Post on 07-Jan-2017
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Cristina Nogueira da Silva (professora auxiliar, Faculdade de Direito da Universidade
Nova de Lisboa)
«MODELOS COLONIAIS» NO SÉCULO XIX (FRANÇA, PORTUGAL E
ESPANHA)
FORMS OF COLONIAL GOVERNMENT DURING THE NINETEENTH
CENTURY (FRANCE, PORTUGAL AND SPAIN)
«MODELOS COLONIALES» EN EL SIGLO XIX (FRANCIA, PORTUGAL Y
ESPAÑA)
Publicado em: “«Modelos coloniais» no século XIX (França, Espanha, Portugal)”, in
E-legal History Review, nº 7, 2009.
Resumo:
Na literatura colonial dos finais do século XIX- início do XX, a política colonial
portuguesa surgiu, ao lado da francesa e, em geral, da dos países “latinos”, como uma
política de assimilação, por oposição ao regime britânico de autonomia. A investigação
sobre as políticas coloniais destes países mostra, contudo, que esta classificação não só
(não) era rigorosa, como obedecia a critérios que estavam muito para além dos critérios
científicos da nova “ciência da administração colonial. O objectivo deste artigo é o de
mostrar os contextos culturais e políticos em que estas classificações foram construídas
e os limites da sua força explicativa, por um lado e, por outro, identificar a recepção das
ideias francesas nas políticas coloniais portuguesa e espanhola durante o século XIX,
nomeadamente nos anos que se seguiram às invasões napoleónicas dos dois países.
Abstract:
Portuguese colonial literature written during the last years of the nineteenth
century and the first years of the next century described Portuguese colonial policy as an
assimilationist one, in opposition to the autonomic British model. According to the
academic opinion of those times, the Portuguese source of inspiration would have been
French colonial regime, a “model” to all the “latin nations”. Nevertheless, recent
2
research on those country’s colonial policies shows that these classifications, having
been guided by other criteria than the exclusive scientific criteria of the “science of
colonial administration”, do not render an accurate description of the political options of
those countries in what concerns their colonial government. The aim of this article is to
identify some of the political and cultural contexts which gave rise to those
classifications as well as the limits of their explanatory force. We will also try to show
the reception of French ideas in Portuguese and Spanish’s colonial policies during the
nineteenth century, namely during the years following the Napoleonic invasions in both
countries.
En la literatura colonial durante los últimos años del siglo diecinueve y los primeros
años del XX, la política colonial portuguesa se describía como una política de
asimilación, en oposición régimen británico de la autonomía. De acuerdo con la opinión
académica de eses tiempos, los portugueses se habrían inspirado en el régimen colonial
francés, un "modelo" para la política colonial de todas las "naciones latinas".. Sin
embargo, la investigación reciente sobre la política colonial de estos países está
demostrando que estas clasificaciones, habiendo sido orientadas por otros criterios que
no solamente los criterios científicos de la "Ciencia de administración colonial", no se
revelan suficientes para una descripción exacta de las alternativas políticas de esos
países en lo que respecta su gobierno colonial. El objetivo de este artículo es él de
mostrar los contextos culturales y políticos en los cuales estas clasificaciones fueron
desarrolladas y los límites de su fuerza explicativa, en un lado y, en el otro, identificar
la recepción de las ideas francesas en las políticas coloniales portuguesa y española
durante el siglo diecinueve, concretamente en los años que se han seguido a las
invasiones napoleónicas de los dos países.
Palavras chave:
Administração colonial, igualdade, assimilação cultural, administração indirecta,
pluralismo jurídico, cidadania colonial, missão civilizacional
Colonial administration, equality, cultural assimilation, indirect rule, legal pluralism,
colonial citizenship, civilizing mission.
3
Administración colonial, igualdad, asimilación cultural, administración indirecta,
pluralismo legal, ciudadanía colonial, misión civilizadora
Antes de falar em “modelos coloniais”, portugueses ou franceses, é importante
recordar que o conceito de “modelo” envolve sempre, no que à descrição das situações
coloniais diz respeito, alguns problemas. Não existiram, de facto, modelos de
colonização aplicados de forma sistemática no tempo e no espaço. O que sucedeu
durante a época colonial da história europeia é que os mesmos países – Portugal,
França, Inglaterra e outros – experimentaram soluções diferentes, em lugares e tempos
diferentes, tendo sido, em muitos casos, o sentido pragmático das respectivas instâncias
governativas a orientar essas soluções, mais do que uma reflexão sobre modelos
teóricos de colonização previamente definidos.
Não obstante, é comum encontrar, na literatura colonial portuguesa dos finais do
século XIX e da primeira metade do século XX, a classificação dos “regimes coloniais”
seguidos pelas diversas nações europeias. Três deles eram os regimes de sujeição, o de
autonomia e o de assimilação, de acordo com a classificação política das colónias que
tinha sido acordada no Congresso Colonial francês de 1890 e que foi divulgada na obra
de Arthur Girault, professor de Economia Política na Universidade de Poitiers e
membro do Instituto Colonial Internacional (fundado em 1894). O seu título mais
conhecido, Principes de Colonisation et de Législation Coloniale (1894), foi objecto de
sucessivas edições (1903, 1907, 1921, 1927, 1943) e constituiu um manual de referência
para estudantes e professores de direito colonial em toda a Europa1.
Nesta classificação, Portugal foi invariavelmente colocado ao lado da França
quanto aos modelos de colonização escolhidos2. Essa identidade, verificava-se, de
acordo com a doutrina colonial da época, em três aspectos: (i) Portugal, como a França,
considerava os seus territórios ultramarinos como prolongamentos do território
1 A descrição detalhada das características de cada um dos regimes foi arrumada no capítulo que
Girault dedicou à ”teoria geral da legislação colonial”, v. Arthur Girault, Príncipes de Colonisation et de
Législation Coloniale, Paris, Librairie de la Sociètè du Recueil J.-B Sirey et du Journal du Palais, 1907 (3ª
ed.), pp. 51-92.
2 “Os caracteres da colonização francesa são semelhantes aos da portuguesa”, esta era uma frase que
surgia quase obrigatoriamente nos manuais de direito e administração colonial a partir dos finais do
século XIX, v. Adriano Duarte Silva e Carlos Miranda, Lições de administração colonial (em harmonia
com as prelecções feitas pelo Professor Magalhães Collaço ao terceiro anno jurídico de 1915-1916),
Coimbra, Livraria Neves Editora, p. 64.
4
nacional, dividindo-os administrativamente em províncias (ou departamentos, no caso
francês) em tudo semelhantes às divisões metropolitanas e representando-os no
parlamento metropolitano. Nesses territórios vigoravam, por consequência, a mesma
Constituição e as mesmas leis que vigoravam na metrópole, sendo os respectivos
habitantes (incluindo as populações nativas) cidadãos com direitos iguais aos da
metrópole; (ii) Portugal como a França, seguia uma política centralizadora na
administração desses territórios, na qual quase todas as decisões eram tomadas em
Lisboa/Paris; (iii) Finalmente, os portugueses tendiam a praticar, como os franceses, a
“assimilação” administrativa e cultural das populações nativas dos seus ultramares.
Neste sistema, as autoridades tradicionais nativas, quando eram chamadas a colaborar
na administração, convertiam-se em simples agentes do governo central.
Pelas suas características, este modelo, que os autores associavam ao “regime de
assimilação”, distinguia-se do modelo “de autonomia” seguido nas colónias britânicas.
Aí, pelo contrário, as colónias eram territórios juridicamente distintos e tinham os seus
próprios órgãos representativos, com poderes legislativos (“… as colónias governam-se
por si próprias, regendo-se por leis feitas in loco pelos seus habitantes ou representantes
idóneos”3). No que diz respeito às relações com as populações nativas, nas colónias
britânicas admitia-se o auto governo local por meio das instituições e autoridades
tradicionais, respeitando-se os interesses e a cultura dessas populações.
Esta forma de classificar as políticas coloniais encontra-se nas lições escritas por
José Ferreira Marnoco e Souza (1869-1916), o primeiro professor da cadeira de Direito
colonial criada na Faculdade de Direito de Coimbra, em 19054. E foi, depois,
sistematicamente reproduzida (embora com alterações e uma redução assinalável da
reflexão crítica que caracterizou estas primeiras lições) em obras posteriores sobre
administração colonial, nomeadamente em lições transcritas por alunos das Faculdades
de Direito, como as que atrás citámos5. De acordo com os académicos, mas também
com os administradores e os políticos que cultivavam a “ciência” da administração
colonial da época e, em geral, todos os que reflectiam sobre o tema da colonização,
havia no regime de assimilação seguido pelos portugueses uma forte influência das
3 v. Marnoco e Souza, Administração colonial, prelecções feitas ao curso do 4º ano jurídico do
ano de 1906-1907, 1906, p. 103.
4 v. Marnoco e Souza, Administração colonial, prelecções feitas ao curso do 4º ano jurídico do
ano de 1906-1907, cit.
5 v. Adriano Duarte Silva e Carlos Miranda, Lições de administração colonial, cit., p. 120 e ss.
5
ideias igualitárias da revolução francesa e do “génio assimilador de Roma”, que povos
latinos como a França, a Espanha ou Portugal teriam herdado. Marnoco e Souza, por
exemplo, explicou que “a política de assimilação tem sido seguida pelas nações da raça
latina, como herdeiras do génio assimilador de Roma. Portugal, Espanha e França são as
nações colonizadoras que representam esta política. As ideias da revolução francesa
favoreceram profundamente esta política. Efectivamente, a revolução francesa
proclamou a igualdade de todos os cidadãos, considerou os direitos proclamados por ela
como pertencendo a todos os homens, sem distinção de raça ou de latitude. A
consequência natural e lógica era tratar os habitantes das colónias como os da
metrópole, transportando para além dos mares os direitos do homem […]”6. Esta era um
das ideias que o professor tinha recolhido no livro de Arthur Girault, que também
descrevia a França como uma nação latina herdeira do espírito de “assimilação
romana”. A narrativa que lhe estava associada passava pela referência à preocupação da
colonização romana com o estatuto dos estrangeiros e dos “bárbaros” e também ao
Edito de Caracala, o Imperador romano que, em 212 d.C., estendeu a cidadania romana
a todos os habitantes do Império. Esta última referência já tinha surgido, em 1843, na
doutrina jurídica portuguesa, para caracterizar a relação da metrópole lusitana com os
seus domínios e conquistas ultramarinos. Nesse ano, em comentário à obra do
conhecido publicista Pascoal José de Mello Freire (1738-1798, Institutiones iuris civilis
Lusitaniae), António Liz Teixeira explicava aos alunos de Direito da Universidade de
Coimbra que “[...] A Lusitânia, ou o nosso território, compreende Lisboa, as províncias
e Domínios ultramarinos ou Conquistas” e que “o nosso Jus Civitatis se conservou,
uniforme e igual para todos os Cidadãos, não variando segundo a diversidade das partes
do território, o que já se observava entre os romanos desde Antonino Pio Caracala
[...]” 7.
Era também comum que ao “espírito geométrico” da Revolução francesa e à
latinidade se juntasse a natureza ecuménica do cristianismo, enquanto factor que teria
favorecido o “assimilacionismo” nas políticas coloniais na França, Espanha e Portugal8.
6 V. Marnoco e Souza, Administração colonial …, cit., p. 110.
7 António Ribeiro de Liz Teixeira, Curso de Direito Civil portuguez para o ano lectivo de 1843-44, ou
Comentário às Instituições do Sr. Paschoal José de Mello Freire sobre o mesmo direito, Coimbra,
Imprensa da Universidade, 1845, p. 129. 8 v. Raymond F., Assimilation and Association in French Colonial Theory, 1890-1914, Lincoln
and London, University of Nebraska Press, 2005 (1ª ed: 1960), p. 20 e ss.
6
As classificações atrás descritas e as imagens que lhes estavam associadas eram
simplificadoras em vários sentidos e por vários motivos. Em primeiro lugar porque,
como se referiu no início deste texto, é difícil falar de modelos de colonização, não
obstante ser possível falar de “tendências” que caracterizaram, com maior ou menor
evidência, as políticas coloniais seguidas por cada país. Por outro lado, as classificações
dos regimes coloniais prosseguiam, muitas vezes, para além dos objectivos científicos
inerentes à construção destas tipologias, o objectivo de enaltecer as capacidades
colonizadoras/civilizadoras das Nações, num discurso onde cada uma se apresentava
como seguidora do modelo mais justo ou mais eficaz. Esse efeito estava desde logo
presente no facto de surgir sempre, ao lado dos regimes legítimos da assimilação e da
autonomia, um outro, menos aceitável nos “tempos modernos”, que era o da sujeição.
