Post on 02-Feb-2019
ISSN 1982 - 0283
EDUCAÇÃO MATEMÁTICA DO
CAMPO NO CICLO DE ALFABETIZAÇÃO
Ano XXIV - Boletim 12 - SETEMBRO 2014
Educação MatEMática do caMpo no ciclo dE alfabEtização
SUMÁRIO
Apresentação .......................................................................................................................... 3
Rosa Helena Mendonça
Introdução .............................................................................................................................. 4
Maria do Carmo Domite
Texto 1: O Currículo de Matemática e a Educação do Campo ............................................... 10
Línlya Natássia Sachs Camerlengo de Barbosa
Texto 2: Ressignificação da escola em contexto indígena: Etnomatemática e
Ecologia de Saberes ........................................................................................................ 18
Rogério Ferreira
Texto 3: Educação Quilombola e Etnomatemática: é um diálogo possível? ..........................25
Vanisio Luiz da Silva
Keli Mota Bezerra
3
Educação MatEMática do caMpo no ciclo dE alfabEtização
aprEsEntação
A publicação Salto para o Futuro comple-
menta as edições televisivas do programa
de mesmo nome da TV Escola (MEC). Este
aspecto não significa, no entanto, uma sim-
ples dependência entre as duas versões. Ao
contrário, os leitores e os telespectadores
– professores e gestores da Educação Bási-
ca, em sua maioria, além de estudantes de
cursos de formação de professores, de Fa-
culdades de Pedagogia e de diferentes licen-
ciaturas – poderão perceber que existe uma
interlocução entre textos e programas, pre-
servadas as especificidades dessas formas
distintas de apresentar e debater temáticas
variadas no campo da educação. Na página
eletrônica do programa, encontrarão ainda
outras funcionalidades que compõem uma
rede de conhecimentos e significados que se
efetiva nos diversos usos desses recursos nas
escolas e nas instituições de formação. Os
textos que integram cada edição temática,
além de constituírem material de pesquisa e
estudo para professores, servem também de
base para a produção dos programas.
A edição 12 de 2014 traz como tema: Educação
Matemática do Campo no Ciclo de Alfabeti-
zação e conta com a consultoria de Maria do
Carmo Domite, Doutora em Psicologia da Edu-
cação pela Universidade Estadual de Campi-
nas, Parecerista da Universidade de São Paulo
e Consultora desta Edição Temática.
Os textos que integram essa publicação são:
1. O Currículo de Matemática e a Educação
do Campo
2. Ressignificação da escola em contexto
indígena: Etnomatemática e Ecologia de
Saberes
3. Educação Quilombola e Etnomatemáti-
ca: é um diálogo possível?
Boa leitura!
Rosa Helena Mendonça1
1 Supervisora Pedagógica do programa Salto para o Futuro (TV Escola/MEC).
4
[...] acho que se fosse possível a muitos
dos professores que só trabalham dentro
da sala – presos aos programas, aos horá-
rios, às bibliografias, às fichas de avaliação
– que se expusessem ao dinamismo maior,
à maior mobilidade que se encontra den-
tro dos movimentos sociais, eles pode-
riam aprender sobre uma outra face da
educação que não se encontra nos livros.
Há algo muito importante que as pessoas
estão criando, fora da educação formal.
Para os professores, seria uma experiência
de abertura de novas perspectivas. Contu-
do, respeito os professores que preferem
ficar nas escolas; mesmo aí, porém, é pre-
ciso ser crítico dentro do sistema.
Paulo Freire2
Esta forma de trabalho, aqui como um
chamamento de Freire, foi igualmente defen-
dida pelos educadores brasileiros envolvidos
com a Educação Popular – um movimento
educacional brasileiro fértil do final dos anos
60, grande parte sob os pressupostos da edu-
cação libertadora freiriana. Com a preocupa-
ção de valorizar os saberes prévios dos alunos
e suas realidades culturais na construção de
novos saberes, tal movimento valoriza o estar
não só dentro da sala de aula, mas atuando
também na comunidade em que o educando
está inserido, motivando a participação dialó-
gica comunitária e possibilitando uma melhor
leitura de realidade social e política do grupo.
Estas ideias tiveram influência nos
programas, mais extraoficiais do que ofi-
ciais, das décadas de 70 a 90. As orientações
para a Educação Popular, de certa maneira
uma proposta educacional alternativa, ins-
tigaram professor e formador para além da
perspectiva pluralista no sentido de expor
a multiplicidade de saberes, valorizando o
saber po pular e cotidiano, assim como orga-
nizando mais e mais maneiras de contestar
as formas tradicionais de conceber as áreas
do conhecimento, já consagradas.
O leitor já deve ter percebido que,
tanto a apresentação do desafio de Freire
quanto os dois parágrafos introdutórios de-
sencadeados a partir de tal desafio, foram
encaixados no texto para nos auxiliar no
cumprimento da meta que temos neste mo-
mento - produzir um material introdutório
para autores que refletem sobre Educação
do Campo no Brasil, em especial sobre Edu-
introdução
Maria do Carmo Santos Domite 1
1 Doutora em Psicologia da Educação pela Universidade Estadual de Campinas, Parecerista da Universidade de São Paulo e Consultora desta Edição Temática.
2 Freire, P. & Schor, I. Medo e Ousadia. Rio De Janeiro: Paz E Terra, 1995.
5
cação Matemática do Campo – procurando
revelar o despertar da nossa percepção so-
bre o que temos em comum com a Educação
Popular: a mesma preocupação e o mesmo
compromisso em construir e desconstruir
reflexões de cunho sociocultural junto aos
educadores voltados para movimentos so-
ciais aliados aos educacionais.
E, se nos anos 60, não estava tão ex-
plícito no movimento da Educação Popular,
hoje, ao se estudar a Educação do Campo,
não há como não chamar a temática, como
bem diz Ferreira & Brandão, ao debate sócio
econômico e geopolítico, pois milhares de
estudantes e camponeses fazem parte deste
processo marginal, criado pela ideologia do-
minante que carrega representações simbó-
licas na consciência, reproduzindo discursos
e práticas da elite, não condizentes com a
vida e ações das populações do campo, per-
durando nos trabalhos sociopedagógicos de
milhares de escolas Brasil adentro. (FERREI-
RA & BRANDÃO, 2001)3.
Antes de adentrarmo-nos especialmen-
te na Educação Matemática do Campo, pare-
ce importante destacar o entendimento que
aqui assumimos, ou que devemos assumir, da
palavra ‘campo’ - dado que há interpretações
não consensuais Brasil afora. O termo ‘campo’
será aqui usado para distinguir um lugar que
compreende os espaços físico-sociais da flo-
resta (povos indígenas), dos quilombolas, dos
ribeirinhos, dos assentados (camponeses), da
pecuária (campinos, vaqueiros, pastores, gran-
jeiros), das minas, da agricultura e dos caiça-
ras. Ou seja, diante dessa compreensão, o ter-
mo Educação do Campo refere-se a questões
que envolvem educação escolar em um espa-
ço vivido não unidimensional, explicitamente
diferenciado em aspectos políticos, culturais,
econômicos e éticos. E uma das posturas que
cada um de nós, autores desta revista, estará
considerando é a necessidade de afastarmos
a possibilidade de indicação de um método
de ensino e aprendizagem da Matemática em
particular - a ser aplicado aos processos edu-
cativos de um dos grupos mencionados. To-
davia, estamos também afastando a ideia de
excessiva atenção à garantia do acesso escolar
aos saberes (matemáticos) já universalizados.
De todo modo, o objetivo aqui está
em produzir um material introdutório para
um conjunto de trabalhos que tratará da edu-
cação matemática do campo. Os temas elei-
tos giraram em torno da educação indígena,
educação e cultura negras e educação dos
camponeses, pensando-os todos na esfera
da educação matemática, já que os autores
não são antropólogos e, sim, educadores e
pesquisadores da educação matemática que
reconhecem o potencial em levar em conta
as tradições e os costumes – cultura – nos
processos pedagógicos.
3 FERREIRA, F. J. & BRANDÃO, E.C. Educação do Campo: um olhar histórico, uma realidade concreta. Revista Eletrônica de Educação. Ano V. No . 09, jul./dez, 2001.
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No que se refere à educação matemá-
tica, em uma relação com a cultura dos gru-
pos do campo, vale destacar que, no Brasil, os
estudos dos educadores matemáticos que di-
zem respeito a contextos multiculturais e mul-
tilíngues, em geral, baseiam-se nos princípios
da Etnomatemática. Isto se dá, talvez, devido
à influência exercida pelo educador brasileiro
Ubiratan D’Ambrosio – o qual tem incentivado
educadores matemáticos em todo o mundo à
busca das contribuições das diversas culturas
ao desenvolvimento da Matemática, assim
como da Educação Matemática.
