Post on 07-Nov-2018
Especialização
em Terapia Familiar Sistêmica
Pós-‐Graduação
Paradigmas da Ciência Contemporânea
Prof. Rui Simon Paz
Curitiba – Paraná
2014
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Índice
Época de Transição: O Renascimento.......................................................................................... 03
Razão e Experiência: O Século XVII............................................................................................... 09
Racionalismo: Cepticismo e certeza.............................................................................................. 12
A Filosofia Moderna de Descartes (Eduardo O. C. Chaves).................................................... 19
A máquina do mundo newtoniana................................................................................................. 40
Alterações na Sociedade, Efervescência nas Ideias:
A França do Século XVIII................................................................................................................... 58
Há uma ordem Imutável na Natureza e o Conhecimento a Reflete:
Augusto Comte...................................................................................................................................... 72
Evolução do Método Científico........................................................................................................ 90
Da Necessidade do Pensamento Complexo.............................................................................. 101
Introdução ao Pensamento Complexo....................................................................................... 121
O Manifesto da Transdisciplinaridade...................................................................................... 131
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Época de Transição1
O Renascimento
INICIO DA IDADE MODERNA
Renascimento e humanismo
Renascimento, Idade Média, idade Moderna -‐ estes conhecidos termos definidores das
épocas da história europeia estabelecem uma continuidade histórica, na medida em que
diversas culturas são por eles delimitadas entre si. No século XV, no início da Idade Moderna,
já havia consciência da possibilidade desta delimitação, por oposição à Idade Média, que
conhecera outras divisões da história, orientadas por afirmações bíblicas e teológicas e que
se acreditava estarem ancoradas no plano criador acabado. No século XVIII impôs-‐ se
definitivamente a convicção de que se estava a viver uma nova época desde há cerca de três
séculos. (O termo “época”, no sentido atual, surgiu naquele tempo.)
De fato, no século XVIII, muitos desenvolvimentos da Idade hoje chamada Moderna, com o
tempo do Renascimento, atingiram o seu ponto culminante, O sistema do Estado pós-‐
medieval estava estabelecido, os valores cristãos e de tradição política feudal foram
profundamente relativizados pelos pensadores do iluminismo, as instituições culturais e
toda a concepção do mundo foram secularizadas (isto é, desligadas de compromissos e
dogmas eclesiásticos).
As ciências tinham um papel decisivo e autônomo. O remanescente dos sistemas de conceitos
escolásticos foi eliminado. As formas da natureza e os povos de todo o mundo foram
comparados e classificados; a burguesia cosmopolita tomou consciência de ser uma camada
vasta e fundamental da sociedade, com potencial revolucionário, e o indivíduo encontrou
novas formas de expressão do eu.
As primeiras raízes modernas desta situação no século XVIII estavam fundamentalmente em
inovações (e/ou melhoramentos de aplicação) de práticas decisivas do século XIV,
enumeradas por Francis Bacon no seu livro de 1 620: “A arte da impressão, a pólvora e a
bússola [ mudaram a forma e a face das coisas no mundo; seguiram-‐se-‐lhes inúmeras
modificações das coisas, e parece que nenhum império, nenhuma seita, nenhum astro teve
maiores efeito e influência para o interesse humano do que essas coisas mecânicas.”
1. DELUIS, Christophe et alii. História da Filosofia. Colônia, Alemanha :
Könemann, 2001;
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De fato, as “três coisas” podem ser ligadas aos acontecimentos históricos que constituem o
início da Idade Moderna: a tipografia, com a erudição humanista do Renascimento, os
panfletos e escritos da Reforma; a introdução de armas de fogo com o fim da cavalaria e, por
conseguinte, também com o desenvolvimento de novas formas de governo; e a invenção da
bússola, com as descobertas geográficas da época (Colombo, Vasco da Gama).
Em meados do século XVI, o pintor e arquiteto Giorgio Vasari publicou biografias de artistas
famosos, cuja série começa com os primeiros que “superaram” o estilo gótico, chamado por
Vasari”bárbaro”. Aqui a Idade Média é definida como uma época obscura por oposição à
Antiguidade e ao seu renascimento (renaissance) na arte italiana do século XIV (Giotto) e
depois, sobretudo, do XV e início do XVI (por exemplo, Leonardo da Vinci, Miguel Ângelo,
Rafael). No século XIX, “Renascimento” foi um termo empregue para caracterizar toda uma
época cultural, desde aproximadamente o período de 1 400 até 1530 ou também até 1 600, e
que no essencial estava limitado à Itália ou então tivera a sua origem naquele país.
De acordo com a sua origem, o termo “Renascimento” foi delineado de forma bastante
precisa na história de arte; noutras áreas, a sua delimitação parece muito mais difícil em
comparação com os da Idade Média e do Barroco. Hoje, a imagem que se tem do
Renascimento já não é a de um período de unidade cultural geral; ele é antes considerado
uma “época-‐limiar”, na qual o novo ficou, de forma admirável, entrelaçado com a tradição
medieval.
Muitas das inovações marcantes da época deram-‐se no campo das artes plásticas. No início
do século XV os arquitetos e pintores descobriram a perspectiva central, que cria uma ilusão
figurada de profundidade e permite representar o homem e as coisas no espaço devidamente
proporcionados. Em comparação com o procedimento imaginativo estruturado por símbolos
e fórmulas de imagens característico da pintura medieval, o procedimento de representação
em perspectiva baseia-‐se na relação entre o objeto retratado, a superfície da imagem e o
ponto de vista do observador, e transforma a imagem em função desses elementos. A
imagem definida em termos científicos — e racionais — como reprodução exata da
realidade, tal como ela surge aos nossos olhos. Aqui se manifestam a racionalidade moderna,
com a sua concepção matemática do espaço e da natureza, e uma compreensão do mundo a
partir do sujeito (observador), enquanto construção mental do mundo.
Assim como a imagem em perspectiva, através do seu ponto de vista sempre indicado, tem
como objetivo o indivíduo observado, o novo gênero de pintura — a arte do retrato -‐
tematiza a representação individualizada do Outro. Aliás, no Renascimento, a dignidade e a
particularidade do indivíduo são frequentemente realçadas; também aqui começa uma
ruptura com a Idade Média, mais marcada pela ideia da comunidade religiosa coletiva no
contexto das ordens religiosas. A novidade está sobretudo no fato de serem celebrados e
coroados, não apenas príncipes, mas também poetas e “artesãos” como Giotto ou Miguel
Ângelo.
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O primeiro poeta e ao mesmo tempo o primeiro grande humanista da nova época a ser
coroado com louros, segundo a tradição antiga, no Capitólio de Roma, foi Francesco Petrarca.
O humanismo, enquanto corrente literária e filosófica do Renascimento, significa formação
erudita nas artes e ciências que desenvolvem o lado humano do homem. Humanista e eram,
no século XV, os professores recorrendo a fontes antigas, ensinavam gramática, retórica, na
história, literatura e filosofia moral.
Os humanistas eram filólogos da literatura latina e, aos poucos, também da grega, mas, ao
mesmo tempo, eram na sua maioria estilistas e retóricos brilhantes. Petrarca, tal como os
seus sucessores, exigia o renascimento do homem por meio do regresso à Antiguidade e
defendia a inseparabilidade do pensamento racional da linguagem culta. O seu modelo
político era a república romana; o mesmo era válido, por exemplo, para o humanista
florentino Leonardo Bruni, que expôs a sua convicção republicana de forma literária e, ao
mesmo tempo, assumiu-‐a na vida prática, no exercício das suas funções num importante
cargo público. A ligação entre teoria e prática era, aliás, uma exigência humanista e conduziu
ao ideal renascentista do uomo universale, do homem moralmente seguro, de formação
universal e, também no seu trato, douto e sábio.
O humanismo não ficou limitado apenas à Itália. O melhor conhecedor, no seu tempo, da
literatura antiga e cristã foi Erasmo de Roterdão. A sua vasta correspondência difundiu-‐se
por toda a Europa. O seu pensamento tolerante buscou o equilíbrio nas questões
relacionadas com as paixões humanas, os conflitos religiosos, bem como no antagonismo
entre a Antiguidade e o Cristianismo. Os humanistas também atuaram na Inglaterra e em
França, e na Alemanha, Ulrich von Hutten pôde, apesar dos distúrbios da época, proclamar:
“Oh, século, oh, ciência, é um prazer viver! As ciências florescem, os espíritos agitam-‐se”.
FILOSOFIA DO RENASCIMENTO
Nicolau de Cusa
A douta Ignorância do infinito
A mudança de perspectiva, já moderna, para a realidade linguística e histórica do mundo
humano, com paralelo no realismo dos artistas renascentistas, levou os humanistas a
criticarem reiteradamente a escolástica e os seus conhecimentos metafísicos, desligados da
natureza e de forma puramente lógica, bem como os seus infindáveis comentários sobre a
obra de Aristóteles. Petrarca expôs, contra Aristóteles, cujas obras permitiam que uma
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pessoa ficasse mais inteligente, mas não melhor, a doutrina ética de Platão, iniciando assim
uma evolução que culminou na criação da academia platônica em Florença.
Na filosofia de Platão, e particularmente na sua ideia do Bem, haveria uma aproximação à
verdade divina, segundo Petrarca num dos seus textos intitulado: “Sobre a Sua Ignorância e a
de Muitos Outros”. A ignorância de que se fala aqui é a do cristão, para quem as últimas
verdades só são acessíveis através da fé. Nicolau de Cusa (ou Nicolau Cusano), diplomata
eclesiástico, cardeal, humanista e filósofo, faz deste aspecto a sua doutrina principal. No seu
livro De Docta Ignorantia (“Da Douta Ignorância” ou “Do Desconhecimento Consciente”), de 1
440, ele aceita a incompreensibilidade da infinidade de Deus e parte deste conhecimento
para a determinação positiva dessa incompreensão enquanto tal.
Se o infinito é alheio ao mundo criado e às coisas particulares, ou seja o “absoluto” por
oposição ao relativo, então o aparato lógico da escolástica não pode apreendê-‐lo. Esse
aparato baseia-‐se em oposição, exclusão e/ou concordância, inclusão. Em absoluto, esses
aspectos relativos não podem surgir; segundo Cusano, ele tem de ser pensado como aquele
no qual os contrários coincidem. Cusano ilustra esta ideia com um exemplo geométrico: a
tangente de uma circunferência de num ponto. Mas se a circunferência é infinitamente
grande, ele coincidirá com a tangente. Isto é compreensível, mas não real imaginável. Trata-‐
se, para Cusano, de entender esse limite do saber para assim olhar para a própria ignorância
e entendê-‐la na sua essência. Além disso, Cusano estuda o tipo de reconhecimento humano,
estudo esse que o conduz à determinação de uma relação entre a atividade intelectual
humana e a divina.
O intelecto compara e diferencia coisas, produz relações numéricas, mede e calcula. O
conhecimento assim alcançado sobre as coisas permanece, no entanto, sempre relativo e
incompleto, já que entre as inumeráveis coisas do mundo se pode sempre encontrar “mais”
relações. Somente um critério absoluto permitiria fixar os limites do particular. A
diferenciação interminável do mundo só se completaria e resolveria a partir da unidade
absoluta dos contrários. Segundo Cusano, a razão apodera-‐se do entendimento, não
apreende, mas “toca” o absoluto. Graças a esse contacto, a razão pode pensar a
comensurabilidade enquanto tal e a unidade enquanto tal, e essa faculdade de pensar é o
fundamento da atividade intelectual, que sem aquela só a esmo diferenciaria.
Esta relação entre razão e intelecto mostra ao espírito humano como é que ele próprio torna
possível o seu saber, em vez de se adaptar completamente à realidade pré-‐ordenada das
coisas. A unidade enquanto fundamento do cálculo e da matemática estabelece a
independência do espírito, bem como, por exemplo, todas as unidades de medida, a que
Cusano chama “hipóteses” (proposições). Com as hipóteses, o homem aproxima-‐se da
relação das coisas, nunca definitivamente apreendida. Esta atividade criadora é análoga à
atividade de Deus: “Pois, tal como Deus é o criador do verdadeiro ser e das formas naturais, o
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homem é o criador do ser imaginado e das formas artificiais; estas não são mais do que
semelhanças do seu espírito, assim como as criaturas são semelhanças do espírito divino,”
Renascimento e Platonismo
Com o seu pressuposto de um princípio absoluto (Deus), de quem, em última análise —
graças ao contacto da razão com esse absoluto -‐‘ deriva todo o conhecimento e tudo o que é
reconhecível, Cusa no retoma ideias (neo)platônicas. E não estava sozinho — no século XV
houve uma autêntica revivescência do Platonismo. Desde o tempo de Petrarca, os
pesquisadores de fontes humanistas já tinham descoberto todos os escritos de Platão na
língua original; Marcílio Ficino traduziu-‐os a todos, pela primeira vez, para o latim e tornou-‐
os, assim, acessíveis aos eruditos europeus. Ficino e outros humanistas animados pelo
mesmo espírito tinham um protetor importante, Cosme de Médicis, grande banqueiro,
mecenas e governante não oficial da República instituída de Florença. Desde os finais dos
anos 50 do século XV encontravam-‐se esporadicamente numa propriedade de campo de
Cosme para uma tertúlia, que desde então ficou conhecida como a Academia Platônica de
Florença.
Ficino via na filosofia de Platão uma doutrina muito atual que permitia unir todas as
tendências divergentes da época. Ela seria capaz de conciliar a religião e a filosofia, a
metafísica e a ciência, em tudo discordantes. O pensamento de Platão não só já continha, por
antecipação, a doutrina cristã, como transmitia, por recorrência, a sabedoria originária,
aquela que talvez exprime mais puramente a principal revelação. A Theologia Platônica
(1474) de Ficino quer mostrar essa força integradora de uma “religião filosófica”, na medida
em que apresenta o espírito e a natureza, bem como todos os graus do ser numa única cadeia
contínua. Ficino, seguindo a tradição neoplatónica alterada (platônica), chama a esses graus:
“ser divino”, “esfera das inteligências” ou “ideias puras” (“mundo dos anjos”); “alma”;
“qualidades físicas” (cor, calor, etc.); “corpos” (matéria informe, quantidade puramente
material). É na alma do mundo que reside o centro do ser. Ela tem as suas correspondência e
representação na alma (no espírito) do homem, que assume então uma posição central no
universo. A faculdade humana de conhecer pode ligar os extremos -‐ Deus e o corpo -‐ e
espelha (e, em certo sentido, só então criar) a unidade geral do ser.
A percepção e o reconhecimento não são para Ficino, um ato de compreensão e assimilação
passivo, mas uma adequação da alma ao reconhecido, que só é possível porque a alma
participa em todos os graus do ser. Goethe traduziu esta ideia platônica da correspondência
entre o sujeito que reconhece e o objeto reconhecido da seguinte forma: “Se o olho não
tivesse em si algo de sol, nunca poderia ver o sol; se em nós não houvesse a própria força de
Deus, como poderia o divino encantar-‐nos?” A ideia de a alma tender para o alto na sua
aproximação a Deus e uma visão estética do mundo, cuja clara harmonia experimentamos na
concordância com a nossa alma, permitiram muitas vezes que a doutrina de Ficino fosse
entendida como o equivalente filosófico da arte do Renascimento.
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A posição livre e central do homem é, tal como em Ficino, também enfatizada pelo seu
discípulo Pico della Mirandola. No discurso que se tornou famoso, “Da Dignidade do
Homem”, ele põe Deus-‐Pai a dizer a Adão: “A natureza dos restantes seres está contida nas
leis por mim prescritas, sendo, por isso, limitada, Tu não estás limitado por nenhum tipo de
obstáculo insuperável. Coloquei-‐te no centro do mundo para que daí pudesses confortável
mente olhar à tua volta e avistar melhor tudo quanto há no mundo, Não te fiz nem celestial
nem terreno, nem mortal nem imortal, para que, sendo de ti próprio o absolutamente livre e
soberano artífice, te moldasses e esculpisses na forma da tua preferência.”
O homem enquanto centro do mundo evidentemente não significa aqui que o homem,
enquanto imagem de Deus, é, por princípio a medida de todas as coisas. O centro aqui é
muito mais um lugar indeterminado por oposição ao lugar determinado das restantes
criaturas. O centro significa ausência de uma direção definida que, enquanto franqueza
positiva, constitui o potencial da liberdade.
A filosofia moral platônica não foi incontroversa no Renascimento. Assim para Chrístofero
Landino, por exemplo, o homem era uma unidade formada pelo corpo e pela alma, bem como
um ser social. À víta activa, ou “vida ativa”, é dada a primazia em relação à vita contemplativa,
ou “vida espiritual”, altamente valorizada pelos platonistas: “A natureza, excelente mãe, fez-‐
nos para a participação ativa na vida em sociedade e para a conservação da comunidade
humana.” Pedro Pomponazzi, discípulo aristotélico, sublinhou de forma bastante
consequente a realidade irresolúvel da ligação entre o corpo e a alma. Ele até repudiava a
possibilidade da imortalidade da alma, uma objeção que, para a época, era deveras ousada.
9
Razão e Experiência2
O Século XVII
Autoconsciência filosófica
A observação da natureza, o olhar a partir do cosmos fechado, a autoconsciência e a
valoração da subjetividade humana tais são os princípios que começam a gerar uma
concepção do mundo, no Renascimento, e que, já no Barroco, seriam complementados e
desenvolvidos, mas recebendo sobretudo novos fundamentos. A natureza é, neste período,
estudada com muito sucesso, através de métodos de medição e experimentação que têm por
base critérios matemáticos. O antigo modelo cosmológico, em que a Terra é o centro imóvel,
é definitivamente abandonado, e a nova concepção do sistema solar torna-‐se aos poucos
óbvia para todos aqueles que desfrutam do privilégio da educação.
Do ponto de vista da história da criação, pensadores sensatos, eminentemente lógicos, já não
atribuem ao homem um lugar privilegia do no cosmos, mas vêem-‐no como um ser dotado de
determinadas afecções e propenso a viver em sociedade. E a autoconsciência trans forma-‐se
num conceito filosófico, num lugar do pensamento puro por oposição ao mundo das coisas, e
procura em si mesma princípios do conhecimento, a fim de dar uma unidade sis temática à
massa daquilo que existe para ser investigado.
Esta questão dos princípios do conhecimento, justificáveis pela razão, põe-‐se cada vez mais,
com o desenvolvimento da ciência natural. Por um lado, tanto as teses filosóficas como as
hipóteses ou explicações físicas devem ser examinadas e passíveis de ser compreendidas no
seu contexto através da realidade empírica. A descoberta e a consequente aplicação de um
determinado método asseguram a transparência construtiva das teses. Falar de “sistemas”
filosóficos torna-‐se comum. Estes consistem em problemas, formulados e solucionados
metodicamente, cujo sentido pode ser avaliado pelos seus pres supostos e interpretações
bem sucedidas (do mundo).
Por outro lado, a “filosofia” permanece, ainda como o conceito geral de ciência; aliás, a obra
principal de Newton sobre mecânica e o sistema do mundo, publicada em 1687, por exemplo,
intitula-‐se Os Princípios Matemáticos da Filosofia Natural Mas, na verdade, a física já
adquiriu aqui a sua independência. Por isso é que a filosofia se concentra sobretudo em
suposições fundamentais, que são pres supostos conscientes ou inconscientes em cada uma
das ciências específicas, embora elas próprias não cheguem a ser tema.
O que “é” verdadeiramente, qual é a “substância” que permanece na mudança dos fenômenos
ocasionais e está na base do aparecimento? Ou não se pode dizer nada sobre algo como
2. Ibidem.
10
substância e apenas as percepções particulares são reais? O que significam as respostas a
estas perguntas para a compreensão da “verdade” e para afirmações que pretendem ser
universalmente válidas? Tais problemas constituem, evidentemente, um primeiro domínio
da filosofia. São os problemas da metafísica, que nesta altura ganham um colorido
especificamente moderno e gnoseológico. Podemos, a título de exemplo, explicá-‐lo da
seguinte forma: o pensar e o ser do pensado são, no próprio pensamento, diferentes. Este
confronto existe na filosofia desde a Antiguidade. Há desde então também regras para
determinadas operações racionais (lógica) e teorias sobre a relação entre o pensamento e o
ser, bem como sobre o modo como se chega a afirmações verdadeiras sobre Deus e o mundo.
Na Idade Moderna o pensamento volta-‐se para si mesmo e isola-‐se do “mundo exterior”, para
só então, num caso filosófico extremo, criá-‐lo a partir de um eu abstrato. Esse caso extremo,
no entanto, ainda não surge no século XVII.
O filósofo John Locke redige uma obra extensa sobre o conhecimento humano sem
correspondência nenhuma na Antiguidade e Idade Média. O pensamento é minuciosamente
estudado no seu “funcionamento”. Em David Humo, então, a consciência e o saber passarão a
estar reduzidos às impressões. As suas cópias e associações e todas as afirmações sobre a
substância e a realidade separada do conhecimento serão abandonadas.
A frase de Descartes, “Penso, logo existo”, é, pelo contrário, entendida como ponto de partida
do conhecimento objetivo da realidade. Mas é também o lema da nova posição do
pensamento e do ser a realidade existe para nós numa rede de construções pensadas. A
matemática torna-‐se o ideal metódico da filosofia: “Aqueles que buscam o caminho certo
para a verdade não podem ocupar-‐se de nenhum objeto a partir do qual não possam alcançar
uma certeza equivalente às provas aritméticas e geométricas”.
A natureza é um desses objetos, se for observada só como uma matéria determinada apenas
causalmente, segundo normas. A unidade imediata entre o homem e a natureza ou o cosmos,
tal como tinha sido vivida no Renascimento, é portanto abolida. Os filósofos distinguem entre
aquilo que se pode afirmar com segurança, de acordo com as condições do conhecimento, e
as coisas em si, fora de qualquer relação cognoscitiva. No Renascimento, descobrir belezas
harmoniosas nas relações entre medidas geométricas e as suas correspondências na
natureza significava descobrir características ainda verdadeiras e necessárias no plano de
construção do mundo. A racionalidade moderna, ao contrário, desfaz, em muitos aspectos, o
laço místico dos significados entre as coisas, o intelecto humano e a ordem divina.
Assim, é compreensível que, por exemplo Hegel, que, por volta de 1 820, proferiu palestras
sobre a história da filosofia em que considerava que o reaparecimento correspondente da
filosofia datava somente do século XVII, com Descartes, embora visse na cultura geral do
Renascimento e da Reforma o inicio de uma nova era. Se com isso os pensadores do
Renascimento foram também subestimados, é preciso não esquecer que, no século XVIII e
até Hegel, as correntes importantes da tradição filosófica — as autoridades antigas excluídas
11
— foram iniciadas por Descartes, Locke, Leibniz e os seus contemporâneos, remontando
raramente até um Ficini ou mesmo um Giordano Bruno.
12
RACIONALISMO3
Cepticismo e certeza
Os Essais (“Ensaios”) de Michel de Montaigne, publicados em 1 580, estabeleceram como
gênero literário a forma aberta, experimental (fr. essai, experiência) da representação rica
em pensamentos e ideias. Montaigne estava marcado, entre outros, pelas lutas religiosas do
seu tempo. Face às consequências violentas das posições religiosas inflexíveis, ele procurou
um ponto de vista subjetivo que lhe desse paz de espírito a partir da ironia pessoal,
consciente da efemeridade, e da moderação em comparação com os alicerces da razão
suposta mente objetivos. A representação ensaística adequava-‐se a essa posição. “Somos
todos feitos de remendos, e isto de forma tão amorfa e desordenada que todos os remendos
estão sempre a fazer o seu jogo.”
Aqui Montaigne retomou os antigos cépticos, por exemplo Pírron, fato que, no tempo da
Contra-‐Reforma, teve as suas consequências. A discrição céptica era considerada, não por
último, uma oportunidade de manter-‐se, com humildade espiritual, disponível para a
revelação. Com isso o cepticismo de origem religiosa opôs-‐se à razão construtiva, à ratio.
Esta razão estava perigosamente ameaçada, pois os cépticos sabiam questionar os seus
fundamentos de forma consequente. Em Descartes é possível ver como ele ambiciona
superar o cepticismo através de si mesmo. A partir da certificação pessoal do conhecimento
deveriam ser encontradas verdades certas, nas quais a realidade pudesse ser descrita
“corretamente”.
Já nos séculos XVI e XVII o termo “racionalismo” foi, de vez em quando, usado para tal. O
termo contrário é, no entanto, em geral, não “cepticismo”, mas “empirismo”, que designa
uma filosofia construída sobre a experiência sensível (grego empeiria = experiência). O
empirismo e o cepticismo aparecem, porém, muitas vezes unidos contra o racionalismo;
quando, por exemplo, só admitem “fenômenos” -‐ aquilo que nos aparece à vista —‘ sem
deduzir daí um ser objetivo. Enquanto, aliás, o adjetivo “empírico” é antigo, só se fala do
empirismo como uma determinada corrente filosófica a partir do século XVIII.
A filosofia do Barroco e do iluminismo é frequentemente descrita através do confronto entre
correntes racionalistas e empiristas, o que, no entanto, só compreende um determinado
aspecto dessa época. “Racionalismo” é então um conceito que pode referir-‐ se ao período da
Idade Moderna e estar simultaneamente limitado a ele. Mas é preciso notar que existe
também um conceito de racionalismo muito mais abrangente que, por exemplo, já diz
respeito a Platão. Assim, nos próximos capítulos serão descritas algumas características do
3Ibidem.
13
racionalismo que, em parte, também dizem respeito a filósofos da Antiguidade e da Idade
Média.
Em 1 607, Francis Bacon apresentou a seguinte imagem: “Os filósofos empíricos são como as
formigas: só recolhem e usam o que foi armazenado. Os racionalistas são como as aranhas,
tecem tudo a partir do seu interior. Mostrem-‐me um filósofo que, como uma abelha, possua
uma aptidão média, que recolhe a uma grande distância, mas digere e transforma, com a sua
própria força, aquilo que recolheu.”
Na verdade, todos os filósofos dignos do nome (entre os quais, todos os que aparecem neste
livro) são, segundo Bacon, “abelhas”, O confronto das formigas e das aranhas (Bacon tinha
certamente em mente alguns idiotas maníacos, seus contemporâneos) não corres ponde bem
aquilo que, hoje, os termos histórico-‐filosóficos “racionalismo” e “empirismo” significam.
Descartes e Leibniz, Locke e Hume não “tecem” nem “recolhem” (pelo menos não “em
exclusivo”), mas encontram teorias “sobre” a tecedura e a recolha (sobre o reconhecimento),
que também têm em conta posições contrárias e que nem sempre e em tudo se excluem.
Toda a verdade
Como os empiristas não argurmentam de mo do nenhum de forma irracional, o uso da razão
não é com certeza uma característica distintiva do racionalismo. Ele é, antes, a maneira como
a razão é vista e consolidada em todo o mundo.
A filosofia de Espinosa pode, por exemplo, ser designada por racionalismo “absoluto”,
porque parte da compreensibilidade geral, da estrutura de tipo racional do conjunto do
mundo. Esta convicção determina não apenas o conteúdo, como até a forma sob a qual a
doutrina de Espinosa é apresentada. Ele apresenta-‐a sob a forma de “more geométrico’ de
acordo com a geometria. Tal como Euclídes na sua obra Ele mentos, o principal livro de
geometria da Antiguidade, Espinosa dá no início definições e estabelece axiomas (princípios
que já não são deriváveis). A partir deles é extraída e provada então toda a série de teoremas
construídos em cadeia.
Descartes também dá definições dos conceitos básicos da sua metafísica, que possibilitam
essa construção. Sendo algo específico da razão pura, a lógica da demonstração euclidiana,
parece, portanto, adequar-‐se não apenas às estruturas ideais (geradas pelo próprio
intelecto) da geometria, mas também à realidade. Dito de um modo exagerado: o mundo
deixa-‐se deduzir (conclusão) de princípios primeiros. Claro que isto nunca chega a ponto de
pensarmos que, partindo da definição de Deus, chegaremos às coisas factuais particulares, e
que assim poderemos realmente explicar tudo. Mas poderíamos reter esta explicação
completa como o ideal dos racionalistas do Barroco.
De acordo com a concepção que se apresenta sob a forma geométrica, tem de haver
conceitos básicos originais, mais simples, que não resultaram simplesmente da experiência
subjetiva, mas que dizem respeito ao verdadeiro ser e, por assim dizer, o reproduzem. É por
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isso que o conhecimento pode chegar a afirmações, que “precedem” a experiência, mas que,
apesar disso, têm de provar ser verdadeiras na experiência. Fala-‐se aqui do conhecimento a
priori (lat: “de antes”, “que antecede”, “primeiramente”). Para os empiristas tal não existe
nesse sentido.
No racionalismo, ao conhecimento apriorístico está quase sempre associada a convicção de
que há “ideias inatas”. Não se trata de “imagens” acabadas, que estariam em nós desde o
nascimento. Está, pelo contrário, subentendida a disposição, a capacidade potencial, de
formar determinadas ideias, que não podem ser explicadas somente a partir da experiência.
E com isto é dada mais uma nota: os Racionalistas não concebem as “ideias” (isto é, conceitos
e representações no uso corrente de então) como imagens, que nascem diretamente ou, em
última análise, das impressões sensíveis. Ideias são conceitos do espírito,
independentemente do que isso possa querer dizer em cada caso.
De acordo com tudo isto, o nosso saber não pode, portanto, ser descrito como um somatório
de experiências. Os racionalistas do Barroco partem de um conjunto organizado a partir do
qual, e só então, é possível entender o particular. Consequentemente, tentam desenvolver os
seus sistemas como totalidades, como sistemas abrangentes e ordenados.
René Descartes
Uma árvore do conhecimento
O primeiro livro de Descartes é uma pequena autobiografia intelectual, a descrição breve e
estilizada da evolução dos pontos de vista, dos objetivos espirituais e das pesquisas de um
homem de 40 anos. É ao mesmo tempo um “tratado sobre o método do uso correto da
razão”. Este tratado, defendido modestamente, desenvolve inesperadamente uma intenção
objetiva e obrigatória, mas totalmente no sentido do estilo de um relato pessoal,
apresentando Descartes não como filósofo es colar, mas como gentleman, que procura uma
orientação de vida. O Discurso e as Meditações, obras que marcaram a sua época, es tão
escritas num tom conciliatório, cheio de concessões soberanas a autoridades teológicas, mas
também ao leitor, que é amavelmente conduzido através da argumentação viva.
Em nenhum ponto Descartes perde o contacto com a totalidade dos objetivos do
conhecimento humano. Matemático talentoso e inovador, ele não vê as suas descobertas
nesta área e nas ciências naturais separadamente, mas em conexão com uma fundamentação
filosófica da “possibilidade” das ciências naturais. Esta última já significa nesta altura a
aplicação da matemática ao mundo. Mas apesar da especialização das ciências, justamente
para Descartes, elas não estão separadas da filosofia. “Todas as diversas ciências não são
outra coisa senão a sabedoria humana, a qual permanece sempre una e idêntica, por muito
que se aplique a diferentes objetos.” No entanto, já não é evidente que a filosofia albergue
todo o saber do mundo; ela própria tem de se tornar científica. Descartes exprime a sua
noção de fundamentação filosófico-‐científica frutífera através da imagem de uma árvore (tal
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como Francis Bacon já o tinha feito de forma semelhante): a “ filosofia-‐ prima” ou metafísica
é a raiz, a física o tronco, a medicina e a mecânica os galhos e, no cume da árvore, a ética e as
aplicações práticas dessas ciências são os frutos.
Seria certamente exagerado aplicar esta imagem à obra de Descartes como raiz da filosofia
moderna; mas com ele começa, sem dúvida, uma nova corrente de pensamento. Aquela
árvore do saber cresce a partir de uma certificação metódica do dizível sem pressupostos
incompreendidos. Trata-‐se, a propósito, de uma certificação pessoal: a doutrina do
conhecimento e a teoria da experiência partem do eu, do pensamento e da sua própria
forma; sujeito e objeto separam-‐ se, e o sujeito é considerado o lugar de onde nasce a certeza.
Esta ideia prepara o caminho para uma grande parte da filosofia posterior que, cerca de um
século e meio mais tarde, no início de uma nova época, tornará, de modo ainda mais
consequente, a auto-‐referência no fundamento absoluto.
Dúvida metódica
Como para muitos filósofos do Renascimento, para Descartes o conhecimento erudito
transmitido pela tradição escrita já não é suficiente para estabelecer um saber seguro. O
constante enriquecimento da tradição através de novas experiências e até mesmo de
experimentações modernas também não abre, para ele, o caminho de saída do labirinto das
discussões e incertezas escolásticas. Ele quer um novo começo, quer “construir sobre um
terreno que pertença somente a mim”.
Isso exige mais do que a abolição de fontes errôneas, que só acarretaria um aperfeiçoamento
“relativo” do conhecimento. Implica também mais do que a descoberta, em cada momento e
caso (e com isso relativa), dos primeiros princípios de cada uma das ciências. Trata-‐se de um
início “incondicional”, um ponto arquimediano, de certa forma o sonho dos filósofos:
“Arquimedes exigiu somente um ponto fixo e imóvel para mover toda a terra do seu lugar. ,
assim, também eu posso permitir-‐me ter grandes expectativas, se encontrar algo, por menor
que seja, mas de uma certeza inabalável.” Para conquistar este ponto de partida certo,
rejeita-‐se tudo o que é incerto. Sistematicamente, o novo principiante filosófico ‘faz uso da
liberdade que lhe é própria e supõe que tudo aquilo a respeito de cuja existência permaneça
a mínima dúvida não existe”. A firmeza de ânimo na prossecução do objetivo torna claro que
não se trata de uma dúvida existencial, desesperada. Também não é um cepticismo radical,
tal como existira em jogos de ideias sofistas na Antiguidade, seja por convicção, seja por
inclinação. O cepticismo radical afirma com ousadia (e possivelmente também com
desespero): não existe nada, e se algo existisse, não se poderia falar sobre o assunto.
A posição de Descartes é bem diferente: o seu cepticismo pressupõe que, em princípio,
existem verdade e afirmações verdadeiras. A dúvida é justamente o experimento metódico
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para a averiguação do fundamento de tais afirmações. Neste caso, em primeiro lugar, são
invalidados todos os juízos sobre fatos de coisas (e/ou supostos fatos) apreendidos pelos
sentidos. Existem ilusões e, se nos enganamos uma vez, somos depois, por defeito,
desconfiados. É igualmente frequente sonharmos em todas as cores da realidade, embora às
imagens oníricas não corresponda nenhum ser independente. Generalizando, no
experimento da dúvida devemos partir do princípio de que mesmo se estamos convencidos
de estar despertos e sóbrios, às nossas ideias não corresponde nada de verdadeiro.
Sobre a existência do mundo exterior, portanto não há nenhum juízo certo; deve-‐se pô-‐la em
dúvida. Uma observação mais minuciosa mostra que até o próprio corpo pertence a esse
mundo exterior em princípio não — existente.
Há contudo fatos que só são analisados no espírito e são sempre, evidentemente,
reconhecidos como tais, tal como são na realidade. A eles pertencem as relações matemáticas
e os processos de justificação. O fato de uma diagonal dividir um retângulo em dois
triângulos iguais está na coisa em si. Neste caso simples é imediatamente compreensível,
como também passível de ser provado, toda a dúvida parece absurda. Mas, segundo
Descartes, em tais afirmações lógico-‐geométricas há uma realidade “ideal” que é
compreendida. E um “Deus-‐Enganador” todo-‐poderoso imaginado ou um gênio mau poderia
tornar até mesmo esta forma de referência à realidade numa mera ilusão, ou pelo menos
enganar a nossa memória acerca do que já foi provado. Toda a nossa memória e, por
conseguinte, toda a nossa existência até à presente data, talvez seja uma ficção que nos é
sugerida.
“Cogito, ergo sum”
Portanto, duvidamos definitivamente da objetividade dos nossos juízos e consideramos que
toda a realidade, antes pensada desta ou daquela forma, não existe. “Mas”, e aqui é que bate o
ponto, “não podemos supor que nós, que pensamos, nada somos. Já que a suposição de que
aquilo que pensa, no momento em que pensa, não existe é em si mesma uma contradição.
Consequentemente, a proposição “penso, logo existo” (ego cogito, ergo sum) é o primeiro e o
mais certo de todos os conhecimentos que se apresenta àquele que filosofa de acordo com as
regras.”
Vê-‐se que a proposição “penso, logo existo”, uma das mais famosas da filosofia, não pode ser
interpretada fora do contexto. Isolada, é inevitável que a nossa leitura da frase seja a de uma
dedução lógica, na qual o “logo” tem uma função decisiva: eu “penso”, logo eu “existo”. Sem
outras frases, cuja justeza, por sua vez, teria de ser demonstrada, essa dedução seria, em
termos de lógica, absurda e não serviria para o ponto de partida filosófico. E mesmo se às
vezes se diz que para Descartes o ser deriva do pensamento, isso é realmente
despropositado.
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O que se lê de fato é: “eu” penso, logo “eu existo”. A isso corresponde a versão latina no ponto
citado: cogito significa “eu penso”. A introdução do pronome pessoal ego (“eu”) significa uma
ênfase especial. A ênfase é natural, porque a frase responde à pergunta: o que “é” realmente,
como eu penso ou percebo? “Não se duvidava da existência de algo, nem de que algo, mesmo
que fosse um gênio mau, estava na origem das nossas ideias. Assim Descartes nas
Meditações, onde todo o pensamento é minuciosamente analisado, diz em vez de cogito, ergo
sum: “A proposição Eu penso; eu existo, todas as vezes que a pronuncio ou a concebo no meu
espírito, é necessariamente verdadeira.” Esta primeira proposição certa, vemos então, não é
uma fórmula original carregada de pressupostos profundos, mas designa uma evidência
simples, sempre compreensível. Para Descartes, evidente é o que se apresenta ao intelecto de
modo “claro e nítido”, indubitável, compreensível e tal como é.
‘Duvido, logo existo”. Com esta redação Descartes resume noutra passagem o que conquistou
no experimento das ideias. Através da dúvida enquanto ato auto-‐evidente do eu, todo o ser
independente do pensamento é separado deste enquanto tal. Resta uma esfera da
consciência pura. Um conceito muito importante é assim também introduzido na filosofia.
Conscientia, antes entendida mais no sentido de “consciência moral”, significa nesta época
“consciência psicológica”. É de referir ainda que para Descartes pensar quer dizer ter
compreendido mais do que uma série de estados de consciência. “Sou uma coisa pensante
(rescogitans)”, diz ele, cogitans revelar-‐se-‐ia uma indivisível, fundamental.
A veracidade de Deus
Com a evidência do “eu penso” terá Descartes alcançado o tão ambicionado ponto
arquimediano? Existe um começo, mas ainda não é possível “mover o mundo do seu lugar”.
Pois o eu está preso em si mesmo; fora da rescogitans, até então, não se conhecia coisa
alguma. Apesar de Descartes conceber, juntamente com a primeira certeza, a existência
também de um critério de verdade: tem de ser verdadeiro tudo o que é percepcionado com a
mesma clareza e a mesma nitidez com que a proposição “penso; existo” é reconhecida. Disto
fazem parte processos de justificação matemáticos ou proposições como “do nada surge o
nada”. Mas o critério permanece inicialmente, ainda em grande medida, limitado, não
podendo eliminar a dúvida e a possibilidade do gênio mau enganador. Para tal é preciso para
além do cogito, uma ideia que represente com indubitável verdade um objeto que exista
“fora” do pensamento.
É o caso da ideia de Deus que, segundo Descartes, preenche esta condição. Esta ideia não
pode ser fruto da fantasia. A omnipotência e a infinidade não são algo que encontramos em
nós ou que possamos criar a partir de outras ideias. E — aqui Descartes segue a filosofia
mais antiga — a causa de uma ideia deve sempre ter pelo menos tanta realidade quanto a
que a ideia, como efeito, representa. Portanto, a base dessa ideia só pode ser Deus. Por outras
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palavras: a nossa ideia de Deus confere-‐lhe todas as qualidades positivas imagináveis, isto é,
aquelas que não são limitadoras. A existência deve ver vista como uma dessas qualidades.
Portanto, Deus existe.
Naturalmente, estas ‘provas da existência de Deus” soam hoje estranhas. Mas, em suma, a
argumentação continua a referir-‐se ao eu pensante: ‘Toda a força da prova está no fato de eu
considerar que seria impossível a minha natureza ser tal qual é, a saber, ter em mim a ideia
de Deus, se Deus realmente não existisse.” Deus possui de fato toda a perfeição imaginável e
nenhuma imperfeição. “Deduz-‐se daí com clareza suficiente que esse Deus não pode enganar,
porque é óbvio que a mentira e a ilusão são fruto de uma imperfeição”. O critério de verdade
mencionado está desse modo salvo: Deus é o garante de tudo o que é reconhecido de forma
clara e distinta, é verdadeiramente assim.
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A Filosofia Moderna e Descartes
Eduardo O. C. Chaves
I. A Filosofia Pré-‐Moderna: Tendências Básicas
Para entender a filosofia moderna é necessário entender a filosofia que a precedeu -‐-‐ a
medieval e, até certo ponto, a filosofia antiga.
Embora haja consideráveis diferenças entre a filosofia antiga e a medieval, e mesmo entre as
diversas correntes que constituíram uma e outra, é possível detectar uma certa tendência
básica naquilo que poderíamos chamar de "filosofia pré-‐moderna", e que engloba elementos
básicos de uma e de outra.
Para a filosofia pré-‐moderna, em primeiro lugar, a existência daquilo que na filosofia
moderna se convencionou chamar de "mundo exterior" (a realidade externa à nossa mente)
não é um problema. Para ela, é pacífico que existe um mundo fora de nossa mente, que é
objeto de nosso conhecimento. Isso não precisava ser demonstrado, porque não havia se
tornado um problema.
Para a filosofia pré-‐moderna, em segundo lugar, a realidade contém objetos e fatos. Objetos
são coisas e fatos são estados de coisas. Tanto objetos como estados de coisas existem, na
realidade: eles são descobertos, não constituídos.
Além disso, e em terceiro lugar, para a filosofia pré-‐moderna o mundo exterior é
objetivamente ordenado. A realidade não é composta meramente de objetos e fatos isolados
uns dos outros. Objetos e fatos se vinculam uns aos outros, através de várias relações, dentre
as quais a principal é a de causalidade.
A relação de causalidade, para a filosofia pré-‐moderna, existe objetivamente na realidade:
um evento realmente causa o outro, e isto é um fato que pode ser constatado. A realidade
não é composta apenas por "fatos atômicos" -‐-‐ evento a e evento b, por exemplo -‐-‐ mas
também por fatos complexos -‐-‐ evento a causando evento b, por exemplo. A relação de
causalidade, portanto, não é redutível à relação de contiguidade espaço-‐temporal, como diria
Hume. Ela comporta também o nexo causal.
Isto significa que o mundo possui ordem, e que essa ordem existe independentemente do ser
humano. Não é o ser humano que impõe ordem à realidade: esta já é ordenada, cumprindo
ao ser humano apenas descobrir a ordem que já existe. É esse fato que possibilita o
conhecimento.
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A realidade, para a filosofia pré-‐moderna, portanto, contém fatos, atômicos e complexos.
Esses fatos, como visto, são estados de coisas que existem, na realidade: são descobertos, não
constituídos. Conquanto possam existir estados de coisas imaginários, fictícios, eles não
devem ser descritos como "fatos imaginários". Fatos são coisas reais.
Para a filosofia pré-‐moderna, em quarto lugar, a verdade é uma relação de correspondência
ou adequação entre os juízos de um sujeito e os fatos que são objeto desses juízos. Se o juízo
emitido por um sujeito corresponde aos fatos, é verdadeiro; se não existe essa
correspondência entre o juízo emitido e a realidade, ele é falso. A realidade não é nem
verdadeira nem falsa: ela simplesmente é. São nossos juízos acerca da realidade que podem
ser verdadeiros ou falsos.
Para a filosofia pré-‐moderna, em quinto lugar, temos evidência da verdade ou não de nossos
juízos através principalmente dos sentidos, pela percepção sensorial. E aquilo que nos é
dado na percepção é nada mais nada menos do que a realidade, propriamente dita, os
objetos e os fatos que compõem o mundo externo a nós. Embora seja notório que às vezes
nos enganemos em nossa percepção, a essa constatação não se dá importância muito grande
na filosofia pré-‐moderna.
Para a filosofia pré-‐moderna, em sexto lugar, é possível, partindo dos sentidos, descobrir
fatos sobre a realidade que transcende os sentidos: a chamada realidade supra-‐sensível (ou o
que comumente se chama de "sobrenatural"). Em geral, acreditava-‐se que era possível
descobrir fatos acerca de Deus (por exemplo) pela chamada "via natural", ou seja, apenas
refletindo sobre os fatos descobertos pelos sentidos.
Para a filosofia pré-‐moderna, em sétimo lugar, o conhecimento é o conjunto de juízos
verdadeiros e evidenciados nos fatos que compõem a realidade (sensível ou supra-‐sensível).
Para que haja conhecimento é necessário que haja um sujeito, que conhece, e um objeto, que
é conhecido.
A filosofia pré-‐moderna não duvida de que tenhamos conhecimento da realidade: ela é
plenamente confiante no conhecimento humano. Na verdade a confiança é tanta que ela pode
falar, sem embaraço, em milagres. não tem maiores problemas com o conceito de milagre.
Um milagre é um evento que, se ocorrer, viola ou suspende a ordem objetiva existente na
realidade. Para a filosofia pré-‐moderna, milagres, se de fato existem, acontecem a nível da
realidade, e não apenas de nosso conhecimento da realidade. Sua definição envolve
referência ao plano ontológico e metafísico, não apenas epistemológico. Milagre não é apenas
um nome para nossa ignorância da ordem (como diria Spinoza mais tarde): o milagre é uma
violação ou suspensão da ordem objetiva existente na realidade. Por isso é que se acreditava
que eles eram de sua importância: se de fato existem, eles provam alguma coisa. Falar em
milagres, porém, não quer dizer acreditar neles. Se realmente acontecem ou não é outra
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questão. Nem todos os filósofos pré-‐modernos acreditavam que milagres aconteciam. Mas
não tinham dificuldade com o conceito.
Para a filosofia pré-‐moderna, por fim, e em oitavo lugar, a pedagogia é o processo através do
qual a criança é levada a conhecer e a descobrir fatos, é o processo de condução do sujeito ao
objeto.
II. A Transição para a Filosofia Moderna: o Ceticismo
Embora tenha existido céticos na Antiguidade e na Idade Média, que duvidaram de que o ser
humano tenha conhecimento da verdade, ou mesmo que a verdade exista, o ceticismo nunca
foi considerado, na filosofia pré-‐moderna, como uma conditio sine qua non da filosofia.
Contudo, alguns eventos importantes ocorreram por volta do século XVI, que começaram a
criar um novo clima: o clima do ceticismo.
Um dos eventos importantes foi o surgimento da ciência moderna, especialmente no tocante
à chamada hipótese heliocêntrica.
A hipótese geocêntrica postula que a terra é o centro do universo e o sol e as demais estrelas,
bem como os outros planetas, giram ao redor da terra, que fica estacionária. Esta hipótese, é
bom que se diga, corresponde plenamente ao que nos indicam nossos sentidos. Nossos
sentidos nos dão a impressão de que a terra fica parada, não se movimenta, e que os outros
corpos celestes se movem ao redor dela. Se nos basearmos apenas nos sentidos, a hipótese
geocêntrica parece bastante bem confirmada pela evidência. Mais bem confirmada do que a
hipótese heliocêntrica.
No entanto, aqui vêm os cientistas, e propõem uma hipótese totalmente contrária à evidência
dos sentidos: a hipótese de que a terra não só gira em torno de um eixo como gira ao redor
do sol, que é o centro do sistema planetário de que a terra faz parte. Para acreditar na
hipótese heliocêntrica, é forçoso duvidar do que nos dizem nossos sentidos, é preciso admitir
que nossos sentidos nos enganam em relação a questões bem fundamentais.
Que nossos órgãos dos sentidos às vezes nos enganam é fato sobejamente conhecido, desde a
antiguidade mais remota. Mas o que começa a surgir agora é a inquietante pergunta: será
que nossos sentidos não nos enganam sempre? Se é verdade que a terra gira, em torno de um
eixo e ao redor do sol, contrário ao que dizem os sentidos, será que esses sentidos não nos
enganam em outros aspectos também? Será que realmente conhecemos a realidade?
Pior do que isso: às vezes sonhamos, ou temos alucinações, e imaginamos ver coisas que não
estão lá. O que é que garante que não estamos sempre sonhando ou alucinando? O cético
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começa a duvidar, não só de que temos conhecimento adequado da realidade, mas da
própria existência de uma realidade por detrás de suas ideias. Pode ser que estejamos
sempre sonhando ou alucinando!
As tendências básicas da filosofia pré-‐moderna começam a ser colocadas em questão.
Um outro evento que ajudou a questionar as bases da filosofia pré-‐moderna foi a reforma
protestante do século XVI.
Em um aspecto importante, a reforma protestante colocou em questão o problema do
critério de verdade religiosa (Popkin, cf Kenny).
Em outro aspecto importante, e relacionado, a filosofia pré-‐moderna, como vimos, acreditava
que, partindo dos sentidos, era possível chegar ao conhecimento de uma realidade que
transcende os sentidos: a chamada realidade supra-‐sensível (ou o que comumente se chama
de "sobrenatural"). Em geral, acreditava-‐se que era possível ter conhecimento de Deus (por
exemplo) pela chamada "via natural", ou seja, através da razão humana refletindo sobre os
dados fornecidos pelos sentidos.
É verdade que a filosofia pré-‐moderna, em geral, admitia que não podemos ter conhecimento
pleno de Deus pela via natural. O conhecimento assim obtido era relativamente elementar,
dizendo respeito apenas ao fato de que Deus existe e a algumas características que ele tem,
ou não tem. Para se chegar ao conhecimento pleno de Deus, a filosofia pré-‐moderna
geralmente admitia a necessidade de uma revelação divina, que suplementaria o
conhecimento obtido através da razão assistida pelos sentidos. Esse conhecimento
complementar não seria alcançado pela razão, mas pela fé -‐-‐ embora a filosofia pré-‐moderna
geralmente tenha mantido que a fé, embora supra-‐racional, não é contra-‐racional, ou anti-‐
racional, ou irracional.