Este último, que todos remetiam para o passado colonial da Europa e admitiam ser
ainda praticado, numa versão moderada, pela Holanda, era menos legítimo, porque
envolvia a exploração das colónias em favor exclusivo da metrópole, não
contemplando, ao contrário dos dois primeiros, um dos objectivos mais nobres da
colonização, a civilização dos povos “atrasados”9. Apreciada à luz do regime de
sujeição, a administração colonial francesa podia ser descrita como o regime ideal,
porque “corresponde melhor ao fim superior da colonização, de expandir a civilização
da mãe pátria em regiões bárbaras e selvagens”10
.
Outras vezes, as mesmas classificações foram usadas para favorecer discursos de
autocrítica, que fundamentassem alterações nas políticas coloniais seguidas, por meio da
denúncia das fragilidades dos “modelos”, ainda que legítimos, seguidos até então. A
partir dos finais do século XIX, por exemplo, o regime de assimilação foi
sistematicamente criticado, nas literaturas coloniais francesa e portuguesa (sobretudo
em relatórios de governadores, de militares e de ministros, mas também na literatura
académica), em todas as suas dimensões teóricas: por ser um modelo uniformizador,
9 Para haver colonização, torna-se necessário[…] que os emigrantes exerçam uma acção
civilizadora sobre as coisas e as pessoas, utilizando os recursos do solo em que se estabelecem,
explorando as suas riquezas, abrindo vias de comunicação, educando os indígenas e promovendo o
desenvolvimento económicos e social” (v. Marnoco e Souza, Administração colonial…, cit.p. 43). Pelo
contrário, “a política de sujeição inspira-se simplesmente no interesse egoísta da metrópole. Nesta
concepção, o Estado que coloniza trabalha unicamente para si próprio. O fim da obra colonial é aumentar
a riqueza da nação e a influência política do seu governo. Os interesses, as aspirações, as necessidades das
colónias são completamente postos de lado”, v. Marnoco e Souza, Administração colonial…, cit., p. 100.
A utilização destas observações de Marnoco e Souza com o objectivo de desvalorizar a governo colonial
dos países que praticavam regimes de sujeição foi sendo crescente na literatura colonial do século XX.
10 V. Marnoco e Souza, Administração colonial…, cit., p. 123.
7
contrariava a exigência de adaptação às circunstâncias particulares de cada território
ultramarino; por ser centralizador, destruía a iniciativa e a responsabilidade dos agentes
da colonização; por não respeitar os costumes e instituições tradicionais dos povos
nativos, gerava a desconfiança e a resistência à colonização, frustrando os seus
objectivos económicos e culturais. Finalmente, ao converter os indivíduos nativos em
cidadãos, submetia-os a um regime jurídico - político que não podiam compreender e
conferiam-lhe direitos que eram incapazes de compreender ou de exercer11
. É certo que
esta última afirmação, particularmente enfatizada nos seus aspectos negativos, de que a
assimilação envolvia o acesso das populações nativas à cidadania, não foi sempre
afirmada de forma tão clara. Nem Marnoco e Souza, nem a sua principal fonte de
inspiração, Arthur Girault, consideravam que assimilação política e jurídica das
populações nativas fosse característica definidora do regime político da assimilação.
Pelo contrário, ambos sublinharam que a assimilação das colónias não envolvia
necessariamente a assimilação dos indígenas, com a qual não concordavam12
. O certo,
porém, é que rapidamente se divulgou, nas lições de direito como nos manuais de
administração colonial, a ideia de que a assimilação política das colónias envolvia a
assimilação dos povos nativos13
. Deste discurso crítico do regime assimilacionista fez
também parte o elogio do modelo britânico, descentralizador, atento à diversidade das
circunstâncias concretas e adaptando-se a elas, respeitador dos interesses, dos costumes
e das instituições nativas, junto de quem promovia formas “indirectas” de
administração. A associação entre a autonomia das colónias britânicas e o respeito pelas
tradições jurídicas e políticas das populações nativas deu mesmo origem a discursos
equivocados, que se divulgaram de forma “massiva”, nomeadamente nas Faculdades de
11
V., entre muitos outros, Ayres de Ornellas (Ministro da Marinha e Ultramar em 1907), A
Nossa Administração Colonial. O que é, o que deve ser (Conferência apresentada no primeiro Congresso
Colonial Nacional), Lisboa, Imprensa Nacional, 1903; Albano de Magalhães, Estudos coloniais.
Legislação colonial, seu espírito, sua formação, seus defeitos, Coimbra, França Amado Editor, 1907. Este
último autor, que tinha sido juiz em territórios ultramarinos, descreveu exaustivamente as desvantagens
de exportar para aqueles territórios instituições e direitos que os seus povos nativos não podiam, na sua
ideia, compreender.
12 V. Arthur Girault, Príncipes de Colonisation et de Législation Coloniale .., cit., p. 51
13 “…no regime liberal o sistema de assimilação foi por nós seguido, o que de resto se compreende em
virtude da grande influência que exerceram no nosso país as ideias liberais da Revolução francesa. É
assim que a Carta Constitucional dispunha, no art. 7, que os indígenas nascidos no territórios colonial
tivessem os mesmo direitos que os cidadãos portugueses”, v. Adriano Duarte Silva e Carlos Miranda,
Lições de Administração…, cit., p. 128, subl. nossos. Albano de Magalhães exprimia-se em termos
semelhantes (“[…] não nos contentamos em dar a liberdade completa ao preto, fazemos dele um cidadão
com os mesmos direitos que têm os habitantes da metrópole”, v. Estudos coloniais[…], cit., p. 223, subl.
nossos, o mesmo acontecendo no pequeno ensaio atrás citado de Aires de Ornellas “A Nossa
Administração Colonial…”, cit.) e numa multiplicidade de obras escritas na época.
8
Direito e nas Escolas coloniais (“Poderemos mesmo afirmar que este sistema [de
autonomia] se desenvolveu, uma vez que as ideias utópicas da Revolução francesa
fracassaram. Ninguém poderá pensar em igualar os homens. Em primeiro lugar era
preciso resgatar as arestas que diferenciam as raças, tornar homogéneas as condições de
existência dos indivíduos, implantar na terra um só regime climatérico, etc. Cada povo
tem um fundo próprio, e é esse fundo que deve servir de alicerce à sua civilização. Tudo
que for fora disso será contrariar as tendências naturais da humanidade. E para isso só
há um sistema, o da autonomia, que contribui para a solidariedade humana”14
). Esta
narrativa de oposição entre o assimilacionismo latino e o respeito britânico pelas
particularidades culturais, políticas e jurídicas das populações nativas e pelas
autoridades que tradicionalmente os representavam foi, finalmente, reapropriada pela
ciência da administração colonial dos anos ’30 do século XX, num contexto político
internacional marcado pela adopção da indirect rule britânica como doutrina oficial por
parte da Comissão permanente dos Mandatos15. Nessa altura, os ingleses insistiram na
ideia da sua particular vocação para a prática da administração indirecta, por oposição à
administração dos franceses. E os franceses, ao contrário do que haviam feito nos finais
do século XIX, passaram a relativizar a diferença entre o seu e o modelo colonial
britânico, demarcando-se da ideia de que alguma vez a França tivesse sido uma nação
puramente “assimilacionista”16
.
Convém ainda salientar, sem que se vá aqui desenvolver muito este aspecto, que
a apreciação que se fez de um ou de outro destes “regimes” não variou somente ao sabor
dos contextos internacionais e das rivalidades entre as nações europeias pela posse dos
territórios ultramarinos, mas também à medida que conceitos gerados pelo encontro
colonial – como os de raça e a sua fundamentação, ou os de civilização e de “progresso
14
V. José Fortes, Martinho Simões e Ambrósio Neto, Curso de Administração Colonial: segundo as
prelecções do Ex.mo. Sr. Rocha Saraiva ao curso jurídico português, Coimbra, Liv. Neves, 1914, p. 218-
19. 15 Indirect rule é a designação da doutrina colonial teorizada por Frederick Lugard (1858-1945),
nos anos ’20 do século XX, na qual ponteava a ideia de uma administração colonial indirecta, mediada
pela colaboração dos chefes africanos e pela rejeição da imposição “por decreto” da cultura europeia aos
povos colonizados (sobre os seus fundamentos teóricos mais longínquos v. Karuna Mantena, “Law and
«Tradition»: Henry Maine and the Theoretical Origins of Indirect rule”, in Andrew Lewis and Michael
Lobban (eds.), Law and History, Current Legal Issues, Oxford, Oxford University Press, 2003). A
adopção dessa doutrina pela Comissão dos Mandatos fundou-se no artº 22 do Pacto da Sociedade das
Nações, artigo no qual se determinou a forma de “garantir o bem estar e o desenvolvimento dos povos
ainda não capazes de se dirigir si mesmos nas condições particularmente difíceis do mundo moderno”.
16 V. Véronique Dimier, Le Discours idéologique de la méthode coloniale chez les Français et le
Britanniques de l’entre deus guerres à la décolonisation (1920-1960), IEP Bordeaux, Cean, 1998,
« Travaux et documents nº 58-59 (http://www.cean.u-bordeaux.fr), p. 6 e ss e pp 19 e ss.).
9
civilizacional” - se foram alterando, e gerando culturas políticas e científicas diversas.
Culturas políticas e antropológicas mais ligadas a ideias racionalistas e universalistas
valorizaram a dimensão assimiladora da colonização no que às populações nativas dizia
respeito, por ser a mais adequada a levar as “Luzes” a povos considerados
civilizacionalmente atrasados. Culturas políticas e científicas mais sociologistas,
fundadas na observação “empírica” da diversidade humana e da sua irredutibilidade,
desvalorizaram o lado “assimilador” da colonização, transformando-o em sinal de
superficialidade teórica e em símbolo da violência cultural e da ineficácia da
colonização.
Identificados alguns dos contextos e dos significados das classificações que, na
literatura colonial tardo-oitocentista e novecentista, aproximavam a França e Portugal
no que às suas formas de colonizar dizia respeito, é importante recordar, finalmente, que
a referência à França como modelo, que caracterizou fortemente o discurso crítico da
assimilação a partir dos finais do século XIX, não tem equivalente em anos anteriores.
Durante o período de que aqui vou falar, o período da monarquia constitucional
portuguesa (1820-1910), só na fase final, a partir dos anos ’80, é que essa referência se
tornou marcante e unívoca, precisamente nos discursos críticos da assimilação que atrás
identificámos. Até essa altura, as referências à França como modelo foram esporádicas,
além de terem revestido sentidos contraditórios. Assim, para dar um exemplo, quando,
em 1869, se mandou aplicar o Código Civil português de 1867 nos territórios
ultramarinos, o governo, orientando-se pelo que dizia ser o exemplo das “Nações mais
adiantadas” relativamente ao direito dos povos nativos – nomeadamente, pelo exemplo
das colónias francesas da Argélia, do Senegal e da Cochinchina - ressalvou os “usos e
costumes” de alguns grupos da população nativa, desde que não contrariassem a “moral
e ordem pública”, critério clássico para a limitação da validade dos ordenamentos
jurídicos nativos17
. Esta tolerância legislativa em relação aos ”usos e costumes” não
impediu que, dez anos mais tarde, num decreto que reformou a administração da justiça
nos territórios coloniais portugueses, em 1878, o então Secretário de Estado da Marinha
e Ultramar, apoiando-se novamente no exemplo francês, tivesse traçado um retrato
oposto quanto às opções dos governos dos dois países relativamente à tolerância para
17
V. Colecção de Decretos promulgados pelo Ministério dos Negócios da Marinha e Ultramar
em virtude da Faculdade concedida pelo § 1 do art. 15º do Acto Adicional à Carta Constitucional da
Monarquia, Lisboa, Imprensa Nacional, 1870, p. 35.
10
com as tradições jurídicas nativas. No relatório que antecedeu este decreto o então
Secretário de Estado observou que os portugueses, tal como os franceses, ofereciam aos
povos nativos uma “justiça civilizada”, porque os sujeitavam ao mesmo direito e aos
mesmos tribunais a que estavam sujeitos os cidadãos da metrópole. Esta opção,
afirmava-se ainda, fazia dos dois países um exemplo a seguir, por contraposição ao dos
ingleses, holandeses e até espanhóis, em cujas colónias se transigia com as “instituições
decrépitas” e com os “preconceitos seculares” dos nativos e dos colonos, com fórmulas
processuais diversificadas, com a interferência de autoridades tradicionais africanas e
dos funcionários administrativos na administração da justiça. A justiça praticada pelos
portugueses no seu ultramar era, por isso, a “verdadeira justiça, a humanitária, a
fraternal, a cristã […]”, e só encontrava paralelo em algumas colónias francesas18
.
