é possível identificar uma participação
maior dos beneficiários na condução e gestão dos planos, com o cidadão
saindo fortalecido quando se reforça o coletivo. A grande questão, entretanto, é
que aqui já não existe mais o consumidor, uma vez que o plano é feito para o
trabalhador e não existe opção de consumo.
2.2 Relação entre mídia e direito
64
2.2.1 Concepções da influência da mídia no cotidiano do serviço e do
cuidado
No contexto desta pesquisa, a influência refere-se ao modo como os conteúdos
apresentados pelos meios de comunicação podem afetar o comportamento dos
atores no itinerário do cuidado, desde pacientes ou usuários dos planos de
saúde (UQ2) até indivíduos pertencentes ao campo jurídico (UQ1) e médicos.
Pode-se classificar tal influência como afirmativa ou restritiva.
Na influência afirmativa a mídia é destacada como auxiliar no exercício do
direito. Esta visão é unânime em relação aos sujeitos que são usuários dos
planos de saúde ou UQ2, apesar de também estar presente na fala de UQ1.
Quando vem aquele período de imposto renda, tem um dia que
tem aquelas pessoas que perguntam ao jornal o que pode e o que
não pode fazer, vêm as respostas. Então sempre leio. E por ali
que eu soube que a doença que eu tinha [...] estava incluída e
que eu podia ficar isenta do imposto de renda. Eu recortei até,
porque tinha muitas enfermidades, muitas. E a neoplasia maligna
estava, que é justamente o meu caso. E foi a do meu marido e eu
não sabia na época. Então ele ficou enquanto vivo fazendo um
absurdo de imposto de renda, sendo descontado, né? Que a
gente geralmente é descontada no contracheque. Se eu já tivesse
sabido disso, eu já tinha ido por ele. Então como eu vi, eu corro
atrás. (recepção UQ2, oncologia 04)
Elas [informações] são bem valiosas. Tanto para quem quer ser
mãe algum dia. Mas bem mais importante é do consumidor.
Porque tão ocorrendo muitos casos em que tem alto índice de
problemas (...) e tem muita gente que não tem noção do que
fazer. Achei bem legal essa entrevista que vocês passaram, bem
importante. [...] Eu sei que vocês não tão dentro da televisão, mas
eu queria que vocês destacassem porque eu tenho um pouco de
conhecimento, mas tem muita gente que não tem. [...] Porque
informação nunca é demais. (recepção UQ2, saúde da mulher 03)
65
Eu achava que a mídia devia informar a população dos seus
direitos, não só aqueles pequenos direitos, mas todos os direitos.
(recepção UQ2, saúde mental 02)
A influência restritiva é destacada por médicos e por UQ1. Para os médicos, a
mídia é vista como algo que interfere na competência médica, na tomada de
decisão do paciente, na medida em que confronta conhecimento adquirido
informalmente pelo paciente e conhecimento autorizado do médico. Para UQ1
(jurídico) existe preocupação com imagem do poder judiciário, no que se refere
à divulgação de seus aspectos “negativos”, ou seja, à morosidade da justiça, à
corrupção ou abusos de poder no campo jurídico.
Os pacientes buscam informação (...) 20, 25% dos pacientes que
chegam aqui eles já têm informação e vem pra discutir essa
informação comigo (...); principalmente hoje com a internet o
acesso ficou muito fácil pra todo mundo.
[Se influencia na atuação do médico] Depende. Primeiro porque
eu tenho que me tornar bem atualizado porque eu tenho que ficar
pra fazer frente à solicitação. Mas eu não procuro me intimidar
com a situação do paciente. Acho que o paciente quando traz um
questionamento desse eu tento explicar, separar o joio do trigo, o
que é bom e o que não é. No mais acho que de uma forma geral é
bom. Acaba trazendo um pouco ele mais pra realidade,
estimulando ele a estudar. (entrevista, médico oncologista)
Aí eu dou um exemplo do poder judiciário. Muitas vezes a
imprensa, parece questão política, ela pega o judiciário pra
questionar e bater. Tudo bem. Passa ao usuário que o sistema
judiciário é moroso, não funciona, o poder judiciário
especificamente, que as decisões não são cumpridas, uma série
de aspectos negativos. Quando acontece alguma coisa de
positivo isso não é noticiado, você não vê no jornal, entendeu?
(recepção UQ1, juiz 01)
Acho muito positivo [reportagens] porque, na verdade, o que a
moça falou aí também [na reportagem], “saber é poder”. As
66
pessoas que tomam conhecimento de que elas estão sendo, de
alguma forma, lesadas, que um direito delas tá sendo violado, já
podem se motivar a defender esses direitos. Por outro lado
mostra os caminhos também. Tudo isso é fator de
conscientização. Então eu acho que o trabalho da mídia é
fundamental, um trabalho muito importante. Eu falo que se não
fosse a mídia nosso trabalho não se transformaria em realidade.
Primeiro que o MP não é o titular do direito, não é dono do direito.
A gente vai à justiça defender o direito da coletividade. Então, se
a coletividade não souber do resultado, como é que ela vai poder
exercer aquele direito? Como é que ela vai poder denunciar que a
decisão, que o direito tá sendo violado? Então a mídia cumpre
esse papel de divulgar a conquista. (recepção UQ1, promotor de
justiça 02)
Para UQ1 (membros do judiciário) e médicos que participaram da pesquisa,
pressupõe-se em geral a mídia como algo que se dá posterior ou
complementarmente às próprias tomadas de decisão desses grupos, como se
fosse algo que não influenciasse necessariamente suas decisões, seja quanto
ao tratamento a ser seguido, seja quanto às decisões no âmbito da lei. Houve
apenas um caso de um promotor do MPRJ que ressaltou a importância de
algumas notícias para a abertura de processos, inclusive sendo a estes
anexadas.
Segundo o tipo de influência da mídia, puderam ser observados alguns
sentimentos e idéias a partir de noções ou termos citados pelos UQ1 e UQ2.
Assim, no âmbito da influência afirmativa foram encontradas as seguintes
expressões nas falas dos sujeitos que qualificam a mídia:
é positiva; saber, poder, conhecimento, defesa dos direitos;
mostra caminhos, conscientiza, tem trabalho importante, divulga;
estimula a procurar a solução do problema; tem dever de divulgar;
informa, traz paciente para a realidade, estimula ao estudo,
chama a atenção para os problemas e denúncias.
Já no âmbito da influência restritiva temos:
67
jornalistas são chatos e atrapalham; mídia questiona, bate, noticia
o negativo, tem antipatia pelo judiciário, desestimula, não
esclarece, estimula a política, mete o malho, faz a cabeça,
conduz; excesso de informações; promove incorporação de
concepções médicas e juízos de valor; negativo; leva paciente a
discutir informação com médico; facilita acesso às informações.
Vale ressaltar que foi justamente a partir do uso desta terminologia que foi
possível classificar as falas dos sujeitos entrevistados e/ou que participaram
das oficinas.
2.2.2 Representações que têm como fundamento notícias
Definidas como idéias ou concepções de indivíduos ou grupos e que fazem
parte tanto do conteúdo das notícias utilizadas no estudo de recepção, como
das falas dos sujeitos UQ1 e UQ2 que participaram das oficinas ou foram
entrevistados.
2.2.2.1 Direito do cidadão e direito do consumidor
A ausência de distinção entre direito do cidadão e direito do consumidor fica
evidente nas notícias utilizadas nas oficinas. Destas, destacam-se as que são
da coluna “Direito do Cidadão”, do RJTV, telejornal da TV Globo que trata das
notícias da região do Grande Rio. Esse dado fica mais confuso quando se
tratam de notícias que envolvem discussões sobre consumidores, planos de
saúde e direito à saúde.
A seguir vemos duas falas introdutórias dos apresentadores do telejornal ao
anunciarem a primeira parte de uma reportagem, com externas e declarações,
e a segunda parte, com a entrevista do diretor-presidente da ANS, Fausto dos
Santos:
O Código de Defesa do Consumidor mudou a vida de quem
compra um produto ou paga por um serviço e fica insatisfeito.
Toda quarta-feira, o RJTV vai mostrar exemplos de cidadãos que
lutam por seus direitos e dar os caminhos que ajudam o
68
consumidor. Hoje vamos conhecer melhor o Procon. (27/04/2005,
RJTV, “Defesa do Consumidor”)
Boa parte da população se esforça para pagar um plano de
saúde, na tentativa de garantir atendimento médico. Mas nem
sempre isso acontece. Na coluna Direito do Cidadão, alguns
problemas enfrentados por associados que fazem planos em
grupo e os cuidados importantes para quem vai assinar um
contrato desse tipo. (23/11/2005, RJTV, “Problemas com planos”)
Planos que fecham, exigências que surgem na hora em que o
consumidor precisa de atendimento - como o consumidor pode
evitar problemas como esses? (23/11/2005, RJTV, “Direitos dos
associados”) [destaques nossos]
Ainda na primeira parte, através da fala de uma fonte autorizada, um
advogado, a mídia cobra da ANS algum tipo de ação de modo a defender o
“direito dos usuários” dos planos que estão sem assistência.
A ANS deveria, sendo um órgão regulador, um fiel da balança
entre as operadoras e os usuários, chamar para si os usuários
que estão sem assistência e alocá-los em outros planos de saúde.
Essa é a função da ANS: garantir o direito do usuário. [destaque
nosso]
A partir do título da coluna e da fala dos apresentadores observa-se uma
sobreposição entre direito do cidadão e direito do consumidor. Contudo,
adiante se vê a emergência da noção de “direito do usuário”, cuja defesa é
apontada na direção da agência reguladora. De todo modo, nesta reportagem,
cidadão, consumidor, usuário e associado são palavras usadas de modo
indistinto no sentido de nomear a mesma coisa, ou seja, os indivíduos que têm
plano de saúde. Em outra matéria (02/08/2006, RJTV, “Queixas sem fim”),
menciona-se também o termo cliente. Dessa maneira, “direito do usuário”,
“direito do consumidor”, “direito do associado” e “direito do cidadão” também
aparecem como sinônimos, na medida em que não houve qualquer esforço de
distinção em relação a cada uma dessas expressões.
69
Outro aspecto que podemos observar é a exaltação dos méritos do Código do
Consumidor e de órgãos responsáveis pela solução de problemas nesta área,
tais como o PROCON e a Defensoria Pública. Neste sentido, a mídia afirma
que o Código “mudou a vida de quem compra um produto ou paga por um
serviço e fica insatisfeito” (27/04/2005, RJTV, “Defesa do Consumidor”),
ressaltando a organização e a eficácia do serviço do PROCON, pois mesmo
que não haja solução este órgão encaminha para outros serviços. No entanto,
em outra ocasião (15/03/2006, RJTV, “Vitória do Consumidor”) se diz que
“existem vários locais em que a pessoa pode buscar ajuda caso se sinta
lesada, mas a Defensoria Pública é o principal caminho”.
Além disso, é dito que “o Código de Defesa do Consumidor é certamente [sic] a
principal arma dos cidadãos para garantir seus direitos” (op. cit.). O texto
pertence ao veículo e é dito pela apresentadora do telejornal que olha para o
telespectador no momento em que faz sua locução. Logo, parece indicar um
juízo de valor da emissora e uma hierarquia que aponta o código como algo
que seria superior ou mais importante que a constituição brasileira. Assim, no
contexto das notícias apresentadas nas oficinas, pode-se reparar certa ênfase
na posição de consumidor, a partir da qual se destacam normas, cobra-se por
ações, denunciam-se problemas e vinculam-se instâncias que se propõem a
fazer valer as regras que existem em defesa do consumidor no âmbito da
saúde suplementar.
Talvez esta tenha sido uma possível razão para que, dos três UQ2
entrevistados e também sujeitos no estudo de recepção, dois (oncologia e
saúde da mulher) revelaram-se mais identificados com a posição de
consumidor e não de pacientes ou doentes, ou de cidadãos que vinculam o
atendimento ou cuidado em saúde a um direito constitucional. Para todos foram
apresentados dois tipos diferentes de notícias: uma referente à área de cuidado
da qual fazem parte e outra ligada a assuntos genéricos sobre planos de
saúde. Porém, a ênfase tendeu a recair sobre as questões relacionadas com a
cobrança pelos direitos de consumidor tais como: isenção no imposto de renda;
defesa de direitos a partir do consumo de bens e serviços; tomada de posição
ou necessidade de “correr atrás” para exigir o que é seu.
70
No caso do terceiro sujeito (saúde mental) houve identificação com a situação
apresentada na oficina do indivíduo que tinha problemas de pânico e
depressão. Além disso, em entrevista, acrescente-se que este sujeito destacou
sua descrença nos planos de saúde e crença de que apenas o governo seria
capaz de resolver os problemas no país referentes à saúde e à justiça. Isto
parece demonstrar que, para além de uma identificação em função de um
estado psíquico e emocional alterado, o indivíduo parece crer que o direito à
saúde não deveria ficar circunscrito a um contrato de consumo/prestação de
serviço em saúde de planos de saúde.
2.2.2.2 Prejuízo e medo
A noção de prejuízo refere-se à perda ou dano de qualquer natureza: às partes
em conflito, à saúde, no nível financeiro, ao atendimento, no sentido de ser
lesado. A partir do item anterior, pode-se dizer que, de todas as formas, no
caso desta pesquisa, o prejuízo é um termo que se encontra associado a uma
conseqüência não desejada ligada ao não atendimento de um serviço de saúde
pelo qual o indivíduo teria pagado. Esta noção se adequa aos casos em que
este prejuízo também é visto como pertencente à prestadora do serviço, neste
caso, um prejuízo que pode ser visto como diminuição do lucro.
Contudo, independentemente de haver prejuízo por parte do UQ2, este, muitas
vezes, acaba revelando certa insegurança quanto à realização do atendimento,
o que pode chegar ao medo. Assim, pode haver receio de corte no atendimento
por parte do plano, em função de uso considerado excessivo. Já outros,
evitaram o contato com a equipe desta pesquisa, gravação da entrevista ou
identificação pessoal por temerem “retaliações” da prestadora de serviço. Este
foi o caso de duas UQ2 da oncologia.
Acrescente-se a isso que o UQ2, em situação de prejuízo, chega vulnerável ao
médico, ao MP e a outras instâncias. Em alguns casos ele parece desculpar-
se. Ao prejuízo ficam também vinculados os órgãos de defesa dos direitos,
sobretudo os de direitos do consumidor, em relação aos quais “ser informado”
é visto como necessário para que se possa efetivamente exercitar esse direito.
71
"Eu vou até a última instância. Quero meu outro aparelho ou o
dinheiro de volta. Estou me sentindo lesado", reclamou o técnico
em mecânica.
[Mas] Nem todo mundo conhece seus direitos nem os órgãos que
deve procurar quando sente que teve algum tipo de prejuízo.
"É difícil, eu não sei onde encontrar", diz uma consumidora.
(15/03/2006, RJTV, “Vitória do Consumidor”)
É, [medo] de não deixarem usar o plano, entendeu, de colocarem
taxas elevadas, assim, porque muitas das vezes, eu sei que tem
uma taxa que é cobrada, os funcionários pagam é descontado no
contracheque, agora eu tenho medo, assim, deles quererem
aumentar muito a taxa e quer dizer, isso prejudicar o funcionário
entendeu, então quer dizer ele ter que usar o dinheiro dele com
outras necessidades e não ter como recorrer ao plano. (entrevista
UQ2, saúde da mulher 03)
Já aconteceu comigo um caso há muitos anos com um plano de
saúde, (Medicina de Grupo), um caso de ter um aumento muito
grande. Houve caso na justiça e aí o juiz, quem cuidou do caso
disse o seguinte: que aquele consumidor, aquele que era do plano
e não aceitava aquele aumento, que ele podia continuar pagando
sim pelo valor da época, e eles teriam que aceitar esse
pagamento. Tanto que todo o mês era eu e minha mãe. Nós
íamos lá e tinha uma fila própria pra quem não concordou com o
aumento e nós pagávamos o valor que tinha que pagar. E ficamos
assim um bom tempo. Até que um dia eu recebi uma carta do
plano em que eles não estavam mais interessados que nós
fossemos associados ao plano [riu], que estavam se sentindo
prejudicados, né? (recepção UQ2, oncologia 04)
Porém, a noção de prejuízo parece suscitar que uma das partes possa estar
ganhando ou venha a ganhar em função de possíveis ações na justiça ou pela
recusa da prestadora do serviço. De modo geral, ao inserir as instâncias
72
jurídicas, trata-se também da possibilidade de reparo, conserto ou defesa da
parte prejudicada.
“Conhecer o seu direito é ter poder: poder de entrar na Justiça,
poder de resolver uma questão, poder de não sofrer uma lesão,
ou, se sofrer, conseguir uma reparação”. [presidente da
Associação Brasileira de Defesa do Consumidor e Trabalhador,
Daniela Carvalho]
[...] Existem vários locais em que a pessoa pode buscar ajuda
caso se sinta lesada, mas a Defensoria Pública é o principal
caminho. No órgão, quase 120 consumidores por dia buscam
resolver impasses. Muitos já estão na Justiça. São problemas
ligados a vários tipos de serviços, produtos e até direitos básicos
de saúde, garantidos por lei. (15/03/2006, RJTV, “Vitória do
Consumidor”)
O Código de Defesa do Consumidor é certamente a principal
arma dos cidadãos pra garantir seus direitos. (15/03/2006, RJTV,
“Arma poderosa”)
“Nós sentimos que o lucro do dinheiro está acima do lucro da
vida”. [Usuário entrevistado que entrou na justiça contra plano de
saúde] (02/08/2006, RJTV, “Queixas sem fim”)
O Código de Defesa do Consumidor mudou a vida de quem
compra um produto ou paga por um serviço e fica insatisfeito.
[...] Ela só conseguiu resolver o problema porque correu atrás dos
direitos do consumidor. (27/04/2005, RJTV, “Defesa do
consumidor”)
2.2.2.3 Informação e desconhecimento
Trata-se da busca ou do acesso às informações que podem ser úteis no
sentido de saber dados sobre a própria doença ou de como exercer o próprio
direito. Assim, em geral, informar-se é visto como algo da ordem da
necessidade. O caso em que não é visto dessa forma, refere-se aos médicos
73
entrevistados, que vêem a busca de informações pelo paciente como algo que
compete com sua qualificação e tomada de decisão e pode vir a ameaçar sua
posição. Logo, informar-se tem como função: saber como agir (UQ2), lidar com
o paciente (médico), saber como consumir (mídia).
Inclusive eu percebi aí que aquela que apareceu do Globo, do
repórter, naquele horário eu assisto a programação. [RJ TV?] É.
Então a gente vai consciente de alguma coisa, apesar de que é
aquilo: a gente não anota os endereços, não anota os telefones.
Quando acontece ou pode acontecer conosco, já tá perdida e tem
que correr atrás, procurar onde agir, o que fazer. Eu leio o jornal
todo. Um dia da semana que tem aquela “em defesa do
consumidor”. Ali tem endereço pra procurar, eu leio os casos, vejo
que as pessoas procuram por isso e por aquilo, vêm sempre as
respostas, né? A coisa é levada avante. Então eu não tô
completamente por fora, mas eu não tenho aquele cuidado de
anotar endereços, telefones. Eu realmente sou esquecida, muito.
Como eu vejo que a mocidade também tá esquecida... (recepção
UQ2, oncologia 04)
Porém, para além de fontes oficiais, à mídia parece destinar-se à função de
informar ou educar as pessoas em relação ao que fazer. Isto é aceito pelos
usuários, em parte também por indivíduos do campo jurídico, além de estar
presente na própria mídia.
Em relação aos vídeos que foram assistidos eu quero acrescentar
que as pessoas nesse país são muito sofridas, sabe? Elas sofrem
caladas e não tem conhecimento dos seus direitos. Eu achava
que a mídia devia informar a população dos seus direitos, não só
aqueles pequenos direitos, mas todos os direitos. Já que a mídia
não tem condições, é... as pessoas não tem condições de
contratar advogado, às vezes até desconhece que tem uma
justiça gratuita, não tem conhecimento. Então eu achava que isso
deveria ser mais divulgado. (recepção UQ2, saúde mental 02)
Gostaria de falar que a entrevista foi maravilhosa e gostaria de
também falar sobre o direito do consumidor. Eu sei que vocês não
74
tão dentro da televisão, mas eu queria que vocês destacassem
porque eu tenho um pouco de conhecimento, mas tem muita
gente que não tem. Sobre correr atrás de advogado, que se tem
direito a advogado público, no caso, correr atrás de
eletrodoméstico, enfim, você pode correr atrás, você pode lutar
por isso, ocorrer uma conciliação entre você e o vendedor. [você
acha que isso pode acrescentar em relação ao que você sabia?]
Com certeza. Porque informação nunca é demais. Quanto mais,
melhor. (recepção UQ2, saúde da mulher 03)
Acho muito positivo [reportagens] porque, na verdade, o que a
moça falou aí também [na reportagem], “saber é poder”. As
pessoas que tomam conhecimento de que elas estão sendo, de
alguma forma, lesadas, que um direito delas tá sendo violado, já
podem se motivar a defender esses direitos. Por outro lado,
mostra os caminhos também. Tudo isso é fator de
conscientização. Então eu acho que o trabalho da mídia é
fundamental, um trabalho muito importante. Eu falo que se não
fosse a mídia nosso trabalho não se transformaria em realidade.
Primeiro que o MP não é o titular do direito, não é dono do direito.
A gente vai à justiça defender o direito da coletividade. Então, se
a coletividade não souber do resultado, como é que ela vai poder
exercer aquele direito? Como é que ela vai poder denunciar que a
decisão, que o direito tá sendo violado? Então a mídia cumpre
esse papel de divulgar a conquista. (recepção UQ1 – promotor de
justiça 02)
Toda quarta-feira, o RJTV vai mostrar exemplos de cidadãos que
lutam por seus direitos e dar os caminhos que ajudam o
consumidor. (27/04/2005, RJTV, “Defesa do consumidor”)
Contudo, deve-se considerar que, se entre indivíduos do campo jurídico,
informar pode ser visto como ferramenta importante para conscientizar os
cidadãos acerca de seus direitos, quanto mais o direito é midiatizado, mais ele
parece ficar restrito aos modelos interpretativos do campo em que é produzido,
75
ou seja, o campo jornalístico. Embora a mídia se utilize freqüentemente de
fontes oficiais.