Os educadores matemáticos brasilei-
ros envolvidos com os estudos etnomatemá-
ticos têm apresentado atitudes diferencia-
das frente ao debate sobre como considerar
o conhecimento do ‘outro’, culturalmente
diferenciado em relação ao conhecimento
dito acadêmico/escolar. Alguns educadores/
pesquisadores procuram, entre outras medi-
das, tomar o conhecimento cultural do grupo
como ponto de partida para a construção dos
conhecimentos acadêmicos/escolares – cons-
trução de uma ponte na direção da matemá-
tica acadêmica. Outros procuram manter as
discussões dentro do próprio conhecimento
e/ou patrimônios culturais - ajudando o grupo
a compreender melhor o próprio uso mate-
mático dentro de suas comunidades culturais.
E alguns outros educadores (etno) matemá-
ticos apresentam a matemática acadêmica
para o ‘outro’ grupo por meio de uma discus-
são reflexiva, porém sem a expectativa de in-
terpretar/modelar o conhecimento étnico em
conhecimento (matemático) acadêmico. Do
considerado, temos registradas declarações
como as seguintes:
(...) meu objetivo é mostrar-lhes, quando
possível, como modelar na matemática aca-
dêmica, de modo que os professores indíge-
nas sejam capazes de usar seus conhecimen-
tos étnicos para construir, com seus alunos,
o conhecimento matemático ocidental. Cor-
rêa (2001)4.
(...) o pesquisador etnomatemático deve va-
lidar o modelo que determinado segmento
constrói para a solução do problema que
aparece, procurando entender o modelo
apresentado (Scandiuzzi, 2002)5
Os autores reunidos nesta revista
têm estado, de uma maneira ou de outra,
envolvidos em experiências, projetos e di-
nâmicas que procuram articular propostas
sob denominações como Educação e Cultu-
ra, Educação Matemática e Cultura, Etnoma-
temática e Educação do Campo, todos com a
convicção de que a formação de professoras
é um caminho contundente para a trans-
formação do pedagogo, mais ou menos in-
tuitivo, para o pedagogo mais consciente -
conscientização, aqui entendido, como em
Freire, como um ultimato para que ultra-
4 CORRÊA, R.A. The education mathematics on the formation of indigenous teachers: preparing the teacher-researcher. In: Educação Matemática em Revista (SBEM, dec. 2001).
5 SCANDIUZZI, P.P. Água e óleo: modelagem e etnomatemática. In: Bolema, Rio Claro, Nº17. P. 52-58, 2002.
7
passemos a esfera da espontaneidade, que
substituamos a consciência ingênua pela
consciência crítica.
O artigo de autoria de Línlya Natás-
sia Sachs Camerlengo de Barbosa - intitulado
“O Currículo de Matemática e a Educação do
Campo” -, especialmente voltado para o cur-
rículo de matemática da educação do cam-
po, procura discutir formas de entendimento
e dinâmicas de operacionalização das esco-
las do campo. Como bem destaca a autora,
a busca de respostas a questões como “que
escola do campo queremos?” e “que sujeitos
queremos formar nessas escolas?” deve pos-
sibilitar os diversos entendimentos e discus-
sões a respeito dos currículos dessas escolas.
Compartilhando da ideia de outros
estudiosos sobre tais questões, a autora afir-
ma que o currículo deve selecionar conteú-
dos, conhecimentos e saberes, objetivando
formar pessoas reflexivas sobre seus conheci-
mentos e condições socioculturais em busca
de transformações em tais aspectos. Nesta
perspectiva, compartilha com o especialista
Tomaz Tadeu da Silva a ideia de que “currícu-
lo é, definitivamente, um espaço de poder”,
complementando que “o currículo materiali-
za o poder em uma sociedade ou cultura”.
Salienta, ainda, a autora, que, a res-
peito de currículo e educação do campo,
se tornam necessárias, nessas discussões,
problematizações e teorizações sobre uma
compreensão própria – dos grupos do cam-
po - sobre currículo. Com base em diferentes
leituras e pesquisas, Linlya Barbosa apresen-
ta entendimentos próprios sobre currícu-
lo de matemática da educação do campo,
apontando que alguns defendem o currículo
com base em uma formação técnica frente
aos trabalhos no campo; outros, que este
deve oferecer aos estudantes do campo o
acesso ao conhecimento das classes do-
minantes para apropriação e alteração da
estrutura social e econômica; e, ainda, há
aqueles que cogitam a importância sobre os
saberes da cultura camponesa.
De modo geral, as reflexões da auto-
ra Línlya Barbosa se mostram carregadas de
tensões sobre o histórico de exclusão pre-
sente no meio rural, as lutas por reforma
agrária e as condições precárias do meio ru-
ral, a falta de escolaridade, os baixos salários
e as condições degradantes de trabalho.
O artigo de Rogério Ferreira, sob o
título “Ressignificação da escola em con-
texto indígena: etnomatemática e ecologia
de saberes” coloca no centro das atenções
a descolonização da escola indígena e a di-
ferenciação entre os processos de educação
indígena e de educação escolar indígena.
Salienta o autor que educadores e formado-
res de professores indígenas têm buscado
ressignificar a escola indígena, cooperando
para que esta se assuma em um duplo papel:
valorizar a realidade sociocultural do grupo
8
étnico, assim como – em uma busca de in-
serção política - problematizar e apreender
os saberes da sociedade envolvente.
Dos destaques em geral, saliento dois,
de alguma maneira sobrepostos, como o pa-
pel da presença da escola em comunidade
indígena e da matemática no currículo dessa
escola. Estes são pontos de destaque do tra-
balho de Ferreira que o distinguem sobrema-
neira entre aqueles que também se detêm na
educação indígena e educação matemática.
Em termos do ensino de Matemática,
compreendido equivocadamente por muitos
de nós como um movimento universalizado,
este deveria, clama o autor, ir ao encontro
do outro, localmente contextualizado em
espaço indígena – como uma possibilidade
de não entrar em conflito com a organiza-
ção holística de sua sociedade e sua cultura.
O autor pede, ainda, que os conhecimentos
matemáticos escolares sejam trabalhados
com base em seus ‘saberes raiz’, buscando
fomentar um diálogo crítico com a Matemá-
tica, externa a esta ou àquela cultura indíge-
na. Neste contexto, a etnomatemática surge
como possibilidade dialógica em paisagens
de interculturalidade, impulsionando o pro-
tagonismo dos sujeitos indígenas na inten-
ção que têm de potencializar os processos
de descolonização de seus saberes.
As reflexões de Rogério Ferreira não
se constituem, de modo algum, em uma
revisão conceitual dos fatos e história da
educação indígena, mas sim, em uma con-
sideração a respeito de pontos de vista de
pessoas envolvidas (professores e gestores
indígenas), por meio de alguns depoimen-
tos orais/reflexões sobre a importância, ou
não, de uma educação matemática ligada
ao contexto de cada grupo/escola indígena.
Assim, o artigo de Rogério Ferreira
tem, como marco, conexões entre cultura e
Matemática, reforçando colocações encon-
tradas em teorizações e práticas dos cam-
pos de estudos da Educação Matemática e
Etnomatemática, deixando claro que o autor
reconhece que estes têm em comum pers-
pectivas socioculturais.
No terceiro artigo, intitulado “Edu-
cação Quilombola e Etnomatemática, é um
diálogo possível?”, Vanisio Luiz da Silva e
Keli Mota Bezerra tecem um texto no sen-
tido de projetar a possibilidade de um diá-
logo entre as perspectivas de uma Educa-
ção Etnomatemática e as propostas de uma
Educação Quilombola.
De modo a construir tal diálogo,
os autores fundamentam-se, de um lado,
em leituras, pesquisas e vivências cons-
truídas no âmbito do Grupo de Estudos e
Pesquisas em Etnomatemática- GEPEM/
FE-USP e, grande parte destes com base
nas teorizações de Ubiratan D’Ambrósio,
que orientam os estudos da área. De ou-
tro, apoiam-se em diálogos realizados com
interlocutores militantes e intelectuais en-
9
volvidos com a inserção digna dos saberes
sobre a história da África e dos afrodescen-
dentes na educação, assim como em docu-
mentos que orientam a implementação de
uma educação quilombola, redigidos por
uma equipe do Ministério da Educação/Se-
cretaria de Educação Continuada, Alfabeti-
zação e Diversidade (MEC/SECAD).