Como se verá mais à frente, a evocação do exemplo francês no decreto de 1869 era
muito mais rigorosa do que neste último, de 1878, embora referisse como equivalentes
exemplos distintos entre si (os da Argélia, do Senegal e da Cochinchina).
Durante o período da monarquia constitucional a França surgiu também, por
vezes, como “contra-modelo”. Em 1843, por exemplo, durante uma discussão sobre se
devia ou não conceder-se poderes de natureza legislativa ao governo metropolitano e
governadores gerais das províncias ultramarinas, alguns deputados manifestaram-se
favoráveis a essa possibilidade, chamando a atenção para o exemplo de outros países
que tinham colónias (na verdade, quase todos esses países podiam ser referidos, como
também se verá mais à frente). Sá da Bandeira, o nome mais importante da política
colonial portuguesa da primeira metade do século XIX, explicou, para contrariar a
proposta, que Portugal era, em matéria de política colonial, diferente de todos os outros
países que tinham colónias. A Carta Constitucional (1826), recordou nessa altura, tinha
igualado as províncias ultramarinas portuguesas às províncias do Reino, e, por essa
razão, o território ultramarino estava representado no Parlamento português.
Consequentemente, não era aceitável que a legislação fosse elaborada fora do
Parlamento (“para que quer a Constituição, que venham deputados do Ultramar, se eles
não são chamados... para ilustrar e esclarecer os negócios daquelas províncias? Que 18 “Ao passo que encontramos os estabelecimentos franceses na Índia com uma legislação análoga à da
metrópole e tribunais constituídos, pouco mais ou menos, segundo os tribunais franceses, o que prova o
seu espírito de unificação; ao passo que encontramos, com uma organização muito parecida aquela, o
Senegal (conquanto ainda em 20 de Maio de 1857 fosse criado um tribunal especial muçulmano, e às
autoridades militares fossem cometidas importantes funções judiciais)”, v. Decreto de 14 de Novembro de
1878 em Entre as mais urgentes necessidades dos povos, entre os deveres mais sagrados do governo,
está a recta administração da justiça, Ministério dos Negócios da Marinha e Ultramar, Direcção Geral do
ultramar, 1ª Repartição, Lisboa, Imprensa Nacional, 1878, p. 3.
11
vêm cá fazer?”19
). Para contrariar os deputados que davam como exemplo outros países
com colónias, Sá da Bandeira chamou então a atenção para a especificidade portuguesa,
mesmo em relação à França: “Os países, que gozam do sistema representativo, como a
Holanda, a França, e a Inglaterra, e que tem colónias, não admitem deputados de
nenhuma delas no corpo legislativo da metrópole; e nós temos os seus representantes na
câmara dos deputados...”20
. Mais à frente ver-se-á que também esta afirmação era
equivocada; sendo verdadeira no momento em que foi proferia, não tinha a validade
genérica que Sá da Bandeira lhe queria atribuir.
A França foi ainda referida como exemplo pelo seu radicalismo republicano,
como aconteceu, em 1852, durante a discussão de um Acto Adicional à Carta
Constitucional de 1826, a propósito do estatuto dos libertos nas colónias portuguesas. A
maioria dos deputados que, nessa discussão, se manifestou contra a concessão da
plenitude dos direitos políticos aos libertos, chamou a atenção para os vários perigos
que essa opção envolvia. A sensibilidade sociológica dos habitantes das colónias e os
conflitos gerados pela legislação que anteriormente abolira o tráfico da escravatura
desaconselhavam a atribuição de direitos políticos a essa “classe de cidadãos”, porque
“no Ultramar há uma desconsideração tão grande, há um desprezo tão profundo pelo
homem que tem sido escravo, que a dizer a verdade seria de um péssimo efeito para
aquelas províncias, se acaso lá vissem entrar, e chegar à urna eleitoral juntamente com o
Cidadão livre, aquele que ainda há pouco era açoitado quase publicamente como
escravo” 21
. A estes argumentos os deputados favoráveis à concessão dos direitos
políticos aos libertos responderam recordando que a lei podia desempenhar um papel na
mudança social, como demonstrava o exemplo da emancipação civil e política dos
libertos nas colónias francesas. A experiência francesa podia ainda servir para afastar os
receios quanto aos efeitos da emancipação na ordem e na paz social (“Houve tempo em
que se receou que a paz pública fosse perturbada, porque quando houve em França a
Revolução de 1790, houve Revoluções espantosas nas colónias francesas, e esperou-se
que em 1830, quando caiu o trono de Carlos X, essas desordens se repetissem;
realmente alguma coisa houve, mas já não tanto como em 1790, e quando agora em
1848 o Governo Provisório não hesitou em dar a liberdade aos escravos, que ainda
havia nas colónias francesas, algumas desordens apareceram na Martinica e Guadalupe,
19
V. Diário da Câmara dos Pares, 1843, sessão de 18 Abril, p. 281.
20 Diário da Câmara dos Pares, 1843, sessão de 18 Abril, p. 290, sublinhados nossos.
21 V. Diário da Câmara dos Deputados, sessão de 13 de Março de 1852, Fontes Pereira de Melo, p. 169.
12
mas na Guiana, no Senegal, e em outras Possessões já não apareceram; o que prova que
os ânimos se prepararam gradualmente para receber a medida. As desordens foram
grandes na primeira Revolução francesa, foram menores em 1830, e foram quase
nenhumas em 1848. Daqui concluo eu, que se formos dar aos Libertos o direito de
votar, a paz pública não há-de sofrer; e que eles hão-se receber com alegria, mas
prudentemente, essa notícia[...]”) 22
. O exemplo francês (que abstraía muita da real
complexidade e dos impasses que o abolicionismo francês enfrentava na altura) servia
então para demonstrar que a legislação tinha uma função libertadora, podendo
antecipar-se aos factos e condicioná-los; que a lei podia ser instrumento de mudança, e
não apenas um reflexo das circunstâncias sociológicas; um instrumento programático,
capaz antecipar o futuro das sociedades.
Francês foi, finalmente, o autor citado para sustentar a proposta oposta a esta
última. Esse autor foi Alexis Tocqueville, alguém cujo papel no processo abolicionista
francês é conhecido23
. Na leitura que um dos deputados portugueses fez da Democracia
na América (1835), eram grandes as desvantagens de uma legislação radicalmente
emancipacionista em sociedades onde os preconceitos raciais era ainda muito vivos,
porque, explicava, o que Tocqueville tinha observado era que, na América, os
preconceitos contra os negros aumentavam à medida que estes deixavam de ser
escravos, agravando-se a desigualdade nos costumes à mesma proporção com que
desaparecia das leis24
. Importava, por isso, evitar que o mesmo sucedesse nas
sociedades coloniais portuguesas.
22
V. Diário da Câmara dos Deputados, sessão de 13 de Março de 1852, Dep. Rodrigues Cordeiro, p.
169. A data referida pelo deputado foi a de 1831, o que coincide, de facto, com a obtenção, pelos libertos
franceses, da plenitude dos direitos civis. As outras coincidem com as reformas legislativas da monarquia
de Julho (1830-48), cujo sentido foi o de facilitar as emancipações, melhorar a condição dos escravos e
preparar a emancipação geral. Em 1848, como é conhecido, Victor Schoelcher aboliu definitivamente a
escravatura nas colónias francesas e a República instituiu o sufrágio universal. 23
Foi membro da comissão para o exame das questões relativas à escravatura e à constituição
política das colónias constituída pelo governo francês a 26 de Maio de 1840, e redactor do respectivo
relatório, em 1843, tendo aí sido confrontado com as duas principais dificuldades colocadas pelo processo
abolicionista: a indemnização dos senhores e a organização do trabalho dos libertos, v. Alexis
Tocqueville, Writings on Empire and Slavery, Baltimore & London, The John Hopkins University Press,
2001.
24 V. Diário da Câmara dos Deputados, sessão de 13 de Março, p. 170. Era esse, de facto, o sentido de
muitas afirmações de Tocqueville: “Em quase todos os Estados onde a escravatura foi abolida deu-se
direitos eleitorais ao negro; mas, se ele se apresenta para votar, corre risco de vida. Oprimido, pode
queixar-se, mas não encontra senão brancos entre os seus juízes. A lei permite-lhe sentar-se no banco dos
jurados, mas o preconceito rejeita-o. O seu filho é excluído da escola onde se instrui o descendente dos
Europeus [...]. Desta forma, o negro é livre, mas não pode partilhar os direitos, prazeres, trabalhos ou
dores, nem mesmo o túmulo daquele relativamente a quem foi declarado igual [...]. No Sul, onde a
escravatura ainda existe, é menor o empenho em por os negros à parte; eles participam, por vezes, nos
trabalhos dos brancos e nos seus prazeres [...]. A legislação é mais dura com eles; os hábitos são mais
13
Terminadas estas considerações iniciais, podemos então descrever e reflectir
sobre os elementos de identidade que de facto existiram na forma como a França,
Portugal e também a Espanha pensaram e concretizaram as suas políticas coloniais, bem
como situar essa identidade no tema que aqui nos interessa, o da recepção das ideias
francesas em Espanha e Portugal na viragem para o século XIX. Um desses elementos
foi, de facto, a adopção do princípio teórico da igualdade como princípio orientador das
relações entre a metrópole e os territórios ultramarinos. A divulgação desse princípio
coincidiu com a emergência, desde os finais do século XVIII, de discursos críticos sobre
a natureza não igualitária da relação colonial, que acompanhou as reivindicações das
elites coloniais25, e ganhou, de facto, uma força renovada, pelo menos no plano dos
argumentos, durante a Revolução francesa26. O que pretendo mostrar é que as políticas
coloniais portuguesas se identificaram com as ideias francesas quer na proclamação
desse princípio, quer, muitas vezes, nas soluções adoptadas, sempre que, em virtude da
natureza facticamente hierárquica das relações formais entre a metrópole e os territórios
ultramarinos e as respectivas populações, se viu na necessidade de se afastar dele.
Foram três os aspectos das políticas coloniais dos dois países nos quais o
princípio teórico da igualdade actuou e se institucionalizou. O primeiro deles foi a
igualisação jurídica dos territórios metropolitano e ultramarino. Na doutrina colonial
francesa, como na portuguesa, os territórios ultramarinos foram doutrinalmente
descritos como extensões do território da metrópole, ao contrário do que sucedeu com
outros Impérios, nomeadamente com o britânico ou o belga, onde a separação jurídica
dos territórios ultramarinos foi mais completa27
. Esta forma de integrar os territórios
teve como consequência quase natural dois elementos que foram comuns à política
colonial portuguesa e francesa: a representação política dos territórios ultramarinos nos
tolerantes e brandos”, v. Alexis de Tocqueville, De la Démocratie en Amérique (ed. Jean Claude
Lamberti), Paris, Robert Laffont, 1986, p. 319. 25 Sobre o conceito de elite colonial e os problemas que suscita enquanto objecto da investigação
histórica, problemas nos quais não nos vamos deter, v. Ângela Barreto Xavier e Catarina Madeira Santos,
“Cultura intelectual das elites coloniais”, in Cultura, Revista de História e Teoria das Ideias, Vol. 24, II
Série, 2007, pp. 9-37.
26 Sobre o conteúdo destes discursos v. a obra clássica de Anthony Pagden, Lords of All The
World, ideologies of Empire in Spain, Britain and France c. 1500-c- 1800, New Haven and London, Yale
University Press, 1995 e também Sankar Muthu, Enlightenment against Empire, Princeton and Oxford,
Princeton University Press, 2003.
27 Sobre a maior separação constitucional dos territórios ultramarinos britânicos e belgas v. Crawford
Young, The African Colonial State in Comparative Perspective, Haven and London, Yale University
Press, 1994, p. 121.
14
parlamentos metropolitanos e a extensão da legislação metropolitana a esses territórios.
Assim, em 1789, a revolução francesa transformou as suas “antigas possessões”, na
América e em África, em parte integrante do território francês, designando o conjunto
por “Império francês”28. A representação dessas antigas colónias no Parlamento, a partir
de 1790, foi descrita como a consequência dos “laços de igualdade” que uniam o
território ultramarino ao metropolitano, embora ela não tenha sido instituída de imediato
mas, pelo contrário, na sequência da pressão de representantes dos interesses dos
proprietários das plantações das Antilhas francesas, como se verá mais detidamente.