O Código de Defesa do Consumidor é certamente a principal
arma dos cidadãos pra garantir seus direitos. Para saber quais
foram os principais avanços e conquistas do código nesses 15
anos de existência, o RJTV conversou com o vice-presidente da
comissão de Defesa do Consumidor da Ordem dos Advogados do
Brasil, Álvaro Luís Fernandes. (15/03/2006, RJTV, “Vitória do
Consumidor”) [ destaque nosso]
2.2.2.4 Confiança e desconfiança
Pode-se afirmar que todas as relações no contexto da prestação do serviço de
saúde suplementar e no exercício do direito são permeadas por certa confiança
na eficácia dessas relações. Isto acontece (a) no modo como se estabelece o
contrato de prestação de serviço das operadoras; (b) na justiça em situações
de quebra desta confiança; (c) no médico por ocasião do adoecimento; (d) na
mídia que oferece informações consideradas confiáveis. No entanto, diante de
qualquer sinal de não cumprimento por uma das partes, instaura-se a
desconfiança. É justamente este jogo entre confiança e desconfiança que se
observou tanto nas matérias selecionadas, como na fala de UQ1 e UQ2, e que
se pretende relatar de modo a observar cada um dos itens anteriores listados.
(a) No modo como se estabelece a relação contratual com a operadora,
pressupõe-se que haja regras para ambos os lados. No entanto, a
desconfiança pode estar presente na relação UQ2-operadora visto que pode
haver má-fé por parte da operadora, desatenção do usuário, descumprimento e
quebra de contrato.
Boa parte da população se esforça para pagar um plano de
saúde, na tentativa de garantir atendimento médico. Mas nem
sempre isso acontece. (23/11/2005, RJTV, “Problemas com
planos”)
Já aconteceu comigo um caso há muitos anos com um plano de
saúde, (Medicina de Grupo), um caso de ter um aumento muito
76
grande. Houve caso na justiça e aí o juiz, quem cuidou do caso
disse o seguinte: que aquele consumidor, aquele que era do plano
e não aceitava aquele aumento, que ele podia continuar pagando
sim pelo valor da época, e eles teriam que aceitar esse
pagamento. Tanto que todo o mês era eu e minha mãe. Nós
íamos lá e tinha uma fila própria pra quem não concordou com o
aumento e nós pagávamos o valor que tinha que pagar. E ficamos
assim um bom tempo. Até que um dia eu recebi uma carta do
plano em que eles não estavam mais interessados que nós
fossemos associados ao plano [riu], que estavam se sentindo
prejudicados né?
[...] Às vezes também a culpa é do usuário né? Porque quando
ele assina o contrato ele não repara o que tem direito. Ele só vai
perceber que quando precisa daquela coisa ele vê que, né? Só
pra justificar que a culpa não é só do plano, é do usuário que
também não atenta, porque você já reparou que nas cláusulas é
pequenininho, é igual a bula de remédio né? Aí ele vai assinando
sem ler, mas sem reparar, às vezes não lê, né? e depois não vai
poder reclamar, porque realmente não tem o direito né? É isso aí.
(recepção UQ2, oncologia 04)
(b) No âmbito da justiça, em situações de quebra de confiança, podemos
observar uma tendência a ver na justiça, ou em instâncias que se propõem a
fazer valer os direitos (PROCON), a única solução para a resolução desses
problemas.
"A Defensoria Pública foi muito boa para mim. Minha vida
melhorou 1000%, e minha saúde também" [paciente com diabetes
que conseguiu cobertura de insulina especial pelo plano através
da Defensoria Pública] (15/03/2006, RJTV, “Vitória do
Consumidor”)
Assim que chega ao Procon o consumidor recebe uma senha e
fica cerca de 15 minutos na espera. O próximo passo é fazer a
reclamação para um dos 12 atendentes. Depois disso, o Procon
tem até 15 dias para marcar uma audiência de conciliação, entre
77
a empresa e a pessoa que se sente lesada. Nestas reuniões são
resolvidos 70% dos casos. (27/04/2005, RJTV, “Defesa do
Consumidor”)
Ali [nas matérias] apareceu pouca coisa. Mas como eu digo a
você que eu leio jornal, O Globo tem um dia que aparecem as
pessoas que deixam sua reclamação e depois têm resposta.
Então eu acho que a maior parte ali consegue solução. Pelo que
eu leio, né, das respostas que vêm conseguem [em relação à
solução da justiça] é, em relação dinheiro, troca de produto, tem
sempre uma solução, dizem às vezes que “as partes” se
entenderam. Porque às vezes é uma questão de entendimento
entre as duas partes. Às vezes a pessoa tá exigindo uma coisa
que não tem bem direito. Então geralmente eu vejo que tem
sempre uma solução, em que eu vejo que o consumidor que
reclamou, conseguiu. (recepção UQ2, oncologia 04)
(c) No médico, por ocasião do adoecimento, mas também na medicina de
modo amplo. Neste caso, vê-se que o médico pode se utilizar de sua boa
relação com o paciente de modo a convencê-lo inclusive a participar da
pesquisa, tal como ocorreu neste trabalho, nas ocasiões em que os pacientes
foram entrevistados e se dispuseram a participar deste estudo de recepção. A
confiança na medicina, porém, fica mais evidente nas matérias do Globo
Repórter que se relacionam com as linhas de cuidado em destaque neste
trabalho.
"Se não fosse esse transplante, eu não sei se ela estaria hoje
com a gente. Eu acho que todo mundo deve conhecer esse
processo de doação, que não causa dor nenhuma, problema
nenhum para o bebê nem para a mãe, e que salva uma vida".
[mãe de paciente] (14/01/2005, Globo Repórter, “Vida nova para
Vanessa”)
O diagnóstico certo, Fábio só encontrou em um centro
especializado em São Paulo. Aos poucos, foi dominando o medo.
O equilíbrio, mesmo, ele ganhou com a nova profissão.
78
“Eu sou milhões de vezes mais feliz que antes. E o principal: a
doença é minha companheira, mas eu sei lidar com ela hoje. Sei
quando ela está chegando porque a sensação é muito clara.
Então, eu faço técnicas de respiração, relaxo, tento me desligar,
tento dissociar aquilo que está acontecendo, para não ter que
voltar a tomar medicação de novo”. [diz Fábio] (17/06/2005, Globo
repórter, “Medo incontrolável”)
A evolução da ciência, principalmente nas últimas décadas, tem
superado, em muito, a transformação das leis, dos costumes, e
dos valores morais. Surpreendidas pelas descobertas, as
sociedades têm que se adaptar a elas, vencendo às vezes
resistências muito fortes. A tecnóloga Maria Lúcia Monteiro tinha
receio de não poder ser mãe. Jovem e solteira, ela ia passar por
uma quimioterapia e o tratamento poderia deixá-la estéril. Mas
havia uma saída: garantir agora a chance de uma gravidez futura,
para quando o câncer fosse vencido e Maria Lúcia estivesse
casada. (08/07/2005, Globo repórter, “Esperança para mulheres
com câncer”)
(d) Na mídia, que oferece informações consideradas fiáveis. Isto se dá
particularmente em relação aos UQ2. Os três entrevistados, que também
participaram da oficina de recepção, têm confiança na veracidade das
informações divulgadas através dos veículos de comunicação, inclusive
destacando a importância da divulgação através dos meios, de modo a tornar
as pessoas mais informadas quanto a seus direitos.
Eu leio o jornal todo. Um dia da semana que tem aquela “em
defesa do consumidor”. Ali tem endereço pra procurar, eu leio os
casos, vejo que as pessoas procuram por isso e por aquilo, vêm
sempre as respostas, né? A coisa é levada avante. Então eu não
tô completamente por fora [...]. (recepção UQ2, oncologia 04)
Eu sei que vocês não tão dentro da televisão, mas eu queria que
vocês destacassem porque eu tenho um pouco de conhecimento,
mas tem muita gente que não tem. (recepção UQ2, saúde da
mulher 03)
79
Eu achava que a mídia devia informar a população dos seus
direitos, não só aqueles pequenos direitos, mas todos os direitos.
(recepção UQ2, saúde mental 02)
(e) Na própria capacidade de julgamento a respeito do que é justo e
verdadeiro. Esta foi uma característica que se observou em membros do
campo jurídico. O fato é que neste âmbito vê-se que pode haver certo peso do
julgamento moral pessoal a respeito de quem se encontra envolvido na ação
judicial.
Isso [tempo que mora na cidade] me dá uma experiência pra
saber, por exemplo, se aquele médico que assinou aquela receita
é reputado socialmente idôneo ou não. Então é esse tipo de coisa
que eu aplico e muitas vezes escrevo isso na sentença. Utilizando
o que tecnicamente chamam de “máximas da experiência” eu sei
que determinado plano de saúde é um plano serio, idôneo. Aviso
isso ao desembargador que vai julgar o recurso da minha
sentença, se houver recurso, e é ate salutar que tenha recurso.
Então eu aviso o desembargador “olha eu conheço o dono do
plano de saúde, é um cara decente, um cara, enfim, não é
nenhum picareta, nenhum pilantra”. (recepção UQ1, juiz 01)
2.2.3 Discursos sobre a influência da mídia na ida ao MP e ao Judiciário
Os usuários dos planos de saúde entrevistados ou que participaram do estudo
de recepção não entraram na justiça contra planos de saúde. Da mesma forma,
os indivíduos do campo jurídico muito pouco destacaram uma relação entre
suas ações e a mídia. Houve apenas um promotor do MP que destacou ser
comum a utilização de matérias impressas ou televisionadas, e até de
propagandas, como base para a instauração de ações na área de saúde.
Às vezes a gente até começa um processo com uma notícia da
mídia. Por exemplo: aumento de plano de saúde. Teve um
processo que a gente começou por causa da campanha. A ANS
fez uma campanha de adequação dos contratos antigos, PIAC –
80
programa de incentivo à adaptação dos contratos antigos –, que
era uma vergonha. O Dráuzio Varella, enorme assim dizendo pra
pessoa que ela ia ficar sem cobertura. (...) Mas dá raiva, sabe?
Botar um cara que tem visibilidade... Pagaram caro. Eles usaram
todas as mídias, tv, jornal. (recepção UQ2, promotor de justiça 02)
Contudo, é importante observar que, do ponto de vista de membros do campo
jurídico que foram entrevistados e participaram do estudo de recepção, existe
certa expectativa de que a mídia possa direcionar ou influenciar os cidadãos no
exercício do direito, especialmente em sua procura por instâncias jurídicas.
Inclusive, parece haver certa “esperança” de que este papel possa ser
corretamente desempenhado pelos meios de comunicação.
[sobre o que achou das informações vistas nas reportagens]
Então, é interessante porque abre ao usuário uma expectativa
que ele não tinha. Então aquela pessoa que tá em casa e vê uma
reportagem dessas se sente estimulada a ir a um PROCON,
defensoria publica, a procurar um advogado, enfim.
[em outra pergunta] Então essas reportagens foram maravilhosas
nesse sentido. O cara ficou sabendo, por exemplo, que na câmara
municipal do Rio de Janeiro tem atendimento a população pra
resolver problema, assembléia legislativa, PROCON, defensoria
pública. Poxa, tenho que lugares que eu posso ir. Então se eu não
vou, aí eu não posso reclamar. Como é que a pessoa vai saber
disso? Só através da imprensa, não tem jeito. E a melhor maneira
de divulgar é a imprensa. (recepção UQ2, juiz 01)
As pessoas que tomam conhecimento de que elas estão sendo,
de alguma forma, lesadas, que um direito delas tá sendo violado,
já podem se motivar a defender esses direitos. Por outro lado
mostra os caminhos também. Tudo isso é fator de
conscientização. Então eu acho que o trabalho da mídia é
fundamental, um trabalho muito importante. (recepção UQ2,
promotor de justiça 02)
81
Portanto, mais do que se fazer explícito um discurso que atribui à mídia uma
efetiva influência sobre as ações em saúde, há um discurso que atribui à mídia
este papel, legitimando sua função de agente importante – talvez essencial –
no exercício do direito e da cidadania, na “conscientização” dos cidadãos
acerca de seus direitos.
Nesse cenário, destaca-se a fala do promotor do MP ao reclamar que se por
um lado existe uma lei no Brasil – o código do consumidor –, que dá respaldo
na defesa dos direitos do consumidor, por outro, na prática, isto não acontece.
Chega a comparar o Brasil com os EUA, onde não há a lei, mas seria algo que
se dá na prática cotidiana da cidadania. Parece não ser por acaso que ele
reage de maneira não verbal, como se estivesse indignado, diante de uma
entrevistada que aparece na reportagem mostrada, que confessa não saber o
que fazer no caso de se sentir lesada. Quanto a isto se perguntou se houve
indignação de sua parte, ao que ele responde:
Não, foi uma constatação, porque as pessoas realmente estão à
margem, que não conhecem seus direitos. Uma pessoa ali
falando “Não, não sei quais são os meus direitos, como é que eu
vou fazer”. Senta e chora, então. Pessoa não sabe que tem que
se motivar pra descobrir. Mas isso também tem a ver com a falta
de conscientização de que a gente é cidadão.
Este promotor também ressalta a importância de o MP fomentar uma “cultura”
de cidadania no Brasil. Mas, pergunta-se como o MP fomenta essa “cultura”?
Fazendo essas pessoas entenderem que elas têm direitos, que
elas têm meios de defender esses direitos. Não só entrando com
as ações, mas recebendo as reclamações, fazendo uma
investigação séria, falando com a imprensa, falando com a
sociedade e atuando. É um papel muito importante. Agora, aos
próprios promotores falta um pouco de consciência do poder que
eles têm, porque minha preocupação sempre de ir lá no fórum,
explicar pro juiz o que é importante. Tô falando isso porque pelo
outro lado existem advogados poderosíssimos. (destaque nosso)
82
Além da expectativa de membros do campo jurídico de que a mídia viabilize os
caminhos para o exercício da cidadania, a própria mídia parece se auto-instituir
essa função. Um exemplo disto:
O Código de Defesa do Consumidor mudou a vida de quem
compra um produto ou paga por um serviço e fica insatisfeito.
Toda quarta-feira, o RJTV vai mostrar exemplos de cidadãos que
lutam por seus direitos e dar os caminhos que ajudam o
consumidor. Hoje vamos conhecer melhor o PROCON. (“Defesa
do consumidor”, RJTV, 27/04/2005)
Vê-se também que ela pretende fazer a ponte entre cidadãos e experts nas
entrevistas feitas na coluna “Direito do Cidadão”, apresentando perguntas de
cidadãos. Nessa ocasião, a emissora se utiliza de seus recursos técnicos e da
edição jornalística, no sentido de expressar dúvidas que supostamente
pertençam à maioria, na defesa da coletividade, tal como o MP é designado a
fazer. Nesse sentido, o que parece em geral é que a mídia pode não
necessariamente levar os indivíduos à justiça, mas ela pode se atribuir o papel
de advogado ou de instituições jurídicas.
2.3 Relação entre usuários e justiça
2.3.1 Tipo de demanda
Dentro das linhas de cuidado estudadas, as demandas são relativas a
oncologia, saúde bucal, saúde mental e saúde da mulher, pleiteando a
realização de tratamentos não cobertos e pagamento de medicamentos mais
caros, muitas vezes negados pelos planos de saúde.
Em relação à oncologia, deve-se ressaltar que, dada a morbidade no âmbito
desta linha de cuidado, as demandas aqui são quase sempre emergenciais,
exigindo muitas vezes a realização de uma espécie de ponderação de
interesses entre o ganho econômico do plano e a saúde do usuário, o que é
sempre atravessado pelas questões contratuais.
83
É possível identificar aqui, uma ponderação (SARMENTO, 2000) de princípios
constitucionais realizada pelos profissionais do campo jurídico entre a
cobertura oferecida contratualmente pelas operadoras (princípio da
integralidade) e sua solvência (equilíbrio) econômica (proteção ao mercado).
Assim, muitas vezes uma eventual ampliação de coberturas pode não se
efetivar judicialmente em razão da forte repercussão econômica que tal
ampliação geraria nas empresas, caso fosse coletivamente considerada.
Ainda dentro do estudo destes princípios constitucionais é de fundamental
importância destacar a participação dos profissionais de saúde e do campo
jurídico na criação daquilo que vem a ser demanda, bem como na busca de
uma solução para esta mesma demanda. Isto pode ser exemplificado no caso
já citado da usuária que, por não conseguir remédio para a quimioterapia
através da operadora, resolveu tratar a questão judicialmente. No entanto, para
que sua decisão fosse tomada, foram decisivas a participação do médico, que
afirmou conhecer algumas ações judiciais exitosas, e de uma amiga da família,
advogada, que a alertou (“revelou”) sobre seu direito.
Assim, verifica-se uma participação restrita aos saberes médico e jurídico
quanto ao que pode ou não ser discutido, bem como quanto à solução da
questão. Ainda aqui, outra questão importante a ser mencionada diz respeito a
diferenças regionais existentes entre operadoras de alcance nacional. Neste
caso, a usuária soube através de amigos que a operadora cobria o
medicamento receitado em outras regiões, como na capital do Estado, mas
negava-se a fornecê-lo em Resende.
2.3.2 Fundamentos da demanda
Dentre os principais fundamentos das demandas, ou seja, dentre as diferentes
formas de argumentação utilizadas pelos profissionais do campo jurídico,
verificam-se, através do cruzamento entre as entrevistas e a análise dos
processos judiciais, referências que variam entre o direito constitucional à
saúde e o direito do consumidor. Em muitos casos, observa-se uma
prevalência de argumentos ligados ao direito do consumidor em processos de
84
usuários e, na defesa das operadoras, há uma grande quantidade de
referências ao direito constitucional.
As operadoras baseiam seus argumentos na liberdade contratual, na proteção
ao mercado e na economia e, o que parece mais contraditório, enfatizam a
responsabilidade do Estado em promover a saúde, assumindo uma posição de
“apenas meros complementos”. Ou seja: o caráter complementar é utilizado
para eximir as operadoras de responsabilidade, visão oposta à uma
interpretação que não fragmenta, mas integra, une serviço público e privado de
saúde, dentro da perspectiva da integralidade. Dessa maneira, as empresas se
comportam de forma a tentar jogar para a responsabilidade do Estado aqueles
tratamentos mais custosos e complicados argumentando através de uma idéia
de responsabilidade exclusiva do Estado na saúde.
Num contexto em que as operadoras, em razão de seu poder econômico,
exercem forte pressão sobre os órgãos do Estado, entre os quais se incluem os
do poder judiciário (VIEIRA & VILARINO, 2004), a definição de saúde
suplementar acaba sendo muitas vezes distorcida e atrelada ao contrato, sem
uma perspectiva que a encara como complemento da saúde pública, numa
visão puramente individualista.
Dentro deste contexto de individualismo nas sociedades capitalistas, a procura
por serviços privados de saúde cresce em importância e é sustentada por uma
lógica de valorização e incremento do consumo e do mercado. Isto porque, em
um cenário em que os direitos são vistos como ajuda, como doação do Estado
(TELLES, 1999) a que o indivíduo tem acesso – não pela prova de que é
cidadão, mas sim pela de que está excluído desta cidadania –, a resolução de
problemas via consumo surge como opção para a obtenção do cuidado. Assim,
neste cenário individualista, onde Castel (1998, p. 609) afirma que “fragmentos
de uma biografia esfacelada constituem a única moeda de troca para o acesso
a um direito”, o recurso ao mercado e aos planos privados ganha muito relevo
e importância.
Entretanto, ainda neste sentido, através da utilização de princípios
constitucionais também nas relações contratuais, o poder judiciário vem
exercendo importante função. Ele atua de forma a ampliar as bases contratuais
e garantir a prestação do cuidado, elevando a vida e a dignidade a valores
85
fundamentais e superiores aos contratos e a letra da lei. Assim, ele garante a
efetividade do direito à saúde previsto na constituição, evitando que este direito
sofra do que Neves (1994) define como constitucionalização simbólica, ou seja,
quando existe a mera previsão de direitos constitucionais, mas sem garantia de
sua efetividade. Portanto, o judiciário também atua de forma a contribuir para
garantir uma perspectiva coletiva para a saúde suplementar.
Desta maneira, direitos que ganharam força sob a ótica liberal – como a
autonomia da vontade e dos contratos, que funcionam como lei entre as partes
–, perdem força em termos absolutos para serem relativizados à luz de
princípios como a função social dos contratos e a chamada boa-fé objetiva.
Por função social dos contratos entende-se a ligação destes a uma
funcionalização, ao respeito a interesses maiores da sociedade (tais como
meio ambiente, liberdade, dignidade humana). No que tange à boa-fé objetiva,
conforme Tepedino (2004), esta tem três funções básicas no sentido de se
constituir como um princípio interpretativo (buscando a finalidade, natureza e
objeto dos contratos); prescritivo de novos deveres as partes (implícitos ao
contrato como lealdade, transparência e colaboração, por exemplo) e limitador
do exercício de determinados direitos (vedação do abuso de direito).
Outra questão que serve de fundamento para as demandas é a grande
dubiedade das cláusulas contratuais. Assim, verifica-se que um mesmo
contrato contém cláusulas que podem ser interpretadas de maneira
absolutamente contrastante. Mais uma vez, os contratos dificultam a percepção
daquilo que é direito e conferem aos profissionais o poder de dar seu veredicto.
Ocorre, então, tal como Bourdieu afirma, uma disputa interna dentro do campo
onde prevalece aquele que tem maior capital simbólico. Para as partes na
relação, no entanto, muitas vezes, o capital simbólico se mescla com o capital
econômico (quem tem maior poder econômico contrata os melhores
profissionais) e até mesmo com influências políticas, principalmente em ações
coletivas.
Um exemplo desta influência econômica e política é a declaração de uma UQ2,
que demonstra muita desconfiança em relação à justiça:
86
Eu acho que tudo que é muito poderoso é difícil aquele
pequenininho conseguir alguma coisa, sinceramente. (entrevista
usuária oncologia 04)
Quanto à dubiedade das cláusulas contratuais, é interessante observar, em um
processo movido contra operadora por fornecimento de medicamento, como
duas cláusulas diferentes são utilizadas para argumentar a existência ou não
ao direito de fornecimento de determinado serviço. Isto porque a operadora
considerava que, por ser comprimido, o medicamento seria um tratamento de
quimioterapia domiciliar. Ao mesmo tempo, a advogada da usuária considerava
este mesmo medicamento um procedimento complementar, com
obrigatoriedade de cobertura.