Como mencionado, baseados em
documentos governamentais, no que se re-
fere aos quilombolas e suas condições edu-
cacionais, os autores Silva e Bezerra nos
alertam para o fato de que, embora haja
mais de duas mil e duzentas comunidades
remanescentes de quilombos, poucas delas
possuem unidades educacionais com en-
sino fundamental completo. Nesta pers-
pectiva, ao enfatizar ‘pensar uma educação
quilombola significa buscar caminhos em
diálogo com as comunidades’, Silva e Be-
zerra parecem procurar legitimar tais terri-
tórios como importantes contextos geográ-
fico-políticos de resistência ao escravismo.
Em decorrência das práticas e teori-
zações desenvolvidas sob a visão do Progra-
ma Etnomatemática, que tem como elemen-
to central a dinâmica dialógica, os autores
insistem que é fundamental trabalhar na
formação inicial e continuada de professo-
res como um meio que permite acompa-
nhar e apoiar as demandas propostas, por
eles apontadas como: a) Apoiar a formação
de gestores locais para o adequado atendi-
mento da educação nas áreas de quilombos
e, b) Promover formação continuada de pro-
fessores da educação básica que atuam em
escolas localizadas em comunidades rema-
nescentes de quilombos.
Fica, então, o convite carinhoso
para uma leitura das reflexões aqui narra-
das. Aproveitem-nas nos sentidos emocional
e intelectual e questionem-nas para que os
movimentos prático-pedagógicos-filosóficos
que vêm sendo encaminhados e realizados
em torno da educação matemática do cam-
po sejam cada vez mais produtivos no âmbito
da formação de professores, formação de for-
madores e práticas docentes, em especial.
10
tExto 1
o currículo dE MatEMática E a Educação do caMpo
Línlya Natássia Sachs Camerlengo de Barbosa 1
Introdução
Coloco em discussão neste artigo o
currículo de Matemática
na educação do campo,
com o objetivo de apre-
sentar formas de enten-
dê-lo e, consequente-
mente, de materializá-lo
nas escolas do campo.
Abandono aqui qualquer compreen-
são a respeito do currículo que esteja apoia-
da em neutralidade. A seleção de conteúdos,
conhecimentos e saberes está pautada em
um objetivo anterior, que é o de formar pes-
soas, transformá-las. Silva (2011) afirma: “[...]
a pergunta ‘o quê?’ nunca está separada de
uma outra importante pergunta: ‘o que eles
devem ser?’ ou, melhor, ‘o que eles ou elas
devem se tornar?’ Afinal, um currículo bus-
ca precisamente modificar as pessoas que
vão ‘seguir’ aquele currículo” (p.15).
Compartilho com Silva (2011, p.147), a
ideia de que “[...] o currículo é, definitivamen-
te, um espaço de poder”. O currículo mate-
rializa o poder em uma
sociedade ou cultura.
Como apontam Thie-
sen e Oliveira (2012),
é necessário que, nas
discussões a respeito da
educação do campo, se
construa uma concepção própria de currícu-
lo, o que ainda não foi feito e que tem como
consequência a apropriação do Estado desse
território ainda não habitado, com propostas
educacionais “prontas e acabadas” (p.26).
Nos trabalhos da área da Educação Matemá-
tica, a situação não é diferente; aliás, talvez
pela escassez de trabalhos, seja ainda um
pouco mais crítica.
Knijnik (2004) reforça a importância de pensar
sobre o currículo:
“(...) é necessário que, nas discussões a
respeito da educação do campo, se construa uma
concepção própria de currículo.”
1 Doutoranda em Educação Matemática pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo campus Araraquara.
11
Nosso papel nestes processos de inclu-
são ou exclusão de conhecimentos no
currículo escolar é, antes de tudo, e so-
bretudo, político. Tais processos, definin-
do quais grupos estarão representados e
quais estarão ausentes na escola são, ao
mesmo tempo, produto de relações de po-
der e produtores destas relações: produto
de relações de poder, pois são os grupos
dominantes que têm o capital cultural
para definir quais os conhecimentos que
são legítimos para integrar o currículo es-
colar; são também produtores de relações
de poder, porque influem, por exemplo,
no sucesso ou fracasso escolar, produzem
subjetividades muito particulares, posi-
cionando as pessoas em determinados
lugares do social e não em outros. Estes
lugares não estão, de uma vez por todas,
definidos. O campo da Educação Matemá-
tica é também um campo possível de con-
testação. Por isto, político (KNIJNIK, 2004).
Com base em leituras e pesquisas,
apresentarei neste trabalho diversos enten-
dimentos do currículo de Matemática na
Educação do Campo. Mostrarei, por exem-
plo, que há quem defenda o currículo como
base de uma formação técnica para os tra-
balhos no campo; há quem vise proporcio-
nar aos estudantes do campo o acesso ao
conhecimento típico das classes dominan-
tes, para que eles se apropriem e possam
alterar a estrutura social e econômica em
que vivem; há quem entenda que nos currí-
culos devem estar presentes os saberes da
cultura camponesa.
O campo: contextualizando
Este trabalho, ao abordar a educa-
ção do campo, deve considerar o histórico
de exclusão daqueles que vivem no meio
rural e de lutas por reforma agrária, distri-
buição menos desigual de terras e melho-
res condições de vida.
De acordo com pesquisa realizada
pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Esta-
tística (IBGE) em 2010, no 12º Censo Demo-
gráfico, dos 190.755.799 habitantes do terri-
tório brasileiro, 29.830.007 residem em áreas
rurais (IBGE, 2012).
Não há dúvida de que a população
rural, em porcentagem, tem diminuído ao
longo dos anos: em 1970, representava cer-
ca de 44,1% de toda a população do Brasil;
em 1980, 32,4%; em 1991, 24,4%; em 2000,
18,8%; e, finalmente, em 2010, 15,6% (IBGE,
2012). Este número, apesar de reduzido,
não pode ser ignorado.
Em que condições vive essa popula-
ção? Diversos dados revelam a precariedade
de vida no meio rural, seja pela concentra-
ção de terras, seja pela falta de escolaridade,
seja pelos baixos salários e condições degra-
dantes de trabalho.
Os movimentos sociais, e aí desta-
co o Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra (MST), pedem por uma reforma
12
agrária, que altere substancialmente a dis-
tribuição de terras no país, questionando a
legitimidade da propriedade privada face às
desigualdades sociais. Martins (1999, p.100)
ressalta “que a luta pela terra, da qual deriva
a luta pela reforma agrária, é também uma
luta pela inclusão, pela inserção social ativa,
produtiva, participante e criativa na socie-
dade, é luta por dignidade e respeito”.
A luta pela reforma agrária está as-
sociada à luta por mudanças nas condições
de vida no meio rural e, entre elas, está a da
educação. As taxas de analfabetismo refle-
tem a situação precária nesse aspecto: en-
quanto nas cidades a porcentagem de anal-
fabetos é de, aproximadamente, 8,6%; no
meio rural, essa taxa é de 23,7%, de acordo
com o Censo de 2010 (IBGE, 2012).
Educação do campo
O direito ao acesso à educação para
todos, incluindo aqueles que residem em es-
paços rurais, está garantido pela Lei de Dire-
trizes e Bases da Educação Nacional (LDB) nº
9.394, de 20 de dezembro de 1996, de modo
que o artigo 28 trata das particularidades da
educação para a população rural.
O descaso, porém, com que histori-
camente tem sido tratado o tema, deixou
marcas na educação dessas pessoas. Não é
raro referirem-se à educação na zona rural
como precária, deficiente e atrasada. De-
núncias desses problemas foram feitas por
várias pesquisas, como a de Leite (1999) e a
do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira (2007).
Em resposta a essa situação, os mo-
vimentos sociais se mobilizaram fortemen-
te para que houvesse uma transformação
significativa da educação no meio rural.
Um breve histórico pode ser encontrado em
Munarim (2008).
Um marco importante é a realização
da 1ª Conferência Nacional por uma Educa-
ção Básica do Campo, que ocorreu em 1998,
em Luziânia-GO. A “educação rural”, carre-
gada de descaso e de subordinação ao capi-
tal, é substituída por uma nova concepção
de educação, a “educação do campo”. Esta,
para Munarim (2008), carrega diferentes
preceitos políticos e pedagógicos. Assim, a
mudança seria tamanha que não “suporta-
ria” os mesmos termos como referência.
Entendimentos sobre o currículo de matemática na educação do campo
Diante do exposto, apresento qua-
tro formas de se entender o currículo de
Matemática na educação do campo. Para
tal, trago artigos de periódico2, de anais de
evento3(ambos da área da Educação Mate-
mática), dissertações e teses4, que materiali-
zem a diversidade de entendimentos.