O mesmo princípio orientador da igualdade foi depois recebido em Espanha,
com as invasões napoleónicas e a divulgação dos princípios liberais na Espanha
peninsular e americana. Em 1808, na Constituição outorgada em Bayonne por José
Bonaparte (José I, “Rei das Espanhas e das Índias”), declarou - se a igualdade jurídica
dos “Reinos e províncias espanholas da América e Ásia” e articulou-se esse princípio
com a liberalização do comércio e o princípio da representação dos territórios
americanos nas Cortes e no Conselho de Estado 29
. A mesma solução foi depois
acolhida pelos primeiros regimes liberais espanhóis. Em 1810 (a 15 de Outubro)
declarou-se por decreto a igualdade entre espanhóis europeus e espanhóis americanos,
recomendando-se às Cortes que “tratassem com particular interesse tudo o que
respeitasse à felicidade dos povos do Ultramar”, e particularmente à sua representação
política30
. Em 1812 o mesmo princípio foi acolhido na Constituição de Cádis, para cuja
elaboração contribuíram os deputados americanos que estavam presentes nas Cortes
constituintes.
Finalmente, oito anos mais tarde, na sequência da revolução liberal portuguesa,
as Cortes constituintes de Lisboa socorreram-se de soluções idênticas para lidar com o
problema das capitanias brasileiras e comprometeram-se, seguindo o exemplo de Cádis,
28 Designação que nunca obteve estatuto oficial, e que os republicanos viriam a rejeitar, por
causa das suas conotações negativas, v. Denise Bouche, Histoire de la Colonization française, Paris,
Fayard, 1991, T. II: “Flux et reflux (1815-1962)”, p. 100.
29 v. Ignacio Fernández Sarasola, La Constitución de Bayona (1808), Madrid, Iustel, 2007, p. 94 e ss. O tit
X da Constituição de Bayona (“Dos Reinos e províncias espanholas da América e Ásia”), ao determinar a
igualdade de direitos entre a metrópole e as províncias ultramarinas, contrastava com o regime
estabelecido pela Constituição napoleónica de 1799 para a França, onde se que estabelecia, no art. 91, que
“o regime das colónias francesas é determinado por leis especiais”, uma diferença que sugere que, de
facto, a opção napoleónica em Bayonne se relacionou mais com a necessidade de obter o apoio da
América espanhola para o seu projecto político e militar do que com uma ideologia igualitária sobre as
relações com os territórios ultramarinos, v. Ignacio Fernández Sarasola, La Constitución…, cit, , p. 93. 30
V. Carlos Petit Calvo, "Una Constitución Europea para América: Cadiz, 1812", in Andrea
Romano (a cura di), Alle origini del costituzionalismo Europeo, Messina, Accademia Peloritana dei
Pericolanti, 1991, pp. 59-60.
15
a abolir o “sistema colonial”, por meio de um regime político representativo que
concedesse direitos iguais à metrópole e às “antigas colónias” (não só na América, mas
também em África e Ásia), que prometiam transformar em províncias (ultramarinas) de
uma Nação única, espalhada por vários continentes31
. Também em Lisboa, como em
Cádis, a representação política do ultramar se transformou numa componente essencial
do projecto de união. Ela seria a expressão da unidade do Reino e da igualdade das suas
partes, metropolitana e ultramarina.
Comum a França e a Portugal (e Espanha) foi também a natureza muitas vezes
retórica, ou apenas simbólica, que o princípio da igualdade assumiu. Desde logo, em
França, ao contrário do que sucedeu em Portugal e em Espanha, o princípio da
representação não foi uma consequência imediata dos princípios igualitários da
Revolução francesa. Pelo contrário, foi o resultado, nem sempre pacífico, da pressão de
interesses muito concretos. Num primeiro regulamento, o Regulamento Real de 24 de
Janeiro de 1789, para a eleição de deputados para os Estados Gerais, o tema da
participação política das colónias foi silenciado, e quando, em 1788 (11 de Setembro)
chegaram a Paris nove comissários eleitos por uma assembleia de colonos residente em
Paris para representar a colónia americana de S. Domingos na Assembleia, o Conselho
de Estado recusou-se a reconhecê-los. Só no ano seguinte é que esses deputados
obtiveram, já junto da assembleia constituinte, o direito de participar nas sessões
parlamentares. Ao fazê-lo, aquela assembleia criou um precedente para a admissão de
deputados de outras antigas colónias, por ser esse um princípio coerente com os
princípios da soberania nacional e da igualdade de todos os cidadãos. A representação
política das colónias francesas começou, portanto, por ser uma representação da vontade
política dos plantadores (sobretudo brancos) das Antilhas, Guiana e Reunião 32
. Por
outro lado, a actuação desses deputados na assembleia foi quase sempre contrária à
concretização imediata de outros princípios, como o da abolição da escravidão ou a
concessão de direitos políticos às populações livres de cor (hommes de coleur libres)
31
Sobre a emergência destas propostas, no momento em que as Cortes portuguesas decidiram apoiar os
movimentos liberais das capitanias brasileiras, v. Maria Beatriz Nizza da Silva, Movimento
Constitucional e Separatismo no Brasil (1821-1823), Porto, Livros Horizonte, 1988; Valentim Alexandre,
Os Sentidos do Império. Questão Nacional e Questão Colonial na Crise do Antigo Regime Português,
Porto, Afrontamento, 1993, p. 580 e ss.; Márcia Regina Berbel, A Nação como artefacto, Deputados do
Brasil nas Cortes Portuguesas de 1821-1822, S. Paulo, Hucitec, 1999; e Cristina Nogueira da Silva, A
cidadania nos Trópicos. O Ultramar no constitucionalismo monárquico português (c. 1820-1880),
Dissertação de doutoramento apresentada à Universidade Nova de Lisboa (Faculdade de Direito), Lisboa,
2004. 32
V. Yves Benot, La Révolution française et la fin des colonies, Paris, Éditions La Découverte, 1989, p.
43.
16
que residiam nas colónias francesas, princípios que só viriam a concretizar-se nos anos
seguintes, como se verá mais à frente. Antes dessa concretização acontecer, e
exactamente por causa do problema da escravidão, as Constituições francesas (de 1791
e de 1793), apesar de terem consagrado o princípio da representação política dos
territórios ultramarinos, não vigoraram, por exclusão explícita ou por omissão, nesses
territórios33
.
Em Portugal, como em Espanha, e apesar da adesão imediata e da quase
sacralização do princípio da igualdade de direitos e de representação, a atitude dos
deputados peninsulares nas Cortes constituintes (de Cádis, em 1812, e de Lisboa, em
1820) foi a de se concentrarem na ideia de assegurar a supremacia da representação
peninsular nas Cortes da metrópole. Em Cádis esse problema foi em parte resolvido
com a exclusão dos afro-espanhóis (descendentes de africanos, fossem escravos, libertos
ou livres) relativamente à cidadania espanhola. Por serem “espanhóis originários de
África” (e não do território nacional, fosse peninsular ou americano), não podiam ser
cidadãos, de acordo com o art. 22 da Constituição. Este grupo de espanhóis não
cidadãos também não contava como base eleitoral, para o cálculo do número de
deputados (art. 29)34
, opção que ajudou a subrepresentar o território americano e que foi
ainda favorecida pelo real desconhecimento que havia sobre acerca desse território e das
populações que nele residiam35
. Já na Constituição portuguesa de 1822, os libertos
foram integrados na cidadania portuguesa, mas não o foram os índios, como se verá
mais à frente. Por outro lado, o mesmo artigo onde se reconheceu a cidadania aos
libertos portugueses excluiu os escravos da mesma, e a este se juntou um outro,
33
A Constituição de 1791 excluiu explicitamente, no art. 8, a sua vigência nos territórios
ultramarinos, por causa do problema da escravidão. Depois, a Constituição do Ano I foi absolutamente
omissa no que ao problema da escravatura dizia respeito, o mesmo sucedendo com a Constituição de
1793, v. Yves Benot, La Révolution française et la fin des colonies […], cit., p. 167.
34 Não sem a contestação dos deputados da América, para quem a nacionalidade sem cidadania dos
homens livres de cor exigia que fossem contabilizados entre os representados ou que, em vez disso,
fossem declarados inferiores aos loucos, ladrões vagabundos e criminosos, os quais, apesar de terem a sua
cidadania suspensa, eram contabilizados, v. James F. King, “The Colored castes and American
Representation in the Cortes of Cadiz”, in The Hispanic American Historical Review, vol. 33, 1953, p. 61.
Na verdade, “estando os afro-espanhóis somente radicados no continente americano, a Espanha
americana, muito mais povoada (mais de 15000000 habitantes) que a europeia (menos de 10000000)
ficava fatalmente subrepresentada”, v. Carlos Petit Calvo, "Una Constitución Europea para América... ,
cit., p. 64. Sobre este problema e sua discussão v. também Javier Alvarado Planas, Constitucionalismo y
codificación en las provincias de Ultramar. La supervivencia del Antiguo Régimen en la España de XIX,
Madrid, Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2001, pp. 17-38. 35
Sobre o desconhecimento da realidade territorial e populacional americana, bem como sobre os
problemas que isso suscitou no cálculo da representação nas Cortes de Cádis, v. Marta Lorente, “América
en Cadiz (1808-1812)”, in A.A.V.V., Los Orígenes del Constitucionalismo Liberal en España e
Iberoamérica: un estúdio comparado, Sevilha, Junta de Andalucia, 1993, pp. 36 e ss.
17
excluindo-os dos cálculos que determinariam o número de deputados eleitos na
América36
. Não obstante, a subrepresentação da América portuguesa foi sobretudo
explicada pela falta de conhecimentos que se tinha acerca da população das capitanias
brasileiras. Os deputados eleitos nessas capitanias tiveram consciência dessa
desvantagem e alguns deles propuseram que se considerassem outros elementos,
capazes de compensar a desvantagem relativa, como a maior dimensão do território
americano ou a ignorância relativa à real dimensão da sua população37
. Não colocaram,
contudo, a hipótese de contar com a população nativa livre ou com os escravos como
base eleitoral.
Estas e outras opções, nomeadamente as posições centralizadoras no que dizia
respeito à organização administrativa dos territórios - opções nas quais se espelhava o
desejo dos deputados metropolitanos (espanhóis, em 1812, e portugueses, em 1822) em
conservar uma hierarquia favorável à parte europeia (peninsular) do território das
monarquias, e com a qual se articulou a sua insistência em excluir da discussão as
especificidades americanas – , estiveram relacionadas, num contexto cuja complexidade
não faria sentido reconstituir aqui, com as declarações de independência que se
seguiram38
.
A representação política dos territórios ultramarinos (franceses, portugueses e
espanhóis) permaneceu, depois das independências do Brasil e dos territórios espanhóis
36
No artigo da Constituição de 1822 que regulava as eleições, fez-se corresponder a cada
deputado trinta mil habitantes livres (art. 37).
37 V. Diário Cortes Gerais Extraordinárias e Constituintes da Nação Portuguesa, sessão de 14
Novembro de 1821, p. 3076, Dep. Vilela: “se Portugal abunda mais de pessoas livres, e por isso deu mais
representantes, no ultramar é muito maior a extensão territorial”. O facto é que não se chegaram sequer a
elaborar mapas de eleitores no Brasil, v. Joel Serrão e A.H. de Oliveira Marques (dir.), Nova História da
Expansão Portuguesa, vol. VIII (coord. Maria Beatriz Nizza da Silva), “O Império Luso-brasileiro (1750-
1822), Lisboa, Estampa, 1986, p. 414-15. 38
Sobre esta recusa v. Marta Lorente, “América en Cadiz (1808-1812)”, cit., p. 22 e ss. Sobre a natureza
de facto não igualitária do constitucionalismo de Cádis v. também Roberto Luís Blanco Valdês, “El
«problema americano» en las primeras Cortes Liberales espanolas (1810-1814)”, in AAVV, Los Orígenes
del Constitucionalismo Liberal en España e Iberoamérica: un estúdio comparado, Sevilha, Junta de
Andalucía, 1993. As palavras mais recentes de Josep M. Fradera resumem bem o problema com que se
confrontaram os deputados espanhóis eleitos pela metrópole: “Las Cortes se habían impuesto una ardua
tarefa que acabaria en naufragio político: declarar la igualdad de derechos y representación, pero crear al
mismo tiempo una situación de hecho que evitara cualquier transferencia de poder efectivo a la
representación americana, a la que se reservaba la función de minoría permanente en las Cortes. Algunos
de los más destacados portavoces del liberalismo peninsular en las Cortes expresaron la impresión de
estar andando sobre el filo de la navaja, arapados entre la necesidad de conceder derechos políticos y de
asegurar, al mismo tiempo, la preeminencia de la metropoli”, v. Josep M. Fradera, “Por qué no se
promulgaron las «leyes especiales» de Ultramar?”, in Richard L. Kagan e Geoffrey Parker, España,
Europa y el Mundo Atlántico (Homnaje a John H. Elliot), Madrid, Marcial Pons, 2001, pp. 439-461, p.