A reforma protestante do século XVI não só negou como violentamente criticou essa
tendência empírio-‐racionalista da filosofia pré-‐moderna. Lutero chamou a razão de
prostituta, a afirmou que o conhecimento de Deus só vem pela fé, não pela razão, e que a fé é
algo que se opõe à razão. Na verdade, em alguns pronunciamentos dos reformadores, chega-‐
se a defender o ponto de vista de que a fé é tão mais intensa quanto mais irracional for o seu
objeto. O importante é a fé, não o conhecimento natural. E para demonstrar que a fé é mais
importante do que a razão, alguns dos reformadores procuraram mostrar quão falha é a
razão humana -‐-‐ contaminada que foi pelo pecado -‐-‐ e os sentidos humanos -‐-‐
frequentemente enganados e enganosos.
O resultado desse esforço foi ceticismo em relação à capacidade humana não só de conhecer
o que jaz além dos sentidos, mas também em relação à capacidade humana de conhecer,
23
simplesmente. A esse ceticismo, correspondeu sempre um fideísmo -‐-‐ a tese de que o
importante é crer.
Aqui talvez seja o momento de esclarecer que existem vários graus e diversas formas de
ceticismo.
Existe uma versão relativamente branda de ceticismo, que não duvidando da confiabilidade
dos nossos sentidos, e, portanto, não contestando a possibilidade de conhecimento empírico,
nega, entretanto, que possamos ir além dos sentidos, questionando, portanto, a existência do
chamado conhecimento supra-‐sensorial. Essa forma de ceticismo tem sido chamada de
ceticismo em relação à razão, mas a denominação não é muito adequada. Talvez seja mais
apropriado denominá-‐lo de ceticismo em relação ao supra-‐sensorial.
Além dessa, existem outras variantes de ceticismo que admitem a possibilidade de
conhecimento empírico e mesmo supra-‐sensorial, mas negam a a existência ou mesmo a
possibilidade da verdade, redefinindo o conceito de conhecimento de modo a eliminar
referência ao conceito de verdade. Essa forma de ceticismo poderia ser denominada de
ceticismo em relação à verdade.
Existem, por fim, variantes do ceticismo em relação aos sentidos. As duas principais são:
-‐-‐ o ceticismo que coloca em dúvida que os nossos sentidos nos forneçam conhecimento
adequado da realidade empírica, mas que não questiona a existência dessa realidade;
-‐-‐ o ceticismo que coloca em dúvida que os nossos sentidos nos forneçam conhecimento de
uma realidade extra-‐mental, e que questiona, portanto, a própria existência de um mundo
externo a nós.
Uma outra forma de classificar o ceticismo seria dividi-‐lo em versões radicais e moderadas.
A versão radical do ceticismo, também chamada de acadêmica (1), afirma que não temos
nenhum conhecimento, exceto do fato de que não temos conhecimento, que não existe
nenhuma verdade, a não ser aquela que afirma que a verdade não existe. O dito socrático, "Só
sei que nada sei", poderia ser considerado o slogan dessa versão .
A versão moderada do ceticismo, também chamada de pirrônica (2), nega que tenhamos
evidência adequada até mesmo para determinar se sabemos que nada sabemos. "Não sei
nem mesmo se nada sei", seria o seu slogan. A atitude adequada para o cético seria
suspender o juízo, até mesmo em relação ao ceticismo, ser cético até do próprio ceticismo.
(Como se pode ver, a versão chamada de moderada é, em certo sentido, mais radical do que a
versão dita radical).
24
III. A Filosofia Moderna e Descartes: Tendências Básicas
Nesta seção, analisarei as principais tendências do chamado pai da filosofia moderna:
Descartes. No essencial, o ponto de vista de Descartes, considerado um racionalista, é
adotado também pelo empirismo (representado por Hume) e pelo criticismo transcendental
(representado por Kant, que pretendeu suplantar tanto o racionalismo como o empirismo).
Apesar de a filosofia de René Descartes (1596-‐1650) se basear no que ele chama de "dúvida
radical", Descartes não é considerado um cético: é, frequentemente, conhecido como um
racionalista. Vou procurar mostrar, porém, que sua filosofia, apesar de ser apresentada por
ele como a resposta ao ceticismo, é, no essencial, fundamentalmente cética.
Descartes começa por refletir sobre as perguntas inquietantes do cético: Será que nossos
sentidos não nos enganam sempre? O que é que garante que não estamos sempre alucinando
ou sonhando?
1. Relação com a Filosofia Tradicional
Apesar de ter estudado em colégio jesuíta (La Flèche, de 1604 a 1612), Descartes veio a se
tornar altamente cético em relação à filosofia clássica que havia aprendido no colégio jesuíta.
Em relação à filosofia ele afirma:
"A filosofia nos ensina falar com aparência de verdade sobre todas as coisas, e nos leva a ser
admirado pelos menos eruditos. . . . [Contudo, apesar de] a filosofia ter sido cultivada por
muitos séculos pelas melhores inteligências que jamais viveram, . . . não há, nela, uma só
questão que não seja objeto de disputa, e, em consequência, que não seja dúbia" (DM, I,
84,86; cf. 90).
É o fato de que ele consegue duvidar da veracidade de tudo o que passa por filosofia que faz
com que ele se torne cético em relação a ela, e que tenha certo desprezo pela filosofia
tradicional. Se a filosofia vai ter lugar no universo de Descartes, ela terá que ser
drasticamente revista.
2. Paixão pela Matemática
Em seus primeiros anos em La Fleche, Descartes se dedicou também à matemática
(Copleston, IV, 74), que sobremaneira o impressionou, "por causa da certeza de suas
demonstrações e da evidência de seu raciocínio" (Ibid, p.85; cp. Copleston, IV, 75).
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Ele manifesta surpresa, porém, que a matemática não tenha sido utilizada, a não ser nas
"artes mecânicas", e que "nenhum edifício mais nobre tenha sido construído sobre suas
bases firmes e sólidas" (Ibid).
Ele tomou a si a tarefa de construir esse edifício mais nobre. Para ele, a filosofia somente
seria capaz de escapar dos ataques do cético se tivesse, como base de sustentação, um ponto
de apoio arquimédico que fosse certo e indubitável. É a busca desse ponto de apoio que
caracteriza sua filosofia.
3. O Método Cartesiano
O método de Descartes foi proceder de forma matemática, primeiro estabelecendo os
princípios fundamentais, para a seguir derivar deles suas consequências, da mesma forma
que teoremas são derivados de axiomas (Aune, 7-‐8, NKS, SCP, 27). Dessa forma, utilizando o
método rigoroso do raciocínio matemático, ele esperava construir, sobre bases firmes e
sólidas, um edifício filosófico que ficasse imune à controvérsia fútil que havia caracterizado a
filosofia que aprendera na escola (Aune, 7-‐8).
A primeira etapa na construção desse edifício é a descoberta de princípios básicos ou
axiomas, que funcionem como base e alicerce do edifício. A estratégia que ele utiliza para
chegar a esses princípios foi a da dúvida sistemática: nada que pode ser duvidado é aceitável
como fundamento de seu sistema.
Assim sendo, na busca desse ponto de apoio, Descartes resolve duvidar, sistematicamente,
de tudo. Ele se propõe submeter todas as suas crenças a uma revisão sistemática para tentar
encontrar aquela(s) de que ele não consegue, realmente, duvidar. Essas crenças
induvbitáveis lhe forneceriam a base para seu edifício, visto que seriam consideradas como
absolutamente certas (Aune, 7-‐8).
4. O Projeto Cartesiano
Na verdade, o projeto de Descartes é maior do que simplesmente reconstruir a filosofia. Ele
quer fornecer um fundamento racional para as crenças das pessoas comuns bem como para
a ciência que começava naquela época, da qual foi um defensor e para a qual fez
contribuições importantes.
Um indivíduo (seja ele uma pessoa comum ou um cientista) desenvolve muitas de suas
crenças antes de chegar à idade da razão. Mesmo depois da idade da razão, frequentemente
adquire crenças através do exercício não-‐crítico de sua atividade sensorial, de testemunhos
não confiáveis de outros, de apelo a autoridades indignas de crédito. Quem pretende ser
racional em suas convicções, tem, mais cedo ou mais tarde, de limpar a sua mente de todas as
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suas crenças, duvidando de tudo aquilo que é incerto e passível de dúvida, e reconstruindo
suas crenças sobre um novo fundamento, certo e indubitável (Kenny, 14).
Descartes resume seu projeto:
Muitos anos atrás percebi quantas opiniões falsas vinha aceitando como verdadeiras desde
minha infância, e quão dúbio tudo o que eu nelas baseava deveria ser. Decidi, então, que, se
realmente quisesse estabelecer algo de sólido e duradouro nas ciências, teria que,
deliberadamente, me livrar de todas as opiniões que até então aceitara e começar a construir
tudo de novo, a partir do zero. . . . Não seria necessário, para os meus propósitos, mostrar
que todas minhas convicções eram falsas -‐ tarefa que poderia nunca vir a concluir. Como a
razão já me havia persuadido de que deveria deixar de acreditar tanto nas coisas que
parecem ser manifestamente falsas como naquelas que não são inteiramente certas e
indubitáveis, o menor fundamento para uma dúvida seria suficiente para me fazer rejeitar
qualquer de minhas opiniões. Por isso, não precisei examinar cada uma de minhas
convicções, individualmente, o que seria um trabalho interminável, mas apenas os
fundamentos em que se baseavam, pois a destruição da fundação faz com que todo o edifício
venha a ruir" (Medit I, 144-‐45, cr Aune, 8-‐9)
O objetivo de Descartes é, portanto, examinar o fundamento que existe para as várias
categorias de crença que possuía. Se o fundamento de toda uma categoria de crenças pode
ser questionado, as crenças baseadas nesse fundamento não podem ser tidas como
inteiramente certas. Pode até ser que as crenças sejam verdadeiras, mas é também possível
que sejam falsas, e, se é possível que sejam falsas, elas não podem ser consideradas
indubitáveis. Talvez subsequentemente, quando encontrar fundamentos certos e
indubitáveis para suas crenças, Descartes possa voltar a aceitar algumas das crenças
abandonadas e mostrar que são verdadeiras. Por enquanto, porém, ele as colocará de lado
como suspeitas e indignas de credibilidade (Aune, 10).
5. Esclarecimento de Alguns Termos
É oportuno esclarecer alguns termos básicos do discurso cartesiano. Para Descartes,
"certeza" e "indubitabilidade" são termos, se não sinônimos, pelo menos correlacionados. Se
um enunciado é certo, ele também é indubitável. Um enunciado é certo, para Descartes,
quando ele é necessariamente verdadeiro. Um enunciado é indubitável, para Descartes,
quando não é possível que ele seja falso, quando não se pode encontrar nenhuma razão para
questioná-‐lo (por que é absolutamente certo).
Note-‐se que, para Descartes, a "necessidade" que ele atribui a um enunciado certo não é a
necessidade inerente às tautologias (àquilo que subsequentemente se veio chamar de
"enunciados analíticos"), visto que ele considera possível, pelo menos no primeiro estágio de
27
suas dúvidas, como veremos, que enunciados matemáticos sejam falsos, e, portanto,
dubitáveis.
Quando Descartes fala em dúvida, ele tem em mente uma dúvida racional, ou intelectual, não
uma dúvida existencial, ou prática. Duvidar racionalmente de uma crença é encontrar razões
para duvidar de sua veracidade, é identificar razões para pensar que a crença em questão
pode, possivelmente, ser falsa (Aune, 10). Eis o que diz Descartes:
"Há muito tempo que venho observando que, no que diz respeito à vida prática, é algumas
vezes necessário seguir opiniões, que se sabe ser muito incertas, como se elas fossem
indubitáveis. . . . Mas porque eu desejava me dedicar exclusivamente à busca da verdade,
pensei ser necessário fazer exatamente o oposto e rejeitar, como se fossem absolutamente
falso, tudo aquilo acerca do que pudesse ter a menor dúvida, para ver se, ao final, restaria
alguma coisa que fosse indubitável" (Discurso, VI, HR, pp 100-‐101, apud Williams, 34-‐35).
6. Primeiro Argumento Cético
Esclarecidas essas questões preliminares, vejamos como Descartes procede. O que mais nos
interessa aqui é como Descartes pode duvidar das crenças que adquiriu através de sua
percepção. Ele esclarece:
"Tudo o que, até o presente, aceitei como mais verdadeiro e certo, fiquei sabendo pelos
sentidos ou através deles. Mas posso provar que algumas vezes os sentidos me enganam, e
que é sábio não confiar inteiramente em algo que já alguma vez nos enganou" (Medit I, 145).
"Visto que os sentidos nos enganam algumas vezes, decidi supor que nada fosse como eles
nos fazem imaginar" (Discurso, VI, HR, 100-‐101, apud Williams, 35) 3.
Com esse primeiro argumento, Descartes vem a duvidar de seus sentidos e a considerar
dúbio e suspeito tudo o que ficou sabendo através deles. Os sentidos, portanto, não são o
fundamento absolutamente certo e indubitável que estava procurando. Parece não haver
critério que nos permita distinguir uma percepção errônea de uma correta.
Descartes considera a objeção de que, embora algumas vezes nos enganemos acerca de
coisas que percebemos há muito tempo, ou que percebemos de muita distância (ou seja,
acerca de coisas distantes, no tempo ou no espaço), não poderíamos nos enganar acerca de
impressões sensoriais, que estamos tendo no momento, de coisas próximas de nós. Parece
impossível duvidar de que, ao olhar para minha mesa, ali estejam minhas mãos escrevendo
em um papel -‐-‐ somente uma pessoa insana teria dúvidas disso!
28
7. Segundo Argumento Cético
A resposta de Descartes a essa objeção introduz um segundo argumento: o do sonho. Sua
resposta é a seguinte:
"Devo lembrar que sou um homem, e, como tal, tenho o hábito de dormir. Durante meu sono,
frequentemente sonho, e no sonho tenho impressões semelhantes às que pessoas insanas
têm quanto estão acordadas, ou até mesmo mais prováveis. Quantas vezes já não me
ocorreu, em sonhos, que eu estivesse em determinado lugar, vestido de tal maneira, sentado
próximo à lareira, quando, na realidade, estava na cama, dormindo. No momento presente,
realmente me parece que é com olhos despertos que vejo este papel, que a cabeça que
movimento não está adormecida, que é deliberada e intencionalmente que estico meu braço
e vejo minha mão. O que acontece durante o sono parece não ser tão claro e distinto como as
impressões que estou tendo agora. Mas ao pensar sobre tudo isso eu me relembro de que, em
muitas outras ocasiões, tive ilusões semelhantes, enquanto dormia. Examinando
cuidadosamente essas lembranças, concluo que, manifestamente, não existem indicações
certas pelas quais possa claramente distinguir as impressões que tenho, quando acordado,
das que pareço ter, enquanto durmo, e fico confuso. E minha confusão é tal que sou quase
capaz de me persuadir que no momento estou sonhando" (Medit I, 145-‐146, Aune 9-‐10).
Na ausência de indicadores claros que lhe permitam distinguir as impressões que tem
quando acordado das que lhe acontecem quando dorme, Descartes considera possível que
todas as suas percepções sejam totalmente ilusórias e que as coisas ao seu redor, incluindo o
seu próprio corpo, podem, não só ser totalmente diferentes do que lhe parecem ser, mas
realmente não existir, na realidade. Parece não haver critério que nos permita distinguir
percepções verídicas de inverídicas (4).
O primeiro argumento -‐-‐ o de que nossos sentidos às vezes nos enganam, produzindo
percepções equivocadas, e que, portanto, as coisas podem não ser como parecem -‐-‐ leva
Descartes a concluir que o mundo exterior pode não ser como parece.
O segundo argumento -‐-‐ o de que nos sonhos tenho percepções inverídicas, que não
correspondem a nenhuma realidade externa -‐-‐ leva Descartes a concluir que o mundo
exterior pode nem mesmo existir.
A diferença básica entre o primeiro e o segundo argumento é a seguinte. Quando somos
enganados pelos nossos sentidos, são os próprios sentidos que, retrospectivamente, nos
mostram que estávamos enganados. O erro, no caso de engano dos sentidos, não se
generaliza ao presente caso: ele se situa sempre num caso anterior, já passado. Somente se
constata um engano dos sentidos em contraposição a casos de percepção não-‐enganosa
(Kenny, 25) (5). No caso do sonho, porém, a dúvida se estende ao caso presente: pode ser
29
que esteja sonhando agora. O fato de que estou totalmente convencido de que não estou
sonhando agora em nada contribui para a certeza genuína de que não esteja sonhando. O
argumento do sonho é, portanto, mais radical.
Os argumentos, até agora, parecem nos mostrar que os sentidos não são confiáveis. Como a
ciência depende de observações sensoriais, a ciência, como um todo estaria sob suspeita, em
virtude desses argumentos -‐-‐ exceto, talvez, a matemática. Estaria a matemática acima de
qualquer suspeita, e residiriam nela os enunciados certos e indubitáveis que Descartes
procura?
8. Terceiro Argumento Cético
Deixando de lado, por um momento, as convicções baseadas nos sentidos, examinemos um
terceiro argumento de Descartes, apresentado quando ele passa a examinar algumas ideias
matemáticas simples. Os enunciados "dois mais três perfazem cinco", ou "um quadrado tem
quadro lados", não parecem ser enunciados cuja veracidade dependam dos sentidos.
Acordado ou sonhando, parece impossível que alguém seja enganado acerca de coisas tão
óbvias. Elas parecem ser certas e, portanto, indubitáveis.
"Acordado ou dormindo, dois e três perfazem cinco, e um quadrado tem apenas quatro
lados; e parece impossível que verdades assim tão óbvias fiquem sob suspeito de falsidade" (
Kenny,16)
Mas nem nesses exemplos matemáticos Descartes acredita encontrar o fundamento que está
procurando. Por um lado, as pessoas muitas vezes erram, considerando como auto-‐evidente
algo que não o é. Por outro lado, Deus, ou um ser extremamente poderoso, inteligente e
maligno, poderia enganá-‐lo em tudo o que pensa, e poderia ter disposto as coisas de tal
forma que ele fosse enganado até em relação a esses enunciados cuja verdade parece tão
evidente.
"Uma razão é que as pessoas fazem erros em raciocínios desse tipo e consideram como certo
e auto-‐evidente o que vemos ser falso. Outra razão, mais importante, é que Deus, que nos
criou, e que pode fazer tudo o que deseja, pode ter desejado nos criar -‐-‐ não sabemos ainda -‐-‐
de tal modo que sempre nos enganemos mesmo em relação àquelas coisas que pensamos
melhor conhecer" (Kenny, 17).
Para acrescentar rigor ao seu método, portanto, Descartes, que tem algum escrúpulo em
imaginar que Deus pudesse ser malévolo (Kenny, 35), supõe que exista esse ser
extremamente poderoso e inteligente, mas maligno, que ele chama de um "gênio maligno",
que faz com que nos enganemos "mesmo em relação àquelas coisas que pensamos melhor
conhecer" (6). Em decorrência dessa suposição, Descartes passa a duvidar da veracidade até
30
dos enunciados matemáticos mais simples e acrescenta rigor à sua dúvida da realidade
externa, inclusive de seu próprio corpo (7) (Medit II, 148-‐149, 101, Aune 10-‐11, Kenny, 18).
9. O Certo e Indubitável: O "Cogito"
Mas se nem os sentidos nem a matemática, nem as ciências empíricas nem as formais, estão
acima de dúvida, "o que é, então, que pode ser considerado verdadeiro?" (8)
A primeira resposta que se sugere é que a única coisa certa e indubitável é que nada é certo.
Mas mesmo essa afirmação não é e certa e indubitável: é bem possível que haja várias outras
coisas que sejam certas e indubitáveis, e, se houver, a afirmação não seria verdadeira. Até
mesmo dessa afirmação, portanto, Descartes conclui que deve duvidar.
Entretanto, Descartes percebe que, se ele duvida de tudo, há algo que não lhe é possível
duvidar, a saber, do fato de que está duvidando. Se ele duvida disso, pelo mesmo ato está
duvidando. Desse fato Descartes conclui que ele não pode duvidar se não existir, e que,
portanto, sua existência, como um duvidador, é absolutamente certa e indubitável. Nem
mesmo o gênio maligno pode enganá-‐lo acerca disso, porque, para ser enganado, ele,
Descartes, tem que existir: ele não pode ser enganado se não existir.
Como duvidar, ser enganado, etc., são formas de atividade mental, que podem ser chamadas
de pensamento, Descartes conclui que, se ele está pensando, num dado momento, então sua
existência é, naquele momento, absolutamente certa e indubitável. "Cogito, ergo sum" (9).
Ele não pode estar errado, portanto, acerca do fato de que o enunciado "Penso, logo existo" é
necessariamente verdadeiro todas as vezes que ele o concebe ou declara (10).
Com esse enunciado Descartes acredita ter descoberto sua primeira verdade certa e
indubitável. Ele existe todas as vezes que pensa, que duvida, que é enganado.
"Observando que essa verdade, 'Eu penso, logo existo', é tão sólida e firme que nem as mais
extravagantes suposições dos céticos podem derrubá-‐la, julguei que não precisava ter
escrúpulos de aceitá-‐la como o primeiro princípio da filosofia, que eu buscava" (HR, I, 101;
Kenny, 40)
Mas esse conhecimento é extremamente limitado em escopo. Ele tem certeza de que existe
quando pensa, mas não sabe, por exemplo, qual a sua natureza -‐-‐ ele sabe que ele é, não o
que ele é -‐-‐ nem se continua a existir quando para de pensar. É preciso, portanto, continuar a
busca.
31
10. A Natureza do Eu
Descartes passa, portanto, a investigar a natureza daquilo que, ao pensar, ele tem certeza de
que existe.
Como se viu, Descartes encontrou razões para duvidar de tudo o que depende dos sentidos.
O ele ter certeza de que existe, portanto, não implica que ele tenha certeza de que tem um
corpo, que ele tenha impressões sensoriais, sensações. A única coisa de que Descartes pode
ter certeza é de que existe enquanto ser pensante, enquanto res cogitans.
"Aqui descubro o que me pertence. Eu sou, eu existo -‐-‐ isto é certo. Mas por quanto tempo?
Apenas enquanto eu continuo a pensar, porque é possível que, ao deixar de pensar, deixe de
existir. Não estou admitindo nada que não seja necessariamente verdadeiro. Estou, portanto,
me considerando apenas como um ser pensante, isto é, uma mente -‐-‐ alma, entendimento,
razão, termos cujo sentido até aqui é desconhecido. Eu sou, portanto, uma coisa real, uma
coisa que realmente existe. Mas que tipo de coisa? Eu já disse: uma coisa que pensa" (Medit,
apud Aune, 12) (11)
Se alguém lhe perguntar se seus pensamentos têm alguma causa externa, Descartes
responde que seus pensamentos podem ter sido causados por algo externo a ele, como
podem ter sido produzidos em sua mente por Deus, pelo gênio maligno, ou então por ele
mesmo. Tudo isso é possível, e, portanto, nenhuma dessas causas possíveis pode ser
considerada certa.
11. As Marcas da Verdade Certa e Indubitável
O caminho que Descartes decide seguir, a partir desse ponto, é, tendo encontrado pelo
menos uma coisa absolutamente certa, examiná-‐la, para ver se consegue descobrir nela as
marcas identificadoras de algo indubitável, para ver se consegue definir o que é que a torna
indubitável.
Sua conclusão é que nada existe no enunciado "penso, logo existo" além de uma "apreensão
clara e distinta" do que é afirmado. Apreensão clara e distinta deve, portanto, ser marca da
verdade certa e indubitável (Aune, 12-‐13) (12).
"Estou certo de que sou uma coisa que pensa: mas não saberei eu, igualmente, o que é
necessário para que eu tenha certeza de uma verdade? Certamente, nesse primeiro
conhecimento, nada há que me assegure sua verdade, exceto a percepção clara e distinta
daquilo que afirmo, que não seria suficiente para me garantir que aquilo que afirmo é
verdadeiro se fosse possível que algo que concebo clara e distintamente viesse a ser falso.
Dessa forma, parece-‐me que posso já estabelecer, como regra geral, que todas as coisas que
32
percebo muito claramente e muito distintamente são verdadeiras" (Medit III, HR, 158 -‐
quoted from source).
12. Intuição e Dedução
Mas não são apenas os enunciados claros e distintos que podem ser consideradas certos e
indubitáveis. Qualquer enunciado que possa ser validamente deduzido deles também terá as
mesmas características .
Em As Regras para a Direção da Mente, escrito por volta de 1630, Descartes afirma que nosso
conhecimento depende de duas operações da mente: intuição e dedução. Intuição é o nome
que ele aqui dá à "apreensão clara e distinta":
"Intuição é a concepção que uma mente não anuviada e atenta nos dá tão pronta e
claramente que deixamos de ter qualquer dúvida acerca daquilo que compreendemos".
Seu conhecimento de que, se ele pensa, ele existe enquanto coisa pensante, é intuitivo, nesse
sentido do termo: Ele afirma:
"Quando eu observo que nós somos seres pensantes, esta é uma espécie de noção primária,
que não é conclusão de nenhum silogismo. Quando alguém diz: 'Estou pensando, logo eu
existo', ele não está usando um silogismo para deduzir a sua existência de seu pensamento,
mas está apenas reconhecendo este fato como algo evidente, em uma simples intuição
mental" (HR, II, 38; Kenny,41; cf.51ff) (13).
Dedução, por outro lado, é inferência necessária de coisas que são conhecidas com certeza.
Para Descartes, embora a dedução difira da intuição, é baseada nesta, pois cada passo em
uma cadeia dedutiva corresponde a uma intuição: é preciso apreender clara e distintamente
cada passo na dedução. (Aune, 16, Kenny, 55)
Tendo estabelecido um enunciado absolutamente certo e indubitável, Descarte prossegue
em sua investigação para ver o que pode ser dele deduzido. Tendo colocado no lugar o
alicerce, ele pretende agora construir o prédio.
13. O Terceiro Argumento Recolocado
Voltemos à questão dos enunciados matemáticos. Depois de ter estabelecido um enunciado
certo e indubitável, Descartes volta a considerar a afirmação de que 2 mais 3 perfazem 5.
Segundo ele, quando ele contempla essa afirmação, levando em conta apenas o enunciado,
ele tem uma apreensão clara e distinta de sua verdade. Ele só considera a afirmação dúbia
por causa da hipótese do gênio maligno, que pode lhe enganar mesmo acerca de coisas que
lhe parecem evidentes. Ele reconhece, agora, que este fundamento para sua dúvida é frágil,
33
porque não nenhuma razão para acreditar que esse gênio maligno exista. Mas mesmo um
fundamento frágil precisa ser levado em conta.
Para eliminar a hipótese da existência do gênio maligno, Descartes se sente obrigado a
provar que um ser todo-‐poderoso existe, mas não é enganador. Essa prova é equivalente a
uma prova da existência de Deus, e vai permitir que ele passe a aceitar como verdadeiros
enunciados que ele parece apreender como claros e distintos mas que, por causa da hipótese
do gênio maligno, havia rejeitado.
14. A Existência de Deus
Vejamos, agora, que argumentos Descartes usa para provar (14) a existência de Deus. É
possível detectar várias provas em seus escritos.
No Discurso Descartes desenvolve uma prova baseado na ideia de perfeição.
15. Argumento Circular?
Antes de prosseguir é oportuno esclarecer uma questão controvertida: é discutível se
Descartes considerou clareza e distinção como marcas apenas de certeza e indubitabilidade
ou também de verdade.
Caso seja apenas a primeira hipótese, estaria o "cogito" incluído entre as verdades que são
certas e indubitáveis mas não necessariamente verdadeiras, como as matemáticas? A mim
me parece que o certo e o indubitável é igual ao verdadeiro para Descartes.
O que ele distingue (mal) é entre verdades que são certas e indubitáveis, mesmo com a
hipótese de um gênio maligno (como o "cogito", e, talvez algumas outras verdades) e
enunciados que parecem certos e indubitáveis, mas, com a hipótese do gênio maligno (i.e.,
sem a prova da existência de Deus) não podem ser tidos como verdadeiros.
Em vários locais Descartes afirma, explicitamente, que mesmo a hipótese de um Deus
enganador ou de um gênio maligno não pode fazê-‐lo duvidar do "cogito", isto é, de que ele
pensa, e, em pensando, existe. (EVIDÊNCIA)
Mas é apenas depois de provar que Deus existe, e, que, sendo benevolente, além de todo-‐
poderoso, não permitiria que um gênio maligno nos enganasse tão desavergonhadamente,
que Descartes se considera justificado em considerar os enunciados matemáticos (e outros,
como veremos) como verdades certas e indubitáveis. Na verdade, após ter provado que Deus
existe, Descartes abre as portas e reintroduz tudo de que antes havia duvidado.
34
Parece claro, portanto, que, para Descartes, há uma diferença qualitativa entre o "cogito" (de
que ele acha impossível duvidar) e as outras verdades que parecem ser claras e distintas
(mas que ele acha possível duvidar). Essa interpretação tem ainda o mérito de não imputar a
Descartes um argumento circular: o de que ele usa o "cogito" para definir que clareza e
distinção são critérios de verdade, em seguida usa esses critérios para provar a existência de
Deus, e, por fim, usa a existência de Deus para provar que os enunciados que apreendo de
forma clara e distinta são verdadeiros (Vr Doney, 213 ff).
No Discurso, por exemplo, ele diz (a primeira passagem já foi citada):
"Observando que essa verdade, 'Eu penso, logo existo', é tão sólida e firme que nem as mais
extravagantes suposições dos céticos podem derrubá-‐la, julguei que não precisava ter
escrúpulos de aceitá-‐la como o primeiro princípio da filosofia, que eu buscava" (HR, I, 101;
Kenny, 40)
"Depois disso eu considerei o que, numa proposição, é necessário para que seja verdadeira e
certa, pois, desde que acabara de descobrir uma que sabia ser tal, pensei que devesse saber
no que consistia essa certeza. E tendo notado que não havia absolutamente nada no
enunciado 'Eu penso, logo existo' que me garante ter com ele feito uma afirmação
verdadeira, exceto o fato de que vejo muito claramente que, para pensar essa afirmação, ela
tem que necessariamente ser verdadeira, concluí que eu poderia pressupor, como regra
geral, que as coisas que concebo muito clara e distintamente são todas verdadeiras -‐-‐
lembrando-‐me, entretanto, de que há alguma dificuldade para determinar quais são as coisas
que distintamente concebemos" (HR, I,102).
Especialmente a última frase é sugestiva: Descartes afirma que tudo o que clara e
distintamente percebe é verdadeiro, mas reconhece que existem dificuldades para
determinar se o que estamos apreendendo está sendo apreendido de forma clara e distinta.
Considero que essa última frase corrobora, de maneira especial, minha interpretação.
Em passagem das Meditações, já citada, e muito parecida com as passagens do Discurso que
acabo de citar (a "regra geral", por exemplo, é mencionada em ambas), Descartes afirma:
"Estou certo de que sou uma coisa que pensa: mas não saberei eu, igualmente, o que é
necessário para que eu tenha certeza de uma verdade? Certamente, nesse primeiro
conhecimento, nada há que me assegure sua verdade, exceto a percepção clara e distinta
daquilo que afirmo, que não seria suficiente para me garantir que aquilo que afirmo é
verdadeiro se fosse possível que algo que concebo clara e distintamente viesse a ser falso.
Dessa forma, parece-‐me que posso já estabelecer, como regra geral, que todas as coisas que
percebo muito claramente e muito distintamente são verdadeiras" (Medit III, HR, 158 -‐
quoted from source).
35
Contudo, é forçoso reconhecer que em várias outras passagens Descartes textualmente
afirma que sem o conhecimento da existência de Deus não poderia saber nada. Eis algumas
delas:
"Para remover inteiramente [a possibilidade de dúvida baseada no Deus enganador] devo
investigar se há um Deus assim que a ocasião se apresentar, e, se concluir que Deus existe,
devo investigar se Ele pode ser um enganador. Sem conhecimento dessas duas verdades, não
vejo como jamais possa ter certeza de qualquer coisa" (Medit III, HR 159, from source).
"Depois que reconheci que há um Deus -‐-‐ porque ao mesmo tempo também reconheci que
todas as coisas dependem dEle, e que ele não é um enganador, e disso inferi que o que
percebo clara e distintamente não pode deixar de ser verdade -‐-‐ nenhuma razão contrária
pode ser apresentada que me faça duvidar da verdade de algo que clara e distintamente
percebi, desde que me lembre tê-‐lo clara e distintamente percebido (mesmo que no
momento não tenha em mente as razões que levaram a julgá-‐lo verdadeiro), e, assim, posso
dizer que tenho conhecimento verdadeiro e certo dessa coisa" (Medit III, HR 184).
"E assim eu claramente reconheço que a certeza e a verdade de todo conhecimento depende
apenas do conhecimento do verdadeiro Deus, à medida que, antes de conhecê-‐lO, não
poderia ter um conhecimento perfeito de nenhuma outra coisa" (Medit III, HR, 185) (NB:
conhecimento perfeito).
16. A Metafísica Cartesiana: O Dualismo Mente-‐Corpo
Antes de prosseguir, é interessante registrar como Descartes consegue duvidar de que
realmente exista um mundo exterior. Aparentemente, esse mundo nos é dado pela
percepção: através de nossos órgãos dos sentidos, percebemos o mundo exterior. Pelo
menos esse é o ponto de vista tradicional, conhecido como realismo (às vezes qualificado de
"ingênuo").
Descartes não concorda com esse ponto de vista tradicional. Para ele, a nossa mente (ou
consciência) e a realidade externa são dois reinos separados e autônomos, nenhum sendo
dependente do outro. Embora ele não negue que a mente seja capaz de compreender objetos
externos a ela, aquilo de que estamos imediatamente conscientes, para Descartes, não são os
objetos externos, mas apenas representações mentais, ou ideias, produzidas pela nossa
própria mente. A mente, portanto, tem contato com o mundo externo apenas através de
ideias, que são representações mentais dos objetos externos.
O objeto de nossa percepção, portanto, não são os objetos externos, como acreditam os
realistas ingênuos, mas representações mentais desses objetos. Aquilo que nos é direta ou
imediatamente dado na percepção são ideias que existem apenas na mente (embora possam
36
representar objetos externos). Vou chamar essa teoria da percepção de
"representacionalismo" (15).
Essa teoria da percepção é baseada na metafísica cartesiana, i.e., na teoria da mente e da
realidade externa que Descartes advoga. Para ele, a mente é uma substância ou entidade,
caracterizada fundamentalmente pelo fato de ter consciência, de ser uma coisa que pensa,
que percebe, que sente (res cogitans). A realidade externa é material, e a matéria tem como
característica básica o fato de ser extensa (res extensa). Consciência e extensão são coisas
claramente distintas, podendo cada uma delas ser clara e distintamente concebida sem
referência à outra. Os vários estados de consciência (pensamento, sensação, sentimento) são
totalmente distintos dos vários modos de determinação da matéria. Por isso, nenhum estado
de consciência pode ser essencialmente dependente de qualquer coisa física. A mente, e tudo
que ela possui, pode existir sem qualquer substância material (16).
Essa metafísica radicalmente dualista tem sérias implicações epistemológicas. Afirmar que a
consciência é um atributo intrínseco de uma substância é negar que a consciência seja
relacional, isto é, é negar que a consciência se constitua através da relação com algo que é
diferente dela própria, a saber, a realidade externa. Por causa disso, é inteiramente possível,
para Descartes, que tenhamos exatamente as mesmas experiências que temos e que não
exista nada, fora de nossa própria mente, que seja responsável pelos nossos estados de
consciência. Os estados de consciência da mente dependem apenas da própria mente, de
nada mais (17).
É por isso que Descartes consegue duvidar da existência de um mundo exterior sem duvidar
da existência de seus estados de consciência -‐-‐ porque consciência, para ele, não é
consciência de algo diferente dela mesma.
Note-‐se que a consciência, para Descartes, tem objetos, é consciência de alguma coisa, mas os
objetos da consciência são mentais, e, no fundo, não se distinguem dela mesma. Uma ideia é,
para Descartes, um objeto da consciência mas também, ao mesmo tempo, um estado da
consciência (18).
Se essa teoria parece difícil de entender, usemos, para entendê-‐la, a analogia proposta por
David Kelly. Imaginemos que a mente seja como um projetor de cinema. O facho de luz que
ele projeta é um atributo essencial do projetor: sem ele não haveria projetor (o facho de luz é
análogo à consciência). Os objetos na tela são os objetos da consciência. Contudo, o projetor
não é uma lanterna que ilumina objetos independentes da lanterna. O projetor contém um
facho de luz (a consciência) que cria e constitui as imagens que ele ilumina: os objetos na tela
existem apenas "na" luz -‐-‐ se ela se apagar eles deixam de existir (19).
37
17. O Ceticismo de Descartes
Do que foi dito fica claro que Descartes é um cético -‐-‐ mas por razões outras do que as que
ele invocou para a sua dúvida. Ele é cético porque sua epistemologia, em especial sua teoria
da percepção, o leva a negar que tenhamos conhecimento do mundo externo -‐-‐ a menos que
se invoquem hipóteses auxiliares de fundamentação muito duvidosa, como a da existência de
Deus. Para Descartes, a única forma de garantir que a nossas ideias corresponde um mundo
lá fora é o suposto fato de que Deus existe e que, sendo perfeitamente bom, não permitiria
que nos enganássemos sobre algo tão fundamental como a existência do mundo exterior.
Elimine-‐se a hipótese de Deus e Descartes se torna o cético mais radical em relação ao
conhecimento empírico.
Notas:
1. Assim chamada porque se desenvolveu na Academia Platônica do século III AC. Cf. Popkin,
ix. Afirma Popkin: "O alvo do filósofo cético Acadêmico era mostrar, através de uma série de
argumentos e quebra-‐cabeças dialéticos, que o filósofo Dogmático (i.e., aquele que afirmava
que ele tinha conhecimento de alguma verdade acerca da real natureza das coisas) não
poderia saber, com certeza absoluta, o que dizia saber. Os Acadêmicos formulavam uma série
de dificuldades para mostrar que as informações que obtemos através dos sentidos não são
confiáveis, que não podemos ter certeza de que nossos raciocínios são confiáveis, e que não
possuímos um critério ou padrão seguro que nos permita distinguir o verdadeiro do falso".
2. Assim chamada porque foi primeiro apresentada por Pirro de Elis, que viveu por volta de
315 a 225 AC. Cf. Popkin, x. Afirma Popkin: "Os pirrônicos consideravam que tanto os
Dogmáticos como os Acadêmicos afirmavam demais, um grupo dizendo 'Algo pode ser
conhecido", o outro dizendo "Nada se pode saber". Em lugar disso, os Pirrônicos propunham
a suspensão do juízo sobre todas as questões em relação às quais parece haver evidência
conflitante, incluindo a questão se há ou não há conhecimento".
3. Nenhum exemplo de enganos dos sentidos é fornecido na primeira Meditação. No Discurso
e na sexta Meditação, porém, Descartes menciona uma série de exemplos bastante
conhecidos e sempre invocados na literatura cética: uma torre quadrada parece redonda à
distância, estátuas altas parecem pequenas à distância, estrelas distantes parecem muito
menores do que são, pessoas que tiverem membros amputados ainda sentem dor no lugar
em que os membros não mais se encontram. Registre-‐se que os exemplos dados por
Descartes envolvem geralmente o que veio a ser chamado (a partir de Locke) qualidades
secundárias, e não as qualidades primárias, que também Descartes acreditava existir apenas
na mente. Cf (Kenny, 25-‐28).
4. Cf. Kenny, 29ff
38
5. Na verdade, Descartes nega que é uma experiência sensorial que corrige a outra: ele
afirma que é o intelecto, com base em outras impressões sensoriais, que faz a correção. Ao
enfiar um pauzinho na água, percebo, pelo meu sentido de visão, que o pauzinho fica torto.
Meu sentido de tato, contudo, mostra que o pauzinho não está torto. Só os sentidos não me
permitem adjudicar entre essas impressões sensoriais conflitantes. É o intelecto que me leva
a, neste caso, optar pelo impressão produzida pelo tato. Cf. Kenny, 26).
6. Alguns críticos de Descartes têm apontado que ele não precisaria da hipótese do gênio
maligno para colocar em dúvida enunciados matemáticos. Bastaria que ele invocasse a
possibilidade de que, em sonho, tenhamos uma apreensão clara e distinta de que (por
exemplo) dois e três são seis. Descartes procurou rebater esse argumento afirmando que,
num caso como esse, o sonhador apenas pensaria estar tendo uma apreensão clara e distinta,
mas que na verdade não a estaria tendo. Mas essa resposta é inadequada, no contexto,
porque ela poderia ser aplicada também a percepções sensoriais. Por que não afirmar, em
relação à pessoa que em sonho percebe estar ao lado da lareira, etc., que ela apenas pensa
estar percebendo, mas na realidade não está. O argumento do sonho, como bem aponta
Kenny (33-‐34), ou é insuficiente para questionar percepções presentes, ou então é suficiente
para questionar também a matemática (dispensando a hipótese do gênio maligno).
7. Erro em relação a enunciados matemáticos e à percepção parece ser tão difícil que nada
menos do que onipotência parece ser necessário para perpetrá-‐lo. Cf. Kenny, 34.
8. Muitos autores têm apontado que a dúvida de Descartes não foi tão radical quanto ele
pretende. Se ele acreditava que os sentidos o haviam enganado algumas vezes, ou que
matemáticos às vezes erram em seus raciocínios, então ele deve estar confiando em sua
memória, ou na experiência subsequente de constatar o erro. Talvez, para se sair dessa
constatação, ele pudesse dizer que está apenas invocando relatos contraditórios acerca de
experiências sensoriais ou de cálculos matemáticos. Mas mesmo assim, ele continuaria não
colocando em dúvida o princípio da não-‐contradição, que afirma que contraditórios não
podem ambos verdadeiros. Esse princípio Descartes não questiona nem mesmo com a
hipótese do gênio maligno, e Descartes parece ter acreditado que era impossível duvidar
dele. Descartes também não duvida de que ele conhece o sentido das palavras que ele usa,
que ele sabe o que é pensamento, certeza, dúvida, verdade, existência (Cf. HR, I, 222) (Cf.
Kenny, 20-‐21, 26-‐27, 50). Leibniz reclama que Descartes deveria ter fornecido critérios de
clareza e distinção se realmente pretendia que esses conceitos servissem como marcas da
verdade. Doney, 251, Popkin, SED (?), 205
9. Quando me refiro ao "cogito", entre aspas, como no título da presente seção, refiro-‐me a
todo o argumento que culmina na expressão "Cogito, ergo sum".
39
10. É questionável, como se verá adiante, que o que aqui se apresenta seja um argumento
dedutivo (o que Descartes chama de um "silogismo"), no sentido estrito da expressão. Se
fosse, estaria faltando a premissa maior, a saber: "Se penso, existo" -‐-‐ que exprime a ideia de
que, para pensar, é preciso existir. Descartes reconhece isso e considera essa premissa tão
óbvia a ponto de dispensar explicitação. Cf Kenny, 50ff
11. Cf Malcom, "Descartes' Proof that his Essence is Thinking"; cp article in APQ, 1972 or
1973, sobre o mesmo tópico, Check Yandell/Weinberg, intro to section on dualism
12. Cf "Clearness and Distinctness in Descartes", in Doney, p.250. Para que clareza e distinção
fossem critérios de verdade certa seria necessário que tivéssemos critérios de clareza e
distinção, que não temos.
13. A intuição, no caso, não se aplica apenas à conclusão de que ele existe, mas ao fato de que
em pensando ele sabe que existe. Nem é legítimo afirmar que Descartes reivindica ser
possível intuir sua existência. O objeto da intuição é a inferência de que ele existe a partir do
dado de que ele pensa, embora nas Regulae Descartes afirme que é possível intuir a
existência, sem referência ao pensamento. Mas as Regulae foram escritas antes das
formulações mais cuidadosas do "cogito" (Kenny, 51-‐55).
14. Obviamente, ao usar o termo "prova", mesmo sem aspas, não estou pré-‐julgando a
validade dos argumentos de Descartes. Uso o termo com aspas, ou qualificado por "suposta",
"pretensa", etc., tornaria o texto por demais pesado. Por isso prefiro usar a terminologia que
Descartes, que sem dúvida estava convencido da validade de seus argumentos, utilizou.
15. Cf. David Kelly, The Evidence of the Senses: A Realist Theory of Perception (Louisiana
State University Press, Baton Rouge, 1986), p.10.
16. Cf. David Kelly, op.cit., p.11.
17. Cf. David Kelly, op.cit., p.11.
18. Cf. David Kelly, op.cit., p.11.
19. Cf. David Kelly, op.cit., p.12.
(*) Este trabalho consiste basicamente de notas de aula e, portanto, não deve ser julgado com
o mesmo rigor que se julga um artigo publicado ou um paper.
© Copyright by Eduardo Chaves
40
A máquina do mundo newtoniana4
A visão do mundo e o sistema de valores que estão na base de nossa cultura, e que
têm de ser cuidadosamente reexaminados, foram formulados em suas linhas essenciais nos
séculos XVI e XVII. Entre 1500 e 1700 houve uma mudança drástica na maneira como as
pessoas descreviam o mundo e em todo o seu modo de pensar. A nova mentalidade e a nova
percepção do cosmo propiciaram à nossa civilização ocidental aqueles aspectos que são
característicos da era moderna. Eles tornaram-‐se a base do paradigma que dominou a nossa
cultura nos últimos trezentos anos e está agora prestes a mudar.
Antes de 1500, a visão do mundo dominante na Europa, assim como na maioria das
outras civilizações, era orgânica. As pessoas viviam em comunidades pequenas e coesas, e
vivenciavam a natureza em termos de relações orgânicas, caracterizadas pela
interdependência dos fenômenos espirituais e materiais e pela subordinação de
necessidades individuais às da comunidade. A estrutura científica dessa visão de mundo
orgânica assentava em duas autoridades: Arist6teles e a Igreja. No século XIII, Tomás de
Aquino combinou o abrangente sistema da natureza de Aristóteles com a teologia e a ética
cristãs e, assim fazendo, estabeleceu a estrutura conceitual que permaneceu inconteste
durante toda a Idade Média. A natureza da ciência medieval era muito diferente daquela da
ciência contemporânea. Baseava-‐se na razão e na fé, e sua principal finalidade era
compreender o significado das coisas e não exercer a predição ou o controle. Os cientistas
medievais, investigando os desígnios sub jacentes nos vários fenômenos naturais,
consideravam do mais alto significado as questões referentes a Deus, à alma humana e à
ética.
A perspectiva medieval mudou radicalmente nos séculos XVI e XVII. A noção de um
universo orgânico, vivo e espiritual foi substituída pela noção do mundo como se ele fosse
uma máquina, e a máquina do mundo converteu-‐se na metáfora dominante da era moderna.
Esse desenvolvimento foi ocasionado por mudanças revolucionárias na física e na
astronomia, culminando nas realizações de Copérnico, Galileu e Newton. A ciência do século
XVII baseou-‐se num novo método de investigação, defendido vigorosamente por Francis
Bacon, o qual envolvia a descrição matemática da natureza e o método analítico de raciocínio
concebido pelo gênio de Descartes. Reconhecendo o papel crucial da ciência na concretização
dessas importantes mudanças, os historiadores chamaram os séculos XVI e XVII de a Idade
da Revolução Científica.
A revolução científica começou com Nicolau Copérnico, que se opôs à concepção
geocêntrica de Ptolomeu e da Bíblia, que tinha sido aceita como dogma por mais de mil anos.
4CAPRA, Fritjof. O Ponto de Mutação. São Paulo : Editora Cultrix, 2002;
41
Depois de Copérnico, a Terra deixou de ser o centro do universo para tornar-‐se meramente
um dos muitos planetas que circundam um astro secundário nas fronteiras da galáxia; e ao
homem foi tirada sua orgulhosa posição de figura central da criação de Deus. Copérnico
estava plenamente cônscio de que sua teoria ofenderia profundamente a consciência
religiosa de seu tempo; ele retardou sua publicação até 1543, ano de sua morte, e, mesmo
assim, apresentou a concepção heliocêntrica como mera hipótese.
A Copérnico seguiu-‐se Johannes Kepler, cientista e místico que se empenhava em
descobrir a harmonia das esferas, e terminou por formular, através de um trabalho laborioso
com tabelas astronômicas, suas célebres leis empíricas do movimento planetário, as quais
vieram corroborar o sistema de Copérnico. Mas a verdadeira mudança na opinião científica
foi provocada por Galileu Galilei, que já era famoso por ter descoberto as leis da queda dos
corpos quando voltou sua atenção para a astronomia. Ao dirigir o recém-‐inventado
telescópio para os céus e aplicar seu extraordinário talento na observação científica dos
fenômenos celestes, Galileu fez com que a velha cosmologia fosse superada, sem deixar
margem para dúvidas, e estabeleceu a hipótese de Copérnico como teoria científica válida.
O papel de Galileu na revolução científica supera largamente suas realizações no
campo da astronomia, embora estas sejam mais conhecidas por causa de seu conflito com a
Igreja. Galileu foi o primeiro a combinar a experimentação científica com o uso da linguagem
matemática para formular as leis da natureza por ele descobertas; é, portanto, considerado o
pai da ciência moderna. “A filosofia *“, acreditava ele, “está escrita nesse grande livro que
permanece sempre aberto diante de nossos olhos; mas não podemos entendê-‐la se não
aprendermos primeiro a linguagem e os caracteres em que ela foi escrita. Essa linguagem é a
matemática, e os caracteres são triângulos, círculos e outras figuras geométricas.” 1 Os dois
aspectos pioneiros do trabalho de Galileu — a abordagem empírica e o uso de uma descrição
matemática da natureza — tornaram-‐se as características dominantes da ciência no século
XVII e subsistiram como importantes critérios das teorias científicas até hoje.