13
O estudo que realizei para selecionar
os trabalhos que citarei aqui foi baseado na
metodologia da Análise Textual Discursiva,
de Moraes e Galiazzi (2007).
Essas formas têm suas intersecções
e seus distanciamentos. Também não se
esgotam, havendo possibilidade de outros
entendimentos, que não esses. Apresento
aqueles que me saltaram aos olhos ao anali-
sar o material que selecionei.
Um primeiro entendimento que
apresento é o de que o currículo de Mate-
mática das escolas do campo deve ter algo
de específico: os meios (para se chegar ao
mesmo fim). Isto é, “parte-se da realidade”
para se chegar ao objeto matemático. O co-
tidiano, a vida real e o campo são elementos
de “motivação”, de “aplicação” e de “contex-
tualização” que devem ser “traduzidos” para
a matemática escolar, presente nos currícu-
los. Alguns trabalhos que trazem essa abor-
dagem são: Vargas e Fantinato (1998); Costa
(2005); Paniago e Rocha (2007); Paniago, Ro-
cha e Moraes (2010); e Lopes (2010).
Alguns pesquisadores colocam-se
contrários a esse ponto de vista, como Duar-
te (2012, p.7): “evitamos aquilo que se deno-
mina ‘partir da realidade do aluno’ pois en-
tendemos que esta operação acaba, muitas
vezes, hierarquizando os conhecimentos”.
Como segundo entendimento está
aquele que visa incluir, nos currículos, os
saberes locais dos camponeses – não mais
como meio, mas como fim. Assim, a escola,
como local privilegiado para acesso ao co-
nhecimento, deve também incluir, em seus
currículos, os saberes que historicamente
deles foram excluídos, como os dos campo-
neses. Os trabalhos de Costa (1998), Oliveira
(1998), Knijnik (2001), Fontana (2006), Lima e
Monteiro (2009), Bandeira e Morey (2010), e
Lima e Carvalho (2010), vão nesse sentido.
Diferentemente dos que entendem
que o conhecimento da vida cotidiana dos
estudantes das escolas do campo pode ser-
vir como base para alcançar o conhecimen-
to dito científico, nesses trabalhos está pre-
sente uma equiparação de valor entre esses
saberes que serão incorporados ao currícu-
lo e aqueles que lá já estão. Assim, não se
trata de adicionar a ele informações de ou-
tras culturas, como a do campo, a título de
curiosidade, de informação ou de folclore,
mas trata-se de torná-lo, de fato, um territó-
rio político (SILVA, 2011).
Um terceiro entendimento é o de
acesso ao mesmo conhecimento que o es-
tudante teria em qualquer outra escola.
Este encontra subsídios em Bourdieu (2007,
p.62), que afirma que a instituição escolar
deve “desempenhar a função que lhe cabe,
2 Boletim de Educação Matemática (BOLEMA).
3 Encontro Nacional de Educação Matemática (ENEM).
4 Disponíveis no Banco de Teses da Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
14
de fato e de direito, ou seja, a de desenvol-
ver em todos os membros da sociedade, sem
distinção, a aptidão para as práticas cultu-
rais que a sociedade considera como as mais
nobres”, e em Saviani (2011, p.14), para quem
“a escola diz respeito ao saber elaborado e
não ao conhecimento espontâneo; ao saber
sistematizado e não ao saber fragmentado;
à cultura erudita e não à cultura popular”.
Alguns trabalhos evidenciam essa
forma de conceber o currículo nas escolas
do campo a partir de falas de professores e
observação da realidade escolar, como em
Alves e Monteiro (2010).
Um quarto entendimento coloca que
a formação técnica para o trabalho no cam-
po deve fazer parte dos currículos dessas
escolas. O trabalho de Nascimento (2010) e
as falas de alguns entrevistados por Fontana
(2006) têm essa perspectiva.
Gramsci (1982), ao tratar da “esco-
la desinteressada”, posiciona-se contrário
a esse entendimento. Para ele, a formação
técnica determinaria o futuro de certo grupo
que, claramente, não pertence à elite; esta,
por sua vez, poderia ter acesso a conheci-
mentos não diretamente ligados ao mundo
do trabalho e, assim, não precisariam preo-
cupar-se com seu futuro profissional.
Também contrário à formação técni-
ca às pessoas do campo, o Fórum Nacional
de Educação do Campo (FONEC) – um grupo
que analisa criticamente as ações políticas
referentes à educação do campo, formado
por movimentos sociais, organizações sindi-
cais, universidades, institutos federais e ór-
gãos governamentais – reprovou fortemente
os cursos de formação técnica propostos
pelo Programa Nacional de Acesso ao Ensi-
no Técnico e Emprego (PRONATEC) para os
trabalhadores e estudantes do campo, co-
nhecido como PRONATEC Campo.
Considerações finais
Diante desses quatro entendimen-
tos a respeito do currículo de Matemáti-
ca para escolas do campo apresentados,
concluo que não há, na produção acadê-
mica, consenso sobre o tema. Os autores
baseiam-se em diferentes referenciais teó-
ricos para sustentar seus pontos de vista.
Questões como “que escola do campo que-
remos?” e “que sujeitos queremos formar
nessas escolas?” devem servir de pressu-
postos para decisões a respeito dos currí-
culos dessas escolas, em especial, no que
se refere à Matemática, lembrando que o
currículo, como afirmam Silva (2011) e Kni-
jnik (2004), é um território político.
15
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16
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18
1. Primeiras palavras
Os diferentes povos indígenas que
habitam o território brasileiro protagonizam
um aprazível fenômeno de diversidade socio-
cultural. Seus saberes evidenciam ao mundo
modos de vida localmente contextualizados,
oportunizando a todos compreender a cons-
trução do conhecimento como matriz gera-
dora de distintas epistemologias. Logo, não
subsiste a antiquada concepção que ainda
hoje visualiza conhecimento como objeto
unilinear, passível de hierarquização.
Cada nação indígena se fortalece
em raízes ancestrais que sustentam modos
específicos de sobrevivência e de transcen-
dência. Nos caminhos trilhados, edifica-se
a cultura. Nesta, manifestações múltiplas
se organizam de modo dinâmico por meio
da ação de cada ser humano que a tem
como fundamento ao mesmo tempo em
que a transforma. No movimento continu-
ado de mudança que se estabelece em cada
cultura, ações e concepções são reiteradas
e criativamente amadurecidas. Nesse con-
texto, modos de educar surgem em estreito
diálogo com a vitalização dos conhecimen-
tos locais construídos ao longo do tempo.
Tradições educativas arraigam-se no
contexto em que são erguidas, tendo força
suficiente para se constituírem em dina-
mizadoras de sociedade e cultura. Por isso,
são distintos os modos de educar construí-
dos por todo o mundo. O modelo escolar de
educação constitui um deles. Não se trata,
portanto, de modelo global. A presença de
instituições escolares, em grande parte dos
espaços socioculturais por todo o planeta,
se concretiza como consequência do ad-
vento das colonizações. Isto revela que, em
muitos dos territórios em que a escola se faz
presente, o faz como instrumento estrangei-
ro, como alienígena. (FERREIRA, 2002).
Visualizar a diversidade de conhe-
cimentos, bem como os frutos advindos de
tExto 2
rEssignificação da Escola EM contExto indígEna:EtnoMatEMática E Ecologia dE sabErEs
Rogério Ferreira1
1 Doutorado em Educação pela Universidade de São Paulo. Professor Adjunto IV da Universidade Federal de Goiás. Email: rogerio.gell@gmail.com
19
cada saber local – como é o caso da escola –,
a partir de uma ecologia de saberes, retira do
centro a monocultura da ciência, fazendo, da
pluralidade epistemológica, meio favorável à
prática do diálogo horizontal entre culturas,
e não meio propulsor de sobreposição de sa-
beres. Interações interétnicas não implicam
necessariamente o comprometimento da
autonomia de cada povo. Esse fundamento
surge como transformador qualitativo dos en-
contros interculturais ocorridos por meio dos
movimentos colonizadores (SANTOS, 2010).
A partir destas considerações iniciais,
objetiva-se mostrar que, muitas vezes, os mo-
dos específicos de educar de cada etnia indí-
gena sequer se assemelham à educação em
seu formato escolar. Educação Indígena e Edu-
cação Escolar Indígena não convergem para
um conceito comum. Trata-se de meios dife-
renciados. Esse entendimento introdutório se
faz essencial em uma abordagem que tem por
pretensão refletir a escola em comunidade in-
dígena, bem como a presença da Matemática
no currículo desta escola.