446.
18
na América, ao longo de todo o século XIX, com algumas interrupção, no caso francês39
e espanhol40
, de forma constante (até à descolonização), no caso português41
. No
entanto, foi comum aos três países o facto de boa parte da legislação para as colónias
não ter realmente sido feita no Parlamento, mas pelos governos (ou até pelos
governadores gerais), daí resultando uma nova distorção relativamente ao princípio
igualitário. O direito constitucional dos três países favoreceu a formação de sistemas
especiais de produção de legislação, também especial, para o Ultramar, o que poderia
envolver, em algumas interpretações, a ideia de que as Constituições não deviam
vigorar em território ultramarino. Assim, em França as colónias foram exceptuadas do
regime comum logo na Constituição de 179942
e, depois, pelo art. 73 da Carta
Constitucional de Luís XVIII, de 1814, que previa que as colónias se regessem “por leis
e regulamentos particulares”, determinação que foi recuperada em quase todas as
posteriores constituições e, nomeadamente, na de 1848 (art. 109) 43
. Depois disso um
Senatus-consulte de 3 de Maio de 1854, votado pelo mesmo regime que suprimiu a
representação colonial nas câmaras metropolitanas, em 1852, estabeleceu o sistema de
governo por meio de decretos do executivo, que permaneceu durante a III República44
.
Neste contexto, o direito metropolitano não se aplicava no ultramar senão fosse a ele
explicitamente entendido por decreto presidencial. O direito colonial era, assim,
ordenado pelo Presidente e era, na prática, exercido por ordenanças promulgadas pelos
39
Em França, ao contrário do que sucedeu em Portugal, a representação política das colónias não foi de
facto constante. Em 1848 tinha-se recuperado a representação das colónias, que Napoleão havia abolido,
mas em 1852 ela foi de novo suprimida, na sequência do golpe de Estado de Luís Napoleão Bonaparte
(Dezembro de 1851), para apenas ser restabelecida em 1870, v. André Lebon, Louis Ayral, Jules Grenard,
Gilbert Gidel et Louis Salaun, Du mode d’administration des Possessions coloniales, Congrés des
Sciences Politiques de 1900, Paris, Sociètè Française d’Imprimerie et de Librairie, 1901, pp. 144-146. 40
Na Constituição espanhola de 1837 rompeu-se com a tradição instituída pela Constituição
gaditana, suprimindo-se a representação política dos territórios ultramarinos (agora, somente Cuba, Porto
Rico e Filipinas), o mesmo sucedendo na de 1845. A Constituição de 1869 devolveu a representação aos
deputados das Antilhas (mas não às Filipinas), que permaneceu também na Constituição de 1876, v.
Maria Paz Alonso Romero, Cuba en la España liberal, Madrid, CEC, 2002, pp. 17-20.
41 Em Portugal, a perenidade da representação política do Ultramar esteve, durante a monarquia
constitucional, muito ligada à recusa de qualquer solução que passasse por uma maior autonomia das
colónias no que à formação da legislação diz respeito, nomeadamente pela formação de assembleias
representativas locais com poderes legislativos. O grande argumento contra qualquer uma destas
possibilidades foi o facto de estarem as colónias representadas no parlamento, v. Cristina Nogueira da
Silva, A cidadania nos Trópicos…, cit., Caps. VI e X. Neste plano, as coisas passaram-se de modo
diferente nos territórios ultramarinos franceses e espanhóis. 42
Constituição de 22 frimaire ano VIII (13 Dezembro de 1799), que determinava, no art. 91, que “o
regime das colónias francesas é determinado por leis especiais”. 43
Essas leis e decretos seriam decididos em Paris e, de acordo com isso, Luís XVIII e Carlos X
regeram-nas através de Ordonances reais e Napoleão III através de Sénatus-consultes.
19
governadores-gerais. O mesmo sucedeu em Espanha, pelo menos a partir de 1876, pois
a Constituição aprovada nesse ano autorizou o governo “para aplicar á las [Províncias
de Ultramar], com las modificaciones que juzgue convenientes y dando cuenta a las
Cortes, las leys promulgadas ó que se promulguen para la Península” (art. 89)45. Além
disso, desde 1837 que as Constituições espanholas determinavam que as províncias do
ultramar fossem governadas por leis especiais. Estabelecido na Constituição de 1837
(disposição adicional 2.1), este regime jurídico especial para as colónias foi conservado
na de 1845 (art. 80), na de 1869 (art. 108) e, finalmente, na de 187646
.
Em Portugal concebeu-se também um sistema especial de produção legislativa
para o ultramar, de acordo com o qual o território ultramarino seria governado por leis
especiais, podendo essas leis, em determinadas circunstâncias, ser feitas pelos governos
ou pelos governadores-gerais. No artigo 137 da Constituição de 1838, integralmente
dedicado ao governo das províncias ultramarinas, declarou-se que “as Províncias
Ultramarinas poderão ser governadas por leis especiais segundo exigir a conveniência
de cada uma delas”; que o governo podia, “não estando as Cortes reunidas, decretar, em
Conselho de Ministros, as providências indispensáveis para ocorrer a alguma
necessidade urgente de qualquer província ultramarina”; e que também os
Governadores-gerais das províncias ultramarinas podiam tomar, “ouvido o Conselho de
Governo, as providências indispensáveis para acudir a necessidade tão urgente que não
possa esperar pela decisão das Cortes ou do Poder executivo”. Todas as providências
tomadas pelo governo ou governadores seriam “submetidas” às Cortes, quando estas
reunissem. Este quadro constitucional desapareceu em 1842, com a restauração da Carta
Constitucional de 182647
, mas por muitos breves meses, já que, nesse mesmo ano, o art.
44
v. Denise Bouche, Histoire de la Colonization Française, cit., e Martin Deming Lewis, "One Hundred
Million Frenchmen: the «Assimilation» Theory in French Colonial Policy", in Comparative Studies in
Society and History, vol. IV, nº 2, Jan. 1962, p. 136. 45 V. Maria Paz Alonso Romero, Cuba en la España liberal…, cit., p. 19.
46 V. Javier Alvarado Planas, “El Régimen de Legislación especial para Ultramar y la Cuéstion
Abolicionista en España Durante el Siglo XIX” (http://www.bibliojuridica.org/libros/1/133/3.pdf
[2004.04.18], p. 2, versão impressa em Cuadernos del Instituto de Investigaciones Jurídicas, nº 2, 1998.
A tese do autor é a de que o sistema de legislação especial se destinou a subtrair o ultramar ao programa
de reformas liberais (v. Javier Alvarado, Constitucionalismo…, cit., p. 18) e a perpetuar o sistema
esclavagista (v. Idem, “El Régimen …”, cit., p. 2). 47
O silêncio da Carta Constitucional relativamente à natureza da legislação que deveria vigorar no
ultramar ou à sua formação permitia deduzir que nelas vigoraria a mesma lei metropolitana e o mesmo
modo de legislar; embora fosse possível interpretar o seu art. 132 num sentido diferente, mais
diferenciador, como também aconteceu.
20
137 da Constituição abolida foi reposto por um decreto do governo48
. Depois, no ano
seguinte, as Cortes votaram uma lei que recuperou o essencial do mesmo artigo,
“legalizando” o anterior decreto49
. Finalmente, em 1852, o Acto Adicional à Carta
constitucional, então em vigor, reproduziu praticamente, no seu art. 15, o art. 137 da
Constituição de 1838, constitucionalizando a lei anterior.
Como se verá, além desta possibilidade de produzir legislação especial, em
Portugal, como em França, o direito metropolitano só vigorou nos territórios
ultramarinos depois da sua extensão por decreto do governo. Sendo assim, se a
especificidade do sistema de assimilação, tal como viria a ser formalizado nos finais do
século, consistia no facto de a legislação colonial ser feita nos parlamentos
metropolitanos, sendo isso que o diferenciava do sistema de sujeição, onde ela era feita
pelo governo, então quer Portugal quer a França (e a Espanha) se aproximaram, neste
aspecto, mais deste último “regime” do que daquele a que foram tradicionalmente
associados pela doutrina colonial tardo-oitocentista, o da assimilação50
.
A igualdade de direitos e de representação trazia consigo a igualdade jurídica
das populações que residiam nas colónias, outra consequência da afirmação teórica do
princípio da igualdade pelos governos dos três países. Mas também no que diz respeito
à concretização deste princípio, os três oscilaram entre medidas de maior inclusão e
medidas de exclusão que eram problemáticas do ponto de vista daqueles princípios,
como em parte já se viu atrás. Assim, em França, os dois problemas com que a
revolução se debateu, desde o início, nas “velhas colónias” (Antilhas (Guadaloupe e
Martinique), Reunião e Guyane) foram os da igualdade civil entre brancos e hommes de
coleur libres (mulatos e negros libertados, que souberam apropriar-se dos princípios da
revolução para conseguir obter direitos que não tinham até então) e a abolição da
escravidão. Estes problemas, que foram omitidos na Constituição de 1791,
inviabilizando a sua vigência no ultramar, foram sendo resolvidos ao longo da primeira
48
Decreto de 2 de Maio de 1842, autorizando os governadores das Províncias a providenciarem em casos
urgentes, v. Boletim do Conselho Ultramarino, Legislação Novíssima, Lisboa, Imprensa Nacional, 1867,
vol. I (1834-1851), p. 206. 49
Lei de 2 de Maio de 1843, V. Boletim do Conselho Ultramarino, Legislação Novíssima, cit., pp. 308-
310. 50
Fazia parte do sistema de sujeição que a legislação fosse feita pelo Ministro das Colónias; no sistema
de assimilação, a legislação seria feita pelo parlamento da metrópole, no qual teriam assento
representantes das colónias; no sistema de autonomia “é a própria colónia que legisla para si”, não
necessitando, por isso, de ter representantes seus no parlamento metropolitano, v. José Fortes, Martinho
Simões e Ambrósio Neto, Curso de Administração Colonial, segundo as prelecções do Sr. Dr. Rocha
Saraiva ao curso jurídico de 1912-1914, Coimbra, Livraria Neves, 1914, p. 219-20.
21
metade do século XIX, por meio de reformas legislativas que, com avanços e recuos
suscitados pela pressão dos interesses dos plantadores franco-descendentes, acabaram
por desenhar uma tendência geral de sentido universalista. Assim, depois de alguns
episódios e diplomas ambíguos ou de sentido contraditório – ambiguidades e incertezas
que contribuíram para a revolução em S. Domingos -, os direitos políticos e civis das
populações livres de cor foram consagrados, primeiro num decreto de 4 de Abril de
1792 (reconhecendo a cidadania a essas populações), e depois, num outro, de 23 de
Agosto de 1792, determinando que “todos os cidadãos livres, de qualquer cor e de
qualquer estado, à excepção daqueles que se encontram num estado de domesticidade,
pudessem votar para formar a Convenção Nacional51
. Depois, já durante a primeira
República, e também sob pressão de acontecimentos vividos nos territórios coloniais,
aprovou-se a primeira abolição da escravidão (4 de Fevereiro de 1794) e a população de
cor acedeu à plenitude da cidadania (“A escravatura dos negros em todas as colónias é
abolida; por consequência, todos os homens, sem distinção de cor, domiciliados nas
colónias, são cidadãos franceses e gozarão de todos os direitos garantidos pela
Constituição”). A Constituição de 1795, finalmente, considerou as colónias como parte
integrante da República, em situação de absoluta igualdade relativamente a todos os
seus outros departamentos (“As colónias francesas são partes integrantes da República,
e ficam sujeitas à mesma lei constitucional”, art. 6)52
, tendo sido esse o momento em
que ao “universalismo territorial” se juntou o que Pierre Rosanvallon designou por
“universalismo racial” 53
. Esta situação formal foi alterada com o restabelecimento
napoleónico da escravidão (1802), mas recuperada, em 1848, com a abolição definitiva
da escravidão (27 de Abril de 1848). O sufrágio universal instituído pela constituição
aprovada nesse ano veio, no entanto, recolocar o problema dos direitos políticos das
populações nativas das colónias, sobretudo nos territórios recentemente conquistados,
no Senegal e na Argélia. Como se verá, a universalização do sufrágio, conjugada com a
dimensão demográfica das populações nativas destes territórios, teve como resultado a
51
Sobre o papel das populações de cor livres das colónias e dos seus representantes na votação destes
decretos, que em 1792 obtiveram, por motivos circunstanciais relacionados com a revolta de escravos, o
apoio contra natura dos colonos brancos, v. William B. Cohen, Français et Africains, Les Noirs dans le
regard des Blancs, 1530-1880, Paris, Ed. Gallimard, 1981, p. 166 e ss. 52
V. Martin Deming Lewis, "One Hundred Million Frenchmen: the «Assimilation» Theory [ …]”, cit, p.
134 e Collecção de Constituições Constituições antigas e modernas, com o projecto de outras seguidas
de um exame comparativo de todas elas (por 2 bacharéis), Lisboa, Tip. Rollandiana, 1820-1822, vol. IV,
p. 43. 53
V. Pierre Rosanvallon, Le Sacre du Citoyen, Histoire du Suffrage Universel en France, Paris,
Gallimard, 1992, p. 425.