Art. 53. Estão excluídas da cobertura deste contrato:
[...] VII – medicamentos e materiais cirúrgicos que não sejam
ministrados em internações ou em atendimentos em prontos-
socorros.
[...] XXV. Exame/Procedimento: é o procedimento complementar
solicitado pelo médico, que possibilita a investigação diagnóstica
ou medidas de tratamento para melhor avaliar as condições
clínicas do usuário e desenvolver as terapias. São considerados
Exames/Procedimentos Básicos:
[...]u) quimioterapia e radioterapia.
Este exemplo fornece indícios de como as cláusulas contratuais e o próprio
direito são manipulados pelos profissionais do campo jurídico de forma a criar e
a fomentar suas próprias demandas, numa lógica que praticamente exclui o
usuário de qualquer tipo de influência. Essa manipulação é percebida até
mesmo por profissionais do campo, o que é possível identificar na fala da
defensora pública acerca das ações judiciais e do direito:
No mundo jurídico existem entendimentos pra todos os lados,
então, às vezes mesmo artigo do código, mesmo artigo lá... de um
processo..., de um regulamento da ANS, tem interpretação
diferente o plano de saúde tenta puxar para um lado, a... o cliente
87
do plano, através da defensoria tenta puxar de outro. (defensor
público 02)
Interessante notar que a participação do “cliente” sempre se dá através de
algum representante, no caso, a defensoria pública. Este fato foi também
detectado por Vieira & Vilarino (2004, p. 17-8), ao afirmarem que
Os atores do campo se organizam na forma de estruturas
bastante similares entre si, excetuando o caso dos consumidores
de planos de saúde, que ainda dependem de outras entidades
para a representação de seus interesses.
Por fim, é interessante notar como essa dubiedade das cláusulas contratuais
muitas vezes acaba prejudicando as próprias operadoras. Neste sentido, foi
possível notar como algumas vezes as cláusulas contratuais conspiram contra
as operadoras, pois a não cobertura de medicamentos ambulatoriais, por
exemplo, as impede de fornecer medicamentos orais ou que não necessitam
de internação, casos em que se evitariam procedimentos mais custosos. Por
exemplo, alguns tratamentos quimioterápicos para cânceres produzem quadros
de anemia que poderiam ser evitados com medicações coadjuvantes que
muitas vezes são consideradas de natureza ambulatorial (portanto não
cobertas). Entretanto a operadora paga a internação nos casos da anemia
como complicação o que é muito mais caro.
2.3.3 Justificativas para levar ao MP e judiciário
Dentre as justificativas para se levar as demandas ao Ministério Público e ao
próprio poder judiciário, é possível identificar um paradoxo, mas que talvez
possa ser explicado pelo desespero a que ficam submetidos usuários ao terem
negado algum tratamento ou medicamento ao qual pensavam ter direito. Tal
paradoxo é o fato de que, ao mesmo tempo em que os beneficiários dos planos
tendem a desconfiar da atuação do poder judiciário e o criticam de variadas
formas por sua lentidão e pouca abertura, ainda assim, eles continuam
recorrendo a ele. A explicação poderia vir da mútua influência que sofrem de
dois saberes, os quais eles não têm (ou quase não têm) condições de
88
contestar. Ou seja: de um lado, os médicos que determinam do que o usuário
precisa, muitas vezes sem sequer ouvi-lo, e, de outro, os profissionais do
campo jurídico com seu poder de “revelar” o que é ou não direito, também com
pouca participação do usuário.
Assim, quando após o primeiro diagnóstico de tratamento negado pela
operadora, segue-se a revelação de que o usuário tem direito àquele
tratamento, este se vê em um caminho sem volta: precisa seguir as duas
orientações e acaba recorrendo ao judiciário ou ao MP como forma de obter o
direito “necessário” e “revelado”. Dessa maneira, as demandas são duplamente
condicionadas e os usuários participam pouco das justificativas que levam o
processo ao judiciário. Talvez, por essa razão, eles fiquem tão frustrados e
tenham uma visão pouco afirmativa deste poder. Algumas frases de usuários
ilustram bem esta questão:
A gente nem sabe direito o que a gente tem direito e o que a
gente não tem.
[...] A justiça é lenta, a gente sabe disso. Demora e não resolve.
(usuária oncologia 04)
2.3.4 Forma como o MP e o judiciário lidam com a demanda
Quanto ao tratamento dado pelo poder judiciário em relação às demandas na
saúde suplementar é possível identificar diversos pontos importantes, tais
como: excesso de tecnicismo, lentidão, falta de compromisso, receio em
assumir responsabilidades pelas decisões.
Em relação ao tecnicismo, a crítica parte não apenas de pessoas de fora do
campo, que consideram as questões jurídicas muito complicadas e difíceis de
entender, como também de integrantes do campo. Tal assertiva pode ser
consubstanciada pela fala de um promotor de justiça, que, apesar de fazer
referência ao papel da mídia, representa também certo descontentamento com
seu próprio campo:
89
O papel da mídia hoje em dia é, principalmente, mostrar a
frustração da sociedade com a solução técnica do direito
(entrevista promotor de justiça 01)
É comum que a exacerbação desta questão técnica sirva também de escudo
para os profissionais, de forma a legitimar e justificar suas decisões sob
argumentos difíceis de atacar.
Nos casos esdrúxulos, aí o judiciário atua. (entrevista promotor de
justiça 04)
Entretanto, uma diferença crucial deste tecnicismo jurídico nas questões
médicas também técnicas se encontra na presença de um certo “senso de
justiça” dos usuários dos planos de saúde. Esse “senso de justiça” se
manifestaria através do recurso do “véu da ignorância”, pelo qual, segundo
Rawls (1993, p. 12) as pessoas se despojariam de seus desejos e aspirações
pessoais de forma a identificar princípios universais de justiça. Entretanto,
ultrapassando o autor, não se trata aqui de um “senso de justiça” tal como
Rawls propõe (op. cit.), ou seja, separado de aspectos morais e neutro, mas
algo que faz com que os beneficiários possam julgar os resultados de uma
decisão judicial de acordo com suas próprias concepções de justo e injusto.
Tais concepções, são, assim, manifestadas através daquilo que pode ser
considerado como sendo a cultura jurídica dos cidadãos.
Essa cultura jurídica ou legal pode ser definida como sendo padrões de
expectativas em relação ao Estado, enquanto fonte de direitos e das leis, e
também padrões de expectativas em relação a regulamentação jurídica
(MELLO & MEIRELLES, 2006). Assim, passa pelos valores e crenças das
pessoas em relação ao Estado, mas engloba também valores e crenças
relacionados com a regulamentação jurídica presente nas normas. Dessa
maneira, é possível identificar em relação às leis e também em relação à
justiça certos valores e crenças presentes nos usuários que são reflexos de
sua realidade sócio-econômica.
De acordo com Friedman (1988), busca-se ultrapassar a explicação tradicional
de que mudanças sociais geram mudanças legais, utilizando-se o conceito de
cultura legal para buscar explicar como se dá essa relação intersubjetiva
90
construída entre direito e demandas sociais. Entretanto, apesar de se verificar
uma forte presença de requisitos econômicos e sociais que influenciam na
constatação daquilo que é ou não justo por parte dos usuários, é possível
identificar uma determinada posição crítica acerca da decisão judicial.
Representativo desta dependência dos beneficiários em relação à definição
dada pelos profissionais sobre as questões médicas é o trecho da obra de
Berger & Luckmann (1994, p. 68):
Não somente não possuo o conhecimento supostamente exigido
para me curar de uma enfermidade física, mas posso mesmo não
ter o conhecimento de qual seja, dentre a estonteante variedade
de especialidades médicas, aquela que pretende ter o direito
sobre o que me deve curar. Em tais casos não apenas peço o
conselho de especialistas, mas o conselho anterior de
especialistas em especialistas.
Assim, ao contrário de muitas questões médicas, sobre as quais o usuário fica
totalmente sem condições de decidir, nas questões jurídicas o senso de justiça
atua. Este senso se dá segundo as condições de realidade sócio-econômica
em que o usuário está inserido, o que lhe dá possibilidade de realizar alguma
forma de análise sobre as conseqüências das decisões, sobre aquilo que pode
lhe afetar diretamente. Exatamente por isso, as questões técnicas, ao mesmo
tempo em que servem de escudo aos participantes do campo jurídico, não
retiram das conseqüências das decisões a possibilidade de aprovação ou
desaprovação social, além de certo incômodo com esse tecnicismo
exacerbado, por ser pretensamente excludente. Este senso particular de justiça
permite maiores avaliações e críticas ao judiciário, provenientes não somente
dos profissionais. Ao contrário, na medicina, a questão da técnica ainda se
mostra de difícil superação por parte dos usuários.
No que tange a lentidão do poder judiciário, algumas medidas significativas
precisam ser destacadas. A participação ativa do Ministério Público através das
ações coletivas é de extrema importância por “poupar tempo” e contribuir para
desafogar o judiciário com inúmeras ações judiciais, aspecto que será
analisado melhor adiante.
91
Além disso, uma questão muito importante são os provimentos cautelares e em
sede liminar nos processos. Este instrumento permite ao juiz, em casos onde
exista a chamada “fumaça do bom direito” e “perigo na demora”12, no caso de
demora na prestação jurisdicional, decidir em caráter liminar e urgente de
forma a garantir o direito sem que seja preciso realizar uma cognição mais
profunda sobre a matéria dos autos. No entanto, tal instrumento tem virado
praticamente requisito de qualquer petição dirigida ao judiciário. Embora
existam casos de uso por má-fé por parte dos autores, os pedidos liminares
são utilizados, principalmente, em razão da sabida lentidão do poder judiciário.
Logo, tem ocorrido que muitos juízes, procurando se livrar da responsabilidade
sobre os casos, decidem liminarmente em favor do autor para depois “analisar
melhor” o processo. Contudo, o problema ocorre justamente quando este
“analisar melhor” passa a levar muito tempo e o processo fica parado.
Como exemplo desta questão é o já citado caso do fornecimento do
medicamento Temodal a uma usuária com diagnóstico de câncer. Neste caso,
dada a urgência, a decisão foi no sentido de se dar uma cartela do
medicamento pelo “poder geral de cautela do juiz”. Ocorre que, após esta
prestação jurisdicional, quando fizemos a entrevista com a usuária, o processo
já estava parado por mais de quatro meses sem qualquer decisão. Naquela
ocasião, a usuária já precisava de novo ciclo de tratamento com o
medicamento, embora o juiz ainda não tivesse se pronunciado sobre o
processo.
Ainda neste caso, a influência das questões médicas também serve de fonte
para as decisões judiciais, o que fica claro quando o juiz afirma ter tomado sua
decisão “levando em conta o relatório do Oncologista de fl. 20”. Apesar da
sabida dificuldade do judiciário em razão dos inúmeros processos que a ele
chegam todos os dias, certamente a solução não deveria passar por esquivar-
se de resolver os problemas, dando liminares e deixando de decidir o mérito
dos processos.
12 Essas expressões são referências constantemente usadas pelo campo e consideradas pela legislação processual civil como requisito para a concessão destas liminares. Por “fumaça do bom direito” entende-se a presença de alguns requisitos que indiquem a possibilidade da existência do direito. No jargão popular: “onde há fumaça, há fogo”. Já por “perigo na demora” entende-se a iminência, o perigo de dano ao direito caso a providência jurisdicional não seja rápida.
92
Outro importante ponto a ser abordado refere-se às peculiaridades regionais na
instrução e no julgamento dos processos. Essa questão foi sintetizada por uma
juíza que relatou ter grande dificuldade na realização de perícias médicas em
processos no interior do Estado. Tal dificuldade passava por influências
econômicas dos planos de saúde, que levavam os médicos a se recusar a
participar da perícia por temerem seu descredenciamento da rede. Acrescente-
se a isto um grande corporativismo entre os profissionais já que, no interior,
“todos” se conhecem e “ninguém” quer prejudicar seus colegas. Esse problema
foi ressaltado, principalmente, em casos que envolvem a saúde bucal, em que
inexistiam dentistas para realizar as perícias. Dessa maneira, os processos no
interior ainda sofriam com mais esta dificuldade para serem julgados quando
envolviam questões técnicas.
Outra questão diz respeito à própria estrutura de carreira dentro do campo
jurídico. Isto porque as promoções e a carreira jurídica dos membros do poder
judiciário fazem com que os juízes mais antigos e mais experientes sejam
promovidos e trabalhem, majoritariamente, na capital, fato este que, muitas
vezes, dificulta ainda mais o julgamento de processos no interior. Este fato faz
com que certos juízes, por serem mais jovens e inexperientes, fiquem mais
sujeitos às pressões externas ao campo no momento de decidir.
Eu percebo que eles, na verdade, têm medo de decidir a liminar
(...). (entrevista promotor de justiça 04).
Falando especificamente sobre a linha de cuidado saúde bucal, destaca-se o
pouco conhecimento sobre processos em relação a esta linha de cuidado ou
sua pouca incidência. Os profissionais do campo jurídico afirmam que ainda
são poucos os planos que atuam neste segmento, que é até mesmo
desconhecido para alguns. Além disso, é comum uma associação desta linha
de cuidado com questões meramente estéticas (pode ser também uma causa
do baixo número de processos), o que faz com que tais processos não tenham
tanto apelo ao serem tratados dentro do campo jurídico, ao contrário do que
ocorre na oncologia.
Acerca da interferência dos campos político e econômico no julgamento dos
processos, uma última referência se faz necessária. Esta interferência é
93
constatada através da posição recorrente de usuários dando conta de que
existe muito privilégio para quem detém poder econômico ou político.
Sem levar em consideração eventuais casos de corrupção ou tráfico de
influências, uma das influências do campo econômico e político sobre o campo
jurídico pode ser sentida no fato de que, aqueles que detém maior capital
econômico têm mais condições de contratar os “melhores” profissionais do
campo jurídico ou, como diria Bourdieu, os profissionais que detém o maior
capital simbólico e dominam o campo, aspecto que, muitas vezes, pode
favorecer as operadoras. Esta concepção pode ser ilustrada com a fala de uma
usuária:
Entrei na justiça. A justiça nossa é lenta e... e acordo não existe!
Aqui no nosso país só quem tem dinheiro mesmo. Só com
dinheiro que se resolve tudo. (entrevista usuária saúde da mulher
01)
2.3.5 Ações e outros instrumentos legais
Em relação às ações disponíveis, existe uma prevalência de ações cautelares
e, como já ressaltado, há uma grande quantidade de liminares deferidas.
Já quanto aos demais instrumentos legais de busca por direitos, podemos
destacar os Termos de Ajustamento de Conduta (TAC) celebrados pelo
Ministério Público (MP) e demais tentativas de acordo ou pactuação, judiciais
ou extrajudiciais (celebradas pela atuação dos Procons). Os TAC são
instrumentos de pactuação no qual é celebrada uma espécie de acordo entre o
MP e os réus ou possíveis réus na ação (caso esta ainda não tenha sido
ajuizada) para que se dê fim ao processo. É importante ressaltar a grande
efetividade deste instrumento como forma de agilizar a solução de questões
que, muitas vezes, poderiam se arrastar durante anos sem julgamento pelo
poder judiciário.
Neste ponto, em que pese à afirmação de um promotor no sentido de que seria
mais fácil celebrar acordos com particulares e empresas do que com o poder
público, tal facilidade não é verificada nos processos e nas demais entrevistas,
onde a celebração de acordo é vista como exceção e algo muito difícil de
94
conseguir. Entretanto, talvez tal entendimento possa identificar uma
peculiaridade de processos deste tipo no interior do Estado, onde devido a uma
maior mobilização da sociedade local, as empresas estariam mais afetas a este
tipo de solução.
Apesar disso, uma questão muito importante a ser ressaltada diz respeito à
forte disposição dos membros do MP em celebrar este tipo de acordo. Tal
disposição pode ser movida pela certeza de que a rapidez deste instituto não
seria alcançada no caso de um ajuizamento e pela desconfiança no judiciário.
No entanto, para as empresas, visto sob uma ótica puramente econômica, de
custo benefício, a celebração do TAC pode ser encarada como forma de se
evitar um moroso e caro processo judicial. Entretanto, dada a pouca
participação do MP no campo da saúde suplementar, em razão da sua
dinâmica de atuação, em que pode atuar apenas em casos em que exista
algum tipo de lesão coletiva, tal instrumento de pactuação é ainda mais restrito.
2.3.6 Acesso à justiça
O acesso à justiça é considerado por muitos doutrinadores13 como requisito
essencial para a garantia de direitos (CAPPELLETTI & GARTH, 1998). Dentre
as dificuldades de acesso destacam-se: o conhecimento daquilo que é direito
(conhecimento como requisito essencial para a luta por direitos); o excessivo
tecnicismo; a dubiedade dos contratos (cláusulas interpretadas de formas
diferentes por profissionais); a dupla dificuldade (jurídica e médica) e a pouca
porosidade do poder judiciário às demandas.
No que tange ao acesso, uma das questões centrais relaciona-se com os
instrumentos e caminhos disponíveis encontrados pelos usuários na busca por
seus direitos. Neste ponto, além do recurso direto ao poder judiciário através
da contratação de advogados para atuar no campo, existe também a
possibilidade de ingresso por via da Defensoria Pública.
Em relação ao Ministério Público, este tem legitimidade para atuar apenas em
processos que envolvam interesses coletivos, sendo vedada qualquer
13 A palavra doutrinadores é utilizada aqui no sentido de “formadores de opinião” no direito, ou seja, autores e estudiosos do campo que, dado o seu grau de reconhecimento influenciam diretamente o campo na interpretação e na produção de conceitos jurídicos.
95
representação individual de interesses. Assim, o MP atua em juízo, postulando
em nome próprio, mas na defesa de interesses da sociedade.
No entanto, no contexto da saúde suplementar, o MP atua em defesa de
direitos chamados individuais homogêneos. Em tais direitos, apesar de existir
uma relação individual, há semelhanças entre diversos casos (exemplo de
cláusulas contratuais abusivas, que têm potencial lesivo a um grande número
de pessoas, o que torna a lesão coletiva).
A seguinte frase proferida por um Promotor de justiça acerca das
possibilidades de atuação do MP na saúde suplementar é bastante elucidativa
sobre esta questão:
Aí entra na questão das ações coletivas. O Ministério Público só
pode ajuizar ações em defesa do direito do consumidor
coletivamente considerado, então se o contrato contiver uma
cláusula excluindo a cobertura, em caso de uma prótese ligada ao
ato cirúrgico, quer dizer, o sujeito precisa fazer a operação pra
implantar a prótese e aí o contrato prevê que só cobre a operação
e não cobre a prótese, né esse contrato que o consumidor me
apresente aqui na verdade representa, documenta uma lesão
coletiva porque o mesmo contrato é oferecido pra toda
coletividade. (entrevista promotor de justiça 02)
Outro condicionante para o acesso, diz respeito à falta de confiança
manifestada por muitos usuários dos planos de saúde acerca da justiça e da
efetividade de seus provimentos. Em muitos casos, essa desconfiança é
gerada pelas já citadas influências de outros campos no campo jurídico, bem
como pelo descrédito em relação ao próprio Estado. Essa cultura política da
desconfiança – cultura política aqui entendida como valores e crenças que
orientam os sujeitos na ação política (OLIVEIRA, 2006) – de acordo com Telles
(1999), pode ser interpretada como resultante de uma noção enfraquecida de
direito, muitas vezes confundido com um favor estatal.
No que concerne às características da cultura política no país, baseado em
Faoro, Oliveira (2006) define o Estado brasileiro como local em que
predominam relações patrimonialistas, clientelistas e autoritárias. Neste mesmo
96
sentido, falando em uma sociedade relacional, onde o que importa são as
relações pessoais e de parentesco e não o fato de ser cidadão, Da Matta
(1991) ressalta um contexto no qual o individualismo atua no sentido de
garantir soluções pessoais através de relações com o poder, sendo mais
importante ser “bem relacionado” para escapar da aplicação da lei, do que ser
um cidadão, encarado de forma negativa. Isto porque, ainda segundo este
autor, no Brasil a relação com o poder é algo determinante e não o indivíduo.
Assim, importa mais o conjunto de relações pessoais que permitam que o
indivíduo possa estar acima das leis gerais e impessoais do que a obediência a
estas. O tradicional “sabe com quem está falando?” é muito mais valorizado do
que a obediência e o respeito pelas leis. Não bastam os direitos, importando
apenas os “privilégios”.
Da Matta (op. cit.) faz também uma comparação deste modelo com o
construído na experiência dos EUA, local onde a cidadania foi construída a
partir de um fortalecimento da noção de indivíduo através da limitação ao poder
estatal. Essa afirmação vai de encontro a uma interessante comparação, já
ressaltada, feita por um promotor de justiça quando este diz que no Brasil
existe a lei que protege o consumidor, mas, na prática isto não acontece. Ao
contrário, nos EUA, não existiria lei, mas a proteção seria algo construído na
prática cotidiana dos atores.
Interpretando essas duas referências, a par de eventuais idealizações ao se
tratar do modelo americano, essas constatações explicam muito do desrespeito
pelas leis e do descaso de muitos pelos direitos e pela busca de acesso ao
poder judiciário, já que o importante é a relação e não os direitos, algo já
tradicionalmente violado.
Assim, verifica-se que os interesses dominantes do campo seriam reflexos dos
interesses dominantes na sociedade, numa influência mútua do campo político
e dos demais campos da sociedade, ou seja, uma relação de mão dupla, com
mútuas influências (NONET & SELLWICK, 2000). Isto dificulta pensar e
acreditar em um potencial emancipatório do poder judiciário e do próprio direito
(SANTOS, 2003).
Acerca da influência do campo político, principalmente em países periféricos,
Santos afirma (op. cit., p. 303):
97
(...) na periferia, a distinção clássica entre Estado e sociedade civil
– tanto como outras distinções aqui derivadas: direito/sociedade,
público/privado, direito/política – costuma ser ainda mais
problemática do que nos países centrais e, conseqüentemente, a
autonomia do discurso jurídico em relação a outros discursos
sociais e institucionais costuma ser mais precária. O direito, e
particularmente o direito público, tem menor autonomia relativa
em relação ao sistema político.
Ainda segundo este autor, nestes casos, as normas jurídicas “obedecem
menos às necessidades técnicas de regulamentação social que as
necessidades políticas de legitimação institucional” (op. cit.).