2. O papel da escola em território indígena
Sendo fruto direto ou indireto de
movimentos colonizadores, a presença da
escola em comunidades indígenas vem as-
sumindo, no decorrer do tempo, papéis que
trabalham contra a valorização dos saberes
próprios provenientes da cultura dos indi-
víduos a que se destina. É inegável o movi-
mento etnocida instituído por grande parte
das escolas construídas nestas comunida-
des. Como elemento descontextualizado,
instituem violência contra línguas, costu-
mes, visões de mundo, rituais, enfim, con-
tra saberes milenares fundamentais para a
sustentabilidade sociocultural do povo que
os têm como referência.
Diante deste quadro, educadores in-
dígenas e formadores de professores indíge-
nas têm buscado ressignificar a escola em
contexto indígena, tendo como fundamento
um duplo papel: (i) a valorização dos saberes
do povo como conhecimentos primeiros; (ii)
a problematização crítica dos conhecimen-
tos da sociedade envolvente como meio ne-
cessário para inserção política do indígena
nos espaços decisórios desta sociedade.
O educador Ubiratan D’Ambrosio
denuncia que
Uma forma, muito eficaz, de manter
um indivíduo, grupo ou cultura inferio-
rizado é enfraquecer suas raízes, remo-
vendo os vínculos históricos e a histori-
cidade do dominado. Essa é a estratégia
mais eficiente para efetivar a conquista.
(D’AMBROSIO, 2001, p.40).
Essa estratégia de conquista ex-
plicitada por D’Ambrosio tornou-se ação
comum da educação escolar indígena em
diferentes regiões do Brasil durante muito
tempo e, na atualidade, não é difícil encon-
trar escolas que ainda a utilizam, mesmo
20
quando não há plena consciência desta
ação por parte de seus gestores. Essa rea-
lidade aponta para a necessidade de uma
quebra radical com modelos escolares que
desvalorizam epistemologias indígenas.
Nesse contexto, o educador afirma
que “a estratégia mais promissora para a
educação, nas sociedades que estão em tran-
sição da subordinação para a autonomia, é
restaurar a dignidade de seus indivíduos,
reconhecendo e respeitando suas raízes”
(D’AMBROSIO, 2001, p.42). Diz ainda que:
“Conhecer e assimilar a cultura do domina-
dor se torna positivo desde que as raízes do
dominado sejam fortes” (D’AMBROSIO, 2001,
p.43). Estes pensamentos fortalecem a defe-
sa do duplo papel da educação escolar indí-
gena supramencionado neste texto.
Em harmonia a estas ideias encon-
tra-se a concepção do educador indígena
Maximino Rodrigues, da etnia Guarani Kaio-
wá. Ele diz que, em área indígena, a escola
deve ser representativa
[...] daquele grupo, daquela nação, que
ensine a língua, as danças, os rituais, as
cerimônias, que seja uma escola com au-
tonomia própria da comunidade local. Sa-
bemos que vários pais não estão passando
os conhecimentos para os filhos. Hoje isso
ficou na responsabilidade da escola. Eu,
particularmente, assumo a minha escola.
Ensino dança, ensino a escrever e a ler na
língua, ensino as brincadeiras, ensino a
fazer colares. Quando eu estou ensinando
a fazer colares, trabalho a Matemática, a
arte. (RODRIGUES et al., 2009, p.271).
Deste modo, ele defende a valoriza-
ção das raízes do povo, dos saberes que cor-
respondem à sua identidade. Mas diz ainda:
Nós moramos num bloco fechado. Qual-
quer aldeia indígena do Brasil hoje se en-
contra nessa mesma situação. Nós estamos
cercados. À esquerda, à direita, ao norte, ao
sul, em todas as direções, estamos rodeados
pelo não indígena. Esta é uma situação difí-
cil. (RODRIGUES et al., 2009, p. 270).
Ao retratar esta realidade, Rodri-
gues (2009) defende também que o domí-
nio dos conhecimentos externos pelos indí-
genas surge na contemporaneidade como
necessidade. Nessa dualidade, formada por
elementos de natureza intra e intercultu-
ral, fica claro o desafio que os povos indí-
genas hoje enfrentam para fazer da escola
instrumento efetivo de valorização de sua
realidade sociocultural e meio favorável à
presença crítico-política da voz indígena
nos espaços sociais a eles negados há mais
de cinco séculos (FERREIRA, 2004).
3. A Educação Matemática no con-texto da Educação Escolar Indígena
Como categoria de conhecimento
supervalorizado da cultura ocidental cristã,
a Matemática ganha status privilegiado nas
escolas que se espalharam por todo o mun-
21
do por meio dos processos de colonização.
Com isso, em escolas indígenas, o ensino de
Matemática carrega, em sua origem, a mar-
ca da sobreposição de um conhecimento,
equivocadamente compreendido como uni-
versal, a outro, localmente contextualizado
em espaço indígena.
A não compreensão de que cada
povo indígena possui modos próprios de
mensurar, abstrair, contar, inferir, resolver
situações-problema e, entre outros, produzir
tecnologia, levou professores não indígenas
a não problematizarem competências e con-
teúdos da Matemática escolar em relação à
epistemologia própria, não só dinamizada,
mas cotidianamente vivida pelos alunos in-
dígenas. Neste âmbito, a visão disciplinar de
mundo de quem se posiciona como detentor
do conhecimento promove conflito com a or-
ganização integral, holística, de sociedade e
cultura em realidades indígenas.
O mito de a Matemática constituir-
-se como categoria universal de conhe-
cimento, portanto presente em todos os
espaços socioculturais, promove desequi-
líbrio em contextos de encontro intercul-
tural. Por isso, não se pode mais colocar
a Matemática como conhecimento maior,
mas sim, sujeitar o seu uso, tanto em esco-
la quanto em comunidade indígena, às ne-
cessidades do povo. É preciso ressaltar que,
além disso, encontra-se a necessidade de
posicionar em primeiro plano, como base,
seus saberes raiz, buscando fomentar um
diálogo crítico com a Matemática externa.
Evidencia-se aqui, no âmbito da Matemáti-
ca, o duplo papel da escola indígena apre-
sentado na seção anterior.
Gestores e professores indígenas, ao
assumirem sua escola conjuntamente com
sua comunidade, certamente terão mais
condições de definir de que modo a Mate-
mática organizada na sociedade envolvente
poderá dialogar com os interesses e necessi-
dades de seu povo. A compreensão que têm
da Matemática em espaço de interculturali-
dade é aspecto basilar para a construção de
caminhos curriculares, de fato representati-
vos, de suas concepções. Alguns alunos do
curso de Educação Intercultural, oferecido
pela Universidade Federal de Goiás, os quais
são professores e/ou gestores indígenas em
escolas de suas aldeias, fazem as seguintes
reflexões sobre a importância, ou não, da
Matemática no contexto de suas escolas2:
É importante ensinar Matemática nas
aldeias porque o capitalismo do mundo
contemporâneo é muito forte e já está na
comunidade (C. Javaé).
2 Os nomes utilizados para identificar os professores/gestores indígenas são fictícios, conforme acordo firmado entre pesquisador e sujeitos da pesquisa. No entanto, o registro das etnias em seus sobrenomes é verídico.
22
Saber Matemática é importante porque
o mundo capitalista está entrando rapi-
damente em nos-
sas sociedades.
Antigamente não
existia cotação
de preço ou valo-
res de mercado.
Temos que enten-
der e dominar as
formas e estrutu-
ras matemáticas
(A. Karajá).
Hoje a Matemática
na aldeia é muito
importante porque nós precisamos dela
para nos defender dos kupe3. Em tudo o que
fazemos no trabalho – caça, pesca, artesa-
nato, etc. – também usamos Matemática (B.
Apinajé)
Atualmente, a Matemática é um instrumen-
to muito importante para os povos indíge-
nas. Mas, desde o surgimento, meu povo
sabia usar Matemática. O conhecimento
tradicional da Matemática vem da nature-
za. Como professor, podemos aprofundar o
conhecimento tradicional (D. Xerente).
Somos professores indígenas e temos a
necessidade de aprender Matemática.
Vejo que a comunidade reclama muito de
os professores de Matemática não serem
índios. Isso dificulta para os alunos, ain-
da mais porque alguns não sabem falar
português (E. Karajá).