22
interrupção da tendência universalista das reformas da primeira metade do século no
que aos direitos dos territórios e populações ultramarinas diz respeito.
O universalismo das políticas francesas da primeira metade do século XIX não
se reproduziu de forma absoluta nas políticas seguidas pelos governos portugueses e
espanhóis. Como se viu atrás, a primeira Constituição aprovada pelo regime saído da
revolução liberal portuguesa (1820-22) consagrou, depois de uma discussão onde o
fantasma dos acontecimentos ocorridos na ex. colónia francesa de S. Domingos foi
constantemente convocado, a plena cidadania dos libertos (que, simplificando, podemos
considerar, sob o ponto de vista jurídico, o grupo equivalente, nos territórios da
monarquia portuguesa na América, aos hommes de coleur libres da América francesa)54.
Por outro lado, no mesmo artigo onde se reconheceu a cidadania dos libertos excluiu-se
implicitamente dela os escravos. O que se declarou nesse artigo foi a cidadania
portuguesa dos “escravos que alcançarem carta de alforria” (art. 21, § IV), o que
significava que os que não alcançassem a alforria não eram nem cidadãos, nem
portugueses, já que o constitucionalismo português, ao contrário do francês e do
espanhol, nunca fez essa distinção55. O facto da delicada questão do estatuto dos
escravos ter sido tratada pela Constituição vintista permitiu a sua (curtíssima) vigência
nos territórios ultramarinos na América (Brasil) e em África. Muito menos clarificado
foi, contudo, o estatuto dos índios do Brasil, que nunca foram integrados na cidadania
portuguesa, ao contrário do que sucedeu com a Constituição espanhola de Cádis. O que
resultou das discussões e projectos que surgiram permite-nos afirmar que os índios
foram considerados “sujeitos do Império português” pela maioria dos deputados
vintistas e que se antevia a possibilidade de acederem à cidadania, mas à medida que se
cristianizassem e se civilizassem. Nesse sentido, o último artigo da Constituição (art.
240) comprometia o governo português a “cuidar” da “civilização dos Índios” 56
.
54 Convém no entanto lembrar que a conservação do esquema censitário afastasse a maior parte
dos libertos (ainda que nem todos) do acesso ao voto
55 Alguns juristas portugueses consideravam que a Carta Constitucional portuguesa era, por isso,
mais liberal do que a francesa (“e tanto basta para que nós, respeitando aliás a opinião contrária de alguns
sábios, mas respeitando mais a Carta e os princípios da hermenêutica, não ousemos distinguir, para
encurtar o favor, com que o imortal Outorgador da nossa lei fundamental contemplou os portugueses,
fazendo-os todos cidadãos[…]. Em resultado, todo o português é cidadão, mas dividem-se os cidadãos em
activos e não activos – ou passivos – sendo aqueles os que se acham no exercício dos seus direitos
políticos e estes os que os têm suspensos”), v. António Ribeiro de Liz Teixeira, Curso de Direito Civil
portuguez […], cit., p. 147.
56 O deputado vintista Trigoso, dizia, em relação aos índios, que deviam ser “[...] catequizados, e ainda
que sejam sujeitos ao império português, a Constituição mesma [...] manda prover na sua conversão e
23
A escravidão nas colónias portuguesas foi abolida por decreto, mas mais tarde,
em 1869, na sequência de uma política abolicionista igualmente conturbada, moderada,
progressiva e com características que evocam o processo abolicionista francês,
nomeadamente no achamento de soluções para questões que se tornaram centrais em
ambos os países: primeiro, a indemnização dos senhores de escravos, através de
políticas que adiavam a abolição definitiva do trabalho obrigatório, depois, a
organização/regulamentação do trabalho dos escravos libertados57.
Em Espanha os índios da América foram, como se referiu já, considerados
cidadãos na primeira Constituição (1812), por serem espanhóis “naturais e originários
da América” (art. 22). O mesmo não sucedeu, por o não serem, com as populações de
origem africana: escravos e libertos foram afastados da cidadania espanhola pelo art. 22
daquela Constituição58
. No respeitante à escravidão e sua abolição, problemas e
soluções idênticas colocaram-se aos governos espanhóis, igualmente divididos entre a
“imposição” moral e política do abolicionismo e, simultaneamente, o desejo de evitar
conflitos insanáveis com os plantadores cubanos que, nos períodos em que isso foi
possível, se fizeram representar no parlamento espanhol e aí defenderam posições
esclavagistas59
. Assim, a escravidão só viria a ser abolida em Cuba em 1880.
Finalmente, em todos os territórios ultramarinos (franceses, portugueses e
espanhóis) a ordem esclavagista foi, depois das abolições definitivas, substituída por
uma “ordem colonial” marcada pela regulamentação do trabalho africano que passou,
quase sempre, pela imposição mais ou menos assumida de regimes de trabalho
obrigatório.
Como referimos atrás, a tendência universalista da política francesa na primeira
metade do século, que teve como objecto as antigas colónias das Antilhas e do Senegal
civilização” (v. Diário Cortes Gerais Extraordinárias e Constituintes da Nação Portuguesa, sessão de 6
Agosto 1821, p. 1803, Dep. Trigoso, subl. nossos. 57 Sobre o processo abolicionista português v. os trabalho de João Pedro Marques,
nomeadamente a sua dissertação de doutoramento, Os Sons do Silêncio: o Portugal de Oitocentos e a
Abolição do Tráfico de Escravos, Lisboa, ICS, 1999 e Portugal e a escravatura dos africanos, Lisboa,
ICS, 2004. Sobre os aspectos jurídicos do abolicionismo e sua interpretação v. Cristina Nogueira da Silva,
A cidadania nos Trópicos…,cit., particularmente o cap. 9.3: “Graduando os cidadãos: os libertos”.
58 Sobre o estatuto dos Índios na Constituição de Cádis e os seus possíveis significados v. B.
Clavero, José Maria Portillo e Marta Lorente, Pueblos, Nación, Constitución (en torno a 1812), Ikusager
Ediciones, 2004. Uma interpretação diferente pode encontrar-se em Tamar Herzog, Defining Nations,
Immigrants and Cititizens in Early Modern Spain and Spanish America, New Haven and London, Yale
University Press, 2003, onde se integra a solução gaditana no contexto da tradição anterior, de Antigo
Regime, sobre o modo de pensar o estatuto dos índios na América espanhola.
59 V. Javier Alvarado Planas, “El Régimen de Legislación especial para Ultramar y la Cuéstion
Abolicionista en España Durante el Siglo XIX”, cit.
24
(Saint-Louis e Gorée), não perdurou nos territórios ocupados pela França ao longo do
século XIX, nomeadamente em África e na Ásia. A partir de 1848, sob efeito conjugado
do sufrágio universal, da abolição definitiva da escravidão, e, além disso, de
representações sobre a distância cultural e “civilizacional” em que se encontravam os
povos mais recentemente conquistados, na Argélia, em África e no Extremo Oriente,
foram outras, e muito menos claras, as soluções encontradas pelos republicanos
franceses. Como se sabe, a resolução do problema do acesso das populações nativas
destes últimos territórios à cidadania passou pela invenção de categorias jurídicas
ambíguas, como as de “franceses não cidadãos”, “indígenas não cidadãos” ou “súbditos
franceses”, categorias que encerraram a maioria dessas populações num estatuto de
menoridade sem prazo claramente definido. No caso da Argélia, para o período que nos
interessa, a fronteira que separava o francês não cidadão do francês cidadão passou a
ser clara a partir da publicação do Sénatus-Consulte que, a 14 de Julho de 1865,
consagrou a nacionalidade francesa do “indígena muçulmano”, admitindo que ele
continuasse a ser regido pela lei muçulmana, mas recusando-lhe, por isso mesmo, a
cidadania francesa. A partir daquela data os argelinos passaram a ser, juridicamente,
franceses mas, em virtude da diferença da sua religião e dos seus usos e costumes, não
podiam ser cidadãos franceses. Para o serem tinham que requerer a naturalização,
renunciar em bloco ao direito civil muçulmano e ser regidos pelas leis civis francesas.
Só assim seria observado, como então se argumentou, o princípio da igualdade perante a
lei 60
. A situação dos habitantes nativos dos outros territórios coloniais era muito mais
ambígua, porque não foi criado, durante o século XIX, nenhum procedimento de
naturalização para esses indígenas, semelhantes ao criado para os indígenas argelinos.
Sendo assim, eles “não eram considerados como estrangeiros, mas também não podiam
tornar-se plenamente franceses”. A situação jurídica dos que eram nativos daqueles
territórios caracterizou-se então, ao longo de todo o século, por um hibridismo que
nunca foi doutrinal ou legislativamente esclarecido 61
. Isso aconteceu porque havia uma
relação implícita entre “civilidade” e cidadania que relegava as populações com hábitos
e costumes diferentes dos europeus para um tempo histórico anterior e para o
correspondente “grau civilizacional” (inferior) 62
. Foi essa também a situação da maioria
das populações nativas do ultramar português durante o século XIX e primeiros anos do
60
V. P. Rosanvalon, Le Sacre du citoyen [...], cit.,p. 428. 61
Idem, ibid., p. 424. 62
Idem, ibid., p. 431.
25
século XX. Neste aspecto, a recepção das opções políticas francesas em Portugal pode
ser concretamente aferida num decreto de 1869 onde o Ministro português do Ultramar
declarou inspirar-se, para a (in)definição do estatuto civil das populações ultramarinas,
no exemplo francês da Argélia, do Senegal e da Cochinchina. De acordo com esse
diploma, que já aqui citámos, os indivíduos nativos dos territórios ultramarinos
portugueses podiam optar, de comum acordo, por um dos ordenamentos jurídicos que
vigorassem no território, o do Código Civil português de 1867 ou os dos “usos e
costumes”. Contudo, além de o fazerem individualmente, faziam-no caso a caso, e sem
que isso tivesse qualquer consequência formal do ponto de vista do seu estatuto face à
cidadania portuguesa, pois não se previa, como tinha feito a legislação francesa em
relação aos argelinos muçulmanos, que pudessem renunciar em bloco ao seu direito
civil, para se tornarem cidadãos portugueses.
A menoridade política e civil dos povos nativos das colónias francesas foi
confirmada pelo Code d’indigénat francês de 1881, no qual os indivíduos nativos
passaram à condição de súbditos, que os diferenciava da de cidadão francês63. Nas
colónias portuguesas a indefinição formal do estatuto das populações nativas só foi
definitivamente resolvida com a publicação, já em 1926, do primeiro Estatuto do
Indígena, no qual se distinguiu, de forma sempre ambígua, os nativos portugueses que
eram indígenas dos que podiam ser cidadãos, estabelecendo-se os critérios pelos quais
os primeiros poderiam aceder à cidadania64.
63 Publicado pelo governo francês a 28 de Julho de 1881, para ser aplicado na Argélia, este Código veio a
ser oficialmente aplicado a todas as colónias francesas em 1887 e só viria a ser formalmente abolido em
1946. Através das suas determinações os indígenas foram, entre outras coisas, submetidos a um regime
penal especial e ao trabalho forçado
64 Dec. lei nº 12.533 de 23 de Outubro de 1926, a Carta básica que estabeleceu o Estatuto político, civil e
criminal dos indígenas de Angola e Moçambique. Neste estatuto eram indígenas “os indivíduos de raça
negra ou dela descendentes que, pela sua ilustração e costumes, se não distingam do comum daquela
raça” (art. 3), a quem se negaram direitos políticos ou de participação em outras instituições que não
apenas as suas, as “tradicionais”. Data no entanto de 1914 o primeiro diploma legislativo português onde
foi pensado um estatuto pessoal (civil, político e criminal) próprio para o indígena, que nele podia ser ou
“cidadão da República”, com todos os direitos civis e políticos, desde que falasse português ou qualquer
outra “língua culta”, não praticasse os usos e costumes característicos do meio indígena, exercesse
profissão, comércio ou indústria, ou possuísse bens de que se mantivesse, sendo os outros apenas
“súbditos da República portuguesa”, v. Bases nº 16 a 18 da Lei nº 277 de 15 de Agosto de 1914 (Lei
orgânica da administração civil das províncias ultramarinas) em Artur R. de Almeida Ribeiro,
Administração Civil das Províncias Ultramarinas, proposta de Lei Orgânica e Relatório apresentado ao
Congresso pelo Ministro das Colónias, Lisboa, Imprensa Nacional, 1914, p. 20. Sobre o Estatuto de 1926
e os que se lhe seguiram, até à sua derrogação, v. A.D.S., “Estatuto dos Indígenas” in Fernando Rosas e
J.M. Brandão de Brito (orgs.), Dicionário de História do Estado Novo, Lisboa, Bertrand, 1996, vol. I, p.