Neste mesmo sentido, é muito representativa a seguinte frase proferida por
uma usuária ao ser indagada se já precisou recorrer à justiça para ser
atendida:
Não, até hoje não, espero continuar assim. (entrevista usuária
saúde da mulher 03)
2.3.7 Ações coletivas
Entrando no terreno das ações coletivas propriamente ditas, representadas
principalmente pela Ação Civil Pública, algumas questões merecem destaque
por dificultar bastante a recepção dessas ações coletivas pelo poder judiciário.
Um primeiro ponto a ser abordado diz respeito ao enorme desconhecimento
técnico dos profissionais do campo sobre a matéria e uma certa dificuldade em
encarar ações coletivas por parte de um poder judiciário que durante anos vem
consolidando uma postura processual e uma cultura jurídica extremamente
individualistas. Tanto nas faculdades de direito como na própria dinâmica
processual, ainda existem muitas restrições e desconhecimento sobre a
questão.
Esse desconhecimento é encarado de forma bastante dúbia pelos profissionais
do campo. De um lado, o Ministério Público que vem dando extrema
importância a este instituto, dedicando profissionais e setores exclusivos para
98
se especializarem no tratamento dessas ações coletivas. De outro, este
movimento não é acompanhado por advogados e, principalmente, pelos
membros do poder judiciário. Estes, apesar de pretenderem, de forma
arrogante, esconder seu desconhecimento, o comprovam na maneira como
tratam tais ações, pois o fazem de forma pouco técnica e muitas vezes,
demorando no julgamento e preferindo dedicar-se a questões individuais. Isto
foi enfatizado por alguns entrevistados.
Não há uma cultura institucional no judiciário em relação à tutela
coletiva, a ponto do juiz já estar consciente. (entrevista promotor
de justiça 01)
O judiciário ainda está atrasado na mentalidade institucional. Ao
contrário do MP, que hoje tem promotorias especializadas, tem
promotores que só fazem isso, só estudam isso. (entrevista
promotor de justiça 01)
Contrastando com esse posicionamento, mas sem mostrar muito conhecimento
sobre o assunto, os juízes entrevistados demonstram como esta questão ainda
é pouco conhecida. Um juiz afirmou que não tinha nenhuma ação dessas em
sua vara, mas, caso tivesse, esta seria tratada da mesma forma, demonstrando
talvez certo desconhecimento do potencial desta instituição para a coletividade,
a ponto de tratar tais ações como qualquer outra. Outro juiz afirmou, um pouco
inseguro, que a competência para ações coletivas seria exclusiva da Justiça
Federal e não das Varas Estaduais, voltando atrás em seguida, mas com
grande desconforto ao falar sobre o tema.
Outro aspecto importante diz respeito à influência de questões políticas e
econômicas nesse tipo de ação. Isto porque, dada a possibilidade que têm de
influir em um grande número de casos, a pressão política em torno do
julgamento de tais ações é bastante forte. Nestes casos, observa-se uma forte
influência do campo político sobre o campo jurídico, influência esta que não se
restringe ao julgamento, já que acontece também no momento de propositura
da ação.
Um exemplo dessas influências pode ser verificado em uma Ação Civil Pública
a qual um promotor de justiça fez referência. Tratava-se de ação movida pelo
99
Procon da cidade contra um plano de saúde local em face do
descredenciamento constante de profissionais da rede. Nesta ocasião, o
promotor reclamou bastante do tratamento dado às ações coletivas no poder
judiciário, principalmente em razão do grande desconhecimento do assunto
pelos juízes, que talvez não dimensionem corretamente a relevância deste tipo
de ação e, muitas vezes, deixam-na “esquecida” no cartório, sem dar
andamento ao processo.
Outro ponto destacado foi o despreparo dos advogados para tratar deste tipo
de ação. Citou como exemplo a referida ação movida pelo Procon. Segundo
afirmou, a ação estava tecnicamente “muito mal redigida” e os advogados das
duas partes mostravam um claro desconhecimento técnico do assunto. Por
sorte, segundo ele, a juíza era “muito boa” e com o Ministério Público, se
conseguiu celebrar um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta), no qual este
promotor teve que, praticamente, ditar os termos em razão do alegado
despreparo das partes.
Ainda em relação a este caso, o promotor reclamou bastante de influências
políticas que motivaram a atuação do Procon. Isto porque, segundo ele, o
responsável pelo Procon pretendia se candidatar a um cargo público (vereador
da cidade), sendo este o real motivo de sua atuação, no sentido de ganhar
pontos com a opinião pública da cidade.
Em conversa informal após a entrevista, o promotor reclamou mais uma vez da
morosidade do poder judiciário nas ações coletivas, causada por influências
políticas (normalmente envolvem pessoas importantes e com grande poder
econômico) e desconhecimento técnico do instrumento. Nesta oportunidade,
ponderou abusos do próprio Ministério Público, afirmando, no entanto, que,
dentre as funções do judiciário estaria a de controlar tais abusos.
Mais uma vez, é bastante representativa a frase de uma usuária acerca de seu
descrédito na justiça, principalmente em casos envolvendo o poder econômico
e político:
Eu acho que tudo que é muito poderoso é difícil aquele
pequenininho conseguir alguma coisa, sinceramente. (entrevista
usuária oncologia 04)
100
Entretanto, questões políticas perpassam não somente de forma negativa as
ações coletivas. Importante exemplo foi dado por outro promotor de justiça, que
ponderou sobre a repercussão pública de tais ações e sobre sua importância
na mobilização social:
(...) várias ouras coisas aconteceram, e aí talvez, há o aspecto
político dessa atuação, dessa ação coletiva, político no sentido de
mobilizar os agentes inseridos nesse processo, nesse processo
social, né, pra uma solução, pra se aproximar de uma solução (...)
(entrevista promotor de justiça 02)
(...) tem que compreender a atuação do Ministério Público não só
como um burocrata, papel, papel, vai lá, mas com a noção,
alcance social do que ele pode fazer. (entrevista promotor de
justiça 02)
Existe aqui, também, uma forte disputa política pelo controle do campo jurídico
e que faz com que promotores e juízes entrem muitas vezes em conflito.
Enquanto os primeiros demonstram uma posição mais progressista, no sentido
de uma maior abertura e porosidade aos movimentos sociais e desapego por
questões meramente técnicas (o que não significa desconhecimento), os juízes
tendem a ter posições mais conservadoras, talvez por temer algum tipo de
mudança, ou até mesmo por receio do impacto social que suas decisões
podem gerar (pouca autonomia em relação ao campo político na hora das
decisões de acordo com SANTOS, 2003). Algumas falas exemplificam bem
esta questão:
Eu acho que a ação sendo coletiva a responsabilidade é maior,
né, quer dizer, a mudança advinda da decisão é muito maior do
que numa ação individual. (entrevista promotor de justiça 03)
A gente levou quase três anos para convencer o poder judiciário
que vale a pena encarar as grandes empresas, vale a pena dar as
liminares. E descobrir que com uma liminar, às vezes, ele não
precisa julgar a ação. (entrevista promotor de justiça 04)
Eu acho que há uma certa resistência. Talvez porque realmente
se tema pela saúde financeira ou por outros fatores, mas
101
obviamente que a decisão numa ação coletiva tem eficácia muito
maior. (entrevista promotor de justiça 03)
Em posição contrária, mas também de muita importância pois reflete a
influência de questões políticas e econômicas também nos membros do
Ministério Público, principalmente por medo da repercussão das decisões,
outro promotor considera as áreas de atuação coletiva como as áreas mais
desprestigiadas atualmente dentro do MP:
Apesar de tudo, as áreas de direito coletivo são muito frágeis no
Estado. São as piores áreas dentro do Ministério Público. Hoje,
ninguém quer ser promotor de tutela coletiva. (entrevista promotor
de justiça 04)
102
3 ESTUDO DE RECEPÇÃO
3.1 Metodologia do estudo de recepção
Para o estudo de recepção foram selecionados Usuários Qualificados 1 e 2
(UQ1 e UQ2). Entre os UQ1 selecionamos dois membros do campo jurídico:
um promotor do MP e um juiz. O UQ2 é a pessoa atendida no serviço de saúde
suplementar, que pode ter feito reclamação ou não junto ao Procon,
Ouvidorias, MP, entre outros. Sua seleção se deu a partir de entrevistas
prévias com médicos que os indicaram para nossa pesquisa. Tanto UQ1 como
UQ2 foram entrevistados individuais antes do estudo de recepção.
Para a oficina foram utilizados vídeos gravados em DVD com programas da TV
Globo. Os vídeos eram passados em um computador portátil, podendo-se
utilizar fone de ouvido ou não. O motivo da escolha da TV Globo deve-se ao
fato de que este é o canal de televisão mais visto no Brasil, com os maiores
índices de audiência da televisão brasileira. Isto configura uma posição de
destaque deste veículo no campo jornalístico, em função de seus níveis de
audiência.
Os programas em questão foram os de conteúdo jornalístico, por isso a procura
foi limitada aos seguintes programas: RJTV, Jornal Nacional (que costumam
estar entre os 5 programas mais vistos do canal, com algo em torno do de 40 a
50% de audiência no estado do Rio de Janeiro14), Globo Repórter e Fantástico
(estes últimos por serem da mesma emissora e por apresentarem com
freqüência programas inteiros ou quadros sobre saúde). A seleção dos
programas foi feita a partir do Globo Media Center15 ou dos sites destes
mesmos programas, facilmente acessáveis a partir de links do portal
Globo.com16.
Alguns programas encontrados estavam completos (vídeo e texto), outros
apresentavam apenas sua transcrição, o que facilitou a escolha do material.
14 http://www.almanaqueibope.com.br 15 http://gmc.globo.com/ 16 http://www.globo.com/
103
Para os programas que tratavam dos planos de saúde ou que se referissem a
esse tema, o critério de escolha foi a presença do caráter jurídico: situações de
processos, envolvimento do judiciário em relação aos problemas de usuários
com planos de saúde, mas sem ênfase nas disputas sobre o preço do plano.
Além disso, escolheu-se um programa representativo para cada linha de
cuidado em saúde: saúde mental, saúde da mulher, oncologia e saúde bucal17.
É verdade que não foram muitos os programas encontrados e que, além disso,
houve bastante limitação, inclusive em relação aos vídeos disponíveis nos
serviços de atendimento da TV Globo. Para isso, entrou-se em contato com a
Videoteca da emissora e com o Globo Universidade.
Para todos os sujeitos que passaram pelo estudo de recepção fez-se também
uma entrevista, cujo roteiro é o mesmo das entrevistas realizadas nesta
pesquisa. No estudo de recepção seguimos o roteiro de perguntas das oficinas.
As oficinas referem-se ao que chamamos de estudo de recepção propriamente
dito. Foram realizadas com o intuito de observar o que o usuário faz com o que
vê e que variáveis podem se encontrar presentes nesse processo. Cada oficina
se constituiu pela apresentação do programa de televisão previamente
selecionado. Durante a apresentação foram observados comentários,
interações com os pesquisadores e outros comportamentos. A seguir
perguntava-se: se eles já tinham conhecimento das informações apresentadas
no programa; o que achavam das informações; qual foi o sentimento que
tiveram diante dessas informações; o que pensavam do problema apresentado
pelo programa; se havia soluções para tais problemas e quais; se havia um ou
mais lados apresentados pelo programa e de que lado eles estavam e o
porquê.
Também na oficina foram observadas as referências a terceiros, próximos ou
não; exemplos utilizados, tais como possíveis exemplos da mídia ou de outras
áreas; situações pessoais vividas que estejam relacionadas ou não com a
situação do programa etc. Também foram consideradas as palavras do
programa apresentado que passam a ser enfatizadas pelos usuários: são
palavras de uso comum do cotidiano ou de área especializada como o direito e
a medicina? Em que situações tais palavras são utilizadas no contexto das 17 Para maiores detalhes, ver Apêndices B e C
104
oficinas? Assim, buscamos entender quais são os usos e apropriações
realizados pelas pessoas em relação ao que ouvem e vêem nas mídias e de
quem são os discursos que acabam tendo mais voz quando o usuário pretende
exigir por direitos no campo da saúde e que acabam servindo como
fundamentos e argumentos.
Como os usuários dos planos de saúde recebem a informação da mídia e o
que efetivamente fazem com isto?
De que maneira isto pode vir a afetar o cotidiano em relação ao cuidado?
O estudo de recepção teve como objetivo investigar estas questões. Contudo,
importa destacar que não se tem como função pesquisar quantitativamente
qual seria a tendência no que concerne aos usuários dos planos de saúde. O
objetivo da pesquisa é de caráter avaliativo, no sentido de obter informações
pertinentes ao processo de recepção que devem ser consideradas ao se
pensar políticas e mesmo ações no âmbito da regulação das operadoras em
saúde suplementar, de modo a garantir o direito à saúde de seus usuários.
A partir uma análise transversal do material extraído do campo, ou seja,
considerando todas as linhas de cuidado indistintamente. Desse modo,
observou-se que:
(a) o processo de recepção não se dá de modo linear;
(b) existe interesse por parte dos beneficiários em informar-se, assim como
no acesso às informações através dos veículos de comunicação;
(c) há certa ambivalência acerca da mídia, em particular entre os
profissionais do campo jurídico;
(d) mídia pode afetar cotidiano do serviço ou do acesso ao direito e à
saúde, mas não necessariamente conduz à ação jurídica e
(e) existe certa confiança no sistema.
Ressalte-se que cada um dos aspectos listados acima será explicado de forma
mais detalhada ainda neste capítulo. Adiante, nos dois capítulos a seguir,
105
haverá analises segundo as duas linhas de cuidados de onde se conseguiu
extrair mis informações a partir do trabalho de campo. Na de oncologia o ponto
de vista será o do campo jornalístico, enquanto na de saúde da mulher, a
perspectiva será a do campo jurídico.
3.2 Processo de recepção não é linear
A todo instante os sujeitos da pesquisa realizam digressões por outras áreas
de conhecimento, exemplos de terceiros etc., de modo a corroborar idéias
pessoais a respeito do que é perguntado, confrontando com suas próprias
experiências de vida, angústias de tratamento, crenças religiosas ou, no caso
de profissional do campo jurídico, com aspectos que remetem ao próprio
campo em que atuam. Contudo, várias vezes os sujeitos utilizam exemplos ou
termos mostrados nas reportagens utilizadas no estudo, apesar de não terem
sido diretamente estimulados, já que não se apontou para determinado caso ou
informação presente nas reportagens de modo a obter respostas pontuais
sobre estes aspectos. Logo, pode-se dizer que a notícia adquire valor de fato
ou conhecimento ou informação que se adiciona ao tema discutido e, portanto,
como algo que pode ser necessário e ou ter importância para a vida do usuário,
levando-o a rever seus conceitos e crenças e até reforçá-los quando se coloca
numa posição crítica.
[Qual foi o sentimento que teve diante dessas informações?] O
caso daquela senhora [exemplo apresentado na reportagem] é
que realmente ela queria ser mãe de uma criança gerada por ela,
porque há muitas pessoas que se vêem numa situação como ela,
de não poder ter, e adota, né? Porque eu acho que uma pessoa
quando procura adotar ela vai procurar uma criança recém-
nascida. E mãe não é aquela que gera, é aquela que cria né? Que
vai dar amor, vai estar atenta, vai cuidar quando a criança estiver
doente. Ela teve força de vontade, perseverança, teve um
companheiro que pensava como ela também e eles foram bem-
sucedidos... por enquanto, porque até a reportagem que vimos,
106
ela tinha sido curada do câncer e que os médicos iam fazer
procedimentos. Agora não se sabe se ela terá aquela
possibilidade de conseguir, de gerar nela aquela criança. Mas é
muito válida aquela força de vontade dela, aquela fé, confiança na
medicina, que a gente nota que tá cada vez mais, tá evoluindo
muito. A parte espiritual, não, tá regredindo muito, não tá
acompanhando a parte [material] das descobertas. (recepção
UQ2, oncologia 04)
[Como você avalia a qualidade dessas reportagens?] Acho muito
positivo [reportagens] porque, na verdade, o que a moça falou aí
também [na reportagem], “saber é poder”. As pessoas que tomam
conhecimento de que elas estão sendo, de alguma forma,
lesadas, que um direito delas tá sendo violado, já podem se
motivar a defender esses direitos. (recepção UQ1, promotor de
justiça 02)
[O que você achou das informações?] Elas são bem valiosas.
Tanto para quem quer ser mãe algum dia. Mas bem mais
importante é do consumidor. Porque tão ocorrendo muitos casos
em que tem alto índice de problemas (...) e tem muita gente que
não tem noção do que fazer. Achei bem legal essa entrevista que
vocês passaram, bem importante.
[Qual foi o sentimento que teve diante dessas informações?] O
primeiro diz que realmente a mulher queria ser mãe, isso é uma
coisa bonita e tal, e tem todo aquele processo de tentar ajudá-la,
mas são poucos os casos que têm essa liberdade na área da
saúde, nem todos conseguem o que ela conseguiu no caso. Ela
queria engravidar... [perguntou-se: como assim liberdade?] É que
nem aquele senhor que teve o infarto, teve um problema e depois
que ele tava pagando o plano de saúde e depois de fazer aquela
cirurgia, por causa daquele aparelho lá e tudo mais. E se você for
analisar, ocorre muito, assim, não é diferença, mas é que muitos
têm mais outros têm menos. (recepção UQ2, saúde da mulher 03)
107
É importante notar que o estado emocional e psíquico do sujeito, e seu
sentimento de fragilidade diante de seus problemas de saúde, podem levar a
uma maior identificação do usuário com o que é mostrado na mídia, sobretudo
se a situação relatada tiver alguma semelhança com sua própria experiência de
vida ou seu sofrimento. Foi o que se observou com o UQ2 da área de saúde
mental.
Durante sua fala, no estudo de recepção, ele reportava-se com bastante
freqüência ao caso do indivíduo que tinha depressão e pânico e ressaltava que
ele também tinha depressão, entre outros problemas que passou a descrever.
Diante disso, diferente do que aconteceu com os outros usuários, ele parece
ter dado menos atenção aos aspectos relacionados com os problemas nos
planos de saúde, que envolviam direito do consumidor, entre outros. Chegou a
destacar as falas do paciente entrevistado na mídia e repetiu-as como sendo
suas. Pode-se supor que, no caso deste UQ2, houve certo sentimento de
constrangimento de sua parte. As palavras constrangimento e constrangedor
foram utilizadas cinco vezes após a exibição das reportagens, em particular
quando se tratava de falar a respeito dos casos de pessoas que precisaram
entrar na justiça para obter atendimento no plano de saúde. Seu
constrangimento pode estar relacionado à condição de exposição pública
ligada tanto ao fato de ter, em certa medida, se visto através do personagem
entrevistado na reportagem, como à exposição pública/jurídica de quem
precisa fazer valer seus direitos que, em princípio, deveriam ter sido garantidos
pelo governo.
[Qual foi o sentimento que teve diante dessas informações?]
Fiquei muito emocionado diante do quadro, de se falar sobre a
depressão. E com relação aos planos de saúde eu fiquei um tanto
quanto assim revoltado, abismado com o que eles apresentaram,
com o que as pessoas que se sentiram lesadas falaram. Porque
eu acho isso um constrangimento pra quem paga 1780 reais de
plano de saúde tem que passar, sofrendo de câncer, tem que
passar por isso tudo. Então acho que o governo deveria sair
dessa comodidade. Tá querendo crescer? Tá querendo ser uma
grande potência? Mas tem que olhar também a saúde, a saúde
108
pública, né? Tá entregue às baratas. E as universidades também
de medicina, eu não sei se elas cumprem o seu papel de formar
médicos capazes de curar e atender bem a população. (recepção
UQ2, saúde mental 02)
3.3 Interesse por informar-se e acesso às informações através da mídia
A partir das oficinas é comum os UQ2 destacarem certo reconhecimento em
relação ao que é mostrado. Em geral, dizem já ter tido acesso a certas
informações presentes nas reportagens e mesmo já as terem visto.
No caso da paciente de oncologia, foi ressaltado seu grande interesse por
informar-se, expresso tanto na atenção diante dos dados mostrados nas
reportagens, como pelo interesse por notícias em geral, ao dizer que
acompanha os noticiários e assina um jornal, que o lê diariamente. Nesse
sentido, vê-se que parte das decisões tomadas por ela, quanto ao exercício de
seu direito em saúde e como contribuinte, é em certa medida motivada pelo
que vê ou lê. Como exemplo, pode-se citar a ocasião em que verifica a lista de
doenças que dão isenção do imposto de renda e de toda ação que promove
junto ao Ministério da Defesa para ficar isenta, uma vez que recebe pensão do
marido ex-militar já falecido.
Quando vem aquele período de imposto renda, tem um dia que
tem aquelas pessoas que perguntam ao jornal o que pode e o que
não pode fazer, vem as respostas. Então sempre leio. [...] Aí eu vi
que a minha estava incluída e que eu podia ficar isenta do
imposto de renda. Eu recortei até, porque tinha muitas
enfermidades, muitas. E a neoplasia maligna estava, que é
justamente o meu caso. E foi a do meu marido e eu não sabia na
época. Então ele ficou enquanto vivo fazendo um absurdo de
imposto de renda, sendo descontado, né? Que a gente
geralmente é descontada no contracheque. Se eu já tivesse
sabido disso, eu já tinha ido por ele. Então como eu vi, eu corro
atrás. (recepção UQ2, oncologia 04)
109
Contudo, a partir do estudo não se pode afirmar que a busca por informações é
comum a todos os usuários de planos de saúde, muito menos relacionado aos
direitos como consumidor e até em relação à própria doença. Contudo, pode-se
dizer que a maior facilidade de acesso às informações da mídia é aceita pelos
sujeitos, podendo ser vista de maneira diversa segundo os interesses que
representam. Por exemplo: no caso da paciente de oncologia os interesses são
pessoais, no caso do juiz, os interesses são justificados no campo do qual faz
parte.
3.4 Ambivalência acerca da mídia
Tanto para UQ1 como para UQ2, a mídia é vista de forma ambivalente, ou
seja, de um lado é afirmativa e, de outro, restritiva ou competitiva. No caso dos
usuários dos planos, porém, ela é mais afirmativa, sendo vista como restritiva
apenas quando ela se refere às notícias sobre violência, em relação às quais
pode haver recusa à leitura, ao acesso. O mesmo parece acontecer quando se
faz referência à publicidade, às propagandas tidas como enganosas.