A fim de possibilitar aos cientistas descreverem matemática. mente a natureza,
Galileu postulou que eles deveriam restringir-‐se ao estudo das propriedades essenciais dos
corpos materiais — for mas, quantidades e movimento —, as quais podiam ser medidas e
qualificadas. Outras propriedades, como som, cor, sabor ou cheiro, eram meramente
projeções mentais subjetivas que deveriam ser excluídas do domínio da ciência 2• A
estratégia de Galileu de dirigir a atenção do cientista para as propriedades quantificáveis da
matéria foi extremamente bem sucedida em toda a ciência moderna, mas também exigiu um
pesado ônus, como nos recorda enfaticamente o psiquiatra R. D. Laing: “Perderam-‐se a visão,
o som, o gosto, o tato e o olfato, e com eles foram-‐se também a sensibilidade estética e ética,
os valores, a qualidade, a forma; todos os senti mentos, motivos, intenções, a alma, a
consciência, o espírito. A experiência como tal foi expulsa do domínio do discurso científico” .
Segundo Laing, nada mudou mais o nosso mundo nos últimos quatrocentos anos do que a
obsessão dos cientistas pela medição e pela quantificação.
42
Enquanto Galileu realizava engenhosos experimentos na Itália, Francis Bacon
descrevia explicitamente na Inglaterra o método empírico da ciência. Bacon foi o primeiro a
formular uma teoria clara do procedimento indutivo — realizar experimentos e extrair deles
conclusões gerais, a serem testadas por novos experimentos —, e tornou-‐se extremamente
influente ao defender com vigor o novo método. Atacou frontalmente as escolas tradicionais
de pensamento e desenvolveu uma verdadeira paixão pela experimentação científica.
O “espírito baconiano” mudou profundamente a natureza e o objetivo da
investigação científica. Desde a Antiguidade, os objetivos da ciência tinham sido a sabedoria,
a compreensão da ordem natural e a vida em harmonia com ela. A ciência era realizada “para
maior glória de Deus” ou, como diziam os chineses, para “acompanhar a ordem natural “e”
fluir na corrente do tao “. Esses eram propósitos yin, ou integrativos; a atitude básica dos
cientistas era ecológica, como diríamos na linguagem de hoje. No século XVII, essa atitude
inverteu-‐se totalmente; passou de yin para yang, da integração para a auto-‐afirmação. A
partir de Bacon, o objetivo da ciência passou a ser aquele conhecimento que pode ser usado
para dominar e controlar a natureza e, hoje, ciência e tecnologia buscam sobretudo fins
profundamente antiecológicos.
Os termos em que Bacon defendeu esse novo método empírico de investigação eram
não só apaixonados mas, com frequência, francamente rancorosos. A natureza, na opinião
dele, tinha que ser “acossada em seus descaminhos”, “obrigada a servir” e “escraviza da”.
Devia ser, “reduzida à obediência”, e o objetivo do cientista era “extrair da natureza, sob
tortura, todos os seus segredos” . Muitas dessas imagens violentas parecem ter sido
inspiradas pelos julgamentos de bruxas que eram frequentemente realizados no tempo de
Bacon. Como chanceler da coroa no reinado de Jaime 1, Bacon estava intimamente
familiarizado com tais denúncias e libelos; e, como a natureza era comumente vista como
fêmea, não deve causar surpresa o fato de ele ter transferido as metáforas usadas no tribunal
para os seus escritos científicos. De fato, sua ideia da natureza como uma mulher cujos
segredos têm que ser arrancados mediante tortura, com a ajuda de instrumentos mecânicos,
sugere fortemente a tortura generalizada de mulheres nos julgamentos de bruxas do começo
do século XVII . A obra de Bacon representa, por um notável exemplo da influência das
atitudes patriarcais sobre o pensamento científico.
O antigo conceito da Terra como mãe nutriente foi radical-‐ mente transformado nos
escritos de Bacon e desapareceu por completo quando a revolução científica tratou de
substituir a concepção orgânica da natureza pela metáfora do mundo como máquina. Essa
mudança, que viria a ser de suprema importância para o desenvolvimento subsequente da
civilização ocidental, foi iniciada e completada por duas figuras gigantescas do século XVII:
Descartes e Newton.
René Descartes é usualmente considerado o fundador da filosofia moderna. Era um
brilhante matemático, e sua perspectiva filosófica foi profundamente afetada pelas novas
43
física e astronomia. Ele não aceitava qualquer conhecimento tradicional, propondo-‐se a
construir um novo sistema de pensamento. De acordo com Bertrand Russell, “isso não
acontecia desde Aristóteles, e constitui um sinal da nova autoconfiança que resultou do
progresso da ciência. Há em sua obra um frescor que não se encontra em qualquer outro
filósofo eminente anterior, desde Platão” .
Aos 23 anos de idade, Descartes teve uma visão iluminadora que iria moldar toda a
sua vida . Após muitas horas de intensa concentração, durante as quais reviu
sistematicamente todo o conhecimento que tinha acumulado, percebeu, num súbito lampejo
de intuição, os “alicerces de uma ciência maravilhosa” que prometia a unificação de todo o
saber. Essa intuição tinha sido prenunciada numa carta dirigida a um amigo, na qual
Descartes anunciou seu ambicioso objetivo: “E assim, para nada esconder de vós acerca da
natureza de meu trabalho, gostaria de tornar público (. . .) uma ciência completamente nova
que resolveria em geral todas as questões de quantidade, contínua ou descontínua” . Em sua
visão, Descartes percebeu como poderia concretizar esse plano. Visualizou um método que
lhe permitiria construir uma completa ciência da natureza, acerca da qual poderia ter
absoluta certeza; uma ciência baseada, como a matemática, em princípios fundamentais que
dispensam demonstração. Essa revelação impressionou-‐o muito. Descartes sentiu ter feito a
suprema descoberta de sua vida e não duvidou de que sua visão resultara de uma inspiração
divina. Essa convicção foi reforçada por um sonho extraordinário na noite seguinte, no qual a
nova ciência lhe foi apresentada de forma simbólica. Descartes teve certeza de que Deus lhe
apontava uma missão e dedicou-‐se à construção de uma nova filosofia científica.
A visão de Descartes despertou nele a firme crença na certeza do conhecimento
científico; sua vocação na vida passou a ser distinguir a verdade do erro em todos os campos
do saber. “Toda ciência é conhecimento certo e evidente”, escreveu ele. “Rejeitamos todo
conhecimento que é meramente provável e consideramos que só se deve acreditar naquelas
coisas que são perfeitamente conhecidas e sobre as quais não pode haver dúvidas.”
A crença na certeza do conhecimento científico está na própria base da filosofia
cartesiana e na visão de mundo dela derivada, e foi aí, nessa premissa essencial, que
Descartes errou. A física do século XX mostrou-‐nos de maneira convincente que não existe
verdade absoluta em ciência, que todos os conceitos e teorias são limitados e aproximados. A
crença cartesiana na verdade científica é, ainda hoje, muito difundida e reflete-‐se no
cientificismo que se tornou típico de nossa cultura ocidental. Muitas pessoas em nossa
sociedade, tanto cientistas como não-‐cientistas, estão convencidas de que o método científico
é o único meio válido de compreensão do universo. O método de pensamento de Descartes e
sua concepção da natureza influenciaram todos os ramos da ciência moderna e podem ser
ainda hoje muito úteis. Mas só o serão se suas limitações forem reconhecidas. A aceitação do
ponto de vista cartesiano como verdade absoluta e do método de Descartes como o único
meio válido para se chegar ao conhecimento desempenhou um importante papel na
instauração de nosso atual desequilíbrio cultural.
44
A certeza cartesiana é matemática em sua natureza essencial. Descartes acreditava
que a chave para a compreensão do universo era a sua estrutura matemática; para ele,
ciência era sinônimo de matemática. Assim, ele escreveu, a respeito das propriedades dos
objetos físicos: “Não admito como verdadeiro õ que não possa ser deduzido, com a clareza de
uma demonstração matemática, de noções comuns de cuja verdade não podemos duvidar.
Como todos os fenômenos da natureza podem ser explicados desse modo, penso que não há
necessidade de admitir outros princípios da física, nem que sejam desejáveis”
Tal como Galileu, Descartes acreditava que a linguagem da natureza — “esse grande
livro que está permanentemente aberto ante nossos olhos” — era matemática, e seu desejo
de descrever a natureza em termos matemáticos levou-‐o à sua mais célebre descoberta.
Mediante a aplicação de relações numéricas a figuras geométricas, ele pôde correlacionar
álgebra e geometria e, assim fazendo, estabeleceu um novo ramo da matemática, hoje
conhecido como geometria analítica. Esta incluiu a representação de curvas por meio de
equações algébricas cujas soluções estudou de modo sistemático. O novo método permitiu a
Descartes aplicar um tipo muito geral de análise matemática ao estudo de corpos em
movimento, de acordo com o seu grandioso plano de redução de todos os fenômenos físicos
a relações matemáticas exatas. Assim, ele pôde afirmar, com grande orgulho: “Toda a minha
física nada mais é do que geometria”
O gênio de Descartes era o de um matemático, e isso também se evidencia em sua
filosofia. Para executar seu plano de construção de uma ciência natural completa e exata, ele
desenvolveu um novo método de raciocínio que apresentou em seu mais famoso livro,
Discurso do método. Embora essa obra tenha se tornado um dos grandes clássicos da
filosofia, sua proposição original não era ensinar filosofia, mas sim um método que servisse
de introdução à ciência. O método de Descartes tinha por finalidade apontar o caminho para
se chegar à verdade científica, como fica evidente no título completo do livro, Discurso do
método para bem conduzir a razão e procurar a verdade nas ciências.
O ponto fundamental do método de Descartes é a dúvida. Ele duvida de tudo o que
pode submeter à dúvida — todo o conhecimento tradicional, as impressões de seus sentidos
e até o fato de ter um corpo —, e chega a uma coisa de que não pode duvidar, a existência de
si mesmo como pensador. Assim chegou à sua famosa afirmação “Cogito, ergo sum”, “Penso,
logo existo”. Daí deduziu Descartes que a essência da natureza humana reside no
pensamento, e que todas as coisas que concebemos clara e distintamente são verdadeiras. À
tal concepção clara e distinta — “a concepção da mente pura e atenta” 13 — chamou ele
“intuição”, afirmando que “não existem outros caminhos ao alcance do homem para o
conhecimento certo da verdade, exceto a intuição evidente e a necessária dedução” O
conhecimento certo, portanto, é obtido através da intuição e da dedução, e essas são as
ferramentas que Descartes usa em sua tentativa de reconstrução do edifício do
conhecimento sobre sólidos alicerces.
45
O método de Descartes é analítico. Consiste em decompor pensamentos e problemas
em suas partes componentes e em dispô-‐las em sua ordem lógica. Esse método analítico de
raciocínio é provavelmente a maior contribuição de Descartes à ciência. Tornou-‐se uma
característica essencial do moderno pensamento científico e provou ser extremamente útil
no desenvolvimento de teorias científicas e na concretização de complexos projetos
tecnológicos. Foi o método de Descartes que tornou possível à NASA levar o homem à Lua.
Por outro lado, a excessiva ênfase dada ao método cartesiano levou à fragmentação
característica do nosso pensamento em geral e das nossas disciplinas acadêmicas, e levou à
atitude generalizada de reducionismo na ciência — a crença em que todos os aspectos dos
fenômenos complexos podem ser compreendidos se reduzidos às suas partes constituintes.
O cogito cartesiano, como passou a ser chamado, fez com que Descartes privilegiasse
a mente em relação à matéria e levou-‐o à conclusão de que as duas eram separadas e
fundamentalmente diferentes. Assim, ele afirmou que “não há nada no conceito de corpo que
pertença à mente, e nada na ideia de mente que pertença ao corpo” A divisão cartesiana
entre matéria e mente teve um efeito profundo sobre o pensamento ocidental. Ela nos
ensinou a conhecermos a nós mesmos como egos isolados existentes “dentro” dos nossos
corpos; levou-‐nos a atribuir ao trabalho mental um valor superior ao do trabalho manual;
habilitou indústrias gigantescas a venderem produtos — especialmente para as mulheres
que nos proporcionem o “corpo ideal”; impediu os médicos de considerarem seriamente a
dimensão psicológica das doenças e os psicoterapeutas de lidarem com o corpo de seus
pacientes. Nas ciências humanas, a divisão cartesiana redundou em interminável confusão
acerca da relação entre mente e cérebro; e, na física, tornou extremamente difícil aos
fundadores da teoria quântica interpretar suas observações dos fenômenos atômicos.
Segundo Heisenberg, que se debateu com o problema durante muitos anos, “essa divisão
penetrou pro fundamente no espírito humano nos três séculos que se seguiram a Descartes,
e levará muito tempo para que seja substituída por uma atitude realmente diferente em face
do problema da realidade”
Descartes baseou toda a sua concepção da natureza nessa divisão fundamental entre
dois domínios separados e independentes: o da mente, ou res cogitans, a “coisa pensante”, e o
da matéria, ou res extensa, a “coisa extensa”. Mente e matéria eram criações de Deus, que
representava o ponto de referência comum a ambas e era a fonte da ordem natural exata e
da luz da razão que habilitava a mente humana a reconhecer essa ordem. Para Descartes, a
existência de Deus era essencial à sua filosofia científica, mas, em séculos subsequentes, os
cientistas omitiram qualquer referência explícita a Deus e desenvolveram suas teorias de
acordo com a divisão cartesiana, as ciências humanas c na re cogitans e as naturais, na re
extensa.
Para Descartes, o universo material era uma máquina, nada além de uma máquina.
Não havia propósito, vida ou espiritualidade na matéria. A natureza funcionava de acordo
com leis mecânicas, e tudo no mundo material podia ser explicado em função da organização
46
e do movimento de suas partes. Esse quadro mecânico da natureza tornou-‐se o paradigma
dominante da ciência no período que se seguiu a Descartes. Passou a orientar a observação
científica e a formulação de todas as teorias dos fenômenos naturais, até que a física do
século XX ocasionou uma mudança radical. Toda a elaboração da ciência mecanicista nos
séculos XVII, XVIII e XIX, incluindo a grande síntese de Newton, nada mais foi do que o
desenvolvimento da ideia cartesiana. Descartes deu ao pensamento científico sua estrutura
geral — a concepção da natureza como uma máquina perfeita, governada por leis
matemáticas exatas.
A drástica mudança na imagem da natureza, de organismo para máquina, teve um
poderoso efeito sobre a atitude das pessoas em relação ao meio ambiente natural. A visão de
mundo orgânica da Idade Média implicava um sistema de valores que conduzia ao
comportamento ecológico. Nas palavras de Carolyn Merchant:
“A imagem da terra como organismo vivo e mãe nutriente serviu como restrição
cultural, limitando as ações dos seres humanos. Não se mata facilmente uma mãe,
perfurando suas entranhas em busca de ouro ou mutilando seu corpo. (...) Enquanto a terra
fosse considerada viva e sensível, seria uma violação do comportamento ético humano levar
a efeito atos destrutivos contra ela” 17
Essas restrições culturais desapareceram quando ocorreu a mecanização da ciência.
A concepção cartesiana do universo como sis tema mecânico forneceu uma sanção
“científica” para a manipulação e a exploração da natureza que se tornaram típicas da cultura
ocidental. De fato, o próprio Descartes compartilhava do ponto de vista de Bacon, de que o
objetivo da ciência é o domínio e controle da natureza, afirmando que o conhecimento
científico podia ser usado para “nos tornarmos os senhores e dominadores da natureza” is
Em sua tentativa de construir uma ciência natural completa, Descartes estendeu sua
concepção mecanicista da matéria aos organismos vivos. Plantas e animais passaram a ser
considerados simples máquinas; os seres humanos eram habitados por uma alma racional
que estava ligada ao corpo através da glândula pineal, no centro do cérebro. No que dizia
respeito ao corpo humano, era in distinguível de um animal-‐máquina. Descartes explicou em
detalhe como os movimentos e as várias funções biológicas do corpo podiam ser reduzidos a
operações mecânicas, a fim de mostrar que os organismos vivos nada mais eram do que
automata. Ao fazer isso, ele foi profundamente influenciado pela preocupação do barroco
seiscentista com as máquinas engenhosas, “como que dotadas de vida própria”, que
deliciavam as pessoas com a magia de seus movimentos aparentemente espontâneos. Como
a maioria de seus contemporâneos, Descartes estava fascinado por esses autômatos, e até
construiu alguns. Era inevitável que acabasse por comparar o funcionamento deles com o de
organismos vivos. “Vemos relógios, fontes artificiais, moinhos e outras máquinas
semelhantes que, embora meramente feitas pelo homem, têm, não obstante, o poder de se
moverem por si mesmas de muitas maneiras diferentes. (. .) Não reconheço qualquer
47
diferença entre as máquinas feitas por artífices e os vários corpos que só a natureza é capaz
de criar.”
A fabricação de relógios, em especial, atingira um alto grau de perfeição na época de
Descartes; o relógio era, pois, um modelo privilegiado para outras máquinas automáticas.
Descartes comparou o corpo dos animais a um “relógio (...) composto (...) de rodas e molas” e
estendeu essa comparação ao corpo humano: “Considero o corpo humano uma máquina. (...)
Meu pensamento (...) com para um homem doente e um relógio mal fabricado com a ideia de
um homem saudável e um relógio bem-‐feito”.
A concepção de Descartes sobre organismos vivos teve uma influência decisiva no
desenvolvimento das ciências humanas. A cuidadosa descrição dos mecanismos que
compõem os organismos vivos tem sido a principal tarefa dos biólogos, médicos e psicólogos
nos últimos trezentos anos. A abordagem cartesiana foi coroada de êxito, especialmente na
biologia, mas também limitou as direções da pesquisa científica. O problema é que os
cientistas, encorajados por seu êxito em tratar os organismos vivos como má quinas,
passaram a acreditar que estes nada mais são que máquinas. As consequências adversas
dessa falácia reducionista tornaram-‐se especialmente evidentes na medicina, onde a adesão
ao modelo cartesiano do corpo humano como um mecanismo de relógio impediu os médicos
de compreender muitas das mais importantes enfermidades da atualidade.
Eis, pois, a “maravilhosa ciência” anunciada por Descartes. Usando seu método de
pensamento analítico, ele tentou apresentar uma descrição precisa de todos os fenômenos
naturais num único sistema de princípios mecânicos. Sua ciência pretendia ser completa, e o
conhecimento que ofereceu tinha a intenção de fornecer uma certeza matemática absoluta.
Descartes, é claro, não pôde executar esse plano ambicioso, e ele próprio reconheceu que sua
ciência era incompleta. Mas seu método de raciocínio e as linhas gerais da teoria dos
fenômenos naturais que forneceu embasaram o pensa mento científico ocidental durante
três séculos.
Hoje, embora as sérias limitações da visão de mundo cartesiana estejam ficando
evidentes em todas as ciências, o método geral de Descartes de abordagem dos problemas
intelectuais, assim como sua clareza de pensamento, continuam sendo imensamente
valiosos. Isso me foi nitidamente lembrado após uma conferência sobre física moderna, na
qual enfatizei as limitações da visão de mundo mecanicista na teoria quântica e a
necessidade de superar essa visão em outros campos, quando uma ouvinte francesa me
cumprimentou por minha. . . “clareza cartesiana”. Como escreveu Montesquieu no século
XVIII, “Descartes ensinou àqueles que vieram depois dele como descobrir seus próprios
erros” 21,
Descartes criou a estrutura conceitual para a ciência do século XVII, mas sua
concepção da natureza como uma máquina perfeita, governada por leis matemáticas exatas,
permaneceu como simples visão durante sua vida. Ele não pôde fazer mais do que esboçar as
48
linhas gerais de sua teoria dos fenômenos naturais, O homem que deu realidade ao sonho
cartesiano e completou a revolução científica foi Isaac Newton, nascido na Inglaterra em
1642, ano da morte de Galileu. Newton desenvolveu uma completa formulação matemática
da concepção mecanicista da natureza e, portanto, realizou uma grandiosa síntese das obras
de Copérnico e Kepler, Bacon, Galileu e Descartes. A física newtoniana, a realização
culminante da ciência seiscentista, forneceu uma consistente teoria matemática do mundo,
que permaneceu como sólido alicerce do pensamento científico até boa parte do século XX. A
apreensão matemática de Newton era bem mais poderosa do que a de seus contemporâneos.
Ele criou um método completamente novo — hoje conhecido como cálculo diferencial —
para descrever o movimento de corpos sólidos, um método que foi muito além das técnicas
matemáticas de Galileu e Descartes. Esse enorme feito intelectual foi considerado por
Einstein “talvez o maior avanço no pensamento que um único indivíduo teve alguma vez o
privilégio de realizar”
Kepler extraía leis empíricas do movimento planetário estudando tábuas
astronômicas, e Galileu realizou engenhosos experimentos para descobrir as leis da queda
dos corpos. Newton combinou essas duas descobertas formulando as leis gerais do movi
mento que governam todos os objetos no sistema solar, das pedras aos planetas.
Segundo a lenda, o insight decisivo ocorreu a Newton num súbito lampejo de
inspiração quando viu uma maçã cair de uma árvore. Ele compreendeu que a maçã era
atraída para a Terra pela mesma força que atraía os planetas para o Sol, e assim descobriu a
chave para a sua grandiosa síntese. Empregou então seu novo método matemático para
formular as leis exatas do movimento para todos os corpos, sob a influência da força da
gravidade. A significação dessas leis reside em sua aplicação universal. Comprovou-‐se que
eram válidas para todo o sistema solar; assim, pareciam confirmar a visão cartesiana da
natureza. O universo newtoniano era, de fato, um gigantesco sistema mecânico que
funcionava de acordo com leis matemáticas exatas.
Newton apresentou em detalhes sua teoria do mundo nos Princípios matemáticos
de filosofia natural, Os Principia, como a obra é usualmente chamada por uma questão de
brevidade, de acordo com o seu título latino original, compreendem um sistema abrangente
de definições, proposições e provas que os cientistas consideraram a descrição correta da
natureza por mais de duzentos anos. Contêm, ao mesmo tempo, uma exposição explícita do
método experimental de Newton, que ele considerava um procedimento sistemático no qual
a descrição matemática se baseia, passo a passo, para chegar à avaliação crítica da evidência
experimental:
“Tudo o que não é deduzido dos fenômenos será chamado de hipótese; e as
hipóteses, sejam elas metafísicas ou físicas, sejam elas dotadas de qualidades ocultas ou
mecânicas, não têm lugar na filosofia experimental. Nesta filosofia, proposições particulares
são inferidas dos fenômenos e depois tornadas gerais por indução”.
49
Antes de Newton, duas tendências opostas orientavam a ciência seiscentista: o
método empírico, indutivo, representado por Bacon, e o método racional, dedutivo,
representado por Descartes. Newton, em seus Principia, introduziu a combinação apropriada
de ambos os métodos, sublinhando que tanto os experimentos sem interpretação sistemática
quanto a dedução a partir de princípios básicos sem evidência experimental não
conduziriam a uma teoria confiável. Ultrapassando Bacon em sua experimentação
sistemática e Descartes em sua análise matemática, Newton unificou as duas tendências e
desenvolveu a metodologia em que a ciência natural passou a basear-‐se desde então.
Isaac Newton era uma personalidade muito mais complexa do que se poderá
deduzir da leitura de seus escritos científicos. Notabilizou-‐se não só como cientista e
matemático, mas também, em várias fases de sua vida, como jurista, historiador e teólogo, e
estava profundamente envolvido em pesquisas sobre o oculto e o conheci mento esotérico.
Via o mundo como um enigma e acreditava que as chaves para sua compreensão podiam ser
encontradas não só através dos experimentos científicos como também das revelações
críticas das tradições esotéricas. Newton foi tentado a pensar, como Descartes, que sua
mente poderosa seria capaz de desvendar os segredos do universo, e decidiu servir-‐se dela,
com igual intensidade, no estudo da ciência natural tanto quanto no da ciência esotérica.
Enquanto trabalhava, no Trinity College, Cambridge, nos Principia, acumulou, ao longo de
todos esses anos, volumosas notas sobre alquimia, textos apocalípticos, teorias teológicas
não-‐ortodoxas e várias matérias ligadas ao ocultismo. A maioria de seus escritos esotéricos
nunca foi publicada, mas o que deles se conhece indica que Newton, o grande gênio da
revolução científica, foi também o “último dos mágicos”
O palco do universo newtoniano, no qual todos os fenômenos físicos aconteciam, era
o espaço tridimensional da geometria euclidiana clássica. Era um espaço absoluto, um
recipiente vazio, independente dos fenômenos físicos que nele ocorriam. Nas próprias
palavras de Newton, “o espaço absoluto, em sua própria natureza, sem levar em conta
qualquer coisa que lhe seja externa, permanece sempre inalterado e imóvel” 25• Todas as
mudanças no mundo físico eram descritas em função de uma dimensão à parte, o tempo,
também absoluto, sem ligação alguma com o mundo material, e que fluía de maneira
uniforme do passado para o futuro através do presente. Escreveu Newton: “O tempo
absoluto, verdadeiro e ma temático, de si mesmo e por sua própria natureza, flui uniforme-‐
mente, sem depender de qualquer coisa externa”
Os elementos do mundo newtoniano que se movimentavam nesse espaço e nesse
tempo absolutos eram partículas materiais, os objetos pequenos, sólidos e indestrutíveis de
que toda matéria era feita. O modelo newtoniano de matéria era atomístico, mas diferia da
moderna noção de átomos pelo fato de as partículas newtonianas serem todas da mesma
substância material. Newton presumia que a matéria era homogênea; explicava a diferença
entre um tipo e outro de matéria não em termos de átomos de diferentes pesos ou
densidades, e sim de uma aglomeração mais ou menos densa e compacta de átomos. Os
50
componentes básicos da matéria podiam ser de diferentes dimensões, mas consistiam na
mesma “substância”, e o total de substância material num objeto era dado por sua massa.
O movimento das partículas era causado pela força da gravidade, a qual, na visão de
Newton, atuava instantaneamente à distância. As partículas materiais e as forças entre elas
eram de uma natureza fundamentalmente diferente, sendo a constituição interna das
partículas independente de sua interação mútua. Newton considerava que tanto as partículas
quanto a força da gravidade eram criadas por Deus e, por conseguinte, não estavam sujeitas
a uma análise ulterior. Em sua Óptica, Newton explicou claramente como imaginava a criação
do mundo material por Deus:
“Parece-‐me provável que Deus, no começo, formou a matéria em partículas sólidas,
compactas, duras, impenetráveis e móveis, de tais dimensões e configurações, e com outras
propriedades tais, e em tais proporções com o espaço, que sejam as mais compatíveis com a
finalidade para que Ele as formou; e que essas partículas primitivas, sendo sólidas, são
incomparavelmente mais duras do que quaisquer corpos porosos compostos por elas;
realmente tão duras que nunca se desgastam nem se fragmentam, e não existe nenhuma
força comum que seja capaz de dividir o que o próprio Deus uni ficou na criação original”
Na mecânica newtoniana, todos os fenômenos físicos estão reduzidos ao movimento
de partículas materiais, causado por sua atração mútua, ou seja, pela força da gravidade. O
efeito dessa força sobre uma partícula ou qualquer outro objeto material é descrito
matematicamente pelas equações do movimento enunciadas por Newton, as quais formam a
base da mecânica clássica. Foram estabelecidas leis fixas de acordo com as quais os objetos
materiais se moviam, e acreditava-‐se que eles explicassem todas as mudanças observadas no
mundo físico. Na concepção newtoniana, Deus criou, no princípio, as partículas materiais, as
forças entre elas e as leis fundamentais do movimento. Todo o universo foi posto em movi
mento desse modo e continuou funcionando, desde então, como uma máquina, governado
por leis imutáveis. A concepção mecanicista da natureza está, pois, intimamente relacionada
com um rigoroso determinismo, em que a gigantesca máquina cósmica é completa mente
causal e determinada. Tudo o que aconteceu teria tido uma causa definida e dado origem a
um efeito definido, e o futuro de qualquer parte do sistema podia — em princípio —— ser
previsto com absoluta certeza, desde que seu estado, em qualquer momento dado, fosse
conhecido em todos os seus detalhes.
Esse quadro de uma perfeita máquina do mundo subentendia um criador externo;
um deus monárquico que governaria o mundo a partir do alto, impondo-‐lhe sua lei divina.
Não se pensava que os fenômenos físicos, em si, fossem divinos em qualquer sentido; assim,
quando a ciência tornou cada vez mais difícil acreditar em tal deus, o divino desapareceu
completamente da visão científica do mundo, deixando em sua esteira o vácuo espiritual que
se tornou característico da corrente principal de nossa cultura. A base filosófica dessa
secularização da natureza foi a divisão cartesiana entre espírito e matéria. Em consequência
51
dessa divisão, acreditava-‐se que o mundo era um sistema mecânico suscetível de ser descrito
objetivamente, sem menção alguma ao observador humano, e tal descrição objetiva da
natureza tornou-‐se o ideal de toda a ciência.
Os séculos XVIII e XIX serviram-‐se da mecânica newtoniana com enorme sucesso. A
teoria newtoniana foi capaz de explicar o movimento dos planetas, luas e cometas nos
mínimos detalhes, assim como o fluxo das marés e vários outros fenômenos relacionados
com a gravidade. O sistema matemático do mundo elaborado por Newton estabeleceu-‐se
rapidamente como a teoria correta da realidade e gerou enorme entusiasmo entre cientistas
e o público leigo. A imagem do mundo como uma máquina perfeita, que tinha sido
introduzida por Descartes, era então considerada um fato comprovado, e Newton tornou-‐se
o seu símbolo. Durante os últimos vinte anos de sua vida, Sir Isaac Newton reinou na
Londres setecentista como o homem mais famoso de seu tempo, o grande sábio de cabelos
brancos da revolução científica. As descrições desse período da vida de Newton soam-‐nos
muito familiares por cansa de nossas recordações e fotografias de Albert Einstein, que
desempenhou um papel muito semelhante em nosso século.
Encorajados pelo brilhante êxito da mecânica newtoniana na astronomia, os físicos
estenderam-‐na ao movimento contínuo dos fluidos e às vibrações de corpos elásticos, e ela
continuou a funcionar. Ao final, até mesmo a teoria do calor pôde ser reduzida à mecânica
quando se percebeu que o calor era a energia gerada por um complicado movimento de
“agitação” de átomos e moléculas. Assim, muitos fenômenos térmicos, como a evaporação de
um líquido, ou a temperatura e pressão de um gás, puderam ser entendidos sob um ponto de
vista puramente mecanicista.
O estudo do comportamento físico dos gases levou John Dalton à formulação de sua
célebre hipótese atômica, provavelmente o mais importante passo em toda a história da
química. Dalton possuía uma vívida imaginação pictórica, e tentou explicar as propriedades
das misturas de gases com a ajuda de elaborados desenhos de modelos geométricos e
mecânicos de átomos. Seus principais pressupostos eram que todos os elementos químicos
compõem-‐se de átomos e que todos os átomos de um determinado elemento são
semelhantes, mas diferem dos átomos de todos os outros elementos em massa, tamanho e
propriedades. Usando a hipótese de Dalton, os químicos do século XIX desenvolveram uma
precisa teoria atômica da química que preparou o caminho para a unificação dos conceitos
da física e da química no século XX. Assim, a mecânica newtoniana estendeu-‐se muito além
da descrição dos corpos macroscópicos. O comportamento de sólidos, líquidos e gases,
incluindo os fenômenos de calor e som, foi explicado com sucesso em termos do movimento
de partículas materiais elementares. Para os cientistas dos séculos XVIII e XIX, esse enorme
sucesso do modelo mecanicista confirmou sua convicção de que o universo era, de fato, um
gigantesco sistema mecânico que funcionava de acordo com as leis newtonianas do
movimento, e de que a mecânica de Newton era a teoria definitiva dos fenômenos naturais.
52
Embora as propriedades dos átomos tivessem sido estudadas mais por químicos do
que por físicos durante todo o século XIX, a física clássica baseava-‐se na ideia newtoniana de
que os átomos são os elementos básicos, duros e sólidos, da matéria. Essa imagem
contribuiu, sem dúvida, para a reputação da física como uma ciência pesada * e para o
desenvolvimento da tecnologia pesada ** baseada naquela. O irretorquível êxito da física
newtoniana e a crença cartesiana na certeza do conhecimento científico levaram
diretamente à ênfase que foi dada, em nossa cultura, à ciência e à tecnologia pesadas.
Somente em meados do século XX tornar-‐se-‐ia claro que a ideia de uma ciência pesada era
parte do paradigma cartesiano newtoniano, um paradigma que seria superado.
Com o firme estabelecimento da visão mecanicista do mundo no século XVIII, a física
tornou-‐se naturalmente a base de todas as ciências. Se o mundo é realmente uma máquina, a
melhor maneira de descobrir como ela funciona é recorrer à mecânica newtoniana. Assim,
foi uma consequência inevitável da visão de mundo cartesiana que as ciências dos séculos
XVIII e XIX tomassem como seu modelo a física newtoniana. De fato, Descartes estava
perfeitamente cônscio do papel básico da física em sua concepção da natureza. Escreveu ele:
“Toda a filosofia é como uma árvore. As raízes são a metafísica, o tronco é a física e os ramos
são todas as outras ciências”
O próprio Descartes esboçara as linhas gerais de uma abordagem mecanicista da
física, astronomia, biologia, psicologia e medicina. Os pensadores do século XVIII levaram
esse programa ainda mais longe, aplicando os princípios da mecânica newtoniana às ciências
da natureza e da sociedade humanas. As recém-‐criadas ciências sociais geraram grande
entusiasmo, e alguns de seus proponentes proclamaram terem descoberto uma “física
social”. A teoria newtoniana do universo e a crença na abordagem racional dos problemas
humanos propagaram-‐se tão rapidamente entre as classes médias do século XVIII, que toda
essa época recebeu o nome de Iluminismo. A figura dominante nesse período foi o filósofo
John Locke, cujos escritos mais importantes foram publicados no final do século XVII.
Fortemente influenciado por Descartes e Newton, a obra de Locke produziu um impacto
decisivo no pensamento setecentista.
Na esteira da física newtoniana, Locke desenvolveu uma concepção atomística da
sociedade, descrevendo-‐a em termos de seu componente básico, o ser humano. Assim como
os físicos reduzi ram as propriedades dos gases aos movimentos de seus átomos, ou
moléculas, também Locke tentou reduzir os padrões observados na sociedade ao
comportamento de seus indivíduos. Assim, ele passou a estudar primeiro a natureza do ser
humano individual, e de pois tentou aplicar os princípios da natureza humana aos problemas
econômicos e políticos. A análise de Locke da natureza humana baseou-‐se na de um filósofo
anterior, Thomas Hobbes, que declarara ser a percepção sensorial a base de todo
conhecimento. Locke adotou essa teoria do conhecimento e, numa famosa metáfora,
comparou a mente humana, no nascimento, a uma tabu Tarasa em que o conhecimento é
gravado, uma vez adquirido através da experiência sensorial. Essa imagem estava destinada
53
a forte influência sobre duas importantes escolas da psicologia clássica, o behaviorismo e a
psicanálise, assim como sobre a filosofia política. Segundo Locke, todos os seres humanos —
“todos os homens”, como diria ele — são iguais ao nascer e, para seu desenvolvimento,
dependem inteiramente do seu meio ambiente. Suas ações, acreditava Locke, eram sempre
motivadas pelo que supunham ser seu próprio interesse.
Quando Locke aplicou sua teoria da natureza humana aos fenômenos sociais, foi
guiado pela crença de que existem leis da natureza que governam a sociedade humana, leis
semelhantes às que governam o universo físico. Tal como os átomos de um gás estabelecem
um estado de equilíbrio, também os indivíduos humanos se estabilizariam numa sociedade
num “estado de natureza”. Assim, a função do governo não seria impor suas leis às pessoas,
mas, antes, descobrir e fazer valer as leis naturais que existiam antes de qual quer governo
ter sido formado. Segundo Locke, essas leis naturais incluíam a liberdade e a igualdade entre
todos os indivíduos, assim como o direito à propriedade, que representava os frutos do
trabalho de cada um.
As ideias de Locke tornaram-‐se a base para o sistema de valores do Iluminismo e tiveram
uma forte influência sobre o desenvolvimento do moderno pensamento econômico e
político. Os ideais de individualismo, direito de propriedade, mercados livres e governo
representativo, que podem ser atribuídos a Locke, contribuíram significativamente para o
pensamento de Thomas Jefferson, e estão refletidos na Declaração de Independência e na
Constituição americanas.
Durante o século XIX, os cientistas continuaram a elaborar o modelo mecanicista do
universo na física, química, biologia, psicologia e ciências sociais. Por conseguinte, a máquina
do mundo newtoniana tornou-‐se uma estrutura muito mais complexa e sutil. Ao mesmo
tempo, novas descobertas e novas formas de pensamento evidenciaram as limitações do
modelo newtoniano e prepararam o caminho para as revoluções científicas do século XX.
Uma dessas conquistas do século XIX foi a descoberta e a investigação dos
fenômenos elétricos e magnéticos que envolviam um novo tipo de força e não podiam ser
descritos adequadamente pelo modelo mecanicista. Um passo importante foi dado por
Michael Faraday e completado por Clerk Maxwell — o primeiro, um dos maiores
experimentadores na história da ciência, o segundo, um brilhante teórico. Faraday e Maxwell
não só estudaram os efeitos das forças elétricas e magnéticas, mas fizeram dessas forças o
objeto primeiro de suas investigações. Ao substituírem o conceito de força pelo conceito
muito mais sutil de campo de força, eles foram os primeiros a ultrapassar a física newtoniana
29, mostrando que os campos têm sua própria realidade e podem ser estudados sem qual
quer referência a corpos materiais. Essa teoria, chamada eletrodinâmica, culminou com a
descoberta de que a luz é, de fato, um campo eletromagnético rapidamente alternante, que
viaja através do espaço em forma de ondas.
54
Apesar dessas mudanças de extraordinário alcance, a mecânica newtoniana
mantinha sua posição, continuava a ser a base de toda a física. O próprio Max tentou explicar
seus resultados em termos mecânicos, interpretando os campos como estados de tensão
mecânica num meio muito leve e difundido por toda parte, chamado éter, e as ondas
eletromagnéticas como ondas elásticas desse éter. Entretanto, ele usou várias interpretações
mecânicas de sua teoria ao mesmo tempo e, segundo parece, não levou nenhuma delas
realmente a sério, sabendo intuitivamente que as entidades fundamentais em sua teoria
eram os campos e não os modelos mecânicos. Caberia a Einstein reconhecer claramente esse
fato em nosso século, quando declarou que o éter não existe e que os campos
eletromagnéticos são entidades físicas independentes que podem viajar através do espaço
vazio e não podem ser explicadas -‐mecanicamente.
Enquanto o eletromagnetismo destronava a mecânica newtoniana como teoria
fundamental dos fenômenos naturais, surgiu uma nova tendência do pensamento que
suplantou a imagem da má quina do mundo newtoniana e iria dominar não só o século XIX,
mas todo o pensamento científico futuro. Ela envolvia a ideia de evolução — de mudança,
crescimento e desenvolvimento. A noção de evolução surgira na geologia, onde os estudos
meticulosos de fósseis levaram os cientistas à conclusão de que o estado atual da Terra era o
resultado de um desenvolvimento contínuo causado pela ação de forças naturais durante
imensos períodos de tempo. Mas os geólogos não foram os únicos a pensar nesses termos. A
teoria do sistema solar, proposta por Immanuel Kant e Pierre Laplace, baseava no
pensamento evolucionista ou desenvolvimentista; os conceitos evolucionistas foram
fundamentais para a filosofia política de Hegel e Engeis; poetas e filósofos, indistintamente,
durante todo o século XIX, preocuparam-‐se profundamente com o problema do devir.
Essas ideias constituíram o background intelectual para a formulação mais precisa e
de mais longo alcance do pensamento evolucionista: a teoria da evolução das espécies, em
biologia. Desde a Antiguidade, os filósofos naturais tinham alimentado a ideia de uma
“grande cadeia do ser”. Essa cadeia, entretanto, era concebida como uma hierarquia estática,
que começava em Deus, no topo, e descia, através de anjos, seres humanos e animais, até as
formas cada vez mais inferiores de vida, O número de espécies era fixo; não mudara desde o
dia de sua criação. Como disse Lineu, o grande botânico e classificador: “Calculamos tantas
espécies quantas as saídas aos pares das mãos do Criador” 30, Essa ideia das espécies
biológicas estava em completa concordância com a doutrina judaico-‐ cristã e ajustava-‐se bem
ao mundo newtoniano.
A mudança decisiva ocorreu com Jean-‐Baptiste Lamarck, no começo do século XIX;
essa mudança foi tão drástica que Gregory Bateson, um dos pensadores mais esclarecidos e
profundos do nosso tempo, comparou-‐a à revolução de Copérnico:
“Lamarck, provavelmente o maior biólogo da história, inverteu essa escala de
explicação. Foi ele o homem que disse que a escala começa com os infusórios e que havia
55
mudanças que culminavam no homem. Essa inversão completa da taxonomia é uma das mais
surpreendentes façanhas de todos os tempos. Foi o equivalente, em biologia, à revolução de
Copérnico em astronomia”
Lamarck foi o primeiro a propor uma teoria coerente da evolução, segundo a qual
todos os seres vivos teriam evoluído a partir de formas mais primitivas e mais simples, sob a
influência do meio ambiente. Embora os detalhes da teoria lamarckiana tivessem que ser
abandonados mais tarde, ela representou, não obstante, o primeiro passo importante.
Muitas décadas depois, Charles Darwin apresentou aos cientistas uma esmagadora
massa de provas em favor da evolução biológica, colocando o fenômeno acima de qualquer
dúvida. Apresentou também uma explicação baseada nos conceitos de variação aleatória —
hoje conhecida como mutação randômica — e seleção natural, os quais continuariam sendo
as pedras angulares do moderno pensamento evolucionista. A monumental Origem das
espécies de Darwin sintetizou as ideias de pensadores anteriores e deu forma a todo o
pensamento biológico subsequente. Seu papel nas ciências humanas foi semelhante ao dos
Principia de Newton na física e na astronomia, dois séculos antes.
A descoberta da evolução em biologia forçou os cientistas a abandonarem a
concepção cartesiana segundo a qual o mundo era uma máquina inteiramente construída
pelas mãos do Criador, O universo, pelo contrário, devia ser descrito como um sistema em
evolução e em permanente mudança, no qual estruturas complexas se desenvolviam a partir
de formas mais simples. Enquanto essa nova forma de pensamento era elaborada nas
ciências humanas, conceitos evolucionistas surgiam também na física. Contudo, enquanto a
evolução, em biologia, significou um movimento no sentido de uma ordem e uma
complexidade crescentes, na física passou a significar justamente o oposto — um movimento
no sentido de uma crescente desordem.
A aplicação da mecânica newtoniana ao estudo dos fenômenos térmicos — o que
envolveu o tratamento de líquidos e gases como complicados sistemas mecânicos — levou os
físicos à formulação da termodinâmica, a “ciência da complexidade”. A primeira grande
realização dessa nova ciência foi a descoberta de uma das leis mais fundamentais da física, a
lei da conservação da energia. Diz essa lei que a energia total envolvida num processo é
sempre conservada. Pode mudar de forma do modo mais complicado, mas nenhuma porção
dela se perde. Os físicos descobriram essa lei em seu estudo das máquinas a vapor e outras
máquinas geradoras de calor, e é também conhecida como a primeira lei da termodinâmica.
A segunda lei da termodinâmica é a da dissipação da energia. Enquanto a energia
total envolvida num processo é sempre constante, a quantidade de energia útil diminui,
dissipando-‐se em calor, fricção, etc. Esta segunda lei foi formulada pela primeira vez por Sadi
Carnot, em termos da tecnologia das máquinas térmicas, mas não tardou a ser reconhecido
que envolvia um significado muito mais amplo. Ela introduziu na física a ideia de processos
irreversíveis, de uma “flecha do tempo”. De acordo com a segunda lei, há uma certa tendência
56
nos fenômenos físicos. A energia mecânica dissipa-‐se em calor e não pode ser
completamente recuperada; quando se juntam água quente e água fria, resulta a água morna,
e os dois líquidos não se separam. Do mesmo modo, quando se mistura um saco de areia
branca com •um saco de areia preta, resulta areia cinzenta, e quanto mais agitarmos a
mistura mais uniforme será o cinzento; não veremos as duas espécies de areia separarem-‐se
espontaneamente.
O que todos esses processos têm em comum é que avançam numa certa direção —
da ordem para a desordem —, e esta é a formulação mais geral da segunda lei da
termodinâmica: qualquer sistema físico isolado avançará espontaneamente na direção de
uma desordem sempre crescente. Em meados do século, para expressar essa direção, na
evolução de sistemas físicos, numa forma matemática precisa, Rudolf Clausius introduziu
uma nova quantidade a que chamou “entropia”. O termo representa uma combinação de
“energia” e “tropos”, a palavra grega que designa transformação ou evolução. Assim, entropia
é uma quantidade que mede o grau de evolução de um sistema físico. De acordo com a
segunda lei, a entropia de um sistema físico isolado continuará aumentando; como essa
evolução é acompanhada de crescente desordem, a entropia também pode ser vista como
uma medida de desordem.
A formulação do conceito de entropia e a segunda lei da termo-‐ dinâmica estão entre
as mais importantes contribuições para a física no século XIX. O aumento de entropia em
sistemas físicos, que marca a direção do tempo, não podia ser explicado pelas leis da
mecânica newtoniana, e permaneceu um mistério até que Ludwig Boltzmann esclareceu a
situação mediante a introdução de uma ideia adicional, o conceito de probabilidade. Com a
ajuda da teoria das probabilidades, o comportamento de sistemas mecânicos com plexos
pôde ser descrito em termos de leis estatísticas, e a termo-‐ dinâmica se assentou numa sólida
base newtoniana, conhecida como mecânica estatística.
Boltzmann mostrou que a segunda lei da termodinâmica é uma lei estatística, Sua
afirmação de que certos processos não ocorrem — por exemplo, a conversão espontânea de
energia térmica em energia mecânica — não significa que eles sejam impossíveis, mas
apenas que são extremamente improváveis. Em sistemas microscópicos que consistem em
apenas algumas moléculas, a segunda lei é violada regularmente; mas, em sistemas
macroscópicos, que consistem num grande número de moléculas ‘ a probabilidade de que a
entropia total do sistema aumente torna-‐se virtualmente certa. Assim, em qualquer sistema
isolado, composto de um elevado número -‐de moléculas, a entropia — ou desordem —
continuará aumentando até que, finalmente, o sistema atinja um estado de máxima entropia,
também conhecido como “morte térmica”; nesse estado, toda a atividade cessa, estando o
material uniformemente distribuído e à mesma temperatura. De acordo com a física clássica,
o universo está caminhando como um todo para tal estado de máquina entropia, no qual irão
declinando gradualmente os processos espontâneos de troca energética até que finalmente
cessem.
57
Essa imagem sombria da evolução cósmica está em nítido contraste com a ideia
evolucionista sustentada pelos biólogos, os quais observam que o universo vivo evolui da
desordem para a ordem, para estados de complexidade sempre crescente. O surgimento do
conceito de evolução em física trouxe à luz, portanto, uma outra limitação da teoria
newtoniana. A concepção mecanicista do uni verso como um sistema de pequenas bolas de
bilhar em movimento randômico é simplista demais para explicar a evolução da vida.
No final do século XIX, a mecânica newtoniana tinha perdido seu papel de teoria
fundamental dos fenômenos naturais. Os conceitos da eletrodinâmica de Maxwell e da teoria
da evolução de Darwin superavam claramente o modelo newtoniano e indicavam que o
universo era muitíssimo mais complexo do que Descartes e Newton haviam imaginado. Não
obstante, ainda se acreditava que as ideias básicas subjacentes à física newtoniana, embora
insuficientes para explicar todos os fenômenos naturais, eram corretas. As primeiras três
décadas de nosso século mudaram radicalmente essa situação. Duas descobertas no campo
da física, culminando na teoria da relatividade e na teoria quântica, pulverizaram todos os
principais conceitos da visão de mundo cartesiana e da mecânica newtoniana. A noção de
espaço e tempo absolutos, as partículas sólidas elementares, a substância material
fundamental, a natureza estrita mente causal dos fenômenos físicos e a descrição objetiva da
natureza — nenhum desses conceitos pôde ser estendido aos novos domínios em que a física
agora penetrava.
58
ALTERAÇÕES NA SOCIEDADE,
EFERVESCÊNCIA NAS IDEIAS:
A FRANÇA DO SÉCULO XVIII5
As luzes foram um arco-‐íris, ou melhor dizendo, fogos cruzados.
J. Deprun
O período que vai de fins do século XVII até fins do século XVIII caracteriza-‐Se por
ser uma fase em que uma série de mudanças econômicas e políticas se deu em diferentes
partes do mundo, embora essas mudanças não tenham ocorrido concomitantemente. Nesse
período, enquanto a Inglaterra já havia realizado as transformações econômicas
características da Revolução Industrial, o mesmo não havia ainda ocorrido com a França e a
Alemanha. A França, nesse período, mantinha ainda um regime feudal, mas apareciam já os
germes da revolução que conduziria também esse país na direção do capitalismo.
Segundo Efimov, Galkine e Zubok (1981), até fins do século XVIII reina ainda na
França o feudalismo, predominando aí uma população camponesa de 23 Milhões de pessoas,
maioria dentre os 25 milhões que constituíam a população total. Vivendo em regime de
servidão, esses camponeses tinham uma série de deveres que envolviam o pagamento de
impostos ao Estado, dízimos ao clero e taxas feudais à nobreza. Essa situação insustentável
de empobrecimento da população, aliada ao descontentamento da burguesia.
— que via cerceada a tão desejada liberdade de comércio e produção — e aos
problemas econômicos da monarquia, gerou uma crise que acaba por culminar em mudanças
que instituíram na França a Primeira República em 1793.