320.
26
Não era então rigorosa a afirmação, tantas vezes repetida, a partir dos finais do
século XIX, na literatura colonial, de que Portugal seguia a França na concessão de
direitos políticos a todos os habitantes nativos das colónias, porque tal não sucedeu em
qualquer uma das políticas coloniais. Como se viu nas palavras iniciais desse texto,
alguns autores afastaram-se desta afirmação, nomeadamente Marnoco e Souza, que
recorreu mesmo ao exemplo argelino para mostrar que se podia “[…] seguir numa
colónia a política de assimilação sem assimilar os indígenas. Assim a França tem feito
assimilação política, de um modo excessivo, na Argélia, mas não tem procurado
assimilar os indígenas. Têm sido conservadas, efectivamente, nesta colónia, as leis e as
instituições indígenas, ao mesmo tempo que os Árabes têm continuado a gozar do
direito muçulmano”65
. O professor da universidade de Coimbra chegou mesmo a
identificar a fonte desse equívoco nos ensinamentos de Henri Hubertus van Kol (1852-
1925): “Van Kolm nota que por onde as raças anglo-saxónicas e germânicas têm
colonizado se tem mantido a administração indígena. As raças latinas, pelo contrário,
impulsionadas por um grande sentimento de fraternidade, procuraram assimilar os
habitantes de países longínquos aos da metrópole. Ora isto não é exacto, porquanto as
raças latinas têm seguido a política da assimilação, mas nunca chegaram até à
assimilação dos indígenas”66
).
Não era também rigorosa, portanto, a ideia de que os indivíduos nativos teriam
sido sujeitos, no regime colonial português e francês, sujeitos ao direito metropolitano.
Pelo contrário, a menoridade do seu estatuto foi, em ambas as políticas coloniais,
associada à tolerância para com os seus “usos e costumes”, designação que remete
desde logo para a inferiorização da ordem normativa tolerada. É certo, no entanto, que
havia uma intenção, subjacente aos discursos sobre o estatuto das populações nativas
das colónias, de conseguir uma “assimilação progressiva”, discurso no qual estava
subentendido – e, às vezes, explicitado - que as populações nativas acederiam à
cidadania no momento em que se sujeitassem, voluntariamente, à justiça e aos Códigos
europeus, sendo essa uma consequência natural da obra colonizadora. O próprio acto de
fazer códigos de “usos e costumes” era descrito, pela administração portuguesa, como
65
V. Marnoco e Souza, “Regime Jurídico das populações [ …]”, cit., p. 101. 66
V. Marnoco e Souza, “Regime Jurídico das Populações indígenas”, in Antologia Colonial Portuguesa,
Lisboa, Agência Geral das Colónias, 1946, vol. I: “Política e Administração”, p. 101. Mas o facto é que
ele mesmo acabou por afirmar, a certa altura, que os portugueses tinham praticado ambas as formas de
assimilacionismo, “…levados pelo “[…] desejo de alargar as prerrogativas liberais, [pela] ignorância dos
costumes e das instituições dos indígenas, [e pela] grande facilidade de obter leis para o Ultramar[…]”, V.
Administração Colonial[…], cit., p. 201.
27
um meio de impulsionar essa mudança67. Nisso, de facto, fazia-se jus à tradição romana,
que conjugava o desprezo pelos “bárbaros” com a sua integração no Império, mas só
depois de absorverem o direito romano e a civilização clássica68
.
Portugal, como a França, exportou para os territórios coloniais a sua legislação e
os seus Códigos legislativos, embora sempre mediante aprovação do governo, tal como
em França o foi mediante a aprovação presidencial69
. E, seguindo também o exemplo
francês, admitiu sempre que se introduzissem neles as modificações necessárias,
nomeadamente para permitir a preservação de instituições que era contrárias aos
princípios que esses Códigos positivavam, como foi, durante algum tempo, o caso da
escravidão ou, depois da abolição, do trabalho forçado.
Esta exportação da legislação e dos Códigos, e nomeadamente os
administrativos, fez com que a organização administrativa do Ultramar português, como
do francês (sobretudo nas antigas colónias de Martinique, Guadaloupe e Reunion e na
Guyane), fosse, formalmente, um espelho da organização administrativa das
metrópoles. A França dividiu o seu ultramar em departamentos, governou-o através de
governadores (depositários do poder real ou da República) assistidos por Conselhos
(normalmente integrados por europeus, mas tendencialmente, sobretudo a partir de
finais do século, com presença de representantes das populações nativas), governadores
esses com poderes semelhantes (embora tendencialmente mais alargados) aos dos
prefeitos em França. Criou Conselhos gerais (em algumas ocasiões designados como
Conselhos coloniais) organizados e formados de forma equivalente aos Conselhos
gerais dos departamentos franceses, primeiro nas antigas colónias, depois também na
Argélia, no Senegal, na Índia e na Cochinchina. Exportou, finalmente, o regime
municipal francês, o que fez com que as três ilhas (Antilhas, Reunião e Guadaloupe) se
assemelhassem muito aos departamentos franceses, embora o poder dos respectivos
67 V. Cristina Nogueira da Silva, “«Missão civilizacional» e Codificação de «usos e costumes» na
doutrina colonial portuguesa (séculos XIX-XX)”, in Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero
Giuridico Moderno, nºs 33-34, t. II, 2004-2005, pp. 899-921. 68
V. Michael W Doyle, Empires, Ithaca and London, Cornell University Press, 1986, p. 121
69 Em 1838, o governo português publicou um decreto que proibiu os governadores e os governos
provisórios dos Domínios ultramarinos de pôr em execução qualquer lei, decreto, portaria ou regulamento
sem prévia autorização do Ministério da Marinha e Ultramar, tendo sido esta a situação formal durante
todo o século de oitocentos, v. Decreto de 27 de Setembro de 1838, Legislação Novíssima, cit., vol.I, p.
61.
28
governadores tenha sido sempre maior do que o dos perfeitos. A introdução do princípio
electivo na formação dos órgãos departamentais e municipais foi, finalmente, uma
tendência que acompanhou também as alterações introduzidas pelas reformas
administrativas da metrópole. Nos territórios ultramarinos portugueses as opções
administrativas foram semelhantes às da França: à semelhança da organização
administrativa da metrópole, as províncias ultramarinas dividiram-se em distritos e os
distritos em concelhos. Haveria governadores-gerais em Cabo Verde, Angola,
Moçambique e Índia, governadores nas outras duas províncias e governadores
subalternos nos distritos. No que diz respeito aos órgãos da administração provincial,
previa-se, em decretos dos anos ’30 e dos anos ’6070, que existissem, ao lado de um
Governador-geral com poderes alargados (mas sucessivamente delimitados face às
Cortes e ao Governo central), órgãos da administração provincial semelhantes aos que
funcionavam junto do governador civil na metrópole. Esses órgãos eram os Conselhos
de Governo, presididos pelo governador e com atribuições meramente consultivas, e as
Juntas Gerais (de Distrito, ou de Província), semelhantes às Juntas Gerais de Distrito
que funcionavam junto dos governadores civis dos distritos metropolitanos e com as
atribuições consultivas, deliberativas e de fiscalização que estavam codificadas no art.
216 do Código Administrativo português de 184271
.
Mas os governos dos dois países comungaram também da ideia de que só de
forma restrita e em zonas geográficas circunscritas, onde houvesse um volume
significativo de população europeia, se podiam aplicar os códigos metropolitanos no
ultramar. O que se pensava, em geral, era que os Códigos se estendiam ao Ultramar para
regular as relações entre europeus ou populações europeizadas ou para organizar a
administração em regiões onde a presença dessas populações o permitisse. Depois, à
medida que a “civilização” se espalhasse, o âmbito de aplicação dos códigos
“civilizados” alargar-se-ia. Assim, por exemplo, o decreto que mandou aplicar o Código
Civil português de 1867 ao Ultramar admitia, no seu art. 6, que “Todas as disposições
do Código Civil, cuja execução depender absolutamente da existência de repartições
jurídicas, ou de outras instituições, que ainda não estiverem criadas, só obrigarão desde
que tais instituições funcionarem”, condição que subtraía uma parte substancial do
70 V. Decreto de 7 de Dezembro de 1836, Legislação Novíssima, cit., vol. I, p. 16 e V. Decreto de 1 de
Dezembro de 1869, Carta Orgânica das Instituições Administrativas das Províncias Ultramarinas
anotada por Ismael Gracias, Nova Goa, Imprensa Nacional, 1894, p. 102. 71
V. Lei orgânica e Regulamentos da Junta geral de província (Decreto de 1 de Dezembro de 1869), p.
2.
29
território ultramarino à vigência do Código72
. Nos outros territórios, as duas as opções
seguidas mostram que as ideias francesas em matéria de colonização também passaram,
como as portuguesas, pela adopção de formas indirectas de administração e pela criação
de jurisdições especiais.
Uma dessas opções foi a da adaptação dos Códigos às “circunstâncias locais”.
Foi esse, por exemplo, o modelo seguido na Argélia, onde os franceses distinguiram,
numa Ordonance de 1845, entre zonas de administração civil, quando houvesse número
suficiente de europeus para que os serviços públicos pudessem ser organizados e o
direito comum introduzido, e zonas de administração militar, nas quais se procurou
governar as populações por intermédio dos seus chefes naturais e se admitiram as
jurisdições nativas e os “usos e costumes” vigentes73
.
Em Portugal a aplicação dos Códigos também devia variar “segundo o grau e
condição da civilização”74
e, por esse motivo, admitia-se que, quando transportados para
o espaço ultramarino, os códigos sofressem adaptações. Os princípios e regras
administrativas, por exemplo, podiam ser os mesmos, mas havia que introduzir
modificações capazes de os “particularizar segundo os usos, índole, carácter, interesses
e até erros de tão diversas gentes, com diferentes práticas e modo de viver, para as quais
muitos daqueles erros são dogmas de crença religiosa”, como se explicava no relatório
que acompanhou o Decreto de 7 de Dezembro de 1836, o primeiro a reformar a justiça
no ultramar75
. Consciente disso, o legislador – quase sempre o governo, com a
autorização anterior das Cortes e o apoio de pareceres de um Conselho Ultramarino –
introduzia modificações nos Códigos, em todos os diplomas que os punham em vigor
no ultramar. Mais do que isso, admitia sempre que os governadores-gerais em Conselho
72
A execução dos Códigos dependia, como explicava um funcionário da administração colonial
em Angola, “[...] da existência de entidades e instituições que, em grande parte, por enquanto não
existem aqui[...], transcrito em Joaquim d’Almeida da Cunha, Estudo acerca dos usos e costumes dos
Banianes, bathiás, parses, Mouros, gentios e indígenas, cit., p. X. Sobre este tema e, em geral, sobre a
extensão da legislação metropolitana ao ultramar e a sua adaptação, v. Cristina Nogueira da Silva, A
cidadania nos Trópicos…, cit., Cap. 11.2: “Aplicação da legislação metropolitana ao ultramar”.
73 V. Denise Bouche, cit., p. 110 A tarefa primordial dos bureau árabes, por exemplo, era, na
Argélia, a de manter a segurança com o mínimo de meios, o que fez com que se administrasse as
populações por intermédio dos chefes que se identificavam como naturais. Na descrição de Denise
Bouche, os oficiais dos bureau árabes esforçavam-se por encontrar, entre a aristocracia indígena,
elementos de um partido francês a quem pudessem confiar as funções de khalifas, bachaghas, caids etc..
74 Bases em que devem assentar os projectos de leis orgânicas para cada uma das Colónias Portuguesas,
cit. em Henrique Ferreira Lima, “Garrett Colonialista”, in Congresso do Mundo Português,
Comunicações Apresentadas aos Congressos de História Moderna e Contemporânea de Portugal (V e VI
Congresso), Vol. VIII, 1940, p. 431. 75
V. Legislação Novíssima, cit., vol. I, p. 18.
30
fizessem as suas próprias propostas de alteração, embora condicionadas à sua posterior
aprovação76
.