Oh, eu costumo acompanhar, porque ora bolas se eu sou
assinante do jornal tem que ler né? [risos] Então agora eu tô
procurando não ler sobre essas violências, porque não adianta,
infelizmente é muito difícil, não tem mais jeito não. Porque
imagina deixaram chegar a um ponto tal que tá muito difícil.
(recepção UQ2, oncologia 04)
Agora com relação aos outros programas, referente a plano de
saúde, eu sempre ouvi falar de queixas, pessoas reclamando,
sobre... propagandas enganosas, se o plano promete isso,
promete aquilo e no final das contas não cumpre e a pessoa tem
que perder tempo, gastar dinheiro, PROCON. (recepção UQ2,
saúde mental 02)
Eu sei que vocês não tão dentro da televisão, mas eu queria que
vocês destacassem porque eu tenho um pouco de conhecimento,
110
mas tem muita gente que não tem. [...] Porque informação nunca
é demais. (recepção UQ2, saúde da mulher 03)
No caso dos UQ1 a ambivalência está mais presente, expressando-se até
como conflito: se de um lado eles se sentem esperançosos e acham positivo o
que assistiram na oficina, também se sentem ameaçados pelo modo como a
mídia expõe o judiciário. No entanto, é necessário destacar que este
sentimento de ameaça pode ser bem menor quando o indivíduo do campo
jurídico tem relação mais amigável com a mídia, o que pode denotar também
certo interesse pessoal/profissional na visibilidade que a mídia lhe oferece.
[Que sentimento um usuário pode ter ao ver essa matéria?]
Esperança, credibilidade. O que acontece. O poder judiciário, por
exemplo, a gente sofre muito. [esperança, credibilidade no poder
judiciário?] não, não, no sistema, no sistema. Aí eu dou um
exemplo do poder judiciário. Muitas vezes a imprensa, parece
questão política, ela pega o judiciário pra questionar e bater. Tudo
bem. Passa ao usuário que o sistema judiciário é moroso, não
funciona, o poder judiciário especificamente, que as decisões não
são cumpridas, uma série de aspectos negativos. Quando
acontece alguma coisa de positivo isso não é noticiado, você não
vê no jornal, entendeu? (recepção UQ1, juiz 01)
Então, pra não depender disso também [da assessoria de
imprensa do MP], ainda mais porque eu sou procurado
diretamente pela mídia, eu mantenho meus canais abertos. Os
outros promotores com a imprensa, desligam, não querem falar,
entendeu? Geralmente existe uma resistência compreensível
porque jornalista é chato, liga toda hora, atrapalha e tal. Então as
pessoas não querem ter essa disponibilidade, mas eu acho que é
importante. Então acabei que meu celular todo mundo, todo
mundo liga. Às vezes é chato, né, porque atrapalha mesmo, mas,
enfim, por outro lado, me livro de depender dessa assessoria de
imprensa. (recepção UQ1, promotor de justiça 02)
111
3.5 Mídia pode afetar o cotidiano do serviço ou do acesso ao direito e à saúde, mas não necessariamente conduz à ação jurídica
A mídia parece ser algo que afeta UQ1 e UQ2 em seu cotidiano. Para o juiz e
para o promotor, o modo como a mídia pode afetar seu cotidiano profissional,
se relaciona com os aspectos políticos atribuídos à comunicação, de modo
amplo. Ou seja: a mídia pode ser vista como uma instância que disputa e
acaba prejudicando muito as instâncias jurídicas ou como um setor que limita o
que é divulgado sobre questões jurídicas, a partir de comprometimentos ou
concepções políticas próprias.
Na verdade, o MP deveria fazer isso [trabalhar com a mídia]
independente de qualquer coisa. Deveria ter, como tem, uma
assessoria de imprensa pra tomar conta dessa parte, da relação
dos promotores com a mídia. Mas o órgão de assessoria de
imprensa aqui se tornou um órgão muito político, no sentido de
divulgar as iniciativas do procurador geral ou das coisas que ele
entende importante. Então apesar da minha ser uma das
promotorias mais atuantes de todo o MP, nenhuma ação,
conquista, (...) você vai achar divulgado oficialmente, ou seja, pela
assessoria de imprensa. (recepção UQ1, promotor de justiça 02)
Hoje nós temos um correio internet, como o Orkut, só que interno
dos magistrados. E o presidente da associação mostrando, teve
um determinado jornalista que eu esqueci o nome, senão eu
falaria. (...) dias atrás [o jornalista] sentou o sarrafo no judiciário. E
logo em seguida ele foi, a ex-esposa dele foi viajar com as duas
filhas e o padrasto, atual marido. Não levaram documento das
meninas, não levaram autorização do pai pra embarcar. (...) Ele
(...) foi até o fórum (...), foi atendido prontamente, apresentou lá a
justificativa, mostrou o que tinha. O juiz deu uma decisão e ele
conseguiu embarcar. Esse mesmo jornalista que malhou o
judiciário não escreveu uma linha “ó, funciona o judiciário”.
(recepção UQ1, juiz 01)
112
Por mais que haja uma exposição freqüente na mídia a respeito do que fazer
na justiça em caso de prejuízo pessoal, isto não significa que os usuários dos
planos de saúde sejam motivados a tomarem atitudes efetivas. A UQ2 de
oncologia, por exemplo, embora tenha passado por situação de rescisão do
contrato por parte do plano de saúde, não agiu, apesar de ter ficado
“aborrecida”. O motivo dado por ela encontra-se em seu próprio contexto: já
tinha outro plano. Isto pode sugerir que as motivações para entrar com
determinada ação contra planos de saúde parecem ser levadas adiante em
função especialmente da falta de opções. Ou seja: quando não há a
possibilidade de o usuário se valer de nenhum outro recurso além da ação
judicial. Como diz o próprio juiz, “ninguém vem ao judiciário se não tem
problema”. Neste caso, porém, é quando parece tratar-se de um problema cuja
solução só é apontada na direção do judiciário, já que não há recursos
financeiros, de diálogo, de negociação, nem contratuais que possam resolver a
situação. Isso se justifica em parte pela comparação entre o que esta paciente
diz que faria – agiria, procuraria defender seus direitos etc. – com o que
realmente fez quando sofreu prejuízo por parte do plano.
Pode-se até supor que, no caso da paciente de oncologia, a não-ação por parte
dela se deve ao desconhecimento à época do acontecimento, já que em
situação seguinte (do imposto de renda) ela resolve agir. Contudo, à época do
problema relatado ela já tinha usufruído de decisões judiciárias coletivas acerca
do aumento do valor dos planos de saúde, o que, por esta ocasião vinha sendo
amplamente divulgado através dos meios de comunicação – foi na época em
que se discutiu muito o aumento dos planos de saúde e uma mudança nos
modelos de contratos que eram feitos até então.
Já aconteceu comigo um caso há muitos com um plano de saúde,
(Medicina de Grupo), um caso de ter um aumento muito grande.
Houve caso na justiça e aí o juiz, quem cuidou do caso disse o
seguinte: que aquele consumidor, aquele que era do plano e não
aceitava aquele aumento, que ele podia continuar pagando sim
pelo valor da época, e eles teriam que aceitar esse pagamento.
Tanto que todo o mês era eu e minha mãe. Nós íamos lá e tinha
113
uma fila própria pra quem não concordou com o aumento e nós
pagávamos o valor que tinha que pagar. E ficamos assim um bom
tempo. Até que um dia eu recebi uma carta do plano em que eles
não estavam mais interessados com nós fossemos associados ao
plano [riu], que estavam se sentindo prejudicados né?
[pergunta-se: e o que a senhora fez?] Na hora eu fiquei
aborrecida, mas eu não procurei nada, porque eu de qualquer
jeito eu tenho plano, né? Porque o plano militar, você não pode
abdicar desse: é obrigada a pertencer ao plano deles [(Medicina
de Grupo)], e minha mãe era dependente do meu marido. [...] Eu
não dei muita importância porque eu tinha outra cobertura. Mas se
eu não tivesse? Eu tinha que procurar uma solução. (recepção
UQ2, oncologia 04)
A partir deste quadro, observa-se que recorrer à engrenagem jurídica significa
ter que confrontar uma série de transtornos tais como: ter mais gastos tanto
financeiros como do próprio tempo disponibilizado no processo; lidar com a
demora da justiça, transtornos diversos, em relação aos quais os indivíduos
parecem optar apenas quando não há realmente nenhuma outra opção.
[Vê soluções para problemas vistos nos vídeos?] Acho que a
saúde tem jeito sim, acho até que é mais fácil que do consumidor.
Porque, por exemplo, tem aquele que paga e aquele que não
paga, os que vão pra hospitais públicos e hospitais particulares.
Então tem essa divisão. Mas acho que é bem mais fácil porque
você que tem plano, é necessário, é bem mais fácil recorrer, né?
Mas pro consumidor não é tão assim, porque se você não provar
que o aparelho estragou, que você comprou novo, e aquela
burocracia toda, acho que é bem mais difícil. Acho que a situação
do consumidor ele mostra meio encabulado. Porque se você não
souber como recorrer, você não vai ganhar com nada. (...) Na
saúde é mais fácil.
[quando você fala na diferença entre saúde e consumidor, na
saúde você inclui tanto a área privada quanto a pública?] É. (...)
Mas quem tem um plano é um consumidor também. O
114
consumidor tem todos os direitos tanto na parte de
eletrodomésticos, mas em geral, saúde, moradia, em tudo isso.
Realmente se torna consumidor pra tudo, não só no direito [talvez
quisesse dizer, na saúde], mas em geral. (recepção UQ2, saúde
da mulher 03)
3.6 Confiança no “sistema”
Para UQ1 e UQ2 há um elevado nível de confiança no sistema em geral. O
sistema aqui é visto como tudo o que de alguma forma pode propiciar ao
usuário uma efetividade em relação ao exercício de seu direito à saúde no
contexto da saúde suplementar: sistema médico; sistema mediático, ligado à
fidedignidade das informações divulgadas e à suposta função social da mídia;
sistema jurídico; sistema de saúde suplementar, proposto no modelo de
contrato.
No entanto, esta confiança fica mais evidenciada em relação à justiça e à
medicina, em particular no contexto das notícias utilizadas neste estudo, ou
seja, na fala de fontes utilizadas nas reportagens. No caso da confiança
expressa na fala de indivíduos pertencentes ao campo jurídico o que se
observa é certa defesa de suas posições no campo, assim como do próprio
campo em que atuam.
[sobre o que foi dito na reportagem] Achei interessante [riu], achei
positivo. Achei positivo pelo conteúdo das informações. Volto a
repetir: isso dá um estímulo. Porque se a pessoa faz a matéria e
esse estímulo não é alavancado, então não gerou nada. E esse
tipo de matéria gera. Então aquela pessoa que tá em casa e vê
outras pessoas que foram ao PROCON “Não, olha, vim aqui e
consegui, minha geladeira pifou, eu vim aqui e me deram uma
nova. Pô, a minha também pifou, vou lá também”. Então é esse
tipo de coisa que faz com que a pessoa se movimente. (recepção
UQ1, juiz 01)
115
Então eu acho que o trabalho da mídia é fundamental, um
trabalho muito importante. Eu falo (ou não falo?) que se não fosse
a mídia nosso trabalho não se transformaria em realidade.
Primeiro que o MP não é o titular do direito, não é dono do direito.
A gente vai à justiça defender o direito da coletividade. Então, se
a coletividade não souber do resultado, como é que ela vai poder
exercer aquele direito? Como é que ela vai poder denunciar que a
decisão, que o direito tá sendo violado? Então a mídia cumpre
esse papel de divulgar a conquista. (recepção UQ1, promotor de
justiça 02)
Ao mesmo tempo, a confiança pode dar lugar a uma sujeição, onde o usuário
se vê como alguém que se encontra à mercê do contrato, fora de um sistema
de tomadas de decisões para além da própria opção de compra do serviço.
Este aspecto tenciona com a possível relação de confiança que foi ressaltada
no primeiro parágrafo deste item. Paradoxalmente, esta sujeição parece
colocar em xeque a confiança de UQ2 na eficácia do contrato como ferramenta
de exercício do direito para o contratante. Neste âmbito, são ressaltados
aspectos como: o tamanho das letras do contrato; a falta de participação do
usuário nas determinação das cláusulas que deve concorda em assinar; nas
mudanças deliberadas sem que ele necessariamente concorde; na falta de
opção do usuário que, devido a um sistema de saúde pouco eficaz, conduz o
indivíduo a contratar um plano de saúde.
Na conjuntura de hoje, pelo menos para que se tenha um bom
atendimento médico, não é suplementar, não é uma opção de a
pessoa ter um plano de saúde. (entrevista promotor)
[Lembra da reportagem, entrevista do diretor da ANS] Mas isso
infelizmente todos os planos são assim, né, o que a pessoa quer
realmente nem sempre é possível, né? [refere-se à carência que
tem exames caros, que precisam da carência, resposta dado pelo
entrevistado]. E você tem que aceitar, não se aceita por prazer
nem por gosto, a lei deles é essa! Você pode reclamar sobre o
que tá proposto e eles não cumprem. Mas se eles têm razão
116
quanto a tanto tempo pra consulta etc. ou você aceita ou nem
entra no plano, né? (recepção UQ2, oncologia 04)
Há que se considerar que a confiança parece se dar também a partir da
mediação. Observa-se que os meios de comunicação parecem ter um papel
importante na confiança ou não que se tem no sistema, mas existem outras
instâncias que desempenham este papel de forma tão significativa quanto. Ou
seja: lê-se no jornal ou vê-se na televisão sobre o sucesso de se entrar na
justiça ou que os planos de saúde não cumprem o que prometem cumprir; fala-
se em propagandas enganosas; alguém disse que entrou na justiça e seguiu
este ou aquele caminho; informa-se um parente sobre tal informação; o juiz
“sabe” pessoalmente da idoneidade de certo empresário etc.
Contudo, esta mediação pode ser vista como “insuficiente”, em particular na
televisão ou em certas emissoras. Assim, é uma confiança ou não atribuída ao
desconhecimento ou à ignorância acerca do sistema.
A rede de televisão da qual se colheu os vídeos é sempre muito
superficial... [pausa] Então é interessante porque abre ao usuário
uma expectativa que ele não tinha. Então aquela pessoa que tá
em casa e vê uma reportagem dessas [que foi apresentada na
oficina] se sente estimulada a ir a um PROCON, defensoria
publica, a procurar um advogado, enfim. Então nesse aspecto é
muito interessante, mas ela não vai no âmago da questão. Porque
o plano de saúde tem problemas? [Mídia] tem que ir mais a fundo,
tem que buscar contratos, buscar as cláusulas, questionar os
lucros. O seguro no Brasil é um ramo de altíssimo lucro. Na
verdade a idéia de seguro não era pra gerar tanto lucro, gerar
lucro sim como qualquer outra atividade, mas não tanto. [...] a
idéia de risco não é passada pra população. (recepção UQ1, juiz
01)
Portanto, a mediação pressupõe certa complexidade nas relações constitutivas
entre comunicação, cultura e política, tal como Martin-Barbero destaca (2001,
p. 15-6). Neste sentido, confiança refere-se a um jogo entre
confiança/desconfiança que se vincula a um universo de referências – e até
mesmo na falta de referências –, ligadas aos contextos dos sujeitos envolvidos,
117
seus lugares na sociedade, seus conhecimentos, seu acesso às informações,
interesse pessoal e relações interpessoais.
118
4 ITINERÁRIO TERAPEUTICO – LC ONCOLOGIA Este foi o ITINERÁRIO que apresentou maior riqueza de material, pois foram
realizadas cinco entrevistas e a dois dos entrevistados foi aplicada a oficina de
recepção. Três entrevistados eram pacientes com câncer, usuários de planos
de saúde (UQ2). Contudo, uma das entrevistas foi incompleta (UQ2a), com
outra entrevistada (UQ2b) foi aplicada a oficina e a última (UQ2c) entrou com
um processo contra o plano de saúde. A quarta entrevista foi realizada com um
médico oncologista e a quinta com um juiz que deliberou acerca do processo
de UQ2c (UQ1). Nesse sentido, parece ser a linha de cuidado em que mais
podemos aprofundar nossa análise. Deve-se ressaltar que a análise deste
ITINERÁRIO tem como perspectiva o campo jornalístico ou a comunicação,
justamente pela riqueza do material colhido, cuja referência mais significativa
vincula-se ao estudo de recepção realizado.
Inicialmente destacamos uma particular vulnerabilidade dos UQ2 que
necessitam de atendimento médico neste setor. Por mais que muitos tipos de
câncer apresentem tratamento eficaz, o que permite até mesmo sua cura, por
parte dos pacientes entrevistados existe certa dúvida quanto a esta eficácia.
Isto se agrava quando o plano de saúde se interpõe no acesso desses
pacientes ao tratamento, às vezes impedindo-os e causando prejuízos à saúde.
A UQ2 de oncologia 05 foi muito resistente em participar da pesquisa, pois
temia que isto viesse a prejudicá-la. Segundo ela, o plano de saúde havia agido
com má-fé durante seu tratamento de câncer. O plano deixara de enviar os
boletos para pagamento, mesmo diante de reclamação da paciente que os
boletos não eram enviados. Ela sabia que após dois meses sem pagar o plano,
segundo o contrato, eles teriam direito a cancelar o serviço. Seu irmão
intercedeu por ela, foi até a administração do plano e conseguiu resolver a
questão. Ainda assim, temia que sua identificação ou declaração gravada pelos
investigadores desta pesquisa acabasse “vazando” e o plano tomasse
conhecimento de sua reclamação. Ela temia uma retaliação por parte da
empresa. Para ela, isto não convinha naquele momento, já que estava às
vésperas de realizar cirurgia.
119
A UQ2 de oncologia 04 não teve qualquer problema com o atual plano de
saúde em relação ao câncer, que atingiu seu pâncreas. Aliás, seu caso era
atípico também em relação ao tratamento. Apesar de fazer quimioterapia, não
apresentava qualquer efeito colateral. Contudo, a paciente é espírita e também
vinha fazendo tratamento espiritual, no qual disse ter muita fé. Apesar dos bons
resultados que vinha tendo, este último aspecto denota certa desconfiança
quanto à total eficácia da medicina tradicional.
Mas é muito válida aquela força de vontade dela [paciente com
câncer que aparece na reportagem apresentada], aquela fé,
confiança na medicina, que a gente nota que tá cada vez mais, tá
evoluindo muito. A parte espiritual, não, tá regredindo muito, não
tá acompanhando a parte das descobertas. (recepção UQ2,
oncologia 04)
Já a UQ2 de oncologia 01, que entrou com um processo para obtenção de
medicamento para seu tratamento, o receio chegou a se constituir como não
realização do tratamento, tal como seu médico havia prescrito. Neste caso, foi
identificado dano real a sua saúde. Na entrevista, a filha desta paciente foi
quem mais participou, já que sua mãe, com câncer no cérebro, teve algumas
seqüelas da cirurgia recentemente realizada. Segundo ela:
O oncologista disse que se ela não tomasse essa medicação, que
seria melhor pra ela, não precisava tomar mais nada.
Como conseqüência, dentro da tentativa de contato com a operadora, a
resposta fornecida pela auditora da operadora foi no sentido de a usuária falar
com o médico para “prescrever qualquer outra quimioterapia venosa”. Sem
vislumbrar solução, o médico, a pedido da usuária, receitou outro
medicamento, mais barato, para o tratamento do câncer. Tal como esperado, a
mudança do medicamento não levou aos resultados necessários para a cura,
funcionando “razoavelmente bem, mas não o suficiente”. A recusa da
operadora levou a usuária a fazer três cirurgias para retirada do câncer,
embora cobertas integralmente pela operadora.
Estudo de recepção com UQ2
120
A ausência de linearidade da recepção fica evidente nas múltiplas referências
às quais a UQ2 de oncologia 04 cita durante a oficina de recepção. A paciente
se considera uma pessoa informada, que sabe como procurar a informação,
caso seja necessário. Ela é assinante do jornal mais vendido no Rio de Janeiro
e diz que o lê diariamente. Afirma ser leitora assídua da coluna “Defesa do
Consumidor”, além de assistir aos programas de notícias na televisão.
Além disso, cita outras fontes pessoais, tais como um advogado que é cunhado
de sua filha; problemas vividos com outro plano de saúde; crença religiosa que
surge com alternativa em paralelo ao tratamento médico que segue; acesso
atual a outro plano de saúde; familiares. Todos vão se constituir em sua fala de
modo a explicitar o que pensa ou sente a respeito do que viu nas reportagens
apresentadas.
Seu interesse pela informação também é explicitado, em particular, nos
momentos em que, de alguma forma, se inclui como consumidora e cidadã. Um
exemplo é o período de declaração do imposto de renda. No entanto, se diz
muito afetada por notícias sobre violência e indignada com a atual situação da
saúde pública no Brasil. Por isso, prefere não ler ou saber sobre alguns fatos
divulgados, que apenas ratificam certo estado de descontrole em relação ao
que é da ordem do público, apesar de citar diversos exemplos a esse respeito.
É justamente nesse âmbito que ela também expressa sua ambivalência em
relação à mídia. Todavia, de modo geral, parece reconhecer a validade das
informações divulgadas nos meios de comunicação.
Para esta UQ2 a mídia pode afetar seu cotidiano na busca por tratamento.
Narra uma situação em que houve aumento excessivo do plano de saúde que
ela e sua mãe utilizavam. Apesar de não ter entrado na justiça, porém, tomou
conhecimento de decisão judicial que veio a beneficiar coletivamente todos os
usuários de seu plano de saúde, decisão esta que lhe permitia pagar um valor
inferior ao que o plano tentava impor a seus usuários. Algum tempo depois, o
plano enviou-lhe uma carta comunicando seu desligamento e o de sua mãe, já
que não estavam mais interessados que as duas continuassem associadas.
Apesar de sentir-se aborrecida com o fato, decidiu não procurar a justiça nem
outra instância, de modo a fazer valer seus direitos de beneficiárias do serviço.
Sua justificativa para sua não-ação foi a de que tinha outro plano, o qual
121
obrigatoriamente mantém até hoje, já que ela e sua mãe sempre foram
dependentes de seu marido, ex-militar. Percebeu-se que não foi por
desconhecimento que esta UQ2 não entrou na justiça, mas em função de o
plano não se tratar de sua única solução de atendimento às suas demandas
em saúde.