Em suas falas, professores e gesto-
res indígenas mostram que, a partir das
necessidades de cada comunidade e da
dualidade de saberes
advinda da intercul-
turalidade, o ensino
e a aprendizagem da
Matemática poderão
contribuir, tanto para
a valorização de sua re-
alidade sociocultural,
quanto para a inserção
político-acadêmica dos
cidadãos indígenas em
múltiplas vertentes da
sociedade nacional. Seus modos de com-
preender congraçam com os fundamentos
que vêm alicerçando o campo de conheci-
mento da etnomatemática.
Este campo, ao compreender a Ma-
temática como constructo sociocultural, se
consolida como promotor de diálogo hori-
zontal entre culturas. Ou seja, um dos as-
pectos basilares da etnomatemática para
debater a construção de saberes sob a pers-
pectiva local está na criticidade dialógica
acerca da interculturalidade. E, para isso, a
transdisciplinaridade surge como diretriz,
buscando promover reflexões que perpas-
sem pelo difícil terreno da harmonização
entre educação indígena e educação escolar
indígena (D’AMBROSIO, 2012).
3 Kupe significa não indígena nas línguas dos povos timbira.
“(...) essa imersão dos
alunos numa cultura de
investigação favorece
o desenvolvimento da
capacidade de arguição,
criticidade, autonomia,
pensamento científico e
curiosidade.”
23
4. Palavras finais
Neste texto, procuraram-se promo-
ver reflexões iniciais sobre a possível ressig-
nificação da escola em contexto indígena, a
partir de uma aproximação, também inicial,
à etnomatemática e à ecologia de saberes.
Neste caminho, diretrizes foram aguçadas na
expectativa de motivar uma compreensão da
interculturalidade que possa fazer aflorar no-
vas histórias para a presença de escolas em
comunidades indígenas.
A primeira diretriz buscou eviden-
ciar que, se a ação escolar acarretar em
sobreposição de práticas de ensino e apren-
dizagem tradicionais, então ela estará se
mantendo na posição de instrumento da
colonização. A segunda buscou colocar em
foco a necessidade de a escola indígena as-
sumir-se em um duplo papel: valorizar sua
realidade sociocultural, ao mesmo tempo
em que, como estratégia de inserção polí-
tica, problematiza os saberes da socieda-
de envolvente. Já a terceira diretriz trouxe
para o centro das atenções o pensamento
indígena acerca de conhecimentos de na-
tureza matemática, defendendo que pro-
fessores e gestores educacionais indígenas,
sob o respaldo de sua comunidade, neces-
sitam ser protagonistas da construção cur-
ricular. Nesse contexto, a etnomatemática
surge como possibilidade dialógica.
Uma importante conclusão a que se
chega a partir destas bases é a de que o pen-
samento secular que compreende a escola em
espaço indígena como “escola para o povo”
retira do sujeito indígena o protagonismo na
construção de uma escola efetivamente re-
presentativa de suas necessidades e vontades.
Portanto, espera-se que esse pensamento seja
transcendido para a “escola do povo”, como
lhe é de direito, conforme legisla a constitui-
ção brasileira em vigor desde 1988.
Fica então o desejo de que a concepção
de educação como “[...] o conjunto de estra-
tégias desenvolvidas pelas sociedades para (i)
possibilitar a cada indivíduo atingir seu poten-
cial criativo; (ii) estimular e facilitar a ação co-
mum, com vistas a viver em sociedade e a exer-
cer a cidadania” (D’AMBROSIO, 1999, p.99), para
que, em conjunto com as raízes da ecologia de
saberes (SANTOS, 2010) e da etnomatemática,
tenha força para fazer surgir diálogo novo em
paisagens de interculturalidade, impulsionan-
do o protagonismo dos sujeitos indígenas na
intenção que têm de potencializar os processos
de descolonização de seus saberes.
24
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ecologia dos saberes. In: SANTOS, Boaventura de Sousa e MENESES, Maria Paula [orgs.]. Episte-
mologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010. p. 31-83.
~
25
Desde que a “etnomatemática” teve
seus fundamentos e conceitos defendidos por
Ubiratan D’Ambrósio no ICME de 1985 (Inter-
national Congress on Mathematical Educa-
tion/1985), o programa vem sendo ressigni-
ficado por educadores que incorporaram os
mesmos em suas práticas, configurando uma
diversidade que, por um lado, é objeto da
apreciação de críticos, e por outro, tem orien-
tado os atos e projetos ao redor do mundo.
E é exatamente essa amplitude que
orienta a proposta de refletir sobre um di-
álogo possível entre a Educação Etnomate-
mática (VERGANI, 2008) e os documentos de
orientação e implementação das ações para
a educação das relações étnico-raciais (BRA-
SIL, 2004; 2006), fundamentados em leituras
e vivências com educadores e pesquisas da
área – especialmente do Grupo de Estudos e
Pesquisas em Etnomatemática da Faculdade
de Educação de São Paulo (GEPEm/FE-USP) – e
com militantes e intelectuais envolvidos com
a inserção digna dos saberes sobre a história
da África e dos afrodescendentes na educação.
Entretanto, tal aproximação impõe
o delineamento e a compreensão, ainda
que superficial, dos mesmos, para que as
possibilidades de contribuição mútua pos-
sam ser melhor compreendidas.
Fundamentos da Educação Etno-matemática
Os estudos em Etnomatemática des-
tacam as dimensões: histórica, epistemológi-
ca, cognitiva, política, educacional e conceitual,
definidas por D’Ambrósio (2011). Destas, ini-
ciamos pela histórica, que tomamos como a
mais relevante aos propósitos deste artigo,
pois ela conduz à compreensão do raciona-
lismo (técnico) quantitativo – interpretado
como o ápice do desenvolvimento humano
tExto 3
Educação QuiloMbola E EtnoMatEMática: é uM diálogo possívEl?
Vanisio Luiz da Silva1
Keli Mota Bezerra2
1 Professor da rede municipal de São Paulo - Doutorando em Educação pela Universidade de São Paulo, Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Etnomatemática GEPEm da FE/USP, Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Etnomatemáticas Negras e Indígenas da UFMT-GEPEN.
2 Professora da rede municipal de São Paulo - Mestre em Educação pela Universidade de São Paulo, Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Etnomatemática GEPEm da FE/USP.
26
– ser fruto de um processo de organização
social e de produção que vem se consti-
tuindo ao longo dos últimos três mil anos.
Deste, se destacam quatro grandes
marcos: a racionalidade grega, a cristã, a
moderna e a pós-moderna, sendo que este
último embute, em si, possibilidades e olha-
res distintos à própria lógica da moderni-
dade, fato que tem levado muitos à busca
de compreender – pela ótica da Matemá-
tica – valores, crenças e visões do mundo
que influenciam as decisões dos grupos nos
processos de mensuração, quantificação,
classificação e avaliação do tempo, espaço e
formas. Fundamentados na evolução da pró-
pria ciência, uma vez que a:
ciência moderna vai desenvolvendo os instru-
mentos intelectuais para sua crítica e para
a incorporação de elementos de outros sis-
temas de conhecimento. Esses instrumentos
intelectuais dependem fortemente de uma in-
terpretação histórica dos conhecimentos de
egípcios, babilônicos, judeus, gregos e roma-
nos, que estão nas origens do conhecimento
moderno (D’AMBRÓSIO, 2011, p. 29).
A dimensão epistemológica conduz à
busca de sistemas de conhecimento desen-
volvidos socioculturalmente, pressupondo
que sejam respostas às pulsões de vida. Por-
tanto, na interação do humano com o am-
biente, proporcionando modos próprios de
explicar e entender a realidade. Visto que,
para D’Ambrósio (2011, p. 37-38):
na ciência pós-moderna, a dinâmica de gera-
ção de conhecimento e, consequentemente,
o retorno desse conhecimento àqueles res-
ponsáveis pela sua produção, constitui um
ciclo indissolúvel, e as tentativas de estudar
esse ciclo isolando seus componentes é ina-
dequado para sistemas de conhecimento
não ocidentais.
Quanto à dimensão cognitiva, ela tem
conduzido os olhares para a forma como os
conhecimentos individuais, ao serem comu-
nicados e compatibilizados com o grupo, se
incorporam aos comportamentos psicológi-
cos e culturais, coletivos e individuais. Tais
esforços têm se concentrado nos modos de
quantificar, mensurar e avaliar em interação
com os valores e as crenças locais.
Isto porque “explicações para as
causas primeiras são organizados [mitos de
criação]. A morte, tão evidente, talvez não
seja um fim, mas o encontro com as cau-
sas primeiras. [...] Só o responsável pelas
causas primeiras [um divino] poderia co-
nhecer o mistério do que vai se passar?”