Assim, também a administração portuguesa distinguiu entre o território
ultramarino considerado civilizacionalmente preparado para gozar das vantagens do
“estado municipal” - território onde as autoridades judiciais e administrativas
desempenhavam as respectivas atribuições de acordo com a lei metropolitana -, e, por
outro lado, os “estabelecimentos indígenas”. Nestas zonas a administração devia estar
entregue a chefes militares, que acumulavam funções administrativas com funções
militares e judiciais e que se deviam orientar, no exercício dessas actividades, pelos
“usos e costumes” dos povos. Assim, num dos primeiros documentos oficiais que se
referem à exportação do regime municipal metropolitano para o ultramar, uma consulta
do Conselho Ultramarino que precedeu um Regimento de Justiça de 1852, considerava-
se que nem todo o território ultramarino estava civilizacionalmente preparado para
gozar das vantagens do “estado municipal”. No decreto que resultou dessa consulta era
explicito que as “zonas de município” coincidiam com as zonas de “colónia”,
correspondendo as outras – como os presídios e distritos, em Angola e na Guiné – aos
“estabelecimentos indígenas”. Estas últimas eram, então, zonas cuja administração
devia estar entregue a chefes militares, que acumulavam funções administrativas com
funções militares e judiciais77.
Finalmente, no território ultramarino francês e português foram criados tribunais
franceses e portugueses, semelhantes aos metropolitanos. Mas em ambos os casos estes
tribunais não só aplicaram direito não europeu, como conviveram com tribunais
especiais, onde se administrava justiça aos nativos de acordo com formas híbridas que,
na verdade, se distanciavam tanto das formas europeias como das formas “tradicionais”.
Em outros casos preservaram-se as jurisdições nativas, por vezes com a possibilidade de
se recorrer das respectivas sentenças para os tribunais europeus78. Consagrava-se, assim,
76
Essa prática, sancionada nos decretos que faziam aplicar os Códigos ao Ultramar, seria codificada no
Decreto de 1 de Dezembro de 1869, em relação a toda a legislação. O governador podia, ouvindo o
Conselho de governo, propor a revogação, modificação ou substituição de qualquer lei ou disposição
legislativa, decreto ou disposição do governo, remetendo ao Ministério da Marinha e Ultramar a proposta.
Estas propostas podiam ainda ser por ele postas em execução nos casos de urgência previstos no Art. 15
do Acto Adicional (art. 17). 77 V. Novíssima reforma judiciária: contida no decreto de 21 de Maio de 1841 segundo a
autorização concedida ao Governo[...]. Com um apêndice contendo leis, decretos e portarias que têm
interpretado, complementado e revogado algumas das suas disposições, tanto em relação ao continente
como em relação ao Ultramar, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1888, p. 614-15.
78 V. Denise Bouche, cit., pp. 140-41 e Cristina Nogueira da Silva, “A codificação…”, cit., e
bibliografia aí citada.
31
uma separação entre a justiça que podia ser praticada em zonas com algum povoamento
europeu ou europeizado e a justiça que podia ser praticada em zonas quase
exclusivamente habitadas por populações nativas, formalizando-se um sistema separado
e próprio para estas últimas79.
Comum à política colonial dos dois países foi, finalmente, a ideia de que estas
distinções que se faziam na aplicação do direito e das leis seriam transitórias. Com a
vinda de colonos europeus e o progresso económico introduzir-se-iam “hábitos
europeus” e, com eles, formas de administração cada vez mais próximas das
metropolitanas80. Em consonância com estas ideias criaram-se instituições de
“transição”, que se adequavam a esse propósito. Nas colónias portuguesas, por exemplo,
a ideia de um acesso geográfico e temporal diferenciado a um regime municipal
próximo do metropolitano foi acompanhada pela criação de instituições locais que
promovessem a extensão gradual daquele regime a todo o território. Foi com esse
objectivo que, em 1857, Sá da Bandeira ordenou ao Governador-geral da província de
Angola a execução de uma reforma da organização municipal do interior da província,
cujo sentido era, exactamente, o de preparar alguns territórios do interior para o
estabelecimento futuro da administração municipal. A reforma envolvia uma fase
“intermédia” na administração de algumas destas circunscrições, fase na qual já não
ficariam sujeitas a um chefe militar, cujo poder se pretendia atenuar, mas que não era,
ainda, a do governo pelas câmaras municipais. Em vez de uma ou outra modalidade, o
governador devia estabelecer, em alguns distritos, comissões municipais, compostas por
homens escolhidos por ele próprio entre os habitantes que, por sua “inteligência,
indústria ou fortuna”, lhe parecessem idóneos (art. 1). Ao fim de um ano, a experiência
devia ser avaliada e, nessa altura, cabia também ao governador decidir da transformação
destas comissões em câmaras municipais idênticas às metropolitanas, bem como sobre
“a forma da sua eleição, e todas as demais disposições que entenda necessário
promulgarem-se para a boa organização da administração municipal no interior da
província”81
.
79 Esta divisão foi comum a quase todos os territórios colonizados, como se mostra na tipologia
proposta por V. Crawford Young, The African Colonial State in Comparative Perspective…, cit., p. 115.
80 V., sobre essa ideia aplicado aos bureau árabes na Argélia, Denise Bouche, Histoire de la
Colonization Française, cit , p. 111-112.
81 V. Portaria de 10 de Janeiro de 1857, in Annaes do Conselho ultramarino, Parte Oficial, série I
(Fevereiro de 1854 a Dezembro de 1858), Lisboa, Imprensa Nacional, 1867, p. 353.
32
O mesmo raciocínio terá presidido à criação, na Ordonance de 1845, de um
regime “intermédio” na administração local argelina, as communes mixtes, a meio
caminho entre as communes de plein exercice, em zonas de povoamento europeu e cujo
funcionamento era similar as comunas francesas, e as communes indigénes, em zonas
não pacificadas, de administração militar. As communes mixtes desenvolviam-se em
zonas de maioria muçulmana e eram governadas por oficiais nomeados e eleitos,
incluindo representantes dos que eram identificados como chefes nativos, e por um
administrador francês82
.
Outras vezes optou-se ainda por formas administrativas mais indirectas, como
aconteceu sempre que, ao longo de todo o século XIX, a administração francesa, como a
portuguesa, assinaram “contratos de vassalagem” ou “tratados de amizade e comércio”
com chefes africanos ou, na caso francês, tratados de protectorado, no Senegal e,
sobretudo, na Tunísia e Marrocos, a partir dos anos ’80 do século XIX83. Além de
envolverem o respeito pelas tradições jurídicas nativas, filtrados pelo critério da moral e
da ordem pública, como sucedia sempre, estes tratados mantinham a soberania (ou parte
dela) das autoridades nativas, dando origem, na terminologia colonial portuguesa, à
identificação, no espaço ultramarino africano, de terras avassaladas, “territórios em que
não está estabelecida autoridade da nomeação do governo, mas cujos chefes indígenas
prestam obediência à autoridade portuguesa mais próxima ou ao governo-geral[...]”84
.
A intenção, a um prazo ainda mais longo, era que também estas populações
viessem a ser “europeizadas”, à medida que o progresso civilizacional, que se
considerava ser favorecido pela presença europeia, avançasse. Contudo, esse foi
também o ideal que norteou a política da indirect rule tal como foi concebida pelo seu
primeiro teorizador, Lord Lugard, já em 1922. Também para Lugard o fim da
colonização era o de “activar a marcha natural da evolução social” em direcção a um
estado superior de evolução que considerava ser o da civilização europeia. O respeito
pelos costumes e instituições era apenas temporário, visto como a melhor e mais
82 Em 1870 os bureau árabes situados nos territórios submetidos à administração militar foram
substituídos por estas communes mixtes. Nestas o administrador era assistido por uma comissão municipal
formada por europeus, eleitos pelos seus concidadãos, e por caïds, chefes hereditários que lentamente se
foram convertendo em pequenas funcionários da administração francesa, v. Denise Bouche, Histoire de la
Colonization Française, cit , p. 118
83 Já em 1840, no Senegal, os comandantes particulares de Gorée assinavam tratados de amizade e
comércio com os chefes locais, v. Denise Bouche, cit., p. 50. 84 V. Joaquim d’Almeida da Cunha, Os indígenas nas colónias portuguesas d’África, e especialmente na
Província de Angola, Luanda, Imprensa Nacional, 1900, p. 21. O mesmo autor explicava que nessas
terras “[…]o poder existe todo no régulo, que o exerce segundo os usos cafreais e as tradições do país”, v.
idem, ibidem, pp. 13-14.
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prudente forma de obter o efeito da “assimilação”. O que os teóricos da indirect rule
rejeitavam era a imposição violenta, “por decreto”, da cultura europeia. Mesmo as
posições mais relativistas, que se desenvolveram sobretudo nos anos ’30 do século XX,
nas quais se concebia uma evolução “dentro da tradição”, eram muito ambíguas quanto
ao resultado dessa evolução, pois nunca esclareceram sobre o grau de absorção de
valores europeus que esse modelo da evolução “na linha indígena” envolvia85.
É também certo que a tendência, em muitas das situações atrás descritas, foi para
que os chefes que se identificavam como sendo autoridades tradicionais se
convertessem em funcionários da administração directa francesa, muitas vezes
escolhidos por causa da sua fidelidade à nação colonizadora. Porém, sabe-se que
fenómenos semelhantes aconteceram com a aplicação da indirect rule, política que
muitas vezes redundou na recriação de uma organização tribal que não existia antes e no
apoio a autoridades tradicionais que, na verdade, resultavam de uma selecção mediada
pela necessidade de garantir o apoio dessas autoridades nos territórios colonizados86.
Finalmente, já nos finais do século, a doutrina francesa da association, que
integrava quase todos os elementos da indirect rule britânica (autonomia, cooperação
com as elites nativas, respeito pelas instituições e religião nativas, partilha dos
benefícios da colonização) tornou-se hegemónica nos meios coloniais franceses. E,
nessa altura, a França surgiu novamente como modelo na literatura colonial portuguesa,
já não por causa da (muito criticada) vocação igualitária da sua política colonial, mas
pelos motivos exactamente opostos. Em 1917, Artur Ribeiro dos Santos, Ministro
português das colónias, elogiou a criação, pela terceira República francesa, em 1894, de
um Ministério das Colónias, considerando essa novidade como um sinal, positivo, de
que os “princípios abstractos”, que o Ministro considerava serem próprios da tradicional
política “assimilacionista” dos republicanos franceses, tinham perdido o seu antigo
predomínio, em favor do “modelo inglês”: “Sente-se que o governo central é composto
de homens novos, educados na escola moderna da ciência positiva, avessa a utopias, os
quais têm a seu lado [...] os grandes tratados de colonização, cheios de ensinamentos
85 Sobre estes temas e as ambiguidades que os envolveram v. Véronique Dimier, Le Discours
idéologique de la méthode coloniale chez les Français et le Britanniques…, cit., p. 15-16. Reflexões
semelhantes foram as de Raymond Betts para a doutrina francesa da association; também esta nunca
abandonou o ideal assimilador mas, por outro lado, não soube explicar bem a diferença entre o progresso
que consistia em “desenvolver os povos nativos no quadro da sua própria civilização” e o
“assimilacionismo puro”, v. Raymond F., Assimilation and Association in French Colonial Theory… ,
cit., p. 131 e pp. 167-69.
86 V. Mahmood Mamdani, Citizen and Subject, Contemporary Africa and the legacy of late colonialism,
Princeton, New Jersey, Princeton University Press, 1996, p. 4-5.
34
[...] e de recomendações práticas derivadas do estudo do modelo inglês” 87
. Com isso,
dizia ainda o Ministro, insistindo num olhar sobre a realidade mediado pelas grelhas de
classificação da literatura colonial que vinha dos fins do século XX, os republicanos
franceses tinham posto termo ao “[…] pensamento simpático, mas irrealizável, de as
amalgamar [as colónias] com o continente em um mesmo e único organismo nacional,
em que pretos e brancos, irmanados, gozassem da pura doutrina da Déclaration des
Droits” 88
.
87
V. Administração financeira das províncias ultramarinas, proposta de lei orgânica e relatório
apresentados ao Congresso pelo Ministro das Colónias Artur R. de Almeida Ribeiro, e leis nº 277 e 278,
Coimbra, Imprensa da Universidade, 1917, p. 32. 88
V. Artur R. de Almeida Ribeiro, “Descentralização na Legislação e na Administração das Colónias”, in
Antologia Colonial Portuguesa, Lisboa, Agência Geral das Colónias, 1946, vol. I: “Política e
Administração”, p. 153.