Existe confiança no sistema por parte da paciente, tanto no âmbito da mídia,
como da medicina e da justiça. Mas, ela ressalta a existência de aspectos, no
nível do contrato entre usuário e plano de saúde, aos quais é preciso se
sujeitar, caso queira usufruir os serviços de saúde suplementar. Neste sentido,
percebe-se que esta relação de confiança pode ser ameaçada. No entanto,
destaca o sucesso de pessoas que entram na justiça contra os planos e
conseguem ganhar as ações. Assim, ela expressa confiança na justiça em
relação à defesa dos direitos.
122
5 ITINERÁRIOS TERAPÊUTICOS - SAÚDE DA MULHER A despeito da pesquisa sobre a dimensão do direito ter sido realizada através
de uma análise transversal sobre as quatro linhas de cuidado pesquisadas
(saúde da mulher, saúde mental, oncologia e saúde bucal), a linha de cuidado
de saúde da mulher apresentou maior quantidade de material, haja vista o
grande número de entrevistas com beneficiárias desta linha de cuidado (foram
cinco entrevistadas, uma UQ1 e as demais UQ2), além da riqueza de conteúdo
de tais entrevistas. Por essa razão, é possível sistematizar algumas questões
importantes verificadas na análise desta linha de cuidado.
Nesta linha, assim como nas demais, foi verificado um alto grau de
desconhecimento de direitos por parte das beneficiárias, fato que faz com que,
muitas vezes, estas manifestem um grande receio em não serem atendidos
pelas operadoras. Esse receio em relação ao atendimento prestado reflete uma
desconfiança nos planos que é causada, em parte, pelo desconhecimento de
direitos por parte dos usuários que os leva a temer o não atendimento em caso
de uso excessivo, por exemplo.
[...] Porque se realmente eu for precisar o único jeito vai ter que
ser usar o convênio, aí nisso até eu tenho medo né, de não
aceitar porque tem lugares assim que de última hora você precisa
e tem mesmo medo, assim, de não aceitarem e ter que ficar
correndo atrás de hospital,de clínicas, isso eu acho que é ruim.
[...] Entrevistador: mas esse medo é em relação ao plano?
Entrevistado: é, de não deixarem usar o plano, entendeu, de
colocarem taxas elevadas, assim, porque muitas das vezes, eu
sei que tem uma taxa que é cobrada, os funcionários pagam é
descontado no contracheque, agora eu tenho medo, assim, deles
quererem aumentar muito a taxa e quer dizer, isso prejudicar o
funcionário entendeu, então quer dizer ele ter que usar o dinheiro
dele com outras necessidades e não ter como recorrer ao plano.
(usuária UQ2 saúde da mulher 03)
123
Este desconhecimento é aproveitado pelas operadoras como estratégia para
reduzir custos. Isto porque, através da vinculação da imagem do consumidor a
uma imagem de desperdício estas operadoras tentam “conscientizar” o
consumidor sobre a utilização “correta” do plano, sem desperdício com
procedimentos desnecessários. Existem, inclusive, algumas operadoras que
distribuem uma espécie de guia aos beneficiários alertando sobre como utilizar
o plano. Em que pese a necessidade de se evitar uma utilização
desnecessária, até como forma de proteger o beneficiário, este guia acaba
funcionando como limitador de acesso.
É também, por estar usando muito, até aqui no guia tá falando
também que a gente não deve usar muito né, por ocasiões
desnecessárias, mas o medo assim é de questões, muitas vezes
eu vejo gente assim que correm atrás e de tanto elas correrem
atrás elas desistem, eu tenho medo de tanto correr atrás desisti
também, falar “aí chega, não quero, prefiro ficar doente do que
ficar correndo atrás”, entendeu? (usuária UQ2 saúde da mulher
03)
Importante ressaltar, neste ponto, a contradição que surge deste tipo de
conduta já que, se a operadora contrata profissionais médicos nos quais ela
confia, teoricamente não haveria necessidade de limitar acesso aos usuários,
já que os profissionais seriam gabaritados para atuar somente em casos de
necessidade. Este fato, por si só, impediria uma utilização excessiva por parte
dos usuários.
No entanto, este cenário de desconhecimento de direitos se modifica um pouco
quando a questão envolve consumo em comparação com direitos de cidadania,
por exemplo. Neste caso, apesar do desconhecimento, verifica-se uma maior
informação nas questões relacionadas ao mercado de consumo.
Entrevistador: o que você entende por direito à saúde?
Entrevistado: direito à saúde... não sei
Entrevistador: direito do consumidor?
124
Entrevistado: direito de ser bem atendido, direito de vc ter,por
exemplo, uma coisa, direito de ser bem atendido, uma coisa
assim... (usuária UQ2 saúde da mulher 02).
Em relação à atenção integral, foi percebido que o direito à saúde é
freqüentemente associado a vínculo e cuidado na prestação dos serviços de
saúde. Essa associação pode ser observada na fala de uma das entrevistadas
quando esta afirma que direito à saúde é “tratar bem”.
Quando o médico é atencioso, trata o cliente com cuidado, com
carinho. Tem muito médico que é muito barra pesada, muito
estúpido. Só tive uma durante esse tempo todo na (Medicina de
Grupo). Ignorância, não. Direito a saúde é tratar bem. (usuária
UQ2 saúde da mulher 04).
Entretanto, em que pese esta visão de direito e atenção integral manifestada
pelas beneficiárias, pelo lado das operadoras verificou-se uma visão
extremamente fragmentada da saúde e da atenção à saúde, sendo privilegiada
uma visão que toma como ponto principal a doença e não o paciente.
Como forma de exemplificar algumas destas questões, reforçando aquilo que
foi percebido no campo, é possível reconstruir um pouco da trajetória de uma
paciente que, ao ser operada para a retirada de um mioma, sofreu uma
perfuração na bexiga. A partir daí, inúmeros fatos que aconteceram em seu
itinerário terapêutico são de peculiar relevância para demonstrar algumas das
afirmações acima.
No que tange ao vínculo, podemos destacar o procedimento adotado pelos
médicos após o erro médico que perfurou a bexiga da usuária. Nesta situação,
nenhum médico queria se responsabilizar pela paciente, sem demonstrar
qualquer preocupação com a sua saúde. A maior preocupação no caso parecia
ser a solução de um “problema” o qual a paciente havia se tornado.
Eu procurei várias vezes ele. Ele marcava. Eu ia numa semana
ele marcava outra semana. Ele me atendia. Mexia só, assim: _
“Ah! É normal! É assim mesmo!”
Fiquei 3 meses nessa batida. Aí ele marcou pra mim ir lá. Eu
voltei lá. Voltei várias vezes. Fui lá várias vezes. Aí eu cheguei lá
125
ele... tinha sido mandado embora. (usuária UQ2, saúde da mulher
01).
Não. Ninguém quis... ninguém quis operar ela (...).
O médico não quis... o médico não quis atendê-la.
É... teve um médico que chegou nela e falou assim: _ “Ah! Ou
você vai pra lá ou se não você morre aqui mesmo. O seu caso é
de morte”.
(...) internou ela novamente, aí deixou ela 15 dias lá, sem resolver
nada. Só fazendo exame. Nenhum médico queria colocar a mão
nela. (filha da usuária UQ2, saúde da mulher 01)
Ainda nesta visão que considera o paciente como problema, foi possível
constatar uma extrema mercantilização da relação, com a maior preocupação
versando sobre o pagamento pelo serviço. O caso chega ao absurdo de existir
uma devolução dos valores pagos como forma de se resolver o “problema”,
sem, no entanto, mexer no quadro de saúde da paciente.
15 dias lá. Arranquei ela do hospital. E... aí eles fizeram um
acordo comigo. Me deram uma parte do dinheiro. (filha da usuária
UQ2, saúde da mulher 01).
Como exemplo deste tipo de tratamento mercantilizado, é possível observar na
transcrição do trecho da entrevista de uma usuária a maior preocupação dos
profissionais, sentida pela usuária, em receber o pagamento sem se importar
muito com a qualidade do serviço ou com eventuais explicações ao usuário
sobre sua cirurgia.
Falou que era uma operação boba. Queriam mesmo o dinheiro.
Ela chegou lá, na mesma hora veio a maca correndo, levou ela
pra operar. Foi uma coisa assim, tão rápida. Você não tinha nem
noção, sabe? Foi... foi dia 2 de janeiro que ela se internou. Tá? O
médico tava com tanta ganância em pegar o meu dinheiro... que
só foi levando. Parecia assim que tava levan... levando um
cadáver assim pra dento, sabe? Queria o meu dinheiro. Tá?
(usuária UQ2, saúde da mulher 01).
126
Essa mercantilização também é sentida na fala de outras usuárias, quando
estas associam muitas vezes direito à saúde ao pagamento, demonstrando
muita resignação nos momentos em que não possuem recursos para pagar
pelos melhores planos ou por coberturas mais amplas destes planos.
O meu é o mais barato de todos ...eu não tenho direito a nada.
(usuária saúde da mulher 06).
Além desta mercantilização, verificou-se também uma visão fragmentada da
saúde, preocupada apenas com a solução de “problemas” imediatos sem
atentar para uma visão mais integral do usuário que levasse em consideração
não somente a doença, mas, principalmente, o paciente.
Ela precisava também de..., de nós duas precisávamos na época
de uma ajuda até de psicólogo. Até de psicólogo, sabe? Porque
chegar em você e falar assim: “Ah! Você vai morrer! Não sei o
quê! Não sei o quê!”. (filha da usuária UQ2, saúde da mulher 01)
Por fim, em relação ao poder judiciário, foram observadas muitas críticas
manifestadas principalmente em relação a lentidão dos processos judiciais e
comprometimento da justiça com o poder econômico, o que leva a uma
desconfiança na atuação do campo jurídico como forma de garantir o direito à
saúde.
Demorando. Muito demorado. Muito, muito, muito. Acho que é,
assim, uma situação grave dela, tá? Pra idade que ela já tem. E tá
muito lenta a justiça.
Entrei na justiça. A justiça nossa é lenta e... e acordo não existe!
Aqui no nosso país só quem tem dinheiro mesmo. Só com
dinheiro que se resolve tudo. (filha da usuária UQ2, saúde da
mulher 01).
127
6 CONCLUSÕES
A partir da análise da dimensão do direito identificou-se que o campo jurídico
funciona como espelho do campo da saúde suplementar. Isto significa que ele
atua como recurso avaliativo externo à organização do mercado da saúde
suplementar, no sentido de avaliar a prática da integralidade em saúde. Como
exemplo, ressaltamos a questão da cobertura de medicamentos, pois, algumas
vezes, determinados medicamentos são cobertos na capital pelas operadoras e
não são cobertos no interior. Assim, o que representa uma recorrência de
ações judiciais propostas em face das empresas, pode influenciar na atuação
destas e na sua definição daquilo que é direito dos beneficiários.
Ainda em relação ao campo jurídico, foi possível identificar uma influência
direta dos campos político e econômico na definição daquilo que é direito. Esta
definição passa pela análise de profissionais jurídicos que, muitas vezes,
sofrem essa influência ao dar seu veredicto político, o qual revela o conteúdo
prático da norma. Tal influência passa também pela própria disputa interna no
campo pelo monopólio de dizer o direito, que podem ser exemplificadas através
das disputas entre magistrados, promotores e algumas críticas destes às
associações coletivas de defesa de direitos e sua atuação política.
Também foi observada uma prevalência de argumentações por um direito mais
formalista por parte das operadoras. Estas argumentações se escoram na
necessidade de segurança jurídica nas relações. Elas têm a ver com o que
Bourdieu (2005) afirma quanto à segurança jurídica, a qual seria uma luta para
que o porvir seja a imagem do passado, com a manutenção do poder dentro do
campo.
Outra questão percebida refere-se à ausência de participação dos beneficiários
dentro dos canais das operadoras no momento da contratação e no momento
da definição conjunta do cuidado. Essa exclusão dos usuários no debate se
apresenta como elemento que complica ou impossibilita a construção e
reconstrução social da integralidade em saúde. Neste ponto, dentro da saúde
suplementar, é possível interpretar essa ausência de participação como uma
redução do cidadão ao consumidor, já que este participa apenas do mercado
128
como objeto sem discutir a forma de sua participação. Resta-lhe, então, o
consumo individualista como forma de obter um direito de cidadania.
Ainda aqui, merecem destaque as constantes interferências das operadoras no
itinerário terapêutico dos beneficiários, muitas vezes como forma de redução
de custos operacionais. Foi possível perceber como as operadoras pretendem
“jogar a culpa” de sua possível dificuldade financeira sobre o beneficiário,
acusando-o de usar excessiva e desnecessariamente o plano. Neste caso,
verificou-se como o campo jurídico se posiciona de forma importante de modo
a inibir e coibir tais interferências, oferecendo maior liberdade aos usuários.
Entretanto, negando uma visão maniqueísta, é preciso ressaltar a existência de
pressões econômicas de grandes laboratórios tencionando os médicos a
adotar novas tecnologias, muitas vezes com necessidade duvidosa além do
fato de que existem operadoras sem finalidade lucrativa, o que faz com que
esta conclusão deva ser de uma certa forma relativizada à luz dos casos
concretos.
Observou-se também como a influência do campo jurídico é exercida também
enquanto oferta de participação restrita aos beneficiários. O campo se mostrou
extremamente fechado e pouco poroso à participação direta, que deve ser
sempre mediada pelos profissionais. Esta mediação, no entanto, coloca
diversos obstáculos ao exercício efetivo de direitos, já que estes precisam
sempre ser traduzidos e criados pelos profissionais sem a participação dos
profanos.
Neste contexto, verifica-se a necessidade de ampliação dos espaços públicos
(ARENDT apud PINHEIRO, 2005) para que a criação, efetivação e garantia
dos direitos não fiquem confinadas aos profissionais do campo jurídico, o que,
em última análise, permitiria também que a avaliação externa que o campo
jurídico faz pudesse ser também publicamente discutida. Ainda no campo
jurídico, é importante asseverar a noção de Gramsci (apud PINHEIRO,2005)
de que este direito não se reduz a instrumento de controle social nem de
garantia de mercado, mas antes, deve se tornar um local de mudança social.
Assim, este campo deveria admitir a participação da sociedade civil como uma
de suas fontes, residindo aí a fundamentalidade de sua abertura.
129
Além disso, foi possível perceber os enormes problemas advindos da tentativa
de reduzir as questões de saúde a critérios puramente objetivos e
quantificáveis (SIMMEL, 1986), sem uma perspectiva que leve o usuário em
consideração como sujeito principal da prestação do serviço de saúde. Nesse
âmbito, ficam patentes os abusos a que os usuários dos planos estão sujeitos
para que a lógica de mercado seja priorizada em detrimento do cidadão. Dessa
forma, determinam-se os itinerários terapêuticos, negam-se estratégias de
tratamento e, muitas vezes, a relação médico-paciente fica para segundo
plano.
A saúde privada é tratada como mera troca de dádivas (MAUSS, 1974),
proporcionais entre beneficiários e operadoras, numa relação linear que
envolve pagamento e consumo do serviço. Isto dificulta a realização de uma
perspectiva integral da saúde, pois atrela o exercício do direito à saúde à
efetivação do pagamento. Essa simples troca de dádivas, sem levar em
consideração o caráter público e suplementar do serviço, pode conduzir à
“destruição” de uma das partes, notadamente a mais fraca economicamente,
tal como ocorria nas sociedades arcaicas descritas por Mauss. Essa destruição
se refere tanto aos problemas causados pela imposição de tratamentos mais
baratos aos beneficiários, como à impossibilidade financeira destes que os leva
ao abandono da saúde privada. Ambos acabam por comprometer o direito à
vida.
Uma das formas de mitigar essa pretensa proporcionalidade entre as
prestações e efetivar a integralidade é garantir uma maior participação dos
usuários e defender uma visão mais ampla e menos formalista dos contratos.
Isto seria uma maneira de levar em conta a fundamentalidade do direito à vida,
na medida em que envolve uma leitura desses contratos com base em
princípios constitucionais que interpretem suas cláusulas não apenas como
direito do consumidor. Dentre esses princípios, destacamos a “boa-fé objetiva”,
a função social dos contratos e, principalmente, o princípio da integralidade.
Como foi constatado, em muitos casos, esse tipo de leitura já é feita pelo
campo jurídico. Entretanto, sem uma possibilidade de participação política mais
efetiva dos usuários, essa discussão fica restrita a um grupo de “esclarecidos”
130
que passam a ser autorizados a decidir sobre o que é melhor para a maioria
dos beneficiários.
A partir da dimensão mídia e direito, em particular em relação à mídia,
pudemos observar que, primeiramente, não é possível estabelecer uma
linearidade entre o que é noticiado e as decisões dos usuários dos planos de
saúde e indivíduos do campo jurídico ou da saúde. Nos processos de escolha
tanto de usuários dos planos, como de profissionais, há muitas outras variáveis
significativas, tais como: relações interpessoais; histórias pessoais; contextos;
maior ou menor diversidade de opções etc. Isto não significa que a mídia não
tenha influência sobre os itinerários terapêuticos dos beneficiários na saúde
suplementar, influenciando em sua capacidade de análise e avaliação dos
cuidados e serviços prestados. No entanto, é preciso destacar que esta
influência se dá num contexto de forte interação com uma série de outros
aspectos. Ou seja: tal como afirma Orozco Gómez sobre os processos de
recepção televisiva, a mediação acontece a partir de muitas formas e não fica
circunscrita ao instante em que se vê televisão (BRITTO, 1999, p. 3).
Assim, no consultório médico, é comum que os médicos se sintam na
obrigação de estar a par do que foi veiculado e que pode levar a
questionamentos por parte dos pacientes acerca do tratamento. No MP, há os
que se valem do que é veiculado para iniciar uma ação ou se sintam afetados
pela atuação da própria assessoria do MP. Os magistrados utilizam sistemas
restritos de comunicação e discussão nos quais, entre outros temas, tratam da
visibilidade que o campo jurídico tem na mídia. Os pacientes se valem das
informações as quais têm acesso para pleitear a redução da carga de
impostos, por exemplo, além de parecerem ter o sentimento de que estão
informados, o que, por sinal, é bastante valorizado por eles. Essas foram
algumas das situações que se destacaram no estudo que fizemos.
Na mídia, em particular nos programas que tratam de planos de saúde e que
foram apresentados nas oficinas, identificou-se que há uma tendência a se
relacionar o tema com o código de defesa do consumidor. Logo, em seu
discurso, a principal fonte de reivindicações e cobranças na saúde suplementar
e o tratamento das questões apontadas se remetem basicamente ao contrato e
não a um direito à saúde, tal como defende a constituição brasileira. Portanto,o
131
discurso da mídia ratifica o que foi observado também nas entrevistas e
oficinas de recepção, ou seja, a redução do direito à ordem do consumo e à
relação contratual.
No entanto, observamos também o modo como a grande maioria dos
beneficiários e profissionais do campo jurídico exalta a mídia como instância de
grande importância no processo de construção do direito. De modo geral, não
se duvida quanto à veracidade das informações divulgadas, mas reclama-se da
insistência dos veículos em temas que podem incomodar (violência, no caso de
UQ2); omissões (informa-se pouco sobre o bom funcionamento do judiciário);
superficialidades (em particular na televisão) e direcionamento ou tendência
política do veículo.
Por esse motivo, talvez, seja comum que se cobre por uma mídia cada vez
mais presente, cobrança muito freqüente entre usuários dos planos e
indivíduos do campo jurídico. No caso destes, isso pode levar à exacerbação
de um movimento de substituição de uma função que, a princípio, pertence às
instâncias jurídicas. Contrariamente ao que parecem desejar os membros do
campo jurídico, isso reforçaria resultados de pesquisas como a de Grottero, já
citada, onde a mídia é popularmente identificada como quem mais ajuda a
fazer justiça para os brasileiros, mais até que instituições pertencentes ao
judiciário.
Constitui-se, assim, um paradoxo onde, se internamente no campo jurídico
informar é visto como a principal ferramenta de conscientização sobre a
cidadania e de constituição do direito, quanto mais se midiatiza o direito, mais
ele parece ficar restrito aos modelos interpretativos do campo em que é
produzido, ou seja, o campo jornalístico. Embora, freqüentemente, a mídia se
utilize de fontes oficiais.
Nesse sentido, no âmbito da saúde suplementar, a ênfase no código de defesa
do consumidor, além de revelar o reducionismo da cidadania ao consumo,
pode levar a uma subestimação do direito num nível constitucional. Portanto, a
dimensão da integralidade se perde e, quando muito, não é nem mesmo
sugerida como reflexão para os usuários dos planos de saúde. Este paradoxo
torna-se um problema no próprio discurso de membros do campo jurídico, que
tanto podem restringir seu esforço de conscientização da cidadania à
132
divulgação nos meios de comunicação, como a uma confusão no julgamento
que se faz a respeito da importância da informação. Isso é o que podemos ver
a seguir:
[Como MP fomenta cultura de cidadania?] Fazendo essas
pessoas entenderem que elas têm direitos, que elas tem meios de
defender esses direitos. Não só entrando com as ações, mas
recebendo as reclamações, fazendo uma investigação séria,
falando com a imprensa, falando com a sociedade e atuando. É
um papel muito importante. Agora, aos próprios promotores falta
um pouco de consciência do poder que eles têm porque minha
preocupação sempre de ir lá no fórum, explicar pro juiz o que é
importante. Tô falando isso porque pelo outro lado existem
advogados poderosíssimos. (recepção UQ1, promotor de justiça
02)
[Há participação da mídia na construção do direito?] Existe porque
a informação é sempre bem vinda. O que não pode é informação
direcionada, mas é impossível ter informação que não seja
direcionada. Os maiores meios de comunicação, todos eles
(pergunto se ele fala de direcionamento político) é, direcionam.
Mas o que acontece? Quanto mais a gente lê, menos está
suscetível a ser direcionado. Quer dizer: determinado jornal só
vai, abre aspas, fazer minha cabeça, fecha aspas, se eu não tiver
uma gama de conhecimento suficiente e que me deixe ser
conduzido. Por isso que a mídia ela é muito perigosa pra quem
tem pouco conhecimento. Quem tem somente determinado jornal
televisivo como fonte de informação, somente ele, ta mais
suscetível a ser conduzido. Isso se dá no plano não perceptivo. O
jornalismo, fiz 2 anos de jornalismo. (...) a gente aprende isso. E o
jornalismo diz “agora eu vou fazer a sua cabeça, de pouca
cultura”, e começa, e vai conduzindo de uma forma que se a
pessoa não tem estrutura de conhecimento maior acaba se
deixando conduzir, com certeza. (recepção UQ1, juiz 01)
[destaque nosso]
133
Em nenhum momento, os UQ2 exigiram ou ressaltaram a importância do
campo jurídico na resolução de problemas pertinentes aos planos de saúde. Na
verdade, houve destaque quanto à falta de atuação do governo na saúde
pública e, principalmente, exaltou-se a importância da informação veiculada
através da mídia. E, com exceção do PROCON, órgão de defesa do
consumidor, nenhuma outra instituição responsável pela defesa dos direitos foi
citada, mesmo diante de uma notícia que tratava da atuação da Defensoria
Pública.