Segundo Aquino e outros (1982), o capitalismo emergente na França chocava-‐se
com as fortes barreiras feudais que por todos os meios buscavam impedir a desestabilização
do regime e a perda de privilégios da nobreza e do clero. Nesse período de transição, em que
o regime feudal vai sendo desestruturado e substituído por novas formas de organização e
produção e em que uma nova classe — a burguesia — visa ascender ao poder substituindo a
nobreza e o clero, novas ideias também vão se desenvolvendo, ideias essas que refletiam os
anseios da sociedade nesse contexto de transformação. Autores como Diderot (1713-‐1784),
Voltaire (1694-‐1778), Helvétius (1715-‐1771), d’Holbach (1723-‐1789), La Mettrie (1709-‐
1751), Montesquieu (1689-‐1755), Maupertuis (1698-‐1759), Buífon (1707-‐1788), Condillac
(1715-‐1780), Vauvenargues (1715-‐1747), d’Alembert (1717-‐1783) e Rousseau (1712-‐1778)
podem ser destacados como representantes do pensamento francês do século XVIII.
5ANDREY, Maria Amália et alii. Para Compreender a Ciência. São Paulo : EDUC –
Editora da PUC-SP, 2000;
59
Alguns aspectos podem ser levantados como característicos do pensa mento
francês desse período: a crença no poder da razão como instrumento de obtenção do
conhecimento e de modificação da realidade, a ênfase aos dados obtidos por meio da
observação e da experimentação, o antidogmatismo (e, consequentemente, a crítica à
religião) e a noção de progresso.
Embora possam ser identificadas essas características mais gerais no pensamento
francês do século XVIII, isto não significa que todos os pensa-‐ dores desse momento
expressaram a mesma posição em relação a todos esses aspectos; ao contrário, pode-‐se
observar que alguns deles apresentam oposições ou nuanças em relação a uma ou mais
dessas características em particular.
Esse é um momento em que as opiniões e posições são mais amplamente
veiculadas, e esta talvez possa ser considerada uma outra característica, fato que pode ter
contribuído para que diferenças e nuanças aparecessem.
Nesse período, em vez de utilizarem o latim, os autores expressavam-‐se na língua
pátria e faziam-‐no por meio de artigos, peças de teatro, contos, por exemplo. Assim, houve
um maior acesso às ideias produzidas por parte da sociedade, seja por terem uma
característica menos erudita e técnica, seja pela quantidade de reproduções feitas.
Um dos empreendimentos culturais desse momento foi a proposta de elaborar
uma Enciclopédia que abordasse temas de todas as áreas de conhecimento humano (artes,
ciências, etc.), proposta essa iniciada por Diderot e d’Alembert. A Enciclopédia foi um veículo
de divulgação das ideias dos pensadores franceses, já que grande parte deles elaborou
artigos expondo suas opiniões e críticas, sendo os mais famosos Diderot, d’Alembert,
Voltaire, Rousseau, Montesquieu e d’Holbach.
O RACIONALISMO FRANCÊS: APOIO NA OBSERVAÇÃO E NA EXPERIÊNCIA
Como já foi dito, uma das características desse período é a ênfase no poder da
razão. Os autores desse século são, portanto, racionalistas, já que para eles a razão tem um
papel primordial na vida do homem. Sendo considerada uma característica natural do ser
humano, que é inerente a todo indivíduo, a razão é vista como mecanismo, meio de obtenção
do conhecimento e guia das ações humanas.
Segundo Desné (1982), esse racionalismo, embora tenha herdado de pescartes
“(...) o gosto do raciocínio, a busca da evidência intelectual, e, sobretudo, a audácia de exercer
livremente seu juízo e de levar a toda parte o espírito da dúvida metódica” (p. 75), a ele se
opõe.
60
O racionalismo do século XVIII contraria o de Descartes, pois, enquanto para este a
razão tinha uma característica de recipiente — isto é, possuía ideias inatas, verdades
eternas... —, para os pensadores franceses desse período ela tinha uma característica de
instrumento.
Ainda contrariamente a Descartes, que dava ênfase ao processo dedutivo — partia
de verdades auto-‐evidentes e inatas e delas deduzia novos conhecimentos —‘ os pensadores
franceses vão dar ênfase à observação e à experiência, no sentido de experienciado e
experimental. Assim, a observação e a experiência são os pontos de partida para o
conhecimento; o raciocínio, embora necessário, não prescinde dos dados empíricos.
Locke e Newton já haviam feito críticas a Descartes: o primeiro, ao opor-‐se ao
inatismo das ideias, e o segundo, ao afirmar que as hipóteses só podem ser obtidas a partir
dos fatos; em ambos, o mesmo suporte: a observação e a experiência como origem do
conhecimento. Os pensadores franceses do século XVIII, opondo-‐se a Descartes, têm como
seus grandes mestres Locke e Newton.
A influência desses dois pensadores evidencia-‐se na forma como se discute, na
França desse período, o processo do conhecimento. Segundo Cassirer (1950), busca-‐se
explicar o conhecer tal como os demais fenômenos da natureza eram explicados, ou seja, sem
a interposição de qualquer entidade sobrenatural.
A noção de ideias inatas que, para Descartes, estava vinculada à atuação de Deus é
substituída pela preocupação em descobrir os processos naturais que estão envolvidos na
aquisição do conhecimento pelo homem. Os pensa-‐ dores franceses desse período defendem
a postura de que qualquer ideia tem origem em uma impressão anterior, mesmo que nem
sempre possamos identificar qual seja ou quando ocorreu.
Tais ideias foram desenvolvidas a partir das de Locke que, segundo d’Alembert,
havia sido o “(...) criador da filosofia científica como Newton o foi da física científica”
(Cassirer, 1950, p. 119).
Locke, combatendo a noção de ideias inatas de Descartes, afirma que todo
conhecimento humano era obtido a partir da experiência. Ele afirmava, no entanto, que
faculdades humanas, tais como a comparação, a volição, o JUíZo, etc., são fundamentais da
alma. Segundo os filósofos franceses, embora Locke tivesse dado um passo importante ao
entendimento dos mecanismos do conhecimento humano, havia parado no meio do caminho,
já que acabou por pressupor o inatismo das operações psíquicas. A postura de que o homem
se transforma em função das impressões que vai registrando do mundo, segundo os filósofos
franceses, deveria valer tanto para o conhecimento que o homem vai obtendo sobre o mundo
quanto para as operações psíquicas (comparação, vontade, sentimentos, etc.) que passam a
ser vistas como sensações transformadas.
61
Exemplos dessa posição podem ser encontrados em obras de autores como
Condillac e Voltaire. O primeiro afirma que a alma sente quando se dão mudanças em nosso
corpo, sendo os sentidos a causa de todos os sentimentos. Busca encontrar os fundamentos
das operações psíquicas, utilizando observações empíricas, muito embora sua obra contenha
também afirmações que, segundo Cassirer (1950), são especulativas. Assim, por meio de um
plano rigoroso e sistemático, busca demonstrar — passo a passo — como cada uma das
faculdades humanas vai gradativamente se desenvolvendo. Para tal, apresenta a imagem de
urna estátua que, em função das impressões que vão sendo nela colocadas, vai pouco a pouco
adquirindo vida, chegando a trans formar-‐se num ser humano.
Voltaire afirma que é tal a importância das impressões na formação das ideias do
homem que uma possível transformação na disposição de seus órgãos traria em
consequência mudanças em seu “ser espiritual”, ou seja, transformar-‐se-‐iam com as
mudanças corpóreas os mundos religioso, moral, intelectual, estético, etc.
A base de todo o conhecimento humano, como se pode observar nos exemplos
acima, reside, então, na experiência que, movendo a razão, pode conduzir o homem por
diferentes caminhos. Diderot sintetiza essa posição ao enfatizar que o pensamento filosófico-‐
científico deveria usar a observação dos fatos, a reflexão sobre suas possíveis combinações e
a verificação, por meio da experiência, dos resultados da reflexão.
62
O PAPEL DA ANÁLISE NA ELABORAÇÃO DO CONHECIMENTO
Em relação à produção de conhecimento científico, o século XVIII, na França, toma rumos
diferentes daqueles empreendidos no século anterior. O século XVII caracterizou-‐se pela construção de
sistemas filosóficos baseados na ideia de que só se chegaria ao saber se chegasse a certezas das quais
novos conhecimentos pudessem ser dedutivamente derivados. Já no século XVIII renuncia-‐se a esse
procedimento, com base em Newton que propunha a análise em vez da dedução como procedimento
para obtenção de conhecimento. Assim a experiência, a observação e o pensamento deveriam buscara
ordem das coisas nos próprios fatos e não mais nos conceitos. A análise possibilitaria a identificação
daquilo que é comum e permanente entre os particulares, conduzindo a princípios gerais. Cabe à razão,
partindo de fatos — recolhidos pela observação —, relacioná-‐los identificando sua dependência. É por
meio da análise que Condifiac mostra que as atividades corpóreas e psíquicas possuem um
denominador comum: as impressões. Ao explicar a origem do conhecimento, coloca a sensação como
fonte: não há mais Deus mediando a relação entre o sujeito que conhece e o objeto do conhecimento. A
relação se dá diretamente entre homem e mundo por meio da sensação, da qual derivam todas as
operações intelectuais. O método por intermédio do qual se chega ao conhecimento é o da análise:
Consiste, partindo de um todo confuso, em perceber sucessiva e separadamente os detalhes,
de começo os pontos mais importantes que ressaltam deles mesmos, a seguir as partes intermediárias,
para chegar, finalmente, a uma percepção simultânea e distinta. (... é um movimento de decomposição e
de recomposição. (Bréhier, 1977a, p. 78)
As teorias acerca do Estado e da sociedade, como a de Montesquieu, por exemplo, tendem a
vê-‐los corno compostos por partes que se influenciam mutuamente e que precisam ser identificadas.
Montesquieu constrói modelos políticos a partir de seus elementos constitutivos. Segundo esse autor, é
possível identificar “(...) a lei (no sentido newtoniano) que governa o regime de um povo, o ‘espírito
geral’ de uma nação” (Desné, 1982, p. 95), a partir da consideração de diferentes elementos físicos
(clima, solo, território) e sociais (tradição, moeda, religião, leis).
AS REGULARIDADES DOS FENÔMENOS NATURAIS FÍSICOS E SOCIAIS
A afirmação do potencial da razão humana no entendimento do mundo relaciona-‐se à ideia
de que todas as explicações sobre a natureza que envolvem o sobrenatural devem ser abolidas, já que
esta pode ser racionalmente entendida e explicada.
A possibilidade de se chegar a leis sobre a natureza, assim como a Possibilidade humana de
nela atuar, apoia-‐se no pressuposto de que há regularidades e uniformidades nos fenômenos — quer
físicos, quer sociais —, já que passam todos a ser considerados fenômenos naturais Tais regularidades
63
Se expressam em leis, e o conhecimento dessas leis se dará pela observação dos fenômenos naturais,
seguindo seu curso e registrando-‐o mediante experimentos medida, observação e cálculo.
A ideia de que a natureza se comporta segundo seu próprio curso expressou-‐se, segundo
Cassirer (1950), por meio de posturas materialistas me. canicistas — como as de La Mettrie e d’Holbach
— e por meio de postura que se opõem a esse materialismo mecanicista, como a de d’Alembert. Este
último, opondo-‐se a ambos, defende não ser necessário buscar a essência última das coisas, mas buscar
conexões e relações entre os fenômenos, segundo ele o possível de se conhecer.
La Mettrie e d’Holhach consideravam a matéria como essência Últi11 das coisas e afirmavam
que todos os fenômenos, inclusive o pensamento, são resultado de processos materiais. Segundo La
Mettrie, à lista de propriedades da matéria na qual já se incluía a extensão como fundamental, deveriam
ser acrescentadas as capacidades de sentir, recordar, pensar; o movimento da matéria poderia, então,
explicar não só nossas sensações como nossa vontade, nossos desejos, etc. Segundo d’Holbach, uma
certa disposição dos átomos forma o homem e o que o impulsiona é o movimento desses átomos; o
destino humano encontra-‐se, portanto, dirigido por condições naturais que independem da vontade ou
dos desejos humanos.
A defesa de que existem regularidades que se expressam em leis pode ser identificada em
relação aos fenômenos sociais, nas posturas do Montesquieu, Voltaire e Diderot, que afirmam buscar em
relação à moral e ao direito a ordem e a regularidade encontradas no mundo físico, em apoio à ideia de
que todo o universo é regido por leis e princípios últimos que podem ser descobertos.
Montesquieu, de acordo com Cassirer (1950), “Coloca-‐se como jurista, a mesma questão que
Newton se colocou como físico; não se dá por satisfeito com leis do cosmos político empiricamente
conhecidas, mas pretende reduzira multiplicidade destas leis a uns princípios determinados” (p. 269).
Montesquieu tem como objeto de estudo a sociedade e para analisá-‐la aplica a noção de “lei geral”, já
que entende que
As leis, no seu sentido mais amplo, são relações necessárias que derivam da natureza das coisas
e, nesse sentido, todos os seres têm suas leis; a divindade possui suas leis; o mundo material possui suas leis;
as inteligências superiores ao homem possuem suas leis; os animais possuem suas leis; o homem possui
suas leis. (Do espírito das leis, Primeira parte, Livro primeiro, cap. 1, p. 33)
Sendo as leis “relações necessárias que derivam da natureza das coisas” deve-‐se partir dos
próprios fatos, de sua descrição e comparação, para se chegar aos princípios mais gerais da organização
social.
Voltaire defende que existe um princípio universal da moral que os homens podem descobrir
por trás das diferenças de costumes e de opiniões.
A firmação de Voltaire, citada na obra de Cassirer (1950), deixa clara a crença do pensador
francês em leis que são universais para todos os homens:
Ainda que o que em um país se denomine virtude se chame vício em outro, ainda que a maioria
das regras sobre o bem e o mal sejam tão diferentes como os idiomas que se falam e os vestidos que se
64
usam, inc parece, sem dúvida, que existem leis naturais com respeito às quais os homens de todas as partes
do globo devem estar de acordo. (...) Assim como Deus dotou as abelhas de um instinto poderoso em função
do qual podem trabalhar em comum e alimentar-‐se, dotou os homens de determinados sentimentos dos
quais nunca poderão despojar-‐se e que são os vínculos eternos e as primeiras leis da sociedade humana.
(pp. 27 1-‐272)
Diderot também demonstra fé na natureza moral e invariável do homem; para ele as
condutas humanas têm como base os instintos — a uniformidade de suas inclinações, impulsos e
necessidades sensíveis — que são de natureza física. Conceitos como os de liberdade e vontade, como
algo intrínseco ao homem, não passam agora de meios de mascarar os fatos: o justo e o injusto são por
ele concebidos como relativos e determinados por necessidades, por nossa vida. Defende que a conduta
humana seja dirigida por suas bases biológicas e que a religião e as leis não limitem necessidades que
são naturais, pois obedecendo-‐se apenas à natureza humana será possível atingir a felicidade do homem
e da sociedade.
65
O ANTIDOGMATISMO E A IDEIA DE PROGRESSO HUMANO
Como consequência do racionalismo empirista, as ideias desse período são caracterizadas
pelo antidogmatismo; os pensadores contrapõem-‐se às ideias preconcebidas, às ideias baseadas na
autoridade e combatem todas as crenças, principalmente as da religião, pois, para eles, a superstição, o
preconceito e a ignorância impediam o funcionamento natural da razão.
As explicações sobrenaturais são, consequentemente, eliminadas tanto em relação aos
fenômenos físicos quanto em relação aos fenômenos sociais, psicológicos, etc.
O anteriormente citado combate às ideias inatas guarda relação com a Postura antidogmática,
que passa a ser assumida pelos pensadores franceses desse período; se para Deus era o fundamento
último das ideias inatas, para os pensadores franceses a mediação de Deus no processo de
conhecimento é desnecessária.
O antidogmatismo expressa-‐se de várias formas no que diz respeito à concepção de natureza:
por meio da ideia de que todo conhecimento sobre O mundo deve ser construído por intermédio do uso
da observação, da experimentação e da razão, o que vai contra a ideia de aceitar como verdadeira uma
proposição em função de ser baseada numa autoridade; por meio da ideia de que os princípios
explicativos apesar de universais não são absolutos, mas o “último” degrau alcançado pelo pensamento;
por meio do combate a toda e qualquer perspectiva religiosa na explicação do mundo, já que à religião
estavam associadas as ideias de verdades eternas, sobrenaturais, indiscutíveis, que prescindiam de
provas concretas.
Nesse período, os estudos geológicos desenvolvidos desvincularam-‐se da noção de tempo
apresentada na Bíblia. Buffon representa esse empenho elaborando uma história do mundo baseada em
observações que nada têm a ver com a perspectiva religiosa da formação do universo. Quanto à espécie
humana, embora não a considere igual às demais espécies, as razões para diferenciá-‐la nada têm a ver
com a ideia de alma ou de homem criado “à imagem e semelhança de Deus”. Ao contrário, as diferenças
apontadas por Buffon fundam-‐se em razões que derivam da observação das atividades humanas: falar,
inventar, adaptar-‐se a diferentes situações, etc.
Segundo Diderot, a integração da matéria explicaria tudo, inclusive a evolução biológica. No
que diz respeito a essas transformações, Diderot chega a mencionar um processo de seleção em que a
natureza tende a suprimir aquilo que não satisfaz as exigências da vida. Vê-‐se, pois, que nenhuma
entidade sobrenatural desempenha qualquer papel a criação e desenvolvi mento do mundo: a natureza
atuou e atua por si mesma.
Embora não se tenha uma concepção evolucionista das espécies, são veiculadas, nesse
período, noções relacionadas à ideia de seleção natural, como já se viu em Diderot. La Mettrie diz que as
más formações são eliminadas e Maupertuis defende que nem todas as combinações da matéria
permanecem, já que, conforme salientado por Desné (1982),
66
(...) os elementos da matéria tendem a se organizar em formas vivas que só se realizam, de
maneira durável, em seguida a nUmerosos tateamentos e fracassos: subsistiram somente as combinações
felizes que dão a ilusão, para nós atualmente, de uma finalidade. (p. 85)
Deus é excluído, também, do destino do homem; as ações humanas deixam de ser explicadas
em função de uma finalidade divina; o homem passa a ser dono do seu destino e, como tal, criador da
própria sociedade.
Voltaire crê que o mundo foi deixado à mercê de sua própria sorte; o bem e o mal são
realidades sociais e não, respectivamente, a iluminação de Deus e o afastamento d’Ele pela alma
pecadora; Montesquieu vê as instituições como frutos do próprio homem, excluindo a perspectiva
religiosa na análise da sociedade.
Além de criticar o recurso às Escrituras ou a Deus nas explicações dos fenômenos, os
pensadores do século XVIII questionam noções como a alma e a crença em Deus, base da religião cristã.
A noção de alma é atacada por La Mettrie, para o qual “(...) não é mais que uma palavra vazia” (Cassirer,
p. 86); d’Holbach, considerando que a teologia é um obstáculo para a ciência, defende ser necessário
deixar de lado as ideias de Deus e imortalidade.
A exclusão de Deus ou de elementos sobrenaturais corno explicação dos fenômenos —
físicos, sociais ou psicológicos — não significa, necessariamente, negar a existência de Deus, como fazem
La Mettrie, d’Holbach e Helvétius ao contrário, alguns pensadores, como Voltaire e Rousseau, admi tem-‐
na. Voltaire, por exemplo, afirma a existência de um ser criador de todas as coisas, responsável pela
ordem existente na natureza; nenhuma outra interferência teria exercido Deus sobre o mundo após a
sua criação. Além da ideia de criação do mundo por Deus, Voltaire nada mais aceita do que afirma a
tradição judaico-‐cristã.
Para os pensadores franceses, ateus ou não-‐ateus, o fato é que Deus deixa de ser o mediador
entre o homem e o mundo, cabendo ao homem a responsabilidade por aquilo que faz: Deus, quando
admitido, o é apenas enquanto iniciador e mantenedor do funcionamento da máquina newtoniana do
mundo, sem nele interferir.
O “Deus todo-‐poderoso” passa a ser substituído pelo “homem todo-‐ poderoso”: a crença no
poder do homem é intensa, e isso se dá em função da crença no poder da razão, seja como instrumento
de produção de conhecimento, seja como guia das ações humanas. Inter-‐relacionada à crença no poder
da razão está a ideia de progresso, urna vez que se concebe a própria razão como agente do progresso
humano; o progresso ocorre na medida em que existe a aplicação crescente da razão no controle do
ambiente físico e Cultural.
Nesse período, começa-‐se a defender a ideia de que a superação da ignorância leva ao
progresso, de que a sociedade do presente é melhor que a do passado; a ideia de que o acúmulo do
conhecimento obtido levará, por sua própria direção interna, à obtenção de uma sociedade cada Vez
melhor.
67
Voltaire exemplifica essa crença, ao defender ser possível ao homem dotado de conhecimento
libertar-‐se de preconceitos e modificar sua forma de Viver e de pensar. Segundo Bréhier (1 977a), as
obras de Voltaire constituem se em “(...) campanhas contra os preconceitos e propaganda em favor do
espírito novo” (p. 140).
ROUSSEAU: UMA CRÍTICA À NOÇÃO DE PROGRESSO
A ideia de progresso, como foi visto, está estritamente relacionada à crença no poder do
conhecimento racionalmente obtido: quanto mais culta a sociedade, melhor ela se toma; quanto mais
culto o homem, melhor ele será. Assim, os pensadores franceses desse período acabam por vincular a
própria moralidade ao saber.
Nesse coro de vozes — que vincula a moralidade à cultura e que defende o progresso como
inerente ao desenvolvimento do conhecimento científico, artístico, etc. — destoa Rousseau. Rousseau é
o único a colocar em xeque o elo de necessidade entre acúmulo do conhecimento racionalmente obtido
e.t progresso da sociedade; é o único a dissolver o vínculo até então inquestionável. “A unidade entre
consciência moral e consciência culta em geral, que até então havia sido suposta de forma crédula e
ingênua, {Rousseaul a coloca como problemática e questionável ao extremo” (Cassirer, 1950, p. 298).
Ao analisar a sociedade de sua época, Rousseau procura demonstrar que, a despeito de todo o
progresso das ciências e das conquistas alcançadas, ela não apresentou urna melhoria em termos do
próprio homem ao contrário, contribuiu para a decadência em nível dos costumes, valores e práticas: a
origem de suas misérias é fruto do pretenso aperfeiçoamento humano.
Embora os costumes, valores e práticas possam ter se sofisticado e até aprimorado, não se
tornaram moralmente e espiritualmente melhores; em vez de impulsos morais verdadeiros,
desenvolveram-‐se o poder, a ambição, a miséria. Para Rousseau, é a própria sociedade a responsável
pela desigualdade, injustiça e arbitrariedade existentes.
Desvinculando a ética do saber, Rousseau resgata o papel da vontade no estabelecimento de
um verdadeiro estado social, isto é, um estado social no qual reinem a igualdade e a justiça.
Para Rousseau, essa vontade transcende a bondade individual, já que o verdadeiro estado
social se apóia na vontade geral. E mediante um contrato social que existe a submissão voluntária das
diferentes vontades individuais à vontade geral, a qual é soberana e por meio da qual os indivíduos
podem se realizar em sua plenitude. A submissão voluntária dá aos indivíduos um caráter de sujeitos de
vontade: eles atuam em função daquilo que devem; eles querem se submeter como um dever.
Conforme afirma Rousseau, “Quando os cidadãos se submetem às condições que eles mesmos
acordaram, ao aceitarem por decisão livre e racional não obedecem a ninguém mais que sua própria
vontade” (em Cassirer, 1950, p. 289).
68
Ao resgatar a vontade, resgata um imperativo ético que deve estar unido ao saber; ao mostrar
que não existe o vínculo de necessidade entre razão e moral, Rousseau mostra que há limites para a
razão e que o saber não deve ter um primado absoluto; ao estabelecer esses limites, acaba por reafirmar
o próprio racionalismo na medida em que identifica sua verdadeira importância.
De acordo com Cassirer (1950), Rousseau substituiu um racionalismo puramente teórico, por
um racionalismo ético:
Porque Rousseau é um autêntico filho do Iluminismo quando o combate e o supera. Seu
evangelho do sentimento não significa urna ruptura, porque não atuam fatores puramente
emotivos, mas atuam convicções autenticamente intelectuais e morais. Com a sentimentalidade
de Rousseau não se abre brecha para um mero sentimentalismo, mas para urna força e vontade
éticas novas.
(p. 302)
INOVAÇÕES E LIMITES DO PENSAMENTO FRANCÊS
Com o que até aqui se discutiu, fica patente que o século XVIII, na França, constituiu-‐se num
período de questionamentos que colocavam em xeque não só a prática social (econômica, jurídica,
religiosa, etc.) como também as concepções das quais essa prática derivava. Tais questionamentos
acarretaram a proposição de novos conceitos e pressupostos que, por sua vez, acabaram por gerar
novas propostas em todos os níveis da prática social e do conhecimento humano.
Vários exemplos da revolução na forma de pensar o homem, o mundo e o conhecimento,
nesse período, podem ser pinçados como meio de ilustrar como os mais diferentes assuntos, além dos já
mencionados, foram objeto de análise e crítica dos pensadores franceses desse século.
Por exemplo, toma forma a noção de natureza humana a qual supõe a existência de
características que são comuns a todos os homens. Essa noção se relaciona à de que os homens têm
direitos que são próprios de todo ser humano; nesse sentido, opõe-‐se à noção de que existem direitos
que são exclusivos de um dado grupo social, como era o caso da educação, propriedade..., que se
restringiam praticamente ao clero e à nobreza. Por outro lado, a despeito do coletivo implícito na noção
de natureza humana, enfatiza-‐se o t por meio da ideia do indivíduo como responsável pela direção de
Sua própria vida e da sociedade. Isso fica claro, quando Voltaire advoga que, Para mudar a sociedade, é
preciso mudar o indivíduo, o que seria feito me diante uma educação crítica.
O interesse dos pensadores franceses do século XVIII recai também sobre muitas outras áreas
do conhecimento humano, o que se pode notar em artigos presentes na Enciclopédia, nos quais se
revelam as novas formas de abordar essas áreas e seus objetos de estudo. Os artigos sobre teoria da
ética, por exemplo, partem da ideia de homem como ser de natureza sociável e que, portanto, seguia
69
uma ética social “natural”. As bases dessa teoria deixam de ser, portanto, o desejo de Deus para
transformar-‐se em algo fundado na própria natureza humana.
Data dessa época, também, o desenvolvimento do estudo de povos primitivos orientado pela
preocupação de desvendar a origem da sociedade humana. Desenvolve-‐se, também, a teoria linguística
baseada na ideia de que o conhecimento depende do uso correto da linguagem. Revela-‐se um interesse
científico na natureza da linguagem que se expressa na presença de artigos na Enciclopédia que
versavam sobre gramática e sinônimos.
A noção de homem enquanto um ser sociável é ressaltada na época, o que acarreta mudanças
na forma de conceber a história humana, assim como transformações na forma de estudá-‐la. Por
exemplo, para Buffon, a história do homem é a história da sociedade; para d’Holbach, a felicidade do
indivíduo vincula-‐se à da sociedade na qual está inserido. Helvétius dá ênfase às relações dos indivíduos
com o meio social; o indivíduo é formado e essa formação depende mais da educação que da natureza e
fisiologia humanas. O estudo histórico das sociedades foi empreendido por Voltaire, a partir da busca de
dados acerca dos costumes e das condições econômico-‐sociais, em vez do destaque de fatos
particulares. Essa modificação reflete unia mudança na própria concepção de história; segundo Desné
(1982),
Duas concepções antigas da história vão desmoronar-‐se aqui: a história genealógica (uma
família, por mais prestigiosa que seja, não é um povo) e a história militar. (...) A concepção
moderna da história é aquela de uma história que abarca o conjunto das atividades humanas
(...). Pg. 93-‐94)
Outros pensadores, preocupados com questões metodológicas e com a aplicação do modelo
de investigação das ciências naturais a outras ciências, chegam, nesse período, a problematizar a
aplicabilidade direta desse modelo às ciências que lidavam com a vida e com o homem. Esse
questionamento surge em função do fato de que durante esse século, na Franca, o modelo das ciências
naturais — que tem fundamentalmente Newton como mestre — vai estender-‐se a outros campos do
conhecimento, uma vez que todos os fenômenos passaram a ser vistos como naturais, quer os da física,
química, biologia, quer os sociais, psicológicos, artísticos.
Segundo Cassirer (1950), coloca-‐se, nesse período, o problema de descobrir se o modelo de
investigação dos fenômenos físicos pode ser aplicado na íntegra para a investigação de todo e qualquer
outro tipo de fenômeno. Questiona-‐se o papel da matemática, da lógica e da descrição na explicação do
mundo, discutindo-‐se as peculiaridades das diferentes áreas de conheci mento. É o que vemos presente
nas ideias de Diderot, quando este afirma que a metodologia e a sistematização necessárias a qualquer
investigação devem, no entanto, adequar-‐se aos diferentes objetos de estudo.
Buffon, um estudioso da biologia, afirmava que o conhecimento biológico tinha uma estrutura
peculiar. Em função dessa estrutura, não pode ser dirigido exclusivamente pelas leis da matemática,
mas deve fundamentalmente buscar seguir o curso histórico dos fenômenos. Assim, nas ciências
biológicas, deve-‐se adotar o procedimento de busca “arqueológica” em substituição ao método de
conceitos lógico-‐matemáticos que tenderia, na biologia, a produzir exclusivamente uma classificação
70
dos indivíduos em gêneros e espécies. Há de se substituir a definição pela descrição, o gênero pelo
individuo, substituição que resultaria na compreensão das transformações ocorridas no tempo; daí a
ênfase na descrição e na investigação histórica.
Segundo Cassirer (1 950), o ideal de um conhecimento natural matemático, importante no
avanço da Física do século XVIII, vai sendo substituído por uni ideal de um conhecimento natural
puramente descritivo. Assim, embora na matemática descrição e mensuração coincidam, em ciências
como a biologia, por exemplo, a descrição ganha um novo sentido.
As propostas inovadoras na.s várias áreas de conhecimento, as novas ideias e valores, as
críticas às ideias vigentes não passaram, obviamente, despercebidas diante das estruturas do regime
que visavam a combater. Assim sendo, pode-‐se imaginar a resistência oposta às novas ideias e a seus
representantes pelos poderes estabelecidos. Não é de estranhar, portanto, que os pensadores tivessem
sofrido sanções: Voltaire precisou deixar Paris em função de sua obra Cartas filosóficas; Diderot foi
encarcerado por seis meses, em função de haver escrito duas obras, também condenadas; a
Enciclopédia foi proibida, Rousseau precisou fugir e La Mettrie foi exilado.
A despeito de inovadoras para a época, é impossível desvincular as propostas defendidas
pelos pensadores desse período dos interesses de classe que privilegiavam. Assim, se, por uni lado,
combatiam a Igreja e o regime feudal, por outro, defendiam ideias que valorizavam ou visavam a colocar
no poder camadas Sociais às quais pertenciam, em geral, tais pensadores: a burguesia ou mesmo a
nobreza. Exemplos de corno o contexto econômico, Político e social determinou ideias e defesa de certos
interesses podem ser encontrados nas obras de praticamente todos os autores do período, dentre os
quais foram selecionados Montesquieu, Voltaire e Rousseau.
Nobre de nascimento, Montesquieu lutou contra o absolutismo e a Igreja, mas mostrava-‐Se
favorável à monarquia moderada. Lembrado como o autor da teoria dos três poderes, inspirou-‐se no
regime inglês, propondo a separação dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Em sua teoria
prevê, no entanto, exceções a essa divisão de poderes: o monarca podia vetar decisões do legislativo e os
nobres, quando infringissem as leis, não passa riam por julgamento comum a qualquer cidadão, mas
seriam julgados por membros da própria nobreza. Ao admitir que os nobres não passassem pelas
instâncias normais de julgamento e estabelecendo, no legislativo, uma câmara alta composta por
nobres, Montesquieu deixa claro responder aos interesses da nobreza.
Voltaire, embora defendesse que todos os homens podiam se libertar de preconceitos e
mudar sua forma de vida a partir de conhecimentos, esperava que a mudança no regime vigente se
desse não por movimentos populares, mas por meio de um monarca ilustrado (filósofo). Segundo
Efimov e outros (1981), temia a revolução e defendia interesses de um grupo da nobreza avançada e da
burguesia.
Segundo os mesmos autores, Rousseau exprimia anseios da pequena burguesia (pequenos
proprietários), propondo o aniquilamento da propriedade senhorial, mas defendendo a manutenção da
propriedade privada, acreditando ser possível mantê-‐la ao mínimo. Além disso, a separação entre as
propostas teóricas por ele formuladas e sua prática fica evidente, se compararmos as ideias veiculadas
71
no Contrato social ou no Discurso sobre a desigualdade com outros textos, em que se propõe a resolver
problemas práticos. Segundo Fortes (1976), no plano teórico vigora a ideia de soberania da vontade
geral, enquanto no texto Considerações sobre o governo da Polônia “(...) Rousseau patrocina a causa de
um conservadorismo aristocrático pouco compatível com o igualitarismo republicano que advogava no
plano da teoria” (p. 26). Solicitado pela nobreza polonesa para orientar a reorganização política do país,
não chega a ser nem um reformador, já que mantém intactas as estruturas de poder e as leis. Mantém o
senado, o rei e a dieta (câmara de representantes), aquele que afirma que o povo deveria ser soberano, e
contraria o princípio de que toda lei deve ser ratificada pelo povo, ao atribuir às decisões das dietas
caráter definitivo.
Tais limites podem ser entendidos, se nos reportarmos ao contexto em que viveram os
pensadores franceses do século XVIII: um contexto de luta da burguesia para ascender ao poder e da
nobreza feudal para manter seus privilégios. Conforme Marx e Engeis (1980):
A produção de ideias, de representações e da consciência está em primeiro lugar direta e
intimamente ligada à atividade material e ao comércio material dos homens. (...) Não é a
consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência. (pp. 25-‐26)
72
HÁ UMA ORDEM IMUTÁVEL NA NATUREZA E O CONHECIMENTO A REFLETE:
Amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por fim.6
Comte
Auguste Comte nasceu na França (Montpellier) em 1798, viveu grande parte da sua vida em
Paris, onde morreu em 1857. Estudou na Escola Poli técnica de Paris e medicina em Montpellier, mas
não terminou nenhum dos cursos, tendo feito boa parte de seus estudos por conta própria. Durante sua
vida, tentou, mas não conseguiu, ser admitido como docente permanente na Escola Politécnica.
Desenvolveu várias atividades para sobreviver; foi professor particular, tutor, examinador da Escola
Politécnica e, por vários anos (1817-‐1824), conviveu e foi secretário de Saint Simon com quem rompeu
por discordar do rumo que suas ideias tomaram.
Comte publicou vários livros e fez conferências públicas, bem como conferências a cientistas,
que não lhe renderam dinheiro, mas que tinham como objetivo tornar conhecida sua filosofia e
arrebanhar-‐lhe adeptos. Foram, em parte, esses objetivos que lhe garantiram o sustento, por meio de
contribuições. Dentre essas conferências, foram importantes as conferências públicas de astronomia,
destinadas ao público leigo (e aos trabalhadores, especial mente), que tinham a preocupação pedagógica
de, por meio do estudo da mais avançada das ciências, ensinar que o universo e a sociedade eram sub
metidos a leis invariáveis, eram ordenados. Também importantes foram as conferências que deram
origem aos volumes assim igualmente intitulados Curso de filosofia positiva, dirigidas a um público de
cientistas e que tinham como objetivo dar a conhecer a sua filosofia.
Em 1845, Comte conheceu Clotilde de Vaux que morreu um ano de pois, de quem se tomou
amigo e que marcou profundamente seus últimos trabalhos. Atribui-‐se à admiração de Comte a Clotilde
de Vaux muitos dos aspectos contidos na sua proposta de uma Religião da humanidade, como o papel
que aí atribui à mulher em geral, e a Clotilde (que ocupa lugar de destaque nos ritos religiosos
previstos) em particular.
Dentre seus livros publicados, destacam-‐se: Curso de filosofia positiva (cujo primeiro volume
foi publicado em 1830 e o sexto e último em 1842), Tratado elementar de geometria analítica (1843),
Tratado filosófico de astronomia popular (1844), A política positiva (1851-‐4), Catecismo positivo
(1854) e Síntese subjetiva ou sistema universal de ideias sobre o estado normal da humanidade (1856).
Comte vive na França num momento pós-‐revolucionário, quando a burguesia havia ascendido
ao poder. Na primeira metade do século XIX, a luta pela manutenção do poder, por parte da burguesia, e
pela sua tomada, por parte de uma crescente classe de trabalhadores, desencadeia não apenas uma série
de convulsões sociais e políticas, mas também um conjunto de ideologias e sistemas que tem por
objetivo dar sustentação aos vários setores em luta.
6ANDREY, Maria Amália et alii. Para Compreender a Ciência. São Paulo : EDUC – Editora da
PUC-SP, 2000;
73
Comte toma o partido da parcela mais conservadora da burguesia, que defendia um regime
ditatorial e não parlamentarista e que buscava criar as condições para se fortalecer no poder e impedir
quaisquer ameaças, identificadas com todas as tentativas democratizantes ou revolucionárias. Nesse
sentido, sua proposta de uma filosofia e de reforma das ciências tem como objetivo sustentar essa
ideologia, e suas ideias de reforma da sociedade e até de uma nova religião são coerentes com essa
visão.
Apesar do pensamento de Comte parecer ser uma resposta às condições históricas específicas
do capitalismo francês do século XIX, os lemas positivistas que emergem do pensamento de Comte
difundiram-‐se além das fronteiras francesas, chegando a influenciar a política (e a sociedade) de países
em situação histórica bastante diferente da França. Tal é o caso do Brasil, como o reconhecem não
apenas autores brasileiros, mas, de uma maneira geral, vários estudiosos de Comte:
No fim dos anos 1840 uma Sociedade Positivista foi findada e desde então a doutrina de Comte
começou a ganhar adeptos. De acordo caiu o próprio plano de Comte, a Sociedade tornou-‐se
mais e mais um tipo de religião secular com seu próprio ritual; alguma coisa disto sobrevive até
hoje na França, embora tenha preservado sua maior fertilidade no Brasil. (Kolakowski, 1972, p.
63).
A seita religiosa praticamente não chega a se propagar na França. Mas o amálgama político
ideológico da religião positivista lançara raízes na América Latina: no Brasil, no Chile, no
México. A revolução brasileira de 1889 será obra das seitas positivistas: desde então a bandeira
brasileira tem a divisa Ordem e Progresso. Benjamin Constant, o ministro da Instrução Pública
nessa época, reforma o ensino de acordo com os pontos de vista de Comte. (Verdenal, 1974, p.
234)
Apesar de ser discutível (e isso tem sido analisado por autores brasileiros) o peso do
positivismo para o estabelecimento da República no Brasil, é inegável seu papel, pelo menos no que diz
respeito à influência de alguns homens que abraçavam o positivismo e que foram importantes nesse mo
mento histórico. Tal é o caso de Benjamin Constant e dos militares brasileiros, que estavam convencidos
de que os ideais positivistas serviriam de modelo às reformas políticas, sociais e econômicas que então
se processavam.
Maar (1981) afirma que, embora não se possa atribuir influência decisiva ao movimento
positivista ortodoxo na instalação da República, as ideias positivistas influenciaram o seu
estabelecimento e até, em alguns casos, algumas medidas institucionais. Exemplo disto seria a
constituição gaúcha de 1891 que estabelece, entre outras coisas, algumas medidas trabalhistas que
objetivavam “integrar” o trabalhador à sociedade, a possibilidade de permanência indefinida no
governo do chefe de estado e poderes muito limitados à assembléia. Maar lembra ainda que o ideário
positivista esteve, e talvez ainda esteja, presente no Brasil: nas ideias que pregam a necessidade de um
74
estado forte, a necessidade dos militares como um poder moderador, nas ideias que apontam como
desvios perigosos o não reconhecimento de uma pretensa harmonia entre as classes sociais, nas ideias
que, portanto, acabam por privilegiar a força sobre a lei. E, acima de tudo, tais ideias estão
representadas até hoje no lema da bandeira brasileira, Ordem e Progresso, que ainda permeia muito a
ideologia nacional.
Se as concepções políticas de Comte são indispensáveis para se compreender a influência que
exerceu na elaboração de determinadas posturas políticas, a influência de sua obra no pensamento
moderno e contemporâneo não se restringe a tais concepções. Comte elabora, também, uma proposta
para as ciências, pretende ser o fundador de uma nova ciência, a sociologia (termo que ele cunhou), e
funda uma religião. A compreensão das propostas de Comte e de sua influência depende da
compreensão de cada um desses aspectos e, principalmente, do entendimento da totalidade de seu
pensamento.
Vários estudiosos de Comte vêem uma ruptura entre sua proposta para a ciência e a proposta
de uma religião como base de uma pretensa reforma social. Acreditam que suas posições antimetafisicas
e antiteológicas, no que se refere ao conhecimento científico, não são compatíveis com sua proposta de
uma religião. Indubitavelmente, sua influência posterior contou com adeptos que só assumiram seu
cientificismo, e com seguidores que assumiram toda sua proposta. No entanto, outros estudiosos de
Comte enfatizaram que esse fato (a aceitação apenas de suas ideias a respeito da ciência) não revela, em
si, uma incoerência no pensamento do próprio Comte (mas revelaria condições históricas específicas a
que estariam submetidos seus seguidores). Tais estudiosos afirmam que suas propostas de reforma
social e de uma “religião da humanidade” são consequências necessárias que estão contidas em suas
propostas para a ciência; são o corolário necessário de suas crenças políticas; de sua visão de história
como um progresso contínuo do conhecimento e do espírito humano, progresso apenas possível com e
dentro de uma ordem ab soluta; e de sua visão de uma natureza absolutamente ordenada segundo leis
invariáveis. Esses estudiosos vêem, assim, as ideias de Comte como um sis tema unitário no qual,
segundo Verdenal (1974),
Em última análise o positivismo é a fórmula filosófica que permite transmutar a ciência em
religião: a ciência, desembaraçada de todo além teórico da especulação, converte-‐se em religião
despojada de perspectiva teológica e reduzida aos “fatos” da prática religiosa: os ritos sociais.
(p. 24S)
A palavra “positivo” e os significados a ela associados marcam diversos temas discutidos por
Comte, como a história, a filosofia, a ciência e a religião.
Considerada de início em sua acepção mais antiga e comum, a palavra positivo designa real, em
oposição a quimérico. Desta ótica convém plenamente ao novo espírito filosófico, caracterizado
segundo sua constante dedicação a pesquisas verdadeiramente acessíveis a nossa inteligência (.).
Num segundo sentido muito vizinho do precedente, embora distinto, esse termo fundamental
indica o contraste entre útil e ocioso. Lembra, então, em filosofia, o destino necessário de todas as
nossas especulações sadias para aperfeiçoamento contínuo de nossa verdadeira condição
75
individual ou coletiva, em lugar da vã satisfação de uma curiosidade estéril. Segundo uma terceira
sign usual essa feliz expressão é, frequentemente, empregada para qua1 a oposição entre a
certeza e a indecisão. Indica, assim, a aptidão característica de tal filosofia para construir
espontaneamente a harmonia lógica no indivíduo, e a comunhão espiritual na espécie inteira, em
lugar destas dúvidas indefinidas e destes debates intermináveis que devia suscitar o antigo regime
mental. Uma quarta acepção ordinária, muitas vezes confundida com a precedente, consiste em
opor o preciso ao vago. Este sentido lembra a tendência constante do verdadeiro espírito filosófico
a obter em toda a parte o grau de precisão com patível com a natureza dos fenômenos e conforme
as exigências de nossas verdadeiras necessidades (..).
E preciso, enfim, observar especialmente urna quinta aplicação, menos usada que as outras,
embora igualmente universal, quando se emprega a palavra positivo como contrária a negativo.
Sob este aspecto, indica urna das mais eminentes propriedades da verdadeira filosofia moderna,
,mostrando-‐a destinada sobretudo, por sua própria natureza, não a destruir, mas a organizar.
(Discurso sobre o espírito positivo, 1 parte, V)
Além desses cinco atributos, Comte acrescenta mais um significado ligado, embora não
diretamente, à palavra positivo, e que, para ele, deve marcar tal pensamento.
O único caráter essencial do novo espírito filosófico, não ainda indicado diretamente pela palavra
positivo, consiste em sua tendência necessária a substituir, em todos os lugares, absoluto por
relativo. (Discurso sobre o espírito positivo, l parte, VII)
Comte supõe, no entanto, que o pensamento nem sempre foi marcado por essas características.
O pensamento positivo, que ele considera já existir, no século XIX, em vários ramos do conhecimento (e
que o próprio Comte acreditava estar trazendo para o último ramo do conhecimento — a sociologia) é
visto como fruto de uma longa história do desenvolvimento do pensamento. Esse desenvolvimento
expressaria uma lei necessária de transformação do espírito humano, que Comte chama de lei dos três
estados, segundo a qual, numa sucessão necessária, o pensamento humano passaria por três momentos,
três formas de conhecimento, sendo caracterizado, em cada estado, por aspectos diferentes, até atingir,
no seu último momento, o estado positivo. Com-‐ te, embora expresse essa lei como absoluta, já que
todas as áreas do conhecimento humano assim se desenvolveriam, não acredita que todas as áreas do
conhecimento se desenvolvam concomitantemente e vê nessa lei uma regra da história do
desenvolvimento da humanidade e uma regra da história do desenvolvimento do indivíduo.
Em outros termos, o espírito humano, por sua natureza, emprega sucessiva-‐ mente, e em cada
uma das suas investigações, três métodos de filosofar, cujo caráter é essencialmente d e mesmo
radicalmente oposto: primeiro, o método teológico, em seguida, o método metafísico, finalmente, o
método positivo. Daí três sortes de filosofia, ou de sistemas gerais de concepções sobre o conjunto
de fenômenos, que se excluem mutuamente: a primeira é o ponto de partida necessário da
inteligência humana; a terceira, seu estado fixo e definitivo; a segunda, unicamente destinada a
servir de transição.
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No estado teológico, o espírito humano, dirigindo essencialmente suas investigações para a
natureza íntima dos seres, as causas primeiras e finais de todos os efeitos que o tocam, numa
palavra, para os conhecimentos absolutos,apresenta os fenômenos corno produzidos pela ação
direta e contínua de agentes sobrenaturais mais ou menos numerosos, cuja intervenção
arbitrária explica todas as anomalias aparentes do universo.
No estado ,metafísico, que no fundo nada mais é do que si modo geral do primeiro, os agentes
sobrenaturais são substituídos por forças abstratas, verdadeiras entidades (‘abstrações
personificadas) inerentes aos diversos seres do mundo, e concebidas como capazes de engendrar
por elas próprias todos os fenômenos observados, cuja explicação consiste, então, em determinar
para cada um uma entidade correspondente.
Enfim, no estado positivo, o espírito humano, reconhecendo a impossibilidade de obter noções
absolutas, renuncia a procurar a origem e o destino do uni verso, a conhecer as causas íntimas dos
fenômenos, para preocupar-‐se unicamente em descobrir, graças ao uso bem combinado do
raciocínio e da observação, suas leis efetivas, a saber, as relações invariáveis de sucessão e de
similitude. A explicação dos fatos, reduzidas então a seus lermos reais, se resume de agora em
diante na ligação estabelecida entre os diversos fenômenos particulares e alguns fatos gerais, cujo
número o progresso da ciência tende cada vez mais a diminuir.
O sistema teológico chegou à mais alta perfeição de que é suscetível quando substituiu, pela ação
providencial de um ser único, o jogo variado de numerosas divindades independentes, que
primitivamente tinham sido imaginadas. Do mesmo modo, o último termo do sistema metafísico
consiste em conceber, em lugar de diferentes entidades particulares, uma única grande entidade
geral, a natureza, considerada como fonte exclusiva de todos os fenômenos. Paralelamente, a
perfeição do sistema positivo à qual este tende sem cessam; apesar de ser muito provável que
nunca deva atingi-‐la, seria poder representar todos os diversos fenômenos observáveis como casos
particulares dum único fato geral, como a gravitação o exemplifica (Curso de filosofia positiva, l
lição, II)
A lei dos três estados carrega consigo, ou expressa, uma concepção de história. Comte
fundamenta suas noções da positiva filosofia e do espírito positivo na noção de que esse estado é
decorrência de uma evolução histórica. Essa evolução é vista por ele como o desenvolvimento do
espírito e do conhecimento, e, apenas como consequência dessa transformação, desenvolvem-‐se, então,
as condições materiais e as instituições sociais. A história é vista como uma evolução necessária, no
sentido de que os vários estágios e momentos têm de ser preenchidos necessariamente, e como uma
evolução linear que implica sempre a superposição, o melhoramento, mas, jamais, rupturas, revoluções.
A história, também, para Comte, percorre um caminho que é predeterminado no sentido de que cada
estado leva ao outro e no sentido de que seu fim está, também, desde o início estabelecido.
O espírito positivo, em virtude de sua natureza eminentemente relativa, é o único a poder
representar convenientemente todas as grandes épocas históricas
77
como tantas fases determinadas duma mesma evolução fundamental, onde cada uma resulta da
precedente e prepara a seguinte, segundo leis invariáVeis que fixam sua participação especial na
progressão comum, de maneira a sempre permitir, sem maior inconsequência do que
parcialidade, fazer exata justiça filosófica a qualquer sorte de cooperação. (Discurso sobre o
espírito positivO, 2 parte, X)
A história é vista, assim, como um conjunto de fases imóveis em si mesmas, que num contínuo
se substituem urnas às outras, de forma que cada estágio é superior ao anterior, decorrência necessária
deste e preparação, também necessária, para o próximo estágio, até que se chegue, finalmente, ao
estado superior.