(D’AMBRÓSIO, 2011, p. 34).
A dimensão política tem como pres-
suposto que os conhecimentos acumulados
e desenvolvidos às margens do Mediter-
râneo, que foram difundidos pelo planeta
como o mais elevado conhecimento huma-
no, seguem uma estratégia de dominação
que levou ao extermínio indivíduos, povos e
culturas, por resistirem à imposição de um
conhecimento fundamentado na crença de
seres superiores e inferiores.
27
No Brasil, os processos de resistên-
cia que se estabeleceram a partir da colo-
nização, na prática, foram fundamentais à
dinâmica da cultura,
modificando tradi-
ções, valores, crenças,
manifestações artísti-
cas, religiosas e até as
práticas científicas do
colonizador e do colo-
nizado. É por isso que
nos posicionamos, não
somente pelo reconhe-
cimento e preservação
dos valores culturais
dos indivíduos e gru-
pos submetidos ao
domínio colonial, mas
também pela incorpo-
ração de seus valores e práticas como cons-
tituintes da nossa visão do mundo.
A etnomatemática não só reconhece
o papel do sistema educacional como fonte
de transformação social, mas como um ins-
trumento de resgate de conhecimentos, va-
lores e culturas dos povos colonizados en-
quanto constituinte da nação. Neste caso,
tratamos especialmente das manifestações
culturais dos africanos escravizados no
Brasil e seus descendentes, pois, de acordo
com as orientações:
a estratégia mais promissora para a edu-
cação, nas sociedades que estão em tran-
sição da subordinação para a autonomia,
é restaurar dignidade de seus indivíduos,
reconhecendo e respeitando suas raízes.
Reconhecer e respeitar as
raízes de um indivíduo não
significa ignorar e rejeitar
as raízes do outro, mas,
num processo de síntese,
reforçar suas próprias raí-
zes. Essa é, no meu pensar,
a vertente mais impor-
tante da etnomatemática
(D’AMBRÓSIO, 2011, p. 42).
Por fim, entendemos
que a dimensão edu-
cacional, não propõe
“a rejeição da Mate-
mática acadêmica”
(D’AMBRÓSIO, 2011), ou
a substituição desta.
Muito pelo contrário, defendemos a escola
como o ambiente de difusão do conheci-
mento científico, para quem a boa mate-
mática é essencial à atuação crítica sobre o
mundo. Para tanto, parece imprescindível a
inclusão de valores, visões e propostas mais
solidárias e cooperativas de sociedade.
A convicção de que o raciocínio qua-
litativo – preponderante nas sociedades tra-
dicionais – é essencial à reorganização da
sociedade globalizada, pois este permite crí-
ticas a partir de racionalidades pautadas em
solidariedade e cooperação. Daí que vem a
afirmação de D’ Ambrosio (2011, p. 44 – 45):
“A Etnomatemática
não só reconhece
o papel do sistema
educacional como
fonte de transformação
social, mas como um
instrumento de resgate
de conhecimentos,
valores e culturas dos
povos colonizados
enquanto constituinte da
nação.”
28
a etnomatemática privilegia o raciocínio
qualitativo. Um enfoque etnomatemático
sempre está ligado a uma questão maior, de
natureza ambiental ou de produção, e a et-
nomatemática raramente se apresenta des-
vinculada de outras manifestações culturais,
tais como arte e a religião. A etnomatemáti-
ca se enquadra perfeitamente numa concep-
ção multicultural e holística de educação.
Disso, o autor conclui que, diante de
um mundo no qual as pessoas circulam com
muito mais agilidade, fazendo com que as
relações entre diferentes sejam muito mais
próximas e contínuas, criando um contexto
de convivência entre as diferenças, faz com
que a diferença seja a característica mais
marcante da educação atual.
Fundamentos da Educação Quilombola
Do ponto de vista da população negra,
o Brasil da virada do século XX foi marcado
pela luta de inserção digna na educação es-
colar negada pelo escravismo colonial, cujas
cicatrizes ainda permanecem vivas. Algumas
contradições herdadas desse modelo ainda
influenciam, de modo especial, a autoestima
e o desempenho escolar da criança negra.
O movimento de renovação da edu-
cação ganhou projeção por defender uma es-
cola pública e gratuita para todos na reforma
educacional de 1930, mas desvelou a crença
da elite intelectual e da sociedade na ciência
eugênica, na objetividade técnica e no cienti-
ficismo eurocêntrico que se mostraram ina-
dequados aos anseios da população negra. E,
mesmo diante dos inquestionáveis avanços,
a reforma não debruçou sobre os estigmas
que marcaram a inserção perversa da popu-
lação negra na sociedade.
Vista de outra perspectiva, essa luta
por educação básica enquanto ideal de igual-
dade na diversidade inspirou o projeto de
Educação Para Todos (EPT), capitaneado pela
Organização das Nações Unidas (ONU), que
assumiu: “a educação é um direito fundamen-
tal de todos, mulheres e homens, de todas as
idades, no mundo inteiro” (UNESCO, 1990).
A confluência de potencialidade e di-
reito levou à instituição a encaminhar metas
a serem atingidas pelos países participantes
na Conferência Mundial sobre Educação, em
Jomtíen, 1990, e alcançá-las, ainda é um dos
maiores desafios colocados para a ONU e
por extensão para toda a humanidade. O do-
cumento desta reafirma o compromisso dos
países com uma escola de Educação Básica
para todos, transcrevendo seus objetivos e
abrangência e instrumentos essenciais.
Os conteúdos básicos e as heranças
linguísticas, culturais e espirituais, foram in-
terpretados como esforços de satisfação das
necessidades básicas de aprendizagem. Os
modelos didático-pedagógicos – vinculados
aos valores, culturas e crenças locais – como
estratégia de adequação e busca pelo forta-
lecimento das identidades e raízes culturais
29
das populações locais. Entendimento que de
algum modo contribui para a transforma-
ção dos conteúdos e estratégias de ensino
em instrumentos de diálogos horizontais
entre contextos, culturas e povos. Portanto,
meios, não um fim em si.
Passada uma década da conferên-
cia de Jomtíen, a UNESCO, em 2000, reuniu
novamente os países signatários no Fórum
Mundial de Educação de Dakar para uma
avaliação do projeto, cujo relatório – no pa-
rágrafo 5º – afirma:
a avaliação de EPT 2000 demonstra que
houve progresso significativo em mui-
tos países. Mas é inaceitável que, no ano
2000, mais de 113 milhões de crianças con-
tinuem sem acesso ao ensino primário e
que 880 milhões de adultos sejam analfa-
betos; que a discriminação de gênero con-
tinue a permear os sistemas educacionais;
e que a qualidade da aprendizagem e da
aquisição de valores e habilidades huma-
nas não satisfaçam as aspirações e neces-
sidade dos indivíduos e das sociedades
(UNESCO, 2001, p. 7).
Ele revela também que o Brasil acu-
mula déficits educacionais históricos, cuja
superação requer esforços radicais do Esta-
do e uma vigilância constante da sociedade,
de modo que a educação para todos seja um
desafio de todos. Isso vem elevando a cons-
ciência dos educadores e dirigentes educa-
cionais quanto à necessidade de ampliar
os contextos para além do tradicionalismo
educacional a fim de atender uma sociedade
marcada por diferenças.
O movimento da ONU, estimulado
por intelectuais e ativistas envolvidos com
a inserção digna dos saberes sobre a África e
afrodescendentes nas abordagens escolares,
mobilizou-se em torno de um grupo de tra-
balho para orientar parâmetros de políticas
públicas que resultou em dois documentos
que têm servido de base aos debates em
torno da questão: as Diretrizes Curriculares
Nacionais para a educação das relações étni-
co-raciais e para o ensino de história e cultu-
ra afro-brasileira e africana, 2005 e as Orien-
tações e Ações para a Educação das Relações
Étnico-Raciais, 2006.
Produzidos por equipes multidisci-
plinares do Ministério da Educação/Secreta-
ria de Educação Continuada, Alfabetização
e Diversidade (MEC/SECAD), o documento
(BRASIL, 2006, p. 13) informa que:
se dirige a diversos agentes do cotidiano
escolar, particularmente, aos(as) professo-
res/as, trazendo, para cada nível ou moda-
lidade de ensino, um histórico da educação
brasileira e a conjunção com a temática
étnico-racial, adentrando na abordagem
desses temas no campo educacional e con-
cluindo com perspectivas de ação.