Mais que um problema de efetividade das instâncias jurídicas, a crença na
eficácia simbólica dos media, em sua tarefa de tornar público o trabalho
realizado no campo jurídico, ou até mesmo “fazer justiça”, talvez seja um dos
reflexos da atual tendência à individualização das decisões e responsabilização
dos sujeitos em relação a sua própria saúde. A partir desta crença concebe-se
os media como instâncias que levam os indivíduos a cuidarem de si, tanto no
nível da própria saúde, como em geral – segurança, defesa dos direitos etc.
Assim, os media são considerados provedores de informação aos cidadãos e,
não raro, também são vistos como capazes de sensibilizar os indivíduos a
mudarem hábitos e práticas quotidianas diversas. As campanhas de saúde
costumam partir desse princípio (CARVALHO, 2007). No caso do direito, viu-se
o caso da pesquisa em que 84% dos entrevistados acham que os media são
capazes de fazer justiça e o discurso de um promotor do MP ao afirmar que os
media transformam o trabalho do MP em realidade. Em ambos fica a idéia de
que a assistência no nível do Estado é substituída por uma consultoria via
media, onde, ao final, cada um que cuide de si. Essa dinâmica, que envolve a
crença na eficácia simbólica dos media e visa à responsabilização dos sujeitos
em relação à saúde, no limite, poderá levar ao esvaziamento da função de
regulação dos serviços de saúde suplementar, tarefa da Agência Nacional de
Saúde Suplementar (ANS). Esse esvaziamento poderá ser identificado pela
exacerbação da informação enquanto estratégia principal de regulação,
acabando por delegar aos próprios usuários dos planos de saúde a busca da
integralidade na saúde suplementar.
134
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LISTA GERAL DO MATERIAL DE CAMPO 1. Entrevista UQ1, juiz 01 (Resende, 11/01/2007)
2. Entrevista UQ1, promotor de justiça 01 (Volta Redonda, 17/01/2007)
3. Entrevista UQ1, promotor de justiça 02 (Rio de Janeiro, 25/09/2006)
4. Entrevista UQ1, promotor de justiça 03 (Rio de Janeiro, 30/10/2006)
5. Entrevista UQ1, promotor de justiça 04 (Niterói, 12/02/2007)
6. Entrevista UQ1, defensor público 01 (Rio de Janeiro, 12/12/2006)
7. Entrevista UQ1, defensor público 02 (Barra Mansa, 22/11/2006)
8. Entrevista UQ1, funcionário Procon (Rio de Janeiro, 16/10/2006)
9. Entrevista UQ1, juiz 02 (Barra Mansa, 23/11/2006)
10. Entrevista UQ1 Oncologia 01 (Resende, 17/01/2007)
11. Entrevista UQ2, Oncologia 02 (01/2007)
12. Entrevista UQ2, Oncologia 03 (Rio de Janeiro, 18/01/2007)
13. Entrevista UQ2, Oncologia 04 (Rio de Janeiro, 22/11/2006)
14. Entrevista incompleta UQ2, Oncologia 05 (Rio de Janeiro, 22/11/2006)
15. Entrevista UQ1, Saúde da mulher 01 (Barra Mansa, 23/11/2006)
16. Entrevista UQ2, Saúde da mulher 02 (Resende, 24/1/2007)
17. Entrevista UQ2, Saúde da mulher 03 (Resende, 24/11/2006)
18. Entrevista UQ2, Saúde da mulher 04 (15/01/2007)
19. Entrevista UQ2, Saúde da mulher 05 (12/01/2007)
20. Entrevista UQ2, Saúde da mulher 06 (Barra Mansa, 23/11/2006)
21. Entrevista UQ2, Saúde Bucal 01 (18/01/2007)
22. Entrevista UQ2, Saúde Bucal 02
23. Entrevista UQ2, Saúde Bucal 03
24. Entrevista UQ2, Saúde Mental 01 (15/01/2007)
25. Entrevista UQ2, Saúde mental 02 (Niterói, 12/03/2007)
26. Entrevista UQ1, oncologista (Rio de Janeiro, 22/12/2006)
27. Entrevista UQ1, psiquiatra (Niterói, 02/02/2007)
139
OFICINAS DE RECEPÇÃO
1. Oficina de recepção UQ1, juiz 01 (Resende, 11/01/2007)
2. Oficina de recepção UQ1, promotor de justiça 02 (Rio de Janeiro, 04/12/2006)
3. Oficina de recepção UQ2, oncologia 04 (Rio de Janeiro, 29/12/2006)
4. Oficina de recepção UQ2, Saúde da mulher 03 (Resende, 11/01/2007)
5. Oficina de recepção UQ2, saúde mental 02 (Niterói, 12/03/2007)
LISTA DOS PROCESSOS ANALISADOS
Rio de Janeiro – processos consultados nos dias 14/12/2006 e 24/01/2007 Processo saúde bucal Réu: Medicina de Grupo Processo oncologia Réu: Medicina de Grupo Processo oncologia Réu: Medicina de Grupo Processo saúde da mulher Réu: Medicina de Grupo Processo saúde da mulher Réu: Medicina de Grupo Processo oncologia Réu: Medicina de Grupo Processo oncologia Réu:Coperativa Processo saúde da mulher Réu: Cooperativa Médica Processo saúde da mulher Réu: Cooperativa Médica Processo saúde da mulher Réu: Cooperativa Médica Processo Oncologia Réu: Medicina de Grupo
140
Niterói – processos consultados nos dias 12/12/2006 e 12/01/2007 Processo Oncologia Réu: Seguradora de Saúde Processo Oncologia Réu: Seguradora de Saúde Processo saúde da mulher Réu: Seguradora de Saúde Processo Oncologia Réu: Seguradora de Saúde Processo saúde da mulher Réu: Seguradora de Saúde Processo saúde da mulher Réu: Seguradora de Saúde Processo Oncologia Réu: Seguradora de Saúde Processo Oncologia Réu: Seguradora de Saúde Processo Oncologia Réu: Seguradora de Saúde Processo Ondotologia Réu: Seguradora de Saúde Processo oncologia Réu: Seguradora de Saúde Processo saúde da mulher Réu: Medicina de Grupo Processo saúde da mulher Réu: Medicina de Grupo
142
Processo saúde da mulher Réu: Medicina de Grupo Termo de Ajustamento de Conduta (Ações Civis Públicas) Réu: Cooperativa Médica Processo saúde da mulher Réu: Medicina de Grupo Processo saúde da mulher Réu: Medicina de Grupo Processo saúde da mulher Requerido: Medicina de Grupo Processo saúde da mulher Réu: Medicina de Grupo Processo oncologia Réu: Medicina de Grupo Processo saúde da mulher Réu: Medicina de Grupo Processo saúde da mulher Réu: Medicina de Grupo Processo Oncologia Réu: Medicina de Grupo Processo saúde da mulher Réu: Medicina de Grupo Processo saúde da mulher Réu: Medicina de Grupo Processo saúde da mulher Réu: Medicina de Grupo Processo oncologia Réu: Medicina de Grupo Processo saúde da mulher Réu: Medicina de Grupo Processo Oncologia Réu: Medicina de Grupo Processo saúde da mulher Réu: Medicina de Grupo
143
Processo saúde da mulher Réu: Medicina de Grupo Termo de Ajustamento de Conduta (Ações Civis Públicas) Réu: Cooperativa Médica Termo de Ajustamento de Conduta (Ações Civis Públicas) Réu: Cooperativa Médica Barra Mansa – processos consultados nos dias 16/11/2006 e 23/11/2006 Processo saúde da mulher Réu: Filantrópica Processo saúde da mulher Réu: Filantrópica Processo saúde da mulher Réu: Filantrópica Processo saúde da mulher Réu: Filantrópica Processo Oncologia Réu: Filantrópica Processo saúde da mulher Réu: Filantrópica Processo saúde da mulher Réu: Filantrópica Processo saúde da mulher Réu: Medicina de Grupo Processo saúde da mulher Réu: Cooperativa Médica Processo saúde da mulher Réu: Cooperativa Médica Processo Oncologia Réeu Cooperativa Processo saúde da mulher Réu: Cooperativa Médica
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Processo oncologia Réu: Cooperativa Médica Processo Oncologia Réu: Cooperativa Médica Processo saúde da mulher Réu: Cooperativa Médica Processo Oncologia Réu: Cooperativa Médica Processo Oncologia Réu: Cooperativa Médica Processo Oncologia Réu: Cooperativa Médica Processo saúde da mulher Réu: Cooperativa Médica Processo saúde da mulher Réu: Cooperativa Médica Processo Oncologia Réu: Cooperativa Resende – processos consultados nos dias 24 e 25/11/2006 Processo saúde da mulher Réu: Cooperativa Médica Processo Oncologia Réu: Cooperativa Médica Processo Oncologia Réu: Cooperativa Médica Processo Oncologia Réu: Cooperativa Médica Processo saúde da mulher Réu: Cooperativa Médica Processo oncologia Réu: Cooperativa Médica
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Processo saúde da mulher Réu: Seguradora de Saúde Processo oncologia Réu: Cooperativa Médica
PÊNDICE C: LISTA DOS VÍDEOS UTILIZADOS NO ESTUDO DE RECEPÇÃO
TÍTULO PROGRAMA18 DESCRIÇÃO DURAÇÃO
Defesa do consumidor
RJTV, 1ª edição
O Código de Defesa do Consumidor mudou a vida de quem compra um produto ou paga por um serviço e fica insatisfeito. Toda quarta-feira, o RJTV vai mostrar exemplos de cidadãos que lutam por seus direitos e dar os caminhos que ajudam o consumidor. Hoje vamos conhecer melhor o Procon. De 27/04/2005
2’00”
Problemas com planos
RJTV, 1ª edição
Boa parte da população se esforça para pagar um plano de saúde, na tentativa de garantir atendimento médico. Mas nem sempre isso acontece. Na coluna Direito do Cidadão, alguns problemas enfrentados por associados que fazem planos em grupo e os cuidados importantes para quem vai assinar um contrato desse tipo. De 23/11/2005
3’44”
Vitória do consumidor
RJTV, 1ª edição
Caso de pessoas que entram na justiça a partir do Código em Defesa do Consumidor De 15/03/2006
2’45”
Queixas sem fim
RJTV, 1ª edição
Na coluna Direito de Cidadão de hoje, os problemas com os planos de saúde - no Rio, só este ano, o PROCON já registrou reclamações contra 18 planos de saúde
4’05”
18 Todos os vídeos foram produzidos pela TV Globo.
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diferentes. Excesso de burocracia e desrespeito aos direitos dos clientes transformam o caminho para a saúde em uma via crucis. De 02/08/2006
Novidades prometem acabar com a dor nos consultórios dentários
Jornal Nacional
Novos tratamentos dentários sem dor. De 26/01/2004
2’21”
Vida Nova para Vanessa
Globo Repórter
Reportagem sobre Transplante de medula feito em menina com leucemia. De 14/01/2005
7’30”
Medo incontrolável
Globo repórter Caso de indivíduo com Síndrome do Pânico e Depressão. De 17/06/2005
3’19”
Esperança para mulheres com câncer
Globo repórter Caso de mulher que tinha câncer e em função de o tratamento poder levar à infertilidade, congelou seus folículos ovarianos. De 08/07/2005
3’48”
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APÊNDICE D: TRANSCRIÇÕES DOS VÍDEOS UTILIZADOS19 1- Defesa do consumidor RJTV, 1ª edição, 27/04/2005 O Código de Defesa do Consumidor mudou a vida de quem compra um produto ou paga por um serviço e fica insatisfeito. Toda quarta-feira, o RJTV vai mostrar exemplos de cidadãos que lutam por seus direitos e dar os caminhos que ajudam o consumidor. Hoje vamos conhecer melhor o Procon. Todos os dias no Procon do Rio passam, pelo menos, cem consumidores insatisfeitos. As reclamações são as mais variadas. A comerciante Gisele Souza teve problemas com uma empresa de ônibus. “Eu mandei umas mercadorias pro Maranhão pro meu filho no dia 8 de abril e me deram o prazo de 48 horas para entregar e até o momento não entregaram. Eles me disseram que eu podia esperar ou então que eu procurasse os meus direitos”, conta ela. Joel Nogueira, empreiteiro, está há seis meses brigando com uma empresa de telefonia. “A minha esperança é o Procon”, diz ele. Assim que chega ao Procon o consumidor recebe uma senha e fica cerca de 15 minutos na espera. O próximo passo é fazer a reclamação para um dos 12 atendentes. Depois disso, o Procon tem até 15 dias para marcar uma audiência de conciliação, entre a empresa e a pessoa que se sente lesada. Nestas reuniões são resolvidos 70% dos casos. O consumidor comprou uma geladeira numa loja, o produto apresentou problema, ele tentou entrar em contato diversas vezes com a empresa para realizar a troca da geladeira e não conseguiu. “No Procon nós fechamos um acordo no qual o consumidor vai receber uma nova geladeira, de modelo idêntico ao que ele havia comprado”, fala a advogada Renata Golçalves. Para os casos que não são resolvidos nas audiências de conciliação, o Procon também dá um encaminhamento. “Nós encaminhamos o consumidor para o Ministério Público, para a Defensoria Pública ou direto para o Juizado Especiais e instauramos um inquérito administrativo”, explica o secretário estadual de Defesa do Consumidor, Sérgio Sveiter. A dentista Andréa Couto chegou a perder clientes por ter o celular bloqueado. Durante três meses ela recebeu as faturas com um valor muito acima do que deveria pagar. Ela só conseguiu resolver o problema porque correu atrás dos direitos do consumidor. “Vale a pena, porque no final eu consegui resolver através do Procon. Se eu não tivesse reclamado eu ia continuar a receber aquela conta absurda”, diz ela. Para registrar uma queixa no Procon é preciso levar identidade e CPF originais, mais duas cópias e a nota fiscal ou comprovante referente à reclamação.
19 Todas as transcrições estão disponíveis nos sites dos respectivos programas da TV Globo: Jornal Nacional, RJTV e Globo Repórter (http://jornalnacional.globo.com; http://rjtv.globo.com/; http://globoreporter.globo.com)
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2- Problemas com planos RJTV, 1ª edição 23/11/2005 Boa parte da população se esforça para pagar um plano de saúde, na tentativa de garantir atendimento médico. Mas nem sempre isso acontece. Na coluna Direito do Cidadão, alguns problemas enfrentados por associados que fazem planos em grupo e os cuidados importantes para quem vai assinar um contrato desse tipo. O aposentado Moisés Franco paga em dia o plano de saúde há 14 anos, uma mensalidade de R$ 1.791. Há três meses, o aposentado sofreu um enfarte. O atendimento foi rápido e a família não teve nenhum gasto. O problema é que, na cirurgia, os médicos precisaram colocar dois equipamentos importados que, pelo contrato, deveriam ser pagos pelo plano, o que não aconteceu. “Nós tivemos que, na hora, pagar o valor de R$ 10 mil pelo marca-passo e não conseguimos pagar os outros aparelhos, que custariam R$ 30 mil. Achamos por bem procurar a ajuda da Defensoria Pública, para nos auxiliar nessa ação”, conta o filho dele, Celso Franco. “Estou com 80 anos, posso precisar novamente e estou preocupado, porque posso não ser atendido novamente”, diz Seu Moisés. Alguns planos de saúde não fazem apenas convênio particular. Uma associação era atendida por um plano-empresa, que se desfiliou da Agência Nacional de Saúde há pouco mais de um mês. Resultado: todos esses pedidos de exames médicos foram recusados. Ao todo, 450 pessoas, entre titulares e dependentes, estão sem a cobertura do plano. Há três anos, os associados vinham pagando pelo menos R$ 210 por mês. Hoje eles não conseguem mais autorização para atendimentos médicos, exames e internações. O marido da aposentada Alice de Freitas precisou fazer uma cirurgia no joelho, um procedimento considerado pelos médicos de urgência. O plano não cobriu. “Fui apanhada de surpresa, em uma rede credenciada do plano de saúde. Ao chegar com meu marido, uma pessoa totalmente deficiente, não tive assistência nenhuma”, reclama ela. Pelo acordo, o plano deveria arcar com as despesas de assistência médica domiciliar, o que também não é cumprido. O veterinário Décio Lima de Castro vive este problema na família. “Minha filha precisa de assistência domiciliar, precisa de uma enfermeira 24 horas por dia. Teve alta no hospital há cinco semanas, mas o plano não quer cumprir o acordo, não quer manter o homecare. E o hospital não a deixa sair sem isso, porque se for sem isso, ela morre em casa”, explica Seu Décio. Os associados continuam pagando a mensalidade e estão tentando fechar um convênio com outro plano de saúde. O que eles querem é uma garantia da ANS.
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“A ANS deveria, sendo um órgão regulador, um fiel da balança entre as operadoras e os usuários, chamar para si os usuários que estão sem assistência e alocá-los em outros planos de saúde. Essa é a função da ANS: garantir o direito do usuário”, observa o advogado Luciano Abreu Lima. Direitos dos associados (cont.) Planos que fecham, exigências que surgem na hora em que o consumidor precisa de atendimento - como o consumidor pode evitar problemas como esses? O RJTV conversou com o diretor-presidente da Agência Nacional de Saúde, Fausto dos Santos. Nossa equipe também foi às ruas saber as dúvidas mais comuns sobre planos de saúde. Meringber, moradora de Copacabana: Quando o plano vai à falência, o que acontece com os credenciados? Fausto dos Santos, da Agência Nacional de Saúde: Os credenciados de um plano que vai à falência entram na massa credora dessa empresa. A agência faz uma liquidação extrajudicial e organiza os credores. Se a empresa que foi à falência tiver posses, tiver algum bem que possa ser vendido, esses credores tomam parte disso. Se não, eles vão entrar no processo de falência e o juiz depois vai decidir como cada credenciado vai fazer jus ao que tinha. Mas, em alguns casos, os credenciados ficam realmente sem receber. RJTV: É possível recolocar esses credenciados em outros planos? Isso tem sido feito pela agência desde 2001. Todas as empresas que passam por um processo de intervenção, caso elas não consigam se recuperar financeiramente, a agência se encarrega de transferir esses beneficiados. Tivemos empresas de até 150 mil pessoas, em São Paulo, por exemplo, nesse caso. Esse processo é rápido? Depende da questão da carteira. Isso tem demorado, em alguns casos, entre um mês a três meses. Temos agora, neste momento, por exemplo, seis empresas no país que estão passando por esse processo. A situação do beneficiário é diferente da situação do credenciado. Uma coisa é o beneficiário do plano, outra coisa são os seus credenciados, que são os médicos, as clínicas, os hospitais. Esses últimos, sim, vão entrar na massa falida da empresa. Mas os beneficiários podem ficar sem atendimento? Em alguns casos, sim. Em outros, não. Depende da agilidade com que conseguimos achar, dentro do mercado, outra empresa para assumir os beneficiários. A agência não tem como prestar essa assistência. Do ponto de vista do plano de saúde, há realmente um intervalo, que é o prazo que a agência utiliza para encontrar outra empresa. Nesse período, se a pessoa precisar de atendimento, ela tem como ser ressarcida depois?