Sob outro aspecto considera sempre o estado presente como resultado necessário do conjunto da
evolução anterior, de modo afazer constantemente prevalecer a apreciação racional do passado
no exame atual dos negócios humanos — o que logo afasta as tendências puramente críticas,
incompatíveis COm toda sadia concepção histórica. (Discurso sobre o espírito positivo, 2 parte, X)
A história transforma-‐se num desenrolar que é guiado por dois princípios básicos. O princípio
de ordem — de urna transformação ordenada e ordeira, que não comporta transformações violentas,
que não comporta saltos, que flui num contínuo. E o princípio do progresso — a transformação que
ocorre no desenrolar da história é uma transformação que leva a melhora mentos lineares e
cumulatiVos. Nesse sentido, a história que se resume ao desenvolvimento, ao progresso linear e
segundo uma ordem preestabelecida e que nada mais é que o desenvolvimento do espírito e do
pensamento segundo leis também preestabelecidas é explicada (e compreendida) pela mera
apresentação de suas fases. Nessa visão de história cabe ao homem apenas o papel de resignação: é
preciso aguardar o desenvolvimento e aguardá-‐lo respeitando sua ordem natural, seu tempo, seus
limites, num processo de espera que é, ele também, ordeiro.
Para a nova filosofia, a ordem constitui sem cessar a condição fundamental do progresso e,
,.reciprocamente o progresso vem a se, a meta necessária da ordem; como no mecanismo animal, o
equilíbrio e a progressão são mutua mente indispensáveis, a título de fundamento ou destinação.
(Discurso sobre o espírito positivos 2 parte, X)
Esses dois prinCípioS de ordem e de progresso, são inseparáveis entre si: “(...) o progressO
conStitui, co,no a ordem, uma das duas condições fundamentais da civilização moderna “ (Discurso
sobre o espírito positivo, 2 parte, IX), eles permeiam não apenas a visão de história e a concepção de
sociedade de Comte, mas também sua concepção de ciência.
Ao discutir o conhecimento no seu estágio positivo, Comte erige o conhecimento que é
científico no conhecimento real, útil, preciso, certo, positivo e, nesse sentido, o erige no conhecimento
que o homem deve buscar para que possa não apenas reconhecer a ordem da natureza, mas, também,
nela interferir em seu beneficio. Trata-‐se, então, de discutir quais as bases desse conhecimento. E Comte
encontra esses fundamentos nos fatos, afirmando que o conhecimento científico é real porque o
conhecimento científico parte do real, parte dos fatos tal como se apresentam e que, de resto,
apresentam-‐se ao homem tal como são. Para ele, não se podem discutir os mecanismos que permitem
78
ao homem conhecer (e tal discussão não passaria de um retorno à teologia ou à metafísica). Tudo o que
se pode estudar são as condições orgânicas — fisiologia, anatomia — que levam ao conhecimento e os
‘processos realmente empregados para obter os diversos conhecimentos exa tos que (o hotnein) já
adquiriu” (Curso de filosofia positiva, l lição, VIII).
Assim, para Comte, trata-‐se de descobrir que métodos os homens têm empregado para chegar
ao conhecimento, para, desses métodos, extrair sua base correta. Comte descobre essa base
metodológica nos fatos, agora desprovidos de quaisquer roupagens que o obrigue a discuti-‐los em sua
relação com o sujeito que produz conhecimento.
Todos os bons espíritos repetem, desde Bacon, que somente são reais os conhecimentos que
repousam sobre fatos observados. Essa máxima fundamental é evidentemente incontestável, se for
aplicada, como convém, ao estado viril de nossa inteligência. (Curso de filosofia positiva, 1 lição,
III)
Circunscreve seus esforços ao domínio, que agora progride rapidamente, da verdadeira
observação, única base possível de conhecimentos verdadeiramente acessíveis, sabiamente
adaptados a nossas necessidades reais. A lógica especulativa tinha até então consistido em
raciocinar, de maneira mais ou menos sutil, conforme princípios confusos que, não comportando
qualquer prova suficiente, suscitavam sempre debates sem saída. Reconhece de agora em diante,
como regra fundamental, que toda proposição que não seja estritamente redutível ao simples
enunciado de um fato, particular ou geral, não pode oferecer nenhum sentido real e inteligível. Os
princípios que emprega são apenas fatos verdadeiros, somente mais gerais e mais abstratos do
que aqueles dos quais deve formar o elo. Seja qual for, porém, o modo, racional ou experimental,
de proceder à sua descoberta, é sempre de sua conformidade, direta ou indireta, com os
fenômenos observados que resulta exclusivamente sua eficácia cient(Jlca. (Discurso sobre o
espírito positivo, P parte, III)
Comte, entretanto, não supõe que a mera acumulação de fatos leve à ciência e, fazendo o que
acredita ser uma crítica ao empirismo, assume que os fatos acumulados, que são a base e a origem do
conhecimento, só se transformam em conhecimento científico porque o homem OS relaciona a
hipóteses, por meio do raciocínio. Assim, para ele, os fatos são acumulados pela observação, mas essa
observação é submetida à imaginação que permite relacionar tais fatos; relacioná-‐los para que se
estabeleçam as leis gerais e invariáveis a que esses estão submetidos.
A pura imaginação perde assim, irrevogavelmente, sua antiga supremacia mental, e se subordina
necessariamente à observação, de maneira a constituir um estado lógico plenamente normal, em
cessar, entretanto, de exercer, nas especulações positivas, oficio capital e inesgotável, para criar
ou aperfeiçoar os meios de ligação definitiva ou provisória. Numa palavra, a revolução funda
mental, que caracteriza a virilidade de nossa inteligência, consiste essencial-‐ mente em substituir
em toda parte a inacessível determinação das causas propriamente ditas pela simples pesquisa
das leis, isto é, relações constantes que existem entre os fenômenos observados. Quer se trate dos
menores quer dos mais sublimes efeitos, do choque ou da gravidade, do pensamento ou da
79
moralidade, deles só podemos conhecer as diversas ligações mútuas próprias à sua realização,
sem nunca penetrar no mistério de sua produção. (Discurso sobre o espírito positivo, 1 parte, III)
O conhecimento científico é, portanto, para Comte, baseado na observação dos fatos e nas
relações entre fatos que são estabelecidas pelo raciocínio. Essas relações excluem tentativas de
descobrir a origem, ou uma causa subjacente aos fenômenos, e são, na verdade, a descrição das leis que
os regem. Comte afirma: “Nossas pesquisas positivas devem essencialmente reduzir-‐se, em todos os
gêneros, à apreciação sistemática daquilo que é, renunciando a descobrir sua primeira origem e seu
destino final” (Discurso sobre o espírito positivo, la parte, III).
As leis dos fenômenos devem traduzir, necessariamente, o que ocorre na natureza e, como
dogma, Comte parte do princípio de que tais leis são invariáveis.
Para Comte, o conhecimento científico seria constituído por um conjunto de leis: “Nas leis dos
fenômenos consiste realmente a ciência (...)“ (Discurso sobre o espírito positivo, la parte, III). A
descoberta das leis tem por objetivo básico satisfazer a curiosidade humana
(..) as ciências possuem, antes de tudo, destinação mais direta e elevada, a saber, a de satisfazer a
necessidade fundamental sentida por nossa inteligência, de conhecer as leis dos fenômenos. (Curso
de filosofia positiva, P lição, III)
Além desse objetivo fundamental do conhecimento positivo, este deve, também, ser útil: “(..)
ciência, daí previdência: previdência, daí ação” (Curso de filosofia positiva, P lição, III).
Esses aspectos relativos ao conhecimento científico são, assim, explicitados pelo próprio Comte:
Ora, considerando a destinação constante dessas leis, pode-‐se dizer, sem exa gero algum, que a
verdadeira ciência, longe de ser formada por simples observações, tende sempre a dispensar,
quanto possível, a exploração direta, substituindo-‐a por essa previsão racional que constitui, sob
todos os aspectos, o principal caráter do espírito positivo, como o conjunto dos estudos
astronômicos nos fará sentir claramente. Tal previsão, consequência necessária das relações
constantes descobertas entre os fenômenos, não permitirá nunca confundir a ciência real com essa
vã erudição, que acumula maquinalinente fatos sem aspirar a deduzi-‐los uns dos outros. Esse
grande atributo de todas as nossas especulações sadias não interessa menos à sua utilidade
efetiva do que à sua própria dignidade; pois a exploração direta dos fenômenos acontecidos não
bastará para nos permitir ,nodo acontecimento, se não nos conduzisse a prevê-‐los
convenientemente. Assim, o verdadeiro espírito positivo consiste, sobretudo, em ver para crer, em
estudar o que é a fim de concluir disso o que será, segundo o dogma geral da invariabilidade das
leis naturais. (Discurso sobre o espírito positivo, 1’ parte, III)
O conhecimento científico positivo, que estabelece as leis que regem os fenômenos de forma a
refletir o modo como tais leis operam na natureza, tem, para Comte, ainda, duas características: é um
conhecimento sempre certo, não se admitindo conjecturas, e é um conhecimento que sempre tem algum
grau de precisão, embora esse grau varie de ciência para ciência, dependendo do seu objeto de estudo.
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Assim, Comte reforça a noção de que o conheci mento científico é um conhecimento que não admite
dúvidas e indeterminações e o desvincula de todo conhecimento especulativo.
Se, conforme a explicação precedente, as diversas ciências devem necessariamente apresentar
uma precisão muito desigual não resulta dai, de modo algum, sua certeza. Cada uma pode
oferecer resultados tão certos como qualquer outra, desde que saiba encerrar suas conclusões no
grau de precisão que os fenômenos correspondentes comportam, condição nem sempre fácil de
cumprir Numa ciência qualquer, tudo o que é simplesmente conjectural é apenas mais ou menos
provável, não está aí seu domínio essencial; tudo o que é positivo, isto é, fundado em fatos bem
constatados, é certo — não há distinção a esse respeito. (Curso de filosofia positiva, 2’ lição, XI)
No entanto, embora assumindo que o conhecimento científico é certo, Comte o afirma, também,
relativo. O conhecimento é relativo porque os homens só o alcançam na medida de suas possibilidades,
isto é, limitados pelo seu aparato sensorial, que não lhes permite a tudo perceber, a tudo observar. E
relativo, ainda, porque, para Comte, o conhecimento, medido por sua utilidade, transforma-‐se e
incorpora novos conhecimentos, levando, assim, a seu desenvolvimento, permitindo ao homem sua
utilização mais ampla e a descrição de mais fatos; embora não lhe permita descrever tudo o que há.
(..) importa, ademais, sentir que esse estudo dos fenômenos, ao invés de poder de algum modo
tornar-‐se absoluto, deve sempre permanecer relativo à nossa organização e à nossa situação.
Reconhecendo, sob esse duplo aspecto, a imperfeição necessária de nossos diversos meios
especulativos, percebe-‐se que, longe de poder estudar completamente alguma existência efetiva,
de modo algum poderíamos garantir a possibilidade de constatar assim, ainda que mui to
superficialmente, todas as existências reais, cuja maior parte talvez deva nos escapar totalmente.
Se a perda de um sentido importante basta para nos esconder radicalmente uma ordem inteira de
fenômenos naturais, cabe pensar, reciprocamente, que a aquisição de um sentido novo nos
desvendaria uma classe de fatos, de que não temos agora ideia alguma, a menos de crer que a
diversidade dos sentidos, tão diferentes entre os principais tipos de animalidade, se encontre
levada, em nosso organismo, ao mais alto grau que possa exigir a exploração total de nosso
mundo exterior, suposição evidentemente gratuita e quase ridícula.
(..) Se portanto, sob o primeiro aspecto, se reconhece que nossas especulações devem sempre
depender tias diversas condições essenciais de nossa existência individual, é preciso igualmente
admiti,; sob o segundo, que não estão menos subordinadas ao conjunto da progressão social, de
maneira a nunca poder comportar essa fixidez absoluta que os metafísicos supuseram. Ora, a lei
geral do movimento fundamental da Humanidade consiste, a esse respeito, em que nossas teorias
tende,, cada vez mais, a representar exatamente os assuntos exteriores de nossas constantes
investigações, semi que entretanto a verdadeira constituição de cada um deles possa, em caso
algum, ser plenamente aprecia da. A perfeição científica deve limitar-‐se à aproximação desse
limite ideal, tanto quanto o exigem nossas diversas necessidades reais. (Discurso sobre o espírito
positivo, 1’ parte, III)
81
É interessante notar que a defesa do caráter relativo do conhecimento parece incoerente com
outras afirmações de Comte. Ao discutir as características do aparato sensorial dos homens, Comte
introduz a presença do sujeito que produz o conhecimento. E esta é uma questão que Comte
explicitamente afirma querer evitar, uma vez que abre a discussão sobre o papel da subjetividade na
produção de conhecimento, O outro aspecto apontado por Comte como constituindo o caráter relativo
do conhecimento, que é a trans formação que o conhecimento, sofre no sentido de seu aprimoramento,
parece indicar os limites que o termo relativo tem na concepção de Comte: ao afirmar a relatividade do
conhecimento, apelando para sua transformação e desenvolvimento no decorrer da história, Comte,
num certo sentido, absolutiza o conhecimento porque supõe esse desenvolvimento como linear e
sempre progressivo.
Mais do que isto, segundo Bréhier (1977b) e Kolakowski (1972), o reconhecimento de que o
conhecimento científico é relativo às necessidades cotidianas é o que permite a Comte retirar do
conjunto do conhecimento científico os resultados que lhe parecem incompatíveis com aquilo que ele
acredita ser a ordem da natureza que tais conhecimentos deveriam expressar. Comte recusa-‐se, por
exemplo, a aceitar a teoria da evolução, já que esta impede classificações permanentes. Bréhier afirma:
“Comte condena estas pesquisas como sendo contrárias à positividade verdadeira (...) as pesquisas que
podem ser feitas fora dos limites da experiência corrente são inúteis e, ademais, infinitas” (p. 264).
Kolakowski (1972) vai além e afirma:
Aquelas áreas do mundo que permitem apenas classificações fluidas, que re velam transições
qualitativas contínuas ou quaisquer características enigmáticas, perturbam-‐no e irritam-‐no (...).
Comte é um fanático no que diz respeito à busca de uma ordem definitiva e eterna. (p. 77)
A noção de ordem remete à noção de organização e aqui se chega a uma última característica
dentre as levantadas por Comte como pertencentes ao pensamento positivo e, portanto, pertencentes
também, inevitavelmente, à ciência. E nesse sentido que se deve compreender a afirmação de Comte de
que o pensamento positivo se opõe ao negativo (à crítica) porque busca não destruir, mas organizar.
Para organizar o conhecimento é necessário supor uma ordem preexistente; mais que isto, a ordem do
conhecimento deve supor, por princípio, uma ordem, também, na própria natureza. A natureza é com
posta, para ele, por classes de fenômenos ordenados de forma imutável e inexorável e cabe à ciência,
apenas, apreender e descrever tal ordem.
(..) todos os acontecimentos reais, compreendendo os de nossa própria existência individual e
coletiva, estão sempre sujeitos a relações naturais de sucessão e de similitude essencialmente
independentes de nossa intervenção. (..) Embora essa ordem lenha sido ignorada por muito tempo,
seu império inevitável nem por isso dele de tender a regulai sem que quiséssemos, toda nossa
existência, primeiro, ativa, e, em seguida, contemplativa ou mesmo afetiva. Na medida em que a
conhecemos, nossas concepções se tomaram menos vagas, nossas inclinações menos caprichosas,
nossa conduta menos arbitrária. Desde que aprendemos seu conjunto, tende a regularizar, em
todos os gêneros, a sabedoria humana, apresentando sempre nossa economia art como um
judicioso prolongamento dessa irresistível economia natural. Esta é preciso estudar e respeitar,
82
para chegar a aperfeiçoá-‐la. Mesmo naquilo que nos oferece de verdadeiramente fatal, isto é, de
não modificável, essa ordem exterior é indispensável para a direção de nossa existência, a despeito
das recriminações art de tantas inteligências orgulhosa.s. (..) Incapazes de criar, só sabemos
modificar, em nosso proveito, uma ordem essencialmente superior à nossa influência. Supondo
possível a independência absoluta, sonhada pelo orgulho metafísico, percebemos logo que, longe
de melhorar nosso destino, ela impediria todo florescimento real de nossa existência, até mesmo
privada. (Discurso preliminar sobre o conjunto do positivismo, p. 110)
Esses trechos deixam clara a completa recusa de Comte em admitir a indeterminação ou acaso
em qualquer fenômeno da natureza, e Comte afirma ser
(...) aberração radical de quase todos os geômetras atuais (..) o pretenso cálculo do acaso, em que
se supõe necessariamente que os fatos correspondentes não seguem lei alguma. (Discurso preliminar sobre
o conjunto do positivismo, p. 109)
Entretanto, Comte supõe graus de possibilidade diferentes do homem intervir nessa natureza
rigidamente ordenada. Essa possibilidade é maior em relação aos fenômenos referentes à existência do
homem (individual ou co letiva) e menor em relação aos fenômenos não diretamente vinculados à
existência humana, chegando a zero na astronomia, que diz respeito aos fenômenos mais gerais da
natureza e, também, mais distantes do homem. Porém, mesmo as modificações possíveis não passam,
para Comte, de modificações secundárias nos fenômenos, já que não criam uma nova ordem e não
podem alterar a lei que rege os fenômenos. Por isto, Comte enfatiza e critica a falsa noção que essas
transformações secundárias frequentemente geram. A noção de que, se é possível controlar e
transformar fenômenos, estes não seriam, então, sujeitos a leis imutáveis. Partindo dessas noções de
ordem na natureza e da imutabilidade de suas leis e de uma consequente ordenação do conhecimento,
Comte propõe uma classificação para as ciências. Essa classificação está fundamentada no que concebe
como sendo o objetivo das ciências — o estabelecimento das leis que regem os fenômenos — e que,
para Comte, não pode ser confundida com o objetivo das artes (da tecnologia) de buscar aplicação
prática imediata para o conhecimento.
É, pois, evidente que, depois de ter concebido, de maneira geral, o estudo da natureza como
servindo de base racional à ação sobre ela, o espírito humano deva proceder a pesquisas teóricas,
fazendo completamente abstração de toda consideração prática; porquanto nossos meios para
descobrir a verdade são de tal modo fracos que, se não os concentrássemos exclusivamente neste
fim, se, na procura desta verdade nos impuséssemos, ao mesmo tempo, a condição estranha de
encontrar nela uma utilidade prática imediata, quase nos seriam sempre impossível chegar a ela.
(Curso de filosofia positiva, 2 lição, III)
A partir desse suposto, Comte estabelece uma divisão entre “ciências abstratas”, que ele
considera fundamentais, e as “ciências concretas”:
É preciso distinguir, em relação a todas as ordens de fenômenos, dois gêneros de ciências naturais:
umas, abstratas, gerais, tendo por objeto a descoberta das leis que regem as diversas classes de
fenômenos e que consideram todos os casos possíveis de conceber; outras, concretas, particulares,
83
descritivas, designadas algumas vezes sob o no de ciências naturais propriamente ditas, e que
consistem na aplicação dessas leis à história efetiva dos diferentes seres existentes. As primeiras
são, pois, fundamentais, sendo a elas que neste curso nossos estudos se limitarão. As outras, seja
qual for sua importância, são de fato apenas secundários e não deve, e, por conseguinte, fazer
parte dum trabalho cuja extensão extrema nos obriga a reduzir ao mínimo seu desenvolvimento
possível. (Curso de filosofia positiva, 2 lição. IV)
Para as ciências fundamentais, e segundo uma ordem que é da própria natureza, Comte
estabelece uma classificação que obedece ao grau de simplicidade e generalidade do objeto a que cada
ciência fundamental se refere. Assim, sua classificação se inicia com as ciências que se ocupam dos
fenômenos mais simples e mais distantes dos homens e que são, também, os mais gerais. Os fenômenos
mais simples e mais gerais influenciam os mais particulares e mais complexos e, por isto, o
conhecimento destes supõe o conhecimento necessário dos primeiros. Essa ordenação se constitui, para
Comte, numa hierarquia rígida e que tem uma só direção, não havendo a possibilidade de que os
fenômenos mais particulares, como, por exemplo, os fenômenos químicos, exerçam qualquer influência
sobre fenômenos mais gerais, como, por exemplo, os fenômenos físicos.
Num primeiro momento, Comte hierarquiza cinco ciências fundamentais, com o intuito de
esclarecer e aplicar seus critérios de classificação:
Como resultado dessa discussão, a filosofia positiva se encontra, pois, natural dividida em cinco
ciências fundamentais, cuja sucessão é determinada pela subordinação necessária e invariável,
fundada, independentemente de toda opinião hipotética, na simples comparação aprofundada dos
fenômenos correspondentes: a astronomia, a física, a química, a filosofia e, enfim, a física social. A
primeira considera os fenômenos mais gerais, mais simples, mais abstratos e, mais afastados da
humanidade, e que influenciam todos os outros sem serem influenciados por estes. Os fenômenos
considerados pela última são, ao contrário, os mais particulares, mais complicados, mais
concretos e mais diretamente interessantes para o homem; dependem, mais ou menos, de todos os
precedentes, sem exercer sobre eles influência alguma. Entre esses extremos, os graus de
especialidade, de complicação e de personalidade dos fenômenos vão gradualmente aumentando,
assim como sua dependência sucessiva. Tal é a íntima relação geral que a verdadeira observação
filosófica, convenientemente empregada, ao contrário de vãs distinções arbitrárias, nOS conduz a
estabelecer entre as diversas ciências fundamentais. Este deve ser, portanto, o plano deste curso.
(Curso de filosofia positiva, 2 lição, X)
A essas cinco ciências, acrescenta, então, uma sexta, que vem a ser a base para todas as outras
ciências fundamentais.
É, de resto, evidente que, colocando a ciência matemática no topo da filosofia positiva, apenas
estamos estendendo ainda mais a aplicação desse princípio de classificação, fundado na
dependência sucessiva das ciências, resultante do grau de abstração de seus fenômenos
respectivos. (..) Vê-‐se que os fenômenos geométricos e mecânicos são, entre todos, os mais gerais,
os mais simples, os mais abstratos, os mais irredutíveis e os mais independentes de todos os outros,
84
de que constituem ao contrário, a base. (.) Como resultado definitivo temos a matemática, a
astronomia, a física, a química, a fisiologia, e a física social; tal é a fórmula enciclopédica que,
dentre o grande número de classificações que comportam as seis ciências fundamentais, é a única
logicamente conforme à hierarquia natural e invariável dos fenômenos. Não preciso lembrar a
importância desse resultado, com que o leitor deve familiarizar-‐se para dele fazer, em toda a
extensão deste curso, uma aplicação contínua. (Curso de filosofia positiva, 2 lição, XII)
Uma última característica significativa da proposta de Comte para a ciência é sua defesa de que
todas as ciências devem se utilizar de um método único.
A unidade do método não significa que Comte defenda que todas as ciências devam se submeter
aos mesmos procedimentos de investigação; ao contrário, procedimentos específicos são vistos como
adaptados estreitamente aos objetos a que se referem, assim, por exemplo, a química deve utilizar da
experimentação, enquanto a biologia deve utilizar da comparação e classificação. Essa unidade se refere,
para Comte, à aplicação da filosofia positiva a todos os ramos do conhecimento, e, nesse sentido, pode-‐
se entender como unidade do método a aplicação de procedimentos que levem à descoberta e descrição
das leis que regem os fenômenos, a partir dos fatos e do raciocínio que permitem relacioná-‐los segundo
essas leis, a fim de alcançar um conhecimento positivo que, como já foi dito, deve ser: real, útil, certo,
preciso, que busca organizar e não destruir e que é relativo.
A única unidade indispensável é a unidade do método, que pode e deve evidentemente existir e já
se encontra, na maior parte, estabelecida. Quanto à doutrina, não é necessário ser una, basta que
seja homogênea. E, pois, sob o duplo ponto de vista da unidade dos métodos e da homogeneidade
das dou trinas que consideraremos, neste curso, as diferentes classes de teorias positivas.
Tendendo a diminuir o mais possível, o número das leis gerais necessárias para a explicação
positiva dos fenômenos naturais, o que é, com efeito, a meta filosófica da ciência, consideraremos
entretanto, como temerário aspirar um dia, ainda que para um futuro muito afastado, a reduzi-‐
las rigorosamente a uma só. (Curso de filosofia positiva, 1 lição, X)
A garantia de uma unidade do método a todas as ciências está associada ao que Comte talvez
considere seu grande empreendimento: a criação de uma física social, ou uma sociologia, ou seja, a
criação de uma ciência que se ocuparia da explicação da sociedade, possível pela aplicação do mesmo
método já empregado nas outras ciências.
Eis a grande mas, evidentemente, única lacuna que se trata de preencher para constituir a
filosofia positiva. Já agora que o espírito humano fundou a física celeste; a física terrestre, quer
mecânica, quer química; a física orgânica, seja vegetal seja animal resta-‐lhe, para terminar o
sistema das ciências de observação, fundar a física social. Tal é hoje em várias direções capitais, a
maior e mais urgente necessidade de nossa inteligência. Tal é, ouso dizei; o primeiro objetivo deste
curso, sua meta especial. (Curso de filosofia positiva, l lição, VI)
Essa meta que Comte se coloca, a criação de uma nova ciência — a da sociedade —, implica uma
visão de sociedade e um conjunto de propostas para ela.
85
Assim como ocorre com as outras ciências que se ocupam de fatos que são regidos por leis
naturais e imutáveis, também a sociedade é vista, por Comte, como governada por leis que são
imutáveis em si mesmas e que são independentes da vontade dos indivíduos ou do coletivo.
Essas leis, que são da mesma natureza das que governam a física ou a biologia, são, no entanto,
leis próprias e particulares aos fenômenos sociais. Estes são vistos como fenômenos mais complexos,
como fenômenos regidos por suas próprias leis que não se constituem em mera extensão de outras,
como da fisiologia, por exemplo. A fisiologia, que estuda os indivíduos, não substitui o estudo da
sociedade, embora fundamente esse estudo.
Em todos os fenômenos sociais observa-‐se, primeiramente, a influência das leis fisiológicas do
indivíduo e, ademais, alguma coisa de particular que modifica seus efeitos e que provém da ação
dos indivíduos uns sobre os outros, algo que se complica particularmente na espécie humana por
causa da ação de cada geração sobre aquele que lhe segue. E pois evidente que, para estudar
convenientemente os fenômenos sociais, é preciso partir de início do conheci mento aprofundado
das leis relativas à vida individual. Por outro lado, essa subordinação necessária dos dois estudos
não prescrevei de modo algum, como certos fisiologistas de primeira ordem foram levados a crer a
necessidade de ver na física social simples apêndice da fisiologia. A despeito de os fenômenos
serem por certo homogêneos não são idênticos e a separação das duas ciências é duma
importância verdadeiramente fundamental. Pois seria impossível tratar o estudo coletivo da
espécie como pura dedução do estudo do indivíduo, porquanto as condições sociais, que modificam
a ação das leis fisiológicas, constituem precisamente a consideração mais essencial. Assim, a física
social deve fundar-‐se num corpo de observações diretas que lhe seja próprio, atentando, como
convém, para sua íntima relação necessária com a fisiologia propriamente dita. (Curso de filosofia
positiva, 2 lição, IX)
Comte faz, também, uma distinção entre o indivíduo e o coletivo. Caracteriza o homem como ser
inteligente e dotado de sociabilidade (o que o diferencia dos animais) e reivindica para o coletivo, para o
grupo social, uma superioridade perante o indivíduo. E dessa concepção que decorre sua noção de que
os homens, enquanto indivíduos numa sociedade, existem como substitutos efêmeros de outros
indivíduos e que, como tal, têm importância, apenas, como perpetuadores da espécie. E esse caráter, o
de um grupo constantemente modificado pela substituição de indivíduos particulares, mas que se
perpetua e que permanece essencialmente o mesmo (apesar dos indivíduos particulares) por garantir a
sobrevivência da espécie e por submeter-‐se às mesmas leis naturais, que garante, de um lado, a
superioridade do coletivo sobre o individual, de outro lado, a preocupação da sociologia com o grupo
social, e de outro, ainda, a noção de que os objetivos a serem alcançados pela sociedade são os objetivos
relevantes ao grupo e não ao endivido. Ademais, isto leva à noção de que, no verdadeiro espírito
positivo, a felicidade individual é obtida pela felicidade do grupo.
O espírito positivo ao contrário, é diretamente social tanto quanto possível e sem nenhum esforço,
precisamente por causa de sua realidade característica. Para ele o homem propriamente dito não
existe existindo apenas a humanidade já que nosso desenvolvimento provém da sociedade a partir
86
de qualquer perspectiva que se o considere. Se a ideia de sociedade parece ainda uma abstração
de nossa inteligência, é sobretudo em virtude do antigo regime filosófico, porquanto, a bem dizer,
é à ideia de indivíduo que pertence tal caráter, ao menos em nossa espécie. O conjunto da nova
filosofia sempre tenderá a salientar, tanto na vida ativa quanto na vida especulativa a ligação de
cada um a todos sob uma multidão de aspectos diferentes, de maneira a tornar involuntariamente
familiar o íntimo sentimento de solidariedade social convenientemente desdobrado para todos os
tempos e todos os lugares. Não somente a ativa procura do bem público será, sem cessar,
considerada como o modo mais próprio de assegurar comumente a felicidade privada graças a
uma influência ao mesmo tempo mais direta e mais pura e, finalmente mais eficaz; o mais
completo exercício possível das tendências gerais tornar-‐se-‐á a principal fonte da felicidade
pessoal, ainda que não devesse trazer excepcionalmente outra recompensa além de uma inevitável
satisfação interior. (Discurso sobre o espírito positivo, 2 parte, XV)
Para Comte, o desenvolvimento da humanidade, que passa pelos três estados (o teológico, o
metafísico e o positivo), resume-‐se, essencialmente, no desenvolvimento do espírito, do conhecimento.
Nesse desenvolvimento, as estruturas básicas da sociedade — a família, a propriedade, a religião, a
linguagem, a relação do poder espiritual e do poder temporal (Bréhier, 1 977b, p. 267) — mantêm-‐se,
fundamentalmente, inalteradas. Essas estruturas são consideradas definitivas e básicas em qualquer
estágio do desenvolvimento social, só ocorrendo, na passagem de um momento a outro,
aperfeiçoamentos em cada uma delas. Assim, mais uma vez, Comte subordina a dinâmica a uma estática,
subordina o progresso à ordem; o progresso é um mero deslocamento, um mero aperfeiçoamento de
estruturas que são perenes e imutáveis. A sociologia caracteriza-‐se, então, pela preocupação em
descobrir que leis governam a sociedade e não pela preocupação com a sua transformação.
Não se pode primeiramente desconhecer a aptidão espontânea dessa filosofia a constituir
diretamente a conciliação fundamental ainda procurada de tão vãs maneiras, entre as exigências
simultâneas da ordem e do progresso. Basta-‐lhe; para isso estender até os fenômenos sociais uma
tendência plenamente conforme a sua natureza e que tornou agora muito familiar em todos os
outros casos essenciais. Num assunto qualquer, o espírito positivo leva sempre a estabelecer exata
harmonia elementar entre as ideias de existência e as ideias de movimento, donde resulta mais
especialmente; no que respeita aos com pos vivos, a correlação permanente das ideias de
organização com as ideias de vida e; em seguida, graças a uma última especialização peculiar ao
organismo social a solidariedade continua das ideias de ordem com as ideias de progresso.
(Discurso sobre o espírito positivo, 2 parte, X)
Essas noções ajudam a esclarecer por que Comte é um defensor ferrenho do poder estabelecido
e um crítico de toda e qualquer tentativa de mu dança de poder, seja nas suas estruturas, seja nos seus
ocupantes.
Sob essas condições naturais, a escola positiva tende, de um lado, a consolidar todos os poderes
atuais sejam quais forem seus possuidores de outro, a impor-‐lhes obrigações morais cada vez mais
conformes às verdadeiras necessidades dos povos. (Discurso sobre o espírito positivo, 3 parte, XVI)
87
Para Comte, qualquer insubordinação ao poder corrompe uma ordem preestabelecida, além de
levar à falsa noção de que o fato de existirem diferentes grupos sociais implicaria uma oposição
insolúvel de interesses entre esses grupos. Qualquer proposta ou ação que dificulte ou impeça a
aceitação da concepção de que os diferentes grupos sociais existentes são complementares e
necessários uns aos outros (industriais e trabalhadores, por exemplo) e de que a harmonia entre eles é
benéfica e indispensável à sociedade (cujo progresso depende da ordem) é vista como falsa e perigosa.
Já que Comte supõe que a sociedade depende e necessita de ordem para progredir, supõe, como
consequência, que depende também de instituições fortes e permanentes, depende da existência de
diferentes grupos sociais e de uma coexistência pacífica e harmoniosa entre eles.
São essas concepções que dão origem a um programa social que não implica mudanças e
transformações sociais, mas que implica, isso sim, criar condições para que esses elementos necessários
à sociedade se mantenham. E desta forma que deve ser compreendido seu programa social, baseado em
dois aspectos fundamentais: uma educação universal, que ensine e convença os homens (e
especialmente os trabalhadores) da imutabilidade e inexorabilidade das leis naturais a que estão
submetidos, e trabalho para todos, o que garante que cada indivíduo cumpra seu papel social. Nesse
sentido, são condições que preenchem um dever e não condições que garantem um direito.
São essas concepções que originam, também, a noção de que o poder a que os trabalhadores
podem e devem aspirar é o poder espiritual, que é defendido por Comte como o único que realmente
importa e que supera todo poder material ou temporal.
Se o povo está agora e deve permanecer a partir desse momento indiferente à posse direta do
poder político nunca pode renunciar à sua indispensável participação contínua no poder moral.
Este é o único verdadeiramente acessível a todos, sem perigo algum para a ordem universal. Muito
pelo contrário: traz-‐lhe grandes vantagens cotidianas, autorizando cada um, em nome duma
comum doutrina fundamental, a chamar convenientemente as mais altas potências a seus
diversos deveres essenciais. Na verdade; os preconceitos inerentes ao estado transitório ou
revolucionário tiveram que encontrar também algum acesso em nossos proletários alimentando,
com efeito, inoportunas ilusões sobre o alcance indefinido das medidas políticas propriamente
ditas. Impedem de,apreciar quanto a justa satisfação dos grandes interesses populares depende
hoje muito mais das opiniões e dos costumes do que das próprias instituições, cuja verdadeira
regeneração, atualmente impossível, exige; antes de tudo, uma reorganização espiritual. No
entanto, podemos assegurar que a escola positiva terá muito maior facilidade em fazer penetrar
este salutar ensino nos espíritos populares que em qualquer outra parte, seja porque a metafísica
negativa aí não pode enraizar-‐se tanto, seja, sobretudo, por causa do impulso constante das
necessidades sociais inerentes à sua situação necessária. Essas necessidades se reportam
essencialmente a duas condições fundamentais, uma espiritual outra temporal de natureza
profundamente conexa. Trata-‐se co,n efeito, de assegurar convenientemente a todos primeiro,
uma educação normal depois o trabalho regular. Tal é, no findo, o verdadeiro programa social dos
proletários. Não pode mais existir verdadeira popularidade a não ser para uma política que tenda
necessariamente para esse duplo destino. (Discurso sobre o espírito positivo, V parte, XIX)
88
A perspectiva e as propostas de Comte para a sociedade são completamente coerentes com sua
noção de que a transformação, a evolução, o desenvolvimento são, antes de tudo, desenvolvimento e
transformação do espírito. São coerentes, portanto, com a concepção que defende que a luta pela
transformação é a luta pela transformação e pelo desenvolvimento das ideias e da moral.
Atacando a desordem atual em sua verdadeira fonte, necessariamente mental constitui, tão
profundamente quanto possível, a harmonia lógica, regenerando, de início, os métodos antes das
doutrinas, por uma tripla conversão simultânea da natureza das questões dominantes da maneira
de tratá-‐las e das condições prévias de sua elaboração. Demonstra, com efeito, de uma parte, que
as principais dificuldades sociais não são hoje essencialmente políticas, mas sobre tudo morais de
sorte que sua solução possível depende realmente das opiniões e dos costumes, muito mais do que
as instituições, o que tende a extinguir uma atividade perturbadora, transformando a agitação
política em movimento filosófico. (Discurso sobre o espírito positivo, 2 parte, X)
Só quando a moral tiver completado sua evolução poder-‐se-‐á pensar na reforma das
instituições. Assim, para Comte, as únicas mudanças e trans formações bem-‐vindas e necessárias são
morais e só depois de completadas se poderia pensar em mudanças materiais.
A tendência correspondente dos homens de Estado a impedir hoje tanto quanto possível todo
grande movimento político encontra-‐se aliás espontaneamente co, as exigências fundamentais de
uma situação que só comportará real mente instituições provisórias, enquanto uma verdadeira
filosofia geral não vincular suficientemente as inteligências. Desconhecida pelos poderes atuais,
essa resistência instintiva colabora para facilitar a verdadeira solução, ajudando a transformar
uma estéril agitação política numa ativa progressão filosófica, de maneira a seguir enfim, a
marcha prescrita pela natureza, adequada à reorganização final que deve primeiro ocorrer nas
ideias para passar em seguida aos costumes e, finalmente, ás instituições. (Discurso sobre o
espírito positivo, 2 parte, IX)
A partir daí não é difícil compreender por que Comte propõe, em vez de mudanças nas
estruturas e instituições sociais, mudanças que resultariam em/de uma nova religião. Em vez de mudar
a vida material, muda-‐se, desenvolve-‐se, trabalha-‐se a vida moral. Isto seria feito por meio de uma nova
religião, a religião da humanidade que, se permite as reformas morais necessárias, mantém, de resto, a
própria estrutura das religiões — cultos, igrejas, santos, preces, etc. — e não interfere nas estruturas da
sociedade.
Se a religião da humanidade permite as reformas necessárias ao desenvolvimento do espírito
positivo, ela deve ser perfeitamente conforme com os princípios do conhecimento científico positivo.
Com admirável coerência, Comte consegue combinar ciência positiva e religião positiva, ao erigir em
ente supremo da religião da humanidade, ao sustentar, como dogma de sua religião, os princípios e leis
imutáveis da natureza que, se são descobertos pela investigação científica, são popularizados e
propagados, na forma de dogma, por meio de sua religião.
A fé positiva expõe diretamente as leis efetivas dos diversos fenômenos observáveis, tanto
interiores como exteriores; isto é, suas relações constantes de sucessão e de semelhança, as quais
89
nos permitem prever uns por meio dos outros. Ela afasta, como radical incute inacessível e
profundamente ociosa, toda pesquisa acerca das causas propriamente ditas, primeiras ou finais,
de quais quer acontecimentos. Em suas concepções teóricas, ela explica sempre como e nunca
porque. Quando, porém, indica os meios de dirigir nossa atividade ela faz, pelo contrário,
prevalecer constantemente a consideração do fim, já que então, o efeito prático dimana com
certeza de uma vontade inteligente.
(..)
O dogma fundamental da religião universal consiste, portanto, mia existência constatada de uma
ordem imutável a que estão sujeitos os acontecimentos de todo gênero. Esta ordem é ao mesmo
tempo, objetiva e subjetiva: por outras palavras, diz igualmente respeito ao objeto contemplado e
ao sujeito contemplador. Leis físicas supõem, com efeito, leis lógicas, e reciprocamente. Se o nosso
entendimento não seguisse espontaneamente regra alguma, não poderia ele nunca apreciar a
harmonia exterior. Sendo o inundo mais simples e mais poderoso que o homem, a regularidade
deste seria ainda menos conciliável com a desordem daquele. Toda fé positiva assenta, pois, nesta
dupla harmonia entre o objeto e o sujeito. (Catecismo positivista, pp. 143-‐144)
Por suas concepções a respeito do conhecimento e da sociedade e por sua capacidade de unir
em um sistema coerente suas noções, Comte é visto como o grande representante de uma burguesia
que, na segunda metade do século XIX, já havia perdido seu caráter libertário e progressista e havia, ao
se entrincheirar no poder, assumido um caráter conservador. As estruturas econômicas, sociais e
políticas, estabelecidas por essa burguesia e que lhe permitiam um contínuo acúmulo de capital, para
serem perpetuadas e desenvolvidas, precisavam ser acrescidas de um ideário, de um sistema explicativo
que afastasse as ameaças contidas nas lutas sociais e políticas emergentes e nas propostas de
transformação que o próprio capitalismo gerara. Comte cumpriu esse papel com maestria.
90
EVOLUÇÃO DO MÉTODO CIENTÍFICO7
Este capítulo é fruto do estudo na disciplina “Bases Epistemológica do Ensino de
Ciências” que cursei no primeiro período do curso de mestrado no ensino de ciências e
matemáticas do NPADC/UFPA, na qual lemos e debatemos sobre as obras e os respectivos
autores que enumero a seguir: Discurso do Método (René Descartes), Novum Organo (Francis
Bacon), Discurso Sobre o Espírito Positivo: August Comte (M. Pereira), Contra o Método (Paul
Feyerabend), A Formação do Espírito Científico (Gaston Bachelar), A Estrutura das
Revoluções Científicas (Thomas Kuhn), O fim das Certezas (Ilya Prigogine), O Ponto de Mutação
de (Fritjof Capra), Ciência Com Consciência (Edgar Morin), Introdução a uma Ciência Pós-‐
Moderna (Boaventura Santos).
Ao escrever sobre a evolução do método científico8 numa perspectiva CTS
(Ciência Tecnologia e Sociedade), inicialmente comento sobre o método científico da idade
média passando pelo surgimento da mecânica newtoniana indo até no início do século XX,
com a nova física. Posteriormente, faço um comentário sobre
autores que confirmam o mecanicismo cartesiano9. Continuo o comentário, agora
com autores que propõem um rompimento com a proposta mecanicista cartesiana e autores
que propõem um novo método científico. Pretendo com este capítulo fornecer
fundamentos históricos ao meu aluno de licenciatura e ao mesmo tempo subsídios para que ele
reflita sobre o ensino de física que ele vivenciou como aluno e que ensino ele quer praticar
durante sua vida profissional.
1.1 – Do período medieval até as ideias de René Descartes
A natureza do conhecimento medieval baseava-‐se na razão e na fé. Durante a Idade
Média o método científico baseava-‐se nas proposições Aristotélicas
corroboradas pela Igreja. As ideias básicas eram: a Terra como centro do universo e
8 A palavra método está usada no sentido de ordem, organização, coordenação e método científico no sentido de organização do conhecimento científico. 9 Método científico elaborado por Galileu, Descartes, Newton, etc. o Homem como criação de Deus. Os sábios medievais procuravam compreender o significado
das coisas e consideravam da mais alta relevância questões referentes a Deus, a alma humana e
a ética. Tomás de Aquino combinando Aristóteles, Teologia e a ética Cristã, estabelece a
estrutura conceitual que permanece incontestável até o início do século XVI.
O método de investigação do conhecimento muda radicalmente nos séculos XVI e XVII
com as contribuições de: Nicolau Copérnico, Johannes Kepler, Galileu Galilei, Francis Bacon,
René Descartes e Isaac Newton, que dão início à revolução científica. Um dos precursores
dessa revolução é Copérnico.
Nicolau Copérnico em sua obra “Sobre a Revolução dos Corpos Celeste”, que só foi 7 Moutinho, Pedro Estevão da Conceição (Dissertação de Mestrado, UFPr, 2007)
91
publicada quando o autor estava em seu leito de morte, propõe o modelo heliocêntrico (o sol no
centro do sistema planetário) para o sistema solar, opondo-‐se a ideia geocêntrica (a terra no
centro do sistema planetário) de Cláudio Ptolomeu e da Igreja. Nesse novo modelo planetário,
Copérnico propõe que os seis planetas até então, conhecidos (Mercúrio, Vênus, Terra, Marte,
Júpiter e Saturno, nessa ordem) realizavam órbitas circulares ao redor do Sol.
A troca da Terra pelo Sol, como centro planetário, significou, para as autoridades de a
Igreja afastar o homem do centro do Universo, por isso, essa ideia foi considerada uma
heresia, razão pela qual sua obra foi incluída no Idex, relação dos livros heréticos. Estas e
outras ideias propostas causaram a morte pela fogueira de Giordano Bruno, pois este defendia
a teoria de Copérnico, e por causa disso foi punido pela “Santa” Inquisição.
Seguindo Copérnico na revolução científica temos Johannes Kepler que herdou as
informações de seu mestre Tycho Brahe que fez um registro sistemático e preciso das posições
dos Planetas. De posse das precisões de Brahe, Kepler conseguiu provar, através de um
Método Empírico, que as órbitas dos planetas eram elípticas e não circulares como defendia
Copérnico.
Kepler ficou bastante angustiado com sua nova teoria, as quais iam contra as teorias
geocêntricas, que eram aceitas pelos doutores da Igreja, pois religioso e acreditava que a
criação divina era perfeita. Entretanto, prevaleceram as observações empíricas de Kepler e,
os fundamentos da escolástica para o sistema solar permanecem até hoje, acrescido apenas de
Netuno e Plutão.
Na opinião dos historiadores atuais a verdadeira mudança do método
científico veio com Galileu Galilei, que já tinha formulado as leis da queda dos corpos. Na astronomia, com o telescópio, Galileu introduziu um novo método de observação dos
fenômenos celestiais, contribuiu para que a velha cosmologia declinasse e comprovar a teoria
científica de Copérnico. Galileu introduziu ainda o método experimental científico combinado
com a linguagem matemática, por isso é considerado por muitos o pai da ciência moderna.
Dois importantes critérios de estudo para as ciências, usados até hoje fundamentam
Galileu: a abordagem empírica na descrição da natureza e o uso da linguagem matemática.
Com Galileu, a observação e a matemática começam a ter maior importância na produção do
conhecimento científico em comparação a revelação.
Paralelamente a Galileu, Francis Bacon descrevia explicitamente, na Inglaterra, o
método empírico da ciência. Com a teoria do procedimento indutivo da ciência, Bacon tornou-‐
se extremamente influente a ponto de atacar as escolas tradicionais de pensamento. Com isso
Bacon desenvolveu uma verdadeira paixão pelo experimento científico. Segundo Novak, em
seu livro, uma teoria de educação, a ciência experimental foi dogmatizada pela primeira vez
por Francis Bacon, em 1620.
Duas passagens do livro de Bacon, Novum Organum, justificam sua paixão pela
experimentação:
92
A sutilidade da natureza está muito além da do sentido ou da compreensão; de tal forma que meditações, especulações ilusórias e teorias sobre a raça humana não passam de uma forma de loucura. (p. 107) (...) Mas nossa esperança de maior progresso nas ciências será bem fundamentada apenas quando numerosos experimentos forem acolhidos e feitos dentro da história natural, os quais, apesar de não terem em si próprios, auxiliarão materialmente na descoberta de causas e axiomas – experimentos que chamamos de instrutivos, para distingui-‐los daqueles chamados profícuos. Possuem eles a maravilhosa propriedade e natureza de nunca decepcioná-‐lo ou trai-‐ lo; por serem usados apenas para descobrir a causa natural de algum objeto, qualquer que seja o resultado, igualmente satisfarão seu objetivo decidindo a questão. (p. 127)
Os métodos para estudo da natureza e produção de conhecimento propostos por
Galileu e Bacon substituem a concepção orgânica da natureza pela metáfora do mundo como
máquina. Essa ideia mecanicista foi desenvolvida por dois “gigantes” do século XVII: Descartes
e Newton.
René Descartes, brilhante matemático, é considerado o fundador da filosofia moderna. Aos 23 anos
de idade, teve uma visão iluminada na qual percebeu os “alicerces de uma nova ciência” que
prometia a unificação de todo o saber. Descarte visualizou uma ciência baseada em princípios
fundamentais que dispensam demonstração e que “toda ciência é conhecimento certo e evidente” e
continua “rejeitamos todo conhecimento meramente provável e consideramos que só se deve
acreditar naquelas coisas que são perfeitamente conhecidas e sobre as quais não pode haver
dúvidas” (Capra, 1982: 53).
A base da filosofia cartesiana está na crença da certeza do conhecimento e na visão
do mundo que dela é derivada. O pensamento cartesiano, em que o método científico é o
único método válido de compreensão do universo, ainda influencia cientistas de todas as áreas,
isso ainda hoje pode ser válido se suas limitações forem reconhecidas.
Para Descartes a matemática era importante para ciência, e acreditava que a chave
para compreensão do universo era a sua estrutura matemática. Por isso, ele escreveu a
respeito dos objetos físicos:
Não admito como verdadeiro o que não possa ser deduzido, com a clareza de uma demonstração matemática, de noções comuns de cuja verdade não podemos duvidar. Como todos os fenômenos da natureza podem ser explicados desse modo, penso que não há necessidade de admitir outros princípios na física, nem que sejam desejáveis.
(CAPRA, 1982: 53)
Em seu livro “Discurso do Método” Descartes têm por finalidade apontar o caminho
para estudo da natureza ou para se chegar à verdade científica. Talvez por isso esta obra se
torna um grande clássico da filosofia. O método de Descartes consiste num ponto
93
fundamental, a dúvida. Ele duvida de tudo, inclusive da revelação, e chega a conclusão de
uma coisa que não pode ter dúvida, a existência de si mesmo como pensador, por isso, diz:
“penso, logo existo” e propõe a intuição e a dedução como método para conhecer a natureza.
No pensamento reside a essência da natureza humana e que tudo que conhecemos clara e
distintamente é verdadeiro. “A concepção da mente pura e atenta” ele chamou de
“intuição” afirmando que “não existe outros caminhos ao alcance do homem para o
conhecimento certo da verdade, exceto a intuição evidente e a necessária dedução”.
Como se vê as ferramentas de Descartes para a construção do conhecimento é: a intuição e a
dedução.
O método de Descartes para a construção do conhecimento levou a
fragmentação do mesmo, em disciplinas e ao reducionismo nas ciências, no qual a crença em
que todos os fenômenos complexos podem ser compreendidos se reduzidos as suas partes
constituintes. O cogito10 cartesiano fez com que Descartes privilegiasse a mente em relação à
matéria e levou-‐o a conclusão de que as duas eram separadas e fundamentalmente
diferentes. Essa divisão cartesiana redundou
em interminável confusão acerca da relação entre mente e cérebro, e na física tornou
extremamente difícil aos fundadores da teoria quântica o entendimento dos fenômenos
atômicos. Por outro lado nos ensinou a conhecer a nós mesmo como egos isolados
existentes “dentro” dos nossos corpos, e levou-‐nos a valorizar mais o trabalho mental que o
manual.