Seu conteúdo está distribuído por
todas as modalidades, das quais destaca-
mos a educação infantil, a quilombola e as
licenciaturas, por estarem voltadas às con-
vergências deste estudo, em relação com a
etnomatemática. Sendo assim, o primeiro
30
grupo responsável pelas orientações no En-
sino Fundamental, traz no parágrafo 2º uma
boa síntese dos seus objetivos, conforme
pode ser observado:
consideramos relevante apresentar prin-
cípios significativos e fundamentais que
possam orientar os (as) profissionais
quanto ao trato positivo do tema, bem
como variadas sugestões para se cons-
truir um referencial curricular no qual
alguns elementos constitutivos da cos-
movisão africana, em grande parte des-
conhecida no campo educacional brasi-
leiro, compareçam como base, a exemplo
da ancestralidade, circularidade, solida-
riedade, oralidade, integração, coletivi-
dade, (BRASIL, 2006, p. 55 - 56).
Em seguida, fazem questionamen-
tos que sintetizam os anseios da população
negra e que são assim descritos: a) Em que
ponto a escola se encontra no itinerário de
construir uma educação que valorize e res-
peite as diferenças? b) Que tipo de diálogo
a escola tem estabelecido com as diferentes
culturas, em especial a cultura negra, presen-
tes no universo escolar? c) Qual tem sido o
posicionamento da escola diante das relações
étnico-raciais estabelecidas em seu interior
que tem dificultado a construção positiva da
identidade racial e o sucesso escolar do alu-
no negro? d) Qual a importância que a esco-
la tem dado às recentes estatísticas que de-
monstram as dificuldades encontradas pelo
segmento negro, especialmente no campo da
educação? e) As instituições escolares têm se
servido destas estatísticas em seus momentos
de avaliação para promover reformulações
em suas práticas pedagógicas?
No que tange à educação quilombo-
la, o grupo responsável tomou como pres-
suposto os parâmetros legais para definir
as escolas localizadas nas 2.228 comunida-
des remanescentes de quilombos, em quase
todos os estados da Federação (NAVARRO,
2005). Os relatos das comunidades dão con-
ta de algumas escolas comuns, enquanto
em outras, os estudantes precisam se des-
locar, gerando demandas de ordem que vão
das dificuldades de deslocamento até a ina-
dequação do currículo, que se soma ao fato
de que “os (as) professores (as) não são ca-
pacitados adequadamente e o seu número é
insuficiente. Poucas comunidades possuem
unidades educacionais com o Ensino Funda-
mental completo”, (BRASIL, 2005, p. 57).
Pensar uma educação quilombola
significa buscar caminhos em diálogo com
as comunidades, partindo do princípio de
que “Quilombo” remete a instituições mais
expressivas que territórios de resistência ao
escravismo. Representa o lugar onde pesso-
as depositam anseios e sonhos que consti-
tuem heranças ancestrais que são fontes de
conhecimento acerca de um dos três pilares
civilizatórios da nação.
Desses pressupostos encaminha-se
uma série de pontos que estão especialmen-
te destacados no documento. Em síntese,
eles compreendem: a) Mapear as condições
31
estruturais e práticas pedagógicas das esco-
las localizadas em áreas de remanescentes de
quilombos e o grau de inserção das crianças,
jovens e adultos no sistema escolar; b) Garan-
tir direito à Educação Básica para crianças e
adolescentes das comunidades remanescen-
tes de quilombos, assim como as modalida-
des de EJA e AJA; c) Ampliar e melhorar a rede
física escolar por meio de construção, am-
pliação, reforma e equipamento de unidades
escolares; d) Incentivar a relação escola/co-
munidade no intuito de proporcionar maior
interação da população pela educação, fazen-
do com que o espaço escolar passe a ser fator
de integração comunitária; e f) Aumentar a
oferta de Ensino Médio nas comunidades qui-
lombolas para que possamos possibilitar a
formação de gestores e profissionais da edu-
cação das próprias comunidades.
A responsabilidade de refletir sobre a
adequação da formação dos profissionais de
nível superior em geral, e em especial “nos
cursos de formação dos profissionais da
educação” (BRASIL, 2006, p. 125). No tocante
ao trato com a lei 10.639/03, o grupo definiu
que a abrangência da temática faz com que
esta meta seja subdividida.
No entanto, optamos por lidar com
a formação inicial e continuada de professo-
res em função da afinidade com os estudos
e práticas desenvolvidos no programa Etno-
matemática, o que representa um elemen-
to central no diálogo, pois isso nos permite
acompanhar as demandas propostas, que
em síntese são: a) Apoiar a capacitação de
gestores locais para o adequado atendimen-
to da educação nas áreas de quilombos; b)
Promover formação continuada de profes-
sores da educação básica que atuam em
escolas localizadas em comunidades rema-
nescentes de quilombos, atendendo ao que
dispõe o Parecer 03/2004 do CNE e conside-
rando o processo histórico das comunidades
e seu patrimônio cultural.
Acúmulos da etnomatemática
As investigações sobre a cultura ne-
gra, do ponto de vista da Educação Etnomate-
mática já compõem as estratégias de estudo
do GEPEm-FE/USP, pois do grupo percebe-se
a produção de alguns – por volta de dez – es-
tudos de mestrado e doutorado. Foi também
a partir do grupo que se originou o GEPENI/
UFMT, de um membro na coordenação do
Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Univer-
sidade Federal de Uberlândia – NEAB/UFU.
Tais acúmulos têm servido às refle-
xões de educadores matemáticos na funda-
mentação e desenvolvimento de propostas
pedagógicas voltadas à formação de educa-
dores. E, ao serem somados às experiências
com a formação de educadores indígenas
desde maio de 2002, contam com a parceria
da Faculdade de Educação/USP e Secretaria
de Educação do Estado de São Paulo, sob a
coordenação da Professora Maria do Car-
mo Santos Domite.
32
O propósito é orientar uma forma-
ção voltada para as escolas das aldeias in-
dígenas, objetivando que o/a professor/a
“indígena” assumisse a escola da aldeia,
que compreendia a Educação Infantil. Do
processo resultou a certificação de 61 indí-
genas, vindos de 21 aldeias diferentes, locali-
zadas em diversas regiões do Estado.
Em seguida, o Curso de Formação
Intercultural superior do professor indíge-
na concluiu a graduação em 2008, abrindo
espaço para um sistema que possa ir ao
encontro das particularidades culturais de
cada grupo étnico, tomando como enfoque
o desenvolvimento das instituições educa-
cionais – a escola da e na aldeia – cada vez
mais nas mãos dos próprios indígenas, sob a
orientação/liderança de cada um dos povos.
Frente a este desenvolvimento está
sendo encaminhada uma formação em ser-
viço, por parte de formadores não indígenas,
paralela à atuação do professor, que tem pro-
curado desenvolvê-la no sentido de buscar re-
cursos educacionais mais apropriados, tanto
do ponto de vista cultural quanto linguístico.
Na perspectiva de alcançar resultados signi-
ficativos para o exercício de um diálogo in-
tercultural, pautado no respeito à diferença,
acerca da educação (matemática) indígena.
Como prática, os acúmulos e conhe-
cimentos resultaram em três estágios do pro-
cesso de formação dos professores indígenas:
magistério indígena, formação intercultural
superior indígena e licenciatura indígena
(ainda em andamento), um sistema dife-
renciado de formação que, de algum modo,
serve de parâmetros para se pensar outras
propostas de formação diferenciadas, que
em contrapartida nos sirva como referência
de conhecimentos culturais que contribuam
com construção de uma perspectiva mais hu-
manista do conhecimento cientifico.
33
REFERÊNCIAS
BRASIL. Ministério da Educação. Diretrizes curriculares nacionais para a Educação das
Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.
Parecer CNE/CP- 3/2004, 2004.
______. Ministério da Educação/Secretaria da Educação Continuada, Alfabetização e Di-
versidade. Orientações e Ações para Educação das Relações Étnico-Raciais. Brasília: SE-
CAD, 2006.
D’AMBRÓSIO, Ubiratan. Etnomatemática: o elo entre as tradições e a modernidade. Belo
Horizonte: Autêntica, (2005).
______. Uma síntese sociocultural da história da Matemática. São Paulo: Proem. (2011).
SILVA, V. L. da. A cultura negra na escola pública: uma abordagem etnomatemática (Dis-
sertação de Mestrado- Faculdade de Educação da USP). São Paulo, 2008.
NAVARRO, Luciana. Muitas comunidades, poucos registros. Disponível em: http:// www.
unb.br/acs/unbagencia/ag0505-18.htm. Acesso em 12/05/2005
VERGANI, Teresa. Educação Etnomatemática: o que é? Natal: Flecha do Tempo, 2007.
34
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Setembro 2014