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Normalmente, sim, porque a empresa que está entrando em liquidação tem a responsabilidade sobre esse beneficiário, até o momento em que ele é transferido. Em alguns casos, como nesse de São Paulo, demorou, mas as pessoas foram ressarcidas. Adriana Batista, moradora de Vila Valqueire: Gostaria de saber se os planos têm o direito de não aceitar pessoas com doenças pré-existentes. O que a legislação fala a respeito disso? Não. No Brasil, os planos não podem evitar a entrada de nenhum paciente. O que acontece na legislação brasileira é que, caso a doença já esteja comprovada, por exemplo, como uma doença renal, durante o período de dois anos, o beneficiário não tem cobertura sobre a doença renal, mas tem a cobertura para todas as outras questões. Ao final de dois anos, ele passa a ter também a cobertura para essa doença ou lesão pré-existente, que foi identificada no ato da cobertura. Mas o plano não pode, diferentemente do que acontece em outros países do mundo, recusar a entrada de um paciente. RJTV: Isso seria uma carência. Existe um limite para determinadas carências no plano de saúde? Sim, dependendo do procedimento. Na entrada de um plano novo, para parto, por exemplo, você tem 300 dias como carência. Para internações, o prazo é de 180 dias. Para as questões mais simples, 30 dias. Para as questões de urgência e emergência, 24 horas. Maurinéia Oliveira, moradora de São Gonçalo: De quanto em quanto tempo os planos de saúde podem ser aumentados por lei e como isso pode ser feito? Os planos novos, que foram assinados após janeiro de 99, só podem reajustar suas mensalidades uma vez por ano. Se forem planos individuais, são reajustados pelo índice autorizado pela agência reguladora. O que acontece é que há um reajuste por faixa etária. O plano mais caro, da pessoa mais idosa, pode ser até seis vezes o valor do primeiro plano, da entrada até 18 anos. Essa correção por faixa etária não é feita anualmente, é feita de cinco em cinco anos e acontece até o beneficiário completar 60 anos, quando aí não pode haver mais nenhum reajuste por faixa etária. Mas o reajuste anual é um por ano. Ismael de Miranda e Silva, morador do Leme: Os planos de saúde têm o direito de aumentar depois que o usuário completa 65 anos? Existe uma polêmica jurídica sobre isso. Planos assinados posteriormente ao Estatuto do Idoso não podem ser reajustados para beneficiários com mais de 60 anos. Os planos anteriores ao Estatuto do Idoso, mas que foram assinados depois de 1º de janeiro de 99, se o beneficiário estiver há mais de dez anos no plano, também não podem ser reajustados. Mas para os planos antigos, assinados antes de 1º de janeiro de 99, vale a regra que estiver no contrato. 3- Vitória do consumidor RJTV, 1ª edição, 15/03/2006
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O técnico em mecânica Guaraci Araújo foi o primeiro a chegar à Cinelândia. Ele comprou um aparelho de som em outubro de 2004. O produto já teve dois defeitos. O consumidor conseguiu trocar porque estava na garantia, mas o som voltou a apresentar problemas. "Nós vamos entrar em contato com o fornecedor do produto, para que esse problema seja resolvido o mais rápido possível", anunciou a atendente da Coordenadoria de Defesa do Consumidor. "Eu vou até a última instância. Quero meu outro aparelho ou o dinheiro de volta. Estou me sentindo lesado", reclamou o técnico em mecânica. Nem todo mundo conhece seus direitos nem os órgãos que deve procurar quando sente que teve algum tipo de prejuízo. "É difícil, eu não sei onde encontrar", diz uma consumidora. "Conhecer o seu direito é ter poder: poder de entrar na Justiça, poder de resolver uma questão, poder de não sofrer uma lesão, ou , se sofrer, conseguir uma reparação", ressalta a presidente da Associação Brasileira de Defesa do Consumidor e Trabalhador, Daniela Carvalho No ano passado, o Procon do Rio registrou cerca de 31 mil reclamações: 15% a menos que em 2004. O número de processos diminuiu, mas só em 2005 foram aplicados em multas mais de R$ 2 bilhões. Existem vários locais em que a pessoa pode buscar ajuda caso se sinta lesada, mas a Defensoria Pública é o principal caminho. No órgão, quase 120 consumidores por dia buscam resolver impasses. Muitos já estão na Justiça. São problemas ligados a vários tipos de serviços, produtos e até direitos básicos de saúde, garantidos por lei. "Normalmente o defensor público tenta resolver a questão extrajudicialmente, fazendo uma audiência de conciliação. Na hipótese de não obter êxito, o defensor colhe as provas e entra com uma ação. Normalmente, se a ação for bem instruída, o assistido vai ganhar", explica a defensora pública Cristiana Bacha. É o caso da bancária Carla de Abreu . Ela é diabética e precisa tomar uma insulina especial. O plano de saúde se recusou a reembolsar parte do valor do remédio, como já era previsto no contrato, e Carla procurou a Defensoria. "A Defensoria Pública foi muito boa para mim. Minha vida melhorou 1000%, e minha saúde também", comemora a paciente. ÓRGÃOS PÚBLICOS DE DEFESA DO CONSUMIDOR Comissão Municipal de Defesa do Consumidor Horário de atendimento: segunda a sexta, das 10h às 17h Local: Cinelândia Telefone: 3814-1359 Comissão de Defesa do Consumidor da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) Horário de atendimento: segunda a sexta, das 9h às 17h
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Local: Praça Quinze – Centro Telefone: 0800-282-7060 Procon Local: 17 postos no estado do Rio Telefone: 2299-2502 Defensoria Pública Horário de atendimento: segunda a quinta, 9h às 17h Local: Avenida Presidente Vargas 670, 10º andar Telefone: 2299-2264 Arma poderosa (continuação)20 O Código de Defesa do Consumidor é certamente a principal arma dos cidadãos pra garantir seus direitos. Para saber quais foram os principais avanços e conquistas do código nesses 15 anos de existência, o RJTV conversou com o vice-presidente da comissão de Defesa do Consumidor da Ordem dos Advogados do Brasil, Álvaro Luís Fernandes. RJTV: Temos uma informação bastante surpreendente de que o número de reclamações no Procon caiu 15% no ano passado, um número expressivo. Isso quer dizer que a pressão popular sobre as empresas fez com que elas melhorassem os serviços oferecidos? Álvaro Luís Fernandes: Na verdade, quando falamos nessa redução, isso me leva a crer que não foram apenas as empresas que melhoraram os serviços. Infelizmente esse não é o principal motivo. Hoje há vários serviços de atendimento. Você pode recorrer ao Procon, à Defensoria Pública, que tenta negociar administrativamente as soluções, pode entrar direto no Juizado. As demandas no Juizado aumentaram em número. O consumidor está, de certa forma, evitando o Procon e indo diretamente ao Judiciário, em uma busca mais efetiva dos seus direitos. E o Judiciário tem agido com a velocidade necessária para responder a essa demanda toda, para realmente fazer justiça contra uma empresa que não cumpre o que promete, por exemplo? Há um filósofo argentino que diz que processo lento já é uma injustiça. Infelizmente as demandas são tão grandes que os processos, mesmo nos Juizados Especiais, hoje vão andando muito devagar. Mas efetivamente as condenações que existem transformam aquela expectativa no direito do consumidor, que é aplicado, e as multas que são impostas, mesmo que de uma forma mais reduzida, por serem causas do Juizado Especial, fazem, sim, o consumidor ser ressarcido. Essas multas são um instrumento de pressão sobre as empresas. Mas elas são pagas efetivamente?
20 Não apresentada aos usuários.
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No âmbito administrativo do Procon, essas empresas podem entrar com recursos, inclusive, na esfera judicial, também nos Juizados Especiais ou mesmo na Justiça Comum. As multas que lhe são aplicadas são passíveis de recurso. Mas, uma vez vencidos todos esses recursos, elas são pagas. Acho eu que como essa multa tem um caráter também não só de ressarcimento, mas educacional, para punir as empresas, eu acho que elas deveriam ser feitas de uma forma mais violenta. Há 15 anos, ninguém comprava pela internet. Hoje você faz isso muito facilmente. O Código teve que se ajustar a essa nova ferramenta? Nosso Código é tão atual que já prevê que nas compras à distância, em que o consumidor não tem contato direito com o produto – ou seja, internet, telefone, televisão – o consumidor tem direito a sete dias de arrependimento. Se ele recebeu o produto e não gostou, pode devolver e receber o valor de volta. 4- Queixas sem fim RJTV, 1ª edição, 02/08/2006 Na coluna Direito de Cidadão de hoje, os problemas com os planos de saúde - no Rio, só este ano, o Procon já registrou reclamações contra 18 planos de saúde diferentes. Excesso de burocracia e desrespeito aos direitos dos clientes transformam o caminho para a saúde em uma via crucis. Por causa de um problema no coração, uma dona de casa teve que se submeter a uma cirurgia de emergência. Ela paga R$ 780 por mês pelo plano de saúde. Mas, na hora de marcar a operação esbarrou na burocracia. Eram tantas as exigências que ela só conseguiu ser internada uma semana depois do diagnóstico. “Quando você mais precisa, depara-se com a burocracia, que diz a você que não é bem assim”, queixa-se Adriana dos Santos, filha da paciente. No estado do Rio, quase cinco milhões de pessoas têm planos de saúde - 64% delas vivem na capital e muitas estão insatisfeitas. Só este ano, o Procon registrou reclamações contra 18 planos diferentes. Pedro Paulo Gomes entrou na Justiça para pedir reembolso pelos gastos hospitalares. Há seis anos, quando descobriu um câncer no esôfago, tinha cobertura total em vários hospitais. Ao longo dos anos, ele conta que os benefícios foram cortados. Exames e internações tiveram que ser pagos à vista e do próprio bolso. “Pagamos tudo. Nós nos endividamos, perdemos o carro, tivemos que pedir a ajuda de parentes. Eu devo ter gasto, nesses cinco anos, já uns 100 mil”, calcula ele. A surpresa com os gastos inesperados virou indignação. “Nós sentimos que o lucro do dinheiro está acima do lucro da vida”, lamenta Pedro Paulo.
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Regras na saúde (continuação)21 Os planos de saúde se defendem, dizendo que cumprem todas as determinações da Agência Nacional de Saúde (ANS). São tantos os problemas que o RJTV convidou Eduardo Sales (foto), diretor de fiscalização da Agência Nacional de Saúde para saber exatamente quais são as regras dessa relação entre pacientes e planos. RJTV - O plano de saúde pode cortar benefícios que já eram direitos da pessoa ao longo dos anos? Eduardo Sales – Não. Na verdade, a lei de planos de saúde prevê a possibilidade da operadora substituir a rede credenciada. Mas quando fizer essa substituição, tem que garantir a mesma qualidade originariamente contratada. Ou seja, o consumidor não pode, de maneira nenhuma, ser prejudicado. Geralmente, quando há uma diminuição da rede ou algum hospital é descredenciado, isso é feito sem o conhecimento da Agência Nacional de Saúde. Assim, essa informação chega à agência por meio de denúncias ou de algum órgão de controle e ela fiscaliza essa operadora e, se necessário, autua e cobra multa ou até determina o cancelamento da inscrição da empresa. Em casos como esse, como o paciente pode recuperar parte do prejuízo que teve por não-cumprimento do plano de saúde, como foi o caso do Pedro Paulo, mostrado na reportagem? Esse é um grande problema. Primeiro é preciso buscar no Poder Judiciário o direito de ser ressarcido do prejuízo. Em segundo lugar, deve ser aberto um procedimento na ANS para uma investigação. O órgão vai investigar e determinar se a operadora fez um descredenciamento indevido de sua rede, sem comunicar a ANS. É preciso esclarecer que a Agência Nacional de Saúde não é um órgão de Defesa do Consumidor, ela fiscaliza um mercado – a relação entre operadoras e consumidores e entre operadoras e a rede credenciada. A agência faz a regulação macro de todo o mercado de saúde suplementar. O Procon defende os direitos dos consumidores e orienta sobre o que deve ser feito. Esse é um assunto que interessa a todo mundo que tem plano de saúde. O público do RJTV tem perguntas para o nosso entrevistado. A Letícia Barros, que é fisioterapeuta, quer mudar de plano de saúde e quer saber o que é preciso ser feito. O consumidor tem diversos caminhos a percorrer. É preciso fazer um levantamento no mercado. Há diversas operadoras que trabalham corretamente e que têm um grau considerável de satisfação dos consumidores. O consumidor tem que verificar o contrato e pode, inclusive, ligar para a rede credenciada e perguntar sobre a empresa. 21 Não é apresentada inteiramente.
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O paciente pode escapar da carência? Sim, dependendo da operadora. Uma empresa de plano de saúde pode limitar o tempo de internação de um paciente? Não. Isso é expressamente proibido pela lei dos planos de saúde. Nos contratos anteriores à regulamentação podem recorrer à Justiça. 5- Novidades prometem acabar com a dor nos consultórios dentários Jornal Nacional, 26/01/2004 Fabricantes de vários países do mundo apresentam em São Paulo novidades da tecnologia para um mal antigo: o medo de ir ao dentista. O laser trabalha silenciosamente, substituindo o barulho assustador da broca. Eficiente também para combater cáries menores, também diagnosticadas a laser. Contra as agulhas, anestesia alternativa: o eletrodo emite sinais elétricos e amortece o nervo do dente e quando a agulha é indispensável, um computador controla a velocidade da injeção, para evitar a dor. Poltrona com massagem relaxante. Os dentistas testam tudo o que possa prender o paciente na cadeira. "Isso da cadeira dar uma massagem, de ter uma anestesia que não causa aquele trauma para o paciente, é sensacional. Realmente ajuda bastante", elogia a dentista Karla Batista. As técnicas e remédios para aliviar a dor e não espantar o paciente são as estrelas do Congresso Internacional de Saúde bucal em São Paulo. E a maior delas é um gás descoberto há 200 anos, popular nos consultórios americanos, mas só agora chega ao Brasil. É o que prende a advogada Tatiane Oliveira à cadeira: "É uma sensação de alívio, de relaxamento, de tranqüilidade", diz ela. O óxido nitroso atua no sistema nervoso central, diminui a sensibilidade, permite que o dentista trabalhe, e deixa o paciente alegrinho. Daí ele ser conhecido como gás do riso. Tatiane está tratando os dentes, livre de uma doença que conhece desde a infância: o medo de dentista. "Tenho tremor, vontade de vomitar, vontade de sair correndo", admite Tatiane. E não é um problema solitário. Segundo pesquisa da Universidade de São Paulo, 28% dos pacientes ficam ansiosos quando vão ao dentista e 14% sofrem dessa fobia, um medo exagerado, incontrolável. "O gás faz com que essas pessoas tenham uma opção a mais para vencer esse medo, essa fobia, e cuidarem melhor da saúde bucal, de seus dentes", explia José Ranali, professor da Unicamp. Diante das novas técnicas, gente como Tatiane resume o alívio numa expressão: "Graças a Deus".
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6- Vida Nova para Vanessa Globo Repórter , 14/01/2005 Três quilos e meio de peso e nome de anjo. A chegada de Gabriel encheu a família de alegria e vai permitir que algum dia, em algum lugar, alguém possa sorrir também. A mãe dele doou o sangue do cordão umbilical. "É algo que ia para o baldinho todo dia, como a gente diz na nossa linguagem. Ia para o lixo", conta o geneticista Carlos Alberto Moreira Filho. Agora o destino é mais nobre. Em São Paulo, Ribeirão Preto, Campinas e Rio de Janeiro, já se coleta, congela e guarda o precioso sangue dos cordões umbilicais, sangue rico em células-tronco. É a rede Brasilcord, bancos públicos de cordão que, com o aval dos cientistas, foram criados para substituir os bancos privados onde pais pagavam para congelar cordões só para seus filhos. "As células do próprio indivíduo não têm efeito terapêutico no caso da leucemia. Então, não adianta guardar as células de cordão para o caso de o indivíduo ter leucemia. Depois, isso fere o princípio da solidariedade sobre o qual se baseia qualquer sociedade", comenta o geneticista. Amiguinhos que escrevem conhecem bem o sofrimento de uma pequena bailarina de Jaú, no interior de São Paulo. Em seus 9 anos de vida, Vanessa Canal desfrutou momentos de beleza e alegria nos palcos da escola. Mas desde os 3 anos Vanessa trava uma grande batalha para continuar viva. "Eu fiquei com leucemia", conta a menina. Vanessa é tão tímida que foi preciso sair da sala e ligar de um celular para conseguir arrancar algumas palavras dela: "Eu gosto de adesivos, jogar videogame e nadar, mas eu não posso nadar." Não pode nadar, nem tomar sol. Restrições de quem passou por três tratamentos de quimioterapia. A leucemia não deu trégua. "O organismo dela mostrou que a quimioterapia não conseguiu eliminar 100% da doença. Ela eliminava por um tempo, mas a doença voltava", conta Mary Canal, mãe de Vanessa. A única chance de Vanessa era um transplante de medula, mas nem a irmã nem os pais eram compatíveis. Nos bancos de medula, também não encontraram doador com sangue quase igual ao dela, como exige esse tipo de transplante. "É difícil achar um doador. Segundo nos falaram, é como ganhar na Mega-Sena com 12 números", diz Mary. A cada ano, cerca de 3 mil pessoas no Brasil vivem o drama da procura por um doador de medula. Cerca de 1,7 mil não encontram e perdem a batalha pela vida. Batalha que agora ganha novas possibilidades de vitória. Simples de ser conseguido e menos exigente - mais fácil de ser compatível -, o sangue do cordão umbilical guardado nos bancos substitui, com vantagem, o transplante de medula óssea. "Hoje, no Japão, metade dos transplantes de medula não são mais transplantes de medula – são transplantes com célula de cordão umbilical. Esse é o futuro", anuncia o geneticista Carlos Alberto.
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O banco do Instituto Nacional do Câncer (Inca), no Rio de Janeiro, já tem no estoque o sangue de 3 mil cordões. O cálculo é de que, com 12 mil, qualquer brasileiro que precise encontre a salvação nos bancos públicos do Brasil. Não será mais preciso comprar de outros países como se fazia. "O banco daqui, apesar de pequeno, já forneceu cordão para São Paulo. Um deles foi encaminhado para a cidade de Jaú", revela o médico Luis Fernando Bouzas, do Centro de Transplante de Medula Óssea do Inca. Em Jaú, a chegada do cordão era a vida entrando em casa. "No dia que ele me ligou e falou que acharam um cordão com 100% de compatibilidade para a Vanessa eu não conseguia nem falar", lembra a mãe da menina. Em um hospital de Jaú, Vanessa recebeu as células-tronco do cordão enviado do Rio de Janeiro. O momento foi registrado em foto. Uma experiência que não se esquece. "Eu olhava um saquinho tão pequenininho, como se fosse uma transfusão de sangue. Ali dentro estava a vida da minha filha. Aquilo teria que entrar no organismo e gerar novas células. Pensei: ‘será que vai dar certo?’. As chances de sobrevivência ao transplante eram de 30% a 50%. É muito pouco quando se trata da vida de um filho", diz Mary. Mas a espera não foi longa. Em poucos dias, as células-tronco se multiplicaram e começaram a produzir sangue novo e saudável. Três meses depois, Vanessa ainda toma remédio para evitar a rejeição, mas está bem. Os cabelos vão voltar a crescer, a alegria vai sendo recuperada e ela está quase pronta para fazer o que mais gosta: dançar. "Se não fosse esse transplante, eu não sei se ela estaria hoje com a gente. Eu acho que todo mundo deve conhecer esse processo de doação, que não causa dor nenhuma, problema nenhum para o bebê nem para mãe, e que salva uma vida", ressalta a mãe de Vanessa. Para o tratamento da leucemia e de muitas outras doenças, o sangue de cordão umbilical é uma riqueza que o mundo já sabe que pode guardar e trocar para o bem de todos. "Para muitas pessoas, estas células já se constituem em um tesouro, porque são salvadoras, proporcionam um tratamento. Se não houvesse essa possibilidade, essas pessoas não fariam um transplante", avalia o médico do Centro de Transplante de Medula Óssea do Inca. 7- Medo incontrolável Globo Repórter , 17/06/2005 A depressão pode aparecer em diferentes fases da vida e acentuar fobias – um medo exagerado das coisas mais comuns, como andar de carro ou usar o elevador. A Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) pesquisa um tratamento virtual. Um computador simula situações reais para que o paciente, pouco a pouco, enfrente o medo e ganhe segurança.
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Fábio Arnoni conseguiu vencer o medo de dirigir, um dos sintomas da doença que tornou a vida do ex-engenheiro mecânico um inferno. “Quando eu dirigia, sentia falta de ar, uma secura muito forte na boca e uma sensação de estrangulamento. Era uma coisa que, por mais que eu explicasse a todos, ninguém entendia. As pessoas diziam que eu estava fazendo corpo mole, que era frescura, que eu não estava a fim de trabalhar. Tanto que acabei perdendo o emprego”, conta ele. Para controlar a doença, Fábio mudou de vida e de cidade. Trocou Vitória por São Paulo. Hoje é professor e massagista. Foi 80 vezes ao pronto-socorro e não descobriu o que tinha. “Eu passei por cardiologista, clínico geral, ortopedista, tudo o que se possa imaginar. Fiz todos os exames que existiam na época, mas nenhum médico conseguiu apresentar um diagnóstico.” “A depressão, ou a Síndrome do Pânico, não era tratada como uma doença, as pessoas olhavam meio de lado. E para o homem era ainda pior, porque acabava sendo taxado de vagabundo. Era muito difícil”, ressalta Tânia, mulher de Fábio. O medo incontrolável deixou Fábio trancado em casa. O casamento quase acabou. “Ele falava que não ia trabalhar porque não estava se sentindo bem. Eu achava que era uma desculpa para não ir trabalhar. Entramos em muitos conflitos”, lembra Tânia. O diagnóstico certo, Fábio só encontrou em um centro especializado em São Paulo. Aos poucos, foi dominando o medo. O equilíbrio, mesmo, ele ganhou com a nova profissão. “Eu sou milhões de vezes mais feliz que antes. E o principal: a doença é minha companheira, mas eu sei lidar com ela hoje. Sei quando ela está chegando porque a sensação é muito clara. Então, eu faço técnicas de respiração, relaxo, tento me desligar, tento dissociar aquilo que está acontecendo, para não ter que voltar a tomar medicação de novo”, diz Fábio. 8- Esperança para mulheres com câncer Globo repórter, 08/07/2005 A evolução da ciência, principalmente nas últimas décadas, tem superado, em muito, a transformação das leis, dos costumes, e dos valores morais. Surpreendidas pelas descobertas, as sociedades têm que se adaptar a elas, vencendo às vezes resistências muito fortes. A tecnóloga Maria Lúcia Monteiro tinha receio de não poder ser mãe. Jovem e solteira, ela ia passar por uma quimioterapia e o tratamento poderia deixá-la estéril. Mas havia uma saída: garantir agora a chance de uma gravidez futura, para quando o câncer fosse vencido e Maria Lúcia estivesse casada. “Acho que Deus dá inteligência às pessoas para que elas descubram o melhor modo de viver”, comenta o analista de processos César Gimenes, marido de Maria Lúcia.
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Maria Lúcia e César estão casados há quatro anos. Eram só namorados quando ela ficou com câncer, aos 22 anos. A possibilidade de Maria Lúcia ficar estéril foi um choque. “A sensação de saber que nunca poderia ser mãe foi horrível”, conta. Os métodos de reprodução assistida já conhecidos não eram solução para o caso de Maria Lúcia. O congelamento de embriões, por exemplo, não podia ser feito porque ela era solteira. A única alternativa era o congelamento de tecido ovariano, uma técnica ainda experimental. Os médicos retiram pedaços muito pequenos do ovário. Fatias finíssimas, que não passam de três milímetros, mas onde estão milhares de folículos. São neles que estão os óvulos que precisam ser preservados. As amostras são congeladas à temperatura de -196ºC. Quando a mulher estiver curada do câncer e quiser engravidar, os pedacinhos de tecido são descongelados e implantados de volta no ovário, que, com isso, restabelece suas funções normais. “Foi maravilhoso saber que existia a possibilidade de congelamento do tecido ovariano. Agarrei essa idéia com unhas e dentes, sem perguntar se eu poderia ou deveria fazer. Fui atrás sozinha, estava decidida que aquela era minha única oportunidade. E fui em frente”, diz Maria Lúcia. Um ano depois de operar-se do câncer, Maria Lúcia e César se casaram. Agora, ela já teve alta, está curada, e pode programar a gravidez para quando quiser. O futuro dela como mãe está guardado no laboratório da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Além de Maria Lúcia, outras seis jovens, todas vítimas de câncer, têm suas esperanças preservadas ali. “É um procedimento relativamente novo, tem cinco ou seis anos. Existe a esperança de que o ovário funcione quando for reimplantado nessa jovem", diz o médico Vilmon de Freitas, especialista em reprodução humana da Unifesp. “Fiquei curada da doença e do medo”, afirma Maria Lúcia.
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