Apesar de Descartes não ter executado seu plano ambicioso – “a maravilhosa
ciência” – a qual, através de seu método de pensamento analítico, ele tenta representar uma
descrição precisa de todos os fenômenos naturais num único sistema de princípios mecânicos,
seu método científico influenciou por três séculos o pensamento científico. Sua concepção da
natureza como uma máquina perfeita, governada por leis matemáticas exatas ficou como
simples visão durante sua vida. Mas Newton transformou em realidade o sonho cartesiano e
completou essa fase da evolução científica.
Isaac Newton nasceu na Inglaterra em 1642, no ano em que Galileu faleceu. O método
de Newton consistiu no desenvolvimento completo de uma formulação matemática da
concepção mecanicista da natureza. Realizou síntese nas obras de Copérnico Kepler, Bacon,
Galileu e Descartes. A física de Newton, ainda durante sua vida passou a ser considerada o
ponto culminante da ciência, forneceu uma consistente teoria matemática do mundo, que
permaneceu como sólido alicerce do pensamento científico até boa parte do século XX. O
cálculo diferencial criado por ele descrevia o movimento dos corpos sólidos de modo muito
superior as técnicas de Galileu e Descartes.
Newton empregou seu novo método matemático para formular as leis exatas do
94
movimento de todos os corpos que eram atraídos sob influencia da gravidade.
Propôs que essas leis passassem a ser adotadas por todo universo. A natureza do universo
para Newton era um gigantesco sistema mecânico semelhante a visão cartesiana do universo.
Tudo funcionava de acordo com leis matemáticas de forma exata.
Duas tendências opostas orientavam o método de conhecer a natureza: o método
empírico indutivo de Bacon, e o método racional dedutivo de Descartes. Em sua obra
“Princípios matemáticos da filosofia natural” Newton consegue a combinação
apropriada de ambos os métodos dizendo que: tanto os experimentos sem interpretação
sistemática quanto a dedução de princípios básicos sem evidência experimental
conduzem a uma teoria confiável. Com essa unificação dos métodos de Descartes e Bacon,
Newton conseguiu uma metodologia científica que é à base do conhecimento da natureza,
desde então.
A teoria newtoniana foi usada com enorme sucesso nos séculos XVII, XVIII e XIX. Essa
teoria explicava com sucesso o movimento dos planetas, luas e cometas, fluxos das marés e
vários outros fenômenos relacionados com a gravidade e até os fenômenos calóricos e
térmicos.
A descoberta e a investigação de fenômenos elétricos e magnéticos – iniciado
por Michael Faraday e completado por Maxwell – envolviam certas inovações no
método científico. Um novo tipo de força que não podiam ser descritos adequadamente pelo
modelo mecanicista. Faraday e Maxwell substituíram o conceito de força pelo conceito
de campo de força, com isso ultrapassaram a barreira mecanicista da física. Mostraram
que os campos têm suas próprias realidades e podem ser estudados na ausência de corpos
materiais. Surge a teoria da eletrodinâmica que culminou com a descoberta de que a luz é um
campo eletromagnético rapidamente alternante, que viaja através do espaço em forma de
ondas.
Assim a mecânica newtoniana se preocupa com estudo da natureza, apenas na
tentativa de descobrir, medir e quantificar seus mistérios. Essa visão mecanicista da natureza
passa a ser questionada a partir da década de 60 com Kuhn e outros autores que,
incomodados com a ausência de um método sistêmico para pesquisa cientifica, rompem com o
mecanicismo cartesiano.
Essa inquietação reflete-‐se muito bem nas palavras de R.D. Laing: “Nada mudou mais o
nosso mundo nos últimos 400 anos do que a obsessão dos cientistas pela medição e pela
quantificação”. Segundo Laing “Perderam-‐se a visão, o som, o
gosto, o tato e o olfato, e com eles foram-‐se também a sensibilidade à estética e a
ética; os valores; a qualidade; a forma; todos os sentimentos; motivos; intenções; a alma; a
consciência e o espírito” (apud, Capra, 1982: 51). A experiência, como acúmulo de
conhecimento, foi expulsa do domínio do discurso científico.
95
1.2 – A teoria positivista de Auguste Comte
A teoria positivista, elaborada por August Comte (1798-‐1857), dá prosseguimento às
ideias da revolução científica quando o mesmo privilegia o método científico através da
observação e a sistematização das ciências, não se investigam as causas primeiras e a ciência
metafísica dos fenômenos, procura-‐se apenas fixar em leis, sempre mais gerais, as relações
constantes de sucessão ou de semelhança existente entre os próprios fenômenos. A
Filosofia Positiva tem início numa visão progressiva do espírito humano, o desenvolvimento
total da inteligência humana passa por três estados históricos diferentes: o estado teológico ou
fictício, o estado metafísico ou abstrato e o estado científico ou positivo.
O estado teológico, que se dá na Idade Antiga, o homem impotente diante dos
fenômenos naturais, apela para seres sobrenaturais para explicar esses fenômenos. O espírito
humano por desconhecer as causas naturais dos fenômenos explica-‐os como produzidos por
seres ou forças comparáveis ao próprio homem.
O estado metafísico que se dá, na Idade Média, o homem, mais habituado ao manejo da
racionalidade, passa a atribuir as causas dos fenômenos naturais às forças da natureza,
incontroláveis do ponto de vista prático, mas passíveis de serem pensados de modo abstrato.
Este estado substitui o anterior no quais os agentes sobrenaturais são substituídos por forças
abstratas.
Como a teologia, a metafísica tenta, antes de tudo, explicar a natureza íntima dos seres vivos, a origem e o destino de todas as coisas, o modo essencial de produção de todos os fenômenos. Mas em vez de empregar, para isso, agentes sobrenaturais propriamente ditos, ela os substitui progressivamente por essas entidades ou abstrações personificadas, cujo uso, verdadeiramente característico, permitiu muita vezes designá-‐las sob o nome de ontologia.
(COMTE, 1978: 47). No estado positivo ou científico, presente entre os gregos e que reaparece com Bacon,
Galileu e Descartes, o homem reconhece a inutilidade das explicações
vagas e arbitrárias da filosofia teológica ou da filosofia metafísica, preocupa-‐se em conhecer
as causas dos fenômenos e descobrir leis reais que regem esses fenômenos. O espírito
positivo assume uma dupla tarefa: coordenação dos fatos observados e estabelecimento de uma
previsão racional, aproximadamente exata.
Considerando a destinação constante dessas leis, pode-‐se dizer, sem exagero algum, que a verdadeira ciência, longe de ser formada por simples observações, tende sempre a dispensar, quando possível, a exploração direta, substituindo-‐a por essa previsão racional que constitui sob todos os aspectos, o principal caráter do espírito positivo.
(COMTE, 1978:48)
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A obra de Comte sofre influência decisiva na sua formação com a obra de Condorcet
“Estudo do Quadro Histórico dos progressos do Espírito Humano” segundo a qual o
homem caminharia para uma era em que a organização social e política seriam produtos
das luzes da razão. Surge então uma única doutrina filosófica que seria a solução dos
problemas da humanidade com a finalidade de orientar todas as ciências gerando uma
metodologia que constituiria a Teoria do Espírito Humano. Para alguns historiadores o
positivismo é uma forma de pensamento social e surge da necessidade de organizar a
sociedade francesa diante do caos que se instalara, devido à transição do período feudal para o
capitalismo. Para Comte o positivismo é a solução para se instalar espontaneamente
“ordem e progresso”.
Num assunto qualquer, o espírito positivo leva sempre a estabelecer exata harmonia elementar entre as ideias de existência e as ideias de movimento, donde resulta mais especialmente, no que respeita aos corpos vivos, a correlação permanente das ideias de organização com as ideias de vida e, em seguida, graças a uma última especialização peculiar ao organismo social, a solidariedade contínua das ideias de ordem com as ideias de progresso.
(COMTE, 1978: 69).
Percebe-‐se em sua obra que Comte estabelece uma relação íntima entre ciência, ordem
e progresso. Dentro das ciências humanas, por exemplo, devem-‐se primeiramente melhorar
as condições de vida da classe proletária, através de uma revolução na ordem econômica e
política da sociedade.
1.3 – Rompendo com o mecanicismo cartesiano
Na década de 60 do século passado, alguns autores incomodados com o mecanicismo
cartesiano procuram um rompimento com esse método científico através da publicação de
algumas obras, como Tomas Kuhn e Prigogine. Alguns autores, além do rompimento com o
mecanicismo cartesiano, propõem outros métodos científicos para estudo da natureza, entre
os quais citamos: Capra, Morin e Santos.
Tomas Kuhn com a obra “A Estrutura das Revoluções Científicas”, em 1962 vem para
mudar profundamente as análises e as conclusões sobre a natureza epistemológica da ciência.
Em sua obra Kuhn transforma radicalmente o cenário mundial de filosofia da ciência em
historia da ciência. Este autor formado em física teórica abandona sua linha de pesquisa e
passa a estudar sobre a história da ciência.
Se a história fosse vista como um repertório para algo mais do que anedotas ou cronologias, poderia produzir uma transformação decisiva na imagem de ciência que atualmente nos domina.
(KUHN, 1962: 19)
97
Thomas Kuhn inicia seu livro conceituando ciência normal, dizendo que esta,
é uma pesquisa científica orientada por um dado paradigma e que, paradigmas são realizações
científicas universalmente conhecidas, os quais serviram como soluções e modelos para uma
comunidade científica.
Ilya Prigogine, com sua obra “O Fim das certezas” (1996) rompe com o mecanicismo
cartesiano ao considerar a teoria do caos, a ideia de flecha do tempo e os conceitos de reversível
e irreversível para os fenômenos científicos.
Em primeiro lugar nossa recusa da banalização da irreversibilidade fundamenta-‐se no fato de que mesmo na física a irreversibilidade não pode mais ser associada apenas a um aumento da desordem. Muito pelo contrário os desenvolvimentos recentes da física e da química de não-‐equilíbrio mostram que a flecha do tempo pode ser uma fonte de ordem.
(PRIGOGINE, 1996:29).
“O Ponto de Mutação” de Fritjof Capra é a obra responsável pela mudança que se
verifica em minha vida profissional docente. Através da introdução de um sistema holístico11
para a ciência, Capra consegue persuadir os leitores de que é necessário que abandonemos um
sistema exclusivamente mecanicista em troca de um sistema holístico profissionalizante.
A descrição reducionista de organismos, pode, portanto, ser útil e, em alguns casos necessários. Ela só é perigosa quando interpretada como se fosse a explicação completa. Reducionismo e holismo, análise e síntese, são enfoques complementares que, usados em equilíbrio adequado, nos ajudam a chegar a um conhecimento mais profundo da vida.
(CAPRA, 1982:261).
Para Capra o reducionismo é um sistema que deve conviver com um sistema holístico
para a atividade científica tecnológica e social, deve haver um equilíbrio entre os mesmos e
não um predomínio ou exclusivismo do sistema mecanicista que governou durante,
aproximadamente, três séculos o método científico. O sistema holístico defendido por Capra se
encaixa perfeitamente na tendência CTS para o ensino de física.
Edgar Morin com sua obra “Ciência Com Consciência” tenta despertar a consciência dos
investigadores e diz que é o momento de tomar consciência de que a ciência carente de
reflexão e uma filosofia puramente especulativa são insuficientes para enxergar a
complexidade da realidade física, biológica, social e política. Pois as ciências naturais não estão
conscientes de pertencer a uma cultura, a uma sociedade e a uma história e, as ciências
humanas não têm consciências dos aspectos físicos e biológicos dos fenômenos humanos.
Contrário ao mecanicismo, Morin diz que as máquinas artificiais aplicam programas
fornecidos pelos engenheiros e estas não se reproduzem, não se regeneram e também não
toleram a desordem; enquanto as máquinas vivas (sociedade humana) estão em permanente
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estado de organização e modificam-‐se segundo a aleatoriedade das situações. Por isso,
segundo Morin, a ciência não deve esquecer o lado social da humanidade.
A obra de Morin levou-‐me a refletir sobre o social dentro do meu mundo profissional,
contrariando o mecanicismo cartesiano que provocou um esquecimentosocial e humano dentro
de mim.
“Introdução a uma Ciência Pós-‐Moderna” obra de Boaventura de Souza Santos
fecha o ciclo de autores que eu naveguei para falar sobre a nova proposta para os métodos
científicos e o ensino de ciências dentro de uma tendência CTS. Nessa obra o autor rompe
com o paradigma da ciência moderna e faz emergir um novo paradigma que ele chama de
Ciência Pós-‐Moderna no qual propõe um conhecimento prudente para uma vida decente: um
paradigma científico social, uma reflexão hermenêutica para compreender criticamente a
ciência moderna.
A partir dessa reflexão a ciência se pautará numa relação mais direta com a sociedade
numa relação eu-‐tu (hermenêutica) e não mais a relação eu-‐coisa (epistemológica), sendo
compreendida como prática social do conhecimento. Este paradigma reflete um momento de
transição entre o moderno e o pós-‐moderno, e não uma ruptura total entre os dois
paradigmas, proposta para um novo modelo de ciência que se baseia em quatro teses em que
todo conhecimento: científico natural
é científico social; é local e total; é autoconhecimento; visa constituir-‐se no novo senso
comum.
Em sua obra, assim como Capra e Morin, Boaventura busca a reflexão de uma
ciência voltada para o social, vejo nos três autores a preocupação com a ética científica e o
social, uma mudança no método científico no qual não se preocupa apenas com a validação dos
conceitos científicos e sim com a aplicação sistêmica desses conhecimentos, uma proposta
científico/social.
Hoje, influenciado por esses três autores, quando escrevo busco sempre uma
ética profissional voltada, não só para mim, mas para o sujeito de minha pesquisa ou
profissão, o homem.
1.4 – A NOVA FÍSICA
A física moderna começa no início do séc XX, com três trabalhos publicados pelo
extraordinário Albert Einstein em 1905: a teoria da relatividade, o efeito fotoelétrico e o
movimento browniano.
Dez anos depois Einstein formulou a teoria geral da relatividade. Nessa teoria Einstein
unifica e completa a mecânica clássica juntamente com a eletrodinâmica e a gravidade, o
99
que nos confirma o seu pensamento de harmonia inerente à natureza. Nesse trabalho foi
introduzida, nova e drástica mudança nos conceitos de espaço e tempo: Espaço e Tempo são
relativos não mais absolutos.
Os trabalhos de Einstein facilitaram a origem de novo ramo da física: a
Mecânica Quântica. Esse ramo amplia o modelo cartesiano científico e elabora um novo
modelo, o tetradimensional no qual o tempo também interage.
A teoria quântica foi desenvolvida por um grupo internacional de físicos durante
as três primeiras décadas do século passado entre eles citamos: Max Planck, Albert
Einstein, Neils Bohr, Louis De Broglie, Erwin Schodinger, Wolfang Pauli, Werner Heisenberg
e Paul Dirac.
A nova física exigia profundas mudanças nos conceitos de espaço, tempo, matéria, objeto
e causa e efeito. Esses conceitos são importantes na maneira de interpretar o mundo e essas
mudanças causaram um grande choque na comunidade científica que pode ser
comprovado por dois comentários feitos, o primeiro por Heisenberg e o segundo por
Einstein:
A reação violenta ao recente desenvolvimento da física moderna só pode ser entendida quando se percebe que neste ponto os alicerces da física começaram a se mover; e que esse movimento provocou a sensação de que a ciência estava sendo separada de suas bases.
(CAPRA, 1982:72)
Todas as minhas tentativas para adaptar os fundamentos teóricos da física a esse [novo tipo de] conhecimento fracassaram completamente. Eram como se o chão tivesse sido retirado debaixo dos meus pés, e não houvesse qualquer outro lugar uma base sólida sobre a qual pudesse construir algo.
(CAPRA ,1982: 72)
O Princípio da Incerteza de Heisenberg expressa matematicamente as limitações dos
conceitos clássicos. Segundo este princípio sempre que usamos termos clássicos (partícula,
onda, velocidade, posição) para descrever fenômenos atômicos descobrimos pares de conceitos
que se interelacionam e que não podem ser definidos simultaneamente com precisão: quanto
mais enfatizamos um aspecto em nossa descrição, mais o outro se torna incerto.
A noção de complementaridade introduzida por Niels Bohr veio esclarecer o princípio
da incerteza de Heisenberg. Segundo Bohr um par de conceitos clássicos como onda e
partículas, são descrições complementares da mesma realidade, ambas são necessárias para
uma descrição total da realidade atômica. O moderno conceito de complementaridade está
claramente contido no pensamento chinês yin/yang12, uma vez que os opostos yin/yang
estão inter-‐relacionados de uma
maneira polar ou complementar. Este fato causou profunda impressão em Niels Bohr.
100
Assim, a física quântica nos mostra através do estudo do átomo que nunca podemos
predizer com certeza um evento atômico, mas podemos prever a probabilidade de sua
ocorrência porque os conceitos estão interligados entre si. Portanto, a física moderna revela a
unicidade básica do universo e que o mundo não pode ser decomposto em unidades
ínfimas com existência independentes, como nos mostrava a teoria mecanicista cartesiana.
Através da unicidade básica do universo, proposto pela física moderna, chego à
conclusão que a tríade ciência, tecnologia e sociedade devem caminhar juntas, para o bem da
humanidade e do planeta e que filmes de ficção que mostram um planeta totalmente estéril e
sem vida seja apenas ficção.
101
Da necessidade de um pensamento complexo
Edgar Morin
Sociólogo, C.N.R.S./França * tradução de Juremir Machado da Silva
Política de civilização e problema mundial Vou tentar descrever, de maneira breve, o problema do desafio da complexidade. Começarei pela
ideia de que toda e qualquer informação tem apenas um sentido em relação a uma situação, a um
contexto. Se, por exemplo; eu disser "amo-‐te", esta palavra pode ser a expressão de um apaixonado
sincero e deve ser tomada nesse sentido; mas pode ser também a farsa de um sedutor e nessa altura
será uma mentira. Pode ser ainda, numa peça de teatro, a palavra de um herói, e não do ator que desempenha o papel
do personagem; o sentido das palavras muda, portanto, necessariamente, segundo o contexto em
que as empregamos; é por isso que, em linguística, como todos sabemos, o sentido de um texto é
esclarecido pelo seu contexto. Por exemplo: quando ouvimos as informações na televisão ou as
lemos nos jornais, a palavra Sarajevo, a palavra Hezbollah e a palavra Kabul não têm sentido se não
as situarmos no seu contexto geográfico e histórico, o que quer dizer que, para conhecer, não
podemos isolar uma palavra, uma informação;
é necessário ligá-‐Ia a um contexto e mobilizar o nosso saber, a nossa cultura, para chegar a um
conhecimento apropriado e oportuno da mesma. O problema do conhecimento é um desafio porque só podemos conhecer, como dizia Pascal, as
partes se conhecermos o todo em que se situam, e só podemos conhecer o todo se conhecermos as
partes que o compõem. Ora, hoje vivemos uma época de mundialização, todos os nossos grandes
problemas deixaram de
ser particulares para se tomar mundiais: o da energia e, em especial, o da bomba atômica,
da disseminação nuclear, da ecologia, que é o da nossa biosfera, o dosvírus, como a Aids,
imediatamente se mundializam. Todos os problemas se situam em um nível global e, por isso,
devemos mobilizar a nossa atitude não só para os contextualizar, mas ainda para os mundializar,
para os globalizar; devemos, em seguida, partir do global para o particular e do particular para o
global, que é o sentido da frase de Pascal: "Não posso conhecer o todo se não conhecer
particularmente as partes, e não posso conhecer as partes se não conhecer o todo". Deveríamos, portanto, ser animados por um princípio de pensamento que nos permitisse ligar as
coisas que nos parecem separadas umas em relação às outras. Ora, o nosso sistema educativo
privilegia a separação em vez de praticar a ligação. A organização do conhecimento sob a forma
102
de disciplinas seria útil se estas não estivessem fechadas em si mesmas, compartimentadas umas em
relação às outras; assim, o conhecimento de um conjunto global,o homem, é um conhecimento
parcelado. Se quisermos conhecer o espírito humano, podemos fazê-‐Io através das ciências humanas,
como a psicologia, mas o outro aspecto do espírito humano, o cérebro, órgão biológico, será estudado
pela biologia. Vivemos numa realidade multidimensional, simultaneamente econômica, psicológica, mitológica,
sociológica, mas estudamos estas dimensões separadamente, e não umas em relação com as outras. O
princípio de separação torna-‐nos talvez mais lúcidos sobre uma pequena parte separada do seu
contexto, mas nos torna cegos ou míopes sobre a relação entre a parte e o seu contexto. Além disso, o
método experimental, que permite tirar um "corpo" do seu meio natural e colocá-‐Ia num meio
artificial, é útil, mas tem os seus limites, pois não podemos estar separados do nosso meio ambiente; o
conhecimento de nós próprios não é possível, se nos isolarmos do meio em que vivemos. Não
seríamos seres humanos, indivíduos humanos, se não tivéssemos crescido num ambiente cultural
onde aprendemos a falar, e não seríamos seres humanos vivos se não nos alimentássemos de
elementos e alimentos provenientes do meio natural.
Por outro lado, durante muito tempo, a ciência ocidental foi reducionista (tentou reduzir o
conhecimento do conjunto ao conhecimento das partes que o constituem, pensando que
podíamos conhecer o todo se conhecêssemos as partes); tal conhecimento ignora o fenômeno mais
importante, que podemos qualificar de sistêmico, da palavra sistema, conjunto organizado de partes
di-‐ ferentes, produtor de qualidades que não existiriam-‐se as partes estivessem isoladas umas as
outras.É isto que podemos chamar “emergências", Por exemplo, somos a vida. Um ser humano é
constituído por moléculas, moléculas químicas, moléculas de ácidos, ácidos nucléicos e aminoácidos.
Nenhuma destas macromoléculas tem, por si só. as qualidades que dão a vida; a organização viva, feita
destas moléculas, organização complexa, tem um certo número de qualidades que emergem.
qualidades de autoprodução. auto-‐reprodução, autodesenvolvimento, comunicação, movimento etc. Não podemos, portanto, compreender o ser humano apenas através dos elementos que o constituem.
Se observarmos uma sociedade, verificaremos que nela há interações entre os indivíduos, mas essas
interações formam um conjunto e a sociedade, como tal, é possuidora de uma língua e de uma cultura
que transmite aos indivíduos; essas "emergências sociais" permitem o desen-‐ volvimento destes. É
necessário um modo de conhecimento que permita compreender como as organizações, os sistemas,
produzem as qualidades fundamentais do nosso mundo. Tratemos agora do fenômeno da auto-‐organização. O ser humano é autônomo, mas a sua autonomia
depende do meio exterior. Se temos necessidade de nos alimentar, é porque o nosso organismo
trabalha continuamente, degrada a sua energia e tem necessidade de renová-‐Ia, extraindo-‐a do mundo
exterior sob a for-‐ ma já organizada dos alimentos vegetais ou animais. Por isso, para ser autônomo,
tenho de depender do meio exterior; para ser um espírito autônomo, tenho de depender da cultura de
103
que alimento os meus conhecimentos. a minha faculdade de conhecimento e a minha faculdade de
julgar. Assim, somos levados a pensar conjuntamente em duas noções que até agora se
encontravam separados,
porque durante muito tempo não podíamos compreender a autonomia do ponto de vista científico,
visto que o conhecimento científico clássico só conhecia o determinismo. A autonomia só podia ser
pensada do ponto de vista puramente metafísico, quer dizer, excluindo qualquer laço material. Por um
lado, tínhamos uma ciência com dependência, mas sem autonomia, e por outro lado uma
filosofia com autonomia, mas sem conceber a dependência. Ora, penso que o pensamento complexo
deve ligar a autonomia e a dependência. A nossa educação nos habituou a uma concepção linear da causalidade. Temos causas que produzem
efeitos. Ora, uma das ideias mais importantes que me parecem ter surgido nos últimos 50 anos foi a da
circularidade, cristalizada pela primeira vez por um especialista em cibernética. Para compreender a
ideia de cir-‐ cularidade retroativa, podemos imaginar um sistema de aquecimento central: uma
caldeira alimenta os radiadores; quando se atingiu a temperatura desejada, um termos tato faz
parar o funcionamento da caldeira; se a temperatura baixa, o termos tato faz funcionar a caldeira de
novo. Há, em consequência, um sistema onde o efeito atua retroativamente sobre a causa. Passamos de uma visão linear a uma visão circular. A causalidade retroativa possibilita compreender
um fenômeno de autonomia térmica: quando faz frio lá fora, o compartimento fica quente e,
paradoxalmente, quanto mais frio faz lá fora, mais quente fica o interior do compartimento. Esta
autonÓmia, provocada pela re-‐ gulação (circularidade retroativa), é ela própria produzida por uma
circularidade mais intensa, chamada circularidade autoprodutiva. Em que consiste esta circularidade?
Consiste no fato de produtos e efeitos serem necessários ao produtor e ao causador. Tomemos dois exemplos: a vida e a sociedade. A vida é um sistema de reprodução que produz os
indivíduos. Somos produtos da reprodução dos nossos pais. Mas, para que este processo de
reprodução continue, é necessário que nós próprios nos tomemos produtores e reprodutores de
nossos filhos. Somos, portanto, produtos e produtores no processo da vida. Da mesma maneira. somos
produtores da sociedade porque sem indivíduos humanos não existiria a
sociedade mas, uma vez que a sociedade existe, com a sua cultura, com os seus interditos, com as
suas normas, com as suas leis, com as suas regras, produz-‐ nos como indivíduos e, uma vez mais,
somos produtos produtores.
Produzimos a sociedade que nos produz. Ao mesmo tempo, não devemos esquecer que somos não só
uma pequena parte de um todo, o todo social, mas que esse todo está no interior de nós próprios, ou
seja, temos as regras sociais, a linguagem social, a cultura e normas sociais em nosso interior. Segundo
este princípio, não só a parte está no todo como o todo está na parte. Isto acarreta consequências
muito importantes porque, se quisermos julgar qualquer coisa, a nossa sociedade ou uma sociedade
104
exterior, a maneira mais ingênua de o fazer é crer (pensar) que temos o ponto de vista verdadeiro e
objetivo da sociedade, porque ignoramos que a sociedade está em nós e ignoramos que somos uma
pequena parte da sociedade. Esta concepção de pensamento dános uma lição de prudência, de método
e de modéstia. Devo indicar, neste momento da minha exposição, que o pensamento complexo nos abre o caminho
para compreender melhor os problemas humanos. Em primeiro lugar, não devemos esquecer que
somos seres trinitários, ou seja, somos triplos em um só. Somos indivíduos, membros de uma
espécie biológica chamada Homo Sapiens, e somos, ao mesmo tempo, seres sociais. Temos estas três
naturezas numa só. Penso que é importante sabê-‐Io porque, de uma maneira geral, o nosso modo de
pensamento mais habitual nos toma difícil conceber um elo entre estas três naturezas e saber se
existe unidade na humanidade ou diversidade, heterogeneidade e, consequentemente, ausência de
unidade. Tema polêmico a partir do século XVIII. Há quem diga que a natureza humana é una, e que os
chineses ou africanos têm uma natureza igual à nossa e por isso, como nós, amores, tristezas, alegrias,
felicidades. Outros pensadores, como os culturalistas, dizem que somos diferentes de cultura para
cultura, não existindo verdadeira unidade humana. Foi muitas vezes difícil fazer compreender que o "um" pode ser "múltiplo", e que o "múltiplo" é
suscetível de unidade. Que, por exemplo, do ponto de vista do ser humano, há certamente unidade
genética, que todos os seres humanos têm o mesmo patrimônio genético e há unidade cerebral;
por essa razão, todos os seres humanos têm as mesmas atitudes cerebrais fundamentais. É também
certo que os seres humanos têm uma identidade profunda pelo fato de poder desenvolver a sua
nacionalidade e por serem afetivos, capazes, todos eles, de sorrir, de rir e de chorar. A observação de
um etólogo alemão sobre uma jovem surda, muda e cega de nascença demonstrou que, por ela rir,
chorar e sorrir, não tinha aprendido, através do seu meio cultural, estas manifestações afetivas. Há, logo, a unidade fundamental do ser humano; mas, ao mesmo tempo, sabemos que certas
civilizações inibem as lágrimas, enquanto outras permitem a sua expressão; que sorrimos em
condições diferentes numas e noutras; o riso, as lágrimas e o sorriso são diferentemente modulados
segundo as culturas, mas devemos saber sobretudo que, a partir da mesma estrutura fundamental da
linguagem, se criou uma diversidade inacreditável de línguas ao longo do desenvolvimento da espécie
humana, e que as culturas geraram riquezas extraordinárias; o tesouro da humanidade é a sua
diversidade. esta não só é compatível com a unidade fundamental, mas produzida pelas
possibilidades do ser humano. Compreender a unidade e a diversidade é muito importante hoje, visto estarmos num processo de
mundialização que leva a reconhecer a unidade dos problemas para todos os seres humanos onde
quer que estejam; ao mesmo tempo, é preciso preservar a riqueza da humanidade, ou seja, a
diversidade cultural; vemos, por exemplo, que as diversidades não são só as das nações, mas estão
105
também no interior destas; cada província, cada região, tem a sua singularidade cultural, a qual deve
guardar ciosamente. Há, no mesmo sentido, o problema com o qual estive confrontado quando quis escrever meu livro "O
Homem e a morte": a multidimensionalidade humana. A interrogação que me coloquei desde o início
foi a seguinte: O homem btá, como todos os seres biológicos, submetido à morte; por isso, no domínio
da morte, é semelhante a todos os outros seres vivos; mas o homem é o único ser vivo que
acredita existir uma vida após a morte, que pratica ritos fúnebres, que tem uma mitologia da morte,
porque acredita que a morte existe, quer um renascimento, quer a sobrevivência de um fantasma,
quer a ressurreição, etc. A realidade humana é. pois, por um lado, biológica e, por outro,
autobiológica, quer dizer, mitológica.
Um dos traços importantes do meu trabalho foi deixar de subestimar os aspectos imaginário e
mitológicos do ser humano. Algo que me tinha deveras impressionado quando assisti a uma
cerimônia de Candomblé no Brasil, e da qual participei, foi constatar que, num momento
determinado, os participantes, os crentes, invocam os espíritos ou deuses tais como Iemanjá; num
dado momento, um dos espíritos encama num dos participantes e fala através deste. Além disso,
é possível a presença de vários espíritos. O que significa tudo isto? Significa que os deuses têm uma
existência real; essa existência é-‐lhes conferida pela comunidade dos crentes, pela fé, pelo rito. Mas
uma vez que o deus existe, é capaz de nos possuir, e é essa a relação particular que nutrimos com os
"deuses", ou com o nosso "Deus", ou as com nossas ideias. Isso significa ainda que damos vida às nossas ideias e, uma vez que lhes damos vida, são elas que
indicam o nosso comportamento, que nos mandam matar ou morrer por elas; vale dizer que tais
produtos são os nossos próprios produtores, e que as realidades imaginária e mitológica são um
aspecto fundamental da reali-‐ dade humana. Do mesmo modo, penso que devemos considerar a história humana de maneira complexa. Ora, entre
as maneiras não complexas de considerar a história humana, a primeira foi a de que esta era uma
sucessão de batalhas, de golpes de Estado, de mudanças de reino, de acontecimentos importantes, de
acidentes, de guerras. Uma segunda maneira consistiu em julgar que os acidentes, as guerras, as
mudanças de reino, eram acontecimentos superficiais enquanto, na realidade, existiria um movimento
ascendente, o do progresso; as leis da história estariam escritas no decurso da humanidade e, se
surgissem acidentes, seriam provisórios. Primeiramente, é necessário unir estas duas concepções: a dos acidentes, das perturbações, aquilo que Shakespeare chamou "o barulho e o furor" e, por outro lado, as determinações, os determinismos. Isto se aplica também à história do Universo, que começamos a conhecer como uma história que nasceu, talvez, de uma catástrofe gigantesca, da qual surgiu o nosso mundo, criado através de enormes destruições, porque se pensa que desde o início a matéria provocou o genocídio da antimatéria ou, ao menos, essa antimatéria desapareceu. Em seguida, houve o choque das estrelas, a colisão das galáxias, explosões...
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Ora, o mundo produz, por um lado, galáxias, estrelas, ordem no céu e, ao mesmo tempo, forma-‐se por
entre a desordem; da mesma maneira, a história da terra é uma história atormentada. Pensa-‐se que,
na origem, foram os detritos de um sol anterior que explodiu que se aglomeraram, tendo-‐se, a partir
daí, produzido um fenômeno de auto-‐organização da terra, com, num dado momento, o
aparecimento da primeira célula viva. Mas a verdadeira história da vida ocorreu através de
convulsões e catástrofes; houve um acidente no final da era primária em que 97% das espécies vivas
dessa época desapareceram; houve o famoso acidente em que os dinossauros morreram, e que parece
ser a consequência de um meteorito conjugado com uma enorme explosão vulcânica. A história
da nossa terra é acidental, e através desses acidentes houve a extraordinária proliferação de formas
vegetais e animais, das quais, de um ramo de um ramo de um ramo... da evolução animal surgiu o ser
humano e, finalmente, a consciência humana. O sentido da evolução não era o de produzir por todo lado a consciência. Foi o ramo de um ramo de
um ramo que produziu a humanidade. Somos, portanto, um produto "desviado" da história do mundo;
isto nos permite compreender que a evolução não é qualquer coisa que avança frontalmente,
majestosamente, como um rio, mas parte sempre de um "desvio" que começa e consegue
impor-‐se, toma-‐se uma grande tendência e triunfa, o que se aplica à história das ideias; no início,
Moisés é um egípcio "desencaminhado" ou "desviado" que se afastou da sua religião quando fundou o
judaísmo; o "desencaminhamento" de Jesus foi acrescido pelo de Paulo, quando este disse não haver
nem judeus, nem gentios. Maomé, Karl Marx e Lutero foram seres "desencaminhados" ou
"desviados"; certos "desencaminhamentos" enraízam-‐se e transformam-‐se em tendências fortes. Isso deve tornar mais complexa a nossa visão da história e levar-‐nos a compreender a incerteza do
nosso tempo, visto que não há progresso necessário e inelutável; sabemos que todos os progressos
adquiridos podem ser destruídos pelos nossos inimigos mais implacáveis: nós mesmos, dado que hoje
a humanidade é a maior inimiga da humanidade. Sabemos, atualmente, que o progresso deve ser
regenerado; sabemos ainda que a barbárie constitui uma ameaça, e vivemos mais do que nunca na
incerteza, porque ninguém pode adivinhar o que será o dia de amanhã. O nosso destino é, pois,
incerto, e ninguém sabe qual o destino do Cosmos. Devemos, porém, poder situar-‐nos nesta incerteza. A nossa situação é, em virtude desta
constatação, extremamente complexa, porque somos, integralmente, filhos do Cosmos e estranhos
a esse mesmo Cosmos. Poderia exemplificar com o organismo humano, mas vou tomar simplesmente
o exemplo de um copo de vinho do Porto. Se pegarem um copo de vinho do Porto e o inter-‐ rogarem,
podem ter a certeza de que nesse vinho do Porto há partículas que se formaram nos primeiros
segundos do Universo, ou seja, há cerca de sete a quinze milhões de anos; há também o
hidrogênio, um dos primeiros elementos a ser formado no Universo, e produtos do átomo do
carbono, formado quando da existência do sol anterior ao nosso. No copo de vinho do Porto, há a
107
conjugação de macromoléculas que se juntaram na terra para dar origem à vida e há ainda a evolução
do mundo vegetal, a evolução animal, até o homem, e a evolução técnica que permitiu ao ser humano
extrair o sumo da uva e transformá-‐I o, através da fermentação, em vinho. Hoje, existem técnicas
mais evoluídas, mais sofisticadas, da informática, que permitem controlar, nos depósitos, a
fermentação desse vinho que vai transformar-‐se em vinho do Porto. Dito de outra maneira, num copo
de vinho do Porto temos toda a história do Cosmos e, simultaneamente, a originalidade de uma
bebida encontrada apenas na região do Douro.
Somos filhos da natureza viva da terra e estrangeiros a nós próprios. Esta reflexão leva-‐nos a
abandonar a ideia que considerava o ser humano como centro do mundo, mestre e
dominador da natureza, defendida por grandes filósofos ocidentais como Bacom, Descartes,
Buffon, Karl Marx. Hoje, essa ambição parecenos completamente irrisória, porque vivemos num
planeta minús-‐ culo, satélite de um pequeno sol de segunda classe, que faz parte de uma
galáxia extremamente periférica; estamos, por essa razão, perdidos no Universo. Mas, se devemos
abandonar a visão que faz do homem o centro do mundo, devemos salvaguardar a visão
humanista que nos ensina que é necessário salvar a humanidade e civilizar a terra. Abandonemos a
missão de Prometeu e tomemo-‐ nos seres terrestres, quer dizer, cidadãos da terra, o que nos
remete à ideia por mim desenvolvida no livro Terra-‐Pátria; para compreendê-‐Ia, é necessário
refletir sobre a palavra "Pátria". A palavra "Pátria" significa três coisas: identidade comum,
comunidade de origem, do destino e de ideias.
• Identidade comum, como já tive a ocasião de referir.
• Comunidade de origem e comunidade de destino, segundo os dados do
conhecimento da hominização e da pré-‐história: parece haver uma origem comum da
humanidade -‐ o continenteAfricano. É possível que o "HomoSapiens" tenha partido da
África e povoado o mundo, assim como é possível que os antepassados do "Homo
Sapiens", através do processo de mestiçagem, tenham suscitado na Europa, na Ásia e
na África, o aparecimento da nossa espécie; de qualquer maneira, há uma comunidade
de origem pertencente ao ramo particular da evolução dos seres vivos. Comunidade de
destino: fazer parte de uma Pátria significa participar de um destino comum; ora, esse
destino relacionado com a pátria é um destino que nos vem do passado. Participa-‐se da
Pátria Portuguesa porque se aprende a história de Portugal e tomase parte nas suas
dificuldades, nos seus sofrimentos, nas suas grandezas e nas suas glórias; incorpora-‐se
o destino comum dos antepassados. A ideia de comunidade de destino terrestre é uma
ideia recente. Vem da era planetária, quer dizer, do momento em que os fragmentos
dispersos da humanidade começaram a encontrar-‐se; no início, de maneira
extremamente violenta e brutal, através das conquistas e da colonização. Hoje,
todos os seres humanos, apesar de viverem situações diferentes, têm os mesmos
problemas fundamentais de vida e morte. Temos necessidade de nos proteger de
desastres que podem destruir o homem.
108
. Comunidade de ideias: esta noção faz-‐nos abandonar a alternativa banal segundo a qual, no caso de
sermos cosmopolitas, não teríamos raízes e, no caso de termos Pátria, seria uma Pátria singular
fechada sobre ela própria. A ideia de "Terra-‐Pátria" não nos desenraíza, ao contrário; estamos enraizados em nosso destino
terrestre, o qual engloba e respeita todas as Pátrias. Podemos ser membros de várias Pátrias
concêntricas. Sinto-‐me profundamente membro da pátria francesa, mediterrâneo, europeu e
cidadão da Terra. Podemos viver diferentes Pátrias de maneira concêntrica em vez de negar uma,
privilegiando outra. O pensamento complexo conduz-‐nos a lima série de problemas fundamentais do
destino humano, que depende, sobretudo, da nossa capacidade de compreender os nossos problemas
essenciais, contextualizando-‐os, globalizando-‐os, interligando-‐os: e da nossa capacidade de enfrentar
a incerteza e de encontrar os meios que nos permitam navegar num futuro incerto, erguendo ao
alto a nossa coragem e a nossa esperança.
109
Vencer a especialização
Enquanto a cultura geral comportava a possibilidade de buscar a contextualização de toda
informação ou ideia, a cultura científica e técnica, por causa de sua característica disciplinar e
especializada, separa e compartimenta os saberes, tomando cada vez mais difícil a colocação destes
num contexto qualquer. Além disso, até a metade do século XX, a maioria das ciências tinha por
método de conhecimento a redução (do conhecimento de um todo ao conhecimento das partes que o
compõem), por conceito fundamental o determinismo, isto é, a ocultação do acaso, do novo, da
invenção, e a aplicação da lógica mecânica da máquina artificial aos problemas vivos, humanos e
sociais. A especialização abstrai, extrai um objeto de seu contexto e de seu conjunto, rejeita os laços e
a intercomunicação do objeto com o seu meio, insere-‐o no compartimento da disciplina, cujas
fronteiras quebram arbitrariamente a sistemicidade (a relação de uma parte com o todo) e a
multidimensionalidade dos fenômenos, e conduz à abstração matemática, a qual opera uma cisão com
o concreto, privilegiando tudo aquilo que é calculável e formalizável. Assim, a economia, a ciência social matematicamente mais avançada, é também a ciência social e
humanamente mais fechada, pois se abstrai das condições sociais, históricas, políticas, psicológicas,
ecológicas, etc, inseparáveis das atividades econômicas. Por isso, os seus experts são cada vez mais
incapazes de prever e de predizer o desenvolvimento econômico, mesmo a curto prazo.
O conhecimento deve certamente utilizar a abstração, mas procurando construir-‐ se em referência a
um contexto. A compreensão de dados particulares exige a ativação da inteligência geral e a
mobilização dos conhecimentos de conjunto. Marcel Mauss dizia: "É preciso recompor o todo".
Acrescentemos: é preciso mo-‐ bilizar o todo. Certo, é impossível conhecer tudo do mundo ou
captar todas as suas multiformes transformações. Mas, por mais aleatório e difícil que seja, o
conhecimento dos problemas essenciais do mundo deve ser tentado para evitar a imbecilidade
cognitiva. Ainda mais que o contexto, hoje, de todo conhecimento político, econômico, antropológico,
ecológico, etc, é o próprio mundo. Eis o problema universal para todo cidadão: como adquirir a
possibilidade de articular e organizar as informações sobre o mundo. Em verdade, para articulá-‐Ias e
organizá-‐Ias, necessita-‐se de uma reforma de pensamento.
110
A falsa racionalidade A falsa racionalidade -‐ a racionalização abstrata e unidimensional-‐ triunfa atualmente por toda parte.
As mais monumentais obras-‐primas dessa racionalidade tecnoburocrática foram realizadas na URSS,
onde, por exemplo, desviaram-‐se o curso dos rios para irrigar nas horas mais quentes hectares sem
árvores de cultivo de algodão, gerando a salinização do solo, a volatilização das águas subterrâneas, o esgotamento do mar de Aral. Infelizmente depois do desabamento do Império, os
novos dirigentes recorreram a experts liberais do Oeste que, ignorando deliberadamente a necessidade
de instituições, de leis e de regras numa economia competitiva de mercado, não elaboram a
indispensável estratégia complexa. Entretanto, Maurice Allais -‐ economista liberal -‐ havia indicado que
seria necessário planificar a desplanificação e programar a desprogramação. O resultado de tudo isso
são as catástrofes humanas, cujas vítimas não são contabilizadas e não têm as garantias dos atingidos
pelas catástrofes naturais. A inteligência parcelar, compartimentada, mecânica, disjuntiva, reducionista, quebra o complexo do
mundo, produz fragmentos, fraciona os problemas, separa o que é ligado, uni dimensionaliza o
multidimensional. Trata-‐se de uma inteligência ao mesmo tempo míope, presbita, daltônica,
zarolha. Elimina na casca todas as possibilidades de compreensão e de reflexão, matando assim
todas as chances de julgamento corretivo ou de visão a longo termo. Quanto mais os problemas se
tomam multidimensionais, mais há incapacidade para pensar essa multidimensionalidade; quanto
mais a crise avança, mais progride a incapacidade de pensá-‐Ia; quanto mais os problemas se tomam
planetários, mais se tornam impensados. Incapaz de considerar o contexto e o complexo planetário, a
inteligência cega produz inconsciência e irresponsabilidade. Compreendemos então um problema essencial: complementar o pensamento que separa com
outro que une. Complexus significa originariamente o que se tece junto. O pensamento complexo,
portanto, busca distinguir (mas não separar) e ligar. Ao mesmo tempo, impõe-‐se, como vimos acima,
outro problema crucial: tratar a incerteza. Por quê? Porque por toda parte, nas ciências, o dogma de um
determinismo universal desabou, enquanto a lógica, chave-‐mestra da certeza do raciocínio, revelou
incertezas na indução, impossibilidades de decisão na dedução e limites no princípio do terceiro
incluído. Assim, o objetivo do pensamento complexo é ao mesmo tempo unir (contextualizar e
globalizar) e aceitar o desafio da incerteza. Como?
111
Princípios Podemos estabelecer alguns princípios, complementares e interdependentes, como guias para pensar
a complexidade.
1. Princípio sistêmico ou organizacional: liga o conhecimento das partes ao
conhecimento do todo, conforme a ponte indicada por Pascal e mencionada antes:
"Tenho por impossível conhecer o todo sem conhecer as partes, e conhecer as partes
sem conhecer o todo". A ideia sistêmica, oposta à reducionista, entende que "o todo é
mais do que a soma das partes". Do átomo à estrela, da bactéria ao homem e à
sociedade, a organização do todo produz qualidades ou propriedades novas em
relação às partes consideradas isoladamente: as emergências. A
organização do ser vivo gera qualidades desconhecidas de seus componentes
físico-‐químicos. Acrescentemos que o todo é menos do que a soma das partes, cujas
qualidades são inibidas pela organização de conjunto.
2. Princípio "hologramático" (inspirado no holograma, no holograma, no qual
cada ponto contém a quase totalidade da informação do objeto representado): coloca
em evidência o aparente paradoxo dos Sistemas complexos, onde não somente a parte
está no todo, mas o todo se inscreve na parte. Cada célula é parte do todo -‐
organismo global-‐ mas o próprio todo está na parte: a totalidade do
patrimônio genético está presente em cada célula
individual; a sociedade como todo, aparece em cada indivíduo, através da linguagem, da
cultura, das normas.
3. Princípio do anel retroativo: introduzido por Norbert Wiener, permite o
conhecimento dos processos de auto-‐regulação. Rompe com o princípio de causalidade
linear: a causa age sobre o efeito, e este sobre a causa, como no sistema de aquecimento
no qual o termostato regula a situação da caldeira. Esse mecanismo de regulação permite
a autonomia do sistema, neste cnso, a autonomia térmica de um apartamento em relação
ao frio exterior. De maneira mais complexa, a "homeostase" de um organismo vivo
é um conjunto de processos reguladores fundados sobre múltiplas retroações. O anel de
retroação (ou feedback) possibilita, na sua forma negativa, reduzir o desvio e, assim,
estabilizar um sistema. Na sua forma mais positiva, o feedback é um mecanismo
amplificador; por exemplo, na situação de apogeu de um conflito: a violência de um
protagonista desencadeia uma reação violenta que, por sua vez, determina outra reação
ainda mais violenta. Inflacionistas ou estabilizadoras, as retroações são numerosas nos
fenômenos econômicos, sociais, políticos ou psicológicos.
112
4. Princípio do anel recursivo: supera a noção de regulação com a de autoprodução
e auto-‐organização. É um anel gerador, no qual os produtos e os efeitos são produtores
e causadores do que os produz. Nós, indivíduos, somos os produtos de um sistema de
reprodução oriundo do fundo dos tempos. mas esse sistema só pode reproduzir-‐se se nós
mesmos nos tomamos produtores pelo acasalamento. Os indivíduos humanos produzem
a sociedade nas -‐ e através de -‐ suas interações, mas a sociedade, enquanto todo
emergente, produz a humanidade desses indivíduos aportando-‐lhes a linguagem e a
cultura.
5. Princípio de auto-‐eco-‐organização (autonomia/dependência): os seres vivos
são auto-‐organizadores que se autoproduzem incessantemente, e através disso
despendem energia para salva-‐ guardar a própria autonomia. Como têm necessidade
de extrair energia, informação e organização no próprio meio ambiente, a
autonomia deles é inseparável dessa dependência, e torna-‐se im-‐ perativo concebê-‐
Ios como auto-‐eco-‐organizadores. O princípio de auto-‐eco-‐organização vale
evidentemente de maneira específica para os humanos, que desenvolvem a sua
autonomia na depen-‐ dência da cultura, e para as sociedades que dependem do meio
geo-‐ ecológico.
Um aspecto determinante da auto-‐eco-‐organização é que esta se regenera em
permanência a partir da morte de suas células,conforme a fórmula de Heráclito, "viver
de morte, morrer de vida", e que as duas ideias antagônicas de morte e de vida são aí
complementares, mesmo permanecendo antagônicas.
6. Princípio dialógico: vem justamente de ser ilustrado pela fórmula
heraclitiana. Une dois princípios ou noções devendo excluir um ao outro, mas que são
indissociáveis numa mesma realidade. Deve-‐se conceber uma dialógica
ordem/desordem/organização desde o nascimento do universo: a partir de
uma agitação calorífica (desordem) onde, em certas condições (encontros ao
acaso), princípios de ordem permitirão a constituição de núcleos, átomos, galáxias
e estrelas. Tem-‐se ainda essa dialógica quando da emergência da vida através
dos encontros entre macromolécuIas no interior de uma espécie de anel autoprodutor,
que terminará por se tornar auto-‐organização viva. Sob as formas mais diversas,
a dialógica entre a ordem, a desordem e a organização, através de inumeráveis
inter-‐retroações, está constantemente em ação nos mundos físico, biológico e
humano.
A dialógica permite assumir racionalmente a associação de noções contraditórias para
conceber um mesmo fenômeno complexo. Niels Bohr reconheceu, por exemplo, a
necessidade de ver as partículas físicas ao mesmo tempo como corpúsculos e como
ondas. Nós mesmos somos seres separados e autônomos, fazendo parte de duas
113
continuidades inseparáveis, a espécie e a sociedade. Quando se considera a espécie ou a
sociedade, o indivíduo desaparece; quando se considera o indivíduo, a espécie e a
sociedade desaparecem. O pensamento complexo assume dialogicamente os dois termos
que tendem a se excluir.
7. Princípio da reintrodução daquele que conhece em todo conhecimento: esse
princípio opera a restauração do sujeito e ilu-‐ mina a problemática cognitiva central: da
percepção à teoria ci-‐ entífica, todo conhecimento é uma reconstrução/tradução por um
espírito/cérebro numa certa cultura e num determinado tempo. Eis alguns dos princípios que guiam os procedimentos cognitivos do pensamento complexo. Não se
trata, de forma alguma, de um pensamento que expulsa a certeza com a incerteza, a separação com a
inseparabilidade, a lógica para autorizar-‐se todas as transgressões. A démarche consiste, ao contrário,
num ir e vir constantes entre certezas e incertezas, entre o elementar e o global, entre o separável e o
inseparável. Ela utiliza a lógica clássica e os princípios de identidade, de não-‐contradição, de dedução, de
indução, mas conhece-‐Ihes os limites e sabe que, em certos casos, deve-‐se transgredi-‐Ios. Não se trata
portanto de abandonar os princípios de ordem, de separabilidade e de lógica -‐ mas de integrá-‐Ios numa
concepção mais rica. Não se trata de opor um holismo global vazio ao reducionismo mutilante.
Trata-‐se de repor as partes na totalidade, de articular os princípios de ordem e de desordem, de
separação e de união, de autonomia e de dependência, em dialógica (complementares, concorrentes e
antagônicos) no universo. Em suma, o pensamento complexo não é o contrário do pensamento simplificador, mas
integra este; como diria Hegel, ele opera a união da simplicidade e da complexidade e, mesmo no
metassistema constituído, faz aparecer a sua própria simplicidade. O paradigma da complexidade pode
ser enunciado não menos simplesmente que o da simplificação: este impõe separar e reduzir; aquele
une enquanto distingue.
114
O pano de fundo filosófico Encontram-‐se, na história da filosofia ocidental e oriental, numerosos elementos e premissas de um
pensamento da complexidade. Desde a Antiguidade, o pensamento chinês funda-‐se sobre a relação
dialógica (complementar e antagônica) entre o yin e o yang e, segundo Lao Tsé, a união dos contrários
caracteriza a realidade. No século XVII, Fang Yizhi formula um verdadeiro princípio de
complexidade. No Ocidente, Heráclito estabeleceu a necessidade de associar termos contraditórios. Na
idade clássica, Pascal é o pensador chave da complexidade. Mais tarde. Kant pôs em evidência os limites
e as "aporias" da razão. Leibniz formula o princípio da unidade complexa da unidade do múltiplo.
Spinoza aporta a ideia de autoprodução do mundo. Em Hegel, essa au-‐ toconstituição torna-‐se o
romance épico no qual o espírito emerge da natureza para atingir a sua realização, e sua dialética,
prolongada pela de Marx, anuncia a dialógica. Nietzsche anunciou a crise dos fundamentos da certeza.
No metamarxismo, tem-‐se, com Adorno, Horkheimer e o Lukács tardio, não somente numerosos
elementos de uma crítica da razão clássica, mas muitos alimentos para uma concepção da
complexidade. No século XIX, enquanto a ciência ignorava o individual, o singular, o concreto e o histórico, a
literatura e singularmente o romance revelaram a complexidade humana, de Balzac a Dostoievski e
Proust. Na época contemporânea, o pensamento complexo elabora-‐se nos interstícios das disciplinas, a
partir de pensadores matemáticos (Wiener, von Neumann, von Foerster), especialistas em
termodinâmica (Prigogine), biofísicos (Atlan), filósofos (Castoriadis). As duas revoluções científicas do
século só podiam estimulá-‐lo. A primeira revolução introduz a incerteza com a termodinâmica, a física
quântica e a cosmofísica, desencadeando as reflexões epistemológicas de Popper, Kuhn, Holton, Lakatos.
Feyerabend; estes mostraram que a ciência não era a certeza, mas a hipótese; que uma teoria provada
não o era definitivamente, e permanecia "falseável", que havia do não-‐científico (postulados,
paradigmas, themata) no coração da própria cientificidade. A segunda revolução científica -‐ mais recente, ainda inacabada -‐, a revolução sistêmica, introduz a
organização nas ciências da terra e a ciência ecológica; ela se prolongará, sem dúvida, em revolução d.:
auto-‐eco-‐organização na biologia e na sociologia. O pensamento complexo é, portanto, essencialmente aquele que trata com a incerteza e consegue
conceber a organização. Apto a unir, contratualizar, globalizar, mas ao mesmo tempo a reconhecer o
singular, o individual e o concreto. O pensamento complexo não se reduz nem à ciência, nem à filosofia, mas permite a comunicação
115
entre elas, servindo-‐Ihes de ponte. O modo complexo de pensar não tem utilidade somente nos
problemas organizacionais, sociais e políticos, pois um pensamento que enfrenta a incerteza pode
esclarecer as estratégias no nosso mundo incerto; o pensamento que une pode iluminar uma
ética da religação ou da solidariedade. O pensamento da complexidade tem igualmente seus
prolongamentos existenciais ao postular a compreensão entre os homens.
116
Por uma reforma da universidade do pensamento
A complexidade exige uma reforma de pensamento, o que pressupõe mudar a universidade.
Como fazê-‐Ia? Há uma dupla missão: a universidade deve se adaptar à sociedade ou a
sociedade deve se adaptar à universidade? Todos adivinharão que recusarei a escolha e tentarei
ultrapassá-‐Ia de forma complexa. Ainda que tenha antecedentes em Bagdá e em Fez, a
universidade, como se disse com frequência, é o grande presente da Europa medieval à
Europa moderna. Em menos de dois séculos, uma constelação de universidades jorrou de Bolonha
a Upsala, de Coimbra a Praga. A universidade é conservadora, regeneradora, geradora.
Conserva, memoriza, integra, ritualiza um patrimônio cognitivo; regenera-‐o pelo reexame,
atualizando-‐o, transmitindo-‐o; gera saber e cultura que entram nessa herança. A esse título, a universidade tem uma missão e uma função transecular que, via presente, vai do
passado para o futuro; missão transnacional que guardou a despeito da tendência ao fechamento
nacionalista das nações modernas. E dispõe de uma autonomia que lhe permite realizar essa missão.
. Segundo os dois sentidos do termo conservação, o caráter conservador da universidade pode ser vital
ou estéril. A conservação é vital se ela significa salvaguarda e preservação, pois só se pode preparar
um futuro salvando um passado, e estamos num século em que múltiplas e potentes forças de
desintegração cultural atuam. Mas a conservação é estéril se dogmática, congelada, rígida. Assim, a
Sorbonne condenou todos os progressos científicos do século XVII, e a ciência moderna formou-‐se
em grande parte fora das universidades ao longo desse século. Mas a universidade soube responder ao desafio do desenvolvimento das ciências operando sua
grande mutação no século XIX. Ela se laicizou, isto é, abriu-‐se à grande problematização generalizada
e fundamental oriunda do Renascimento, que diz respeito ao mundo, à natureza, à vida, ao homem,
a Deus. A universidade tomou-‐se o lugar por excelência da problematização, recolhendo nela a
essência da cultura européia moderna, e através disso se inscreveu mais profundamente na sua
missão transecular, reatando com a antiguidade grega e romana, e inclinando-‐se para um futuro
cognitivo a descobrir ou conquistar. A primeira mutação institucional se opera em Berlim, em 1809, quando Humboldt conta com o apoio
de um "déspota esclarecido". A laicização é a base da reforma; ela estabelece a autonomia da
117
universidade em relação à religião e ao poder; instaura a liberdade interior (o princípio da livre
consciência); instala de maneira geral a problematização.
A reforma introduz as ciências modernas, com a criação de departamentos que vão se multiplicar
com as novas ciências. A universidade vai desde então fazer coexistir -‐ infelizmente apenas
coexistir, e não comunicar -‐ duas culturas, a cultura das humanidades c a cultura da cientificidade. Ao criar os departamentos, Humboldt tinha muito bem visto o caráter transecular da integração
das ciências na universidade. Para ele, a universidade não podia ter por vocação direta uma
formação profissional (conveniente para as escolas técnicas), mas uma vocação indireta pela
formação de uma atitude de pesquisa. De onde a dupla função paradoxal da universidade:
adaptar-‐se à modernidade científica e integrá-‐Ia, responder às necessidades fundamentais de
formação, fornecer professores às novas profissões técnicas e outras... mas também fornecer
um ensino metaprofissional, metatécnico. Aqui, reencontramos a missão transecular pela qual a universidade conclama a sociedade a adotar
sua mensagem e suas normas:
1. Inocular na sociedade uma cultura que não é feita para as formas provisórias ou efêmeras do hic et nunc, mas que é, contudo, feita para ajudar os cidadãos a
viver o destino hic et nunc.
2. Defender, ilustrar e promover no mundo social e político os valores intrínsecos à cultura universitária: autonomia da consciência, problematização (com sua
consequência, que é a manutenção da pesquisa aberta e plural), primado da verdade sobre a
utilidade, a ética do conhecimento.
3. De onde a vocação expressa na dedicatória do frontão da
Universidade de Heidelberg: "Ao espírito vivo". Há complementaridade e antagonismo entre as duas missões: adaptar-‐se à sociedade e adaptar a si a
sociedade -‐ uma remete a outra, num círculo que deveria ser produtivo. Não se trata somente de
modernizar a cultura, trata-‐se de culturalizar a modernidade.
118
Os desafios do século XX
O século XX impôs vários desafios à dupla missão.
Há antes de tudo a pressão superadaptativa que força a conformar o ensino e
a pesquisa às demandas econômicas, técnicas, administrativas do momento, a
se conformar aos últimos métodos, às últimas receitas no mercado, a reduzir o
ensino geral, a marginalizar a cultura humanista. Ora, sempre na vida e na
história, a superadaptação a condições dadas foi não signo de vitalidade, mas
anúncio de senilidade e de morte, pela perda da substância inventiva e
criadora.
Existe, além disso, a compartimentação e a disjunção entre cultura humanista
e cultura científica, acompanhadas pela compartimentação entre as diferentes
ciências e disciplinas. A não comunicação entre as duas culturas determina
graves para ambas. A cultura humanista revitaliza as obras do passado; a
cultura científica só valoriza as aquisições do presente. A cultura humanista é
uma cultura geral que, via filosofia, ensaio, romance, expõe os problemas
humanos fundamentais e reclama a reflexão. A cultura científica suscita um
pensamento fadado à teoria, mas não uma reflexão sobre o destino humano e
sobre o futuro da própria ciência. A fronteira entre as duas culturas atravessa,
de um extremo a outro, a sociologia, mas esta se deixa esquartejar em vez de
tentar uma ponte de ligação.
Tudo isso exige uma reforma do pensamento. O saber medieval era
demasiado bem organizado e podia tomar a forma de uma "suma" coerente. O
saber contemporâneo é disperso, separado,fechado. Já há uma reorganização
do saber em curso. A ecologia científica, as ciências da terra, a cosmologia, etc,
são ciências pluridisciplinares que têm por objeto não um território ou um
setor, mas um sistema complexo: o ecossistema e, mais amplamente, a biosfera
para a ecologia, o sistema terra para as ciências da terra e, para a cosmologia, a
estranha propensão do universo a formar e arruinar os sistemas galácticos e
solares.
Por toda parte, se reconhece a necessidade de
interdisciplinaridade,esperando o reconhecimento da relevância da
transdisciplinaridade, seja para o estudo da saúde, da velhice, da juventude,
das cidades... mas a transdisciplinaridade só é uma solução no caso de uma
reforma do pensamento. É preciso substituir um pensamento que separa por
119
um pensamento que une, e essa ligação exige a substituição da causalidade uni
linear e unidimensional por uma causalidade em círculo e multirreferencial,
assim como a troca da rigidez da lógica clássica por uma dialógica capaz de
conceber noções ao mesmo tempo complementares e antagônicas; que o
conhecimento da integração das partes num todo seja completada pelo
reconhecimento da integração do todo no interior das partes.
A reforma do pensamento permitirá frear a regressão democrática que suscita,
em todos os campos da política, a expansão da autoridade dos experts,
especialistas de todos os tipos, estreitando progressivamente a competência
dos cidadãos, condenados à aceitação ignorante das decisões dos pretensos
conhecedores, mas de fato praticantes de uma inteligência cega, posto que par-‐
celar e abstrata, evitando a global idade e a contextualização dos problemas. O
desenvolvimento de uma democracia cognitiva só é possível numa
reorganização do saber, a qual reclama uma reforma do pensamento capaz de
permitir não somente a separação para conhecer,mas a ligação do que está
separado.
Trata-‐se de uma reforma muito mais profunda e ampla do que a de uma
democratização do ensino universitário e da generalização da condição de
estudante. Trata-‐se de uma reforma não programática, mas paradigmática, que
diz respeito à nossa atitude em relação à organização do conhecimento.
Toda reforma desse tipo suscita um paradoxo: não se pode reformar a
instituição (as estruturas universitárias) sem a reforma anterior das mentes;
mas não é possível reformar as mentes sem antes reformar a instituição. .
Eis uma impossibilidade lógica, mas é justamente desse tipo de
impossibilidade lógica que a vida zomba. Quem educará os educadores? É
necessário que eles se autoeduquem, e se eduquem prestando atenção às
gritantes necessidades do século, as quais são encarnadas também pelos
estudantes.
Certo, a reforma se anunciará a partir de iniciativas marginais, frequentemente
aberrantes; mas caberá à própria universidade realizar a reforma. No seu
relatório anual de 1986, o reitor de Harvard declarou: "Nem o jogo da
concorrência, nem os esforços deliberados dos reformadores externos foram
capazes de garantir um constante nível elevado de atividades. É a Universidade
que deve encarregar-‐se dessa tarefa vital".
120
Sim, precisa-‐se de ideias externas, críticas e contestações de fora, mas é
fundamental, sobretudo, a reflexão interna. A reforma virá do interior, através
do retomo às fontes do pensamento europeu moderno: a problematização.
Hoje, não basta problematizar o homem, deve-‐se problematizar a ciência, a
técnica -‐ o que acreditávamos ser a razão e era, com frequência. uma abstrata
racionalização. Uma psicologia cognitiva elementar nos lembra algumas evidências que não
deveríamos nunca esquecer:
1. O cérebro humano é, como o dizia H. Simon, um
a.s.p., General Setting Problems e também General Solving
Problems. Mais potente é a sua atitude geral, e maior será a sua
atitude para tratar de problemas particulares.
2. O conhecimento progride, principalmente, não por
sofisticação na formalização e na abstração, mas através da
capacidade em contexlualizar e em globalizar. Essa capacidade
necessita de uma cultura geral e diversificada, e, estimulada essa
cultura, o pleno emprego da inteligência geral, isto é, o espírito
vivo.
Eis a perspectiva para o novo milênio. A universidade deve
ultrapassar-‐ se para se reencontrar.
121
Edgar Morin
Introdução ao pensamento complexo
Tradução de Eliane Lisboa
122
Prefácio
Pedimos legitimamente ao pensamento que dissipe as brumas e as trevas, que
ponha ordem e clareza no real, que revele as leis que o governam. A palavra
complexidade só pode exprimir nosso incômodo, nossa confusão, nossa
incapacidade para definir de modo simples, para nomear de modo claro, para
ordenar nossas ideias.
O conhecimento científico também foi durante muito tempo e com frequência ainda
continua sendo concebido como tendo por missão dissipar a aparente complexidade
dos fenômenos a fim de revelar a ordem simples a que eles obedecem.
Mas se resulta que os modos simplificadores de conhecimento mutilam mais do que
exprimem as realidades ou os fenômenos de que tratam, torna-‐se evidente que eles
produzem mais cegueira do que elucidação, então surge o problema: como considerar
a complexidade de modo não simplificador? Este problema, entretanto, não pode se
impor de imediato. Ele deve provar sua legitimidade, porque a palavra complexidade
não tem por trás de si uma nobre herança filosófica, científica ou epistemológica.
Ela suporta, ao contrário, uma pesada carga semântica, pois
que traz em seu seio confusão, incerteza, desordem. Sua primeira definição não pode
fornecer nenhuma elucidação: é complexo o que não pode se resumir numa palavra-‐
chave, o que não pode ser reduzido a uma lei nem a uma ideia simples. Em outros
termos, o complexo não pode se resumir à palavra complexidade, referir-‐se a uma lei
da complexidade, reduzir-‐se à ideia de complexidade. Não se poderia fazer da
complexidade algo que se definisse de modo simples e ocupasse o lugar da
simplicidade. A complexidade é uma palavra-‐problema e não uma palavra-‐solução.
Não seria possível justificar num prefácio a necessidade do pensamento complexo.
Uma tal necessidade só pode se impor progressivamente ao longo de um percurso onde
surgiriam primeiro os limites, as insuficiências e as carências do pensamento
simplificador, depois as condições nas quais não se pode escamotear o desafio do
complexo. Em seguida será preciso perguntar-‐se se há complexidades diferentes umas
das outras e se elas podem ser unificadas num complexo dos complexos. Será preciso,
enfim, ver se há um modo de pensar, ou um método capaz de responder ao desafio da
complexidade. Não se trata de retomar a ambição do pensamento simples que é a de
controlar e dominar o real. Trata-‐se de exercer um pensamento capaz de lidar com o
real, de com ele dialogar e negociar.
Vai ser necessário desfazer duas ilusões que desviam as mentes do problema
do pensamento complexo.
123
A primeira é acreditar que a complexidade conduz à eliminação da
simplicidade. A complexidade surge, é verdade, lá onde o pensamento simplificador
falha, mas ela integra em si tudo o que põe ordem, clareza, distinção, precisão no
conhecimento. Enquanto o pensamento simplificador desintegra a complexidade do
real, o pensamento complexo integra o mais possível os modos simplificadores de
pensar, mas recusa as consequências mutiladoras, redutoras, unidimensionais e
finalmente ofuscantes de uma simplificação que se considera reflexo do que há de
real na realidade.
A segunda ilusão é confundir complexidade e completude.
É verdade, a ambição do pensamento complexo é dar conta das articulações entre os
campos disciplinares que são desmembrados pelo pensamento disjuntivo (um dos
principais aspectos do pensa-‐ mento simplificador); este isola o que separa, e oculta
tudo o que religa, interage, interfere. Neste sentido o pensamento complexo aspira ao
conhecimento multidimensional. Mas ele sabe desde o começo que o conhecimento
completo é impossível: um dos axiomas da complexidade é a impossibilidade, mesmo
em teoria, de uma onisciência. Ele faz suas as palavras de Adorno: “A totalidade
é a não-‐verdade”. Ele implica o reconhecimento de um princípio de incompletude e de
incerteza. Mas traz também em seu princípio o reconhecimento dos laços entre as
entidades que nosso pensa-‐ mento deve necessariamente distinguir, mas não isolar
umas das outras. Pascal tinha colocado, com razão, que todas as coisas são “causadas
e causantes, ajudadas e ajudantes, mediatas e imediatas, e que todas (se interligam)
por um laço natural e insensível que liga as mais afastadas e as mais diferentes”. O
pensamento com-‐ plexo também é animado por uma tensão permanente entre a
aspiração a um saber não fragmentado, não compartimentado, não redutor, e o
reconhecimento do inacabado e da incompletude de qual-‐ quer conhecimento.
Esta tensão animou toda a minha vida.
Em toda a minha vida, jamais pude me resignar ao saber fragmentado, pude isolar
um objeto de estudo de seu contexto, de seus antecedentes, de seu devenir. Sempre
aspirei a um pensamento multidimensional. Jamais pude eliminar a contradição
interna. Sem-‐ pre senti que verdades profundas, antagônicas umas às outras, eram para
mim complementares, sem deixarem de ser antagônicas. Jamais quis reduzir à força a
incerteza e a ambiguidade.
Desde meus primeiros livros confrontei-‐me com a complexidade, que se tornou o
denominador comum de tantos trabalhos diversos que a muitos pareceram dispersos.
Mas a palavra complexidade mesmo não me vinha à mente, foi preciso que ela
chegasse a mim, no final dos anos 60, através da teoria da informação, da cibernética,
da teoria dos sistemas, do conceito de auto-‐organização, para que emergisse sob
minha pena, ou, melhor, sobre meu teclado. Ela então se desvinculou do sentido
comum (complicação, confusão) para trazer em si a ordem, a desordem e a
124
organização, e no seio da organização o uno e os múltiplos; estas noções
influenciaram umas às outras, de modo ao mesmo tempo complementar e antagônico;
colocaram-‐se em interação e em constelação. O conceito de complexidade formou-‐se,
cresceu, estendeu suas ramificações, passou da periferia ao centro de meu discurso,
tornou-‐se macroconceito, lugar crucial de interrogações, ligando desde então a si o nó
górdio do problema das relações entre o empírico, o lógico e o racional. Este processo
coincide com a gestação de O Método, que se inicia em 1970; a organização complexa,
e mesmo hipercomplexa, está visivelmente no centro direcionador de meu livro O
paradigma perdido (1973). O problema lógico da complexidade foi objeto de um
artigo publicado em 1974 (Para além da complicação, a complexidade, retomado na
primeira edição de Ciência com consciência). O Método é e será de fato o método da
complexidade.
Este livro, constituído de um reagrupamento de textos diversos, é uma introdução à
problemática da complexidade. Se a complexidade não é a chave do mundo, mas o
desafio a enfrentar, por sua vez o pensamento complexo não é o que evita ou suprime o
desafio, mas o que ajuda a revelá-‐lo, e às vezes mesmo a superá-‐lo.
Edgar Morin
125
1. A inteligência cega*
A tomada de consciência
Adquirimos conhecimentos inauditos sobre o mundo físico, biológico, psicológico,
sociológico. Na ciência há um predomínio cada vez maior dos métodos de verificação
empírica e lógica. As luzes da Razão parecem fazer refluir os mitos e trevas para as
profundezas da mente. E, no entanto, por todo lado, erro, ignorância e cegueira progridem
ao mesmo tempo que os nossos conhecimentos.
Necessitamos de uma tomada de consciência radical:
1. A causa profunda do erro não está no erro de fato (falsa percepção) ou no erro lógico
(incoerência), mas no modo de organização de nosso saber num sistema de ideias (teorias,
ideologias);
2. Há uma nova ignorância ligada ao desenvolvimento da própria ciência;
3. Há uma nova cegueira ligada ao uso degradado da razão;
4. As ameaças mais graves em que incorre a humanidade estão ligadas ao progresso
cego e incontrolado do conhecimento (armas termonucleares, manipulações de
todo tipo, desregramento ecológico, etc.).
Gostaria de mostrar que esses erros, ignorâncias, cegueiras e perigos têm um caráter
comum resultante de um modo mutilador de organização do conhecimento, incapaz
de reconhecer e de apreender a complexidade do real.
O problema da organização do conhecimento
Qualquer conhecimento opera por seleção de dados significativos e rejeição de
dados não significativos: separa (distingue ou disjunta) e une (associa, identifica);
hierarquiza (o principal, o secundário) e centraliza (em função de um núcleo de
noções-‐chaves); estas operações, que se utilizam da lógica, são de fato comandadas por
princípios “supralógicos” de organização do pensamento ou paradigmas, princípios
ocultos que governam nossa visão das coisas e do mundo sem que tenhamos
126
consciência disso.
Assim, no momento incerto da passagem da visão geocêntrica (ptolomaica) à
visão heliocêntrica (copernicana) do mundo, a primeira oposição entre as duas
visões residia no princípio de seleção/rejeição dos dados: os geocêntricos
rejeitavam como não significativos os dados inexplicáveis segundo sua concepção,
enquanto que os outros se baseavam nestes dados para conceber o sistema
heliocêntrico. O novo sistema engloba os mesmos constituintes do antigo (os
planetas), utiliza com frequência os antigos cálculos. Mas a visão do mundo mudou
totalmente. A simples permutação entre Terra e Sol foi muito mais do que uma
permutação já que foi uma mudança do centro (a Terra) em elemento periférico e de
um elemento periférico (o Sol) em centro.
Tomemos agora um exemplo no coração mesmo dos problemas antropossociais
de nosso século: o do sistema concentrador (Gulag), na União Soviética. Mesmo
reconhecido, de facto, o Gulag pôde ser empurrado à periferia do socialismo soviético,
como fenômeno negativo secundário e temporário, em razão essencialmente do cerco
capitalista e das dificuldades iniciais da construção do socialismo. Ao contrário, pode-‐se
considerar o Gulag como o núcleo central do sistema, revelador de sua essência
totalitária.
Vê-‐se, pois, que, conforme as operações de centralismo, de hierarquização, de
disjunção ou de identificação, a visão da URSS muda totalmente.Esse exemplo nos mostra
que é muito difícil pensar um fenômeno como “a natureza da URSS”. Não porque nossos
pré-‐julga mentos, nossas “paixões” nossos interesses estejam em jogo por trás de nossas
ideias, mas porque não dispomos de meios para conceber a complexidade do problema.
Trata-‐se de evitar a identificação a priori (que reduz a noção de URSS à de Gulag),
assim como a disjunção a priori que dissocia, como estranha uma à outra, a noção de
socialismo soviético e a de sistema concentrador. Trata-‐se de evitar a visão unidimensional,
abstrata. Para isto é preciso, antes de mais nada, tomar consciência da natureza e das
consequências dos paradigmas que mutilam o conhecimento e desfiguram o real.
A patologia do saber, a inteligência cega
Vivemos sob o império dos princípios de disjunção, de redução e de abstração cujo conjunto
constitui o que chamo de o “paradigma de simplificação”. Descartes formulou este paradigma
essencial do Ocidente, ao separar o sujeito pensante (ego cogitans) e a coisa entendida (res
extensa), isto é, filosofia e ciência, e ao colocar como princípio de verdade as ideias “claras e
distintas”, isto é, o próprio pensa-‐ mento disjuntivo. Este paradigma, que controla a
aventura do pensa-‐ mento ocidental desde o século XVII, sem dúvida permitiu os maiores
progressos ao conhecimento científico e à reflexão filosófica; suas consequências nocivas
últimas só começam a se revelar no século XX.
127
Tal disjunção, rareando as comunicações entre o conheci-‐ mento científico e a
reflexão filosófica, devia finalmente privar a ciência de qualquer possibilidade de ela
conhecer a si própria, de refletir sobre si própria, e mesmo de se conceber
cientificamente. Mais ainda, o princípio de disjunção isolou radicalmente uns dos
outros os três grandes campos do conhecimento científico: a física, a biologia e a
ciência do homem.
A única maneira de remediar esta disjunção foi uma outra simplificação: a redução
do complexo ao simples (redução do biológico ao físico, do humano ao biológico). Uma
hiperespecialização devia, além disso, despedaçar e fragmentar o tecido complexo das
realidades, e fazer crer que o corte arbitrário operado no real era o próprio real. Ao
mesmo tempo, o ideal do conhecimento científico clássico era descobrir, atrás da
complexidade aparente dos fenômenos, uma Ordem perfeita legiferando uma máquina
perpétua (o cosmos), ela própria feita de microelementos (os átomos) reunidos de
diferentes modos em objetos e sistemas.
Tal conhecimento, necessariamente, baseava seu rigor e sua operacionalidade na
medida e no cálculo; mas, cada vez mais, a matematização e a formalização
desintegraram os seres e os entes para só considerar como únicas realidades as fórmulas e
equações que governam as entidades quantificadas. Enfim, o pensamento simplificador é
incapaz de conceber a conjunção do uno e do múltiplo (unitat-‐ multiplex). Ou ele
unifica abstratamente ao anular a diversidade, ou, ao contrário, justapõe a diversidade
sem conceber a unidade.
Assim, chega-‐se à inteligência cega. A inteligência cega destrói os conjuntos e as
totalidades, isola todos os seus objetos do seu meio ambiente. Ela não pode conceber o
elo inseparável entre o observador e a coisa observada. As realidades-‐chaves são
desintegra-‐ das. Elas passam por entre as fendas que separam as disciplinas. As
disciplinas das ciências humanas não têm mais necessidade da noção de homem. E os
pedantes cegos concluem então que o homem não tem existência, a não ser ilusória.
Enquanto que os mídias produzem a baixa cretinização, a Universidade produz a alta
cretinização. A metodologia dominante produz um obscurantismo acrescido, já que não
há mais associação entre os elementos disjuntos do saber, não há possibilidade de
registrá-‐los e de refleti-‐los.
Aproximamo-‐nos de uma mutação inaudita no conhecimento: este é cada vez menos
feito para ser refletido e discutido pelas mentes humanas, cada vez mais feito para ser
registrado em memórias informacionais manipuladas por forças anônimas, em
primeiro lugar os Estados. Ora, esta nova, maciça e prodigiosa ignorância é ela própria
ignorada pelos estudiosos. Estes, que pratica-‐ mente não dominam as consequências
de suas descobertas, sequer
controlam intelectualmente o sentido e a natureza de sua pesquisa.
Os problemas humanos são entregues, não só a este obscurantismo científico que
128
produz especialistas ignaros, mas também a doutrinas obtusas que pretendem
monopolizar a cientificidade (após o marxismo althusseriano, o econocratismo liberal),
a ideias-‐chaves ainda mais pobres por sua pretensão de abrir todas as portas (o desejo, a
mimese, a desordem, etc.), como se a verdade estivesse fechada num cofre-‐forte de que
bastaria possuir a chave, e o ensaísmo não verificado partilha o terreno com o
cientismo limitado.
Infelizmente, pela visão mutiladora e unidimensional, paga-‐ se bem caro nos
fenômenos humanos: a mutilação corta na carne, verte o sangue, expande o
sofrimento. A incapacidade de conceber a complexidade da realidade antropossocial,
em sua microdimensão (o ser individual) e em sua macrodimensão (o conjunto da
humanidade planetária), conduz a infinitas tragédias e nos conduz à tragédia
suprema. Dizem-‐nos que a política “deve” ser simplificadora e maniqueísta. Sim, claro,
em sua concepção manipuladora que utiliza as pulsões cegas. Mas a estratégia política
requer o conhecimento complexo, porque ela se constrói na ação com e contra o
incerto, o acaso, o jogo múltiplo das interações e retroações.
A necessidade do pensamento complexo
O que é a complexidade? A um primeiro olhar, a complexidade é um tecido
(complexus: o que é tecido junto) de constituintes heterogêneas inseparavelmente
associadas: ela coloca o paradoxo do uno e do múltiplo. Num segundo momento, a
complexidade é efetivamente o tecido de acontecimentos, ações, interações,
retroações, determinações, acasos, que constituem nosso mundo fenomênico. Mas
então a complexidade se apresenta com os traços inquietantes do emaranhado, do
inextricável, da desordem, da ambiguidade, da incerteza... Por isso o conhecimento
necessita ordenar os fenômenos rechaçando a desordem, afastar o incerto, isto é,
selecionar os elementos da ordem e da certeza, precisar, clarificar, distinguir,
hierarquizar... Mas tais operações, necessárias à
inteligibilidade, correm o risco de provocar a cegueira, se elas eliminam os outros
aspectos do complexus; e efetivamente, como eu o indiquei, elas nos deixaram cegos.
Ora, a complexidade chegou a nós, nas ciências, pelo mesmo caminho que a tinha
expulsado. O próprio desenvolvimento da ciência física, que se consagrava a revelar a
Ordem impecável do mundo, seu determinismo absoluto e perpétuo, sua obediência a
uma Lei
única e sua constituição de uma forma original simples (o átomo)
desembocou finalmente na complexidade do real. Descobriu-‐se no universo físico um
princípio hemorrágico de degradação e de desordem (segundo princípio da
termodinâmica); depois, no que se supunha ser o lugar da simplicidade física e lógica,
129
descobriu-‐se a extrema complexidade microfísica; a partícula não é um primeiro tijolo,
mas uma fronteira sobre uma complexidade talvez inconcebível; o cosmos não é uma
máquina perfeita, mas um processo em vias de desintegração e de organização ao
mesmo tempo.
Finalmente, viu-‐se que o caminho não é uma substância, mas um fenômeno de auto-‐eco-‐
organização extraordinariamente com-‐ plexo que produz autonomia. Em função disso, é
evidente que os fenômenos antropossociais não poderiam responder a princípios de
inteligibilidade menos complexos do que estes requeridos desde então para os
fenômenos naturais. Precisamos enfrentar a complexidade antropossocial, e não
dissolvê-‐la ou ocultá-‐la.
A dificuldade do pensamento complexo é que ele deve enfrentar o emaranhado (o jogo
infinito das inter-‐retroações, a solidariedade dos fenômenos entre eles, a bruma, a
incerteza, a contra-‐ dição. Mas podemos elaborar algumas das ferramentas conceituais,
alguns dos princípios para esta aventura, e podemos entrever o semblante do novo
paradigma de complexidade que deveria emergir.
Já indiquei, nos dois volumes do O Método1, algumas das ferramentas conceituais que
podemos utilizar. Assim, no paradigma de disjunção/redução/unidimensionalização,
seria preciso substituir um paradigma de distinção/conjunção, que permite
distinguir sem disjungir, de associar sem identificar ou reduzir. Este paradigma
comportaria um princípio dialógico e translógico, que integraria a lógica clássica sem
deixar de levar em conta seus limites de facto (problemas de contradições) e de jure
(limites do formalismo). Ele traria em si o princípio do Unitas multiplex, que escapa à
unidade abstrata do alto (holismo) e do baixo (reducionismo).
Meu propósito aqui não é enumerar os “mandamentos” do pensamento complexo
que tentei apresentar2. É sensibilizar para as enormes carências de nosso
pensamento, e compreender que um pensamento mutilador conduz necessariamente a
ações mutilantes.
É tomar consciência da patologia contemporânea do pensamento.
A antiga patologia do pensamento dava uma vida independente aos mitos e aos deuses que
criava. A patologia moderna da mente está na hipersimplificação que não deixa ver a
complexidade do real. A patologia da ideia está no idealismo, onde a ideia oculta a
realidade que ela tem por missão traduzir e assumir como a única real. A doença da teoria
está no doutrinarismo e no dogmatismo, que fecham a teoria nela mesma e a enrijecem. A
patologia da razão é a racionalização que encerra o real num sistema de ideias coerente,
mas parcial e unilateral, e que não sabe que uma parte do real é irracionalizável, nem que
a racionalidade tem por missão dialogar com o irracionalizável.
Ainda estamos cegos ao problema da complexidade. As disputas epistemológicas
entre Popper, Kuhn, Lakatos, Feyerabend, etc., não fazem menção a ele3. Ora, esta
cegueira faz parte de nossa barbárie. Precisamos compreender que continuamos na
130
era bárbara das ideias. Estamos ainda na pré-‐história do espírito humano. Só o
pensamento complexo nos permitirá civilizar nosso conhecimento.
2 E. Morin, Ciência com consciência, Paris, Fayard, 1982. Nova edição, col. “Points”, Le Seuil, 1990, p. 304-‐9. 3 Entretanto, o filósofo das ciências, Bachelard, tinha descoberto que o simples não existe: só o que há é o simplificado. A ciência constrói o objeto extraindo-‐o de seu meio complexo para pô-‐lo em situações experimentais não complexas. A ciência não é o estudo do universo simples, é uma simplificação heurística necessária para desencadear certas propriedades, até mesmo certas leis. Georges Lukács, o filósofo marxista, dizia na sua velhice, criticando sua própria visão dogmática: “O complexo deve ser concebido como o primeiro elemento existente. Daí resulta que é preciso primeiro examinar o complexo enquanto com-‐ plexo e passar em seguida a seus elementos e processos elementares”.
131
O Manifesto da Transdisciplinaridade8
Basarab Nicolescu
Amanhã será tarde demais
Duas verdadeiras revoluções atravessaram este século: a revolução quântica
e a revolução informática.
A revolução quântica poderia mudar radical e definitivamente nossa visão do
mundo. E, no entanto, desde o começo do século XX nada aconteceu. Os massacres
dos homens pêlos homens aumentam sem cessar.
A antiga visão continua senhora deste mundo. De onde vem esta cegueira? De
onde vem este desejo perpétuo de fazer o novo com o antigo? A novidade irredutível
da visão quântica continua pertencendo a uma pequena elite de cientistas de ponta. A
dificuldade de transmissão de uma nova linguagem hermética — a linguagem
matemática — é, sem dúvida, um obstáculo considerável; porém não intransponível.
De onde vem este desprezo pela Natureza, que se pretende, sem nenhum argumento
sério, muda e impotente no plano do sentido de nossa vida?
A revolução informática, que se desenrola diante de nossos olhos maravilhados
e inquietos, poderia levar a uma grande liberação do tempo, a ser assim consagrado à
nossa vida e não, como para a maioria dos seres sobre esta Terra, à nossa
sobrevivência. Ela poderia levar a uma partilha de conhecimentos entre todos os
humanos, prelúdio de uma riqueza planetária compartilhada. Mas, aí também, nada
acontece. Os comerciantes apressam-‐se para colonizar o espaço cibernético e profetas
incontáveis só nos falam dos perigos iminentes. Porque somos tão inventivos, em
todas as situações, em descobrir todos os perigos possíveis e imaginários, mas tão
pobres quando se trata de propor, de construir, de erguer, de fazer emergir o que é
novo e positivo, não num futuro distante, mas no presente, aqui e agora?
O crescimento contemporâneo dos saberes não tem precedentes na história
humana. Exploramos escalas outrora inimagináveis: do infinitamente pequeno ao
infinitamente grande, do infinitamente curto ao infinitamente longo. A soma dos
conhecimentos sobre o Universo e os sistemas naturais, acumulados durante o século
XX, ultrapassa em muito tudo aquilo que pôde ser conhecido durante todos os outros
séculos reunidos. Como se explica que quanto mais sabemos do que somos feitos,
menos compreendemos quem somos? Como se explica que a proliferação acelerada
8 NICOLESCU, Basarab. O Manifesto da Transdisciplinaridade. Triom : São Paulo, 1999.
132
das disciplinas torne cada vez mais ilusória toda unidade do conhecimento? Como se
explica que quanto mais conheçamos o universo exterior, mais o sentido de nossa vida
e de nossa morte seja deixado de lado como insignificante e até absurdo? A atrofia do
ser interior seria o preço a ser pago pelo conhecimento científico? A felicidade
individual e social, que o cientificismo nos prometia, afasta-‐se indefinidamente como
uma miragem.
Dirão a nós que a humanidade sempre esteve em crise e que sempre encontrou
os meios para sair dela. Esta afirmação era verdadeira outrora. Hoje, equivale a uma
mentira. Pois, pela primeira vez em sua história, a humanidade tem a possibilidade de
destruir a si mesma inteiramente, sem nenhuma possibilidade de retorno.
Esta destruição potencial de nossa espécie tem uma tripla dimensão: material,
biológica e espiritual. Na era da razão triunfante, o irracional é mais atuante que
nunca.
As armas nucleares acumuladas na superfície de nosso planeta podem destruí-‐
lo completamente várias vezes, como se uma única vez não bastasse. A guerra branda
substitui a guerra fria. Ontem as armas eram zelosamente guardadas por algumas
potências; hoje passeia-‐se com suas peças desmontadas debaixo do braço de um lado
para outro do planeta e amanha estarão à disposição de qualquer pequeno tirano.
Qual seria o milagre da dialética que faz com que sempre se pense na guerra quando
falamos da paz? De onde vem a loucura assassina do ser humano? De onde vem sua
misteriosa e imensa capacidade de esquecer? Milhões de mortos por nada, sob nossos
olhos insensíveis, hoje, em nome de ideologias passageiras e dos inúmeros conflitos
cujo motivo profundo nos escapa.
Pela primeira vez em sua história, o ser humano pode modificar o patrimônio
genético de nossa espécie. Na falta de uma nova visão do mundo, deixar o barco correr
equivale a uma autodestruição biológica potencial. Não avançamos nem um milímetro
no que diz respeito às grandes questões metafísicas, mas nos permitimos intervir nas
entranhas de nosso ser biológico. Em nome do que?
Sentados em nossa cadeira, podemos viajar à velocidade máxima permitida
pela Natureza: a velocidade da luz. O tamanho da Terra reduz-‐se progressivamente a
um ponto: o centro de nossa consciência. Devido ao casamento insólito entre nosso
próprio corpo e a máquina informática, podemos modificar livremente nossas
sensações até criarmos uma realidade virtual, aparentemente mais verdadeira que a
realidade de nossos órgãos dos sentidos. Nasceu assim, imperceptivelmente, um
instrumento de manipulação das consciências em escala planetária. Em mãos
imundas, este instrumento pode levar à destruição espiritual de nossa espécie.
133
Esta tripla destruição potencial — material, biológica e espiritual — é, na
verdade, o produto de uma "tecnociência" cega, mas triunfante, que só obedece à
implacável lógica da eficácia pela eficácia. Mas como pedir a um cego que enxergue?
Paradoxalmente, tudo está estabelecido para nossa autodestruição, mas tudo
também está estabelecido para uma mutação positiva comparável às grandes
reviravoltas da História. O desafio da autodestruição tem sua contrapartida na
esperança do autonascimento. O desafio planetário da morte tem sua contrapartida
numa consciência visionária, transpessoal e planetária, que se alimenta do
crescimento fabuloso do saber. Não sabemos para que lado penderá a balança. Por
isto é necessário agir com rapidez, agora. Pois amanhã será tarde demais.
Grandeza e decadência do cientificismo
Desde a noite dos tempos a mente humana permanece obcecada pela ideia de
leis e de ordem, que dão sentido ao Universo onde vivemos e à nossa própria vida. Os
antigos inventaram assim a noção metafísica, mitológica e metafórica de cosmo. Eles
se acomodavam muito bem a uma Realidade multidimensional, povoada de diversas
entidades, dos homens aos deuses, passando eventualmente por toda uma série de
intermediários. Estas diferentes entidades viviam em seu próprio mundo, regido por
suas próprias leis, mas estavam interligadas por leis cósmicas comuns geradoras de
uma ordem cósmica comum. Assim os deuses podiam intervir nos assuntos dos
homens, os homens eram às vezes semelhantes aos deuses e tudo tinha um sentido,
ora mais, ora menos escondido, mas ainda assim um sentido.
A ciência moderna nasceu de uma ruptura brutal em relação à antiga visão de
mundo. Ela está fundamentada numa ideia, surpreendente e revolucionária para a
época, de uma separação total entre o indivíduo conhecedor e a Realidade, tida como
completamente independente ao indivíduo que a observa. Mas, ao mesmo tempo, a
ciência moderna estabelecia três postulados fundamentais, que prolongavam, a um
grau supremo, no plano da razão, a busca de leis e da ordem:
1. A existência de leis universais, de caráter matemático.
2. A descoberta destas leis pela experiência cientifica.
3. A reprodutibilidade perfeita dos dados experimentais.
Uma linguagem artificial, diferente da linguagem da tribo — as matemáticas —
era assim elevada, por Galileu, ao nível de linguagem comum entre Deus e os homens.
134
Os sucessos extraordinários da física clássica, de Galileu, Kepler e Newton até
Einstein, confirmaram a justeza destes três postulados. Ao mesmo tempo, eles
contribuíram para a instauração de um paradigma da simplicidade, que se tornou
predominante na entrada do século XIX. A física clássica conseguiu construir, ao longo
de dois séculos, uma visão do mundo apaziguante e otimista, pronto a acolher, no
plano individual e social, o surgimento da ideia de progresso.
A física clássica está fundamentada na ideia de continuidade, de acordo com a
evidência fornecida pelos órgãos dos sentidos: não se pode passar de um ponto a
outro do espaço e do tempo sem passar por todos os pontos intermediários. Além
disso, os físicos já tinham à sua disposição um aparelho matemático fundado na
continuidade: o cálculo infinitesimal de Leibniz e Newton.
A ideia de continuidade está intimamente ligada a um conceito chave da física
clássica: a causalidade local. Todo fenômeno físico poderia ser compreendido por um
encadeamento contínuo de causas e efeitos: a cada causa em um ponto dado
corresponde um efeito em um ponto infinitamente próximo e a cada efeito em um
ponto dado corresponde uma causa em um ponto infinitamente próximo. Assim dois
pontos separados por uma distância, mesmo que infinita, no espaço e no tempo,
estão, todavia, ligados por um encadeamento contínuo de causas e efeitos: não há
necessidade alguma de qualquer ação direta à distância. A causalidade mais rica dos
antigos, como, por exemplo, a de Aristóteles, era reduzida a um só destes aspectos: a
causalidade local. Uma causalidade formal ou uma causalidade final já não tinha seu
lugar na física clássica. As conseqüências culturais e sociais de uma tal amputação,
justificada pêlos sucessos da física clássica, são incalculáveis. Mesmo hoje aqueles
muitos que não têm agudos conhecimentos de filosofia, consideram como uma
evidência indiscutível a equivalência entre "a causalidade" e "a causalidade local", a
tal ponto que o adjetivo "local" é, na maioria dos casos, omitido.
O conceito de determinismo podia realizar assim sua entrada triunfante na
história das ideias. As equações da física clássica são de tal natureza que, se
soubermos as posições e as velocidades dos objetos físicos num dado instante,
podemos prever suas posições e velocidades em qualquer outro momento do tempo.
As leis da física clássica são leis deterministas. Os estados físicos sendo funções de
posições e de velocidades, resultando daí que, se especificamos as condições iniciais
(o estado físico num determinado instante), podemos prever completamente o estado
físico em qualquer outro momento dado do tempo.
É evidente que a simplicidade e a beleza estética de tais conceitos —
continuidade, causalidade local, determinismo — tão operativos na Natureza, tenham
fascinado os maiores espíritos destes quatro últimos séculos, incluindo o nosso.
135
Faltava dar um passo que já não era de natureza científica, mas de natureza
filosófica e ideológica: proclamar a física rainha das ciências. Mais precisamente,
reduzir tudo à física e o biológico e o psíquico aparecendo apenas como etapas
evolutivas de um único e mesmo fundamento. Este passo foi facilitado pelos avanços
indiscutíveis da física. Assim nasceu a ideologia cientificista, que surgiu como uma
ideologia de vanguarda e que experimentou uma extraordinária disseminação no
século XIX.
Com efeito, perspectivas inusitadas abriram-‐se diante do espírito humano.
Se o Universo não passasse de uma máquina perfeitamente regulada e
perfeitamente previsível, Deus poderia ser relegado à condição de simples hipótese,
não necessária para explicar o funcionamento do Universo. O Universo foi
subitamente dessacralizado e sua transcendência jogada nas trevas do irracional e da
superstição. A Natureza oferecia-‐se ao homem como uma amante, para ser penetrada
em suas profundezas, dominada, conquistada. Sem cair na tentação de uma
psicanálise do cientificismo. somos obrigados a constatar que os escritos cientificistas
do século XIX sobre a Natureza estão repletos de alusões sexuais das mais
desenfreadas. Seria de se espantar que a feminilidade do mundo tivesse sido
negligenciada, ultrajada, esquecida numa civilização baseada na conquista, na
dominação, na eficácia a qualquer preço? Como conseqüência funesta, mas inevitável,
a mulher é geralmente condenada a desempenhar um papel menor na organização
social.
Na euforia cientificista da época, era natural postular, como Marx e Engels o
fizeram, o isomorfismo entre as leis econômicas, sociais, históricas e as leis da
Natureza. Todas as ideias marxistas estão baseadas, em última análise, nos conceitos
provenientes da física clássica: continuidade, causalidade local, determinismo,
objetividade.
Se a História submete-‐se, como a Natureza, a leis objetivas e deterministas,
podemos fazer tábua rasa do passado, por uma revolução social ou qualquer outro
meio. Com efeito, tudo o que importa é o presente, como condição inicial mecânica.
Impondo certas condições iniciais sociais bem determinadas, podemos prever de
maneira infalível o futuro da humanidade. Basta que as condições iniciais sejam
impostas em nome do bem e do verdadeiro — por exemplo, em nome da liberdade, da
igualdade e da fraternidade — para construir a sociedade ideal. A experiência foi feita
em escala planetária, com os resultados que conhecemos. Quantos milhões de mortos
por alguns dogmas? Quanto sofrimento em nome do bem e da verdade? Como ideias
tão generosas em sua origem transformaram-‐se em seus opostos?
No plano espiritual, as conseqüências do cientificismo também foram
consideráveis. Um conhecimento digno deste nome só pode ser científico, objetivo. A
136
única Realidade digna deste nome era, naturalmente, a Realidade objetiva, regida por
leis objetivas. Todo conhecimento, além do científico, foi afastado para o inferno da
subjetividade, tolerado no máximo como ornamento, ou rejeitado com desprezo como
fantasma, ilusão, regressão, produto da imaginação. A própria palavra
"espiritualidade" tornou-‐se suspeita e seu uso foi praticamente abandonado.
A objetividade, instituída como critério supremo de verdade, teve uma
conseqüência inevitável: a transformação do sujeito em objeto. A morte do homem, que
anuncia tantas outras mortes, é o preço a pagar por um conhecimento objetivo. O ser
humano torna-‐se objeto: objeto da exploração do homem pelo homem, objeto de
experiências de ideologias que se anunciam científicas, objeto de estudos científicos
para ser dissecado, formalizado e manipulado. O homem-‐Deus é um homem objeto
cuja única saída é se autodestruir. Os dois massacres mundiais deste século, sem levar
em conta as inúmeras guerras locais, que também fizeram incontáveis cadáveres, não
passam do prelúdio de uma autodestruição em escala planetária. Ou, talvez, de um
autonascimento.
No fundo, além da imensa esperança que suscitou, o cientificismo nos legou
uma ideia persistente e tenaz: a da existência de um único nível de Realidade, no qual
a única verticalidade concebível é a da pessoa ereta numa Terra regida pela lei da
gravidade universal.
Física quântica e níveis de Realidade
Por uma dessas estranhas coincidências, das quais a História possui os
segredos, a mecânica quântica, a primeira guerra mundial e a revolução russa
surgiram praticamente ao mesmo tempo. Violência e massacres no plano do visível e
revolução quântica no plano do invisível. Como se os espasmos visíveis do mundo
antigo fossem acompanhados pelo surgimento discreto, quase imperceptível, dos
primeiros sinais do novo mundo. Os dogmas e as ideologias que devastaram o século
XX vieram do pensamento clássico, baseados nos conceitos da física clássica. Uma
nova visão do mundo iria arruinar os fundamentos de um pensamento que não parou
de acabar.
No começo do século XX, Max Planck confrontou-‐se com um problema de física,
de aparência inocente, como todos os problemas de física. Mas, para resolvê-‐lo, ele foi
conduzido a uma descoberta que provocou nele, segundo seu próprio testemunho, um
verdadeiro drama interior. Pois ele tinha se tornado a testemunha da entrada da
descontinuidade no campo da física. Conforme a descoberta de Planck, a energia tem
uma estrutura discreta, descontínua. O "quantum" de Planck, que deu seu nome à
mecânica quântica, iria revolucionar toda física e mudar profundamente nossa visão
do mundo.
137
Como compreender a verdadeira descontinuidade, isto é, imaginar que entre
dois pontos não há nada, nem objetos, nem átomos, nem moléculas, nem partículas,
apenas nada. Aí, onde nossa imaginação habitual experimenta uma enorme vertigem,
a linguagem matemática, baseada num outro tipo de imaginário, não encontra
nenhuma dificuldade. Galileu tinha razão: a linguagem matemática tem uma natureza
diversa da linguagem humana habitual.
Colocar em questão a continuidade significa colocar em questão a causalidade
local e abrir assim uma temível caixa de Pandora. Os fundadores da mecânica quântica
— Planck, Bohr, Einstein, Pauli, Heisenberg, Dirac, Schrödinger, Bohm, de Broglie e
alguns outros, que também tinham uma sólida cultura filosófica, estavam plenamente
conscientes do desafio cultural e social de suas próprias descobertas. Por isto
avançavam com grande prudência, enfrentando polêmicas acirradas. Porém, enquanto
cientistas, eles tiveram que se inclinar, não importando suas convicções religiosas ou
filosóficas, diante das evidências experimentais e da autoconsistência teórica.
Assim começou uma extraordinária Mahabharata moderna, que iria atravessar
o século XX e chegar até os nossos dias.
Para esclarecer a metodologia da transdisciplinaridade, o autor optou por, ao
longo de dois ou três capítulos, explanar os resultados um pouco abstratos da física
quântica. O leitor é, portanto, convidado a percorrer algumas considerações teóricas
antes de entrar no cerne da questão.
O formalismo da mecânica quântica e posteriormente, o da física quântica (que
se disseminou depois da segunda guerra mundial, com a construção dos grandes
aceleradores de partículas), tentaram, é verdade, salvaguardar a causalidade local tal
como a conhecemos na escala macrofísica. Mas era evidente, desde o começo da
mecânica quântica, que um novo tipo de causalidade devia estar presente na escala
quântica, a escala do infinitamente pequeno e do infinitamente breve. Uma quantidade
física tem, segundo a mecânica quântica, diversos valores possíveis, afetados por
probabilidades bem determinadas. No entanto, numa medida experimental, obtém-‐se,
evidentemente, um único resultado para a quantidade física em questão. Esta abolição
brusca da pluralidade dos valores possíveis de um "observável" físico, pelo ato de
medir, tinha uma natureza obscura mas indicava claramente a existência de um novo
tipo de causalidade.
Sete décadas após o nascimento da mecânica quântica, a natureza deste novo
tipo de causalidade foi esclarecida graças a um resultado teórico rigoroso — o
teorema de Bell — e a experiências de uma grande precisão. Um novo conceito
adentrava assim na física: a não separabilidade. Em nosso mundo habitual,
macrofísico, se dois objetos interagem num momento dado e em seguida se afastam,
eles interagem, evidentemente, cada vez menos. Pensemos em dois amantes
138
obrigados a se separar, um numa galáxia e outro noutra. Normalmente, seu amor
tende a diminuir e acabar por desaparecer.
No mundo quântico as coisas acontecem de maneira diferente. As entidades
quânticas continuam a interagir qualquer que seja o seu afastamento. Isto parece
contrário a nossas leis macrofísicas. A interação pressupõe uma ligação, um sinal e
este sinal tem, segundo a teoria da relatividade de Einstein, uma velocidade limite: a
velocidade da luz. Poderiam as interações quânticas ultrapassar este barreira da luz?
Sim, se insistirmos em conservar, a todo custo, a causalidade local, e pagando o preço
de abolir a teoria da relatividade. Não, se aceitarmos a existência de um novo tipo de
causalidade: uma causalidade global'que concerne o sistema de todas as entidades
físicas, em seu conjunto. E, no entanto, este conceito não é tão surpreendente na vida
diária. Uma coletividade — família, empresa, nação — é sempre mais que a simples
soma de suas partes. Um misterioso fator de interação, não redutível às propriedades
dos diferentes indivíduos, está sempre presente nas coletividades humanas, mas nós
sempre o repelimos para o inferno da subjetividade. E somos forçados a reconhecer
que em nossa pequena Terra estamos longe, muito longe da não separabilidade
humana.
Em todo caso, a não separabilidade quântica não põe em dúvida a própria
causalidade, mas uma de suas formas, a causalidade local. Ela não põe em dúvida a
objetividade científica, mas uma de suas formas: a objetividade clássica, baseada na
crença de ausência de qualquer conexão não local. A existência de correlações não
locais expande o campo da verdade, da Realidade. A não separabilidade quântica nos
diz que há, neste mundo, pelo menos numa certa escala, uma coerência, uma unidade
das leis que asseguram a evolução do conjunto dos sistemas naturais.
Um outro pilar do pensamento clássico — o determinismo — iria, por sua vez,
desmoronar.
As entidades quânticas: os quantuns são muito diferentes dos objetos da física
clássica: os corpúsculos e as ondas. Se quisermos a qualquer preço ligá-‐los aos objetos
clássicos, seremos obrigados a concluir que os quantuns são, ao mesmo tempo,
corpúsculos e ondas, ou mais precisamente, que eles não são nem partículas nem
ondas. Se houver uma onda, trata-‐se, antes, de uma onda de probabilidade, que nos
permite calcular a probabilidade de realização de um estado final a partir de um certo
estado inicial.
Os quantuns caracterizam-‐se por uma certa extensão de seus atributos físicos,
como, por exemplo, suas posições e suas velocidades. As célebres relações de
Heisenberg mostram, sem nenhuma ambiguidade, que é impossível localizar um
quantum num ponto preciso do espaço e num ponto preciso do tempo. Em outras
palavras, é impossível traçar uma trajetória bem determinada de uma partícula
139
quântica. O indeterminismo reinante na escala quântica é um indeterminismo
constitutivo, fundamental, irredutível, que de maneira nenhuma significa acaso ou
imprecisão.
O aleatório quântico não é acaso.
A palavra "acaso" vem do árabe az-‐zahr que quer dizer "jogo de dados". Com
efeito, é impossível localizar uma partícula quântica ou dizer qual é o átomo que se
desintegra num momento preciso. Mas isto não significa de modo algum que o
acontecimento quântico seja um acontecimento fortuito, devido a um jogo de dados
(jogado por quem?): simplesmente, as questões formuladas não têm sentido no
mundo quântico. Elas não têm sentido porque pressupõe a existência de uma
trajetória localizável, a continuidade, a causalidade local. No fundo, o conceito de
"acaso", como o de "necessidade", são conceitos clássicos. O aleatório quântico é ao
mesmo tempo acaso e necessidade ou, mais precisamente, nem acaso nem necessidade. O
aleatório quântico é um aleatório construtivo, que tem um sentido: o da construção de
nosso próprio mundo macrofísico. Uma matéria mais fina penetra uma matéria mais
grosseira. As duas coexistem, cooperam numa unidade que vai da partícula quântica
ao cosmo.
Indeterminismo não quer de maneira alguma dizer "imprecisão", se a noção de
"precisão" não estiver implicitamente ligada, de maneira talvez inconsciente, às
noções de trajetórias localizáveis, continuidade e causalidade local. As previsões da
mecânica quântica sempre foram, até o presente, verificadas com uma grande
precisão por inúmeras experiências. Porém, esta precisão diz respeito aos atributos
próprios às entidades quânticas e não aos dos objetos clássicos. Aliás, mesmo no
mundo clássico, a noção de precisão acaba de ser fortemente questionada pela teoria
do "caos". Uma minúscula imprecisão das condições iniciais leva a trajetórias clássicas
extremamente divergentes ao longo do tempo. O caos instala-‐se no próprio seio do
determinismo. Os planificadores de toda espécie, os construtores de sistemas
ideológicos, econômicos ou outros, ainda podem existir num mundo que é ao mesmo
tempo indetreminista e caótico?
O maior impacto cultural da revolução quântica é, sem dúvida, o de colocar em
questão o dogma filosófico contemporâneo da existência de um único nível de
Realidade.
Damos ao nome "realidade" seu significado tanto pragmático como ontológico.
Entendo por Realidade, em primeiro lugar, aquilo que resiste às nossas
experiências, representações, descrições, imagens ou formalizações matemáticas. A
física quântica nos fez descobrir que a abstração não é um simples intermediário
entre nós e a Natureza, uma ferramenta para descrever a realidade, mas uma das
partes constitutivas da Natureza. Na física quântica, o formalismo matemático é
140
inseparável da experiência. Ele resiste, a seu modo, tanto por seu cuidado pela
autoconsistência interna como por sua necessidade de integrar os dados
experimentais, sem destruir esta autoconsistência. Também noutro lugar, na
realidade chamada "virtual" ou nas imagens de síntese, são as equações matemáticas
que resistem: a mesma equação matemática dá origem a uma infinidade de imagens.
As imagens estão latentes nas equações ou nas séries de números. Portanto, a
abstração é parte integrante da Realidade.
É preciso dar uma dimensão ontológica à noção de Realidade, na medida em
que a Natureza participa do ser do mundo. A Natureza é uma imensa e inesgotável
fonte de desconhecido que justifica a própria existência da ciência. A Realidade não é
apenas uma construção social o consenso de uma coletividade, um acordo
intersubjetivo. Ela também tem uma dimensão trans-‐subjetiva, na medida em que um
simples fato experimental pode arruinar a mais bela teoria científica. Infelizmente, no
mundo dos seres humanos, uma teoria sociológica, econômica ou política continua a
existir apesar de múltiplos fatos que a contradizem.
Deve-‐se entender por nível de Realidade um conjunto de sistemas invariantes
sob a ação de um número de leis gerais: por exemplo, as entidades quânticas
submetidas às leis quânticas, as quais estão radicalmente separadas das leis do mundo
macrofísico. Isto quer dizer que dois níveis de Realidade são diferentes se, passando de
um ao outro, houver ruptura das leis e ruptura dos conceitos fundamentais (como, por
exemplo, a causalidade). Ninguém conseguiu encontrar um formalismo matemático
que permita a passagem rigorosa de um mundo ao outro. As sutilezas semânticas, as
definições tautológicas ou as aproximações não podem substituir um formalismo
matemático rigoroso. Há, mesmo, fortes indícios matemáticos de que a passagem do
mundo quântico para o mundo macrofísico seja sempre impossível. Contudo, não há
nada de catastrófico nisso. A descontinuidade que se manifestou no mundo quântico
manifesta-‐se também na estrutura dos níveis de Realidade Isto não impede os dois
mundos de coexistirem. A prova: nossa própria existência. Nossos corpos têm ao
mesmo tempo uma estrutura macrofísica e uma estrutura quântica.
Os níveis de Realidade são radicalmente diferentes dos níveis de organização,
tais como foram definidos nas abordagens sistêmicas. Os níveis de organização não
pressupõem uma ruptura dos conceitos fundamentais: vários níveis de organização
pertencem a um único e mesmo nível de Realidade. Os níveis de organização
correspondem a estruturações diferentes das mesmas leis fundamentais. Por
exemplo, a economia marxista e a física clássica pertencem a um único e mesmo nível
de Realidade.
O surgimento de pelo menos dois níveis de Realidade diferentes no estudo dos
sistemas naturais é um acontecimento de capital importância na historia do conheci-‐
141
mento. Ele pode nos levar a repensar nossa vida individual e social, a fazer uma nova
leitura dos conhecimentos antigos, a explorar de outro modo o conhecimento de nós
mesmos, aqui e agora.
A existência dos níveis de Realidade diferentes foi afirmada por diferentes
tradições e civilizações, mas esta afirmação estava baseada seja em dogmas religiosos,
seja na exploração do universo interior.
Em nosso século, Husserl e alguns outros pesquisadores, num esforço de
questionamento a respeito dos fundamentos da ciência, descobriram a existência dos
diferentes níveis de percepção da Realidade pelo sujeito observador. Mas eles foram
marginalizados pelos filósofos acadêmicos e incompreendidos pêlos físicos, fechados
em sua própria especialidade. De fato, eles foram pioneiros na exploração de uma
Realidade multidimensional e multireferencial, onde o ser humano pode reencontrar
seu lugar e sua verticalidade.
142
Um bastão sempre tem duas extremidades
O desenvolvimento da física quântica, assim como a coexistência entre o mundo
quântico e o mundo macrofísico, levaram, no plano da teoria e da experiência
científica, ao aparecimento de pares de contraditórios mutuamente exclusivos (A e não-‐
A): onda e corpúsculo, continuidade e descontinuidade, separabilidade e não
separabilidade, causalidade local e causalidade global, simetria e quebra de simetria,
reversibilidade e irreversibilidade do tempo etc.
Por exemplo, as equações da física quântica submetem-‐se a um grupo de
simetrias, mas suas soluções quebram estas simetrias. Da mesma forma, supõe-‐se que
um grupo de simetria descreva a unificação de todas as interações físicas conhecidas,
mas esta simetria deve ser quebrada para poder descrever a diferença entre as
interações forte, fraca, eletromagnética e gravitacional.
O problema da flecha do tempo sempre fascinou os espíritos. Nosso nível
macrofísico caracteriza-‐se pela irreversibilidade (a flecha) do tempo. Caminhamos do
nascimento para a morte, da juventude para a velhice. O inverso é impossível. A flecha
do tempo está associada à entropia, ao crescimento da desordem. Por outro lado, o
nível microfísico caracteriza-‐se pela invariância temporal (reversibilidade do tempo).
Tudo se passa como se, na maioria dos casos, um filme rodado no sentido inverso,
produzisse exatamente as mesmas imagens do que quando rodado no sentido correto.
Há, no mundo microfísico, alguns processos que violentam esta invariância temporal.
As exceções estão intimamente ligadas ao nascimento do universo, mais precisamente
à predominância da matéria sobre a antimatéria. O Universo é feito de matéria e não
de antimatéria, graças a esta pequena violação da invariância temporal.
Esforços notáveis foram feitos para introduzir uma flecha do tempo também
no nível microfísico, mas, por enquanto, nada se conseguiu. A mecânica quântica não
pôde ser substituída por uma teoria mais preditível. Devemos nos habituar à
coexistência paradoxal da reversibilidade e da irreversibilidade do tempo, um dos
aspectos da existência de diferentes níveis de Realidade. Ora, o tempo está no centro
de nossa vida terrestre.
É necessário ressaltar que o tempo dos físicos já é uma aproximação grosseira
do tempo dos filósofos. Nenhum filósofo conseguiu seriamente definir o momento
presente. "Quanto ao tempo presente," — já dizia Santo Agostinho — "se ele sempre
fosse presente e não passasse, deixaria de ser um tempo, seria a eternidade. Portanto,
se o tempo só é tempo porque ele passa, como podemos dizer que ele é, ele que só é
porque está a ponto de deixar de ser; e portanto não é verdade dizer que só é um
tempo porque tende ao não-‐ser.". O tempo presente dos filósofos é um tempo vivo. Ele
143
contém em si mesmo tanto o passado como o futuro, não sendo o passado nem o
futuro. O pensamento é impotente para apreender toda a riqueza do tempo presente.
Os físicos aboliram a diferença essencial entre o presente de um lado e o
passado e o futuro de outro, substituindo o tempo por uma banal linha do tempo onde
os pontos representam sucessivamente e indefinidamente os momentos passados,
presentes e futuros. O tempo torna-‐se assim um simples parâmetro (da mesma
maneira que uma posição no espaço), que pode ser perfeitamente compreendido pelo
pensamento e perfeitamente descrito no plano matemático. A nível macrofísico esta
linha do tempo é dotada de uma flecha indicando a passagem do passado para o
futuro. Esta linha do tempo, dotada de um flecha, é, portanto ao mesmo tempo uma
representação matemática simples e uma representação antropomórfica. A grande
surpresa é constatar que até uma representação matemática, portanto rigorosa, do
tempo, de acordo com a informação que nos é fornecida por nossos órgãos dos
sentidos, é colocada em dúvida pelo surgimento do nível quântico, como nível de
Realidade diferente do nível macrofísico. Será que o tempo dos físicos conserva apesar
de tudo, uma lembrança do tempo vivo dos filósofos, graças à intervenção sempre
inesperada da Natureza? Todavia, apesar de tudo, esta coexistência paradoxal não é
tão surpreendente quando nos referimos a nossa experiência de vida. Todos nós
sentimos que nosso tempo de vida não é a vida de nosso tempo. A vida, nossa vida, é
algo mais que um objeto delimitado no espaço e no tempo. Mas o surpreendente é
constatar que um vestígio desse tempo vivo encontra-‐se na Natureza. Seria a
Natureza, não um livro morto que está a nossa disposição para ser decifrado, mas um
livro vivo, sendo continuamente escrito?
O escândalo intelectual provocado pela mecânica quântica consiste no fato de
que os pares de contraditórios que ela coloca em evidência são de fato mutuamente
opostos quando analisados através da grade de leitura da lógica clássica. Esta lógica
baseia-‐se em três axiomas:
1. O axioma da identidade: A é A;
2. O axioma da não-‐contradição: A não é não-‐A;
3. O axioma do terceiro excluído: não existe um terceiro termo T (T de "terceiro
incluído") que é ao mesmo tempo A e não-‐A.
Na hipótese da existência de um único nível de Realidade, o segundo e
terceiro axiomas são evidentemente equivalentes. O dogma de um único nível de
Realidade, arbitrário como todo dogma, está de tal forma implantado em nossas
consciências, que mesmo lógicos de profissão esquecem de dizer que estes dois
axiomas são, de fato, distintos, independentes um do outro.
144
Se, no entanto, aceitamos esta lógica que, apesar de tudo reinou, durante dois
milênios e continua a dominar o pensamento de hoje, em particular no campo político,
social e econômico, chegamos imediatamente à conclusão de que os pares de
contraditórios postos em evidência pela física quântica são mutuamente exclusivos,
pois não podemos afirmar ao mesmo tempo a validade de uma coisa e seu oposto: A e
não-‐A. A perplexidade produzida por esta situação é bem compreensível: podemos
afirmar, se formos sãos de espírito, que a noite é o dia, o preto é o branco, o homem é a
mulher, a vida é a morte?
O problema pode parecer da ordem da pura abstração, interessando alguns
lógicos, físicos ou filósofos. Em que a lógica abstraia seria importante para nossa vida
de todos os dias?
A lógica é a ciência que tem por objeto de estudo as normas da verdade (ou da
"validade", se a palavra "verdade" for forte demais em nossos dias). Sem norma, não
há ordem. Sem norma, não há leitura do mundo e, portanto, nenhum aprendizado,
sobrevivência e vida. Fica claro, portanto, que de maneira muitas vezes inconsciente,
uma certa lógica e mesmo uma certa visão do mundo estão por trás de cada ação,
qualquer que seja: a ação de um indivíduo, de uma coletividade, de uma nação, de um
estado. Uma certa lógica determina, em particular, a regulação social.
Desde a constituição definitiva da mecânica quântica, por volta dos anos 30, os
fundadores da nova ciência se questionaram agudamente sobre o problema de uma
nova lógica, chamada "quântica". Após os trabalhos de Birkhoff e Von Neumann, toda
uma proliferação de lógicas quânticas não tardou a se manifestar. A ambição dessas
novas lógicas era resolver os paradoxos gerados pela mecânica quântica e tentar, na
medida do possível, chagar a uma potência preditiva mais forte do que a permitida
com a lógica clássica.
Por uma feliz coincidência, esta proliferação de lógicas quânticas foi
contemporânea à proliferação de novas lógicas formais, rigorosas no plano
matemático, que tentavam alargar o campo de validade da lógica clássica. Este
fenômeno era relativamente novo pois, durante dois milênios, o ser humano acreditou
que a lógica fosse única, imutável, dada uma vez por todas, inerente a seu próprio
cérebro.
Há, no entanto uma relação direta entre a lógica e o meio ambiente: meio
ambiente físico, químico, biológico, psíquico, macro ou micro sociológico. Ora, o meio
ambiente, assim como o saber e a compreensão, mudam com o tempo. Portanto, a
lógica só pode ter um funda-‐mento empírico. A noção de história da lógica é muito
recente — aparece no meio do século XIX. Pouco tempo depois aparece uma outra
noção capital: a da História do Universo. Outrora, o universo, como a lógica, era
considerado eterno e imutável.
145
A maioria das lógicas quântica modificou o segundo axioma da lógica clássica: o
axioma da não-‐contradição, introduzindo a não-‐contradição com vários valores de
verdade no lugar daquela do par binário (A, não-‐A). Estas lógicas multivalentes, cujo
estatuto ainda é controvertido quanto a seu poder preditivo, não levaram em conta
uma outra possibilidade, a modificação do terceiro axioma — o axioma do terceiro
excluído.
O mérito histórico de Lupasco foi mostrar que a lógica do terceiro incluído é
uma verdadeira lógica, formalizável e formalizada, multivalente (com três valores: A,
não-‐A e T) e não-‐contraditória. Lupasco, como Husserl, pertencia à raça dos
pioneiros. Sua filosofia, que toma como ponto de partida a física quântica, foi
marginalizada por físicos e filósofos. Curiosamente, ela teve em contrapartida um
poderoso impacto, ainda que subterrânea, entre os psicólogos, os sociólogos, os
artistas ou os historiadores das religiões. Lupasco teve razão cedo demais. A ausência
da noção de "níveis de Realidade" em sua filosofia obscurecia talvez seu conteúdo.
Muitos acreditaram que a lógica de Lupasco violava o principio da não-‐contradição
— de onde provém o nome, um pouco infeliz, de "lógica da contradição" — e que
admitia o risco de infindáveis sutilezas semânticas. Além disso, o medo visceral de
introduzir a noção de "terceiro incluído", com suas ressonâncias mágica, só fez com
que aumentasse a desconfiança em tal lógica.
A compreensão do axioma do terceiro incluído — existe um terceiro termo T
que é ao mesmo tempo A e não-‐A — fica totalmente clara quando é introduzida a
noção de "níveis de Realidade".
Para se chegar a uma imagem clara do sentido do terceiro incluído,
representemos os três termos da nova lógica — A, não-‐A e T — e seus dinamismos
associados por um triângulo onde um dos ângulos situa-‐se a um nível de Realidade e
os dois outros a um outro nível de Realidade. Se permanecermos num único nível de
realidade, toda manifestação aparece como uma luta entre dois elementos
contraditórios (por exemplo: onda A e corpúsculo não-‐A). O terceiro dinamismo, o do
estado T, exerce-‐se num outro nível de Realidade, onde aquilo que parece desunido
(onda ou corpúsculo) está de fato unido (quantum), e aquilo que parece contraditório
é percebido como não-‐contraditório.
É a projeção de T sobre um único e mesmo nível de Realidade que produz a
impressão de pares antagônicos, mutuamente exclusivos (A e não-‐A). Um único e
mesmo nível de Realidade só pode provocar oposições antagônicas. Ele é, por sua
própria natureza, autodestruidor, se for completamente separado de todos os outros
níveis de Realidade. Um terceiro termo, digamos, T', que esteja situado no mesmo
nível de Realidade que os opostos A e não-‐A, não pode realizar sua conciliação. A
"síntese" entre A e não-‐A é antes uma explosão de imensa energia, como a produzida
146
pelo encontro entre matéria e antimatéria. Nas mãos de marxistas-‐leninistas, a síntese
hegeliana surgia como o resultado radioso de uma sucessão no plano histórico:
sociedade primitiva (tese), sociedade capitalista (antítese), sociedade comunista
(síntese). Infelizmente, ela se metamorfoseou em seu contrário. Em verdade, a queda
inesperada do império soviético estava inexoravelmente inscrita na própria lógica do
sistema. Uma lógica nunca é inocente. Ela pode chegar a fazer milhões de mortos.
Toda diferença entre uma tríade de terceiro incluído e uma tríade hegeliana se
esclarece quando consideramos o papel do tempo. Numa tríade de terceiro incluído os
três termos coexistem no mesmo momento do tempo. Por outro lado, os três termos
da tríade hegeliana sucedem-‐se no tempo. Por isso, a tríade hegeliana é incapaz de
promover a conciliação dos opostos, enquanto a tríade de terceiro incluído é capaz de
fazê-‐lo. Na lógica do terceiro incluído os opostos são antes contraditórios: a tensão
entre os contraditórios promove uma unidade mais ampla que os inclui.
Vemos assim os grandes perigos de mal-‐entendidos gerados pela confusão
bastante comum entre o axioma de terceiro excluído e o axioma de não-‐contradição. A
lógica do terceiro incluído é não-‐contraditória, no sentido de que o axioma da não-‐
contradição é perfeitamente respeitado, com a condição de que as noções de
"verdadeiro" e "falso" sejam alargadas, de tal modo que as regras de implicação lógica
digam respeito não mais a dois termos (A e não-‐A), mas a três termos (A, não-‐A e T),
coexistindo no mesmo momento do tempo. É uma lógica formal, da mesma maneira
que qualquer outra lógica formal: suas regras traduzem-‐se por um formalismo
matemático relativamente simples.
Vê-‐se porque a lógica do terceiro incluído não é simplesmente uma metáfora
para um ornamento arbitrário da lógica clássica, permitindo algumas incursões
aventureiras e passageiras no campo da complexidade. A lógica do terceiro incluído é
uma lógica da complexidade e até mesmo, talvez, sua lógica privilegiada, na medida
em que permite atravessar, de maneira coerente, os diferentes campos do
conhecimento.
A lógica do terceiro incluído não elimina a lógica do terceiro excluído: ela
apenas limita sua área de validade. A lógica do terceiro excluído é certamente validada
por situações relativamente simples, como, por exemplo, a circulação de veículos
numa estrada: ninguém pensa em introduzir, numa estrada, um terceiro sentido em
relação ao sentido permitido e ao proibido. Por outro lado, a lógica do terceiro
excluído é nociva nos casos complexos, como, por exemplo, o campo social ou político.
Ela age, nestes casos, como uma verdadeira lógica de exclusão:
bem ou mal, direita ou esquerda, mulheres ou homens, ricos ou pobres, brancos
ou negros. Seria revelador fazer uma análise da xenofobia, do racismo, do anti-‐
147
semitismo ou do nacionalismo à luz da lógica do terceiro excluído. Seria também
muito instrutivo passar os discursos dos políticos pelo crivo da mesma lógica.
A sabedoria popular exprime algo muito profundo quando nos diz que um
bastão sempre tem duas extremidades. Imaginemos, como na paródia Lê bout du bout
de Raymond Devos (que, aliás, compreendeu melhor que muitos eruditos o sentido do
terceiro incluído) que um homem queira, a todo custo, separar as duas extremidades
de um bastão. Ele vai cortar seu bastão e perceber que agora tem, não apenas duas
extremidades, mas dois bastões. Ele vai continuar a cortar cada vez mais
nervosamente seu bastão, porém, embora estes se multipliquem sem parar, é
impossível separar as duas extremidades!
Estaremos nós, em nossa civilização atual, na situação do homem que queria a
todo custo separar as duas extremidades de seu bastão? À barbárie da exclusão do
terceiro responde a inteligência da inclusão. Pois um bastão sempre tem duas
extremidades.
148
0 surgimento da pluralidade complexa
Simultaneamente ao aparecimento dos diferentes níveis de Realidade e das
novas lógicas (entre elas a do terceiro incluído) no estudo dos sistemas naturais, um
terceiro fator veio se juntar para desferir o golpe de misericórdia na visão clássica do
mundo: a complexidade.
Ao longo do século XX, a complexidade instala-‐se por toda parte, assustadora,
terrificante, obscena, fascinante, invasora, como um desafio a nossa própria existência
e ao sentido de nossa própria existência. A complexidade em todos os campos do
conhecimento parece ter fagocitado o sentido.
A complexidade nutre-‐se da explosão da pesquisa disciplinar e, por sua vez, a
complexidade determina a aceleração da multiplicação das disciplinas.
A lógica binária clássica confere seus títulos de nobreza a uma disciplina
cientifica ou não cientifica. Graças a suas normas de verdade, uma disciplina pode
pretender esgotar inteiramente o campo que lhe e próprio. Se esta disciplina for
considerada fundamental, como a pedra de toque de todas as outras disciplinas, este
campo alarga-‐se implicitamente a todo conhecimento humano.
Na visão clássica do mundo, a articulação das disciplinas era considerada
piramidal, sendo a base da pirâmide representada pela física. A complexidade
pulveriza literalmente esta pirâmide provocando um verdadeiro big-‐bang disciplinar.
0 universo parcelado disciplinar esta em plena expansão em nossos dias. De
maneira inevitável, o campo de cada disciplina torna-‐se cada vez mais estreito,
fazendo com que a comunicação entre elas fique cada vez mais difícil, até impossível.
Uma realidade multiesquizofrênica complexa parece substituir a realidade
unidimensional simples do pensamento clássico. O individuo, por sua vez, é
pulverizado para ser substituído por um número cada vez maior de peças destacadas,
estudadas pelas diferentes disciplinas. E o preço que o indivíduo tem de pagar por um
conhecimento de certo tipo que ele mesmo instaura.
As causas do big-‐bang disciplinar são várias e poderiam ser objeto de diversos
tratados eruditos. Mas a causa fundamental pode facilmente ser descoberta: o big-‐
bang disciplinar responde às necessidades de uma tecnociência sem freios, sem
valores, sem outra finalidade que a eficácia pela eficácia.
Este big-‐bang disciplinar tem enormes conseqüências positivas, pois conduz ao
aprofundamento sem precedente do conhecimento do universo exterior e assim
contribui volens nolens para a instauração de uma nova visão do mundo. Pois um
bastão sempre tem duas extremidades. Quando um balanço vai longe demais num
sentido, sua volta e inexorável.
149
Paradoxalmente, a complexidade instalou-‐se no próprio coração da
fortaleza da simplicidade: a física fundamental. De fato, nas obras de vulgarização,
diz-‐se que a física contemporânea e uma física onde reina uma maravilhosa
simplicidade estética da unificação de todas as interações físicas através de alguns
"tijolos" fundamentais: quarks, leptons ou mensageiros. Cada descoberta de um
novo tijolo, prognosticada por esta teoria, é saudada com a atribuição de um
prêmio Nobel e apresentada como um triunfo da simplicidade que reina no mundo
quântico.
Mas para o físico que pratica a essência desta ciência, a situação mostra-‐se
infinitamente mais complexa.
Os fundadores da física quântica esperavam que algumas partículas pudessem
descrever, enquanto tijolos fundamentais, toda a complexidade física. No entanto, já
por volta de 1960 este sonho desmoronou: centenas de partículas foram descobertas
graças aos aceleradores de partículas. Foi proposta uma nova simplificação com a
introdução do princípio do bootstrap nas interações fortes: há uma espécie de
“democracia” nuclear, todas as partículas são tão fundamentais quanto as outras e
uma partícula é aquilo que ela é porque todas as outras partículas existem ao mesmo
tempo. Esta visão de autoconsistência das partículas e de suas leis de interação,
fascinante no plano filosófico, iria por sua vez desabar devido à inusitada
complexidade das equações que traduziam esta autoconsistência e à impossibilidade
prática de encontrar suas soluções. A introdução de subconstituintes dos hádrons
(partículas de interações fortes) os quarks — iria substituir a proposta do bootstrap e
introduzir assim uma nova simplificação no mundo quântico. Esta simplificação levou
a uma simplificação ainda maior, que domina a física de partículas atualmente: a
procura de grandes teorias de unificação e de superunificação das interações físicas.
Contudo, ainda assim, a complexidade não demorou em mostrar sua onipotência.
Por exemplo, segundo a teoria das supercordas na física de partículas, as
interações físicas aparecem como sendo muito simples, unificadas e submetendo-‐se a
alguns princípios gerais se descritas num espaço tempo multidimensional e sob uma
energia fabulosa, correspondendo à massa dita de Planck. A complexidade surgiu no
momento da passagem para o nosso mundo, necessariamente caracterizado por
quatro dimensões e por energias acessíveis muito menores. As teorias unificadas são
muito poderosas no nível dos princípios gerais, mas são bastante pobres na descrição
da complexidade de nosso próprio nível. Alguns resultados matemáticos rigorosos até
indicam que esta passagem de uma única e mesma interação unificada para as quatro
interações físicas conhecidas é extremamente difícil e até mesmo impossível. Um
número enorme de questões matemáticas e experimentais, de extraordinária
complexidade, permanece sem resposta. A complexidade matemática e a
complexidade experimental são inseparáveis na física contemporânea.
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É interessante observar, de passagem, que a teoria das supercordas surgiu
graças à teoria das cordas que, por sua vez, apareceu graças à abordagem do
bootstrap. Na teoria das cordas, os hádrons são representados por cordas vibrantes
que carregam quarks e antiquarks em suas extremidades. Por exemplo, um meson é
representado por urna corda tendo, como um bastão, duas extremidades: um quark e
um antiquark. É impossível separar as duas extremidades de uma corda: cortando-‐se
uma corda não é um quark e um antiquark que conseguimos mas várias cordas, todas
elas com duas extremidades. Se alguém ficar obcecado pela separação das duas
extremidades de uma corda, vai chocar-‐se com uma impossibilidade teórica que
carrega a designação erudita de “confinamento”: os quarks e antiquarks ficam
aprisionados para sempre no interior dos hádrons. Seria necessária uma energia
infinita para afastar e separar completamente um quark e um antiquark. Esta
propriedade paradoxal, e não obstante simples, esconde, de fato, uma infinita
complexidade de interação entre as partículas quânticas. Os físicos ainda não
encontraram uma demonstração matemática rigorosa do confinamento dos quarks.
Aliás, a complexidade se mostra por toda parte, em todas as ciências exatas ou
humanas, rígidas ou flexíveis.
A biologia e a neurociência, por exemplo, que vivem hoje um rápido
desenvolvimento, revelam-‐nos novas complexidades a cada dia que passa e assim
caminhamos de surpresa em surpresa.
O desenvolvimento da complexidade é particularmente espantoso nas artes.
Por uma interessante coincidência, a arte abstrata aparece ao mesmo tempo em que a
mecânica quântica. Porém, em seguida, um desenvolvimento cada vez mais caótico
parece presidir pesquisas cada vez mais formais. Salvo algumas exceções notáveis, o
sentido desaparece em proveito da forma. O rosto humano, tão belo na arte do
Renascimento, decompõe-‐se cada vez mais até desaparecer complemente no absurdo
e na feiúra. Uma nova arte — a arte eletrônica — aparece para substituir
gradualmente a obra estética pelo ato estético. Na arte, como em outros campos, o
bastão sempre tem duas extremidades.
A complexidade social sublinha, até o paroxismo, a complexidade que invade
todos os campos do conhecimento. O ideal de simplicidade de uma sociedade justa,
baseada numa ideologia científica e na criação de um “homem novo”, desabou sob o
peso de uma complexidade multidimensional. O que restou, baseado na lógica da
eficácia pela eficácia, não é capaz de nos propor outra coisa senão o “fim da História”.
Tudo se passa como se já não houvesse futuro. E se não há mais futuro, a lógica sã nos
diz que já não há presente. O conflito entre a vida individual e a vida social aprofunda-‐
se num ritmo acelerado. E como podemos sonhar com uma harmonia social baseada
na aniquilação do ser interior?
151
Edgar Morin tem razão quando assinala a todo mo mento que o conhecimento
do complexo condiciona uma política de civilização.
O conhecimento do complexo, para que seja reconhecido como conhecimento,
passa por uma questão preliminar: a complexidade da qual falamos seria uma
complexidade desordenada, e neste caso seu conhecimento não teria sentido ou
esconderia uma nova ordem e uma simplicidade de uma nova natureza que
justamente seriam o objeto do novo conhecimento? Trata-‐se de escolher entre um
caminho de perdição e um caminho de esperança.
Teria a complexidade sido criada por nossa cabeça ou se encontra na própria
natureza das coisas e dos seres? O estudo dos sistemas naturais nos dá uma resposta
parcial a esta pergunta: tanto uma como outra. A complexidade das ciências é antes de
mais nada a complexidade das equações e dos modelos. Ela é, portanto, produto de
nossa cabeça, que é complexa por sua própria natureza. Porém, esta complexidade é a
imagem refletida da complexidade dos dados experimentais, que se acumulam sem
parar. Ela também está, portanto na natureza das coisas.
Além disso, a física e a cosmologia quânticas nos mostram que a complexidade
do Universo não é a complexidade de uma lata de lixo, sem ordem alguma. Uma
coerência atordoante reina na relação entre o infinitamente pequeno e o infinitamente
grande. Um único termo está ausente nesta coerência: a abertura do finito -‐ o nosso. O
indivíduo permanece estranhamente calado diante da compreensão da complexidade.
E com razão, pois fora declarado morto. Entre as duas extremidades do bastão —
simplicidade e complexidade —, falta o terceiro incluído: o próprio indivíduo.
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Uma nova visão do mundo: a transdisciplinaridade
O processo de declínio das civilizações é extremamente complexo e suas raízes
estão mergulhadas na mais completa obscuridade. É claro que podemos encontrar
várias explicações e racionalizações superficiais, sem conseguir dissipar o sentimento
de um irracional atuando no próprio cerne deste processo. Os atores de determinada
civilização, das grandes massas aos grandes líderes, mesmo tendo alguma consciência
do processo de declínio, parecem impotentes para impedir a queda de sua civilização.
Uma coisa é certa: uma grande defasagem entre as mentalidades dos atores e as
necessidades internas de desenvolvimento de um tipo de sociedade, sempre
acompanha a queda de uma civilização. Tudo ocorre como se os conhecimentos e os
saberes que uma civilização não para de acumular não pudessem ser integrados no
interior daqueles que compõem esta civilização. Ora, afinal é o ser humano que se
encontra ou deveria se encontrar no centro de qualquer civilização digna deste nome.
O crescimento sem precedente dos conhecimentos em nossa época torna
legítima a questão da adaptação das mentalidades a estes saberes. O desafio é grande,
pois a expansão contínua da civilização de tipo ocidental por todo o planeta torna sua
queda equivalente a um incêndio planetário sem termo de comparação com as duas
primeiras guerras mundiais.
Para o pensamento clássico só existem duas soluções para sair de uma situação
de declínio: a revolução social ou o retorno a uma suposta “idade de ouro”.
A revolução social já foi tentada no decorrer do século que está acabando e seus
resultados foram catastróficos. O homem novo não passou de um homem vazio e
triste. Quaisquer que sejam os retoques cosméticos que o conceito de “revolução
social” sofrer no futuro próximo, eles não poderão apagar de nossa memória coletiva
aquilo que efetivamente foi experimentado.
O retorno à idade de ouro ainda não foi tentado, pela simples razão de que a
idade de ouro não foi encontrada. Mesmo se supormos que esta idade de ouro tenha
existido em tempos imemoriais, este retorno deveria necessariamente se fazer
acompanhar por uma revolução interior dogmática, imagem espelhada da revolução
social. Os diferentes integrismos religiosos que cobrem a superfície da terra com seu
manto negro são um mau presságio da violência e do sangue que poderia jorrar desta
caricatura de “revolução interior”.
No entanto, como sempre, há uma terceira solução. Esta terceira solução é o
objeto do presente manifesto.
153
A harmonia entre as mentalidades e os saberes pressupõe que estes saberes
sejam inteligíveis, compreensíveis. Todavia, ainda seria possível existir uma
compreensão na era do big-‐bang disciplinar e da especialização exagerada?
Um Pico de la Mirandola é inconcebível em nossa época. Dois especialistas na
mesma disciplina têm, hoje em dia, dificuldade em compreender seus resultados
recíprocos. Isto nada tem de monstruoso, na medida em que é a inteligência coletiva
da comunidade ligada a esta disciplina que a faz progredir e não um único cérebro que
teria de conhecer todos os resultados de todos seus colegas-‐cérebros, o que é
impossível. Pois, hoje em dia, existem centenas de disciplinas. Como poderia um físico
teórico de partículas dialogar seriamente com um neurofisiologista, um matemático
com um poeta, um biólogo com um economista, um político com um especialista em
informática, exceto sobre generalidades mais ou menos banais? E, no entanto, um
verdadeiro líder deveria poder dialogar com todos ao mesmo tempo. A linguagem
disciplinar é uma barreira aparentemente intransponível para um neófito. E todos
somos neófitos uns dos outros. Seria a Torre de Babel inevitável?
No entanto, um Pico de La Mirandola em nossa época é concebível na forma de
um supercomputador no qual poderíamos injetar todos os conhecimentos de todas as
disciplinas. Este supercomputador poderia tudo saber, mas nada compreender. O
usuário deste supercomputador não estaria em melhor situação que o próprio
supercomputador. Ele teria acesso instantâneo a não importa que resultado de não
importa qual disciplina, mas seria incapaz de compreender seus significados e muito
menos de fazer ligação entre os resultados das diferentes disciplinas.
Este processo de babelização não pode continuar sem colocar em perigo nossa
própria existência, pois faz com que qualquer líder se torne, queira ou não, cada vez
mais incompetente. Um dos maiores desafios de nossa época, como, por exemplo, os
desafios de ordem ética, exigem competências cada vez maiores. Mas a soma dos
melhores especialistas em suas especialidades não consegue gerar senão uma
incompetência generalizada, pois a soma das competências não é a competência: no
plano técnico, a intercessão entre os diferentes campos do saber é um conjunto vazio.
Ora, o que vem a ser um líder, individual ou coletivo, senão aquele que é capaz de
levar em conta todos os dados do problema que examina?
A necessidade indispensável de laços entre as diferentes disciplinas traduziu-‐se
pelo surgimento, na metade do século XX, da pluridisciplinaridade e da
interdisciplinaridade.
A pluridisciplinaridade diz respeito ao estudo de um objeto de uma mesma e
única disciplina por várias disciplinas ao mesmo tempo. Por exemplo, um quadro de
Giotto pode ser estudado pela ótica da história da arte, em conjunto com a da física, da
química, da história das religiões, da história da Europa e da geometria. Ou ainda, a
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filosofia marxista pode ser estudada pelas óticas conjugadas da filosofia, da física, da
economia, da psicanálise ou da literatura. Com isso, o objeto sairá assim enriquecido
pelo cruzamento de várias disciplinas. O conhecimento do objeto em sua própria
disciplina é aprofundado por uma fecunda contribuição pluridisciplinar. A pesquisa
pluridisciplinar traz um algo a mais à disciplina em questão (a história da arte ou a
filosofia, em nossos exemplos), porém este “algo a mais” está a serviço apenas desta
mesma disciplina. Em outras palavras, a abordagem pluridisciplinar ultrapassa as
disciplinas, mas sua finalidade continua inscrita na estrutura da pesquisa disciplinar.
A interdisciplinaridade tem uma ambição diferente daquela da
pluridisciplinaridade. Ela diz respeito à transferência de métodos de uma disciplina
para outra. Podemos distinguir três graus de interdisciplinaridade: a) um grau de
aplicação. Por exemplo, os métodos da física nuclear transferidos para a medicina
levam ao aparecimento de novos trata mentos para o câncer; b) um grau
epistemológico. Por exemplo, a transferência de métodos da lógica formal para o
campo do direito produz análises interessantes na epistemologia do direito; c) um
grau de geração de novas disciplinas. Por exemplo, a transferência dos métodos da
matemática para o campo da física gerou a física-‐matemática; Os da física de
partículas para a astrofísica, a cosmologia quântica; os da matemática para os
fenômenos meteorológicos ou para os da bolsa, a teoria do caos; os da informática
para a arte, a arte informática. Como a pluridisciplinaridade, a interdisciplinaridade
ultrapassa as disciplinas, mas sua finalidade também permanece inscrita na pesquisa
disciplinar Pelo seu terceiro grau, a interdisciplinaridade chega a contribuir para o
big-‐bang disciplinar.
A transdisciplinaridade como o prefixo “trans” indica, diz respeito àquilo que
está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das diferentes disciplinas e além
de qualquer disciplina. Seu objetivo é a compreensão do mundo presente para o qual
um dos imperativos é a unidade do conhecimento.
Haveria alguma coisa entre e através das disciplinas e além delas? Do ponto de
vista do pensamento clássico, não há nada, absolutamente nada, O espaço em questão
é vazio, completamente vazio, como o vazio da física clássica. Mesmo renunciando à
visão piramidal do conhecimento, o pensamento clássico considera que cada
fragmento da pirâmide, gerado pelo big-‐bang disciplinar, é uma pirâmide inteira; cada
disciplina proclama que o campo de sua pertinência é inesgotável. Para o pensamento
clássico, a transdisciplinaridade é um absurdo por que não tem objeto. Para a
transdisciplinaridade por sua vez, o pensamento clássico não é absurdo, mas seu
campo de aplicação é considerado como restrito.
Diante de vários níveis de Realidade, o espaço entre as disciplinas e além delas
está cheio, como o vazio quântico está cheio de todas as potencialidades: da partícula
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quântica às galáxias, do quark aos elementos pesados que condicionam o
aparecimento da vida no Universo.
A estrutura descontínua dos níveis de Realidade determina a estrutura
descontínua do espaço transdisciplinar que, por sua vez, explica porque a pesquisa
transdisciplinar é radicalmente distinta da pesquisa disciplinar, mesmo sendo
complementar a esta. A pesquisa disciplinar diz respeito, no máximo a um único e
mesmo nível de Realidade; aliás, na maioria dos casos, ela só diz respeito a fragmentos
de um único e mesmo nível de Realidade. Por outro lado, a transdisciplinaridade se
interessa pela dinâmica gerada pela ação de vários níveis de Realidade ao mesmo
tempo. A descoberta desta dinâmica passa necessariamente pelo conhecimento
disciplinar. Embora a transdisciplinaridade não seja uma nova disciplina, nem uma
nova hiperdisciplina, alimenta-‐se da pesquisa disciplinar que, por sua vez, é iluminada
de maneira nova e fecunda pelo conhecimento transdisciplinar. Neste sentido, as
pesquisas disciplinares e transdisciplinares não são antagonistas, mas
complementares.
Os três pilares da transdisciplinaridade os níveis de Realidade, a lógica do
terceiro incluso e a complexidade — determinam a metodologia da pesquisa
transdisciplinar.
Há um paralelo surpreendente entre os três pilares da transdisciplinaridade e
os três postulados da ciência moderna.
Os três postulados metodológicos da ciência moderna permaneceram imutáveis
de Galileu até os nossos dias, apesar da infinita diversidade dos métodos, teorias e
modelos que atravessaram a história das diferentes disciplinas científicas. No entanto,
uma única ciência satisfaz inteira e integralmente os três postulados: a física. As
outras disciplinas científicas só satisfazem parcialmente os três postulados
metodológicos da ciência moderna.Todavia, a ausência de uma formalização
matemática rigorosa da psicologia, da historia das religiões e de um número enorme
de outras disciplinas não leva à eliminação dessas disciplinas do campo da ciência.
Mesmo as ciências de ponta, como a biologia molecular, não podem pretender, ao
menos por enquanto, uma formalização matemática tão rigorosa como a da física. Em
outras palavras, há graus de disciplinaridade proporcionais à maior ou menor
satisfação dos três postulados metodológicos da ciência moderna.
Da mesma forma, a maior ou menor satisfação dos três pilares metodológicos
da pesquisa transdisciplinar gera diferentes graus de transdisciplinaridade. A
pesquisa transdisciplinar correspondente a um certo grau de transdisciplinaridade se
aproximará mais da multidisciplinaridade (como no caso da ética); num outro grau, se
aproximará mais da interdisciplinaridade (como no caso da epistemologia); e ainda
num outro grau, se aproximará mais da disciplinaridade.
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A disciplinaridade a pluridisciplinaridade, a interdisciplinaridade e a
transdisciplinaridade são as quatro flechas de um único e mesmo arco: o do
Conhecimento.
Como no caso da disciplinaridade, a pesquisa transdisciplinar não é antagonista
mas complementar à pesquisa pluridisciplinar e interdisciplinar. A
transdisciplinaridade é, no entanto, radicalmente distinta da pluri e da
interdisciplinaridade, por sua finalidade: a compreensão do mundo presente,
impossível de ser inscrita na pesquisa disciplinar. A finalidade da pluri e da
interdisciplinaridade sempre é a pesquisa disciplinar. Se a transdisciplinaridade é tão
freqüentemente confundida com a inter e a pluridisciplinaridade (como, aliás, a
interdisciplinaridade é tão freqüentemente confundida com a pluridisciplinaridade),
isto se explica em grande parte pelo fato de que todas as três ultrapassam as
disciplinas. Esta confusão é muito prejudicial, na medida em que esconde as diferentes
finalidades destas três novas abordagens.
Embora reconhecendo o caráter radicalmente distinto da transdisciplinaridade
em relação à disciplinaridade, à pluridisciplinaridade e à interdisciplinaridade, seria
extremamente perigoso absolutizar esta distinção, pois neste caso a
transdisciplinaridade seria esvaziada de todo seu conteúdo e sua eficácia na ação
reduzida a nada. O caráter complementar das abordagens disciplinar, pluridisciplinar,
interdisciplinar e transdisciplinar é evidenciado de maneira fulgurante, por exemplo,
no acompanhamento dos agonizantes. Esta atitude relativamente nova de nossa
civilização é extremamente importante, pois, reconhecendo o papel de nossa morte
em nossa vida, descobrimos dimensões insuspeitas da própria vida. O
acompanhamento dos agonizantes não pode dispensar uma pesquisa transdisciplinar,
na medida em que a compreensão do mundo presente passa pela compreensão do
sentido de nossa vida e do sentido de nossa morte neste mundo que é o nosso.